Neotrovadorismo
Neotrovadorismo
Neotrovadorismo
João Pessoa
2017
JONATHAN LUCAS MOREIRA LEITE
JOÃO PESSOA
2017
L533c Leite, Jonathan Lucas Moreira.
Um canto de amor e saudade: o neotrovadorismo na poesia
de Vinicius de Moraes / Jonathan Lucas Moreira Leite. - João
Pessoa, 2017.
104 f.
A minha mãe e ao meu pai pelo carinho, força e vida dedicados aos seus filhos tantos
anos.
A Jéssica, por participar tão proximamente da construção dessa pesquisa; por me
ensinar tanto e tantas vezes.
A Luciana Calado, pela orientação competente e humana; pela generosidade e respeito.
A Expedito Ferraz e Romero Venâncio pela gentileza de participarem da defesa deste
trabalho.
A todos os amigos.
AZUL E BRANCO
Massas geométricas
Em pautas de música
Plástica e silêncio
Do espaço criado.
Concha e cavalo-marinho.
(...)
Na verde espessura
Do fundo do mar
Nasce a arquitetura.
Da cal das conchas
Do sumo das algas
Da vida dos polvos
Sobre tentáculos
Do amor dos pólipos
Que estratifica abóbadas
Da ávida mucosa
Das rubras anêmonas
Que argamassa peixes
Da salgada célula
De estranha substância
Que dá peso ao mar.
Concha e cavalo-marinho.
(...)
Azul e Branco
Azul e Branco
Concha...
e cavalo-marinho.
(Vinicius de Moraes)
RESUMO
O presente trabalho insere-se no campo dos estudos medievais, bem como no dos
estudos semióticos, tendo como principal objetivo analisar as ressonâncias da literatura
trovadoresca na poesia de Vinicius de Moraes, poeta e compositor popular brasileiro.
Inicialmente, faremos um estudo panorâmico da obra do autor e um levantamento de
sua fortuna crítica. No segundo capítulo, apresentaremos os principais conceitos da
Teoria Geral dos Signos, aporte teórico-metodológico escolhido para nossa análise.
Posteriormente, discorreremos sobre as principais características do Trovadorismo,
norteados pelos medievalistas Spina (1956), Martins e Nunes (2014) e Maleval (2002),
além das contribuições do poeta e ensaísta Paz (1994). Discorreremos, ainda, sobre a
presença do Neotrovadorismo na arte brasileira, assim como os estudos acerca dessas
atualizações. Finalmente, analisaremos as marcas da literatura trovadoresca na poesia de
Vinicius de Moraes, a partir de três apreciações: o diálogo entre os poemas do autor e as
cantigas de amor, demonstrado na análise do poema Romanza; a recriação das cantigas
de amigo nos textos do poeta, analisado em Soneto de carta e mensagem; e, por fim,
examinaremos a presença dos símbolos remanescentes das barcarolas medievais na
poesia de Vinicius de Moraes, a partir dos poemas Mar e Marinha.
Palavras-chave: Vinicius de Moraes; Neotrovadorismo; Semiótica.
ABSTRACT
The present work is in the field of medieval studies, as well as in the field of semiotic
studies, and has as its main objective to analyze the resonances of troubadour literature
in the poetry of Vinicius de Moraes, a Brazilian poet and composer. Initially, we will
make a panoramic study of the work of the author and a survey of his substantial
criticism. In the second chapter, we will present the main concepts of the General
Theory of Signs, the theoretical-methodological considerations used in our analysis.
Posteriorly, we will discuss the main characteristics of the Troubadourism, guided by
the medievalists Spina (1956), Martins and Nunes (2014) and Maleval (2002), in
addition to the contributions of the poet and essayist Paz (1994). We will also discuss
the presence of Neotrovadorismo in Brazilian art, as well as the studies about these
updates. Finally, we will analyze the marks of troubadour literature in the poetry of
Vinicius de Moraes, based on three aspects: the dialogue between the poems of the
author and the songs of the lover, demonstrated in the analysis of the poem Romanza;
the recreation of the songs of love in the texts of the poet, analyzed in the Soneto de
carta e mensagem; and, finally, we will examine the presence of the remaining symbols
of the medieval barcarolles in the poetry of Vinicius de Moraes, from the poems Mar
and Marinha.
