Simbolos Falicos - Garraffoni e Sanfelice
Simbolos Falicos - Garraffoni e Sanfelice
Simbolos Falicos - Garraffoni e Sanfelice
Abstract: The aim of this paper is to focus on gender studies and their Keywords:
contributions to new approaches to Classical Archaeology regarding the Pompeii;
Early Principate. First, we shall focus on theory and its specificity in Brazil Phallic material culture;
and second we will study a series of lamps and apothropaic objects from Gender studies.
Pompeii to propose a new approach to this type of material culture. We
shall argue that is urgent to move beyond phallocentric or pornographic
views from the Roman past.
*
Doutora em História pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora do Departamento de História da
Universidade Federal do Paraná (UFPR).
**
Doutora em História pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professora do Departamento de História da
Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR).
Introdução
A
década de 1990 é particularmente interessante no que diz respeito aos debates
acerca da cultura material e sua potencialidade como documento histórico.
Ucko (1995), por exemplo, afirma que nesse período a maioria dos arqueólogos
já concordava que a disciplina estava fundamentada em princípios teóricos. No entanto,
a relação entre prática e teoria ainda era um campo de pouco consenso. Para explicar
melhor essa tensão, aponta que, nas últimas décadas, havia ocorrido uma mudança de
perspectiva importante e o passado começava a ser entendido como leituras possíveis
a partir do contexto sociopolítico em que está o estudioso. Isso acarretou uma série de
novas discussões: o questionamento da noção de que a Arqueologia só se aplicava a
povos sem escrita e um maior desenvolvimento da chamada Arqueologia Histórica, da
presença do nacionalismo, do imperialismo e do eurocentrismo nas formas de construir
o conhecimento, entre outros fatores que elenca.
Embora esses elementos pudessem ser reconhecidos em muitos estudos e debates,
Ucko (1995) também argumenta que havia diferenças regionais. Então, essas relações de
poder na construção da disciplina não seriam universais e seus produtos trariam diferentes
impactos nos arqueólogos ou na forma na qual a Arqueologia é entendida e praticada
nos diversos lugares do mundo. Nesse sentido, o que Ucko (1995) chamava a atenção,
na década de 1990, é que temos que perceber que a Arqueologia Histórico-Cultural ou a
Nova Arqueologia tiveram papeis importantes na construção da disciplina e seguem até
o presente, mas é preciso ter consciência de que a adoção de determinado tipo de teoria
implica em uma seleção daquilo que é considerado mais apropriado de uma grande
quantidade de dados disponíveis para a comunidade acadêmica (UCKO, 1995, p. 14).
Assim, se antes a Arqueologia era evocada para destacar a homogeneidade da
humanidade, com as mudanças elencadas, passaria a indicar que o passado é construído
com base em determinadas teorias. Mesmo que muitos arqueólogos ainda se protegessem
defendendo a importância da neutralidade e objetividade, Ucko (1995) se posiciona
claramente a favor da perspectiva segundo a qual o passado é construído a partir de
escolhas do presente e que a Arqueologia deveria se abrir e contribuir para a construção
de modelos interpretativos menos excludentes. Nessa perspectiva, a disciplina poderia ser
instrumento de desconstrução de meta-narrativas europeias, das formas de imposição de
poder e desigualdades sociais, dos racismos que nos assolam.
Se esses argumentos de Ucko (1995) de certa forma resumem pontos importantes
da agenda da Arqueologia Pós-processual da década de 1990, os feminismos também
foram fundamentais para questionamentos estruturais e construção de novas abordagens
epistemológicas na disciplina. Cullen (1996) afirma que, por meio dos feminismos, no
início da década de 1980, surgem as primeiras críticas ao androcentrismo da Arqueologia
e como o sexismo do presente influenciava nas visões sobre o passado. Voss (2000), pouco
tempo depois, esclarece que textos de feministas marxistas que marcavam a opressão
do patriarcado têm uma importância histórica no questionamento da preponderância
da experiência masculina nas narrativas arqueológicas e fundamentaram as primeiras
críticas à divisão rígida do trabalho imposta às mulheres no passado e presente. Ambas
concordam que tais trabalhos, junto com as discussões dos estudos de gênero, que se
alastram pela década de 1990, foram fundamentais para a construção de perspectivas
nas quais é preciso ter uma postura crítica na forma em que a Arqueologia se consolidou
e como manteve as estruturas sociais de desigualdade de gênero no seu interior ao
longo do século XX.
