Neotrovadorismo

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

UM CANTO DE AMOR E SAUDADE: O NEOTROVADORISMO NA POESIA


DE VINICIUS DE MORAES

JONATHAN LUCAS MOREIRA LEITE

João Pessoa
2017
JONATHAN LUCAS MOREIRA LEITE

UM CANTO DE AMOR E SAUDADE: O NEOTROVADORISMO NA POESIA


DE VINICIUS DE MORAES

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras da Universidade Federal da
Paraíba (UFPB), como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Letras.
Área de concentração: Literatura e Cultura.
Linha de pesquisa: Estudos Literários da Idade Média
ao Século XIX. Orientadora: Profª. Drª. Luciana
Eleonora de Freitas Calado Deplagne.

JOÃO PESSOA
2017
L533c Leite, Jonathan Lucas Moreira.
Um canto de amor e saudade: o neotrovadorismo na poesia
de Vinicius de Moraes / Jonathan Lucas Moreira Leite. - João
Pessoa, 2017.
104 f.

Orientadora: Luciana Eleonora de Freitas Calado Deplagne.


Dissertação (Mestrado) - UFPB/ CCHL

1. Literatura Brasileira - poesia. 2. Neotrovadorismo.


3. Moraes, Vinicius de, 1913-1980. I. Título.

UFPB/BC CDU: 869.0(81)(043)


A quem o mar trouxe,
a quem há de vir
AGRADECIMENTOS

A minha mãe e ao meu pai pelo carinho, força e vida dedicados aos seus filhos tantos
anos.
A Jéssica, por participar tão proximamente da construção dessa pesquisa; por me
ensinar tanto e tantas vezes.
A Luciana Calado, pela orientação competente e humana; pela generosidade e respeito.
A Expedito Ferraz e Romero Venâncio pela gentileza de participarem da defesa deste
trabalho.

A Aldinida Souza, pelas contribuições em nosso exame de qualificação.

A todos os amigos.
AZUL E BRANCO
Massas geométricas
Em pautas de música
Plástica e silêncio
Do espaço criado.
Concha e cavalo-marinho.
(...)
Na verde espessura
Do fundo do mar
Nasce a arquitetura.
Da cal das conchas
Do sumo das algas
Da vida dos polvos
Sobre tentáculos
Do amor dos pólipos
Que estratifica abóbadas
Da ávida mucosa
Das rubras anêmonas
Que argamassa peixes
Da salgada célula
De estranha substância
Que dá peso ao mar.
Concha e cavalo-marinho.
(...)
Azul e Branco
Azul e Branco
Concha...
e cavalo-marinho.
(Vinicius de Moraes)
RESUMO

O presente trabalho insere-se no campo dos estudos medievais, bem como no dos
estudos semióticos, tendo como principal objetivo analisar as ressonâncias da literatura
trovadoresca na poesia de Vinicius de Moraes, poeta e compositor popular brasileiro.
Inicialmente, faremos um estudo panorâmico da obra do autor e um levantamento de
sua fortuna crítica. No segundo capítulo, apresentaremos os principais conceitos da
Teoria Geral dos Signos, aporte teórico-metodológico escolhido para nossa análise.
Posteriormente, discorreremos sobre as principais características do Trovadorismo,
norteados pelos medievalistas Spina (1956), Martins e Nunes (2014) e Maleval (2002),
além das contribuições do poeta e ensaísta Paz (1994). Discorreremos, ainda, sobre a
presença do Neotrovadorismo na arte brasileira, assim como os estudos acerca dessas
atualizações. Finalmente, analisaremos as marcas da literatura trovadoresca na poesia de
Vinicius de Moraes, a partir de três apreciações: o diálogo entre os poemas do autor e as
cantigas de amor, demonstrado na análise do poema Romanza; a recriação das cantigas
de amigo nos textos do poeta, analisado em Soneto de carta e mensagem; e, por fim,
examinaremos a presença dos símbolos remanescentes das barcarolas medievais na
poesia de Vinicius de Moraes, a partir dos poemas Mar e Marinha.
Palavras-chave: Vinicius de Moraes; Neotrovadorismo; Semiótica.
ABSTRACT

The present work is in the field of medieval studies, as well as in the field of semiotic
studies, and has as its main objective to analyze the resonances of troubadour literature
in the poetry of Vinicius de Moraes, a Brazilian poet and composer. Initially, we will
make a panoramic study of the work of the author and a survey of his substantial
criticism. In the second chapter, we will present the main concepts of the General
Theory of Signs, the theoretical-methodological considerations used in our analysis.
Posteriorly, we will discuss the main characteristics of the Troubadourism, guided by
the medievalists Spina (1956), Martins and Nunes (2014) and Maleval (2002), in
addition to the contributions of the poet and essayist Paz (1994). We will also discuss
the presence of Neotrovadorismo in Brazilian art, as well as the studies about these
updates. Finally, we will analyze the marks of troubadour literature in the poetry of
Vinicius de Moraes, based on three aspects: the dialogue between the poems of the
author and the songs of the lover, demonstrated in the analysis of the poem Romanza;
the recreation of the songs of love in the texts of the poet, analyzed in the Soneto de
carta e mensagem; and, finally, we will examine the presence of the remaining symbols
of the medieval barcarolles in the poetry of Vinicius de Moraes, from the poems Mar
and Marinha.
Keywords: Vinicius de Moraes; Neotrovadorismo; Semiotics.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 10
I. APROXIMAÇÕES SOBRE A POESIA DE VINICIUS DE MORAES .................... 13
1.1. Um poeta diverso e sempre o mesmo .................................................................. 13
1.2. Fortuna crítica .......................................................................................................... 16
1.3 Anotações sobre a poética de Vinicius de Moraes ................................................... 19
1.3.1 Um olhar para os céus ou O sentimento do sublime .............................................. 20
1.3.2- Um olhar para o outro ou Canção do amor demais ............................................. 25
II. A TEORIA GERAL DOS SIGNOS, DE CHARLES S. PEIRCE ............................. 32
2.1. Categorias Universais .............................................................................................. 35
2.2. Primeira tricotomia .................................................................................................. 36
2.3 Segunda tricotomia ................................................................................................... 37
2.3.1 O signo icônico ...................................................................................................... 38
2.3.2. O Signo indexical ................................................................................................. 42
2.3.3. O Símbolo ............................................................................................................. 43
2.4. Terceira tricotomia .................................................................................................. 45
III A LÍRICA TROVADORESCA E SUAS RESSONÂNCIAS ................................... 48
3.1 Uma breve reiteração sobre o medievo .................................................................... 48
3.1.1 O Feudalismo e o Amor cortês .............................................................................. 50
3.1.2Os trovadores e os gêneros trovadorescos .............................................................. 57
3.1.2.1 Cantiga de amor .................................................................................................. 59
3.1.2.2 Cantiga de amigo ................................................................................................ 60
3.1.2.3 Cantigas de escárnio e maldizer ......................................................................... 62
3.1.2.4 Tenção ................................................................................................................ 63
3.2 Neotrovadorismo ...................................................................................................... 64
3.2.1 O Neotrovadorismo na Galícia e em Portugal ....................................................... 65
3.2.2 O Neotrovadorismo no Brasil ................................................................................ 68
IV VINICIUS DE MORAES: UM NEOTROVADOR ................................................. 75
4.1 As cantigas do amor total ......................................................................................... 77
4.2 O canto feminino ...................................................................................................... 84
4.3 O sal da saudade ....................................................................................................... 89
CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 97
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 100
10

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, é possível observar o crescimento dos estudos medievais


nas universidades brasileiras, em particular na área das Letras. Destacamos as pesquisas
realizadas na Universidade Federal da Paraíba, entre a década de 1990 e o início dos
anos 2000, pelos professores Van Wonsel e Viana. Posteriormente, a professora
Luciana Calado Deplagne vem orientando pesquisas na graduação e no programa de
pós-graduação da mesma instituição, além de coordenar o GIEM (Grupo
Interdisciplinar de Estudos Medievais). Na Universidade Federal do Ceará, os
pesquisadores Roberto Pontes e Elizabeth Dias buscam analisar a presença dos ecos da
lírica trovadoresca na poesia brasileira, a partir da teoria da residualidade, estudo que
busca descobrir em uma cultura as marcas que remanescem de outra.

Uma das possibilidades de estudo da cultura medieval é verificar as suas


ressonâncias na arte moderna e contemporânea. A pesquisadora Maria do Amparo
Maleval foi a responsável por introduzir o termo Neotrovadorismo nas pesquisas
brasileiras. O conceito passou a designar as obras que recriam, ou atualizam, o universo
poético medieval. Chamamos atenção para a antologia dos poetas brasileiros
neotrovadorescos, organizada por Maleval (2002). Dentro desse contexto, nossa
pesquisa busca estabelecer relações entre a poesia de Vinicius de Moraes e as marcas da
literatura trovadoresca, ou, colocando de outro modo, buscamos ler o poeta como um
Neotrovador. Investigaremos, especificamente, a presença do amor cortês na
representação amorosa da poesia do autor, bem como a presença do eu-lírico feminino
como uma ressonância da cantiga de amigo trovadoresca, e, ainda, a relação entre a
simbologia das barcarolas medievais e os poemas em que o mar está presente. Para tal,
nosso aporte teórico-metodológico baseia-se nos estudos dos medievalistas e na Teoria
Geral dos Signos, de Charles Peirce.

Entendemos que Vinicius de Moraes é popularmente ligado à figura do


trovador, principalmente, por sua obra dividir-se na poesia destinada aos livros e aquela
destinada às canções. O autor escreveu ainda crônicas, teatro e críticas
cinematográficas, porém nenhum destes gêneros alcançou a notoriedade de sua poesia e
de sua canção. É extremamente difícil — e talvez completamente desnecessário —
11

estabelecer uma hierarquia de importância entre a obra poética e musical do autor. Se


por um lado Vinicius é um dos poetas mais populares do Brasil, elogiado por pares
como Manuel Bandeira e críticos como Antonio Candido, por outro não podemos
diminuir a importância do autor para a canção popular brasileira, uma vez que é um dos
principais responsáveis pela bossa nova, junto a Tom Jobim e João Gilberto. Dito isso,
nossa pesquisa propõe-se a analisar apenas a poesia dos livros de Vinicius, não por
considerá-la, sob nenhum aspecto, maior que a de suas canções. Restringimos, antes,
nossas análises à poesia dos livros do autor por uma demanda metodológica e por uma
necessidade de delimitação própria do gênero de nossa pesquisa.

Nosso trabalho estrutura-se, essencialmente, em quatro capítulos. Dedicaremos


o primeiro capítulo a uma discussão panorâmica sobre a obra de Vinicius de Moraes.
Faremos, inicialmente, uma breve trajetória cronológica da produção artística do autor.
Em seguida, passaremos a um levantamento da crítica brasileira sobre sua poesia,
evidenciaremos as análises de autores como Antonio Candido, Manuel Bandeira, Mario
de Andrade e Otto Lara Resende. Outro ponto abordado neste capítulo diz respeito aos
estudos acadêmicos realizados sobre o poeta. Evidenciamos as pesquisas de Leitão
(2013); Santos (2007); Costa (2014) e Rangel (2007). Por fim, realizaremos nossa
apreciação crítica de quatro livros do autor: O caminho para distância (1933); Forma e
exegese (1935); Novos poemas (1938) e Poemas, sonetos e baladas (1946), escolhidos
por representarem a mudança formal e temática que a sua obra sofreu, transformando-se
de uma poesia transcendente e mística para uma outra “poesia dos amores cotidianos”.

No segundo capítulo, discutiremos os principais fundamentos da Teoria Geral


dos Signos, desenvolvida por Charles Sanders Peirce. Para tal, recorreremos,
principalmente, às formulações de Santaella (2000), (2005); Pignatari (1974); Nöth
(2003); Ferraz Júnior (2012); além do próprio Peirce (1975). Apresentaremos o
pensamento tricotômico da semiótica peirceana tecido a partir de suas categorias
universais (primeiridade; secundidade e terceridade). Focalizaremos a segunda
tricotomia peirceana, a relação estabelecida entre o signo e seu objeto, ou seja, o modo
de representação dos signos. Essa tricotomia divide-se em índice (aquele que representa
por uma relação de causalidade); ícone (o signo que representa seu objeto por uma
relação de semelhança) e símbolo (o signo que representa a partir da regra, da tradição).

Dedicaremos o terceiro capítulo desta dissertação a apresentar o trovadorismo,


bem como suas atualizações na arte moderna e contemporânea brasileira. Sendo assim,
12

dialogaremos com medievalistas como Spina (1956); Nunes e Martins (2014); Maleval
(2002) e Travani (2002), além das contribuições de Paz (1994). Inicialmente, faremos
uma reiteração das condições sociais e culturais da Idade Média durante o surgimento
da lírica trovadoresca. Explicitaremos, a seguir, as principais características do amor
cortês, conceito fundamental para a poesia dos trovadores. Discutiremos, ainda, as
principais características dos gêneros poéticos medievais, assim como distinções entre
esses gêneros. Por fim, evidenciaremos a presença dos ecos do trovadorismo na arte
brasileira, em particular na poesia, na canção popular e na tradição dos cantadores
nordestinos, assim como os estudos acerca dessas produções.

Finalmente, no quarto capítulo será realizada a análise do Neotrovadorismo na


poesia de Vinicius de Moraes. Para isso, utilizaremos, principalmente, as definições de
símbolo, propostas por Peirce, tendo em vista que buscaremos na poesia do autor as
atualizações simbólicas da poesia trovadoresca. Dividiremos nossa apreciação em três
etapas: no primeiro momento, buscaremos estabelecer as relações entre os símbolos do
amor cortês e suas recriações nas representações amorosas da poesia de Vinicius de
Moraes. No segundo ponto de nossa análise, averiguaremos as similitudes entre as
cantigas de amigo dos trovadores e os poemas do autor, focalizando a presença dos
símbolos do eu-lírico feminino e do lamento pela separação dos amantes. Na terceira
parte do quarto capítulo, verificaremos como comparece, nas recriações do poeta, a
dupla simbologia do mar das barcarolas medievais, que pode ser tanto aquele que gera o
sofrimento da separação do amigo, quanto o símbolo do erotismo dos encontros entre os
amantes.
13

I. APROXIMAÇÕES SOBRE A POESIA DE VINICIUS DE MORAES

1.1. Um poeta diverso e sempre o mesmo

Marcus Vinicius da Cruz de Melo Moraes, ou apenas Vinicius de Moraes,


nasceu no Rio de Janeiro em 1913. Onde viveu durante toda a infância e juventude. No
início da adolescência, Vinicius já tem alguns poemas escritos e compõe as primeiras
canções ao lado dos amigos Paulo Tapajós e Aroldo Tapajós.

O poeta tornou-se bacharel em letras pelo Colégio Santo Inácio em 1929 e


graduou-se em Direito em 1933, ano em que publica seu primeiro livro, O caminho
para distância. Em 1935, o autor surge com Forma e Exegese, seu segundo livro de
poemas, e, em seguida, em 1936, lança Ariana, a mulher, fechando assim um primeiro
momento em sua obra.

Vinicius de Moraes publica Novos poemas em 1938, demonstrando


amadurecimento formal, com poemas mais concisos, e deixando para trás, em grande
parte, a busca pelo transcendental, bastante presente nos primeiros livros. Essa nova
abordagem temática, mais ligada às representações do amor e ao erotismo, é a face mais
conhecida do poeta.

Em 1943, publica Cinco elegias, no mesmo ano inicia sua carreira como
diplomata, profissão que o levou a morar em diversas cidades como Roma, Los Angeles
e Londres. Lança, em 1946, Poemas, sonetos e baladas, um dos livros mais importantes
na obra do autor. O volume guarda poemas como Os acrobatas; Balada do mangue e
Soneto de separação.

Pátria minha, um poema único, é impresso em 1949 na prensa particular de


João Cabral de Melo Neto, com uma tiragem de 50 exemplares. Então, com seis livros
publicados, a obra de Vinicius de Moraes ganha sua primeira antologia em 1954,
organizada pelo próprio autor.

Em 1957, o autor, que sempre dera espaço às formas fixas na sua obra, publica
Livro de Sonetos, volume dedicado à escrita do gênero que Vinicius cultivara desde os
primeiros poemas. No ano seguinte, a faceta de compositor popular do autor revela-se,
definitivamente, com o lançamento de Canção do amor demais, de Elizeth Cardoso. O
14

disco conta com treze canções do poeta em parceria —que duraria uma vida— com
Tom Jobim.

Vinicius de Moraes publica em 1959 o livro Novos poemas (II), no mesmo ano
João Gilberto lança o disco Chega de Saudade, contando com, além da canção
homônima, Brigas nunca mais, também resultado da parceria entre Vinicius e Tom
Jobim. O disco é um marco na música brasileira, tornando-se definitivo para a Bossa
Nova.

Para viver um grande amor, seu primeiro livro de crônicas, é publicado em


1962. Ele volta a publicar outro livro do gênero em 1966, sob o título de Para uma
menina com uma flor. No mesmo ano Vinicius lança, ao lado de Baden Powell, o disco
Os afro-sambas, bastante diferente da estética da Bossa Nova, tornando-se um dos
pontos altos da obra musical do poeta.

Em 1968, foi cassado pelo regime militar e desligado do seu cargo, passando a
dedicar-se exclusivamente à poesia e à canção popular. Ainda nesse ano, publica, com o
filho Pedro Moraes, um livro de poemas e fotografias, O mergulhador. O poeta,
aventurando-se pelos poemas infantis, lança A arca de Noé em 1970.

Na década de 1970, Vinicius dedica-se quase exclusivamente à canção popular,


lançando discos e fazendo shows com vários parceiros como Toquinho, Miucha e Tom
Jobim. Morre no dia 9 de julho de 1980 no Rio de Janeiro, em decorrências das
complicações causadas pela diabete e por um derrame que ocorrera no ano anterior.

O autor publicou doze livros de poesia e deixou uma considerável quantidade


de poemas que não foram publicados em vida. Além da poesia, Vinicius escreveu
crônicas, e críticas sobre cinema. O poeta teve uma exitosa passagem pelo teatro com o
musical Orfeu da Conceição (1956), que ganhou adaptação para o cinema, com direção
de Marcel Camus, intitulada Orfeu negro (1959). O filme foi premiado com a Palma de
Ouro, o Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro daquele ano.

Vinicius de Moraes, destaca-se como um dos principais poetas da chamada


“geração de 30”, ao lado de Cecília Meireles, Murilo Mendes e Carlos Drummond de
Andrade. Como compositor de música popular, o poeta foi fundamental para a história
da música brasileira, sendo um dos responsáveis pelo surgimento da Bossa Nova,
15

momento ímpar na música nacional. O autor foi um dos artistas que influenciaram toda
uma geração de compositores como Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil.

Não há dúvidas de que Vinicius de Moraes figura entre os poetas mais


populares do Brasil, poemas como Soneto de fidelidade e Poética são alguns dos versos
que marcaram essa geração. Muito dessa popularidade deu-se, também, pela obra
musical do poeta, canções como Chega de saudade; Garota de Ipanema; A felicidade e
Berimbau fazem parte da memória coletiva e afetiva da cultura brasileira. Em um breve
texto sobre as linhas gerais de sua obra, Candido assinala:

Os poetas que valem realmente fazem a poesia dizer mais coisas do


que ela dizia antes deles. Por isso, precisamos deles para ver e para
sentir melhor, e eles não dependem das modas nem de escolas, porque
as modas passam e os poetas ficam. Se hoje dermos um balanço no
que Vinicius de Moraes ensinou à poesia brasileira, é capaz de nem
percebermos quanto contribuiu, porque, justamente por ter contribuído
muito, o que fez de novo entrou para a circulação, tornou-se moeda
corrente e linguagem de todos. (1975. p. 742)

Apesar das falas elogiosas de autores como Candido, havia, por parte da
crítica, algum desdém com sua obra. Provavelmente, um dos motivadores dessa
diminuição de sua poesia foi a relação de Vinicius com a canção popular. Lembrando
que, naquele momento, a canção popular brasileira ainda não alcançara o respaldo
crítico que teria após os anos 60 — respaldo esse que o poeta ajudou a fomentar —,
sendo considerada pelo conservadorismo acadêmico uma arte menor.

O tom dessa resistência à canção popular é dado pela fala de João Cabral de
Melo Neto Cabral em entrevista cedida para Tribuna da Imprensa, em 10 de abril de
1968: “O poeta Vinicius de Moraes seria um grande poeta ou maior se não escrevesse
musiquinha popular.” Com isso, não afirmamos aqui que a crítica acerca da obra de
Vinicius de Moraes pautou-se, completamente, sob estes aspectos, porém acreditamos
que isso foi um dos fatores que afastou, durante certo tempo, os estudos acadêmicos da
poesia do autor.

Apesar do possível pouco interesse acadêmico de algumas décadas, nossa


pesquisa revelou diversos estudos consistentes que tematizam a obra de Vinicius de
Moraes, dedicaremos o próximo subcapítulo desta dissertação a destacar algumas dessas
pesquisas.
16

1.2. Fortuna crítica

Além das falas de autores como Antonio Candido, Manuel Bandeira, Mario de
Andrade e Otto Lara Resende— textos esses reunidos, em boa medida, no Poesia
completa e prosa (1975), os quais recorreremos no tópico a seguir —, observamos que,
apesar de não ter uma fortuna crítica tão extensa como seus contemporâneos Drummond
e Cabral de Melo Neto, existem relevantes trabalhos que tem como objeto de estudo a
poesia, a canção, o teatro e a prosa de Vinicius de Moraes, sob os mais variados
prismas. Sendo assim, destacaremos, neste subcapítulo, alguns desses trabalhos.

Muito provavelmente ninguém discorda de que a matéria principal da poesia


viniciana é a mulher em suas diversas representações. Como diria o próprio autor, e “no
longo capítulo das mulheres”, evidenciamos na dissertação de Leitão (2013), intitulado
Representações femininas residuais na lírica de Vinícius de Moraes.

A autora compara as aparições das mulheres na obra do poeta aos arquétipos


femininos de diversos momentos da história da literatura, como o Trovadorismo, o
Romantismo e o Barroco. Para tal, Leitão utiliza a teoria da Residualidade,
sistematizada pelo professor Roberto Pontes da Universidade Federal do Ceará. Essa
teoria dedica-se a estudar o que remanesce de outras culturas no objeto investigado.
Nesse sentido, assemelha-se com nossa pesquisa na busca de ressonâncias na obra de
Vinicius de Moraes, focalizado por nós nas relações com o Trovadorismo.

Segundo Leitão (2013), tais representações femininas surgem na poesia de


Vinicius de Moraes a partir da longínqua oposição entre puro e profano, tendo destaque
os poemas em que a beleza física é exaltada; outra constante do poeta é o encontro entre
o masculino e o feminino. Em síntese, o intuito principal do trabalho da autora é
verificar as origens das representações femininas na obra do autor.

A dissertação de Leitão dialoga, fortemente, com o artigo de Martins (2002),


intitulado Vinicius, uma poética residual, em que a autora analisa a poesia de Vinicius
de Moraes através da divisão da sua obra em duas fases, um primeiro momento em que
o autor é mais afeito as questões místicas, transcendentais e um momento posterior em
que focaliza as relações amorosas e as questões sociais. Segundo a autora, “nessa
dialética do tempo se configura a produção poética de Vinícius de Moraes,
interseccionando influências e atitudes mentais tão distantes e tão naturais nos
inadaptados ao cânone estanque.” (2002. p. 268) Martins concebe como uma forma de
17

enfrentamento da obra de Vinicius de Moraes a análise dos diversos resíduos de outras


épocas literárias. É possível ler sua poesia a partir da aproximação com outros poetas,
como Camões. Torna-se interessante verificar algumas similitudes que acompanham a
lírica desde o trovadorismo até os poetas, neste caso, do século XX.

Sobre os aspectos religiosos e metafísicos da obra de Vinicius de Moraes,


destacamos a dissertação de Santos (2007) — um dos poucos trabalhos de fôlego que
tematizam sua lírica inaugural —, na qual a autora realiza um consistente balanço sobre
o primeiro momento da obra do poeta e busca demonstrar que tais elementos
permanecem presentes tanto na poesia final do autor, quanto na canção.

A distinção absoluta desses dois momentos do poeta, além de mostrar-se


simplista, acaba, por vezes, condicionando as leituras e as análises para um
entendimento de que toda a primeira poesia de Vinicius de Moraes é mística e que essa
transcendência desaparece completamente no momento posterior. Santos (2007) não
nega que há uma distinção entre os dois momentos, mas algumas das características dos
primeiros livros do autor ainda figuram em sua poesia posterior.

Uma das várias faces de Vinicius de Moraes foi a do disco Afros Sambas, em
parceria com Baden Powell. Esse disco marca uma extrema aproximação entre o poeta e
a Bahia. Segundo Haudenschild (2010), o encontro entre Vinicius e Baden “foi pautado
pelo samba de roda, pela capoeira e pelo candomblé, é porque ambos estavam em busca
de um “elogio da negritude” através de autênticas fontes culturais baianas”. (2010. p. ?)
O autor analisa as músicas Iemanjá; Canto de Xangô e Canto de Ossanha, entrelaçando
a lírica das canções ao mito da origem iorubá de cada orixá. Haudenschild busca,
primeiramente, explicitar a origem, a função e a personalidade de cada orixá,
considerando que tal conhecimento é fundamental para a análise das canções citadas. A
partir disso, o pesquisador faz um jogo de espelhamentos entre as possíveis
interpretações da canção como um todo e dos significados/significantes dos orixás
dentro da estrutura de cada canção, relacionando com a representação amorosa e social.