Keywords: Vinicius de Moraes; Neotrovadorismo; Semiotics.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 10
I. APROXIMAÇÕES SOBRE A POESIA DE VINICIUS DE MORAES .................... 13
1.1. Um poeta diverso e sempre o mesmo .................................................................. 13
1.2. Fortuna crítica .......................................................................................................... 16
1.3 Anotações sobre a poética de Vinicius de Moraes ................................................... 19
1.3.1 Um olhar para os céus ou O sentimento do sublime .............................................. 20
1.3.2- Um olhar para o outro ou Canção do amor demais ............................................. 25
II. A TEORIA GERAL DOS SIGNOS, DE CHARLES S. PEIRCE ............................. 32
2.1. Categorias Universais .............................................................................................. 35
2.2. Primeira tricotomia .................................................................................................. 36
2.3 Segunda tricotomia ................................................................................................... 37
2.3.1 O signo icônico ...................................................................................................... 38
2.3.2. O Signo indexical ................................................................................................. 42
2.3.3. O Símbolo ............................................................................................................. 43
2.4. Terceira tricotomia .................................................................................................. 45
III A LÍRICA TROVADORESCA E SUAS RESSONÂNCIAS ................................... 48
3.1 Uma breve reiteração sobre o medievo .................................................................... 48
3.1.1 O Feudalismo e o Amor cortês .............................................................................. 50
3.1.2Os trovadores e os gêneros trovadorescos .............................................................. 57
3.1.2.1 Cantiga de amor .................................................................................................. 59
3.1.2.2 Cantiga de amigo ................................................................................................ 60
3.1.2.3 Cantigas de escárnio e maldizer ......................................................................... 62
3.1.2.4 Tenção ................................................................................................................ 63
3.2 Neotrovadorismo ...................................................................................................... 64
3.2.1 O Neotrovadorismo na Galícia e em Portugal ....................................................... 65
3.2.2 O Neotrovadorismo no Brasil ................................................................................ 68
IV VINICIUS DE MORAES: UM NEOTROVADOR ................................................. 75
4.1 As cantigas do amor total ......................................................................................... 77
4.2 O canto feminino ...................................................................................................... 84
4.3 O sal da saudade ....................................................................................................... 89
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 97
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 100
10
INTRODUÇÃO
dialogaremos com medievalistas como Spina (1956); Nunes e Martins (2014); Maleval
(2002) e Travani (2002), além das contribuições de Paz (1994). Inicialmente, faremos
uma reiteração das condições sociais e culturais da Idade Média durante o surgimento
da lírica trovadoresca. Explicitaremos, a seguir, as principais características do amor
cortês, conceito fundamental para a poesia dos trovadores. Discutiremos, ainda, as
principais características dos gêneros poéticos medievais, assim como distinções entre
esses gêneros. Por fim, evidenciaremos a presença dos ecos do trovadorismo na arte
brasileira, em particular na poesia, na canção popular e na tradição dos cantadores
nordestinos, assim como os estudos acerca dessas produções.
Em 1943, publica Cinco elegias, no mesmo ano inicia sua carreira como
diplomata, profissão que o levou a morar em diversas cidades como Roma, Los Angeles
e Londres. Lança, em 1946, Poemas, sonetos e baladas, um dos livros mais importantes
na obra do autor. O volume guarda poemas como Os acrobatas; Balada do mangue e
Soneto de separação.
Em 1957, o autor, que sempre dera espaço às formas fixas na sua obra, publica
Livro de Sonetos, volume dedicado à escrita do gênero que Vinicius cultivara desde os
primeiros poemas. No ano seguinte, a faceta de compositor popular do autor revela-se,
definitivamente, com o lançamento de Canção do amor demais, de Elizeth Cardoso. O
14
disco conta com treze canções do poeta em parceria —que duraria uma vida— com
Tom Jobim.
Vinicius de Moraes publica em 1959 o livro Novos poemas (II), no mesmo ano
João Gilberto lança o disco Chega de Saudade, contando com, além da canção
homônima, Brigas nunca mais, também resultado da parceria entre Vinicius e Tom
Jobim. O disco é um marco na música brasileira, tornando-se definitivo para a Bossa
Nova.
Em 1968, foi cassado pelo regime militar e desligado do seu cargo, passando a
dedicar-se exclusivamente à poesia e à canção popular. Ainda nesse ano, publica, com o
filho Pedro Moraes, um livro de poemas e fotografias, O mergulhador. O poeta,
aventurando-se pelos poemas infantis, lança A arca de Noé em 1970.
momento ímpar na música nacional. O autor foi um dos artistas que influenciaram toda
uma geração de compositores como Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil.
Apesar das falas elogiosas de autores como Candido, havia, por parte da
crítica, algum desdém com sua obra. Provavelmente, um dos motivadores dessa
diminuição de sua poesia foi a relação de Vinicius com a canção popular. Lembrando
que, naquele momento, a canção popular brasileira ainda não alcançara o respaldo
crítico que teria após os anos 60 — respaldo esse que o poeta ajudou a fomentar —,
sendo considerada pelo conservadorismo acadêmico uma arte menor.
O tom dessa resistência à canção popular é dado pela fala de João Cabral de
Melo Neto Cabral em entrevista cedida para Tribuna da Imprensa, em 10 de abril de
1968: “O poeta Vinicius de Moraes seria um grande poeta ou maior se não escrevesse
musiquinha popular.” Com isso, não afirmamos aqui que a crítica acerca da obra de
Vinicius de Moraes pautou-se, completamente, sob estes aspectos, porém acreditamos
que isso foi um dos fatores que afastou, durante certo tempo, os estudos acadêmicos da
poesia do autor.
Além das falas de autores como Antonio Candido, Manuel Bandeira, Mario de
Andrade e Otto Lara Resende— textos esses reunidos, em boa medida, no Poesia
completa e prosa (1975), os quais recorreremos no tópico a seguir —, observamos que,
apesar de não ter uma fortuna crítica tão extensa como seus contemporâneos Drummond
e Cabral de Melo Neto, existem relevantes trabalhos que tem como objeto de estudo a
poesia, a canção, o teatro e a prosa de Vinicius de Moraes, sob os mais variados
prismas. Sendo assim, destacaremos, neste subcapítulo, alguns desses trabalhos.
Uma das várias faces de Vinicius de Moraes foi a do disco Afros Sambas, em
parceria com Baden Powell. Esse disco marca uma extrema aproximação entre o poeta e
a Bahia. Segundo Haudenschild (2010), o encontro entre Vinicius e Baden “foi pautado
pelo samba de roda, pela capoeira e pelo candomblé, é porque ambos estavam em busca
de um “elogio da negritude” através de autênticas fontes culturais baianas”. (2010. p. ?)