Nesse sentido, as críticas de Cullen (1996) e Voss (2000) convergem em um
ponto: o potencial dos feminismos para a construção de novas epistemologias para
o conhecimento a partir da cultura material. As autoras defendem que os estudos
de gênero contribuem para novas narrativas acerca do passado e Voss (2000), em
específico, avança para as questões de sexualidade, deslocando-se da abordagem
feminista para os estudos queer. O que a autora destaca é que, com os debates da
década de 1990, criou-se a possibilidade de desestabilizar categorias como homem,
mulher, masculino e feminino (VOSS, 2000). Se os anos 1980 foram importantes para
a inserção das mulheres como objeto de estudo da Arqueologia, a década de 1990
trouxe as discussões sobre mulheres e homens, para depois, no começo do século XXI,
serem questionadas e abrirem espaço para discussões acerca de corpo, sexualidade
e gênero, apontando, então, uma nova questão: a cultura material pode nos fazer
pensar sobre sexualidade?
Considerando esse panorama, a presente reflexão encontra-se na interseção desse
debate. Nossa proposta é partir das especificidades das discussões sobre Arqueologia
Clássica e relações de gênero, desenvolvidas sobretudo em contexto brasileiro, para pensar
como a cultura material pode contribuir com outras leituras sobre o culto ao falo entre os
romanos. Para tanto, partiremos das discussões teóricas sobre cultura material e gênero,
para, na sequência, analisarmos uma série de lamparinas e outros objetos de Pompeia
com símbolos fálicos que nos remetem a contextos apotropaicos. Nossa proposta visa,
portanto, a uma reflexão de como a cultura material pompeiana, analisada a partir de
uma perspectiva de gênero, pode proporcionar leituras mais plurais do cotidiano romano
do início do período do Principado.
Pedro Paulo A. Funari (1986) é, sem dúvida, um nome importante tanto no que diz
respeito ao desenvolvimento da Arqueologia Clássica no Brasil, como nos debates teóricos
acerca das leituras sobre cultura material. No final dos anos 1980 e início dos anos 1990,
publicou trabalhos sobre Pompeia, por exemplo, em que chamava a atenção para as
camadas populares e a importância dos grafites parietais para um estudo mais apropriado
do ethos popular romano, incluindo as questões apotropaicas que nos interessam discutir
nesse artigo (FUNARI, 1986; 1989; 1992; 1993; 1995c). Por outro lado, por ter tido uma
participação bastante ativa no World Archaeological Congress (WAC), o historiador também
publicou, na década de 1990, vários trabalhos que coadunam com a postura de Ucko
(1995), já mencionada. Esses trabalhos indicam um diálogo inovador entre teoria e prática
no campo da Arqueologia romana e gostaríamos de retomar aqui alguns aspectos.
Os primeiros trabalhos mencionados de Funari sobre Pompeia têm uma posição
política bastante clara: questionar a ideia de que a Antiguidade é campo exclusivo da
cultura erudita. O autor se pauta nos grafites de Pompeia, conjunto de documentos
bastante diversificado e pouco estudado no Brasil e exterior,1 para colocar as camadas
populares romanas em evidência. No contexto de redemocratização e abertura política no
Brasil, Funari (1986; 1989) buscou, nas paredes de Pompeia, elementos para discutir classe,
cultura popular e erudita, caricaturas, críticas políticas, ação dos sujeitos marginalizados na
História. Claramente faz um movimento de defesa da História vista de baixo, baseando-se
na materialidade das inscrições para construir outras narrativas sobre cultura e sociedade
romanas. Se esses trabalhos tinham um diálogo mais evidente com o marxismo, em um
primeiro momento, ao longo da década de 1990 e sua defesa da relevância da Arqueologia
Pós-Processual, nota-se uma mudança na abordagem.2
Entre as várias reflexões teóricas sobre a Arqueologia Histórica publicada nesse
período, retomamos uma em particular por indicar com clareza essa virada. No artigo
“A hermenêutica das Ciências Humanas”, Funari (1995a) apresentou o panorama
das discussões teóricas na Arqueologia até então, defendendo abertamente não só
a importância da teoria para a construção do saber sobre a cultura material, bem
como a subjetividade das escolhas, elemento esse que passa a construir a base da
organização de sua atuação política e acadêmica.3 Funari (1995a) é bastante explícito em
1
Para um balanço sobre os estudos acerca dos grafites de Pompeia ao longo do século XX e início do XXI, cf. Garraffoni
e Laurence (2013).