Sobre a parte dramática da obra do poeta, a dissertação de Costa (2014) analisa


a peça Orfeu da Conceição utilizando a semiótica da cultura como arcabouço teórico. O
autor analisa a ressignificação da tragédia grega utilizada para criar uma obra teatro-
musical ambientada no Rio de Janeiro, partindo do conceito bakhtiniano de
carnavalização. Costa realiza uma reiteração da tragédia aristotélica, entendendo que “a
18

adaptação de Vinícius de Moraes, ao tratar sobre este personagem, objetiva trazer para a
contemporaneidade carioca da década de 1950 não uma persona, mas toda a sua trama,
marcada pela vontade de amar e a interdição deste amor.” (2014. p.12) Sendo assim, o
jogo de significações não está apenas na ação desenvolvida pela peça, a própria
estrutura escolhida — e a proposição de deslocamento feita — já podem ser lidas e
analisadas como parte da significação da obra. O trabalho de Costa destaca-se,
principalmente, pelo empenho em analisar os signos linguísticos e musicais presentes
em Orfeu da Conceição sem elencar nenhuma gradação de importância entre esses.

Por fim, não poderia faltar um estudo sobre a representação amorosa na obra
do poeta. Dentre os estudos acerca dessa temática, destacamos a dissertação de Rangel
(2007), intitulada O amor entre o vão momento e o infinito: os sonetos de Vinicius de
Moraes. A autora desenvolve, inicialmente, um balanço crítico da primeira poesia de
Vinicius, porém detêm-se na análise dos “sonetos de amor” de sua fase madura e dos
metapoemas da obra do autor, como Poética I e Poética II.

Rangel analisa sonetos emblemáticos na obra do autor como o Soneto do amor


maior e o Soneto de fidelidade. Sobre este último, a autora afirma que a representação
amorosa na obra do poeta faz-se moderna a partir do soneto que abre os Novos Poemas,
Rangel afirma: “as ideias sobre o amor sugeridas nele não se parecem nada com as
clássicas (que contavam com a eternidade do afeto e, portanto, da relação amorosa),
pois há nela a certeza da impossibilidade e do fim” (2007. p. 54). A autora aventa,
ainda, a possibilidade de que o “meu amor” do primeiro verso pode não estar se
dirigindo a uma mulher e nem ao Amor, enquanto categoria universal, mas sim a um
conceito de amor muito particular do eu-lírico; uma busca do amor dentro das
possibilidades reais, em que sabemos que a vida e o amor são finitos.

Durante nossas pesquisas acerca do autor analisado percebemos,


principalmente, dois fatos: i) há uma grande variedade temática nas pesquisas
acadêmicas sobre Vinicius de Moraes — talvez motivada pela própria obra sempre
mutável do autor —; ii) A maior parte das pesquisas verificadas durante este trabalho
são de data relativamente recente, o que pode sugerir, que há um crescimento do
interesse da academia sobre a poesia de Vinicius de Moraes; destacamos, também, o
trabalho de Eucanaã Ferraz na organização das recentes edições de todos os livros do
poeta pela Companhia das Letras, em que alguns dados bibliográficos e alguns ensaios
críticos foram vinculados aos volumes, representando mais uma fonte para esta
19

pesquisa. Nessa breve visita à fortuna crítica do autor, pretendemos demonstrar os dois
pontos supracitados e, principalmente, a diversidade nos estudos sobre o poeta.

1.3 Anotações sobre a poética de Vinicius de Moraes

A face mais conhecida — e, provavelmente, a mais elogiada de Vinicius de


Moraes — é a da representação amorosa, da exaltação à mulher amada, das paixões, do
desejo carnal. Sobre esse último, Bosi afirma: “Vinicius será talvez, depois de Bandeira,
o mais intenso poeta erótico da poesia brasileira moderna”. (1983. p.514) Porém, com o
olhar mais atento, percebemos a diversidade formal e temática da poesia do autor. Os
poemas com temas mais sociais, com o olhar menos introspectivo, também têm grande
peso na obra de Vinicius, citamos, rapidamente, poemas como Rosa de Hiroshima, O
dia da criação e O desespero da piedade.

Dentro da diversa poesia de Vinicius de Moraes, entendemos que uma das


possibilidades de apreciação geral é lê-la a partir das lentes do Neotrovadorismo. Com
isso não pretendemos aqui cessar as diversas leituras advindas de outros enfrentamentos
temáticos e teóricos; muito pelo contrário, a obra do poeta suscita essa miscelânea
interpretativa e analítica. Entretanto, observamos que uma considerável parte da obra do
autor se relaciona com a lírica trovadoresca, analisaremos mais profundamente essa
relação no quarto capítulo desta dissertação; por ora evidenciaremos algumas
características dessa relação durante nossos comentários.

Ao nos determos no trabalho do poeta, em linhas gerais, podemos observar a


existência de, pelo menos, dois momentos distintos em sua obra. Um primeiro com
maior incidência de temáticas religiosas, transcendentais e o momento posterior, em que
a temática amorosa ganha relevo em sua poesia.

Para observarmos as características dessas duas fases na obra do autor,


discorreremos, ainda que de forma sucinta, sobre os livros O caminho para distância
(1933); Forma e exegese (1935); Novos poemas (1938) e Poemas, sonetos e baladas
(1946). Analisaremos aqui, muito brevemente, alguns poemas, deixando para o quarto
capítulo deste trabalho uma análise mais aprofundada sobre as marcas da poesia
trovadoresca na obra do autor. Os livros citados foram escolhidos, dentre outros da
poesia de Vinicius de Moraes, por representarem a referida mudança formal e temática
20

do poeta. Observamos a transformação da poesia verticalizada, centrada no eu-lírico,


dos primeiros anos do poeta em uma poesia mais horizontalizada, que dedica o olhar ao
outro (à amada, ao operário, à prostituta). Uma poesia que olhava para o céu e passa a
olhar ao redor, uma “poesia dos amores cotidianos”.

1.3.1 Um olhar para os céus ou O sentimento do sublime

Notamos nos três primeiros livros do autor (O Caminho para a distância


(1933); Forma e exegese (1935) — ganhador do prêmio nacional de literatura — e
Ariana, a mulher (1936)) um poeta mais afeito às questões transcendentais, religiosas,
metafísicas. Há um consenso na fortuna crítica sobre o autor — e também por parte do
próprio poeta — sobre um ciclo que se inicia em 1933 e fecha-se em 1936, com o curto
Ariana, a mulher. Prova disso, em Poesia completa e prosa (1975), organizada por
Afrânio Coutinho, há uma seção que reúne essa poesia inicial de Vinicius de Moraes
sob o título de “O Sentimento do Sublime”, título que consideramos extremamente
propício e autoexplicativo sobre este momento do poeta. Sobre essa primeira fase na
obra de Vinicius, Candido e Castello afirmam:

A sua obra inicial denota impregnação da poesia católica francesa e


talvez da de Augusto Frederico Schmidt, seja nos processos formais
(como o uso do versículo e do gosto pelo poema longo), seja no
temário, seja no próprio tom, exaltado e cheio de ressonâncias.
(CANDIDO; CASTELLO. 1981. p 344)

Destacamos, sobre esse momento da obra de Vinicius, o ensaio de Faria,


vinculado ao capítulo Fortuna crítica do Poesia completa e Prosa, sob o título de A
transfiguração da montanha. O autor faz um balanço crítico-analítico sobre os três
primeiros livros do poeta. Faria focaliza sua análise em O caminho para distância,
discorrendo sobre as temáticas e as formas empregadas, sempre relativizando a
qualidade e variedade dos poemas daquele volume, mas, também, sempre chamando
atenção para a importância do livro em uma leitura geral da obra do autor.

No primeiro livro de Vinicius de Moraes fica bastante evidente essa referida


religiosidade. Sobre O caminho para a distância, Alves (2012 p. 1) faz uma interessante
observação “O título do livro de estreia de Vinicius de Moraes [...], suscita
imediatamente que o associemos à poesia evasiva e apegada à transcendência”. Nesse
21

mesmo sentido, aponta Resende: “um livro, a começar pelo título, embriagado pela
vertigem das grandes abstrações e das grandes alturas” (1975. p. 716). Para analisar tais
considerações sobre o primeiro momento do autor, observemos a primeira estrofe de O
poeta:

A vida do poeta tem um ritmo diferente


É um contínuo de dor angustiante.
O poeta é o destinado do sofrimento
E a sua alma é uma parcela do infinito distante
O infinito que ninguém sonda e ninguém compreende
[...]
(MORAES. 2008. p. 33)

Observamos uma busca por Deus, pelo transcendental, pela metafísica a partir
da religiosidade cristã. Há uma ligação entre o poeta e Deus, seja a busca do eu-lírico
pelo divino, seja a comunhão entre o sagrado e o humano, transformando o ato de
escrever em algo que transcende a razão. O poeta é alguém diferente dos demais;
alguém mais sensível, alguém “preso, eternamente pelos extremos intangíveis”.

É inegável a incidência muito maior, nos primeiros livros, das temáticas


ligadas ao metafísico, à religiosidade, porém em Caminho para distância, Vinicius já
acena, em Romanza —um dos poemas que analisaremos detidamente no quarto capítulo
desta dissertação —, com a representação amorosa tão cara à sua poesia. Nesse texto,
vislumbramos o trovador moderno que Vinicius, gradualmente, tornou-se. A exaltação
da beleza da amada, o elogio à brancura da pele e o sofrimento causado pela distância
entre os amantes são características bastante presentes na poesia dos trovadores
medievais e retomadas nos poemas do autor, como observaremos nas análises deste
trabalho.

Forma e exegese, segundo livro do poeta, foi muito bem recebido pelo público
e pela crítica. Otávio Faria, em texto publicado na Poesia e prosa completa (1975),
afirma: “Seus poemas, de uma qualidade não raro excepcional, fazem empalidecer as
melhores poesias de O caminho para a distância”. Critérios de valor à parte,
destacamos — o que é comum na maior parte dos poetas — a evolução, do ponto de
vista formal, que há entre os dois livros, deixando-nos vislumbrar traços, ainda que
raros e iniciais, do que viria a se tornar a poesia do autor.
22

Quanto às temáticas abordadas no livro, Forma e exegese segue o “olhar para o


céu” do primeiro livro. Segundo Faria, em texto publicado no “arquivo” de Forma e
exegese: “ele [o eu lírico] é bem, ainda, e sempre, o mesmo “destinado do sofrimento”
dos cantos anteriores.” (2011. p.117). Apesar de notarmos uma incidência um pouco
maior das temáticas amorosas neste volume, a constante do livro ainda é as questões
místicas. Palavras como “maldição”, “Deus” e “alma” são constantes nos poemas.
Observando os títulos das poesias, deparamo-nos com alguns como: O bom ladrão; A
última parábola; A música das almas; Três respostas em face de Deus.

No posfácio do livro Forma e exegese/Ariana, a mulher (2011), Jafe afirma


que o segundo livro de Vinicius de Moraes é um “livro subjuntivo”, lembrando aqui que
o subjuntivo é o modo verbal que anuncia as hipóteses, as possibilidades. Segundo Jafe:
“Nada é; tudo poderia ou não poderia ser. Tudo seria, se não fosse; tudo não seria, se
fosse”. (2011. p. 109) O autor afirma ainda que “Não há nada que habite o terreno do
chão firme, da realização possível das coisas, da concretude no mundo.” (2011. p. 110)
Essa visão do alto, essa rarefação nesse momento da poesia de Vinicius não se dá
apenas pela predileção temática do autor, a linguagem construída pelo poeta espelha e
maximiza as questões explicitadas. Os versos longos, o léxico — por vezes rebuscado,
difícil — e o hermetismo de alguns versos constroem esse primeiro momento do autor,
tanto quanto os temas tratados.

Em Forma e exegese há uma continuidade dos ideais e da linguagem de O


caminho para distância, nesse sentido, não nos parece gratuito que o primeiro poema do
segundo livro tenha o título de O olhar para trás. O verso grandiloquente como
“Éramos a primeira manifestação da divindade”, espalham-se por todo o livro. Para
atestar tais afirmativas, vamos ao poema:

Os malditos (A aparição do poeta)

Quantos somos, não sei... Somos um, talvez dois, três, talvez, quatro;
[cinco, talvez nada
Talvez a multiplicação de cinco em cinco mil e cujos restos encheriam
[doze terras
Quantos, não sei... Só sei que somos muitos - o desespero da dízima
[infinita
E que somos belos deuses mas somos trágicos.

Viemos de longe... Quem sabe no sono de Deus tenhamos aparecido


23

[como espectros
Da boca ardente dos vulcões ou da órbita cega dos lagos
[desaparecidos
Quem sabe tenhamos germinado misteriosamente do sono cauterizado
[das batalhas
Ou do ventre das baleias quem sabe tenhamos surgido?

Viemos de longe - trazemos em nós o orgulho do anjo rebelado


Do que criou e fez nascer o fogo da ilimitada e altíssima misericórdia
Trazemos em nós o orgulho de sermos úlceras no eterno corpo de Jó
E não púrpura e ouro no corpo efêmero de Faraó.
(2011. p. 83)

‘O que é o poeta’ é um assunto bastante presente nos poemas desse primeiro


momento do autor. O eu-lírico relaciona constantemente o poeta, a inspiração poética ou
o fazer poético com a transcendência da mística ligação com Deus. Assim como em O
poeta, apresentado anteriormente, o eu-lírico é alguém diferente dos demais. Essa
ligação com Deus, apesar de não ser sempre prazerosa, é sempre quista e ostentada. Tal
como Jó, a suposta proximidade com Deus leva ao sofrimento, sofrimento esse
incurável e indispensável ao fazer poético.

No segundo livro, a temática amorosa já figura em uma maior quantidade de


poemas, comparando a’O caminho para distância. O neotrovador Vinicius de Moraes
já mostra a face na hipérbole de seu amor e no elogio da amada em poemas como A
volta da mulher morena; A queda; O nascimento do homem e Alba, vamos a um trecho
deste último:

Alba, no canteiro dos lírios estão caídas as pétalas de uma rosa cor de
[sangue
Que tristeza esta vida, minha amiga...
Lembras-te quando vínhamos na tarde roxa e eles jaziam puros
E houve um grande amor no nosso coração pela morte distante?
Ontem, Alba, sofri porque vi subitamente a nódoa rubra entre a carne
[pálida ferida
Eu vinha passando tão calmo, Alba, tão longe da angústia, tão
[suavizado
Quando a visão daquela flor gloriosa matando a serenidade dos lírios
[entrou em mim
E eu senti correr em meu corpo palpitações desordenadas de luxúria.
Eu sofri, minha amiga, porque aquela rosa me trouxe a lembrança do
[teu
sexo que eu não via
Sob a lívida pureza da tua pele aveludada e calma
Eu sofri porque de repente senti o vento e vi que estava nu e ardente
E porque era teu corpo dormindo que existia diante de meus olhos.
(2011. p. 53)
24

Alba, no poema acima, é o nome da mulher a quem o eu-lírico dirige-se. Tal


vocativo remonta, imediatamente, a dois aspectos trovadorescos: o primeiro é o gênero
Alba, em que os amantes, depois de ter passado a noite juntos, precisavam despedir-se.
Neste gênero é muito frequente o casal lamentar o nascer do sol, pois isso significa a
sua separação. O outro remete a brancura da pele da dama, virtude exaltada na estética
trovadoresca. Outro aspecto que chama atenção é o uso de “minha amiga”, assim como
nas cantigas medievais.

Na divisão que propomos aqui, reproduzindo um acordo comum na fortuna


crítica do autor, procuramos demonstrar que o poeta que viria nos livros futuros já
aparece em alguns poemas, ainda que escassos, na primeira fase de sua obra. Também
não entendemos que as primeiras motivações temáticas do autor, simplesmente,
desapareçam; elas espaçam-se na sua obra, tornando-se mais raras. Vinicius aparta-se
do eterno, enquanto busca essa mesma eternidade nas cantigas de amor que inundam a
fase posterior da sua obra. Sobre essa relação, afirma Resende:

Ninguém abandona completamente o conjunto de crenças dentro das


quais o espírito se formou. A aludida evolução é apenas válida grosso
modo: uma e outra fases estão longe de constituir “compartimentos-
estanques”. Por mais veemente que seja aquela “repulsa ao idealismo
dos primeiros anos”, apregoada por Vinicius de Moraes (e a
necessidade de apregoá-la é já deveras sintomática), certo é que a
libertação não foi total. E ainda bem que o não foi. Apesar de
considerarmos, e a grande distância, essa segunda fase a parte mais
importante da obra de Vinicius, cremos que ela não teria (sobretudo a
poesia de amor, que é a que hoje nos interessa) a complexidade que a
caracteriza, se não fora a permanência — velada, escamoteada,
subjacente — daquele espírito religioso da primeira fase. (1975. p.
724)

Segundo Resende, o autor segue o caminho contrário de poetas como Murilo


Mendes e Jorge de Lima. Vinicius de Moraes é o desconvertido. Porém, na sua poesia
apóstata — que se aproxima do mundo e se afasta das coisas etéreas — não se dissolve
completamente o sublime dos primeiros versos. O poeta apazígua-se das buscas
espirituais, porém encontra na mulher — mote e guisa de sua poesia — o objeto de seus
louvores.
25

1.3.2- Um olhar para o outro ou Canção do amor demais

No momento mais maduro na obra de Vinicius de Moraes dois temas são


dominantes em seus poemas: as representações amorosas — que vão dos amores puros,
platônicos de A mulher que passa, até a volúpia orgástica d’Os acrobatas— e as
questões sociais. O livro Novos poemas (1938) representa o início desta mudança na
obra de Vinicius. O título não nos parece gratuito, são poemas novos, não apenas por
serem outros, por serem mais alguns poemas produzidos pelo autor. Parece-nos a
tentativa de inaugurar uma nova visão sobre a criação poética, sobre a materialidade da
linguagem poética. Sobre estes Novos poemas, Resende afirma:

Descendo ao concreto, o poeta faz as pazes com a vida. Caminha para


assumir a sua naturalidade. Livra-se das penas de pavão e de águia
que se tinha acrescentado. Já não é uma ave-do-paraíso. Não mais
necessita de exacerbar, por vanglória de super-homem, as razões de
sua angústia. Ao contrário, procura apaziguá-las. Descobre o chão em
que pisa, encara o cotidiano e não se envergonha — a partir de Novos
Poemas — de falar como todo mundo, tão coloquial quanto... Manuel
Bandeira. (1975. p. 718)

Sobre esse volume de Vinicius de Moraes, evidenciamos o ensaio Belo, Forte,


Jovem de Mário de Andrade, publicado originalmente em 1939. O autor analisa
detidamente os Novos Poemas, revelando-lhe as virtudes e trazendo para o leitor,
também, as inconstâncias verificadas em sua leitura da obra. Andrade afirma:

Os Novos Poemas, que nos deu nos últimos dias do ano passado, são o
seu quarto volume de poesia em cinco anos, e o melhor de todos. Não
o mais ordenado, porém. Pelo contrário, é bastante irregular e
desequilibrado, e onde estão os piores e os melhores versos do poeta.
(1975. p. 704)

Em poucos momentos durante o quarto livro do autor, lemos os versos


mergulhados naquele cristianismo-simbolista dos outros livros, um desses momentos é
no texto Viagem à sombra, uma prosa poética que abriga frases como “Frocos verdes de
perfume sobre a malva penumbra (e a tua carne em pianíssimo, grande gata branca de
fala moribunda) e o fumo da cidade inatingível(...)” (2012. p. 16).

O amor e suas representações tomam o centro desse livro, a maior parte dos
poemas está inserida nessa temática, citamos como exemplo Soneto de agosto; Amor em
três pavimentos; Soneto de devoção; Ternura. A face neotrovadoresca do poeta mostra-
26

se, definitivamente, em uma grande quantidade de poemas: A mulher que passa; A


brusca poesia da mulher amada; Soneto a Katherine Mansfield. Para demonstrar tais
considerações, vamos a um trecho do poema Sonata do amor perdido:

Lamento nº 1

Onde estão os teus olhos — onde estão? — Oh — milagre de amor


[que escorres dos meus olhos!
Na água iluminada dos rios da lua eu os vi descendo e passando e
[fugindo
Iam como as estrelas da manhã. Vem, eu quero os teus olhos, meu
[amor!
A vida... sombras que vão e sombras que vêm vindo
O tempo... sombras de perto e sombras na distância — vem, o tempo
[quer a vida!
Onde ocultar minha dor se os teus olhos estão dormindo?

Onde está tua face? Eu a senti pousada sobre a aurora


Teu brando cortinado ao vento leve era como asas fremindo
Teu sopro tênue era como um pedido de silêncio — oh, a tua face
[iluminada!
Em mim, mãos se amargurando, olhos no céu olhando, ouvidos no ar
[ouvindo
Na minha face o orvalho da madrugada atroz, na minha boca o
[orvalho do teu nome!
Vem... Os velhos lírios estão fanando, os lírios novos estão florindo...
(...)
(2012. p. 35)

No poema acima, dois pontos chamam atenção enquanto ressonância da poesia


trovadoresca. O primeiro é a dor causada pela distância entre os amantes, a saudade da
mulher amada é um tema muito recorrente nas cantigas do século XII. A segunda é a
presença constante dos olhos no poema. No trovadorismo a função escópica tem uma
grande importância na representação amorosa. Os versos de elogio ao olhar da amada
aparecem em diversos outros textos de Vinicius como “Ó, minha amada/ Que olhos os
teus/ São cais noturnos/ Cheios de adeus” do Poema dos olhos da amada.

Esse livro de Vinicius de Moraes representa, assim, um livro de passagem. A


utilização maior de formas fixas, principalmente o soneto, contrastam com a poética
anterior do autor e apontam uma proximidade maior com os livros que publicaria a
partir de então. Coelho, no posfácio do livro (2012) corrobora com nossa leitura
quando afirma: “O poeta das “coisas do alto” começaria a direcionar seus olhos ao rés
do chão, aproximando-se de elementos e fatos do cotidiano.” (2012. p. 106)
27

Esses Novos poemas de Vinicius de Moraes —mais semelhantes, talvez, ao


lirismo da obra de Manuel Bandeira — nos trazem a carga modernista em momentos
como soneto de intimidade em que, como bem ressalta Coelho: “a nobreza do [verso]
alexandrino contrasta com a seleção de um campo semântico “rude” (os verbos cuspir
mijar, bem como o substantivo estrume) e com a própria cena trivial, em que o desleixo
é absoluto (2012. p. 107).

O quarto e último livro que daremos destaque neste primeiro capítulo é


Poemas, sonetos e baladas. O volume abre-se com o, sempre lembrado, soneto de
fidelidade e se encerra com o soneto de separação. Iniciamos a leitura do livro com a
promessa de infinitude, enquanto dure, e chegamos ao fim do livro — “de repente, não
mais que de repente”— com a inevitável, ainda que lírica, separação. O “infinito,
enquanto dure”, ou uma eternidade efêmera, talvez, seja um tom geral neste livro.
Contemplamos esses instantes perpétuos na escalada rumo ao gozo d’Os acrobatas:
“Subamos!/ Subamos acima/ Subamos além, subamos/ Acima do além, subamos! [...]
Subamos, lentíssimos/ Lá onde o infinito/ De tão infinito/ Nem mais nome tem/
Subamos” (2008. p.17), ou ainda na saudade infindável —amor dos distantes— nos
versos de Soneto de carnaval “(...)Todo instante perdido é um sofrimento/ Cada beijo
lembrado uma tortura/ Um ciúme do próprio ciumento// E vivemos partindo, ela de
mim/ E eu dela, enquanto breve vão-se os anos/ Para grande partida que há no fim”
(2008. p. 116).

Amor e saudade, assim como na estética trovadoresca, são os temas centrais


em Poemas, sonetos e baladas. Observamos a face neotrovadoresca de Vinicius de
Moraes em poemas como Cântico e Soneto de véspera, além dos já referidos Soneto de
fidelidade e Soneto de carnaval. Durante o livro, espalham-se poemas que remontam o
gênero trovadoresco barcarola, no qual a amada sofre a ausência do amado na beira do
mar ou no leito do rio. O volume traz títulos como Marinha; Barcarola; Marina;
Balada da praia do Vidigal e Mar.

Nesses poemas de mar presentes na obra do autor, observamos a retomada de


vários símbolos da poesia trovadoresca, tais como a constante presença dos olhos; a
presença do erotismo representado pela simbologia marítima: o mar reside na própria
amada, o eu-lírico ouve as antigas cantigas do mar através da contemplação dos olhos
da mulher; em seus braços e seus seios ele sente as formas marinhas. Náufrago, perdido
28

no corpo de sua amada, o eu-lírico refaz a descrição elogiosa do corpo feminino, tão
presente na escrita dos trovadores do século XII.

Outro aspecto deste livro é a, já explicitada anteriormente, mudança de olhar,


uma escrita que deixa de olhar para o céu, para o etéreo e passa a olhar ao redor, às
proximidades, às amadas, aos irmãos. Dentro dessa perspectiva, destacamos dois
poemas: Balada do mangue e Dia da criação, vamos a um trecho deste:

(...)
II

Neste momento há um casamento


Porque hoje é sábado.
Há um divórcio e um violamento
Porque hoje é sábado.
Há um homem rico que se mata
Porque hoje é sábado.
Há um incesto e uma regata
Porque hoje é sábado.
Há um espetáculo de gala
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que apanha e cala
Porque hoje é sábado.
Há um renovar-se de esperanças
Porque hoje é sábado.
Há uma profunda discordância
Porque hoje é sábado.
Há um sedutor que tomba morto
Porque hoje é sábado.
Há um grande espírito de porco
Porque hoje é sábado.
Há uma mulher que vira homem
Porque hoje é sábado.
Há criancinhas que não comem
Porque hoje é sábado.
(...)
(2008. p. 124)

O sétimo dia, o dia em que tudo já estava pronto, o dia em que Deus
descansou. Em Dia da criação, o eu-lírico despe-se da reiteração dos próprios
sentimentos para lançar um olhar para o outro, para o cotidiano. Sobre este poema,
Wisnik, no posfácio do livro Poemas, sonetos e baladas/ Pátria minha (2008), afirma,
brevemente:

N’“O dia da criação” Vinicius parece ter chegado ao tema da cidade e


dos tempos modernos, onde, em vez de verticalidades espirituais, o
que domina definitivamente é o horizonte estático aplainando
29

sentimentos, veleidades, ilusões e desejos em cascata. A parte II é


construída por enumeração caótica, rebatida pelo bordão do dia da
criação dessacralizado. (2008. p. 150)

Nascimento e morte, amores e agressões, satisfação e fome, tudo entremeado e


concomitante no sábado, em um sábado qualquer, em qualquer dia. As banalidades
somam-se às imagens fortes sob o olhar do eu-lírico, que, na miscelânea de
acontecimentos, parecem todos ganhar a mesma importância.