O autor analisa as músicas Iemanjá; Canto de Xangô e Canto de Ossanha, entrelaçando
a lírica das canções ao mito da origem iorubá de cada orixá. Haudenschild busca,
primeiramente, explicitar a origem, a função e a personalidade de cada orixá,
considerando que tal conhecimento é fundamental para a análise das canções citadas. A
partir disso, o pesquisador faz um jogo de espelhamentos entre as possíveis
interpretações da canção como um todo e dos significados/significantes dos orixás
dentro da estrutura de cada canção, relacionando com a representação amorosa e social.
adaptação de Vinícius de Moraes, ao tratar sobre este personagem, objetiva trazer para a
contemporaneidade carioca da década de 1950 não uma persona, mas toda a sua trama,
marcada pela vontade de amar e a interdição deste amor.” (2014. p.12) Sendo assim, o
jogo de significações não está apenas na ação desenvolvida pela peça, a própria
estrutura escolhida — e a proposição de deslocamento feita — já podem ser lidas e
analisadas como parte da significação da obra. O trabalho de Costa destaca-se,
principalmente, pelo empenho em analisar os signos linguísticos e musicais presentes
em Orfeu da Conceição sem elencar nenhuma gradação de importância entre esses.
Por fim, não poderia faltar um estudo sobre a representação amorosa na obra
do poeta. Dentre os estudos acerca dessa temática, destacamos a dissertação de Rangel
(2007), intitulada O amor entre o vão momento e o infinito: os sonetos de Vinicius de
Moraes. A autora desenvolve, inicialmente, um balanço crítico da primeira poesia de
Vinicius, porém detêm-se na análise dos “sonetos de amor” de sua fase madura e dos
metapoemas da obra do autor, como Poética I e Poética II.
pesquisa. Nessa breve visita à fortuna crítica do autor, pretendemos demonstrar os dois
pontos supracitados e, principalmente, a diversidade nos estudos sobre o poeta.
mesmo sentido, aponta Resende: “um livro, a começar pelo título, embriagado pela
vertigem das grandes abstrações e das grandes alturas” (1975. p. 716). Para analisar tais
considerações sobre o primeiro momento do autor, observemos a primeira estrofe de O
poeta:
Observamos uma busca por Deus, pelo transcendental, pela metafísica a partir
da religiosidade cristã. Há uma ligação entre o poeta e Deus, seja a busca do eu-lírico
pelo divino, seja a comunhão entre o sagrado e o humano, transformando o ato de
escrever em algo que transcende a razão. O poeta é alguém diferente dos demais;
alguém mais sensível, alguém “preso, eternamente pelos extremos intangíveis”.
Forma e exegese, segundo livro do poeta, foi muito bem recebido pelo público
e pela crítica. Otávio Faria, em texto publicado na Poesia e prosa completa (1975),
afirma: “Seus poemas, de uma qualidade não raro excepcional, fazem empalidecer as
melhores poesias de O caminho para a distância”. Critérios de valor à parte,
destacamos — o que é comum na maior parte dos poetas — a evolução, do ponto de
vista formal, que há entre os dois livros, deixando-nos vislumbrar traços, ainda que
raros e iniciais, do que viria a se tornar a poesia do autor.
22
Quantos somos, não sei... Somos um, talvez dois, três, talvez, quatro;
[cinco, talvez nada
Talvez a multiplicação de cinco em cinco mil e cujos restos encheriam
[doze terras
Quantos, não sei... Só sei que somos muitos - o desespero da dízima
[infinita
E que somos belos deuses mas somos trágicos.
[como espectros
Da boca ardente dos vulcões ou da órbita cega dos lagos
[desaparecidos
Quem sabe tenhamos germinado misteriosamente do sono cauterizado
[das batalhas
Ou do ventre das baleias quem sabe tenhamos surgido?
Alba, no canteiro dos lírios estão caídas as pétalas de uma rosa cor de
[sangue
Que tristeza esta vida, minha amiga...
Lembras-te quando vínhamos na tarde roxa e eles jaziam puros
E houve um grande amor no nosso coração pela morte distante?
Ontem, Alba, sofri porque vi subitamente a nódoa rubra entre a carne
[pálida ferida
Eu vinha passando tão calmo, Alba, tão longe da angústia, tão
[suavizado
Quando a visão daquela flor gloriosa matando a serenidade dos lírios
[entrou em mim
E eu senti correr em meu corpo palpitações desordenadas de luxúria.
Eu sofri, minha amiga, porque aquela rosa me trouxe a lembrança do
[teu
sexo que eu não via
Sob a lívida pureza da tua pele aveludada e calma
Eu sofri porque de repente senti o vento e vi que estava nu e ardente
E porque era teu corpo dormindo que existia diante de meus olhos.
(2011. p. 53)
24
Os Novos Poemas, que nos deu nos últimos dias do ano passado, são o
seu quarto volume de poesia em cinco anos, e o melhor de todos. Não
o mais ordenado, porém. Pelo contrário, é bastante irregular e
desequilibrado, e onde estão os piores e os melhores versos do poeta.
(1975. p. 704)
O amor e suas representações tomam o centro desse livro, a maior parte dos
poemas está inserida nessa temática, citamos como exemplo Soneto de agosto; Amor em
três pavimentos; Soneto de devoção; Ternura. A face neotrovadoresca do poeta mostra-
26
Lamento nº 1
no corpo de sua amada, o eu-lírico refaz a descrição elogiosa do corpo feminino, tão
presente na escrita dos trovadores do século XII.
(...)
