Azevedo
Azevedo
Azevedo
Beatriz Azevedo
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ticado em vista da obtenção de um rendimento» 2
estado
selvagem, não domesticado, não preso à rigidez das normas, no seu «Mani-
festo Antropófago» — -
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foram trazidas à tona da consciência artística. O admirável tupi or not tupi,
— mestre incomparável
das fórmulas lapidares —, resume todo este processo, de decidida incorpo-
ração da riqueza profunda do povo, da herança total do país, na estilização
erudita da literatura. Sob este ponto de vista, as intuições da Antropofagia,
a ele devidas, representam o momento mais denso da dialética modernista,
em contraposição ao superficial «dinamismo cósmico» de Graça Aranha
se tornar manifesto, aquilo que não pode mais permanecer oculto ou dissi-
mulado em sua natureza.
Interrompi-o para perguntar por que não sofriam. E ele respondeu pronta-
mente:
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turbilhonante, hertziana, ultravioleta proporciona ao pensamento comprimido
do brasileiro da atualidade.
Ingredientes e inversões
publicados na França dois livros sobre a religião dos Tupi, escritos pelo
suíço Alfred Métraux: e La
Religion des Tupinamba et ses rapports avec celle des autres tribus Tupi-
.
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Aluno de Marcel Mauss e Paul Rivet, ainda jovem o antropólogo Métraux
destacou-se na defesa da etnologia e interessou-se pelas tribos sul-ameri-
referidos livros de Métraux, mas de todo modo podemos ver aí uma pista das
publicações sobre o tema da antropofagia, disponíveis naquele momento, no
início do século XX. Elencadas abaixo, tais obras com certeza foram também
- ms. inédito, Fols.53-62 v., part i. caps. XVIII, XXVIII, XXXVI, XXXVII, XI, e
part II cap. XXIX
Cardim, págs. 181-194,
Soares de Sousa, págs. 3JJ-339,
Gandavo, págs. 51-53 e 138-142,
Nóbrega, págs. 93,
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a carta de Ramirez, em Medina. t. L pág. 443:
Pigafetta, pág. 18-19.
A antropofagia dos tupinambás foi estudada muito sumariamente por
Além do evidente fogo da fala indígena captada por Montaigne, que infla-
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nação nada de bárbaro e de selvagem, pelo que me contaram, a não ser
porque cada qual chama de barbárie aquilo que não é de seu costume»
3
«não comércio», da vida «sem riqueza nem pobreza», enfim, sobre o «comu-
nismo» tribal dos ameríndios. O autor brasileiro retrabalhará essas ideias,
afirmando, por exemplo, que «não tínhamos gramática» em articulação ao
3 «je trouve, pour revenir à mon propos, qu’il n’y a rien de barbare et de sauvage en cette
nation, à ce qu’on m’en a rapporté, sinon que chacun appelle barbarie ce qui n’est pas
de son usage ; comme de vray il semble que nous n’avons autre mire de la verité et de la
raison que l’exemple et idée des opinions et usances du païs où nous sommes».
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No «Manifesto Antropófago» a releitura do rito Tupinambá evocará nova
audiência em 1928, mas com o mesmo sentido de concepção de mundo, de
valores humanistas fundamentais, de Weltanschauung: «Só a antropofagia
nos une». Na linhagem de releituras do rito antropofágico, o Brasil teve no
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descobriu a outra Grécia, não a de Renan e de Bilac, a Grécia de Baco, pai
os bárbaros» 5
A não aceitação do «espírito sem o corpo» de que fala o «Manifesto» de
-
senvolvida em Assim falou Zaratustra: «Porque eles comeram mal, por isso
veio-lhes esse estômago estragado — um estômago estragado, sim, é seu
espírito: é ele que aconselha a morte! Pois em verdade, meus irmãos, o es-
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segundo o grau de sua força de apropriação, de sua força digestiva, para
falar em imagem — e efetivamente o “espírito” ainda se assemelha ao máximo
a um estômago» (Ibidem
Além de todos esses ecos, que assinalamos aqui de maneira pontual, há
um sentido geral dionisíaco, anti-metafísico, voltado à valorização do corpo,
Candido.
-
co ao evento cultural em que foi um dos motores de realização: «Nunca se
poderá desligar a Semana de Arte, que se produziu em fevereiro, do levante
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à estagnação, e por isso criou a Revista de Antropofagia, exatamente para
continuar em movimento. Na Revista de Antropofagia -
ros lançaram mão de radicalizações de todo tipo, agredindo antigos pares,
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Segundo Augusto de Campos, a Revista de Antropofagia
fica como documento vivo das primeiras refregas, exemplo até dramático
ilhado, com alguns poucos, contra a maré da geleia geral que acabou envelo-
pando quase todos os seus companheiros da revolução modernista (Campos,
-
soais e também as da história do Brasil nas frases curtas e emblemáticas
de seu «Manifesto Antropófago». Uma das mais pertinentes é exatamente
«a nossa independência ainda não foi proclamada». Grifo nesse aforismo o
advérbio ainda como marcador de uma crítica simultânea ao passado e ao
presente, e sobretudo como uma provocação da necessária urgência de
transformação, visando o futuro.
países que têm o que conservar é funesto; mas nos países novos, é absurdo
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Entre os temas do «Manifesto» encontramos a antropofagia, o Brasil, a
colonização, a história da civilização ocidental, os índios, a psicologia, a re-
ligião, a antropologia, a Revolução Francesa, a Revolução Caraíba, a Re-
volução Bolchevista, a revolução surrealista, o comunismo, o direito, o pa-
triarcalismo, o Matriarcado, a Independência do Brasil. Do ponto de vista
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-
autor vivencia na prática de sua escritura, com sua sintaxe original, aquela
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livremente com a ambiguidade dos sentidos.