A referida e reiterada mudança na obra de Vinicius de Moraes é perceptível a


partir da leitura da continuidade de sua obra. As temáticas e as escolhas léxicas do autor
mudam, fato que não é incomum em poetas com produções extensas. Sobre esse
percurso na sua obra, destacamos o artigo de Silveira (2000) que, pensando na relação
entre a poesia de Vinicius de Moraes e a lírica medieval, relaciona o primeiro momento
da escrita do poeta ao trobar ric e o momento posterior de sua obra ao trobar leu.

Antes de outro qualquer, trobar (ou trovar) significa compor, fazer e recitar
poesias. No trovadorismo galaico-português existiam duas correntes com ideais
estéticos diferentes. Segundo Moises: “trobar leu, ligeiro (ou leugie, ou plan, ou clar),
reunia poetas, como Jaufre Rudel e Bernard de Ventadorn, que defendiam uma
expressão lírica direta, cristalina, simples, fácil, destituída de artificialismo ou
pedantaria.” (1974. p. 453) Sendo assim, o trobar leu era mais acessível às camadas
populares, o verso era livre dos afetamentos de linguagem, o lirismo deste trobar não se
acortinava nas peripécias linguísticas. Nesse sentido, havia um maior grau
comunicativo.

A segunda corrente subdividia-se em trobar clus e trobar ric. Sobre essas


modalidades de trobar, Moises afirma:

O trobar clus, fechado (ou escur, ou cobert) identificava-se pelo


esoterismo: os seus adeptos partiam do princípio de que tinham algo
de profundo a transmitir, e que, por isso, haviam de buscar fórmulas
enigmáticas, carregadas de conceitos agudos e obscuros. (...)
Quanto ao trobar ric (ou car, ou sotil), sucedeu cronologicamente ao
anterior e caracterizava-se pelo abandono da agudeza conceptual em
favor da engenhosidade artesanal: os seus partidários concentravam-se
na superação de obstáculos formais, que lhes evidenciasse a
virtuosidade, como emprego de rimas raras, palavras esdrúxulas,
imagens insólitas e ornamentais. (1974. p. 453)
30

Silveira (2000) afirma que há um caminho percorrido por Vinicius de Moraes


do trobar ric dos primeiros livros até chegar ao trobar leu do momento mais maduro de
sua obra, tendo como ápice a predileção do autor pela canção popular— em, possível,
detrimento da poesia de seus livros—, tornando-se assim “um menestrel, em pleno
século XX” (2000. p. 347). Para o autor, o objetivo de Vinicius de Moraes era depurar a
expressão poética “com letras de música, cuja versificação, de metros enxutos e dicção
coloquial, transformava a mensagem poética em algo tão cristalino e inteligível que
todos seríamos capazes de cantar e assobiar” (2000. p. 347).

Nesse sentido, Resende alinha-se com Silveira no entendimento de que com o


amadurecimento do poeta, os versos longos e herméticos do primeiro momento de sua
obra cedem lugar a concisão e a uma maior comunicação, sendo, possivelmente, a
música um dos catalizadores dessa mudança. Segundo Resende:

Essa comunicação mais ampla, mais numerosa e até mais fácil pedirá
a cooperação da música. A fusão é sempre viável nesse poeta de
encontro. Poema e canção se casam, convivem amigável e
respeitosamente na penumbra de uma boite que o público entulha para
ouvir, da mesma boca, o “Berimbau” e “O Dia da Criação”. (1975. p.
720)

Outro ponto interessante da trajetória poética de Vinicius é a utilização das


formas fixas. Em O caminho para distância, seu primeiro livro, há apenas um soneto;
os versos são longos e escassos em métrica e rima, enquanto na fase madura de sua obra
há uma preferência por esses elementos poéticos. Enquanto falava das coisas do alto,
coisas inatingíveis, o poeta utilizava-se do verso livre dos modernos. Para falar de temas
mais próximos, mais cotidianos, o autor utilizava as formas fixas. Sobre essa relação,
destacamos a fala de Coelho, vinculada ao livro Novos poemas/ Cinco elegias (2012),
como posfácio:

Já é mais que perceptível que a decisão acerca da forma dos sonetos é


estabelecida por meio dos seus conteúdos. Estes parecem motivar no
poeta a seleção de técnicas que ao mesmo tempo mantêm um diálogo
com a tradição e subvertem certos princípios consagrados à procura de
maior autenticidade e expressividade. (2012. p. 109)
31

É um consenso na crítica que a fase posterior da poesia de Vinicius de Moraes


é mais rica e feliz que suas primeiras obras. Nesse sentido, a mudança que operou-se em
Vinicius é considerada um caminho para encontrar a essência de sua própria poesia. Um
caminho que se iniciou para a distância, para o divino, e o trouxe cada vez mais
próximo de sua própria essência, cada vez mais humano. Sobre essa consciente
mudança no trajeto de sua poesia, Mario de Andrade afirma: “O que há de admirável no
poeta é justamente, em plena mocidade, ter conseguido autocrítica bastante para
reconhecer o descaminhamento, ou melhor, o perigo que estava, e tentar se enriquecer
de mais profunda, mais humana, mais pessoal realidade.” (1975. p. 704).

A obra de Vinicius, na nossa leitura, mostra-se heterogênea nas temáticas —


apesar de uma predominância da temática amorosa—, nas formas e nas influências que
o autor deixa-nos perceber; uma destas, como viemos tentando demonstrar, é a
ressonância da poética dos trovadores medievais. No capítulo a seguir, discorreremos
sobre os principais conceitos da Teoria Geral dos signos, tendo em vista que tais
conceitos serão retomados para embasar parte de nossa análise no quarto capítulo.
32

II. A TEORIA GERAL DOS SIGNOS, DE CHARLES S. PEIRCE

Como já foi reiterado, nossa dissertação tem como objetivo analisar as relações
entre a poética dos trovadores e os poemas de Vinicius de Moraes que compõem o
nosso corpus. Para tal, utilizaremos, além das considerações trazidas pelos estudos
medievais, os conceitos da semiótica peirceana, teoria que nos aprofundaremos neste
capítulo.

A Teoria Geral dos Signos foi criada e desenvolvida pelo cientista e filósofo
americano Charles Sanders Peirce. Pode-se afirmar que o autor trouxe — em diferentes
medidas — contribuições para diversas áreas do conhecimento, nenhuma delas tão
importante quanto seus estudos sobre linguagem. Como lemos o mundo? Como
funcionam os diversos signos que nos relacionamos diariamente? A semiótica busca
responder essas, dentre outras questões.

Primeiro, devemos ter em mente a ideia, extremamente abrangente, de


linguagem que conduz os estudos de Peirce. Para o autor, o mundo é composto de
linguagens. O cinema, um sinal de trânsito, as nuvens no céu, as estrelas, um latido, um
rio, um rótulo de refrigerante, a Ilíada, todos são tidos como fenômenos (phaneron). A
semiótica peirceana dedica-se a estudar todos os fenômenos, na medida em que esses se
constituem enquanto linguagem. Como fenômeno entendemos:

qualquer coisa que aparece à mente, seja meramente sonhada,


imaginada concebida, vislumbrada, alucinada... Um devaneio, um
cheiro, uma ideia geral e abstrata de ciência... Enfim, qualquer coisa.
(SANTAELLA. 2000. p.7)

Esse entendimento já dimensiona o quão abrangente a semiótica se dispõe a


ser, porém a abrangência não é irrestrita, essa ciência limita-se “a descrever e analisar
nos fenômenos a sua constituição como linguagem”. (SANTAELLA. 2005. p. 14)
Nesse sentido, existe a possibilidade de se estudar toda e qualquer linguagem a partir da
Teoria Geral dos Signos, sendo uma de suas maiores virtudes a capacidade de analisar
diversos códigos a partir da mesma base teórica. Segundo Pignatari, a semiótica serve:

para estabelecer ligações entre um código e outro código, entre uma


linguagem e outra linguagem. Serve para ler o mundo não-verbal:
“ler” um quadro, “ler” uma dança, “ler” um filme — e para ensinar a
ler o mundo não verbal em ligação com o mundo icônico
(PIGNATARI apud FERRAZ JÚNIOR, 2012. p. 12; 13)
33

Para descrever os processos sígnicos, toda a teoria de Peirce foi desenvolvida a


partir de tríades. Diferentemente dos estudos de base saussuriana — que dividem o
signo em dois elementos, significante e significado —, o autor propõe a divisão em
signo (ou representem), objeto1 e interpretante2, sendo chamada de semiose (a ação ou
efeito do signo) o processo de representação definido pela relação entre esses três
elementos (FERRAZ JÚNIOR. 2012. p. 12). Segundo a descrição de Peirce:

Um signo, ou representamem, é algo que, sob certo aspecto ou de


algum modo, representa alguma coisa para alguém. Dirige-se a
alguém, isto é, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente ou
talvez um signo melhor desenvolvido. Ao signo, assim criado,
denomino interpretante do primeiro signo. O signo representa alguma
coisa, seu objeto (PEIRCE, 1975. p.94)

O signo é, então, tudo aquilo que representa algo, tudo que ‘substitui’ alguma
coisa para alguém. O objeto será aquilo que foi ‘substituído’, aquilo que o signo
representa. A relação entre signo e objeto cria um novo signo na mente do intérprete,
este é o interpretante3.

É importante ressaltar que o signo representa o objeto a partir de alguns de seus


aspectos, nunca contemplando todas as características possíveis desse objeto. Peirce
afirma que “o signo só pode representar o Objeto e referir-se a ele. Não pode propiciar
trato ou reconhecimento do Objeto” (1975, p. 96). Sendo assim, não podemos apreender
a realidade, nossa relação com o mundo é sempre mediada através dos signos e, como
foi afirmado, os signos são incapazes de nos dar a conhecer todas as qualidades de seu
objeto. Sobre essa relação, Santaella declara:

O signo está ligado ao objeto não em virtude de todos os aspectos do


objeto, porque, se assim o fosse ele seria o próprio objeto. Pois bem,
ele é signo justamente porque não pode ser o objeto. Desse modo,
haverá muitos aspectos do objeto que ele não tem poder de recobrir. O
signo estará, nessa medida, sempre em falta com o objeto. Daí sua
incompletude e constante impotência, sua tendência a se desenvolver
num interpretante onde busca se completar. (2000. p. 30)

1
Tendo em vista nossa proposta de discorrer apenas sobre os principais conceitos da teoria peirceana, não
adentraremos na divisão do objeto em dinâmico e imediato. VER Santaella 2000. p. 38.
2
Assim como no caso do objeto, não adentraremos na divisão dos tipos de interpretante. VER Santaella
2000 p. 66.
3
O interpretante é um conceito semiótico que não se confunde com o intérprete, aquele que é leitor de
determinada representação.
34

Para ilustrar o processo de semiose daremos o seguinte exemplo: caso eu tenha


um cachorro e, por um motivo qualquer, deseje referir-me a ele para alguém, eu
escreverei ou falarei a palavra “cachorro”. Em um caso mais inusitado eu poderia
desenhá-lo, de forma que o desenho e a palavra “cachorro” seriam signos, ou seja,
‘substituiriam’ o meu cachorro, sendo este último o objeto. Nesse caso, a palavra e o
desenho representam o objeto a partir de algumas características, porém são incapazes
de representar diversas outras como seu cheiro, ou a textura de seu pelo. A ideia de
cachorro — tradução do representamem em outro signo —, criada na mente do meu
hipotético interlocutor será o interpretante.

Devemos deixar claro que qualquer processo de semiose advém de uma


semiose anterior e é gerador de uma próxima semiose. Um pensamento nasce de um
outro pensamento, que se originou de um pensamento anterior e assim por diante, sendo
impossível determinar, em termos práticos, onde começa e onde termina o processo
semiótico. Esse fato é resultado da própria natureza de incompletude do signo, esse ad
infinitum próprio desse processo chama-se semiose ilimitada, segundo Santaella:

O signo, por sua própria constituição, está fadado a germinar, crescer,


desenvolver-se num interpretante (outro signo) que se desenvolverá
em outro e assim indefinidamente. Evidencia-se aí a natureza
inevitavelmente incompleta de qualquer signo. Sua ação é a de
crescer, desenvolvendo-se num outro signo para o qual é transferido o
facho da representação. Nessa medida, o interpretante realiza o
processo da interpretação, ao mesmo tempo que herda do signo o
vínculo da representação. Herdando esse vínculo, o interpretante
gerará, por sua vez, um outro signo-interpretante que levará à frente,
numa corrente sem fim, o processo de crescimento. (2000. p. 29)

Com isso não pretendemos dizer que não podemos deter nossas análises em
apenas um processo semiótico, apenas destacamos que sempre que analisamos uma
relação sígnica, estamos delimitando-a dentro de uma continuidade de semioses.

Como foi afirmado anteriormente, todo o pensamento peirceano é


desenvolvido a partir de tríades, sendo todas elas — inclusive a já mencionada signo-
objeto-interpretante — advindas de suas categorias fundamentais do pensamento e da
natureza. Antes de adentrarmos nas demais classificações semióticas, faz-se necessário
apresentarmos as categorias que fundamentam toda teoria do autor.
35

2.1. Categorias Universais

Assim como Aristóteles e Kant, Peirce buscou a criação de categorias que


fossem capazes de descrever todos os fenômenos que conhecemos. No intuito de
descrever a forma que apreendemos qualquer linguagem, o autor criou a tríade que
dimensiona toda a lógica interna de sua obra, chamando de Primeiridade, Secundidade
e Terceiridade (Firstness, Secondness e Thirdness), a qualidade daquilo que é primeiro,
segundo e terceiro. Segundo Nöth:

Primeiridade é a categoria do sentimento imediato e presente das


coisas, sem nenhuma relação com outros fenômenos no mundo. [...]
sentimento sem reflexão, da mera possibilidade, do imediato, da
qualidade ainda não distinguida e da independência (CP, 1.302-303,
1.328, 2.531).
Secundidade começa quando um fenômeno primeiro é relacionado a
um segundo fenômeno qualquer (CP, 1.356-359). É a categoria da
comparação, da ação, do fato, da realidade e da experiência no tempo
e no espaço. [...]
Terceiridade é a categoria que relaciona um fenômeno segundo a um
terceiro (CP, 1.337/ss): “É a categoria da mediação do hábito, da
memória, da continuidade, da síntese, da comunicação, da
representação, da semiose e dos signos”. (NÖTH. 2003. p. 63; 34)

A primeiridade é o campo das qualidades puras, daquilo que nem sequer


podemos perceber. Imaginemos uma cor, apenas suas qualidades, sem que ela esteja
corporificada em nenhum objeto, essa seria uma primeiridade. A secundidade está
ligada a existência dos fenômenos, a realidade, ou seja, a corporificação das qualidades.
A terceiridade é o momento da reflexão, da mediação sígnica, da representação.

Devemos observar que essas categorias são cumulativas, toda terceiridade tem
em si uma secundidade, que por sua vez pressupõe uma primeiridade, sendo esta última
livre. É claro que não podemos alcançar logicamente a primeiridade, pois para descrevê-
la utilizamos, necessariamente, a terceiridade. Para esclarecer essa gradação
desenvolvida por Peirce, utilizaremos o exemplo de Pignatari:

Estou caminhando por uma via de um grande centro urbano, sem que
nenhuma ideia me ocupe a mente de modo particular e nenhum
estímulo exterior enrijeça minha atenção: em estado aberto de
percepção cândida, digamos. Ou seja, em estado de primeiridade. Por
um acidente qualquer — um raio de sol refletido num vidro de um
edifício — minha atenção isola o referido edifício do conjunto urbano,
arrancando-me da indeterminada situação perceptiva do estado
36

anterior: Em seguida, constato que esta construção é um “arranha-céu


de vidro”, que se insere no sistema criado por Mies van der Roche,
nos anos 20; que Mies, por seu lado, nada mais fez do que
desenvolver as possibilidades construtivas do aço e do vidro, coisa
que Paxton já havia feito no famoso “palace made o’windows”
(Thackeray), o Palácio de Cristal, de Londres, em 1981 etc. tex. Este
estado da consciência corresponde à terceiridade. (1974. p. 31)

A partir dessa gradação e pensando nas relações existentes entre signo, objeto e
interpretante, Peirce desenvolveu dez categorias triádicas que, teoricamente, podem
descrever o funcionamento de todos os signos no mundo. Dentre essas categorias, a
literatura acerca do autor focaliza três delas, e, segundo Santaella: “Essas três tríades
tornaram-se mais conhecidas provavelmente porque a elas ele dedicou maior atenção,
dado o fato de que elas devem ser as mais importantes”. (2000. p. 92). Peirce
desenvolve suas três principais tricotomias a partir de: 1) o signo tomado em si mesmo;
2) a relação do signo com seu objeto e 3) a relação do signo com seu interpretante.
Tendo em vista que nossa análise se guiará pela segunda tricotomia, daremos destaque
neste capítulo à relação entre o signo e o objeto.

2.2. Primeira tricotomia

Nessa primeira classificação, o signo é tomado em si mesmo, dividindo-se em


quali-signo, sin-signo e legi-signo. Na definição do próprio Peirce:

Quali-signo é uma qualidade que é um signo. Não pode, em verdade,


atuar como um signo enquanto não se corporificar; contudo, a
corporificação nada tem a ver com seu caráter como um signo.
Um sin-signo (onde a sílaba sin significa “uma única vez”, como em
“singular”, “simples”, no latim semel, etc.) é uma coisa existente ou
acontecimento real, que é um signo. Só pode sê-lo através de suas
qualidades; de sorte que envolve um quali-signo ou, antes, vários
quali-signos. [...]
Um Legi-signo é uma lei que é um signo. Tal lei é comumente
estabelecida por homens. Todo signo convencional é um legi-signo.
[...] Todo legi-signo ganha significado por meio de sua aplicação, que
pode ser denominado Replica. (1975, p. 100; 101)

Como podemos observar nas definições do autor, o quali-signo está em uma


primeiridade; o sin-signo em uma secundidade; e o legi-signo em uma terceiridade. A
37

primeira categoria corresponde às qualidades tomadas de forma abstrata, e só podemos


percebê-las na medida em que já estão corporificadas em um existente, ou seja, só
conseguimos apreender os quali-signos quando estes já estão presentificados nos sin-
signos. Isso não muda o fato de que apreendemos os quali-signos a partir de suas
qualidades.

Os sin-signos são formados de quali-signos, são a corporificação das


qualidades, as ocorrências individuais. Os legi-signos são conceitos gerais, são
convenções, códigos. Devemos entender que as categorias peirceanas, na realidade, não
funcionam em separado, lembrando que toda terceiridade traz consigo uma secundidade
e essa, uma primeiridade. Porém, apesar de estarem uma entrelaçada na outra, podemos
descrever o funcionamento dessas categorias a partir da forma que as apreendemos.

Pensando no pátio de uma montadora de automóveis em que diversos carros


estão estacionados. Todos os carros do mesmo ano de fabricação e de modelo idêntico,
porém dentre os vários veículos brancos está um vermelho, o que difere esse de todos os
outros é sua cor, uma qualidade, logo um quali-signo. Nessa analogia, cada carro, cada
ocorrência — ou nas palavras de Peirce, cada réplica — seria um sin-signo; e todos os
carros seriam o mesmo legi-signo, repetido em diversas ocorrências.

Nas palavras — toda e qualquer palavra de qualquer língua — podemos


observar essas três instâncias. Pensando na canção Lua, do disco Joia (1975) de
Caetano Veloso, o primeiro verso da letra é: “Lua, lua, lua, lua”. Existem diversos
quali-signos neste verso, o formato das letras, os sons, quando cantada. Cada ocorrência
é um sin-signo do mesmo legi-signo, lua. A atualização dos sin-signos no mesmo verso,
ou a repetição do mesmo termo, é um recurso bastante utilizado na literatura e na
canção popular por diversos motivos, enfatizar uma palavra; para auxiliar no ritmo, na
rima. Na leitura da canção, podemos ler a repetição a partir do próprio caráter cíclico da
lua, as quatro fases da lua, retomadas nos quatro sin-signos.

2.3 Segunda tricotomia

Provavelmente, a relação entre o signo e o objeto que ele representa resulte na


classificação mais conhecida e, também, a mais frutífera elaborada por Peirce. Nessa
tríade, os signos podem ser: Ícones, signos que mantém semelhança com seu objeto;
38

Índices, “aqueles signos que mantêm conexão real com a existência de um objeto
particular.”; ou Símbolos, “signos que associamos a um objeto apenas por força de uma
norma ou convenção” (FERRAZ JÚNIOR. p. 24; 25). A seguir, discorreremos acerca
de cada um desses signos e de seus modos de representação.

2.3.1 O signo icônico

É chamado de ícone o signo que, na representação do seu objeto, estabelece


semelhanças com ele, o ícone representa a partir das qualidades do objeto. Na teoria de
Peirce há uma distinção entre ícone puro e hipoícone. Não pretendemos nos alongar
sobre essa discussão, porém, também não poderíamos deixar de citá-la. O ícone puro é
um quali-signo icônico, um signo que está completamente na primeiridade, sendo assim
impossível de ser apreendido. Nöth afirma:

Um ícone puro seria, portanto, um signo não comunicável, porque o


ícone puro é independente de qualquer finalidade, serve só e
simplesmente como signo pelo fato de ter a qualidade que o faz
significar. Assim entendido, o ícone puro não pode verdadeiramente
existir; pode, no máximo, constituir “um fragmento de um signo mais
completo”. (2003. p. 78)

Tendo em vista que é impossível a leitura de um signo que está apenas na


primeiridade, Peirce desenvolveu o conceito de hipoícone ou signo-icônico que são “os
ícones que participam na secundidade e na terceiridade (NÖTH. 2003. p. 79). Esses
signos têm o caráter de iconicidade, tendo em vista que representam o objeto a partir de
suas qualidades, porém só podem representá-los participando da terceiridade. Os ícones4
são, ainda, divididos em Imagem; diagrama e metáfora. Segundo Peirce:

As imagens participam de simples qualidades ou Primeiras


primeiridades. Os diagramas representam as relações principalmente
relações diádicas ou relações assim consideradas — das partes de uma
coisa, utilizando-se de relações análogas em suas próprias partes. As
metáforas representam o caráter representativo de um signo, traçando-
lhe um paralelismo com algo diverso. (PEIRCE apud SANTAELLA.
2000. p. 120)

4
Esclarecida a existência da discussão sobre a iconicidade, seguiremos utilizando ícone no mesmo
entendimento do conceito de hipoícone.
39

2.3.1.1 Imagem

No caso do ícone imagético, ou, simplesmente, imagem, a representação


acontece a partir do que Peirce chamou de Primeiras Primeiridades que são, segundo
Santaella, “as qualidades primeiras — forma, cor, textura, volume, movimento etc. —
que entram em relações de similaridade e comparação, tratando-se, portanto, de
similaridades na aparência”. (2000. p.120). Sendo assim, toda a arte figurativa pode ser
lida como ícones imagéticos: uma pintura rupestre; a Monalisa, de Da Vinci; O
Pensador, de Rodin, dentre uma infinidade de obras.

Entretanto, o ícone imagético não é um privilégio das artes plásticas, nem


tampouco se manifesta apenas visualmente. Ao imitarmos o canto de um passarinho,
por exemplo, criamos um ícone, na medida em que representamos o seu canto a partir
da semelhança sonora. Não são raros os exemplos na música em que algum instrumento
cumpre esse papel. Na canção Água também é mar, presente no disco Memórias,
crônicas e declarações de amor (2000), de Marisa Mote, a percussão e os instrumentos
de corda iconizam o barulho de água pingando e o som do mar, espelhando e
potencializando os sentidos da letra de Marisa Monte, Carlinhos Brown e Arnaldo
Antunes.

Na literatura, são utilizados recursos como aliterações e assonâncias para


iconizar o objeto a que o texto remete, demonstraremos isso no poema de Sérgio de
Castro Pinto:

As cigarras
são guitarras trágicas.
plugam-se/se/se/se
nas árvores
em dós sustenidos.
kipling recitam a plenos pulmões.
Gargarejam
vidros
moídos.
o cristal dos verões.
(CASTRO PINTO. 2007. p.13)

Ferraz Júnior (2012. p. 53) chama atenção para a iconização do canto das
cigarras a partir da vasta utilização dos sons de /g/ e de /r/ que atravessam todo o poema
40

desde o título até o último verso, representando o próprio cantar da cigarra. Atentamos
ainda para o verso “plugam-se/se/se/se”, no qual, claramente, o poeta traz o som e a
repetição produzidos pelo inseto. No poema de Castro Pinto, o canto da cigarra parece
doer — “as guitarras trágicas” —, esse fato ganha força quando lembramos que, no
saber popular, as cigarras morrem cantando.

2.3.1.2 Diagrama

O diagrama — como ícone que é — continua representando o seu objeto a


partir de suas qualidades, porém de forma diferente da imagem. Segundo Santaella, os
diagramas “representam por similaridade nas relações internas entre signo e objeto. Não
são mais as aparências que estão em jogo aqui, mas as relações internas de algo que se
assemelha às relações internas de uma outra coisa” (2000. p. 120).