II
O sétimo dia, o dia em que tudo já estava pronto, o dia em que Deus
descansou. Em Dia da criação, o eu-lírico despe-se da reiteração dos próprios
sentimentos para lançar um olhar para o outro, para o cotidiano. Sobre este poema,
Wisnik, no posfácio do livro Poemas, sonetos e baladas/ Pátria minha (2008), afirma,
brevemente:
Antes de outro qualquer, trobar (ou trovar) significa compor, fazer e recitar
poesias. No trovadorismo galaico-português existiam duas correntes com ideais
estéticos diferentes. Segundo Moises: “trobar leu, ligeiro (ou leugie, ou plan, ou clar),
reunia poetas, como Jaufre Rudel e Bernard de Ventadorn, que defendiam uma
expressão lírica direta, cristalina, simples, fácil, destituída de artificialismo ou
pedantaria.” (1974. p. 453) Sendo assim, o trobar leu era mais acessível às camadas
populares, o verso era livre dos afetamentos de linguagem, o lirismo deste trobar não se
acortinava nas peripécias linguísticas. Nesse sentido, havia um maior grau
comunicativo.
Essa comunicação mais ampla, mais numerosa e até mais fácil pedirá
a cooperação da música. A fusão é sempre viável nesse poeta de
encontro. Poema e canção se casam, convivem amigável e
respeitosamente na penumbra de uma boite que o público entulha para
ouvir, da mesma boca, o “Berimbau” e “O Dia da Criação”. (1975. p.
720)
Como já foi reiterado, nossa dissertação tem como objetivo analisar as relações
entre a poética dos trovadores e os poemas de Vinicius de Moraes que compõem o
nosso corpus. Para tal, utilizaremos, além das considerações trazidas pelos estudos
medievais, os conceitos da semiótica peirceana, teoria que nos aprofundaremos neste
capítulo.
A Teoria Geral dos Signos foi criada e desenvolvida pelo cientista e filósofo
americano Charles Sanders Peirce. Pode-se afirmar que o autor trouxe — em diferentes
medidas — contribuições para diversas áreas do conhecimento, nenhuma delas tão
importante quanto seus estudos sobre linguagem. Como lemos o mundo? Como
funcionam os diversos signos que nos relacionamos diariamente? A semiótica busca
responder essas, dentre outras questões.
O signo é, então, tudo aquilo que representa algo, tudo que ‘substitui’ alguma
coisa para alguém. O objeto será aquilo que foi ‘substituído’, aquilo que o signo
representa. A relação entre signo e objeto cria um novo signo na mente do intérprete,
este é o interpretante3.
1
Tendo em vista nossa proposta de discorrer apenas sobre os principais conceitos da teoria peirceana, não
adentraremos na divisão do objeto em dinâmico e imediato. VER Santaella 2000. p. 38.
2
Assim como no caso do objeto, não adentraremos na divisão dos tipos de interpretante. VER Santaella
2000 p. 66.
3
O interpretante é um conceito semiótico que não se confunde com o intérprete, aquele que é leitor de
determinada representação.
34
Com isso não pretendemos dizer que não podemos deter nossas análises em
apenas um processo semiótico, apenas destacamos que sempre que analisamos uma
relação sígnica, estamos delimitando-a dentro de uma continuidade de semioses.
Devemos observar que essas categorias são cumulativas, toda terceiridade tem
em si uma secundidade, que por sua vez pressupõe uma primeiridade, sendo esta última
livre. É claro que não podemos alcançar logicamente a primeiridade, pois para descrevê-
la utilizamos, necessariamente, a terceiridade. Para esclarecer essa gradação
desenvolvida por Peirce, utilizaremos o exemplo de Pignatari:
Estou caminhando por uma via de um grande centro urbano, sem que
nenhuma ideia me ocupe a mente de modo particular e nenhum
estímulo exterior enrijeça minha atenção: em estado aberto de
percepção cândida, digamos. Ou seja, em estado de primeiridade. Por
um acidente qualquer — um raio de sol refletido num vidro de um
edifício — minha atenção isola o referido edifício do conjunto urbano,
arrancando-me da indeterminada situação perceptiva do estado
36
A partir dessa gradação e pensando nas relações existentes entre signo, objeto e
interpretante, Peirce desenvolveu dez categorias triádicas que, teoricamente, podem
descrever o funcionamento de todos os signos no mundo. Dentre essas categorias, a
literatura acerca do autor focaliza três delas, e, segundo Santaella: “Essas três tríades
tornaram-se mais conhecidas provavelmente porque a elas ele dedicou maior atenção,
dado o fato de que elas devem ser as mais importantes”. (2000. p. 92). Peirce
desenvolve suas três principais tricotomias a partir de: 1) o signo tomado em si mesmo;
2) a relação do signo com seu objeto e 3) a relação do signo com seu interpretante.
Tendo em vista que nossa análise se guiará pela segunda tricotomia, daremos destaque
neste capítulo à relação entre o signo e o objeto.
Índices, “aqueles signos que mantêm conexão real com a existência de um objeto
particular.”; ou Símbolos, “signos que associamos a um objeto apenas por força de uma
norma ou convenção” (FERRAZ JÚNIOR. p. 24; 25). A seguir, discorreremos acerca
de cada um desses signos e de seus modos de representação.
4
Esclarecida a existência da discussão sobre a iconicidade, seguiremos utilizando ícone no mesmo
entendimento do conceito de hipoícone.
39
2.3.1.1 Imagem
As cigarras
são guitarras trágicas.
plugam-se/se/se/se
nas árvores
em dós sustenidos.
kipling recitam a plenos pulmões.
Gargarejam
vidros
moídos.
o cristal dos verões.