2
Ressaltamos que, em 2003, Funari publicou A vida quotidiana na Roma Antiga, uma edição revisada e atualizada nos
moldes da agenda pós-processual de Cultura Popular na Antiguidade Clássica.
3
Recentemente, Funari publicou um trabalho em parceria com Grillo sobre Arqueologia Clássica e ambos são enfáticos
na defesa da subjetividade na construção do conhecimento histórico. Para detalhes, cf. Grillo e Funari, 2015.
4
Embora, nesse trabalho, Funari (1995b) não cite Eva Keuls (1988), nos pareceu interessante retomar seu nome aqui
para contextualizar a crítica aos modelos chamados de falocêntricos. Eva Keuls (1988), junto com Richlin (1983), teve
um papel de destaque nos estudos feministas da década de 1980 e fundou as bases para uma série de artigos e
livros posteriores. Em seus trabalhos, construiu uma profunda crítica à onipresença do falo, tanto no âmbito familiar
quanto político, na arte pictórica, na comédia, nos mitos e, com isso, concluiu que a sociedade antiga se baseava
em uma inferioridade feminina naturalmente afirmada. Tal hierarquia político-social seria parte da ideologia que a
autora conceitua como falocracia, um sistema cultural em que a exposição e representação visual do órgão reprodutor
masculino traria consigo a significação, sobretudo na esfera pública, do domínio dos homens sobre as mulheres (KEULS,
1988). Suas posições foram posteriormente criticadas, em especial por generalizar os significados simbólicos do órgão
reprodutor masculino. De todas as formas, mesmo que hoje os estudos tenham avançado em outras direções, Keuls
(1988) pode ser entendida como uma das pioneiras a explorar essa questões nos Estudos Clássicos, estando conectada
com as discussões do feminismo da Segunda Onda, em especial com as inúmeras tentativas de explicar a submissão
feminina via um poder contínuo do patriarcado e na busca por expor diferentes formas de exploração e silenciamentos
(cerca de quinze anos), argumentando que seu objetivo central é criticar essencialismos
e discutir gênero como prática social e crenças sobre diferenças sexuais. Além de discutir
a importância do feminismo para essa nova epistemologia, Gilchrist (1999) aponta para
o fato de que a cultura material também permite novas reflexões sobre masculinidades
e sexualidades em diferentes momentos da história, avançando, portanto, para questões
sobre corpo e as perspectivas queer.
Trazendo Butler para o diálogo com a materialidade, Gilchrist (1999) apresenta
as particularidades da Arqueologia, propondo mudanças epistemológicas e
metodológicas no trabalho com a cultura material. Discute, portanto, identidade de
gênero e sua materialidade interconectadas com noções de família, comunidades
e gerações, as ressignifica como parte dos ciclos de tempo, espaço e corpo,
trabalhando a relevância da historicidade e das práticas sociais na sua manutenção
ou questionamento.
Os trabalhos de Gilchrist (1999), assim como os de Voss (2000) e Cullen (1996)
já comentados, ajudam a consolidar as inovações teóricas sobre relação entre gênero,
corpo, sexualidade e materialidade. Redimensionaram a Arqueologia Histórica e, com
isso, também inspiraram transformações em campos mais tradicionais, como os estudos,
clássicos. Partindo dessas premissas teóricas, passaremos, então, ao estudo de caso.
8
Pompeia é localizada na Campânia, situada a cerca de 250 km de Roma, próximo à bacia de Nápoles. Foi desde sempre
uma região muito fértil, portando, de longa data, planície e portos naturais. A partir de 89 a.C., quando o general
Sulla fixou, em Pompeia, seus soldados, cerca de cinco mil veteranos de guerra, a cidade ganhou um novo status civil,
tornando-se efetivamente uma colônia romana.
encontrados em Pompeia pinturas, esculturas, grafites e objetos que fugiam dos padrões
estéticos ocidentais da modernidade, sobretudo quando diziam respeito ao discurso
relacionado às práticas sexuais. Se atualmente tal documentação pode proporcionar
uma multiplicidade de olhares acerca das relações de gênero na Antiguidade, no passado
causou muito embaraço e rejeição, tendo sido considerada indigna de ser observada.