Enquanto as imagens estão no nível da primeiridade, os diagramas estão na


secundidade, não possuindo uma “semelhança imediata com aquilo que representam”
(FERRAZ JÚNIOR. 2012. p. 59). Todos os gráficos são ícones diagramáticos, eles
estabelecem similaridade com algo não por sua aparência, mas por representar as
semelhanças nas relações de seu objeto, representam por analogia.

Apesar do caráter simbólico da língua, podemos citar exemplos em que há um


modo de representação diagramático. Nöth nos traz o exemplo das receitas culinárias,
uma vez que “a sequência de frases instruindo o cozinheiro corresponde à sequência de
ações a serem executadas” (2003. p. 81). Na literatura também podemos observar
diversos casos de diagramas, Ferraz Júnior chama atenção para a leitura que Pignatari
fez do conto Berenice de Edgar Allan Poe:

Na leitura de Pignatari, o que parecia ser apenas uma criação entre


outras, feita em língua estrangeira pelo estranho e culto narrador-
personagem (há ali também registros de frases em latim), traduz-se
numa minuciosa elaboração de sua monomania. Justamente na frase
em que Egeu sintetiza a obsessão mórbida, de que fora repentinamente
tomado, pelos dentes de sua prima, o código escolhido gera um
enunciado formado por exatos trinta e dois caracteres: que toutes ses
dents étaient des idées (que todos os seus dentes eram ideias.) É certo
que as letras não se assemelham visualmente a dentes, mas a
coincidência no número de elementos instaura a analogia,
transformando a frase num ícone diagramático do sorriso de Berenice,
e pressagiando assim o terrível desfecho da história, bastante
conhecido. (FERRAZ JÚNIOR. 2012. p. 61; 62)
41

2.3.1.3 Metáfora

Seguindo a sequência, o ícone metafórico está em uma terceiridade, segundo


Nöth: “o representamen é signo porque mantém uma relação triádica na forma de
paralelismo entre dois elementos constitutivos, paralelismo que se resolve com uma
terceira relação. Um ícone dessa categoria é a metáfora”. (2003. p. 81) O ícone
metafórico se estabelece a partir de uma ou mais características semelhantes em relação
ao objeto que representa, podendo representá-lo apenas em alguns contextos.

Uma propaganda de creme para a pele pode utilizar um pêssego como metáfora
da pele humana, ou da suavidade e hidratação que o creme proporciona à pele. Nesse
contexto o signo “pêssego” representa a pele humana, essa “substituição” é possível
pois o signo compartilha uma qualidade com o objeto, porém em outros contextos essa
representação não faria sentido. Na literatura, abundam as metáforas, Nöth cita o
exemplo de Shakespeare:

A metáfora “olho do céu”, com a qual Shakespeare se refere ao sol.


Os três elementos de sua composição são, respectivamente, o sentido
literal do órgão da percepção, o sentido metafórico do “sol” e o
terlium comparationis, o sentido comum à relação dos dois primeiros.
Nesse caso, poderíamos ainda relacioná-los com outros atributos, tais
como o “redondo” e o “brilhante”. (2003. p.81)

Na canção popular, citamos o exemplo de Templo, canção presente no disco


Aos vivos (1995) de Chico César, dentre outras metáforas, chamamos atenção para o
nono verso: “himalaia himeneu”. Himeneu significa enlace matrimonial, casamento,
vindo do grego Hymenaeus, deus do matrimonio, filho de Apolo5. Ao adjetivar a
relação amorosa com “himalaia”, o autor, tendo em vista o contexto da canção, elege a
imensidão, ou a exuberância, do Himalaia para descrever o seu amor. O “himalaia”
cumpre, então, a função de ícone metafórico, uma vez que ele representa a dimensão
dos sentimentos do eu-lírico apenas nesse contexto, porém não pode representar esse
objeto em outras circunstâncias.

5
BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA, Aurelio. Novo dicionário da língua portuguesa. 1986, p 930.
42

2.3.2. O Signo indexical

Assim como o ícone está em uma primeiridade, o índice está em uma


secundidade, uma vez que o índice diz respeito a uma ocorrência, uma existência, esse
signo representa o seu objeto a partir de uma relação de causalidade. Nöth afirma:

[...] o índice está fisicamente conectado com seu objeto; formam,


ambos, um par orgânico. Porém, a mente interpretativa não tem nada a
ver com essa conexão, exceto o fato de registrá-la, depois de
estabelecida (2003. p.82)

O signo indexical é provocado pelo seu objeto, o índice é o resultado da


existência de algo. Se pensarmos nas pegadas de um animal, por exemplo, temos aí uma
relação indexical, uma vez que as pegadas no chão são o indicativo da existência
daquele animal. Termômetros, bússolas, relógios, sintomas de alguma doença são todos
exemplos de índices, todos eles representam seu objeto a partir de sua conexão real com
uma ocorrência.

Na literatura é muito improvável que encontremos um índice em seu modo


puro. Em uma pintura autêntica podemos observar a pincelada, o relevo da tinta, como
um índice do trabalho do artista, isso não é possível em um texto literário. Sobre essa
relação, Ferraz Júnior afirma:

O tipo de relação indexical que facilmente encontraremos num texto


literário não se baseia nesse conceito de indexicalidade genuína, mas
naquilo que Peirce chamou de índices degenerados (também
designados de hipossemes ou subindicadores) — espécie de
envolvimento de uma representação indexical por uma forma
simbólica, cujo caso típico é o daquelas palavras que têm como função
principal chamar atenção para situações específicas pertencentes ao
contexto comunicativo. (2012. p. 41)

Todo o sistema linguístico é simbólico, sendo assim, o que temos nas línguas
são símbolos com uma função indexical; os pronomes demonstrativos (esse, essa,
aquele, aquela) exercem essa função no texto. Esses elementos apontam a existência dos
objetos que representam, podendo estar dentro ou fora do texto.

Ferraz Júnior (2012) destaca os traços referenciais que todas as mensagens


auto-referenciais trazem consigo, esses elementos se atualizam a cada nova leitura
enquanto se referem ao seu objeto, segundo o autor:
43

No conto “Vestida de Preto”, de Mário de Andrade, a certa altura, o


narrador comenta: “pela terceira vez fiquei estarrecido nesse conto”.
Mais do que aludir a situações vividas pelo narrador (no plano
ficcional), a frase se refere ao exato momento em que cada leitor a tem
diante de si, isto é, ao evento real (a leitura do conto) que se atualiza
no instante mesmo em que é enunciado (2012. p. 41; 42)

Acontece algo semelhante na canção Samba de uma nota só,6 presente no disco
O amor o sorriso e a flor (1960), de João Gilberto, o primeiro verso anuncia “Eis aqui
este sambinha feito numa nota só”. O “este” se refere ao “sambinha” que foi elaborado
em todas as suas linguagens verbais e musicais, porém também remete ao momento em
que é (re)produzido, atualiza-se a cada vez que escutamos a música.

2.3.3. O Símbolo

O signo simbólico está em uma terceiridade, é aquele que representa o seu


objeto a partir de normas, convenções, regras; não há uma relação natural entre o objeto
e o símbolo. O símbolo precisa de uma tradição ou acordo para que possa representar o
seu objeto. Na definição de Peirce:

Um Símbolo é um Representamen cujo caráter Representativo consiste


precisamente em ele ser uma regra que determinará seu Interpretante.
Todas as palavras, sentenças, livros e outros signos convencionais são
Símbolos. (1975. p.126)

Toda comunicação linguística é simbólica, assim como as placas de trânsito. A


palavra “avião” não representa seu objeto a partir de suas semelhanças, ou de uma
relação de causa, ela representa por uma convenção, não há nenhuma ligação natural
entre o símbolo e o objeto. Observamos essa mesma arbitrariedade na relação entre as
cores do semáforo e o que elas representam. Sabe-se que a literatura só pode comunicar
a partir dos signos simbólicos, ainda assim, podemos pensar em casos em que o efeito
geral do texto seja simbólico, ou sua desconstrução. Segundo Ferraz Júnior:

Um texto literário enfatizará o modo simbólico de representação


quando o seu significado for evocado principalmente pelo sentido
convencional dos signos utilizados, ou seja, quando as associações
entre a forma literária e aquilo que ela representa se fundamentem

6
Letra de Tom Jobim e Newton Mendonça.
44

principalmente nas convenções estabelecidas pelos códigos linguístico


e literário. (2012. p.33)

A poesia, por várias vezes, retoma os símbolos para afirma-los ou para


transgredi-los. Para exemplificar essas ocorrências, vamos ao poema Satélite de Manuel
Bandeira:

Satélite
Fim de tarde.
No céu plúmbeo
A lua baça
Paira.
Muito cosmograficamente
Satélite.
Desmetaforizada,
Desmitificada,
Despojada do velho segredo de melancolia,
Não é agora o golfão de cismas,
O astro dos loucos e enamorados,
Mas tão somente
Satélite.
Ah! Lua deste fim de tarde,
Desmissionária de atribuições românticas;
Sem show para as disponibilidades sentimentais!
Fatigado de mais-valia,
gosto de ti, assim:
Coisa em si,
-Satélite.
(BANDEIRA apud FERRAZ JÚNIOR. 2012, p. 34)

Ferraz Júnior (2012) analisa o poema de Bandeira, focalizando a representação


simbólica. O eu-lírico de satélite descreve dois modelos de representação para lua: um
modelo desnudo das representações românticas da lua, cientifico, “coisa em si”; em
oposição a outra representação, marcadamente literária (“golfão de cismas”; “astro dos
loucos e enamorados”). Segundo o autor:

Ao enfatizar a procura de um signo ainda imune aos hábitos de


linguagem que gostaria de descartar, o poema de Manuel Bandeira
traz ao primeiro plano um componente essencial da linguagem
simbólica, que é a regra de uso estabelecida para sua interpretação. É
sobre ela que atua criticamente o artista, num processo retórico de
atualização e ajuste do código, em busca dos signos mais adequados
45

para traduzir a figurada experiência da apreensão do seu objeto,


quando as formas ditadas pela norma já não cumprem plenamente sua
função expressiva (2012. p. 35)

Um outro poema que tematiza as diversas representações simbólicas do nosso


satélite é Esta lua7, de Sérgio de Castro Pinto. O eu-lírico elenca várias representações,
vários símbolos, várias leituras em um jogo em que a lua está nas coisas e as coisas
estão na lua. É “esta lua turca cai feito uma luva/ na praia da urca, na pedra da gávea.”;
são também “luas espetadas roletes de cana, de néctar,/ redondas, feéricos buquês das
namoradas.” A lua de Castro Pinto tanto é “hóstia andante de uma irmã de caridade”,
quanto “lua trânsfuga, doudivanas, tresloucada,/ dos bêbados, das putas, dos
pederastas.”

Nessas leituras do poema Nesta lua, assim como em Satélite, há um


protagonismo da representação simbólica: construção, negação e a necessidade de
novos símbolos. Lembramos o óbvio: só pode haver transgressão se houver a norma, a
convenção, o símbolo; uma das forças criadoras da arte é subverter esses símbolos, criar
novos paradigmas, nos fazer enxergar novas luas.

2.4. Terceira tricotomia

A terceira tricotomia diz respeito a relação entre o signo e o seu interpretante.


Nessa classificação o signo pode ser um rema; um dicente (ou dicissigno); ou um
argumento. Como toda a teoria de Peirce, essa tricotomia também se estabelece a partir
de suas categorias universais. Logo o rema está em uma primeiridade; o dicente em uma
secundidade e o argumento em uma terceiridade. Um rema, segundo Peirce é:

um Signo que, para seu Interpretante, é um Signo de Possibilidade


qualitativa, ou seja, entendido como representando tal e tal espécie de
Objeto possível. Todo Rema fornecerá, talvez, alguma informação;
mas não é interpretado como destinado a fazê-lo (1975. p. 102)

O rema é tido como um signo de possibilidade qualitativa, é o signo com


menor grau de complexidade dessa tricotomia, traz alguma informação, mas não afirma

7
CASTRO PINTO, Sérgio. A flor do gol. São Paulo: Editora Escrituras, 2014. p. 43-45.
46

nada sobre o seu objeto, não se pode dizer se essa informação é verdadeira ou falsa, por
exemplo. Se eu digo a palavra “céu”, não se pode tecer um julgamento de certo ou
errado, verdadeiro ou falso.

O dicissigno é uma proposição simples sobre o objeto que representa, é “a


unidade mínima para exprimir ideias que podem ser ou verdadeiras ou falsas” (Nöth,
1975. p.88). Na definição de Peirce:

Um Dicente é um signo que, para seu Interpretante, é Signo de


existência concreta. Não pode, consequentemente, ser um ícone,
porque este não fornece base para sua interpretação, como referindo-
se a uma existência concreta. Um Dicissigno envolve, como parte dele
e necessariamente um Rema para descrever o fato que se entende que
indique. Trata-se, porém, de uma peculiar espécie de Rema; e embora
seja essencial para o Dicsigno, de nenhuma forma o constitui. (1975.
p.102)

Se pensarmos na frase “O céu é azul”, podemos observar que é possível


afirmar se essa informação é verdadeira ou falsa, se concordamos ou discordamos. No
caso do argumento, há um raciocínio mais extenso, mais complexo. Peirce afirma que
“um argumento é o signo que, para seu Interpretante, é um Signo de lei” (1975. p.102).
Retomando, “céu” é um rema; “o céu é azul” é um dicissigno e “O céu é azul, pois a
atmosfera serve como um prisma, no qual os raios solares colidem com as moléculas de
ar, água e poeira e são responsáveis pela dispersão do comprimento de onda azul da
luz8.” é um argumento.

Ferraz Júnior destaca que os argumentos só podem ser encontrados nos signos
verbais. Segundo o autor:

No campo do não-verbal, uma pintura figurativa, por exemplo, pode


sugerir ou evidenciar muitas coisas, mas em si mesma, nada pode
asseverar, constituindo-se, portanto num signo remático. Mesmo obras
como Guernica, de Pablo Picasso, cuja mensagem é sabidamente de
denúncia e repúdio às cenas que retrata, ou A liberdade guiando o
povo, de Delacroix que exalta alegoricamente determinados valores
revolucionários, não podem senão mostrar suas figuras e personagens,
e precisar ser traduzidas em outros signos quando pretendemos
explicitar relações causais entre os fatos ali representados, ou
manifestar nossos próprios juízos sobre eles. (2012. p. 27)

8
http://www.sofisica.com.br/conteudos/curiosidades/ceu_azul.php. Acesso em agosto de 2016
47

Por fim, esclarecemos que classificar as obras artísticas a partir das tríades
peirceanas não é um objetivo em si mesmo, não é um fim. A teoria instrumentaliza para
as leituras e análises das obras, sendo, portanto, muito mais um ponto de partida que
uma chegada. Identificar categorias teóricas presentes em alguma obra deve auxiliar o
analista a discorrer sobre os aspectos pertinentes que sua leitura suscita. Nesse sentido,
acreditamos que a semiótica peirceana mostra-se uma ferramenta propícia para as
análises do Neotrovadorismo na poesia de Vinicius de Moraes.
48

III A LÍRICA TROVADORESCA E SUAS RESSONÂNCIAS

Além dos esclarecimentos sobre a Teoria Geral do Signos, aporte que


utilizaremos nas análises pretendidas, discorreremos sobre o (neo)trovadorismo. Para
que possamos manter uma relativa autonomia nesta dissertação, acreditamos que seja
imprescindível refletir sobre os principais aspectos da cultura medieval Ibérica. Sendo
assim, dedicaremos este capítulo à exposição das características do trovadorismo
pertinentes à nossa pesquisa, bem como as suas atualizações na modernidade e
contemporaneidade, dando ênfase final aos estudos do Neotrovadorismo realizados no
Brasil.

3.1 Uma breve reiteração sobre o medievo

É chamada de Idade Média o período de tempo que se inicia com a queda do


Império Romano ocidental no século V, estendendo-se até o início do século XV. Ao
nos referirmos ao “medievo”, estamos nos remetendo a dez séculos na História da
humanidade. Obviamente, um período tão extenso não pode ser entendido a partir de
uma leitura simplista e aplanadora. A Idade Média não foi homogênea na sua
organização social e, por conseguinte, nas suas produções culturais.

Acreditamos que o interesse, nas últimas décadas, da universidade brasileira


nos estudos medievais aponta para o início de uma mudança no antigo olhar lançado
sobre a Idade Média, como se esse período fosse apenas um vazio que separa a Idade
Clássica da Idade Moderna. O preconceito e o desconhecimento acerca desse momento
histórico ajudou a disseminar uma ideia completamente negativa sobre a Idade Média,
conhecida, inclusive, como Idade das Trevas.

Dentro da extensão do medievo, dedicaremos nossas atenções à chamada Baixa


Idade Média, na qual destacaremos apenas as questões relacionadas ao fenômeno do
surgimento da lírica trovadoresca. Em breve definição de Moises, o trovadorismo é: “o
movimento poético iniciado no século XI, na Provença, e difundido pela Península
Ibérica, Itália e Alemanha entre os séculos XII e XIV” (1974. p. 503).

Primeiramente, chamamos atenção para os aspectos medievais indispensáveis


para a formação da lírica trovadoresca tal como a conhecemos. É importante relembrar
o fato de que ainda não existia uma distinção clara entre os campos do conhecimento
49

formal, valendo lembrar que o pensamento cartesiano só invadiria o Ocidente no século


XVII e a filosofia aristotélica viria a ser revisitada apenas no final do século XII. Ainda
não haviam distinções claras entre a literatura, a filosofia e a história. Segundo Mongelli
e Vieira:

O objeto literário, como o entendem as teorias contemporâneas – ou


seja, aquele que se serve conscientemente da faculdade criadora da
imaginação para recompor uma dada realidade com fins de fruição
artística – ainda não existe no período aqui focalizado. As “artes
poéticas” e os demais excertos delas afins, embora já anunciem a
autonomia que os estudos teóricos-literários ganharão a partir do
século XVI, estão por ora imbricados com o ensino da Filosofia, da
Teologia e das disciplinas gerais do trivium/quadrivium, mormente a
Gramática a Lógica e a Retórica. (2003. p. 11)

Ao pensarmos na poesia da Idade Média, devemos entender o seu contexto e


realizar algumas acomodações. Sabemos que durante esse período não havia imprensa,
logo não encontraremos uma produção literária como a que conhecemos a partir da
ascensão da burguesia; uma literatura voltada para a fruição individual na leitura dos
livros. Não existia uma comunidade leitora, pensando no stricto senso do texto escrito.
Eram raras as pessoas que sabiam ler, aquelas que sabiam eram, obviamente, das classes
mais abastadas: da nobreza ou do clero.

Diante disso, destacamos a importância de três aspectos fundamentais para o


entendimento da poesia trovadoresca: i) a oralidade, tendo em vista que, como já foi
dito, não havia a circulação de uma literatura escrita. A apreciação das cantigas é
auditiva, e era a partir da oralidade que se aprendiam e se propagavam as composições;
ii) a coletividade, uma vez que as cantigas eram entoadas para grupos de pessoas, tanto
na corte, quanto na vila. As canções cumpriam um papel social extremamente
importante, tendo em vista que não estavam presentes apenas nos momentos de
celebração, mas eram vinculadas aos atos religiosos, no serviço militar, nos funerais; iii)
a performance, elemento imprescindível, já que as cantigas medievais eram feitas para a
execução acompanhada por instrumentos musicais, tais como alaúde, o saltério e a
viola. Àquela época era impossível dissociar a música da poesia, o texto da melodia, o
que era dito, de como era dito. Música e poesia ainda não haviam assumido a autonomia
que nos parece natural. Tudo estava intrinsicamente ligado. Pensando nesses três
pilares, Nunes e Martins discorrem sobre a versatilidade da poesia trovadoresca:
50

Os trovadores compõem poesia destinada a ser cantada, e, portanto, a


ser escutada. Não se caracteriza apenas como literatura, mas como
uma arte total, performativa. Assim, na sua partitura de sílabas e de
notas residem rituais, coreografias, gestos, vozes, ritmos de elocução,
tanto quanto estruturas de sentido e de referências complexas. Esta
poesia põe em cena a voz e o corpo, além das palavras. (2014. p. 8)

Destacar tais aspectos torna-se fundamental para que possamos entender as


características das cantigas trovadorescas. Faz-se imprescindível, também, atentarmos
para o contexto social em que o trovadorismo surgiu. Pensando nisso, dedicaremos o
próximo tópico deste capítulo à organização feudal e ao surgimento do Amor cortês.

3.1.1 O Feudalismo e o Amor cortês

Surge, na baixa Idade Média, o Feudalismo, modelo de organização social que


perdurou até o Renascimento, sendo de fundamental importância para o surgimento da
lírica trovadoresca. Sobre o aparecimento dessa estrutura social, Spina afirma: “É
durante estes sombrios séculos IX e X que surge o Feudalismo como único meio de
defesa militar da Europa ocidental, assolada agora pelos invasores sarracenos, eslavos,
magiares e dinamarqueses.” (SPINA. 1956. p. 13)

O advento do sistema feudal constituiu um grande avanço enquanto


organização social, pois além de ajudar na proteção dos cristãos, ainda aumentou a
autonomia e o poder dos senhores feudais. Em troca do juramento de servidão dos
vassalos, o dono do feudo oferecia-lhes proteção. Instala-se, assim, uma relação
hierarquizada entre o senhor e o vassalo. O Feudalismo caracterizava-se por uma
confluência de interesses entre o Senhor dono da terra e os seus servos; esse vínculo
ficou conhecido como vassalagem. Sobre essa relação servil, afirma Carpeaux:

Os vassalos que se encontravam nas cortes dos grandes senhores


feudais da Provença dependiam do apoio econômico do senhor e da
benevolência humana da senhora. Esta, vendida ao marido, como um
pedaço de carne, encontrou nas relações com os vassalos novos
sentimentos de amizade... Mas o erotismo das relações era limitado
pelo rigor da dependência feudal. O amor dos trovadores provençais,
dirigindo-se sempre a uma dama de categoria superior, tomou a feição
de um Código Jurídico ou de um cerimonial áulico. (CARPEAUX.
1961. Apud CALADO. 2000 p 22)
51

O amor cortês surge em meio a essa organização hierarquizada do feudalismo.


Os trovadores transpuseram, então, a lógica dessa hierarquia social para as cantigas.
Surge a vassalagem amorosa, sendo o senhor dessa hierarquia a dama palaciana e o seu
vassalo o trovador, humilde, fiel e servil. Essa hierarquia entre a dama e o trovador
firma-se como um traço fundamental do amor cortês e, por conseguinte, de toda lírica
trovadoresca. Não há dúvidas da importância do trovadorismo para toda a poesia das
línguas neo-românicas, bem como nos parece claro que os fundamentos do amor cortês
ressoam até a poesia contemporânea. Podemos afirmar que o amor cortês é um marco
na história da poesia ocidental. Nunes e Martins discutem a esse respeito:

A invenção do amor é também a invenção da poesia, num sentido que


é, de facto, desconhecido dos antigos, e que a genologia romântica há-
de consagrar com o adjectivo de lírica. De tal modo é decisiva essa
dupla invenção, a do amor como sentimento exaltante e doloroso e a
da poesia como sua morada, que a própria estrutura dos géneros se
altera. (2014. p. 13)

Como afirmam os autores, “a invenção do amor” foi capaz de mudar a história


da literatura, tendo em vista que iniciou a noção de poesia com que somos
familiarizados nos dias atuais. Compagnon (2010) nos lembra que na Poética de
Aristóteles, a poesia lírica não é tratada como um dos gêneros da poiesis, porém, como
que por vingança, a lírica acaba tornando-se a poesia por completo, enquanto os outros
gêneros, tanto a epopeia quanto a tragédia, encontram seus caminhos na prosa e no
drama.

Foram diversas as circunstâncias que tornaram possível o surgimento do amor


cortês e com ele uma mudança tão radical no paradigma da relação entre homem e
mulher. Paz (1994) e Spina (1956) concordam que o Cristianismo acabara dando à
mulher uma dignidade que ela não havia desfrutado no paganismo. Outro fato
fundamental, foram os períodos de ausência dos Senhores, que saíam para defender os
aliados em guerra e eram obrigados a deixar a administração das terras com suas
mulheres, aumentando a importância e autonomia social que elas tinham. Segundo
Spina (1956) e Dronke (1978), os casamentos, via de regra, eram regidos por acordos
políticos, estratégicos, visando interesses que em nada eram ligados à afetividade.
Sendo assim, não havia um rigor extremo quanto à fidelidade de ambas as partes. Sobre
o surgimento do amor cortês, afirma Paz:
52

No século XII, na França, aparece por fim o amor, não como delírio
individual, uma exceção ou um extravio, mas como um ideal de vida
superior. A aparição do amor cortês tem algo de milagroso, pois não
foi consequência de uma pregação religiosa nem de uma doutrina
filosófica. Foi a criação de um grupo de poetas no seio de uma
sociedade reduzida: a nobreza feudal do sul da antiga Gália. (PAZ.
1994. p 69)

A evolução da condição da mulher é fundamental para o trovadorismo.


Segundo Spina: “Nos castelos esboça-se uma nova situação social criada pouco a pouco
pela mulher, que começa a ter relevo nessa organização, criando um mundo à parte, seu,
e os salões tornam-se um centro de convivência social”. (SPINA. 1991, p. 22). Como
reitera Paz (1994), a história do amor no ocidente é, também, a história da liberdade das
mulheres.

O conhecimento geral acerca do trovadorismo contempla algumas falácias;


uma delas é que não existiam mulheres trovadoras. Essa informação é normalmente
vinculada nos livros didáticos de ensino médio, geralmente referentes ao primeiro ano
dessa modalidade. Isso pode ser entendido como outro indicador sobre o
desconhecimento ou preconceito acerca do período medieval, visto que em todos os
medievalistas consultados nesta pesquisa, a presença da escrita feminina é confirmada.
Vejamos a breve observação de Paz: “Várias damas da aristocracia foram também
trovadoras. As mulheres desfrutavam de liberdades no período feudal e a perderam mais
tarde pela ação combinada da Igreja e da monarquia absoluta”. (1994. p. 72). A
condessa de Dia, é um exemplo de uma mulher que produzia cantigas, uma Trobairitz.