(CASTRO PINTO. 2007. p.13)
Ferraz Júnior (2012. p. 53) chama atenção para a iconização do canto das
cigarras a partir da vasta utilização dos sons de /g/ e de /r/ que atravessam todo o poema
40
desde o título até o último verso, representando o próprio cantar da cigarra. Atentamos
ainda para o verso “plugam-se/se/se/se”, no qual, claramente, o poeta traz o som e a
repetição produzidos pelo inseto. No poema de Castro Pinto, o canto da cigarra parece
doer — “as guitarras trágicas” —, esse fato ganha força quando lembramos que, no
saber popular, as cigarras morrem cantando.
2.3.1.2 Diagrama
2.3.1.3 Metáfora
Uma propaganda de creme para a pele pode utilizar um pêssego como metáfora
da pele humana, ou da suavidade e hidratação que o creme proporciona à pele. Nesse
contexto o signo “pêssego” representa a pele humana, essa “substituição” é possível
pois o signo compartilha uma qualidade com o objeto, porém em outros contextos essa
representação não faria sentido. Na literatura, abundam as metáforas, Nöth cita o
exemplo de Shakespeare:
5
BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA, Aurelio. Novo dicionário da língua portuguesa. 1986, p 930.
42
Todo o sistema linguístico é simbólico, sendo assim, o que temos nas línguas
são símbolos com uma função indexical; os pronomes demonstrativos (esse, essa,
aquele, aquela) exercem essa função no texto. Esses elementos apontam a existência dos
objetos que representam, podendo estar dentro ou fora do texto.
Acontece algo semelhante na canção Samba de uma nota só,6 presente no disco
O amor o sorriso e a flor (1960), de João Gilberto, o primeiro verso anuncia “Eis aqui
este sambinha feito numa nota só”. O “este” se refere ao “sambinha” que foi elaborado
em todas as suas linguagens verbais e musicais, porém também remete ao momento em
que é (re)produzido, atualiza-se a cada vez que escutamos a música.
2.3.3. O Símbolo
6
Letra de Tom Jobim e Newton Mendonça.
44
Satélite
Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A lua baça
Paira.
Muito cosmograficamente
Satélite.
Desmetaforizada,
Desmitificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro dos loucos e enamorados,
Mas tão somente
Satélite.
Ah! Lua deste fim de tarde,
Desmissionária de atribuições românticas;
Sem show para as disponibilidades sentimentais!
Fatigado de mais-valia,
gosto de ti, assim:
Coisa em si,
-Satélite.
(BANDEIRA apud FERRAZ JÚNIOR. 2012, p. 34)
7
CASTRO PINTO, Sérgio. A flor do gol. São Paulo: Editora Escrituras, 2014. p. 43-45.
46
nada sobre o seu objeto, não se pode dizer se essa informação é verdadeira ou falsa, por
exemplo. Se eu digo a palavra “céu”, não se pode tecer um julgamento de certo ou
errado, verdadeiro ou falso.
Ferraz Júnior destaca que os argumentos só podem ser encontrados nos signos
verbais. Segundo o autor:
8
http://www.sofisica.com.br/conteudos/curiosidades/ceu_azul.php. Acesso em agosto de 2016
47
Por fim, esclarecemos que classificar as obras artísticas a partir das tríades
peirceanas não é um objetivo em si mesmo, não é um fim. A teoria instrumentaliza para
as leituras e análises das obras, sendo, portanto, muito mais um ponto de partida que
uma chegada. Identificar categorias teóricas presentes em alguma obra deve auxiliar o
analista a discorrer sobre os aspectos pertinentes que sua leitura suscita. Nesse sentido,
acreditamos que a semiótica peirceana mostra-se uma ferramenta propícia para as
análises do Neotrovadorismo na poesia de Vinicius de Moraes.
48
No século XII, na França, aparece por fim o amor, não como delírio
individual, uma exceção ou um extravio, mas como um ideal de vida
superior. A aparição do amor cortês tem algo de milagroso, pois não
foi consequência de uma pregação religiosa nem de uma doutrina
filosófica. Foi a criação de um grupo de poetas no seio de uma
sociedade reduzida: a nobreza feudal do sul da antiga Gália. (PAZ.
1994. p 69)
O amor cortês entende o amor como um fim nele mesmo, um próprio sentido, e
não como um meio de transcender para divindade. O fins’amor não é apenas erotizado,
no sentido de que o prazer imediato da carne seja o objetivo, ou o fator mais importante,
também não podemos afirmar que é um sentimento meramente espiritual. O amor para
os trovadores era o amor integral, o puro e o da carne, o da razão e o sensorial. Segundo
Spina: “Se por um lado a canção provençal é um hino ao amor puro, nobre, inatingível,
por outro sentimos constantemente pulsar nas camadas subjacentes da inspiração
trovadoresca o amor carnal”. (SPINA. 1956. p. 22)
Sobre a consumação sexual no amor cortês, Paz (1994) atenta para um fato
confirmador a esse respeito. A alba é um subgênero da cantiga de amigo, na qual os
amantes são avisados de que o dia nasceu por um mensageiro, geralmente pássaros, e
lamentam a chegada da aurora, pois com ela vem a separação do casal. A alba deixa-nos
evidente a presença sexual dentro do amor cortês, porém existe um extenso caminho
para chegar a concretude carnal, e ainda assim não se faz obrigatório a consumação
55
física desse amor, tendo em vista que o grande valor do amor não estava no ato sexual
em si.
