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Coreografias de Gênero em Covers de K-Pop: Intercom - Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares Da Comunicação

O documento discute como grupos de covers de K-pop no Brasil "coreografam o gênero" ao reencenarem coreografias de grupos femininos sul-coreanos. Analisa como esses grupos, compostos principalmente por jovens negros, gordos e LGBTQIA+, ressignificam elementos como o "aegyo" e promovem rasuras performáticas interculturais. Também debate como a dança é um lugar privilegiado para discutir a performatividade de gênero nesses grupos.
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Coreografias de Gênero em Covers de K-Pop: Intercom - Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares Da Comunicação

O documento discute como grupos de covers de K-pop no Brasil "coreografam o gênero" ao reencenarem coreografias de grupos femininos sul-coreanos. Analisa como esses grupos, compostos principalmente por jovens negros, gordos e LGBTQIA+, ressignificam elementos como o "aegyo" e promovem rasuras performáticas interculturais. Também debate como a dança é um lugar privilegiado para discutir a performatividade de gênero nesses grupos.
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Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação

43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – VIRTUAL – 1º a 10/12/2020

Coreografias de gênero em covers de K-pop1

Thiago SOARES2
Lúcio SILVA3
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Recife, PE

RESUMO: Grupos covers de K-pop (K-covers) corporificam seus ídolos sul-coreanos


em práticas coreográficas online e offline ao mesmo tempo que, a partir da
especificidade de seus corpos, “coreografam o gênero” (FOSTER, 1998) em suas
aparições performáticas. A relevância desta investigação está em apresentar ferramentas
teórico-metodológicas para análise de fenômenos da cultura pop, a partir das
intersecções das noções de interculturalidade e dos estudos de gênero. Apresenta como
metodologia, a análise de vídeos de grupos covers de K-pop em que jovens homens
(negros, gordos e LGBTQIA+) reencenam coreografias de girl groups promovendo
rasuras performáticas interculturais. Destaca a ressignificação do aegyo (aqui pensado
como “fofura” dos grupos femininos de K-pop) que coreografado por jovens gays em
contextos fora da Coreia do Sul operam sob a lógica do close, da fechação e do lacre.

PALAVRAS-CHAVE: performance; gênero; k-pop; cultura pop; interculturalidade.

É através da presença de grupos de jovens dançando coreografias de música pop


coreana nas praças, ruas e locais públicos das cidades que se percebe a capilaridade do
K-pop no contexto global. A partir da tentativa de emular as coreografias, os gestos e o
estilo de vida dos ídolos de K-pop, as práticas de cover (ou seja, como dispõe no
dicionário, “pessoa ou grupo que imita um artista ou banda famosa”) são uma das
principais dimensões performáticas no K-pop na medida em que acionam a
corporificação (embodiment) das materialidades expressivas deste gênero musical.
Chamamos K-covers, grupos que praticam, em seu cotidiano, ações que remetem
performaticamente a ídolos de K-pop, tentando construir através de pistas, resíduos e
informações, uma vivência em rede que se conecta àquela encenada midiaticamente
pelos artistas de pop coreano. No Brasil, a prática do K-cover se firma em meados dos
1 Trabalho apresentado no GP Estéticas, Políticas do Corpo e Gêneros, XX Encontro dos Grupos de Pesquisas em
Comunicação, evento componente do 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação.
2 Professor e pesquisador do Programa de Pós-graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), coordenador do grupo de pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop (Grupop), Bolsista
Produtividade em Pesquisa do CNPq Nível 2, e-mail: [email protected].
3 Mestrando no Programa de Pós-graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE), Bolsista FACEPE (Fundação de Amparo a Pesquisa no Estado de Pernambuco), e-mail:
[email protected].