O amor cortês nasce nessa convivência palaciana, inclusive o “cortês” remete à


cortesia, à corte. Vale destacar que não é qualquer mulher o alvo dos cantos e das loas
medievais, a mulher merecedora do serviço dos trovadores é a dama palaciana, a dama
da corte. Paz nos esclarece a distinção entre o “amor villano” e o “amor cortês”:

O ‘amor cortês’ que reflete a diferença medieval entre corte e villa.


Não o amor villano – copulação e procriação –, mas sim um
sentimento elevado próprio das cortes senhoriais. Os poetas não o
denominaram amor cortês; usaram a expressão fin’amors, quer dizer,
amor purificado, refinado. Um amor que não tinha por fim nem o
mero prazer carnal nem a reprodução (PAZ. 1994. p. 70)
53

Apesar da sutileza dos gestos e da aparência de pureza, não podemos esquecer


que o amor cortês é sempre revestido por um caráter adulterino, visto que a dama pela
qual o trovador jurava servidão já era casada e de uma classe social acima da sua.
Entretanto, os trovadores não viam como algo pecaminoso esse amor adulterino,
segundo Paz: “Para os adeptos do amor cortês, o casamento era um jugo injusto que
escravizava a mulher, enquanto o amor fora do casamento era sagrado e conferia aos
amantes uma dignidade espiritual.” (PAZ. 1994. P. 85).

Obviamente, essa visão sobre o amor e o matrimônio gerou o


descontentamento da Igreja católica que concebe o casamento como uma união sagrada,
sendo um dos sacramentos instituídos por Jesus Cristo. Além disso, para o cristianismo
o sexo, mesmo no casamento, tinha como finalidade apenas a geração da prole,
enquanto no amor cortês o prazer dos amantes, sexual ou não, era o objetivo em si
mesmo, tanto do contato carnal quanto espiritual. A igreja criticava ainda o amor cortês
pela exaltação exacerbada da mulher amada; para a instituição, o que os trovadores
praticavam era uma idolatria, aquele amor só poderia ser dedicado ao próprio Deus.

Sobre as possíveis influências do amor cortês, existem algumas coincidências


entre o amor cortês e o platonismo, assim como há com o catarismo e mesmo com o
cristianismo. No caso do platonismo, podemos traçar alguns paralelos entre o amor
idealizado e os ideais do amor cortês, a exaltação do amor puro é bastante presente nos
dois, porém o amor dos trovadores é integral, tanto é importante o espírito, quanto a
carne. Paz explica que o contato com a tradição grega deu-se a partir da poesia árabe-
andaluza, que acabou influenciando o trovadorismo também por outros motivos:

O eixo da sociedade feudal era o vínculo vertical, ao mesmo tempo


jurídico e sagrado, entre o senhor e o vassalo. Na Espanha mulçumana
os emires e os grandes senhores haviam se declarado servidores e
escravos de suas amadas. Os poetas provençais adotam o costume
árabe, invertem a relação tradicional dos sexos, chamam a dama de
sua senhora e se confessam seus servos. (PAZ. 1994. p. 74).

A exaltação da mulher, o elogio à beleza física da amada e o culto à castidade


são alguns pontos de interseção entre a poesia árabe e o amor cortês. Também existem
coincidências entre o Catarismo e a lírica trovadoresca. Durante um período da Idade
Média, houve um grande crescimento da heresia Cátara, que acabou conquistando uma
grande popularidade em todas as camadas sociais. O Catarismo foi visto como uma
54

espécie de alternativa contra os constantes abusos da Igreja católica. Os cátaros


acreditavam em uma dualidade maniqueísta interdependente; para eles, o mundo fora
criado por um Deus maligno, sendo assim, toda matéria é obrigatoriamente má,
enquanto seu par antagônico seria o espírito, completamente bom. Fica evidente a
antítese teológica em relação ao catolicismo.

Paz (1994) esclarece-nos que, apesar das interseções entre o Catarismo e o


amor cortês, é inconcebível a influência daquele neste. Ambos condenavam o
matrimônio, porém por motivos diferentes: enquanto o amor cortês condenava-o porque
era um acordo feito sem o amor, com interesses político-econômicos e, geralmente, sem
o consentimento da mulher, para os cátaros o casamento era condenável, por ter como
principal objetivo a reprodução, ou seja, a perpetuação do mal, que é a matéria. Paz
confirma a independência do amor cortês em relação às suas possíveis influências:

Entre o amor cortês e o catarismo há pontos de contato que também


existem com o cristianismo e a tradição platônica. Essas afinidades
são naturais: o assombroso e significativo é que o amor cortês desde o
princípio tenha se manifestado de maneira independente e com
características que proíbem confundi-lo com as crenças dos cátaros ou
com os dogmas da Igreja católica. (PAZ. 1994. p. 83)

O amor cortês entende o amor como um fim nele mesmo, um próprio sentido, e
não como um meio de transcender para divindade. O fins’amor não é apenas erotizado,
no sentido de que o prazer imediato da carne seja o objetivo, ou o fator mais importante,
também não podemos afirmar que é um sentimento meramente espiritual. O amor para
os trovadores era o amor integral, o puro e o da carne, o da razão e o sensorial. Segundo
Spina: “Se por um lado a canção provençal é um hino ao amor puro, nobre, inatingível,
por outro sentimos constantemente pulsar nas camadas subjacentes da inspiração
trovadoresca o amor carnal”. (SPINA. 1956. p. 22)

Sobre a consumação sexual no amor cortês, Paz (1994) atenta para um fato
confirmador a esse respeito. A alba é um subgênero da cantiga de amigo, na qual os
amantes são avisados de que o dia nasceu por um mensageiro, geralmente pássaros, e
lamentam a chegada da aurora, pois com ela vem a separação do casal. A alba deixa-nos
evidente a presença sexual dentro do amor cortês, porém existe um extenso caminho
para chegar a concretude carnal, e ainda assim não se faz obrigatório a consumação
55

física desse amor, tendo em vista que o grande valor do amor não estava no ato sexual
em si.

Sobre o serviço do trovador para sua dama, Paz (1994) afirma que existem três
graus. No primeiro grau, o trovador já devota seu amor e fidelidade à dama, porém
ainda não conseguiu declarar-se para a amada, esse é o Pretendente. No segundo grau,
chamado de Suplicante, o trovador já se declarou à sua amada e esta, mostrando-se
favorável ao amigo, entrega-lhe um objeto pessoal, como uma luva ou uma joia. No
terceiro grau, o trovador torna-se Aceito, transformando-se em amante da dama (drudo).
Este último estágio não implica, obrigatoriamente, no ato sexual.

Como bem nos lembra Nunes e Martins, “o termo servir entra nas línguas
românicas como sinónimo de amar.” (2014. p. 11). O trovador deseja servir à dama, fiel
e pacientemente, sendo sua satisfação o próprio ato de servir. O amor cortês exige,
necessariamente, parcimônia, gentileza e mesura. O serviço amoroso é um processo de
devoção total e irrestrito do trovador para com a dama; segundo Spina: “é a religião dos
trovadores, um verdadeiro culto à mulher, que prevê a observância de todo um
complexíssimo ritual”. (SPINA. 1991. p. 359). Nesse serviço existe um período
probatório a que o trovador é submetido. Paz nos esclarece sobre esse teste:

A ideia de que o amor é uma iniciação implica que é também uma


prova. Antes da consumação física havia uma etapa intermediária que
se chamava assag ou assai... O assai abrangia, por sua vez, vários
graus: assistir ao levantar e ao deitar da dama; contemplá-la desnuda
(o corpo da mulher era um microcosmo e em suas formas se fazia
visível a natureza inteira com seus vales, colinas e florestas). Enfim,
penetrar ao leito com ela e entregar-se a diversas carícias, sem chegar
à final. (1994. p. 82)

Um conceito fundamental para o amor cortês é a joi d’amour. Segundo Spina


(1956), a joi não era apenas a mera satisfação do gozo, era um ápice sensorial, mental e
espiritual. Trata-se da felicidade e plenitude supremas, inalcançáveis por outro meio que
não fosse a devoção à dama, ao amor cortês. A única forma de tentar representar tal
sentimento só poderia ser feita através da arte. A joi era uma imensa força de criação
para o trovadorismo. A qualidade da composição artística estava diretamente
relacionada ao tamanho do arrebatamento provocado por esse amor, quanto mais
próximo a joi d’amour mais perfeita seria a composição realizada pelo trovador.
56

O amor cortês se estabelece, ainda, como um código estético e comportamental


para os trovadores. A moderação, o equilíbrio, a capacidade de controlar os arroubos da
paixão são fundamentais para o trovador. André, o Capelão, no livro De amore,
enumera doze regras que orientam o amor puro:

I. Foge da avareza, como de uma peste nociva, e abraça o seu


contrário.
II. Deves conservar a castidade para a tua amada.
III. Não tentes perverter uma mulher que sabes estar idoneamente
unida ao amor de outro.
IV. Não procures eleger o amor daquela com a qual o pudor natural te
impede de contrair núpcias.
V. Lembra-te de evitar completamente o engano.
VI. Não queiras ter muitos confidentes do teu amor.
VII. Esforça-te por te agregares à milícia do amor, obedecendo sempre
a todos os preceitos das damas.
VIII. Ao oferecer e receber os prazeres do amor, o pudor deve estar
junto à vergonha.
IX. Não deves ser maledicente.
X. Não queiras ser o propagador dos segredos dos amantes.
XI. Mostra-te educado e cortês em todas as ocasiões.
XII. Quando te entregares aos prazeres do amor, não te sobreponhas
aos desejos da tua amada.
(MONGELLI; VIEIRA. 2003. p. 65-66)

Podemos observar as diversas interseções entre as regras acima e os preceitos


do amor cortês. O comedimento, a valorização da amada, a discrição e a retidão de
caráter mostram-se semelhantes nos ensinamentos de André, o Capelão, e na prática do
amor cortês. Os trovadores prestavam devoção completa às suas damas. O amor cortês
concedeu à mulher a apreciação total de sua figura, tanto no plano estético, quanto no
plano subjetivo. Paz (1994) afirma que o uso do senhal, masculinizando o tratamento da
dama, não servia apenas para não revelar o seu nome, mas para conferir-lhe a posição
superior na hierarquia amorosa, revertendo o poder social masculino para a dama.

Entender essa relação entre o trovador e a dama, bem como os principais


fundamentos do amor cortês, faz-se imprescindível para que possamos analisar a relação
entre as cantigas trovadorescas e a poesia de Vinicius de Moraes. Outro ponto essencial
57

é conhecer as características dos diversos gêneros de composição dos trovadores, a estas


características dedicaremos o próximo ponto deste capítulo.

3.1.2Os trovadores e os gêneros trovadorescos

Nos nossos dias, ao nos referirmos ao trovador, lembramos a figura do artista


popular, talvez, mais vinculada ao jogral. Porém, vale lembrar que o trovadorismo nasce
em meio à refinação da aristocracia, e, inicialmente, suas obras não tinham um cunho
popularesco. Acerca desse fato, Maleval afirma:

Lembrando que por Trovadorismo é nomeada, na Idade Média central,


a produção dos fidalgos trovadores, regida por normas rígidas
coligidas nas Artes de trovar, em tudo diversa do que hoje se entende
por “trova”, composição de cunho popular, de versos curtos,
geralmente redondilhos. Essa produção medieva, feita para ser
musicada e cantada, ou até dançada, denominou-se “cansó” nos
territórios localizados ao sul da hoje França e “cantigas” na Península
Ibérica. (MALEVAL. 2002. p. 13)

Sobre a figura do trobadour, é importante destacar que não havia apenas um


único modelo desse artista ligado à palavra cantada. Há algumas distinções, inclusive de
cunho hierárquico, entre eles, que poderiam corresponder ao jogral, ao menestrel e ao
segrel. Calado (2000) nos esclarece sobre tais diferenças:

O trovador era considerado o artista completo, quase sempre de


linhagem nobre, que compunha e interpretava suas cantigas sem
receber para isso. Os jograis, pertencentes a uma classe social inferior,
eram artistas itinerantes, que exerciam funções variadas. Podiam ser
saltimbancos, atores, mímicos, apresentadores de marionetes ou
animais adestrados, e também músicos, compositores. O menestrel era
um tipo de jogral, que tinha trabalho estável. Era ligado a uma corte e
encarregado de entreter a alta nobreza, interpretando as poesias
escritas pelos trovadores. Eles raramente compunham. (2000. p. 21)

A poesia trovadoresca permeava todas as camadas sociais, os trovadores,


advindos da nobreza, consideravam indigno receber pela sua atividade artística,
enquanto criticavam os menestréis que recebiam seus soldos das cortes onde estavam
vinculados. Um fator interessante para observarmos é que, independentemente da classe
social a que pertenciam, os trovadores têm grande importância para leitura daquela
época. Sobre tal relação, Calado discorre:
58

Criando e divulgando sua cultura, os poetas medievais deixaram um


importante legado para a história da literatura, da mesma forma que
desempenharam um papel relevante na interpretação histórica da
sociedade ocidental. Refletores dos fatos sociais, e não meros
documentos históricos, seus textos literários mostram a relação de
interdependência entre literatura e sociedade na Idade Média.
(CALADO. 2000. p. 24)

Paz (1994), Calado (2000) e Spina (1956) concordam que a maioria dos
trovadores eram profissionais e seus cantos não retratavam, necessariamente, suas
experiências pessoais, refletiam também uma doutrina estética e ética. As cantigas
trovadorescas, apesar de não terem como objetivo o retrato da sociedade, esclarecem-
nos acerca de uma visão sobre o medievo, ainda que seja para contrapor às perspectivas
literárias e históricas. Sobre as biografias dos Trouvères e dos Trobadours, são poucos
os trovadores que se pode encontrar relativa riqueza de informações sobre suas vidas
pessoais, apenas de artistas da dimensão de D. Dinis, Guilhem de Poitiers ou Gui de
Cavalhon, porém, como afirmam Nunes e Martins:

Quando passamos aos trovadores de menor condição (a maioria dos


“profissionais”), os dados escasseiam. Os estudiosos costumam guiar-
se pelos dados extraídos dos próprios poemas, o que pode ser ajustado
nos casos dos sirventeses pessoais e políticos, mas que é fantasioso
quase sempre. (2014. p. 9)

Na Idade Média, além das cantigas dos trovadores, existiram textos em prosa,
tanto com o cunho historiográfico quanto com o caráter ficcional, lembrando das
novelas de cavalaria sobre as lendas do ciclo arturiano. Entretanto, tendo em vista o
escopo de nossa pesquisa, nos deteremos apenas nas cantigas trovadorescas.

A cantiga mais antiga que se tem registro é a Cantiga de Guarvaia, também


conhecida como A ribeirinha, composta por Paio Soares de Taveirós em 1198. Porém,
não se pode afirmar com isso que essa tenha sido, realmente, a primeira cantiga
produzida, apesar de ser considerada o primeiro documento literário de nossa língua.
Moises (1976. p. 15) afirma que muito provavelmente foram compostas cantigas
anteriores à Ribeirinha, porém nenhuma delas chegou a ser documentada.

As cantigas trovadorescas são divididas por gêneros e subgêneros, visando as


temáticas, a composição formal, o gênero do eu-lírico e a ambientação. Os principais
gêneros trovadorescos são a cantiga de amor, a cantiga de amigo (e seus subgêneros), a
59

cantiga de escarnio, a cantiga de mal dizer e tenção. Nos próximos tópicos,


discorreremos sobre os principais gêneros da lírica trovadoresca.

3.1.2.1 Cantiga de amor

Segundo Travani (2002), a canso surgiu na Provença no fim do século XII


como o principal meio de propagação dos ideais do amor cortês dos trovadores. A
cantiga de amor, como o próprio nome sugere, tem como tema principal o amor entre o
trovador e a dama, em geral um amor não correspondido, um sentimento pelo qual o
trovador sofre, porém não evita esse sofrimento. É comum, também surgirem temas
relacionados à natureza primaveril e à morte. Em breve definição, Maleval afirma sobre
o cantar de amor:

Nas cantigas de amor, masculinas, o trovador expressa via de regra a


sua renúncia ou sua dor, a sua coita, provocada pela sintomatologia
amorosa e pela indiferença, pela falta de mercê da dama, da senhor
inalcançável; desta louva as virtudes e a beleza sem par, mas sem
particularizar-lhe o físico: sabemos que é jovem, esbelta (“delgada”) e
clara (“alva”). (MALEVAL. 2002. p. 15)

O elogio à amada e o sofrimento que este amor causa são os dois principais
campos semânticos dessas cantigas, o tema da Dame sans merci, ou seja, a
incorrespondência da amada, está muito presente no amor cortês. O eu-lírico devota-se à
dama integralmente e sofre com sua recusa, porém há um certo prazer na ostentação
desse sofrimento, como muitos anos depois canta o neotrovador Vinicius de Moraes em
Canto de Xangô (1966) “Amar é sofrer/ Mas amar é morrer de dor (...) Me faça sofrer/
Ah me faça morrer/ Mas me faça morrer de amar”. Podemos observar as características
citadas na cantiga de Martim Soares:

Senhor fremosa, pois me non queredes


creer a coita'n que me ten Amor,
por meu mal é que tanbenparecedes
e por meu mal vos filhei por senhor,
e por meu mal tan muito benoí
dizer de vós, e por meu mal vos vi:
pois meu mal é quanto ben vós havedes.

E pois vos vós da coita non nembrades


nen do afán que mi o Amor faz sofrer,
por meu mal vivo máisca vós cuidades,
e por meu mal me fezo Deus nacer
60

e por meu mal monmorrí u cuidei


como vos viss', e por meu mal fiquei
vivo, pois vós por meu mal ren non dades.

Desta coita en que me vós tẽedes,


en que hoj'eu vivo tansen sabor,
que farei eu, pois mi a vós non creedes?
Que farei eu, cativo pecador?
Que farei eu, vivendo sempre assí?
Que farei eu, que mal díanací?
Que farei eu, pois me vós non valedes?
(CBN 158, CA 46.)

Na cantiga acima, observamos a regularidade no plano formal, sendo três


estrofes de 7 versos, todos decassílabos. Lembrando que a regularidade dos versos e das
rimas tem importância fundamental no trovadorismo, uma vez que os textos são
cantados. Na cantiga de Soares, fica evidente o sofrimento provocado pela não
retribuição amorosa da dama; há um desengano e uma apreensão pelo futuro do eu-
lírico nas repetições do “Que farei eu”. O uso do vocativo “Senhor fremosa” também é
algo bastante presente nas cantigas de amor trovadorescas. Como já foi mencionado
neste capítulo, além de preservar a identidade da amada, o uso do Senhor enaltece a
dama.

3.1.2.2 Cantiga de amigo

As cantigas de amigo têm como principal característica o eu-lírico feminino. A


principal temática destas cantigas é a saudade, são geralmente um lamento pela ausência
do amigo. Além do gênero do eu-lírico, a cantiga de amigo diferencia-se da cantiga de
amor por retratar uma ambientação campesina ou urbana longe da corte, enquanto o
cantar de amor caracteriza-se pelo ambiente palaciano, pelo seu caráter aristocrático.
Calado afirma sobre o cantar feminino:

Num universo estritamente feminino, longe inclusive da figura


paterna, a Cantiga de Amigo se desenvolve com o desabafo amoroso
de uma donzela, ora a uma amiga ou irmã; ora à sua mãe, que nem
sempre é conivente com ela; ora ao próprio namorado ou amante,
numa espécie de debate amoroso; algumas vezes, o desabafo é
dirigido às ondas do mar ou ao rio. (CALADO. 2000. p. 25)
61

É muito comum nessas cantigas a presença de uma confidente com quem a


amiga dialoga sobre suas saudades, podendo ser a mãe, a irmã, ou ainda a
personificação de alguns elementos da natureza, como os pássaros, o mar ou um rio.
Comumente, a voz do eu-lírico, nesses textos, é de uma mulher ainda solteira,
diferentemente das damas citadas na cantiga de amor. As cantigas de amigo são
divididas em alguns subgêneros, levando em consideração, principalmente, as
ambientações e as questões temáticas. Segundo Spina (1956) e Travani (2002), os
cantares de amigo podem ser dos tipos: cantar de Romaria; barcarola; alba; pastorela e
bailada.

No cantar de romaria, a amiga convida companheiras para seguir em procissão


na busca por seu amado. É comum nessas cantigas os pedidos pelo regresso do amigo,
bem como pela sua proteção. Nessas cantigas é frequente a aparição de símbolos
religiosos, como santuários.

O que difere a barcarola (ou marinha) das demais cantigas de amigo é o


elemento hidrográfico. A amiga vai para o leito do rio ou para a beira do mar chorar
pela distância do namorado, lamentar sua ausência e rogar pelo seu retorno, tendo em
vista que a partida de seu amado era raramente por terra. Vejamos o trecho da cantiga
Ondas do mar de Vigo, de Martin Codax:

Ondas do mar de Vigo


se vistes meu amigo?
e ai Deus, se verrá cedo?
Ondas do mar levado
se vistes meu amado?
e ai Deus, se verrá cedo?
(DE VASCONCELLOS. 1921)

Assim como nos outros gêneros das cantigas, o principal tema da barcarola é o
sofrimento provocado na amiga pela separação do namorado. Na cantiga acima, o mar é
o confidente da amiga. Nesses textos é comum o eu-lírico pedir notícias de seu amigo
aos mares e aos rios, cúmplices de sua aflição.

A alba (ou alva) é o gênero no qual a amiga lamenta a chegada do amanhecer,


que traz com ele a separação dos amantes. Como já foi referido nesta dissertação, a alba
é revestida por um caráter adulterino. A mulher, já casada, encontra-se com seu amigo
às escondidas para passarem a noite juntos, geralmente esse encontro é ambientado nos
62

jardins, local símbolo dos prazeres. Na cantiga, um mensageiro — podendo ser um


pássaro, como o rouxinol ou a cotovia — avisa ao casal do nascer do dia, levando à
queixa dos amantes por mais uma separação.

O gênero pastorela retrata o diálogo entre um cavaleiro e uma pastora, porém


nem sempre é considerado como uma cantiga de amigo, segundo Calado: “A pastorela
é incluída ora entre as cantigas de amigo, ora entre as cantigas de amor, dependendo do
diálogo em que o cavaleiro tenta conquistar uma pastora” (2000. p. 25). Dentro de um
ambiente mais rústico, além da tentativa de conquista do cavaleiro, na pastorela
também são reincidentes as declarações de amor de uma pastora por seu amigo.

As bailadas (ou bailas), como o próprio nome já sugere, são cantigas


compostas para cantar e dançar. Nesse gênero as amigas podiam utilizar a dança para
atrair os cavaleiros, também era comum conversações entre mãe e filha.

3.1.2.3 Cantigas de escárnio e maldizer

No trovadorismo, além dos cantares líricos, existiam as cantigas satíricas, essas


poderiam ser de escárnio ou maldizer. Nessas composições, os trovadores agiam de
modo crítico, irônico e burlesco. Atacavam as normatividades do clero, os costumes dos
nobres, satirizavam outros trovadores, prostitutas, cavaleiros. Segundo a maior parte da
literatura acerca do trovadorismo as cantigas de escarnio são aquelas em que o trovador
utiliza-se de jogos de palavras, ambiguidades; são os textos que o entendimento não é
imediato, também não se revelam a identidade da pessoa satirizada. Já a cantiga de
maldizer são consideradas textos mais cruéis, tendo em vista que atacam diretamente o
seu alvo, sem margem para outros entendimentos. O trovador abandona as figuras de
estilo do escárnio e ataca diretamente quem quer que seja, inclusive podendo nomeá-la.

Sendo assim, as cantigas de escárnio são aquelas que obscurecem o


entendimento direto, enquanto as cantigas de maldizer são um ataque franco e direto.
Tavani problematiza essa aparente clareza nas distinções entre essas duas cantigas.
Segundo o autor:

Uma distinção, portanto, que é baseada na posição palavras cobertas


— descobertamente, isto é, na distinção entre palavra que têm dous
entedimentos e palavras que não têm outro entendimento se no aquel
que querem dizer chãamente: uma distinção bastante ambígua, que
63

pode resultar muitas vezes, de difícil aplicação na prática: e não só a


nós, leitores de hoje, como também ao compilador do subarquétipo α,
visto que algumas rubricas redigidas por ele denunciam a sua
relutância em aventurar-se a classificações demasiado precisar. É o
caso de B 1622, apresentado com a fórmula ambígua “Affonsso
Soarez Samça fez esta cantiga d’escaho’e maldizer, e diz assy”, não
obstante tratar-se de um único texto, que aliás se pode reconhecer —
sem incertezas — como uma cantiga d’escarnho; e encontramos, pelo
menos, mais cinco rubricas análogas no Cancioneiro Colocci-
Brancuti, todas elas atribuídas a uma única composição, que portanto
foi definida genericamente pelo organizador da colectânea como
cantiga d’eescanh’e maldizer, sem ulteriores discriminações. (2002. p.
233, 234)

O autor atenta que nas próprias rubricas dos cancioneiros existem diversos
casos que os estudiosos que compilaram as cantigas não conseguiram aplicar a distinção
entre a cantiga de escárnio e a cantiga de maldizer. Sendo assim, Travani prefere tratar
essas cantigas como um gênero único: cantigas d’escarnh’e maldizer.

3.1.2.4 Tenção

A tenção, gênero incialmente cultivado na Provença, tinha como principal


característica o embate poético entre dois trovadores acerca de um determinado tema,
segundo Travani: “trata-se de uma composição em forma de diálogo, elaborada
simetricamente por dois poetas que, empenhados em ilustrar e defender cada um a sua
tese e em refutar a do adversário, se vão alternando de cobra em cobra.” (2012. p. 264).
Apesar de não haver uma forma fixa determinada, exigia-se do trovador que repetisse
perfeitamente as rimas e a métrica que fizera o seu desafiante. As tenções poderiam
versar sobre várias temáticas, porém o assunto mais abordado eram as temáticas
amorosas.