Sobre o serviço do trovador para sua dama, Paz (1994) afirma que existem três
graus. No primeiro grau, o trovador já devota seu amor e fidelidade à dama, porém
ainda não conseguiu declarar-se para a amada, esse é o Pretendente. No segundo grau,
chamado de Suplicante, o trovador já se declarou à sua amada e esta, mostrando-se
favorável ao amigo, entrega-lhe um objeto pessoal, como uma luva ou uma joia. No
terceiro grau, o trovador torna-se Aceito, transformando-se em amante da dama (drudo).
Este último estágio não implica, obrigatoriamente, no ato sexual.
Como bem nos lembra Nunes e Martins, “o termo servir entra nas línguas
românicas como sinónimo de amar.” (2014. p. 11). O trovador deseja servir à dama, fiel
e pacientemente, sendo sua satisfação o próprio ato de servir. O amor cortês exige,
necessariamente, parcimônia, gentileza e mesura. O serviço amoroso é um processo de
devoção total e irrestrito do trovador para com a dama; segundo Spina: “é a religião dos
trovadores, um verdadeiro culto à mulher, que prevê a observância de todo um
complexíssimo ritual”. (SPINA. 1991. p. 359). Nesse serviço existe um período
probatório a que o trovador é submetido. Paz nos esclarece sobre esse teste:
Paz (1994), Calado (2000) e Spina (1956) concordam que a maioria dos
trovadores eram profissionais e seus cantos não retratavam, necessariamente, suas
experiências pessoais, refletiam também uma doutrina estética e ética. As cantigas
trovadorescas, apesar de não terem como objetivo o retrato da sociedade, esclarecem-
nos acerca de uma visão sobre o medievo, ainda que seja para contrapor às perspectivas
literárias e históricas. Sobre as biografias dos Trouvères e dos Trobadours, são poucos
os trovadores que se pode encontrar relativa riqueza de informações sobre suas vidas
pessoais, apenas de artistas da dimensão de D. Dinis, Guilhem de Poitiers ou Gui de
Cavalhon, porém, como afirmam Nunes e Martins:
Na Idade Média, além das cantigas dos trovadores, existiram textos em prosa,
tanto com o cunho historiográfico quanto com o caráter ficcional, lembrando das
novelas de cavalaria sobre as lendas do ciclo arturiano. Entretanto, tendo em vista o
escopo de nossa pesquisa, nos deteremos apenas nas cantigas trovadorescas.
O elogio à amada e o sofrimento que este amor causa são os dois principais
campos semânticos dessas cantigas, o tema da Dame sans merci, ou seja, a
incorrespondência da amada, está muito presente no amor cortês. O eu-lírico devota-se à
dama integralmente e sofre com sua recusa, porém há um certo prazer na ostentação
desse sofrimento, como muitos anos depois canta o neotrovador Vinicius de Moraes em
Canto de Xangô (1966) “Amar é sofrer/ Mas amar é morrer de dor (...) Me faça sofrer/
Ah me faça morrer/ Mas me faça morrer de amar”. Podemos observar as características
citadas na cantiga de Martim Soares:
Assim como nos outros gêneros das cantigas, o principal tema da barcarola é o
sofrimento provocado na amiga pela separação do namorado. Na cantiga acima, o mar é
o confidente da amiga. Nesses textos é comum o eu-lírico pedir notícias de seu amigo
aos mares e aos rios, cúmplices de sua aflição.
O autor atenta que nas próprias rubricas dos cancioneiros existem diversos
casos que os estudiosos que compilaram as cantigas não conseguiram aplicar a distinção
entre a cantiga de escárnio e a cantiga de maldizer. Sendo assim, Travani prefere tratar
essas cantigas como um gênero único: cantigas d’escarnh’e maldizer.
3.1.2.4 Tenção
3.2 Neotrovadorismo
Parece-me que não será demais asseverar que foi Pound também o
“inventor” da poesia provençal em nossos dias. Não que esta fosse
propriamente desconhecida antes que dela se ocupasse o grande poeta
norte-americano. Mas a verdade é que, antes de Pound, o estudo dos
trovadores provençais estava mais ou menos confinado a especialistas,
a eruditos que prestavam excelentes serviços às letras no setor da
pesquisa, do levantamento e da interpretação dos textos, mas que
jamais os vislumbravam sob uma perspectiva inteiramente nova e
crítica. (1968. p. 7)
O Neotravodorismo não pode ser lido como uma mera repetição da poesia dos
trovadores, ele é, antes de tudo, um diálogo entre uma tradição secular e as liberdades
conquistadas pelas vanguardas de todas as épocas. Os textos neotrovadorescos resgatam
uma grande tradição poética ignorada por séculos, porém podem — e o fazem —
inovar, atualizar, transgredir os textos medievais. Citamos, como exemplo do referido
diálogo, um trecho do poema Garoa de meu São Paulo, de Mário de Andrade:
Andrade tece seu diálogo com a cantiga Ondas do mar de Vigo — já citada em
nossa pesquisa como um exemplo do gênero barcarola—. No plano formal, é possível
observar a mesma reiteração paralelística da cantiga de Martin Codax. A temática da
saudade, do abandono, da procura pelo amado, tão presente nas cantigas de amigo, é
trazida pelo poeta e ambientada na metrópole paulista. Para entendermos melhor sobre
esse diálogo com a poesia dos trovadores, faz-se necessário conhecermos um pouco de
sua origem, bem como suas motivações na poesia galega e portuguesa. Dedicaremos o
próximo ponto a esses esclarecimentos.
Mar português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
67
DO CANCIONEIRO DA DESAJUDA
FLOR do ramo
flor do ramo:
69
ven cantiga.