Talvez o grande símbolo desses sintomas seja o surgimento do termo pornográfico por
ocasião das escavações, no século XIX. O arqueólogo alemão C. O. Müller se tornou
um dos precursores do uso da expressão, quando, em 1850, deparou-se com inúmeros
objetos em suas escavações em Pompeia, considerados por ele obscenos. Diante
da dificuldade em classificá-los, recorreu a um dicionário de língua grega e, tendo
encontrado a palavra pornographein, com o significado de “escrever sobre prostitutas”,
tomou-a como adequada para se referir a esses variados objetos descobertos no sítio
arqueológico (CLARKE, 2003; VOSS, 2012).
Assim, a cultura material que não foi destruída no momento do achado por ter sido
considerada ofensiva à moral por vários arqueólogos foi classificada como pornográfica
e trancada em salas vigiadas, onde o público não teria acesso, o Gabinetto Segreto do
Museo Nazionale di Napoli. Os afrescos interpretados como agressivos nas escavações
foram retirados das paredes originais e encaminhados para o Museo, assim como as
lamparinas e pingentes com representações fálicas, reclusos na referida coleção. Essa
postura acabou por restringir as possibilidades de se estudar essa documentação, pois
as peças foram descontextualizadas e nem sempre há registros originais, tendo, de certa
forma, silenciado diferentes maneiras de se viver na Antiguidade.9
Esse padrão de tratamento da documentação de cunho erótico atravessa o
século XX e somente nos anos de 1990, com os estudos que problematizam o corpo e
a sexualidade, é que se iniciam novas formas de se aproximar desse corpus. Nas últimas
décadas, estudos arqueológicos têm exibido um interesse crescente na análise desta
documentação como um meio de comunicação e de construção de significados sociais,
que podem ser entendidos como lugares de memória e identidade, trazendo à tona temas
pouco explorados pela historiografia.
Antonio Varone (2002), por exemplo, trabalhou com as inscrições amorosas nas
paredes de Pompeia, em Erotica Pompeiana, recuperando grafites que fazem menção
aos deuses, aos relacionamentos com prostitutas e declarações de amor. Varone (2002)
almejou evidenciar uma sociedade que não conhecia nem o sentimento de culpa, nem o
puritanismo da literatura moderna, em que mesmo nas expressões que nosso senso de
9
Para saber mais sobre os períodos de escavações, cf. (CAVICCHIOLI, 2004; SANFELICE, 2016).
inicialmente o culto fálico nas procissões dionisíacas e assegura que o culto a estes objetos
fazia parte de hábitos apotropaicos, destinados a afastar o mau olhado. As representações
e ilustrações fálicas eram usadas, especialmente, para afastar as forças negativas (a raiz
do verbo grego apotropein – “desviar”), atraindo assim boas vibrações e prosperidade.
Para o autor, o símbolo fálico é um ícone da fertilidade, tendo assim uma conotação
extremamente positiva:
Fonte: Fotografia de Marco Sanfelice (outubro de 2013). Local de conservação: MANN – Gabinetto
Segreto (Inv. 109866). Local do achado: Pompeia. Datação: I d.C.
Figura 2 - Pingentes em formas de falo
Fonte: Fotografia de Marco Sanfelice (outubro de 2013). Local de conservação: MANN – Gabinetto
Segreto. Local do achado: Herculano. Datação: I d.C.
fálicos, muito comuns em Pompeia, também de uso cotidiano, que são as lamparinas,
que proviam a luz na sociedade romana.10 Lucernae – também denominadas candeias
ou lucernas – foram os objetos mais populares para se obter iluminação na Antiguidade
e consistiam em qualquer utensílio cuja chama fosse produzida pela combustão de um
pavio torcido ou mecha embebido num líquido oleoso, sendo azeite o mais comum
deles (BASTOS, 2013). Em Pompeia, encontramos as lamparinas feitas de bronze, como as
figuras abaixo, que representam um anão, cujo falo é maior que a própria perna.
Fonte: Fotografia de Marco Sanfelice (outubro de 2013). Local de conservação: MANN – Gabinetto
Segreto (Inv. 27872, 27871). Local do achado: Pompeia. Datação: I d.C.