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anos 2010, com a emergência de um nicho de jovens interessados na cultura pop sul-
coreana, principalmente, no ambiente digital, tendo os vídeos de dance practice4 como
um dos possíveis impulsionadores do fenômeno (URBANO e KAUTSCHER, 2018).
São as convenções ligadas às culturas tradicionais e pop japonesa 5 que estabelecem a
formação de uma cena K-cover, através da reiteração da importância de concursos e de
sociabilidade dentro desses espaços, numa relação que também é atravessada pela
presença do K-pop na trilha sonora dos animes japoneses, até então, elementos centrais
nesses eventos (URBANO e KAUTSCHER, 2018).
Para além da ocupação espacial urbana, grupos juvenis de K-cover se espraiam
nas redes sociais digitais, compartilhando vídeos com suas coreografias e disputando
atenção, curtidas e comentários em plataformas de compartilhamento de vídeos como o
Youtube. A criação de desafios (challenges) para que K-covers – com diferentes graus
de formalização – se engajem e mobilizem fãs e admiradores através da criação de
vídeos coreográficos compartilhados em diferentes redes sociais digitais é uma prática
na circulação de produtos, valores e afetos. Este artigo é parte das reflexões de uma
pesquisa em curso sobre K-covers da Região Metropolitana do Recife (RMR), que
abriga uma cena cultural ativa, em que covers de K-pop participam desde pequenas
competições dentro de shopping centers até eventos mais complexos realizados em
centros de convenções6.
Como fenômeno integrante das práticas de transculturação a partir da
globalização, o K-pop se particulariza quando em contato com diferentes contextos. Na
Tailândia, como atesta a análise de Käng (2014), os K-covers fazem emergir a figura do
“sissy”, o jovem afeminado e magro que, de “super fãs” de K-pop passam a figurar
como “proto-idols”, evocando o processo de celebrização de jovens gays afeminados no
contexto do Sudeste Asiático. Laurie (2016) reconhece que, no processo de
globalização, o K-pop, ao se capilarizar por contextos ocidentais, faz emergir novas
arenas de disputa sobre o feminino, na medida em que estabelece novos horizontes
comparativos com feminilidades vividas nas Américas.
Na América Latina, parece fazer emergir as particularidades da história colonial,

4 Vídeos dos ídolos do K-pop praticando suas coreografias. Geralmente são utilizados pelos grupos K-cover para
aprenderem a coreografia e distribuição no palco.
5 Como o Sana Fest no Ceará, Anime Friends, em São Paulo e SuperCon, em Pernambuco, entre outros.
6 Até o ano de 2019, os locais preferidos para reunião e ensaio dos diversos grupos covers da Região Metropolitana
do Recife (RMR) eram os parques da Jaqueira e Dona Lindu, ambos localizados em áreas nobres da cidade, ou o
Bairro do Recife, no centro da capital. Fora da RMR, destaca-se a presença do K-cover em Caruaru, situada na região
agreste do Estado e conhecida como “Capital do Forró”.

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na medida em que, a partir do espaço especulativo em que os covers emulam seus ídolos
coreanos, “faz aparecer” diferentes corpos, em sua grande maioria de pessoas mestiças,
revelando o passado de mestiçagem e hibridismo já evocado por Taylor (2013) na
história cultural das Américas. Há modulações específicas no contexto mexicano. Ao
evocar os K-covers no contexto da Cidade do México, Torres (2020) ressalta a
existência de aspectos morais ligados a questões de gênero na identificação de
diferentes padrões de beleza e sexualização de jovens. Para o autor, o “horizonte moral”
da sociedade sul-coreana emerge como uma dimensão comparativa para o tratamento de
aspectos ligados a vivências urbanas juvenis mexicanas.
Grande parte dos estudos sobre K-pop desenvolvidos no contexto
latinoamericano apresentam como foco, as problemáticas de gênero, seja a partir da
corporificação de “asianidades” em corpos ocidentais; de dilemas morais sobre a
sexualização, infantilização e erotização de corpos de jovens adolescentes; do diálogo
com masculinidades asiáticas que, quando postas em perspectiva, ressaltam
problemáticas queer ou desviantes e sobretudo a partir do reconhecimento de um
conjunto de mal-entendidos culturais (GARCÍA CANCLINI, 2009) que emergem nos
processos de transculturalidade. Estes estudos encontram reverberação nos “problemas
de gênero” dos K-covers da cidade de Recife: ao contrário dos corpos consagrados no
centro da indústria musical sul-coreana, que prezam pela magreza e pele clara, o que se
evidencia nos grupos recifenses é a larga presença de jovens mestiços, negros, gordos e
LGBTQIA+7, apresentando rasuras raciais típicas também dos fenômenos
transnacionais.
Este artigo pretende debater questões de gênero em grupos covers de K-pop a
partir do reconhecimento de que a dança é um lugar privilegiado para o debate sobre
performatividade de gênero, na medida em que as marcações regulatórias dos gêneros
são “colocadas em cena”, dançadas, generificando corpos a partir de movimentos,
gestos e, portanto, coreografias. Utiliza-se o conceito de “coreografias de gênero”
(FOSTER, 1998), para quem a performatividade seria tanto uma reiteração de normas
quanto a dissimulação das convenções na repetição, para se debater a atuação de grupos
covers de K-pop como um conjunto de movimentos deslizantes: 1. entre performances
consagradas de grupos sul-coreanos e suas reencenações em diferentes contextos

7 Performance cover do grupo Glamour no Festival da Cultura Coreana em Pernambuco ilustra bem quais corpos
habitam a cena K-pop local. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=xmm3Fh5Jtm4>. Acesso em: 06 de
out. 2020.