Além da poesia brasileira, a canção popular é outra arte que tem merecido
atenção dos estudos acadêmicos acerca do Neotrovadorismo. Na MPB, a própria ideia
de conceber um texto para ser cantado já nos remete, imediatamente, à tradição
trovadoresca, entretanto os diálogos entre essas artes não residem apenas nesse fato. Nas
composições de Djavan, a predileção pelas temáticas amorosas, bem como o imenso
sofrimento advindo desse amor está presente em canções como Cigano e Oceano. Já é
possível encontrar vários trabalhos acadêmicos que analisam a presença do
trovadorismo em diversos compositores como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico
Buarque.
Além dos diálogos com o amor cortês, outro traço presente nas canções
brasileiras é a presença do eu-lírico feminino, herdado das cantigas de amigo medievais.
Na obra de Caetano Veloso, encontramos músicas como Esse cara e Eu sou neguinha.
Ainda que haja ocorrências de eu-lírico feminino em diversos compositores brasileiros,
parece-nos claro que a obra de Chico Buarque se sobressai nesse aspecto. Calado (2000)
analisa as marcas da literatura trovadoresca na obra do compositor, traçando as relações
entre as cantigas d’amor e d’amigo e as letras de Buarque. As cantigas das
malmaridadas são atualizadas no sentimento da “mulher abandonada” em canções
como Atrás da porta e Olhos nos olhos. A autora analisa também as relações entre a
coita d’amor e canções como A Rita e Tanta saudade — em parceria com Djavan—.
Para ilustrarmos a incidência das relações trovadorescas na música popular, citamos
como exemplo Relicário de Nando Reis, presente no disco Para Quando o Arco-Íris
Encontrar o Pote de Ouro. Segue um trecho da canção:
Consistem, via de regra, numa discussão entre dois poetas, cada qual
argumentando ser melhor profissional que o outro. Às vezes parece
que eles brigam para valer e se xingam mutuamente, outras vezes,
desafiam o rival quanto ao seu conhecimento de história, geografia ou
outro assunto. (1998. p. 100)
As pelejas não são consideradas um gênero nelas mesmas, são antes uma
modalidade da cantoria. Esses desafios podem ser realizados utilizando os diversos
gêneros populares, como galope a beira mar; martelo alagoano; mourão e gabinete. A
primeira peleja registrada foi travada entre Inácio da Catingueira, que fora escravo, e
Romano do Teixeira, conhecido como Romano da mãe d'água, o desafio teria
acontecido em 1870, na Paraíba9.
9
VER: http://www.jornaldepoesia.jor.br/in01.html
72
10
VER: http://bira-viegas.blogspot.com.br/2015/01/poesia-popular-nordestina_13.html
73
Na peleja acima, com estrofes compostas por 6 versos, todos com 7 sílabas —
sabendo que na cantoria se conta os fonemas pronunciados e não, necessariamente, a
separação silábica padrão —. As rimas são alternadas (ABABAB), lembrando que a
nova estrofe tem que iniciar com a mesma rima da “deixa” (último verso da estrofe) do
desafiante. Na peleja acima, os elogios ao outro cantador vão cedendo espaço a críticas
provenientes da realização da própria peleja, a troca das vogais de Pinto do Monteiro e a
inadequação da concordância pronominal de Lorival são motivo de provocação entres
os pelejadores.
a literatura brasileira; vemos nascer no século XII uma estética que influenciou grande
parte da construção da lírica ocidental até nossos dias.
Romanza
Branca mulher de olhos claros
De olhar branco e luminoso
Que tinhas luz nas pupilas
E luz nos cabelos louros
Onde levou-te o destino
Que te afastou para longe
Da minha vista sem vida
Da minha vida sem vista?
Eu te seguia e sonhava
79
Eu ficava. E te seguia
Pelo deserto da praia
Até avistar a casa
Pequena e branca da esquina.
Entravas. Por um momento
Esperavas que eu passasse
Para o olhar de boa-noite
E o olhar de até-amanhã.
amor do eu-lírico pela dama (“Eu te amei, mulher serena/ Amei teu vulto distante/ Amei
teu passo elegante e tua beleza clara”); e no lamento pelo desencontro entre os amantes.
vassalagem amorosa a mulher ocupa o lugar de senhor e o trovador é seu vassalo, é seu
servo. Não há nada mais importante para o trovador que a mulher amada, e sua amada é
sempre a mais bela dentre todas as mulheres, como afirma Spina: “A mulher excede a
todas no mundo em formosura (tema do elogio impossível)” (1956. p. 21). Dentre os
elogios à beleza da mia Senhor, um símbolo bastante reincidente nas cantigas
trovadorescas é o elogio à brancura da amada, lembrando que a mulher louvada pelos
trovadores era a dama palaciana; a pele alva é uma marca de sua nobreza. Na primeira
estrofe de Romanza, podemos observar a recorrência desse símbolo. “Branca mulher”;
“olhos claros”; “olhar branco e luminoso”; “luz nas pupilas”; “luz nos cabelos louros”.
A primeira estrofe destaca, imensamente, a brancura da mulher amada, os olhos claros,
a luz no seu olhar e nos seus cabelos. O eu-lírico, ao longo do poema, segue construindo
essa fotografia de claridade, na quinta estrofe afirma ter amado a sua “beleza clara”; a
casa de sua amada é “pequena e branca” e o passeio dos amantes acontecia “pelo
deserto da praia”.
Os olhos são uma das principais fontes sensoriais para o homem, são também o
“espelho da alma” no lugar comum de diversas culturas. No poema de Vinicius de
Moraes, a observação do eu-lírico à mulher que passeia na praia é a origem de seu
sentimento. O eu-lírico não a toca, nem sequer fala com ela, a breve comunicação que
tem com sua amada é através do olhar que trocam no final de cada passeio, no “olhar de
boa noite/ E olhar de até amanhã”.