10
Além das lamparinas, existem outros objetos que possuíam a função de iluminar, como os faces ou archotes, feitos
de fibras de estopa ou pedaços de madeiras resinosas embebidas em betume, servindo para iluminar espaços abertos
(praças, espaços de espetáculo, vias públicas); as velas ou candelae, feitas de cera ou sebo, servindo para iluminar
interiores; as lanternas ou lanternae, fabricadas em metal ou cerâmica, frequentemente com design cilíndrico e paredes
translúcidas de couro, papiro, ou vidro. A iluminação, nesse caso, ocorria por meio de uma vela ou lamparina colocada
no interior da lanterna. Para saber mais; ver Bastos (2013, p. 35-48).
votivas do lararium contido nos domicílios romanos. O ato das ofertas votivas aos deuses,
convidando-os à intimidade da casa, refletia a concepção primordial da pax deorum, em
que partilhar a coexistência entre os seres humanos e deuses seria a premissa essencial.
Portanto, o empenho básico da adoração diária em casa consistia na separação de um
“lugar sagrado”, um altar para essa prática comum. Nesse altar, tanto os lares familiares –
divindades protetoras – quanto as divindades do pater familias (genius) seriam honradas
em dois ritos diários, um pela manhã e outro à noite.
Essencialmente, o lararium é o “coração” da casa, o lugar onde as forças positivas
dos deuses podem ser trazidas à existência saecularis diária. A forma dos lararia é muito
variada. Nas residências das ricas famílias, situavam-se amiúde, no atrium. Feitos de
mármore, reproduziam esteticamente um templo. Em outros casos, em residências menos
abastadas, poderiam ser somente uma prateleira de madeira simples na parede. De todos
os modos, grande ou pequeno, o importante sobre o lararium é que ele não deveria ser
colocado num lugar remoto da casa, pois é ali que se acendia a chama luminosa do lar ou
lareira (que deu justamente origem à nossa lareira contemporânea), sendo o fogo central
da casa – por isso, muitas vezes estava próximo à cozinha. O altar do lararium compunha-
se de sete elementos: a pátera, o alinum, o turibulum, o acerra, o incensum, o gutus e a
lucerna. Era por meio da lamparina que a representação da chama sagrada no altar do
lararium estaria representada.
Fonte: Fotografia de Marco Sanfelice (outubro de 2013). Local de conservação: MANN – Gabinetto
Segreto (Inv. 27859). Local do achado: Pompeia, numa casa atrás da Casa de Meleagro (VI, 9, 2).
Datação: I d.C.
Fonte: Fotografia de Marco Sanfelice (outubro de 2013). Local de conservação: MANN – Gabinetto
Segreto (Inv. 109415). Local do achado: Pompeia. Datação: I d.C.
11
A imagem citada é especificamente a de um templo pompeiano. No entanto, é importante ressaltar que estas
imagens não eram incomuns em outras localidades, como o supracitado Templo das Virgens Vestais na cidade de
Roma, que ostentava a representação de um grande falo (ROBERT, 1999).
Fonte: Fotografia de Marco Sanfelice (outubro de 2013. Local de conservação: MANN – Gabinetto
Segreto (Inv. 109415). Local do achado: um pequeno templo em Pompeia. Datação: 1-50 d.C.
Essa noção do falo como uma entidade, ou seja, dissociada do membro do corpo
de um homem, fica mais clara ao observarmos os tintinnabula, espécie de campainhas ou
sinos de bronze que ficavam nas entradas das casas. Nesses objetos, podemos perceber
uma personificação do falo, seja ele representado sozinho, com patas ou asas – ou seja,
representado com outras figuras interagindo com ele.
Fonte: Fotografia de Marco Sanfelice (outubro de 2013). Local de conservação: MANN – Gabinetto
Segreto (Inv. 27839). Local do achado: Pompeia. Datação: I d.C.