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globais a partir de vídeos disponibilizados em redes sociais digitais; 2. de


deslocamentos de marcações de orientalidades (URBANO, 2018) em esfera global e um
conjunto de mal-entendidos culturais que reverberam em gestos regulatórios sobre
formas “corretas” de traduzir corporalmente o K-pop e 3. sobre as disputas em torno do
virtuosismo e diferentes formas de adesão e consagração de covers em redes sócio-
técnicas digitais.
A metodologia presente neste artigo conjuga o levantamento de ações em rede a
partir da identificação de pontos de convergência sobre estas ações através das hashtags
em plataformas audiovisuais. Designou-se a hashtag “KPOP IN PUBLIC” no Youtube
como dispositivo agregador de vídeos de covers. O interesse específico da pesquisa é
pela aparição de covers realizados por homens negros e mestiços que se encontrem
desviantes no tocante aos padrões de corpos da indústria sul-coreana. A hipótese que se
desenha é a de que o K-pop permite que grupos de jovens homens fabulem asianidades
pop em suas coreografias ao mesmo tempo que problematizem matrizes culturais
identitárias na medida em que aparecem em cena. Ou seja, estamos diante de problemas
de performance (TAYLOR, 2013) que narrativizam aparições em espaços públicos,
promovendo simplificações e domesticações, mas também tensionamentos em torno do
próprio ato de aparecer em público (BUTLER, 2018).
Este artigo está dividido em três partes. Na primeira, levanta-se um conjunto de
problemas de gênero que dizem respeito ao consumo de K-pop no contexto brasileiro.
Aponta-se que a interculturalidade (GARCÍA CANCLINI, 2009) é uma importante
rubrica teórica para complexificar diferenças, negociações, empréstimos e conflitos
deste fenômeno em contextos distantes da sua origem, na Coreia do Sul. Em seguida,
propõe-se pensar a dança como um lugar privilegiado para se debater estas questões de
gênero, na medida em que a generificação dos corpos opera através daquilo que Susan
Leigh Foster (1998) chama de “gestos de gênero” reconhecendo como a coreografia é
uma importante metáfora para identificação de mudanças tanto nos âmbitos privados,
mas sobretudo públicos. Por fim, propõe-se o mapeamento de gestos coreográficos de
K-covers que ressaltam as tensões da interculturalidade, habitando um entrelugar que,
embora mimetize coreografias geradas por grupos de música pop coreana, também
ressalta diferenças, desigualdades e assimetrias presentes no mundo global.

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Interculturalidade e gênero

Como fenômeno da cultura jovem, estudar o K-pop significa tatear por “dentros
e foras” do fenômeno, em função de sua natureza cifrada, específica e repleta de
códigos – acentuados a partir também do alto grau de imersão de fãs e admiradores a
partir de dinâmicas da cultura digital. Os “dentros e foras” do K-pop são lugares
epistemológicos em que se formulam perguntas e problemas de investigação, variando a
partir de diferentes lugares de fala (RIBEIRO, 2017) e pontos de vista (COLLINS,
2019) de onde se encenam as questões. Pensar diferentes lugares de observação de
fenômenos que orbitam sobre o K-pop permite construir problemas a partir tanto de
vivências específicas de fãs, suas disputas e jogos performáticos em rede, quanto diante
de questões mais gerais e amplas – “de fora” – no que tange as semelhanças e diferenças
deste gênero musical dentro de uma história da cultura pop.
A música pop sul-coreana (K-pop) é a resposta do pequeno país peninsular no
jogo de disputas da cultura pop. Num cenário de crise econômica a partir da recessão
que atingiu os países que integravam os Tigres Asiáticos em 1997 (KIM, 2012) e sem
dispor de grandes faixas de terra, a Coreia do Sul decide investir na cultura como uma
de suas principais “commodities” e, assim, surge a complexa indústria do K-pop, que
treina, gerencia e produz artistas pop em larga escala. A expansão do pop oriental está
associada a “um projeto ativo de construção de identidades nacionais e regionais, com
base em um projeto que alia métodos baseados na lógica de mercado a objetivos
políticos” (ALBUQUERQUE; CORTEZ, 2015, p. 253). Isto é, a cultura pop conjuga a
lógica econômica à política, ancorada nos conceitos de soft power (MARTEL, 2012) e
nation branding (construção de marca de nações). A Coréia do Sul, especificamente, se
utiliza de elementos genéricos e estratégias de hibridização a fim de propiciar um
sentimento de proximidade cultural que converse tanto com os demais países do
Extremo-Oriente quanto com os do Ocidente.
É neste “entre” as diferentes partes que constituem o globo que os problemas de
interculturalidade emergem, na medida que a distância, as forças midiáticas e as
resistências locais permitem “incomensurabilidades, incompatibilidades e
intradutibilidades das culturas” (GARCÍA CANCLINI, 2009, p. 18). Ao tratar os
problemas da interculturalidade a partir da emergência de pesquisas sociológicas que