Segundo Calado (2000), conhecida como tençon no norte da França, essa


modalidade alcançou uma popularidade maior do que no sul. Havia uma variante da
tençon, chamada de partimen, na qual “um dos debatedores dá a escolha a seu
interlocutor entre duas hipóteses, e cuida em defender automaticamente o partido
inverso.” (2000. p. 41). Outra variação desse gênero era a tenção de escárnio e de mal
dizer, na qual os poetas realizam uma disputa, criticando os mal feitos do desafiante,
trocando insultos e ironias.
64

Além de esclarecer os principais aspectos do trovadorismo, julgamos


necessário discorrer sobre os ecos dessas características na modernidade, assim sendo,
dedicaremos o próximo tópico deste capítulo ao Neotrovadorismo.

3.2 Neotrovadorismo

Nas últimas décadas, podemos observar o crescimento do interesse dos estudos


acadêmicos pela poesia medieval, bem como suas atualizações na modernidade e
contemporaneidade. Renegada durante bastante tempo, a literatura trovadoresca parece
ter ganho o espaço merecido aos olhos de poetas, músicos e pesquisadores. Nesse
sentido, podemos destacar como exemplo as contribuições trazidas por Pound, como
afirma Augusto de Campos:

Parece-me que não será demais asseverar que foi Pound também o
“inventor” da poesia provençal em nossos dias. Não que esta fosse
propriamente desconhecida antes que dela se ocupasse o grande poeta
norte-americano. Mas a verdade é que, antes de Pound, o estudo dos
trovadores provençais estava mais ou menos confinado a especialistas,
a eruditos que prestavam excelentes serviços às letras no setor da
pesquisa, do levantamento e da interpretação dos textos, mas que
jamais os vislumbravam sob uma perspectiva inteiramente nova e
crítica. (1968. p. 7)

Augusto de Campos, bem como seu irmão Haroldo de Campos, também


dedicaram-se à pesquisa e à tradução — ou recriação poética — dos poetas provençais,
resultando em volumes como o Mais provençais (1987) e o Traduzir e Trovar (1968).
Além dos estudos que se dedicam à poesia medieval, vale destacar as pesquisas
acadêmicas que estudam as marcas da literatura trovadoresca na arte moderna e
contemporânea. O Neotrovadorismo, na breve definição de Maleval:

Tal movimento neotrovadoresco – se é que podemos assim


caracterizá-lo, uma vez que sem manifestos ou outro tipo de
doutrinamento – não fora meramente saudosista do esplendor passado.
Embora heterogêneo, pode ser definido como, na síntese de Xosé
Manuel Enríquez, uma “recriación do universo poético medieval
(ambiente e recursos formais: paralelismo, refrán, leixa-pren...) com o
espírito do século XX” (MALEVAL, 2002. p. 21)
65

O Neotravodorismo não pode ser lido como uma mera repetição da poesia dos
trovadores, ele é, antes de tudo, um diálogo entre uma tradição secular e as liberdades
conquistadas pelas vanguardas de todas as épocas. Os textos neotrovadorescos resgatam
uma grande tradição poética ignorada por séculos, porém podem — e o fazem —
inovar, atualizar, transgredir os textos medievais. Citamos, como exemplo do referido
diálogo, um trecho do poema Garoa de meu São Paulo, de Mário de Andrade:

Ruas do meu São Paulo


Onde está meu amor vivo,
Onde está?
Caminhos da cidade,
Corro em busca do amigo
Onde está?
Ruas do meu São Paulo
Amor maior que o cibo
Onde está?
(2013. p. 55)

Andrade tece seu diálogo com a cantiga Ondas do mar de Vigo — já citada em
nossa pesquisa como um exemplo do gênero barcarola—. No plano formal, é possível
observar a mesma reiteração paralelística da cantiga de Martin Codax. A temática da
saudade, do abandono, da procura pelo amado, tão presente nas cantigas de amigo, é
trazida pelo poeta e ambientada na metrópole paulista. Para entendermos melhor sobre
esse diálogo com a poesia dos trovadores, faz-se necessário conhecermos um pouco de
sua origem, bem como suas motivações na poesia galega e portuguesa. Dedicaremos o
próximo ponto a esses esclarecimentos.

3.2.1 O Neotrovadorismo na Galícia e em Portugal

O termo Neotrovadorismo foi utilizado a primeira vez em 1933, pelo professor


Manoel Rodrigues Lapa em carta destinada a Fermín Bouza Brey. Desde então, o termo
vem sendo utilizado na Galícia, em Portugal e, posteriormente, no Brasil para designar
as recriações da poesia trovadoresca.

O surgimento do movimento Neotrovadoresco está intimamente ligado às


questões identitárias da Galícia, e sua aparição acontece em um momento de lutas pela
autonomia da região galega. Segundo Maleval:
66

O neotrovadorismo galego inscreve-se nos movimentos de


afirmação das identidades regionais reprimidas em maior ou menor
grau desde o advento das Nações, observadas na atualidade, a par
dos avanços tecnológicos que tornam cada vez mais possível a
internalização da cultura. Constituem verdadeiros bolsões de
resistência à descaracterização político-cultural, fragmentando o que
parecia tendente a desaparecer na globalização aludida, retrocedendo
às origens medievais, quando se forjavam as línguas do Ocidente,
fatores por excelência de identidade de cada povo. (MALEVAL,
1999, p. 24).

Influenciados, também, pelas lutas identitárias, os poetas neotrovadorescos


buscavam o diálogo e a valorização de uma tradição literária anterior à formação das
nações modernas. López (1997) considera como fundamental a renovação poética dos
neotrovadores galegos para a redescoberta da poesia medieval. Segundo a autora, a
solidificação do Neotrovadorismo pode ser considerada a etapa final de um processo de
resgate e reconhecimento da poética medieval, que teria sido iniciada com as notícias da
existência material dos cancioneiros. (LÓPEZ. 1997. p. 7). Na literatura
neotravadoresca galega, destacam-se nomes como Álvaro Cunqueiro e Fermín Bouza
Brey.

Na tradição literária portuguesa, muitas são as incursões pelo medievo,


segundo Spina: “A própria gentil senhora dos sonetos camonianos não é mais que uma
sobrevivência da pseudonímia poética dos trovadores, que na observância à mesura,
criaram o retrato ideal da criatura amada”. (2006. p. 19). Na obra de Fernando Pessoa,
encontramos o poema “D. Dinis”, poesia em homenagem ao rei trovador, figura
fundamental na literatura ibérica.

Segundo Lourenço (1982), a saudade e a melancolia são sentimentos capitais


na formação do povo português, uma nação que precisa lançar-se ao mar para recuperar
o que perdeu, para reencontrar-se. Observamos os ecos dos lamentos das cantigas
trovadorescas em uma quantidade substancial na poesia portuguesa, citamos como
exemplo um trecho do poema Mar português, do próprio Fernando Pessoa:

Mar português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
67

Para que fosses nosso, ó mar


(PESSOA, 2006)

Assim como na barcarola medieval, o eu-lírico dirige-se ao mar e o questiona


sobre suas saudades. No poema de Pessoa, as ausências lamentadas vão além da
separação dos amigos, das “noivas que ficaram por casar”, são, também, as mães que
ficaram sem filhos; são, ainda, as lágrimas de uma nação que busca completar-se em
outras conquistas, que busca restaurar-se na conquista dos “perigos” e “abismos” do
mar.

Dentro da poesia considerada como neotrovadoresca, existem várias


possibilidades de diálogo com o medievo, seja emulando os aspectos formais,
recorrendo às temáticas comuns ao trovadorismo, ou reproduzindo na poesia moderna
os símbolos marcadamente medievais. Existem autores que fazem verdadeiras
recriações das cantigas trovadorescas, recorrendo à língua arcaica, utilizando a
estrofação igual aos poemas medievais, enquanto em outros autores encontraremos
apenas ecos, ressonâncias das temáticas poetizadas no trovadorismo. Atenta a essas
possibilidades, López descreveu a seguinte tipologia:

1) aquel que reproduz mimeticamente os modelos da poesia medieval;


2) aquel que recria a atmosfera, ambiente, símbolos, estrutura e
procedimentos de tipo paralelístico, que obrigan a ler estes textos en
confronto co a lírica medieval;
3) aquel que utiliza fórmulas e estilemas medievais, ben polo seu
carácter falsamente popular e/ou exótico para construir imaxes
vanguardistas (simbolistas, criacionistas e mesmo surrealistas) ben
polo carácter lúdico dentro das correntes neopopularistas de
vanguarda (LÓPEZ, 1997, p.30-31)

Apesar da importância da tipologia traçada por López, Cunha (2008) identifica


alguns problemas de aplicabilidade na classificação acima. Para a autora, existem
dificuldades para diferir claramente entre as duas últimas categorias, atentando para o
fato de que em várias composições elas coexistem. Além disso, Cunha destaca as
composições “cuja forma e musicalidade nos remetem, de imediato, para os códigos
fónico-rítmicos explorados pelos trovadores medievais, sem que haja, ao nível temático,
qualquer aproximação” (2008. p. 10). Essas composições não são contempladas pela
tipologia de López. Diante disso, Cunha propõem uma revisão da primeira tipologia:
68

1) composições que evidenciam uma reprodução mimética, onde,


aliando os temas à forma, encontramos uma reprodução quase perfeita
das cantigas trovadorescas;
2) composições onde se evidencia a referência ao universo
trovadoresco, através do reavivamento dos seus símbolos e
personagens, versos ou expressões, que podem variar entre uma ou
mais referências (incidindo a sua manifestação no plano temático ou
vocabular);
3) composições que manifestam uma aproximação formal muito
evidente, evocando, de imediato, no leitor a sonoridade da lírica
medieval, estatuindo, porém, um efeito de estranhamento anacrónico,
uma vez que, ao nível temático, se distanciam das referidas cantigas.
(CUNHA. 2008, p 10)

Pensando na tipologia proposta por Cunha, acreditamos que Vinicius de


Moraes estaria enquadrado no segundo grupo, uma vez que o autor dialoga com a
tradição trovadoresca a partir da atualização de conceitos como a coita d’amor, sem,
entretanto, reproduzir os aspectos formais da lírica trovadoresca, como a finda, o refran
e o leixa-pren. No tópico a seguir, discorreremos sobre a presença do Neotrovadorismo
no Brasil, bem como alguns dos estudos sobre o tema.

3.2.2 O Neotrovadorismo no Brasil

O termo Neotrovadorismo foi trazido aos estudos medievais brasileiros pela


professora Maria do Amparo Maleval. Um dos grandes nomes dos estudos medievais no
país, a autora é responsável pela criação de uma antologia dos autores brasileiros que
realizaram suas “incursões pelo medievo”. Segundo Maleval (2002), não há como
afirmar com precisão quem foi o primeiro poeta neotrovadoresco nacional, porém ela
destaca como pioneiros Onestaldo de Pennafort, Martins Fontes, Paulo Bonfim e
Augusto Meyer. A autora traz em sua antologia poetas como Guilherme de Almeida,
Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Hilda Hilst, Stella Leonardos e José Rodrigues de
Paiva. Dentre estes poetas, destacamos a consciência e a elaboração da poeta Stella
Leonardos. Vejamos um poema da autora:

DO CANCIONEIRO DA DESAJUDA

FLOR do ramo
flor do ramo:
69

ven cantiga.

“Ai flores, ai flores do verde pino,


se sabedes novas do meu amigo!
Ai Deus, e u é ?”

En que seja Dona Flor


non quero cantar d’ amor.
Nen cantar de maldizer.
Sou d’ agosto, vivo a gosto,
a contragosto vos amo
e o gosto meu é morrer.

“Ai flores, ai flores do verde ramo,


se sabedes novas do meu amado!
Ai deus, e u é?”

Flor sem ramo.


Do enramado
sen cantiga.
(LEONARDOS, 1974, p.76)

Fica bastante evidente o diálogo do poema de Leonardos com a lírica


trovadoresca: os versos da poeta se entrelaçam aos da cantiga de amigo de D. Dinis
(CBN 568, CV 171). No poema acima, os versos do Rei-trovador ganham destaque na
espacialidade do poema; no diálogo estabelecido, a voz recriadora fica à esquerda,
enquanto os versos de D. Dinis ficam à direita. É importante destacarmos nesse poema,
o diálogo entre inovação e tradição, a poeta utiliza-se do português arcaico e da
redondilha maior, porém desde o título “Do cancioneiro da desajuda” a autora
transgride o sentido tradicional da cantiga. Ao contrário das cantigas trovadorescas, o
eu-lírico não se envaidece do sofrimento amoroso, muito pelo contrário, afirma: “a
contragosto vos amo/ e o gosto meu é morrer”.

Dentre os estudos que buscam analisar a presença dos ecos da lírica


trovadoresca na poesia brasileira, destacamos as pesquisas sobre residualidade
desenvolvidas pelo GERLIC, coordenado pelos professores Roberto Pontes e Elizabeth
Dias. Chamamos atenção para pesquisa de Leitão (2013), já mencionada no primeiro
capítulo desta dissertação. A pesquisa, orientada por Roberto Pontes, analisa como as
representações femininas remanescente de outras épocas comparecem na poesia de
Vinicius de Moraes, dentre as representações analisadas por Leitão está a mulher
trovadoresca.
70

Destacamos também a pesquisa de Van Woensel e Viana (1998), intitulada


Poesia medieval: ontem e hoje. Os autores trazem um estudo sobre a alba, desde sua
origem provençal, até suas ocorrências modernas. A pesquisa traça, ainda, um estudo da
tenção desde a gênese desse gênero até as suas atualizações no nordeste brasileiro. Por
fim, analisam o diálogo medieval presente em O auto do frade, de João Cabral de Melo,
e também o poema intitulado Barcarola, de Augusto dos Anjos.

Além da poesia brasileira, a canção popular é outra arte que tem merecido
atenção dos estudos acadêmicos acerca do Neotrovadorismo. Na MPB, a própria ideia
de conceber um texto para ser cantado já nos remete, imediatamente, à tradição
trovadoresca, entretanto os diálogos entre essas artes não residem apenas nesse fato. Nas
composições de Djavan, a predileção pelas temáticas amorosas, bem como o imenso
sofrimento advindo desse amor está presente em canções como Cigano e Oceano. Já é
possível encontrar vários trabalhos acadêmicos que analisam a presença do
trovadorismo em diversos compositores como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico
Buarque.

Além dos diálogos com o amor cortês, outro traço presente nas canções
brasileiras é a presença do eu-lírico feminino, herdado das cantigas de amigo medievais.
Na obra de Caetano Veloso, encontramos músicas como Esse cara e Eu sou neguinha.
Ainda que haja ocorrências de eu-lírico feminino em diversos compositores brasileiros,
parece-nos claro que a obra de Chico Buarque se sobressai nesse aspecto. Calado (2000)
analisa as marcas da literatura trovadoresca na obra do compositor, traçando as relações
entre as cantigas d’amor e d’amigo e as letras de Buarque. As cantigas das
malmaridadas são atualizadas no sentimento da “mulher abandonada” em canções
como Atrás da porta e Olhos nos olhos. A autora analisa também as relações entre a
coita d’amor e canções como A Rita e Tanta saudade — em parceria com Djavan—.
Para ilustrarmos a incidência das relações trovadorescas na música popular, citamos
como exemplo Relicário de Nando Reis, presente no disco Para Quando o Arco-Íris
Encontrar o Pote de Ouro. Segue um trecho da canção:

Corre a lua porque longe vai?


Sobe o dia tão vertical
O horizonte anuncia com o seu vitral
Que eu trocaria a eternidade por esta noite
Por que está amanhecendo?
Peço o contrario, ver o sol se por
Por que está amanhecendo?
71

Se não vou beijar seus lábios quando você se for


(REIS, 2000)

Como já foi dito neste capítulo, a alba é o gênero trovadoresco no qual os


amantes lamentam o nascer do sol e com ele, a separação do casal. Na canção de Nando
Reis, o eu-lírico demonstra o seu sofrimento com o raiar do dia e a consequente
separação dos amantes “Por que está amanhecendo?/ Se eu não vou beijar seus lábios
quando você se for”. Uma possibilidade interpretativa dessa canção seria a expressão do
desalento do eu-lírico pela separação de sua amada — “eu trocaria a eternidade por esta
noite” —a partir do resgate dos símbolos que compõem o gênero alba.

Além da poesia e da canção popular, a tradição dos cantadores do Nordeste


também deve ser mencionada. A poesia popular no Nordeste tem semelhanças formais
com alguns gêneros trovadorescos, as formas fixas, as redondilhas, os refrãos estão
presentes nas duas artes poéticas. Dentro da poesia popular nordestina, destacamos a
peleja como um eco das tenções medievais, Segundo Van Woensel e Viana, as pelejas:

Consistem, via de regra, numa discussão entre dois poetas, cada qual
argumentando ser melhor profissional que o outro. Às vezes parece
que eles brigam para valer e se xingam mutuamente, outras vezes,
desafiam o rival quanto ao seu conhecimento de história, geografia ou
outro assunto. (1998. p. 100)

As pelejas não são consideradas um gênero nelas mesmas, são antes uma
modalidade da cantoria. Esses desafios podem ser realizados utilizando os diversos
gêneros populares, como galope a beira mar; martelo alagoano; mourão e gabinete. A
primeira peleja registrada foi travada entre Inácio da Catingueira, que fora escravo, e
Romano do Teixeira, conhecido como Romano da mãe d'água, o desafio teria
acontecido em 1870, na Paraíba9.

Apesar de alguns acadêmicos considerarem a poesia dos cantadores uma arte


menor, ou uma subliteratura, nesse ponto concordamos com Augusto de Campos
quando afirma que “a autêntica poesia popular é inimitável e incorrigível” (1978. p.
257). A precisão formal e a destreza dos cantadores são um verdadeiro artesanato

9
VER: http://www.jornaldepoesia.jor.br/in01.html
72

poético com a palavra cantada. Campos cita como exemplo de virtuosismo um


“quadrão” de Cego Aderaldo em peleja com Domingos Fonseca:

Eu canto o quadro quadrado,


Quadrado bem quadrejado,
Meu quadro é quadriculado
Por causa da quadração,
Porque minhas quadras são
De maneira bem quadrada.
Por isso meu verso enquadra
Quadrado, quadro, quadrão”.
(CAMPOS. 1978. p. 261)

Segundo Campos: “Os desafios não desdenham as mais ousadas soluções


formais, os jogos de palavras, as aliterações e as paranomásias, que ao mesmo tempo
confundem o contendor e maravilham a todos pela destreza e pelo virtuosismo
elaborativo.” (1978. p. 260).

O caráter burlesco e provocativo das tenções medievais se faz, também, muito


presente nas pelejas nordestinas. As ofensas e provocações são permeadas pelo humor e
irreverência dos cantadores. Citamos a peleja entre Pinto do Monteiro e Lorival
Batista10:

Lourival, você é mesmo


Um bamba na cantoria
Pois tanto tem improviso
Como tem muita teoria
Porém para os companheiros
Lhe falta 'deplomacia'.

Você tem muita poesia


Como em outro eu nunca vi
Porém o seu português
É fraco pelo que ouvi:
Dizendo o 'deplomacia'
Tire o 'e' e bote 'i'.

Troquei o 'e' pelo 'i'


Fiz nas letras a mistura
Mas o colega desculpe,
Não é falta de cultura,
Pois tudo isto acontece
A quem não tem dentadura.

10
VER: http://bira-viegas.blogspot.com.br/2015/01/poesia-popular-nordestina_13.html
73

Lourival não lhe censura


Por pronunciar assim
Mas se é por falta de dentes
Bote outros de marfim
Pra não errar outra vez
Que vier cantar 'com mim'.

Agora eu achei ruim


A frase do meu amigo
Onde foi que você viu
Com mim em vez de comigo?
Eu disse 'deplomacia'
Mas uma dessa eu não digo

Na peleja acima, com estrofes compostas por 6 versos, todos com 7 sílabas —
sabendo que na cantoria se conta os fonemas pronunciados e não, necessariamente, a
separação silábica padrão —. As rimas são alternadas (ABABAB), lembrando que a
nova estrofe tem que iniciar com a mesma rima da “deixa” (último verso da estrofe) do
desafiante. Na peleja acima, os elogios ao outro cantador vão cedendo espaço a críticas
provenientes da realização da própria peleja, a troca das vogais de Pinto do Monteiro e a
inadequação da concordância pronominal de Lorival são motivo de provocação entres
os pelejadores.

Nem sempre as pelejas são a troca de ofensas entre os participantes. Muitas


vezes os desafios podem tratar de temáticas sugeridas pelo público, como política,
descrição de lugares, amor, saudades. Como afirma Alceu Valença, em sua canção-
homenagem aos cantadores — dedicada no encarte do disco “A todos os poetas
repentistas da grande nação nordestina”—, “Cantador cem por cento brasileiro/ tem no
sangue a saudade lusitana/ o batuque das terras africanas/ caetés teu guerreiro violento”
(1982).

Como podemos observar, ainda que de maneira breve, é possível verificar a


existência de diversas recorrências da cultura trovadoresca nas artes brasileiras. Mesmo
que o Brasil não tenha vivido esse momento histórico, a arte brasileira — e não poderia
ser diferente — foi extremamente influenciada pela cultura ibérica. Sendo assim,
entendemos o trovadorismo como um momento fundamental para a literatura, inclusive
74

a literatura brasileira; vemos nascer no século XII uma estética que influenciou grande
parte da construção da lírica ocidental até nossos dias.

Os conceitos expostos neste capítulo sobre o trovadorismo, bem como as suas


atualizações na cultura moderna e contemporânea, são fundamentais para que possamos
demonstrar a presença do Neotrovadorismo na obra de Vinicius de Moraes.
Dedicaremos o capítulo seguinte a analisar os diálogos entre os elementos da cultura
medieval e a obra do autor, utilizando a segunda tricotomia da Teoria Geral dos Signos.
75

IV VINICIUS DE MORAES: UM NEOTROVADOR

A figura de Vinicius de Moraes pode lembrar, imediatamente, a dos trovadores


medievais por diversos motivos. Um deles é o fato do poeta carioca ter dividido sua
produção artística entre a poesia dos livros e a poesia das canções. O poeta que tece seus
textos para a performance musical, o menestrel brasileiro. Não há dúvidas de que as
relações entre a canção e a poesia são fronteiriças. Além de serem indissociáveis
durante o trovadorismo, as duas artes compartilham categorias como ritmo, melodia,
rimas.

Em entrevista cedida à Clarisse Lispector, publicada originalmente na revista


Manchete, o poeta afirma: “Não separo a poesia que está nos livros da que está nas
canções” (MORAES, 2012. p. 80). Apesar de afirmar não separá-las, podemos concluir
que Vinicius as diferencia, ou ao menos realiza acomodações entre um gênero e outro.
Excetuando-se alguns textos, como Poema dos olhos da amada, é possível observar o
quão diferente é a canção e a poesia do autor. Nas escolhas léxicas, sintáticas, na
extensão dos textos percebemos que o autor compõe de um modo diferente o que será
canção e o que será poesia. Com isso, não desejamos traçar nenhuma hierarquia entre as
duas artes, nosso intuito é apenas registrar uma observação geral sobre a obra do autor.

Dentro da totalidade da obra de Vinicius de Moraes, abordaremos apenas a


poesia dos seus livros, tendo em vista que a análise de ambos os códigos exigiria um
aprofundamento teórico sobre os estudos da canção popular e suas relações com a
literatura, aporte esse que não estava previsto na nossa pesquisa. De modo algum
afirmamos, porém, que não existem ecos medievais no cancioneiro do autor, apenas não
comparece entre os objetivos desta pesquisa averiguá-los.

Como já foi explicitado anteriormente, nossa dissertação se dispõem a analisar


os ecos da literatura trovadoresca na poesia de Vinicius de Moraes, pensando,
principalmente, nas relações entre os símbolos do universo medieval e suas recriações
promovidas pela poesia do autor. Entendemos que o Neotrovadorismo trata-se da tensão
que se estabelece entre uma tradição poética e as conquistas e liberdades modernas.
Sendo assim, não pretendemos encontrar, necessariamente, a exata repetição dos
modelos trovadorescos. Analisaremos, antes, como se atualizaram, na poesia do autor,
os símbolos da tradição dos trovadores.
76

Para as análises pretendidas, utilizaremos a Teoria geral dos Signos, em


particular a segunda tricotomia peirceana. Como afirmamos no capítulo anterior, ao
pensarmos na revisão proposta por Cunha (2008) sobre a tipologia desenvolvida por
Lópes (1997), acreditamos que a poesia de Vinicius de Moraes está no segundo grupo,
ou seja, o daquelas “composições onde se evidencia a referência ao universo
trovadoresco, através do reavivamento dos seus símbolos” (CUNHA. 2008. p. 10).
Diante disso, daremos uma maior atenção aos aspectos simbólicos do trovadorismo e
suas atualizações na poesia do autor. Lembrando que pensamos o símbolo aqui a partir
do conceito peirciano: aqueles signos em que a representação é feita através da regra, da
convenção. Analisar as recriações das cantigas medievais é analisar os símbolos que
remontam a essa tradição.

Na Idade Média, o símbolo tem importância fundamental para as artes.