Era muito comum mesclar a figura do falo com formas animais, como na Figura
8. Essa metamorfose de animais com adição de patas, rabos, asas, por vezes olhos e
orelhas, expressa duas ideias: transformar o falo num animal-entidade independente; e
potencializar o poder fálico ao dar o vigor animal a estas figuras, assemelhando-as às
cabras, cachorros e, sobretudo, aos pássaros, ou seja, atribuía-se ao falo a potência sexual
destes animais. É importante lembrar que tanto em latim como no italiano moderno (e
também em português), a palavra “passarinho” é uma denominação popular para pênis
(JOHNS, 1990, p. 70). O tintinnabulum da Figura 8, não aparece acompanhado de um
sino, mas assim como os outros possui um orifício para que o sino fosse encaixado, como
na figura a seguir:
Fonte: Fotografia de Marco Sanfelice (outubro de 2013). Local de conservação: MANN – Gabinetto
Segreto (Inv. 27844). Local do achado: Pompeia. Datação: I d.C.
O que mais nos interessa aqui, contudo, é o poder emanado do fascinum. Como
disse o filósofo antigo Plínio, ele age “contra inuidentium effascinationes”, “contra os
feitiços da inveja” (Plínio, Historia Naturalis, 19, 50 apud FUNARI, 1994, p. 2). Desse
modo, acreditava-se que os visitantes que chegassem às casas, ao tocarem a campainha,
tornar-se-iam fascinados com o objeto e, desse modo, ao voltarem o olho invejoso para
o fascinum, não o fixariam sobre a vítima (QUIGNARD, 2005, p. 48; CLARKE, 2007, p. 69).
Fonte: Fotografia de Marco Sanfelice (outubro de 2013). Local de conservação: Sítio Arqueológico de
Pompeia (I, 10,4). Datação: I d.C.
nos episódios da Ilíada. A residência contém ainda pinturas refinadas do IV estilo. Consta
que uma parte da casa foi reservada para o curador da propriedade, um liberto chamado
Eros, que possuía uma identificação, um selo encontrado junto ao seu corpo, com o
título de procurador. Isso significa que essa casa era uma propriedade de sucesso, situada
numa área de prósperos negócios na cidade. Sua arquitetura declara a sua importância e
a de seu proprietário (LING, 1983).
Nesse sentido, o mosaico, localizado num corredor de transição entre o tepidarium
(local de banho morno) e o caldarium (banho quente), faz parte de um conjunto
decorativo refinado. A iconografia representa um servo de pele escura com seu enorme
falo, carregando dois askoi – recipientes gregos utilizados para portar água (que também
fazem alusão à forma fálica). A presença dessa figura no corredor pode ser interpretada
da mesma maneira que a anterior, cujo objetivo era provocar o riso naqueles que se
banhavam na casa, protegendo contra a vulnerabilidade de seus corpos frente à inveja.
Outro exemplo bastante conhecido é uma placa em terracota, localizada em
cima do forno de um panefício. Esse é um caso particular, no qual o próprio Museu
recontextualiza a representação, nos fornecendo uma imagem do registro de escavação:
Fonte: Fotografia de Marco Sanfelice (outubro de 2013). Local de conservação: MANN – Gabinetto
Segreto (Inv. 27741). Tamanho: 24x50 cm. Local do achado: Pompeia (IV, 6, 18). Datação: I d.C.
Fonte: Fotografia de Marco Sanfelice (outubro de 2013). Local de conservação: MANN – Gabinetto
Segreto (Catálogo explicativo da imagem).
Considerações finais
Agradecimentos
As autoras agradecem a Pedro Paulo Funari por sua incansável e inspiradora luta
por abordagens interdisciplinares e críticas sobre o passado e a Barbara Voss, Lourdes
Conde Feitosa, Marina Cavicchioli, Mary Wiesmantel, Roberta Gilchrist e a Ray Laurence
pela parceria e debates ao longo desses anos. Institucionalmente, cabe mencionar o
Programa de Pós-graduação e o Departamento de História da UFPR, além da Capes, que
concedeu a bolsa de doutorado para que Pérola de Paula Sanfelice pudesse realizar seu
doutorado e visitar Pompeia. Agradecemos também ao Museo Archeologico Nazionale
di Napoli por permitir o uso das imagens e a Marco Sanfelice por tê-las fotografado. A
responsabilidade das ideias recai apenas sobre as autoras.
Referências
ADKINS, L.; ADKINS, R. Dictionary of Roman religion. Oxford: Oxford Press, 1996.
ANDAMS, J. The Latin sexual vocabulary. London: Gerald Duckworth, 1982.