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tratam sobre fenômenos oriundos da globalização, Canclini propõe pensar sobre


negociações epistêmicas e morais que ocorrem entre culturas, dentro das culturas e
também a partir de traços individuais dos sujeitos, fazendo com que discrepâncias,
ambiguidades e conflitos emerjam. As questões morais, destacadas por Canclini, são
especialmente importantes para se tratar dos novos problemas da interculturalidade, na
medida em que um “mundo pós-ocidental” (STUENKEL, 2019) começa a se desenhar a
partir da crise econômica nos Estados Unidos de 2008 e do amplo crescimento
econômico da China, fazendo emergir forças tanto econômicas quanto políticas e
culturais do Oriente. O embate de sociedades “tradicionais” do Oriente com as “cristãs”
do Ocidente colocam em cenas disputas que passam por modos de debater as diferenças
principalmente no terreno dos costumes e das lógicas morais.
Neste sentido, é fundamental perceber movimentos internos sobre
interculturalidade no K-pop tanto dentro da própria Ásia, quanto externos em relação ao
Ocidente. Os produtos culturais pop sul-coreanos ganharam popularidade de forma
expressiva dentro da Ásia na década de 1990, dando origem a Hallyu Wave, a Onda
Coreana (URBANO e KAUTSCHER, 2018), expandido-se, com uma série de tensões,
para países como Japão, China, entre outros. Anos mais tarde, serão empreendidos
esforços para atingir o mercado ocidental, a exemplo do álbum em inglês lançado pela
solista BoA em 2009. O ponto que marca significativamente a entrada do K-pop nas
paradas musicais ocidentais é o sucesso de Gangnam Style (2012), faixa composta e
interpretada pelo rapper PSY, cujo videoclipe atinge a marca de ser o primeiro vídeo a
conquistar um bilhão de visualizações na plataforma do YouTube (G1, 2012).
A presença do K-pop no Ocidente e sua capilaridade na cultura pop pode ser
vista nas turnês realizadas pelos grupos BTS e BLACKPINK, que percorreram grandes
cidades da América do Norte e Europa em 2019. Os dois grupos (o primeiro, uma boy
band; o segundo, uma girl band) auxiliam a pensar a interculturalidade em termos de
indústria da música, na medida em que consagram um formato largamente explorado na
cultura pop ocidental: os grupos formados por meninos (boy bands) e meninas (girl
bands). Uma história da música pop no Ocidente permite visualizar momentos em que
boy bands e girl bands foram importantes mediadores para “atravessamentos culturais”
(MARTEL, 2012), na busca de novos mercados e também para a incorporação de
diferenças no âmbito da indústria do entretenimento. Fréderic Martel lembra que uma
das estratégias da gravadora Motown para promover cruzamentos culturais para