A ANUNCIAÇÃO
11
MOREIRA LEITE, Jonathan Lucas; DEPLAGNE, Luciana Eleonora de Freitas Calado. Uma cantiga de
amigo moderna: análise de “A anunciação”, de Vinicius de Moraes. In Revista TextoPoético | ISSN:
1808-5385 | Vol. 21 (2o sem-2016) – p. 125- 145.
85
tempo volto a ti/ Sinto-me exausta e sou mulher e te amo”. É interessante perceber que
no poema de Vinicius de Moraes quem volta é ela, ao contrário da tradição
trovadoresca, na qual a mulher aguarda o retorno do amado. Ainda no primeiro quarteto,
a mulher afirma que sua consolação é seu amigo. Todas as aflições, todas as
tempestades terão alívio no consolo de seu amado. Em Soneto de véspera, outro poema
com eu-lírico feminino, também é possível ver o desespero da amiga: “Quando chegares
e eu te vir chorando/ De tanto te esperar, que te direi?/ E da angustia de amar-te, te
esperando/ Reencontrada, como te amarei?” Talvez, a ausência mais cruel seja aquela
que, após longa espera, está tão próxima ao encontro. As horas demoram a passar, as
noites se alongam, a amiga é inteira desespero e angustia. No trecho da cantiga
trovadoresca de Julião Bolseiro, podemos ver o lamento da amiga:
Durante a cantiga, a dama pergunta-se por que as noites em que o seu amigo
está longe são tão longas. A insônia é o martírio da amiga na sua distância com o
namorado. A amiga questiona Deus por que as noites são em tamanhos tão desiguais,
por que as noites na distância de seu amado se passam tão lentamente, são “tan
grandes”. No poema de Vinicius de Moraes, a noite também é o anuncio do sofrimento
pela ausência do amado, na segunda estrofe a mulher diz “Sim, meus seios vazios me
mortificam — e nas noites/ Eles têm ânsias de semente que sente germinar seu broto”.
O sofrimento da amiga, a preocupação com a sorte de seu amante distante, se está
ferido, é muito comum nas cantigas, porém a saudade no sentido carnal também é
presente. Como vimos na cantiga de Julião Bolseiro, a mulher sofre pelas noites vazias,
pelas noites sem seu namorado. No soneto de Vinicius a amada também sofre pela
88
abstinência sexual que a ausência de seu amado traz: “meus seios vazios me
mortificam”.
12
Responsável pelo verbete “mar” no Dicionário temático do ocidente medieval, organizado por Le Goff
e Schmitt, 2006.
90
MAR
lírico, o símbolo da voz feminina da barcarola não se repete, ou pelo menos não há
nenhuma indicação clara de que o eu-lírico seja uma mulher. Assim como nas canções
de Buarque, esse elemento da barcarola é reinventado em todos os poemas de Vinicius
de Moraes em que o mar está presente.
MARINHA
Na praia de coisas brancas
Abrem-se às ondas cativas
Conchas brancas, coxas brancas
Águas-vivas.
Na terceira estrofe, as ondas são descritas com “pontas roxas”, as ondas fálicas
retomam o símbolo das águas-vivas da primeira estrofe. Algumas espécies de água-viva
têm a colocação roxa, além da forma desse animal lembrar a anatomia do órgão sexual
masculino. Entre as coxas e conchas, a presença das águas-vivas. O erotismo de
Marinha, assim como em diversos poemas de Vinicius de Moraes, assemelha-se mais às
construções metafóricas das cantigas galaico-portuguesas do que a descrição direta das
cantigas não cortesãs, como nas chansons de femme.
Nunca mais! Nunca mais/ Triste, triste me deixou”. A separação dos amantes devido à
ida para o mar também pode ser lida na canção do poeta: “Na onda que vai/ Na vida que
vem/ Na vida que vai/ não volta ninguém”. O mar é um dos símbolos com mais força na
poesia de Vinicius de Moraes — tanto nos seus amores, quanto nos seus adeuses—,
merecendo uma pesquisa detida apenas nessa relação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
amor como forma de vida, são ecos do amor integral do trovadorismo. Vimos todas
essas características durante o exame do poema Romanza. As recriações das cantigas de
amigo também têm espaço na poesia do autor, ainda que em menor quantidade. Como
observamos nas análises, podemos identificar nos poemas Soneto de Carta e mensagem
e Soneto de Véspera os dois maiores símbolos desse gênero trovadoresco: o eu-lírico
feminino e o sentimento de abandono da amiga. Quanto aos aspectos formais, o autor
deixa de lado o paralelismo das cantigas e inova esse gênero utilizando o soneto. Outro
diálogo que se estabelece entre a poesia de Vinicius de Moraes e a lírica trovadoresca é
a remanescência da simbologia marítima das barcarolas medievais. Observamos nos
poemas Mar e Marinha a presença do símbolo marítimo em sua duplicidade, a
melancolia marinha e o erotismo.
Percebemos, ainda, que existem diversos autores brasileiros que praticam suas
incursões pelo medievo. Manuel Bandeira, Mario de Andrade, Cecília Meireles e Stella
Leonardos são exemplos de poetas neotrovadores. Na canção popular, temos o grande
exemplo dos cantares femininos na obra de Chico Buarque. A arte dos cantadores
nordestinos merece uma atenção especial nesse sentido, em particular as pelejas que
acontecem entre os violeiros, podendo ser lidas a partir do longínquo diálogo com as
tenções medievais.
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