Seguindo nesse roteiro, assinalo que com sua linguagem aforismática
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instituição do casamento»
configuram no «Manifesto» esse objetivo do artista:
em drama. Freud acabou com o enigma mulher e com outros sustos da psy-
chologia impressa».
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Roteiros. Roteiros. Roteiros», «Mas nunca admitimos o nascimento da lógica
entre nós».
Depois desta análise dos aforismos, em que também se buscou estabele-
que «nunca tivemos» gramática, nem coleções de velhos vegetais, não sabí-
-
zados. E sobretudo, nunca admitimos o nascimento da lógica entre nós. Ou
seja, a partir dessa perspectiva, é exatamente o «não ter», a «falta de», a ca-
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desse corpo / texto na diversidade de suas partes. A linguagem expressiva
eterna: não se trata de mais uma definição do ser, mas de subsumir este à
lógica do devir, de afirmar a proeminência metafísica da relação sobre os
termos, de modo que a categoria ontological fundamental, que no Ocidente
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Que venham todos sem hesitar e se reúnam para devorá-lo, pois ao mesmo
tempo estarão comendo seus próprios pais e seus avós, que já lhe serviram de
alimento e de sustento para o corpo. Estes músculos, esta carne e estas veias
são os vossos, pobres loucos que sois; não reconheceis que a substância des-
ses membros de vossos ancestrais ainda se conserva neles; saboreai-os bem
e encontrareis neles o gosto de vossa própria carne
encarna ao mesmo tempo o matador que expõe sua «presa» e o inimigo que
defende sua vida, argumentando que, afinal, outros já foram devorados e o
futuro continuará a devorar essa mesma carne. Há assim muitas lutas propos-
pluralidade está não apenas na teoria que defende, mas sobretudo no modo
como escreve — e escreve comendo — e ainda mais, colocando-se enquan-
to autor no moquém, incorporando o devorador e o devorado, provocando
rupturas, ameaçando o status quo da língua e dos costumes.
Importante lembrar que no «Manifesto Antropófago» tudo passa pelo
corpo, tudo vem do corpo e ao corpo retornará. A centralidade do corpo na
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uma antipatia grande pela metafísica, e explica:
filosofia do corpo, em
certo sentido uma «gaia ciência», uma sabedoria da alegria que não separa
espírito e corpo e quer pensar o ritual da antropofagia com o corpo da pala-
vra, manifesta. Nesse sentido, poeta e filósofo encontram-se na perspectiva
de pensar a vida devorando-a.
Nós filósofos não temos a liberdade de separar entre alma e corpo, como
o povo separa, e menos ainda temos a liberdade de separar entre alma e
espírito. Não somos rãs pensantes, nem aparelhos de objetivação e máquinas
registradoras com vísceras congeladas — temos constantemente de parir
nossos pensamentos de nossa dor e maternalmente transmitir-lhes tudo o
que temos em nós de sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, cons-
ciência, destino, fatalidade. Viver — assim se chama para nós, transmudar
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constantemente tudo o que nós somos em luz e chama; e também tudo o
que nos atinge; não podemos fazer de outro modo
[...] não conheço nenhum simbolismo mais alto do que esse simbolismo
grego, o das Dionisias. Nele o mais profundo instinto da vida, o do futuro
da vida, da eternidade da vida é sentido religiosamente — o caminho mesmo
para a vida, a geração, como o caminho santo... Somente o cristianismo, com
seu ressentimento contra a vida no fundamento, fez da sexualidade algo
impuro: lançou lodo sobre o começo, sobre o pressuposto de nossa vida
(Ibidem
-
fende a sua Antropofagia na perspectiva religiosa, vital, com o mesmo va-
lor atribuído por Nietzsche ao Dionisismo. O almejado instinto da vida que
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matriarcado de Pindorama. Chego à conclusão que a crítica ao Catolicismo,
que aparece em Nietzsche personalizada na manutenção do tabu da sexu-
Na última ceia, Jesus tomou o pão, deu graças, partiu-o e deu-o aos seus dis-
cípulos, dizendo: «Tomai e comei: isto é o meu corpo, que será entregue por
vós». Depois tomou também o cálice, deu graças e deu-o aos seus discípulos,
dizendo: «Bebei dele todos: pois este é o meu sangue, o sangue da nova e
eterna aliança que será derramado por vós e por muitos para a remissão dos
pecados». Fazei isto em memória de mim (1 Cor.,
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