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consumo da música negra por plateias brancas na década de 1960 num Estados Unidos
racialmente segregado foi o amplo uso deste formato de grupos de jovens negros
separados por gênero. Jackson 5 e The Supremes, grupos musicais formados por jovens
homens negros e mulheres negras, foram, nas palavras do sociólogo, formas de atenuar
as diferenças dos corpos negros para seu amplo consumo no contexto de acirramento
racial em âmbito midiático.
Pensando a interculturalidade como a dimensão de interação, diálogo, mas
também exclusão e domesticação entre culturas, propõe-se debater como o formato de
boy bands e girl bands integra tanto uma história dentro da indústria musical e do
entretenimento quanto de uma série de negociações de cunho geopolítico. Ainda na
década de 1990, grupos como New Kids on the Block, Five, Westlife e Spice Girls
foram centrais na indústria musical da Inglaterra a partir da relação com o fenômeno
chamado de Cool Brittania, de orgulho britânico a partir da ostentação de bandeiras e
do nacionalismo.
É dentro da indústria da música e do entretenimento, que se propõe pensar os K-
covers como parte integrante do conjunto de práticas interculturais da territorialização
do K-pop em diferentes contextos globais, na medida em que, como alerta Canclini,
deve-se prestar atenção às misturas, hibridizações, mas sobretudo “mal-entendidos” que
vinculam grupos, ou seja, problematizar como se dão as apropriações materiais e
simbólicas em suas reinterpretações. “Não só as misturas, mas também as barreiras que
se entrincheiram” (GARCÍA CANCLINI, 2009, p. 23).
Observar as interculturalidades implica em problematizar também questões de
gênero, uma vez que o gênero é atravessado por enquadramentos culturais. Generificar
corpos, atribuir-lhes sentidos e sensibilidades passa pelo reconhecimento de
movimentos, dramaticidades e teatralidades que se dão nos campos de disputa das
culturas. A questão não é apenas perceber como noções de masculino e feminino são
engendradas por atores sociais em contextos interculturais, mas sobretudo, pensar sobre
os movimentos “coreográficos” que permitem o gênero aparecer e se estabilizar –
embora sempre passível de novas instabilidades.
É sobre este argumento “coreográfico” do gênero que Susan Foster (1998)
apresenta críticas a Judith Butler (2009) pela filiação excessivamente linguística do
conjunto de teorias sobre performatividade formuladas pela filósofa. A “coreografia do
gênero”, como defendida por Foster, evocaria um corpo sempre situado e em situação,

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que recusaria a estabilidade e estaria apto e aberto a fenômenos externos (que


chamamos de “culturais”) em seus deslizamentos gestuais. Neste sentido, as questões de
gênero moventes nos processos de interculturalidades apontam para uma fenomenologia
das corporalidades, em que se evidenciam menos na essência dos corpos e mais nas
políticas das interpretações.
As coreografias de gênero implicam em perceber “movimentos de existência”
entre culturas em que fazer, dramatizar e reproduzir gestos de outras culturas implica
sempre numa dupla perspectiva: o que permanece dos resíduos culturais mediados nos
corpos, mas também o que se altera e se converte em outras matrizes expressivas
generificadas. Observar os K-covers portanto permite reconhecer a existência de
matrizes miméticas que fazem aparecer as asianidades desejadas, mas também as
conversões, dissidências e contrastes típicos das interculturalidades.

Performance e coreografia de gênero

Tomando a interculturalidade como espaço de possíveis nas encenações dos


covers de K-pop, precisamos pensar sobre a dimensão material destes acionamentos
corporais. Cabe, portanto, trazer à tona o debate sobre performance a partir da ideia de
que se trata de “atos de transferência vitais, transmitindo o conhecimento, a memória e
um sentido de identidade social por meio do que Richard Schechner denomina
comportamento reiterado” (TAYLOR, 2013, p. 27). Para Diana Taylor, performances
desempenham papel importante na conservação da memória e consolidação de
identidades em sociedades letradas, semiletradas e digitais, na medida em que
funcionam como repertórios contidos nos corpos. Heranças eurocêntricas dos campos
da antropologia e do teatro e o logocentrismo ocidental que pairam sobre os estudos da
performance são debatidos pela autora, que denuncia a legitimação da escrita em
relação a outros sistemas epistêmicos, apontando para a predominância do arquivo
(cartas, livros, registros materiais) supostamente duradouro nas epistemologias
ocidentais, em relação ao repertório (gestos, dança, canto, entre outros atos) visto como
conhecimento efêmero, não-reproduzível.
As noções de performance suscitadas por Taylor nos permitem estabelecer a
lente metodológica para análise de eventos que envolvem atos performáticos, a exemplo
de um show de música no qual um artista se apresenta num espaço-tempo delimitado.