Pastoureau, ao escrever sobre o verbete “símbolo” no Dicionário temático do ocidente
medieval, organizado por Le Goff e Schmitt, chama atenção para a peculiar importância
da significação simbólica no período medieval. “O símbolo é um modo de pensamento
e de sensibilidade “natural” para os autores da Idade Média” (2006. p. 495). Segundo o
autor:

O pensamento analógico medieval esforça-se especialmente para


estabelecer um vínculo entre alguma coisa aparente e alguma coisa
oculta; e, mais particularmente ainda, entre o que está presente no
mundo terreno e o que tem seu lugar entre as verdades eternas do
Além. Uma palavra, uma forma, uma cor, uma matéria, um número,
um gesto, um animal, um vegetal e mesmo uma pessoa podem ser
revestidos de função simbólica e por isso mesmo evocar, representar
ou significar outra coisa além do que pretendem ser ou mostrar. (2006.
p. 497)

É evidente que ao analisarmos os símbolos medievais não os lemos mais da


mesma forma que as civilizações que os produziram, já que muitos de seus significados
se modificaram ou perderam-se por completo. Temos acesso a essa simbologia,
principalmente, através dos cancioneiros medievais e do estudo dos medievalistas que
destacam a maior incidência de alguns temas e de algumas imagens nos diversos
gêneros da lírica trovadoresca, tornando-os assim símbolos daquela literatura.

Diante disso, dividiremos nossa análise em três partes. No primeiro momento,


analisaremos os ecos do cantar d’amor dos trovadores, focalizando símbolos dessas
77

cantigas no poema Romanza. No segundo tópico de nossa análise, buscaremos examinar


as relações entre a poesia de Vinicius e as cantigas de amigo. Para tal, traçaremos tais
aproximações a partir da análise do poema Soneto de carta e mensagem. Por fim,
averiguaremos como a simbologia do mar das barcarolas medievais comparece na
poesia do autor. Nesse subgênero da cantiga de amigo, o mar pode ser lido como um
símbolo duplo, é aquele que leva o amado para longe, mas também é o que o traz de
volta. É a melancolia e o lamento da ausência, mas também é o erotismo, o desejo de
quem espera. Analisaremos essa duplicidade do mar nos poemas Marinha e Mar.

4.1 As cantigas do amor total

Como vimos no capítulo anterior, a cantiga de amor é um dos principais


gêneros da lírica trovadoresca. Segundo Calado: “É através da canso que os trovadores
lançam a ideia do amor como inspiração poética, inventando o “amor cortês” ou a
“fin’amors”, o amor purificado, refinado” (2000. p. 32). O amor, a exaltação à dama, o
sofrimento amoroso, a natureza primaveril e a morte são os principais temas tratados
por essas cantigas.

Sem dúvidas, a faceta mais conhecida de Vinicius de Moraes é a representação


amorosa. Uma parte substancial de sua obra tem como tema central o amor em suas
diversas formas: a pureza, o erotismo, a devoção à mulher amada, o eterno sofrer de
quem ama. O neotrovador Vinicius de Moraes é, provavelmente, um dos poetas
modernos que se dedicou com mais afinco às temáticas amorosas e uma das
possibilidades de leitura de tais poemas é analisá-los a partir de sua relação com as
cantigas de amor medievais. Nesse tópico pretendemos examinar as aproximações entre
os símbolos do amor cortês dos trovadores e o Amor total do poeta.

Dentre os muitos cantos de amor presentes na obra de Vinicius de Moraes,


poderíamos analisar os ecos trovadorescos em diversos deles, tais como Ária para o
assovio; Invocação à mulher única; Soneto do amor perdido; Soneto de contrição;
Cântico; A que há de vir; A volta da mulher morena; Amor nos três pavimentos; Sonata
do amor perdido. O poema escolhido para uma análise mais detida foi Romanza,
presente no livro inaugural do autor. Além da presença dos símbolos do amor cortês, a
escolha desse poema também foi regida por sua presença na primeira fase da obra do
autor. Como foi mencionado no primeiro capítulo desta dissertação, apesar de haver
78

uma maior incidência de temáticas ligadas à mística e à transcendência na primeira fase


da obra do autor, também é possível identificar em alguns poemas as marcas das
cantigas trovadorescas desde seu livro de estreia. Um dos nossos intuitos é demonstrar
essa afirmação. Vamos ao poema:

Romanza
Branca mulher de olhos claros
De olhar branco e luminoso
Que tinhas luz nas pupilas
E luz nos cabelos louros
Onde levou-te o destino
Que te afastou para longe
Da minha vista sem vida
Da minha vida sem vista?

Andavas sempre sozinha


Sem cão, sem homem, sem Deus
Eu te seguia sozinho
Sem cão, sem mulher, sem Deus
Eras a imagem de um sonho
A imagem de um sonho eu era
Ambos levando a tristeza
Dos que andam em busca do sonho.

Ias sempre, sempre andando


E eu ia sempre seguindo
Pisando na tua sombra
Vendo-a às vezes se afastar
Nem sabias quem eu era
Não te assustavam meus passos
Tu sempre andando na frente
Eu sempre atrás caminhando.

Toda a noite em minha casa


Passavas na caminhada
Eu te esperava e seguia
Na proteção do meu passo
E após o curto caminho
Da praia de ponta a ponta
Entravas na tua casa
E eu ia, na caminhada.

Eu te amei, mulher serena


Amei teu vulto distante
Amei teu passo elegante
E a tua beleza clara
Na noite que sempre vinha
Mas sempre custava tanto
Eu via a hora suprema
Das horas da minha vida.

Eu te seguia e sonhava
79

Sonhava que te seguia


Esperava ansioso o instante
De defender-te de alguém
E então meu passo mais forte
Dizia: quero falar-te
E o teu, mais brando, dizia:
Se queres destruir... vem.

Eu ficava. E te seguia
Pelo deserto da praia
Até avistar a casa
Pequena e branca da esquina.
Entravas. Por um momento
Esperavas que eu passasse
Para o olhar de boa-noite
E o olhar de até-amanhã.

Quase um ano o nosso idílio.


Uma noite... não passaste.
Esperei-te ansioso, inquieto
Mas não vieste. Por quê?
Foste embora? Procuraste
O amor de algum outro passo
Que em vez de seguir-te sempre
Andasse sempre ao teu lado?

Eu ando agora sozinho


Na praia longa e deserta
Eu ando agora sozinho
Por que fugiste? Por quê?
Ao meu passo solitário
Triste e incerto como nunca
Só responde a voz das ondas
Que se esfacelam na areia.

Branca mulher de olhos claros


Minha alma ainda te deseja
Traze ao meu passo cansado
A alegria do teu passo
Onde levou-te o destino
Que te afastou para longe
Da minha vista sem vida
Da minha vida sem vista?
(2008. p. 36)

Com um forte caráter narrativo, o eu-lírico de Romanza conta a história de seu


“idílio” com sua amada da praia. O pretendente via a mulher caminhar e a
acompanhava, protegendo o seu passo. O poema divide-se, principalmente, na descrição
da beleza da amada, bem como das circunstâncias de seus encontros; na declaração de
80

amor do eu-lírico pela dama (“Eu te amei, mulher serena/ Amei teu vulto distante/ Amei
teu passo elegante e tua beleza clara”); e no lamento pelo desencontro entre os amantes.

O poema, relativamente longo com os seus 80 versos, divide-se em dez estrofes


com oito versos cada, todos heptassílabos e brancos. A regularidade formal nos remete
às cantigas de amor trovadorescas, em geral essas cantigas têm a mesma quantidade de
versos em todas as estrofes, excetuando-se as fiindas e os refran.

Partindo do título do poema, uma das definições para Romanza é a de uma:


“composição poética tipicamente espanhola, de origem popular, autoria não raro
anônima e temática lírica e/ou histórica, geralmente em versos de sete sílabas ou
redondilhos maiores, corresponde, até certo ponto com a balada medieval. (MOISÉS.
1974. p. 451). Pensando na definição de Moisés, o autor retoma o símbolo da Romanza,
reproduzindo as características formais deste símbolo. Outra definição para Romanza é
a de uma obra musical composta para apenas uma linha melódica, relacionando-se,
assim, com a musicalidade característica das cantigas. Diversos títulos das obras de
Vinicius recorrem a elementos que remontam o caráter musical, tais como balada,
cântico, soneto.

Os encontros entre o eu-lírico e sua amada — se é que podemos chamá-los


assim — aconteciam em um passeio na praia, a dama na frente e o seu pretendente atrás,
protegendo a caminhada, velando pela mulher. Iam até certo ponto da praia e depois
retornavam, todos os dias, iam e vinham. Pensando nessa imagem, podemos analisar
alguns versos do poema como uma iconização diagramática dessa ida e vinda dos
passeios do casal. Relembrando, o ícone diagramático é aquele signo que representa o
seu objeto a partir de similitudes nas suas relações internas, a ida e a volta do passeio é
representada pela posição das palavras nos versos, vejamos: “Da minha vista sem vida/
Da minha vida sem vista?” ou ainda “Eu te seguia e sonhava/ Sonhava que te seguia”. A
alternância entre as palavras vida/ vista e sonhava/ seguia representam o passeio do
casal de forma diagramática. Podemos, ainda, ler como um ícone diagramático desse
passeio a repetição dos versos “Onde levou-te o destino/ Que te afastou para longe/ Da
minha vista sem vida/ Da minha vida sem vista?” presentes tanto na primeira estrofe,
quanto no desfecho do poema. O ponto de partida é também a chegada.

Um dos símbolos fundamentais das cantigas de amor é o elogio à dama. No


amor cortês, é muito presente a exaltação da mulher amada, lembrando que na
81

vassalagem amorosa a mulher ocupa o lugar de senhor e o trovador é seu vassalo, é seu
servo. Não há nada mais importante para o trovador que a mulher amada, e sua amada é
sempre a mais bela dentre todas as mulheres, como afirma Spina: “A mulher excede a
todas no mundo em formosura (tema do elogio impossível)” (1956. p. 21). Dentre os
elogios à beleza da mia Senhor, um símbolo bastante reincidente nas cantigas
trovadorescas é o elogio à brancura da amada, lembrando que a mulher louvada pelos
trovadores era a dama palaciana; a pele alva é uma marca de sua nobreza. Na primeira
estrofe de Romanza, podemos observar a recorrência desse símbolo. “Branca mulher”;
“olhos claros”; “olhar branco e luminoso”; “luz nas pupilas”; “luz nos cabelos louros”.
A primeira estrofe destaca, imensamente, a brancura da mulher amada, os olhos claros,
a luz no seu olhar e nos seus cabelos. O eu-lírico, ao longo do poema, segue construindo
essa fotografia de claridade, na quinta estrofe afirma ter amado a sua “beleza clara”; a
casa de sua amada é “pequena e branca” e o passeio dos amantes acontecia “pelo
deserto da praia”.

A luz e a brancura da amada têm lugar de destaque em Romanza e comparecem


em vários outros poemas do autor, como nos versos de Invocação à mulher única “Tu,
pássaro — mulher de leite! (...) meu belo cisne, minha bela, bela garça, fêmea/ Feita de
diamantes” (2012. p.25). Em poemas como Cântico e A mulher que passa, a brancura
comparece, ainda, como símbolo da pureza, da castidade na comparação da amada com
os lírios, segundo Lexikon, “o lírio branco é um antigo e bastante difundido símbolo da
luz; a par disso, é considerado, sobretudo na iconografia cristã, um símbolo da pureza,
da inocência, da virgindade.” (1978. p.125).

Nas cantigas medievais é comum a presença da dicotomia AVE/EVA, ou seja,


a santidade da mulher em oposição à malícia, ao pecado, à sedução. Na poesia de
Vinicius de Moraes essa dualidade é representada em diversos poemas pelos símbolos
do lírio branco em oposição à rosa vermelha. Nos poemas Alba, A anunciação e O
escândalo da rosa o carmesim da rosa é o símbolo da defloração da mulher, da perda da
castidade, da brancura do lírio, valendo lembrar que o elogio à brancura no
trovadorismo reflete, também, o elogio à castidade.

Ainda na primeira estrofe de Romanza, verificamos a presença do olhar da


amada no poema, o eu-lírico refere-se aos seus olhos, às suas pupilas. Nas cantigas
trovadorescas, o olhar tem grande importância. Além do canto elogioso sobre a beleza
nos olhos da mulher amada, o amor nasce pela simples visão da mulher. Os olhos são
82

indicativos do amor da dama. Segundo Abu Muhammad ‘Ali IbnHazm, no tratado O


colar e a pomba:

O amor tem sinais que o homem sagaz persegue e que um observador


inteligente pode descobrir. O primeiro é a insistência do olhar, pois os
olhos são a grande porta da alma, que permite ver o seu interior,
revelando a sua intimidade e denunciando os seus segredos. Verás,
assim, que o amante, quando olha, não pestaneja; desloca o seu olhar
para onde se desloca o ser amado, afasta-se para onde ele se afasta e
inclina-se para onde ele se inclina, a exemplo do camaleão com o sol.
(MONGELLI; VIEIRA. 2003. p. 48)

Os olhos são uma das principais fontes sensoriais para o homem, são também o
“espelho da alma” no lugar comum de diversas culturas. No poema de Vinicius de
Moraes, a observação do eu-lírico à mulher que passeia na praia é a origem de seu
sentimento. O eu-lírico não a toca, nem sequer fala com ela, a breve comunicação que
tem com sua amada é através do olhar que trocam no final de cada passeio, no “olhar de
boa noite/ E olhar de até amanhã”.

Outro símbolo do amor cortês que podemos conferir no poema analisado é a


parcimônia do amante, a espera, a prudência, também presentes n’O colar e a pomba de
Ali IbnHazm (MONGELLI; VIERA. 2003. p. 48). O eu-lírico ansiava para ver sua
amada, momento mais importante do seu dia: “Na noite que sempre vinha/ Mas sempre
custava tanto/ Eu via a hora suprema/ Das horas da minha vida”. O desejo é de declarar-
se à amada, porém hesita diante da possibilidade de ser rejeitado, como fica claro na
sexta estrofe em seu sonho/delírio: “E então meu passo mais forte/ Dizia: quero falar-te/
E o teu, mais brando, dizia:/ Se queres destruir...vem”.

Em Romanza, desde o início do poema, podemos perceber o sofrimento


amoroso do eu-lírico que se pergunta por onde anda sua amada, para onde a levou o
destino. Um dos símbolos mais importantes das cantigas de amor é a coita d’amor, o
sofrimento causado pelo amor que o trovador nutre pela dama e também pela
impossibilidade de concretizá-lo. São diversos os poemas na obra de Vinicius de
Moraes em que o sofrimento amoroso é tematizado. Citamos como exemplo a primeira
estrofe de Soneto de contrição:

Eu te amo, Maria, eu te amo tanto


Que o meu peito me dói como em doença
E quanto mais me seja a dor intensa
83

Mais cresce na minha alma teu encanto


(2012. p.45)

Apesar do amor causar sofrimento ao eu-lírico, podemos perceber que esse


pesar é quisto, por vezes esse sofrimento é ostentado como um símbolo da imensidão
desse amor. Em Romanza o sofrimento do eu-lírico é causado pela incorrespondência da
dama, a dame sans merci. Depois de um ano de seu cortejo pela praia, em certo
momento ela não apareceu para o passeio diário, fato que desperta a tristeza absoluta de
seu pretendente. “Procuraste o amor de algum outro passo”, pergunta-se o eu-lírico, que
na estrofe seguinte afirma-se “sozinho na praia longa e deserta”. Na nona estrofe a
solidão é escancarada quando o eu-lírico pergunta-se por que sua amada fugira de seus
passos que agora “Só responde a voz das ondas/ Que se esfacelam na areia”. A imagem
das ondas remonta, imediatamente, à melancolia do mar nas barcarolas medievais. Nos
versos de A mulher que passa, também podemos ler o desespero do eu-lírico frente ao
desprezo da mia Senhor: “Por que não voltas à minha vida?/ Para o que sofro não ser
desgraça?”

Maleval (1999) aponta para um símbolo bastante presente nas cantigas


medievais, que é o desencadeamento lógico do Ver/ amar/ sofrer. Diversas cantigas
medievais seguem esse desenvolvimento. Em Romanza podemos observar essa mesma
lógica sendo atualizada. Primeiro, o eu-lírico vê a mulher sozinha em seu passeio pela
praia deserta (“Sem cão, sem homem, sem Deus”). Depois, a visão da dama causa o
amor irreversível de seu pretendente (“Eu te amei, mulher serena/ Amei teu vulto
distante/ Amei teu passo elegante/ E a tua beleza clara”). Por fim, a incorrespondência
amorosa de sua amada mulher da praia causa o sofrimento do pretendente (“Eu ando
agora sozinho/ Na praia longa e deserta”). No trovadorismo o amor é quase
indissociável do sofrimento, como diria o próprio Vinicius “Amar é sofrer”, e para os
trovadores — os medievais e os modernos —, “todo grande amor só é bem grande
quando é triste”.

A última estrofe do poema, além de repetir os versos da primeira estrofe, traz a


esperança de retorno da amada, de reconhecimento de seu amor (“Branca mulher de
olhos claros/ Minha alma ainda te deseja/ Traze ao meu passo cansado/ A alegria do teu
passo”). Um trovador que espera pacientemente pela passagem da amada, pelo passeio
na praia e sofre na impossibilidade de concretizar seu amor.
84

Durante a análise de Romanza, pretendemos demonstrar a presença dos


símbolos da cantiga de amor na poesia de Vinicius de Moraes, destacando que o poema
analisado é um entre vários em que o poeta atualiza as cantigas trovadorescas a partir da
recriação dos símbolos medievais. Na extensa obra do autor, não é apenas no seu cantar
de amor que é possível examinar os ecos do trovadorismo. No próximo tópico deste
capítulo, destacaremos as relações entre a cantiga de amigo e os textos do poeta.

4.2 O canto feminino

A cantiga de amigo trovadoresca era o gênero no qual os trovadores


expressavam os sentimentos de uma mulher utilizando um eu-lírico feminino, sendo
esse o principal símbolo dessas cantigas. Outro símbolo bastante reincidente nesse
gênero é a separação dos amados, o lamento de saudade da mulher pela ausência do
amigo. Segundo Calado:

Num universo estritamente feminino, longe inclusive da figura


paterna, a Cantiga de Amigo se desenvolve com o desabafo amoroso
de uma donzela, ora a uma amiga, ora à sua mãe, que nem sempre é
conivente com ela; ora ao próprio namorado ou amante, numa espécie
de debate amoroso; algumas vezes, o desabafo é dirigido às ondas do
mar ou ao rio. (2000. p. 25)

Na obra de Vinicius de Moraes, podemos encontrar algumas recriações das


cantigas de amigo trovadorescas, seja pela utilização do eu-lírico feminino, seja pelo
símbolo do lamento pela separação dos amantes. Citamos o exemplo de A anunciação11,
poema cuja análise publicamos durante o período desta pesquisa. Vejamos o poema:

A ANUNCIAÇÃO

Virgem! filha minha


De onde vens assim
Tão suja de terra
Cheirando a jasmim
A saia com mancha
De flor carmesim
E os brincos da orelha
Fazendo tlintlin?

11
MOREIRA LEITE, Jonathan Lucas; DEPLAGNE, Luciana Eleonora de Freitas Calado. Uma cantiga de
amigo moderna: análise de “A anunciação”, de Vinicius de Moraes. In Revista TextoPoético | ISSN:
1808-5385 | Vol. 21 (2o sem-2016) – p. 125- 145.
85

Minha mãe querida


Venho do jardim
Onde a olhar o céu
Fui, adormeci.
Quando despertei
Cheirava a jasmim
Que um anjo esfolhava
Por cima de mim...
(MORAES. 2003. p. 192)

No poema acima, percebemos a existência de dois eu-líricos femininos. Há um


diálogo entre a amiga e sua mãe, ocupando o lugar de confidente. Na primeira parte do
poema, a mãe interroga a filha por onde andara e por que chegara assanhada e com uma
mancha vermelha no vestido. A filha responde que estava no jardim e um anjo esfolhou
pétalas por cima da jovem. Há durante todo o poema a insinuação da defloração da
filha, essas insinuações são construídas a partir de símbolos, como o “carmesim” da saia
da jovem. A sugestão da perca da virgindade pode ser analisada ainda a partir do ícone
metafórico do jasmim que o anjo esfolhava por cima da amiga, podendo representar
metaforicamente o sêmen. A existência do jardim, local e símbolo dos prazeres no
trovadorismo, também vai ao encontro dessa leitura. Por fim, o título “A anunciação”
remonta a visita de Gabriel à Maria para avisar de sua fecundação.

Além do poema citado, o eu-lírico feminino comparece na poesia de Vinicius


de Moraes em, pelo menos, mais dois poemas: Soneto de carta e mensagem e Soneto de
Véspera. Podemos, ainda, relacionar alguns poemas do autor às cantigas de amigo
trovadorescas a partir do símbolo da separação dos amantes, ainda que nesses poemas o
eu-lírico seja masculino ou indefinível, como é o caso de Soneto a Katherine Mansfield.
Dentre os poemas em que é possível identificar os símbolos desse cantar feminino,
escolhemos para uma análise mais atenta o Soneto de Carta e mensagem, presente no
livro Novos poemas. Vamos ao poema:

SONETO DE CARTA E MENSAGEM


“Sim, depois de tanto tempo volto a ti
Sinto-me exausta e sou mulher e te amo
Dentro de mim há frutos, há aves, há tempestades
E apenas em ti há espaço para as consolações.

“Sim, meus seios vazios me mortificam — e nas noites


Eles têm ânsias de semente que sente germinar seu broto
Ah, meu amado! é sobre ti que eu me debruço
E é como se me debruçasse sobre o infinito!
86

“Pesa-me, no entanto, o medo de que me tenhas esquecido


Ai de mim! que farei sem o meu homem, sem o meu esposo
Que rios não me levarão de esterilidade e de tristeza?

“Mulher, para onde caminharei senão para a sombra


Se tu, oh meu companheiro, não me fecundares
E não esparzires do teu grão a terra pálida dos lírios?...”
(MORAES. 2012. p. 51)

Do ponto de vista formal, o poema de Vinicius de Moraes não recupera as


estruturas comuns às cantigas de amigo. O poeta opta pela forma do soneto com a
métrica irregular e sem rimas. As cantigas de amigo, via de regra, são constituídas por
regularidade formal e contam com a presença de paralelismos e refrãos. Entretanto,
consideramos o poema neotrovadoresco devido às aproximações simbólicas com as
cantigas de amigo trovadorescas.

O primeiro e mais evidente símbolo é a presença do eu-lírico feminino, a voz


feminina é o maior traço distintivo das cantigas de amigo em relação às outras. Fica
claro desde o segundo verso essa voz da mulher: “Sinto-me exausta e sou mulher e te
amo”. Outro símbolo dessas cantigas é o sofrimento da jovem pela ausência de seu
amigo, que fora para longe. Segundo Spina:

A mulher aparece representada principalmente pelas meninas


casadouras, que nestas composições vibram de saudades pelo
namorado que foi para as trincheiras (fossado ou ferido)
combater o mouro invasor. Os cantares d’amigo exprimem,
portanto, esses pequeninos dramas e situações da vida amorosa
das donzelas. (2006. p.15)

Todo poema é permeado pela ausência, pelas saudades, pelo sofrimento da


amiga. Essa distância começa a se evidenciar desde o título “Soneto de carta e
mensagem”. A carta é uma forma de comunicação para os distantes, envia-se uma carta
para quem não está presente, para quem não se pode ver e falar diretamente. Em Soneto
a Katherine Mansfield a carta também aparece como um símbolo da separação dos
amantes “O teu perfume, amada — em tuas cartas/ Renasce, azul... — são tuas mãos
sentidas!”.

A espinha dorsal do Soneto de carta e mensagem é o sofrimento da amiga pela


ausência do namorado/amante. A primeira estrofe traz imagens como “Depois de tanto
87

tempo volto a ti/ Sinto-me exausta e sou mulher e te amo”. É interessante perceber que
no poema de Vinicius de Moraes quem volta é ela, ao contrário da tradição
trovadoresca, na qual a mulher aguarda o retorno do amado. Ainda no primeiro quarteto,
a mulher afirma que sua consolação é seu amigo. Todas as aflições, todas as
tempestades terão alívio no consolo de seu amado. Em Soneto de véspera, outro poema
com eu-lírico feminino, também é possível ver o desespero da amiga: “Quando chegares
e eu te vir chorando/ De tanto te esperar, que te direi?/ E da angustia de amar-te, te
esperando/ Reencontrada, como te amarei?” Talvez, a ausência mais cruel seja aquela
que, após longa espera, está tão próxima ao encontro. As horas demoram a passar, as
noites se alongam, a amiga é inteira desespero e angustia. No trecho da cantiga
trovadoresca de Julião Bolseiro, podemos ver o lamento da amiga:

Aquestas noites tan longas


que Deus fez em grave dia
por mi, por que as non dormio
e por que as non fazia
no tempo que meu amigo
soia falar comigo?

Por que as fez Deus tan grandes,


non poss’ eu dormir, coitada!
e de como som sobejas
quisera-m’ outra vegada
no tempo que meu amigo
soia falar comigo
(CV 782, apud SPINA. 2006. p. 31)

Durante a cantiga, a dama pergunta-se por que as noites em que o seu amigo
está longe são tão longas. A insônia é o martírio da amiga na sua distância com o
namorado. A amiga questiona Deus por que as noites são em tamanhos tão desiguais,
por que as noites na distância de seu amado se passam tão lentamente, são “tan
grandes”. No poema de Vinicius de Moraes, a noite também é o anuncio do sofrimento
pela ausência do amado, na segunda estrofe a mulher diz “Sim, meus seios vazios me
mortificam — e nas noites/ Eles têm ânsias de semente que sente germinar seu broto”.
O sofrimento da amiga, a preocupação com a sorte de seu amante distante, se está
ferido, é muito comum nas cantigas, porém a saudade no sentido carnal também é
presente. Como vimos na cantiga de Julião Bolseiro, a mulher sofre pelas noites vazias,
pelas noites sem seu namorado. No soneto de Vinicius a amada também sofre pela
88

abstinência sexual que a ausência de seu amado traz: “meus seios vazios me
mortificam”.