BASTOS, M. T. Arqueologia da luz: agência da cultura material e a cerâmica. Revista do
Museu de Arqueologia e Etnologia, n. 23, p. 35-48, 2013.
CANTARELLA, E. Pompei: i volti dell’amore. Milão: Mondadori, 1999.
CAVICCHIOLI, M. R. As representações na iconografia pompeiana. Dissertação (Mestrado
em História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de
Campinas, Campinas, 2004.
________. A Sexualidade no olhar: um estudo da iconografia pompeiana. Tese (Doutorado
em História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de
Campinas, Campinas, 2009.
________. O falo na Antiguidade e na modernidade: uma leitura foucaultiana. In: M. RAGO,
M.; FUNARI, P. P. A. (Org.). Subjetividades antigas e modernas. São Paulo: Annablume,
2008, p. 237-249.
CLARKE, J. Looking at laughter: humor, power and trangression in Roman visual culture,
100 B.C.-A.D. 250. Los Angeles: University of California Press, 2007.
______. Roman sex: 100 B.C. to A.D. 250. New York: Harry N. Abrams, 2003.
CULLEN, T. Contributions to feminism in Archeology. American Journal of Archaeology, v.
100, n. 2, p. 409-414, 1996.
FEITOSA, L. C. Amor e sexualidade: o masculino e o feminino em grafites de Pompéia. São
Paulo: Annablume, 2005.
FINLEY, M. I. Aspectos da Antiguidade. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
FUNARI, P. P. A.; FEITOSA, L. C.; SILVA, G. J. (Org.). Amor, desejo e poder na Antiguidade:
relações de gênero e representações do feminino. Campinas: Editora Unicamp, 2003.
FUNARI, P. P. A. A vida cotidiana na Roma antiga. São Paulo: Annablume, 2003.
______. Falos e relações sexuais: representações romanas para além da natureza. In: FUNARI,
P. P. A.; FEITOSA, L. C.; SILVA, G. J. (Org.). Amor, desejo e poder na Antiguidade:
relações de gênero e representações do feminino. Campinas: Ed. Unicamp, 2003a,
p. 317-325.
______. A hermenêutica das Ciências Humanas. Revista da Sociedade Brasileira de Pesquisa
Histórica, v. 10, p. 3-9, 1995a.
______. Romanas por elas mesmas. Cadernos Pagu, n. 5, p. 179-200, 1995b.
______. Apotropaic simbolism at Pompeii: a reading of the graffiti evidence. Revista de
História, n. 132, p. 9-17, 1995c.
RICHLIN, A. The garden of Priapus: sexuality and aggression in Roman humor. New Haven:
Yale University Press, 1983.
ROBERT, J. N. Eros romano: sexo y moral en la Roma antigua. Madrid: Complutense. 1999.
SANFELICE, P. P. Sob as cinzas do vulcão: representações da religiosidade e da sexualidade
na cultura material de Pompeia durante o Império Romano. Tese (Doutorado em
História) – Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do
Paraná. Curitiba. 2016.
SKINNER, M. Woman and language, in Archaic Greece, or why is Sappho a Woman? In:
RABINOWITZ, N. S.; RICHLIN, A. (Ed.). Feminist theory and the Classics. London:
Routledge, 1993, p. 125-144.
SQUIRE, M. The art of the body: antiquity and its legacy. New York: Oxford University Press,
2011.
UCKO, P. Archaeological interpretation in a world context. In: UCKO, P. (Ed.). Theory in
Archaeology: a world perspective. London: Routledge, 1995, p. 1-27.
VARONE, A. Erotica pompeiana: love inscriptions on the walls of Pompeii. Roma: L’Erma di
Bretschneider, 2002.
VOSS, B. Sexual effects: postcolonial and queer perspectives on Archaeology of sexuality
and empire. In: VOSS, B.; CASELLA, E. C. (Ed.). The Archaeology of colonialism:
intimate encounters and sexual effects. New York: Cambridge University Press,
2012.
______. Feminisms, queer theories, and Archaeological study of past sexualities. World
Archaeology, v. 32, p. 180-192, 2000.
WEISMANTEL, M. Obstinate things. In: VOSS, B.; CASELLA, E. C. (Ed.). The Archaeology of
colonialism: intimate encounters and sexual effects. New York: Cambridge University
Press, 2012, p. 303-320.