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“Tais artistas reúnem fãs, frequentadores, curiosos e apreciadores de música que, por
sua vez, performatizam maneiras de estar, de fruir e de sentir a música, corporificando
resistências, obediências, cidadanias, gêneros, etnicidades, entre outros aspectos”
(AMARAL, SOARES e POLIVANOV, 2018, p. 10).
Pensar as performances cover de K-pop inclui debater portanto a formação de
repertórios coletivos que têm como arquivos, em grande parte, videoclipes e
apresentações ao vivo, realizadas por grupos de sul-coreanos e disponibilizados em
plataformas de vídeo e também em redes sociais digitais. As performances de K-covers
são tentativas de corporificação de arquivos visuais de K-pop a partir das marcas
territoriais, geográficas, políticas e estéticas disponíveis. Neste sentido, visualizar os
espaços entre “arquivos” e “repertórios” no que tange os K-covers auxilia a reconhecer
as diferenças, desigualdades, assimetrias e ambiguidades presentes em processos
globais. A ideia de diferença aparece como um importante marcador das utopias
possíveis nestes embates, diante das imagens e sons arquivadas em audiovisual pelas
instâncias profissionais da indústria do pop sul-coreano e a corporificação destes
arquivos gerando um território afetivo e simbólico em que fãs e covers fabulam sobre
seus ídolos orientais.
Falar dos K-covers inclui, principalmente, visualizar corpos que estão a dançar.
Por isso, ao debate sobre performance proposto por Taylor (2013) acrescentamos o de
“coreografia de gênero” a partir de Foster. A proposta da autora é debater gênero a
partir da metáfora da dança, uma vez que corpos em movimento seriam mais propícios a
apresentarem os “não-ditos” e os silêncios que não seriam enquadráveis no campo mais
“sedimentado” do discurso. Foster debate as coreografias como enquadramentos,
formas de ler e interpretar o social na medida em que corpos que dançam “incorporam”
o social, ou seja, as marcas das sociedades estariam atravessadas nas corporalidades a
partir também do que André Lepecki (2011) chama de “política do chão” – que corpo
emerge do chão que pisa, do território, do clima e da geografia implicada.
Para Foster, mudanças coreográficas ajudariam a compreender as mudanças
sociais, suas reencenações e disposições. A autora chama atenção para como a dança
presentifica momentos sociais (a criação das normas do balé clássico em consonância
com uma série de racionalismos presentes no século XIX) em diferentes contextos (do
conhecimento erudito de matriz europeia, para a relação entre dança e protesto no
contexto de segregação racial nos Estados Unidos, passando pelas dinâmicas

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ritualísticas em sociedades africanas, entre outros). A metáfora da dança permite


reconhecer que coreografias são feitas com corpos em constante devir, realizando
movimentos inacabados que podem ser reengendrados ou atualizados, mas nunca
finalizados – assim como a dimensão da performatividade.
É nesta articulação entre “coreografia” e “gênero” a partir da performatividade
que Foster parece fazer a sua mais importante contribuição: a performatividade
apresentaria as dimensões regulatórias dos gêneros, no entanto, estas regulações são
convencionadas, não são “vistas”, antes são incorporadas e vividas no cotidiano. Para a
autora, pensar a coreografia de gênero seria da ordem de reconhecer movimentos
constantes que nem sempre são apreendidos como coreográficos (um caminhar pode ser
de uma ordem coreográfica ou não), no entanto, é no deslocamento e no enquadramento
como performance que tais gestos aparecem como “coreografia de gênero”, deixam
marcações, rastros e são tomados como ancoragens compreensíveis sobre a estabilidade
da performance de gênero.
Este debate interessa ao estudo sobre K-covers na medida em que pensar
coreografias de gênero significa debater tanto as questões de ordens interculturais
quanto de gênero, permitindo que os corpos dançados situem entrelugares no tecido
social entre diferentes atores e admiradores do K-pop. Embora as “coreografias de
gênero” pareçam dar conta de intangibilidades e movimentos constantes que parecem
fazer aparecer e desaparecer as marcações, em fenômenos como o K-pop, estas
marcações precisam ser pensadas de forma mais estável. A fim de entender a
consagração dos corpos padrões na indústria do K-pop, Kim (2012) sugere visualizar os
videoclipes comerciais da Lotte Department Store e Dutty Free Korea, que trazem
elencos compostos por artistas de grande sucesso e rentabilidade em suas respectivas
áreas da indústria musical sul-coreana.

Ele todos são belos, sem falhas e detém os padrões estéticos da Hallyu
coreana. As mulheres têm pele de porcelana, figuras esbeltas, cabelos
macios e brilhantes, olhos grandes, narizes perfeitamente retos com
altas pontes parecendo caucasianas, lábios carnudos e faces do
tamanho de um punho que são impossíveis de envelhecer. Os homens
compartilham características similares com rostos sem pelos e
ausência de marcas, corpos longos e magros com abdomens
perfeitamente tonificados, com personalidades e sorrisos que
transpiram calor e romance do Dia dos Namorados. (KIM, 2012, p.
11, tradução nossa)