É comum algum grau de erotismo na representação amorosa das cantigas de


amigo galego-portuguesas, porém sempre de forma sutil. Nas chansons de femme
provençais, a relação amorosa é representada de forma mais direta, mais descritiva.
Diante disso, acreditamos que o erotismo presente no Soneto de carta e mensagem
aproxima-se mais dos cantares femininos galego-portugueses. No poema, a relação
sexual, ou a lembrança e desejo dessa relação, é representada através de ícones
metafóricos: “semente que sente germinar seu broto”; “é como se me debruçasse sobre
o infinito!”. O contato físico não é descrito diretamente, é metaforizado. O prazer que a
amada sente ao encontrar seu namorado é como debruçar-se sobre o infinito, lembrando,
inclusive, o erotismo de Os acrobatas (2008. p.17) No poema, o eu-lírico iconiza uma
escalada rumo ao gozo: “Subamos! Subamos acima/ Subamos além, subamos/Acima do
além, subamos!” Em cada verso há um crescimento gradativo da altura, do desejo, até
chegar fim do poema — e do ato sexual —, “E morreremos/ Morreremos alto,
imensamente/ IMENSAMENTE ALTO”, retomando o símbolo psicanalítico que
relaciona o gozo à morte.

Ligado ao sofrimento da amiga, um dos símbolos mais frequentes das cantigas


de amigo medievais é o abandono, ou o medo da amiga de ser abandonada, de o amigo
se apaixonar por outra. O primeiro terceto do poema é tomado pela angustia da amiga:
“Pesa-me, no entanto, o medo de que me tenhas esquecido/ Aí de mim! Que farei sem o
meu homem, sem o meu esposo/ Que rios não me lavarão de esterilidade e de tristeza?”.
É muito recorrente nos cantares de amigo medievais a dama expressar o receio pela
preferência de seu amigo por outra mulher. No poema de Vinicius de Moraes fica
explicitamente dito o medo de que o amigo a tenha esquecido e o desespero da solidão,
“rios de esterilidade e tristeza”.

Utilizando-se da voz feminina no poema, o poeta recria a cantiga de amigo


trovadoresca, não apenas pelo gênero do eu-lírico, mas, principalmente, por expressar
os sentimentos-símbolos dessas cantigas. Como podemos perceber, várias são as
aproximações entre o sofrimento da mulher do poema moderno e o da amiga
trovadoresca. A presença do trovadorismo na poesia de Vinicius de Moraes pode ser
analisada a partir de diversas características presentes no medievo e atualizadas na lírica
89

do autor. No próximo tópico, analisaremos as relações entre a obra do poeta e as


barcarolas medievais.

4.3 O sal da saudade

De modo geral, o oceano tem grande importância na Idade Média. Segundo


Bresc12, os mares, bem como suas conquistas, representam um fundamental avanço para
a formação social do medievo. Com o desenvolvimento da engenharia naval,
principalmente na Itália, o mar era o principal meio de transporte de cargas e
passageiros na Europa. A pesca também passou a ser uma significativa fonte de renda
para a península Ibérica. O mar é tido como fonte de fartura e de prosperidade, “O mar
nutridor”. Porém, o mar também tem um aspecto fantástico ligado ao medo dos
naufrágios e das criaturas marinhas. O símbolo marinho se estabelece, dessa forma, a
partir de uma dualidade. Essa simbologia é verificável na literatura medieval, Bresc
afirma que “os contos reunidos pelos clérigos dão conta de uma familiaridade ambígua,
marcada tanto pela busca da proteção quanto pela fascinação da morte próxima.” (2006.
p.102).

Como já discorremos rapidamente, a barcarola é um subgênero da cantiga de


amigo, diferindo-se das demais pela presença da simbologia das águas. A marca
distintiva dessas cantigas é a representação dos mares ou rios. Como nas demais
cantigas de amigo, a tristeza, o lamento e a saudade estão muito presentes. Na definição
de Moisés:

Poema medieval, do tipo das cantigas de amigo, exclusivo, ao que


tudo indica, do lirismo galaico-português. Uma vez que lhe
desconhecia o nome que ostentava durante a Idade Média, adotaram-
se modernamente as duas denominações referidas [Marinha ou
Barcarola]. Como estas assinalam, a cena descrita passa-se diante do
mar ou do rio: a moça do povo dirige-se às ondas, em confidência,
lamentando o afastamento, a demora ou a partida do bem amado, que
viajou para cumprir o serviço militar (fossado), ou suplicando-lhes
notícias do ausente; outras vezes, posta-se à margem das águas, à
espera da embarcação que poderá trazê-lo de volta, ou diz que seu
“amigo” (namorado, amante), se soubesse que ela vai banhar-se no
rio, far-lhe-ia companhia. (1974. p. 56)

12
Responsável pelo verbete “mar” no Dicionário temático do ocidente medieval, organizado por Le Goff
e Schmitt, 2006.
90

Como afirma Moisés, só existem registros da barcarola medieval na literatura


galego-portuguesa, em especial dos trovadores Martim Codax e D. Dinis. A formação
social e literária portuguesa carregam, desde suas origens, as relações entre Portugal e o
mar. Como sabemos, o território português é muito pequeno e faz fronteira apenas com
a Espanha. Geograficamente, isolado do restante da Europa, o mar foi o caminho
possível para o país alçar às conquistas cantadas n’Os Lusiadas. O mar e sua simbologia
permeiam a literatura portuguesa, a saudade, a tristeza, a sensação de próprio abandono,
a melancolia por ter perdido a posição que um dia tivera — e hoje saber que nunca
alcançará novamente o seu apogeu, abraçando a distopia como em A maquina de fazer
espanhóis de Valter Hugo Mãe—.

Pensando na barcarola medieval, o mar pode ter uma dupla simbologia.


Inicialmente, representa a tristeza, a separação dos amantes, o caminho por onde o
amigo se afasta. Nessas cantigas o mar é descrito e, por vezes, personificado pela amiga,
que o questiona onde anda o amigo ausente, ou se voltará logo. Porém, além de
representar o lamento da amiga, o mar emerge com outro significado. É, também, pelo
mar que o amante voltará aos braços da amiga. É na beira-mar que a jovem nutre sua
libido, ansiando o dia em que poderá se banhar novamente naquelas águas com seu
amigo. Sendo assim, a presença do mar na barcarola medieval tem uma dupla
representação: a melancolia e o erotismo. A praia, a beira do mar, comparece ainda na
poesia trovadoresca como ponto de encontro dos namorados, tornando-se um símbolo
da sensualidade nessa literatura.

Na modernidade e contemporaneidade da arte brasileira, é possível verificar a


recriação da barcarola medieval. Como já foi mencionado anteriormente, Viana (1998)
analisa o poema Barcarola de Augusto dos Anjos, outro trabalho que examina a
atualização desse gênero das cantigas medievais é a dissertação de Oliveira (2015) que
verifica o Neotrovadorismo na poesia de Stella Leonardos. Nas recriações modernas dos
gêneros trovadorescos, notamos que alguns símbolos são perpetuados e outros são
transgredidos. Calado (2000) chama atenção para a atualização das barcarolas na canção
de Chico Buarque. Nas canções analisadas (morena dos olhos d’água e Madalena foi
pro mar), o eu-lírico, ao contrário das barcarolas medievais, não é feminino. O
compositor recria o sentimento e a ambientação das marinhas, porém inova no gênero
do eu-lírico.
91

Na poesia de Vinicius de Moraes, é possível verificar a grande presença de


signos ligados ao mar, como “praia”; “concha”; “mergulho”; “navio”. Em particular,
chamou nossa atenção a incidência desses elementos no livro Poemas, sonetos e
baladas, no qual é possível encontrar os títulos Marinha; Barcarola; Mar; Balada na
praia do Vidigal e Marina. Sob uma análise geral da poesia do autor, observamos que
os poemas em que existe a presença desses elementos marinhos são textos em que as
temáticas da melancolia e/ou do erotismo têm grande relevância. Ao realizar um
apanhado crítico sobre a poesia de Vinicius de Moraes, Candido destaca entre as
virtudes do poeta “a peculiaríssima ligação que estabeleceu entre o mar, a praia e a vida
amorosa” (1975. p. 742).

Sem dúvida, os amores praianos de Vinicius permeiam a poesia de seus livros e


de seus discos; porém, o mar do poeta também guarda a tristeza, a separação e a morte.
Para demonstrarmos tais constatações, analisaremos os poemas Mar e Marinha,
buscando evidenciar de que forma o símbolo do mar das barcarolas medievais é
atualizado na poesia do autor. Vamos ao primeiro poema:

MAR

Na melancolia de teus olhos


Eu sinto a noite se inclinar
E ouço as cantigas antigas
Do mar.

Nos frios espaços de teus braços


Eu me perco em carícias de água
E durmo escutando em vão
O silêncio.

E anseio em teu misterioso seio


Na atonia das ondas redondas.
Náufrago entregue ao fluxo forte
Da morte.
(MORAES. 2008. p. 55)

A primeira, e óbvia, referência é o título do poema: “Mar”. Formalmente,


observamos três estrofes de quatro versos, tendo destaque o último verso de cada
estrofe, tanto pela extensão menor, quanto pelo uso da espacialidade da página. A
regularidade das estrofes e esse recurso que destacar os versos, quando há refrão, por
exemplo, é muito comum nas cantigas de amigo trovadorescas. Quanto ao gênero do eu-
92

lírico, o símbolo da voz feminina da barcarola não se repete, ou pelo menos não há
nenhuma indicação clara de que o eu-lírico seja uma mulher. Assim como nas canções
de Buarque, esse elemento da barcarola é reinventado em todos os poemas de Vinicius
de Moraes em que o mar está presente.

A presença do olhar, como já reiteramos nas análises anteriores, é um símbolo


constante em toda a poesia trovadoresca. Em Mar, os olhos são melancólicos, a
primeira estrofe é construída retomando o símbolo do mar dos lamentos das barcarolas
medievais. A imagem de tristeza é tecida com a visão dos olhos da amiga, em que o eu-
lírico afirma: “Eu sinto a noite se inclinar”. Outro poema do autor em que o olhar
atualiza os símbolos marinhos é o Poema dos olhos da amada. Olhos de “cais noturnos/
Cheios de adeus/ São docas mansas/ trilhando luzes/ Que brilham longe/longe nos
breus...”. A saudade comparece no olhar da amada, a partir dos ícones metafóricos que
representam os adeuses e as saudades dos elementos ligados à ida e a vinda dos barcos,
como “cais” e “docas”. Na segunda estrofe, a descrição marinha prossegue: “Quantos
saveiros/ Quantos navios/ Quantos naufrágios/ Nos olhos teus...”. A “amada” do poema
tem olhos de quem espera à beira mar. O autor recria a barcarola e inverte a perspectiva
da cantiga, agora vemos dentro do olhar de quem aguarda o seu amado, quem está
constantemente esperando junto às águas e guarda nos olhos os saveiros, os navios, os
naufrágios.

Ainda na primeira estrofe de Mar, podemos ler os versos “E ouço as cantigas


antigas/ Do mar” como um signo com função indexical, uma vez que eles referem-se,
diretamente, às cantigas do mar, às barcarolas. A presença desse índice no poema é mais
uma reiteração da presença do trovadorismo na poesia de Vinicius de Moraes.

Na segunda estrofe, começa a surgir, ainda que muito sutilmente, a referida


relação entre o erotismo e os símbolos marinhos. O mar ganha a anatomia humana, ou a
mulher amada é representada pelo próprio mar: “Nos frios espaços dos teus braços/ Eu
me perco em carícias de água”. Esse ícone metafórico em que o mar representa o corpo
da mulher — ou o contato entre os amantes — é perceptível em outro poema do autor,
O mergulhador. A terceira estrofe segue a representação simbólica do mar enquanto
signo do erotismo: “E anseio em teu misterioso seio/ Na atonia das ondas redondas”.
Nesse último verso, percebemos a iconização diagramática do movimento das ondas na
permuta entre as vogais abertas e fechadas. Essa mesma iconização pode ser percebida
nos anagramas presentes nos dois versos: anseio e seio; ondas e redondas.
93

Em Mar, o eu-lírico constrói um erotismo lânguido, a sensualidade advinda do


símbolo marítimo é perpassada pelo ritmo do mar, pela leveza de quem se deixa
conduzir pelas ondas. Percebemos essa afirmação em trechos como “Eu sinto a noite”,
“Eu me perco”, “Na atonia das ondas” e “entregue ao fluxo forte”. Notamos o abraço do
eu-lírico com o mar, com sua amada, com seu destino. Os dois versos finais de cada
estrofe apontam para uma progressão no poema, são eles: E ouço as cantigas antigas/
Do mar”; “E durmo escutando em vão/ O silêncio”; “Náufrago entregue ao fluxo forte/
Da morte” (mar/ silêncio/ morte). Podemos analisar essa progressão a partir das duas
representações do mar. Segundo Lexikon, o mar:

É o símbolo da energia vital inesgotável, mas também do abismo que


traga tudo; nesse caso, o mar aproxima-se, na perspectiva da
psicanálise, dos dois aspetos da grande Mãe, que dá e tira, concede e
castiga; na qualidade de reservatório de inumeráveis tesouros
submersos e de figuras ocultas na escuridão. (1978. p. 135)

A primeira possibilidade é entender a progressão do poema a partir do


erotismo, culminando no ápice sexual; o símbolo do gozo como morte para o ato sexual,
assim como no desfecho d’Os acrobatas, poema já mencionado durante nossa análise.
A outra leitura possível é a representação da outra face do símbolo do mar: aquele que
tira, aquele que leva embora, aquele que separa. Esse aspecto do mar está presente em
diversos poemas do autor. A morte, separação definitiva, está presente no afogamento
em O poeta Hart Crane suicida-se no mar. No poema de dez estrofes, o eu-lírico lança
questões ao poeta suicida: “Que te disse a Poesia/ Sobre o líquido deserto/ Ante o mar
boquiaberto/ Incerto se te engolia”? O poema segue suas perguntas, se houve angústia
ou felicidade, o que dissera o universo no derradeiro instante antes do fim. Como se o
poeta suicida pudesse responder se seu sono entre os peixes realmente pôde “extinguir
dores do coração e as mil mazelas naturais a que a carne é sujeita.” (SHAKESPEARE.
2012. p.67).

Em Mar podemos observar o duplo simbolismo no mar presente no mesmo


poema. Em alguns poemas será possível observar, apenas, o símbolo da melancolia,
como em Poema dos olhos da amada; em outros casos o mar de Vinicius de Moraes
será todo erotismo. Para analisar a maior presença dessa segunda representação
marítima, analisaremos o poema Marinha:
94

MARINHA
Na praia de coisas brancas
Abrem-se às ondas cativas
Conchas brancas, coxas brancas
Águas-vivas.

Aos mergulhares do bando


Afloram perspectivas
Redondas, se aglutinando
Volitivas.

E as ondas de pontas roxas


Vão e vêm, verdes e esquivas
Vagabundas, como frouxas
Entre vivas!
(MORAES. 2008. p. 16)

O título do poema resgata, imediatamente, o subgênero das cantigas de amigo,


marinha e barcarola designam o mesmo gênero galego-português. No plano formal, fica
evidente as semelhanças com as cantigas de amigo trovadorescas. A regularidade das
quatro estrofes, nas quais os três primeiros versos são heptassílabos. Assim como em
Mar, o quarto e último verso de cada estrofe destaca-se dos demais pela espacialidade
na folha e pela extensão menor, apenas três sílabas. Nesse caso, o poeta utiliza o recurso
do refran, tão comum nas cantigas paralelísticas, “Águas-vivas”, “Volitivas”, “Entre
vivas”.

O erotismo atravessa o poema a partir dos símbolos marítimos. Na primeira


estrofe, a abertura das “coisas brancas” “às ondas cativas” são iconizadas
diagramaticamente pela grande incidência das vogais abertas (a), em um total de vinte
registros. A brancura comparece como um reiterado símbolo na descrição do corpo da
amada. A semelhança sonora entre “conchas” e “coxas” aproxima os símbolos mulher e
mar, tornando-os um só; novamente, o mar é descrito a partir da anatomia da amada.
Mesmo o símbolo da concha analisado separadamente é repleto de erotismo. Segundo
Lexikon:

A concha branca relaciona-se simbolicamente, por exemplo, com a


Lua (e daí com o princípio yin). Afrodite muitas vezes é representada
como “aquela que emerge do mar” (Anadiomene) em pé sobre uma
concha. Também o fato de a concha ter uma forma semelhante ao
órgão sexual feminino, participar do simbolismo da água fértil do mar
e abrigar lindas pérolas, pode tê-la ligado a Afrodite. (1978. p. 63)
95

Entre as suas coxas, o eu-lírico encontra a concha de sua mulher-mar. Na


segunda estrofe, o símbolo dos mergulhadores aparece. Se em nossa análise, o mar
representa a mulher, o mergulhador pode, facilmente, representar o homem, o símbolo
fálico, aquele que adentra as águas. Essa mesma relação é o mote de outro poema do
autor, O mergulhador, presente no livro Novos poemas II. O poema começa com a
citação do poeta italiano Giacomo Leopardi: “E il naufragar m'è dolce in questo mare”.
Em todo o poema o erotismo é construído através da simbologia marítima, como nos
versos “Como, dentro do mar, libérrimos, os polvos/ No líquido luar tateiam a coisa a
vir”.

Na terceira estrofe, as ondas são descritas com “pontas roxas”, as ondas fálicas
retomam o símbolo das águas-vivas da primeira estrofe. Algumas espécies de água-viva
têm a colocação roxa, além da forma desse animal lembrar a anatomia do órgão sexual
masculino. Entre as coxas e conchas, a presença das águas-vivas. O erotismo de
Marinha, assim como em diversos poemas de Vinicius de Moraes, assemelha-se mais às
construções metafóricas das cantigas galaico-portuguesas do que a descrição direta das
cantigas não cortesãs, como nas chansons de femme.

A própria progressão do poema iconiza o encontro sexual entre os amantes:


“Abrem-se” na primeira estrofe; “Afloram” na segunda — relembrando toda a
simbologia do feminino que a flor abriga—, e na terceira estrofe, temos as ondas que
“vão e vem” no ritmo do mar, no movimento dos corpos dos amantes.

O mar e a praia comparecem na poesia de Vinicius de Moraes em uma grande


quantidade de poemas, e em muitos deles como um símbolo dos encontros amorosos,
assim como nas cantigas trovadorescas. A descrição erótica da Balada da praia do
Vidigal, ou a lembrança dos amores juvenis em Marina são exemplos da incidência do
mar na obra do autor.

Apesar de não estar incluso no corpus de nossa pesquisa, também é possível


verificar a incidência da barcarola medieval na canção de Vinicius. Citamos o exemplo
de Bocochê, presente no disco Os afro-sambas, em parceria com Baden Powel. A
canção estabelece um diálogo entre um eu-lírico masculino (cantado por Vinicius) e
outro feminino (cantado por um coro de vozes feminas). O primeiro pergunta “Menina
bonita, pra onde é “qu’ocê” vai?” e a segunda responde “Vou procurar o meu lindo
amor/ no fundo do mar”. A canção segue com versos como “Foi e nunca mais voltou/
96

Nunca mais! Nunca mais/ Triste, triste me deixou”. A separação dos amantes devido à
ida para o mar também pode ser lida na canção do poeta: “Na onda que vai/ Na vida que
vem/ Na vida que vai/ não volta ninguém”. O mar é um dos símbolos com mais força na
poesia de Vinicius de Moraes — tanto nos seus amores, quanto nos seus adeuses—,
merecendo uma pesquisa detida apenas nessa relação.

Pretendemos ao longo desta análise demonstrar a atualização dos símbolos da


literatura trovadoresca na poesia de Vinicius de Moraes. Percebemos os ecos do amor
cortês na representação amorosa de diversos poemas. O poeta atualiza as cantigas de
amigo através dos símbolos deste gênero, em particular o eu-lírico feminino e o lamento
pela separação dos amantes. A barcarola medieval é revisitada pelo autor na dupla
simbologia do mar, das ondas que levam e trazem o amor. Acreditamos, assim, que uma
das possibilidades de análise da poesia de Vinicius de Moraes é lê-la como uma obra
Neotrovadoresca.
97

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vinicius de Moraes é, sem dúvida, um dos poetas mais populares do Brasil.


Poemas como Soneto de fidelidade e Rosa de Hiroshima são amplamente vinculados
aos manuais escolares. Muito provavelmente, outro fato que tenha aumentado a
popularização da obra do autor foi a sua importância na canção brasileira, sendo um dos
principais compositores da bossa nova. Canções como Garota de Ipanema e Chega de
saudade, além de terem revolucionado a forma de compor no Brasil, permanecem até os
dias atuais fazendo parte do nosso inconsciente coletivo.

Durante algumas décadas, os estudos acadêmicos pouco se interessaram pela


obra de Vinicius de Moraes, em parte por seu envolvimento com a canção popular —
considerada uma arte menor durante muito tempo —, e em alguma medida porque a
havia um interesse maior parte dos estudiosos de poesia no Brasil, nas décadas de 1970,
1980 e até o início de 1990, no estudo da poesia concreta, restando pouco espaço para
nomes como Murilo Mendes e Mário Quintana.

Durante nossa pesquisa, identificamos que os estudos acerca da obra de


Vinicius de Moraes são, em grande medida, de datas recentes. É visível o crescimento
do interesse acadêmico em relação a poesia do autor. Acreditamos que um dos fatores
que pode ter contribuído para esse reavivamento acadêmico do poeta é o trabalho de
Eucanaã Ferraz que reeditou todos os livros do poeta pela editora Companhia das
Letras. Os livros contam com textos críticos escritos para essas edições e textos antigos,
escritos na época do lançamento dos livros, compondo a seção “Arquivo”.

A leitura atenta da obra de Vinicius de Moraes revela, constantemente, um


poeta desconhecido. Ler a poesia de Vinicius, respeitando a ordem cronológica dos
livros, é como ter em mãos uma boneca russa, o leitor despe a primeira poesia e
encontra outra menor, mais sutil. Quanto mais desnudamos as cascas da poesia de
Vinicius de Moraes mais chegamos perto da sutileza de seus amores cotidianos.

Acreditamos que o Neotrovadorismo é uma das possibilidades de leitura da


camaleônica poesia de Vinicius de Moraes. Além da relação do poeta com a canção
popular, fato que já nos relembra a figura dos trovadores, constantemente seus versos
promovem um diálogo com a lírica trovadoresca. É possível identificar no Amor Total
do poeta diversos símbolos do amor cortês dos trovadores. A devoção do eu-lírico à
amada, o elogio àquela mulher acima de todas as outras, a entrega incondicional ao
98

amor como forma de vida, são ecos do amor integral do trovadorismo. Vimos todas
essas características durante o exame do poema Romanza. As recriações das cantigas de
amigo também têm espaço na poesia do autor, ainda que em menor quantidade. Como
observamos nas análises, podemos identificar nos poemas Soneto de Carta e mensagem
e Soneto de Véspera os dois maiores símbolos desse gênero trovadoresco: o eu-lírico
feminino e o sentimento de abandono da amiga. Quanto aos aspectos formais, o autor
deixa de lado o paralelismo das cantigas e inova esse gênero utilizando o soneto. Outro
diálogo que se estabelece entre a poesia de Vinicius de Moraes e a lírica trovadoresca é
a remanescência da simbologia marítima das barcarolas medievais. Observamos nos
poemas Mar e Marinha a presença do símbolo marítimo em sua duplicidade, a
melancolia marinha e o erotismo.

Percebemos, ainda, que existem diversos autores brasileiros que praticam suas
incursões pelo medievo. Manuel Bandeira, Mario de Andrade, Cecília Meireles e Stella
Leonardos são exemplos de poetas neotrovadores. Na canção popular, temos o grande
exemplo dos cantares femininos na obra de Chico Buarque. A arte dos cantadores
nordestinos merece uma atenção especial nesse sentido, em particular as pelejas que
acontecem entre os violeiros, podendo ser lidas a partir do longínquo diálogo com as
tenções medievais.

Sabemos, antes de tudo, das limitações de nossa pesquisa. As obras literárias


são infindáveis fontes de análise e discussões. A polissemia, forte característica das
artes, e os diferentes enfrentamentos teóricos podem chegar a diferentes conclusões dos
mesmos textos, sem que uma precise descredibilizar a outra. Dito isso, não é pretensão
de nossa pesquisa evocar um único, ou mais relevante, caminho para interpretação da
obra de Vinicius de Moraes, intentamos, antes, demonstrar que uma das possibilidades
de apreciação da obra do autor é lê-lo como um neotrovador.

Mesmo dentro de nossa proposta analítica, reconhecemos que nossa pesquisa


não esgota as análises que demonstram a presença do Neotrovadorismo na obra do
autor. Cada uma das três aproximações expostas em nosso estudo merece ser objeto
exclusivo de outras pesquisas, principalmente as ligações da poesia de Vinicius de
Moraes com o amor cortês e os diálogos entre os textos do autor e as barcarolas
medievais. Tendo em vista que não encontramos nenhuma dissertação ou tese em língua
portuguesa que se dedica a analisar Vinicius de Moraes como um neotrovador, optamos
por demonstrar essas ressonâncias a partir das diversas aproximações que identificamos.
99

A poesia apostata de Vinicius de Moraes torna-se, gradativamente, humana. O


poeta “destinado da dor e do sofrimento” vai cedendo espaço para os namoros na praia,
para o trânsito do sábado, para as pessoas. A devoção do poeta torna-se inteira para a
mulher, para a mulher que passa, para a amada, para a prostituta, para a menina de
pernas finas na praia. A figura feminina é o centro da poesia do neotrovador Vinicius de
Moraes, e nesse fato reside a maior aproximação entre as duas poesias. Em tempo, o
autor abandona Deus para se abraçar com seus irmãos e seus amores, ao tornar-se
menor, o poeta cresce. A poesia de Vinicius é “Um templo sem Deus// grande e claro/
Pertence ao seu tempo”

“— Entrai, irmãos meus!”.


100

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