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Por meio de suas performances e aparência “impecáveis”, as estrelas do K-pop


se tornam aparato do Estado e passam a fazer parte do projeto de modernidade sul-
coreano (KIM, 2012), agindo como embaixadores dos valores da Coreia do Sul no
globo. O rigor deste padrão corporal, que consagra o corpo asiático, é problematizado
em outros contextos racialmente diversos das matrizes asiáticas. Portanto, as
“coreografias de gênero” dos K-covers apontam para pensar que corporalidades, gestos
e ações são consagradas por grupos sul-coreanos; como estas coreografias são
reencenadas em diferentes contextos globais e que marcações (gênero, classe social,
raça) aparecem a partir das regulações sobre formas corretas de traduzir o K-pop e em
que medida as disputas em torno do virtuosismo dos gestos coreográficos revelam
disputas simbólicas entre diferentes atores no contexto das redes sociais digitais.

Generificando o aegyo

Empregando a hashtag “KPOP IN PUBLIC” na ferramenta de buscas do


YouTube – rede social digital destinada ao compartilhamento de vídeos – foram
selecionados vinte e cinco vídeos para análise inicial, no entanto, com o andamento da
pesquisa, foi possível destacar três grupos cover que materializam, através de seus
corpos, as questões problematizadas por este artigo: 1. The Hive Dance Crew, grupo
baseado em Paris, na França, formado majoritariamente por homens negros, com
destaque para seus integrantes gordos, dentre eles, Yocaste, que costuma assumir as
posições de centro nas coreografias; 2. B2, grupo sediado na cidade de São Paulo,
formado por homens negros e mestiços, além de um integrante com traços asiáticos; e 3.
Heirs, grupo também formado por homens negros e mestiços, sediado na cidade do
Recife.
Para o debate analítico, é preciso estabelecer um entendimento sobre aegyo,
termo usado para englobar timbres e tons de vozes “doces”, expressões faciais suaves e
gestos delicados comumente executados pelos ídolos do K-pop numa performance de
fofura que, embora seja comum aos ídolos, denotam diferenças nos atravessamentos do
aegyo em grupos masculinos e femininos. A fofura aparece com frequência nas
performances femininas, “assombrando” suas coreografias com uma partitura corporal
delicada, contida, de movimentos sutis e, muitas vezes, próximos ao rosto, que
constroem um olhar de inocência, fragilidade e jovialidade/infantilidade.

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Por outro lado, grupos masculinos também são atravessados pelo aegyo, mas
costumam fazê-lo em terrenos fora do reino da dança, em entrevistas, aparições
públicas, etc, gesticulando de forma fofa, a exemplo do “finger heart”, o ato de fazer um
coração cruzando os dedos indicador e polegar que se tornou popular entre os ídolos.
No palco, é comum que os artistas masculinos do K-pop distanciem-se da estética da
fofura, performando uma atitude mais agressiva: abdomens definidos são expostos com
frequência, enquanto a dança é composta por movimentos mais marcados, que
aparentam exigir força, acionando heranças da cultura hip-hop que é parte fundante do
K-pop. Há grupos femininos, como BLACKPINK, que são classificados como “girl
crush”, que evocam uma ideia de “girl power” e de atitude feminina, atrevimento, mas
ainda são atravessados pela estética da fofura; parece que há um limite para sua
agressividade em cena.
Segundo Foster (1998), o processo de criação da coreografia mobiliza o campo
semiótico do corpo - as conotações de membros como cabeça, mãos e pélvis - e situa o
corpo dentro dos recursos simbólicos do espaço da performance. Fazendo-o, desenha-se
um repertório de ações corporais que confirmam ou transgridem um horizonte de
expectativas de comportamento generificado. Portanto, é possível pensar no aegyo
como uma coreografia da fofura que desenha um horizonte de expectativas e atravessa
as performances dos idols sul coreanos, em especial as coreografias dançadas pelos
grupos femininos.
A autora aponta que o (a) dançarino (a) cultiva seu corpo através do treino e
exercício, podendo, até mesmo, desenvolver uma musculatura pouco característica de
corpos femininos ou uma flexibilidade dificilmente associada ao corpo masculino,
afinal, o corpo é codificado em termos do sexo, e seus movimentos serão vistos como
generificados, acionando códigos comportamentais socialmente inscritos. Diante desta
problemática, a questão é reconhecer como o ato de dançar dramatiza e generifica as
maneiras de se mover.
Se a coreografia está associada a uma noção de roteiro da dança, uma espécie de
referencial coletivo, então, quando o dançarino apreende uma coreografia prévia,
adequa para suas capacidades corporais – tornando-a “sua”. O deslocamento da
coreografia para a corporificação abre espaço para o desvio, fazendo com que os gestos
se territorializem nos corpos dançados, fazendo “aparecer” aquilo que era previsto
porém repleto de improbabilidades. Embora a dança dramatize as dissidências entre o

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corpo e um horizonte de expectativas de comportamento generificado, e faça parte da


esfera do não-dito, as suas provocações atingem o campo discursivo da fala. Nesse
sentido, os comentários nas publicações de vídeos cover no YouTube se tornam uma
fonte interessante para observar os efeitos da performance e a materialização dos
desvios nos K-covers.

Coreografando interculturalidades: da “fofura” à “fechação”

Observando os comentários numa das publicações de maior visibilidade do


grupo B2, a performance cover de Feel Special8, do girlgroup Twice, destacam-se os
comentários valorando o quanto esse grupo de homens não tem vergonha de vestir rosa
e nem medo de agir de forma afeminada e serem vistos como gays. Os comentários,
muitos deles em língua inglesa apesar de se tratar de um grupo brasileiro, seguem
apontando como “diferente dos outros meninos”, o B2 seria, nas palavras dos
comentadores do Youtube, “mais femininos que muitas garotas”.
A valoração dessa hiperfeminilidade performada pelo grupo cover, incomum até
para os padrões do corpo feminino, torna possível a aparição do queer, ou o desvio da
norma a partir da reconfiguração de convenções genéricas. Aquilo que era o aegyo, ou
seja, a “fofura” dos corpos que emergem na indústria sul-coreana quando coreografado
nas diferenças interculturais, se torna “fechação”. A dinâmica da “fechação”, como já
apontou Lopes (2002), é um dos traços de grupos gays ou de comunidades trans como
recurso a uma existência “escandalosa” ou “fechativa”, parte da recusa à invisibilidade
histórica destes grupos.
Os roteiros das coreografias de K-pop são atualizados na situação da
performance, isto é, ao trazer a coreografia para a corporificação cover, grupos de K-
covers “queerizam” os gestos do K-pop, territorializando-os e compondo um quadro de
diferenças raciais, sociais e epistêmicas. O grupo Heirs situa-se num lugar similar ao
B2. Os comentários sobre sua performance cover de Hi High 9, do girlgroup LOONA,
destacam a delicadeza dos gestos e a fofura dos integrantes, contudo, a noção de uma
marcação desviante se materializa de forma explícita em comentários como “a gays
only event”, “SLAY MY BOYS! The L in LOONA stands for LGBTQ+” e “WIG:

8 Disponível em: <https://youtu.be/EBfYhP4LRjA>. Acesso em: 26 de set. de 2020.


9 Disponível em: <https://youtu.be/duPl39USpRA>. Acesso em: 26 de set. de 2020.

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SNATCHED”10. Isto é, para além dos corpos deslizando num horizonte de expectativas
de gênero, o uso dessas gírias ligadas à cultura drag e à comunidade LGBTQIA+,
reivindica a performance em questão para a esfera queer.
O grupo The Hive Dance Crew ao performar um cover de Icy 11, do girlgroup
ITZY, faz aparecer outras noções de desvio em cena. Primeiro, observam-se as mesmas
questões levantadas nos exemplos anteriores: esses corpos masculinos se apropriando de
uma coreografia de gênero categorizada como feminina. Jogadas de cabelo, sorrisos
cênicos para a câmera e a energia dos movimentos são ressaltados pelos comentários. O
grupo cover é parabenizado pela execução da dança, ou seja, percebe-se, pelos
comentários, que há o reconhecimento de que eles são “fiéis” aos gestos coreográficos
“originais”. Por outro lado, essa performance cover também promove um deslizamento
das expectativas em relação ao corpo que pode dançar e ao próprio chão em que se
dança – a ideia de “política do chão” (LEPECKI, 2011). Este grupo é de origem
francesa e executa a coreografia diante de espaços públicos da capital da França, Paris.
Esta dimensão territorial, sobretudo em função de sua carga clichê, torna-se um
operador analítico importante sobretudo quando “dançada” por homens negros,
mestiços e gordos.

“Wow! Devo desde já parabenizar sua coragem. Nunca é fácil de se


produzir em público, de assumir gostar do kpop e ainda menos de
dançar uma música de girl group sendo um rapaz. Quando vejo a
mentalidade francesa de hoje, acho isso hiper corajoso da sua parte e é
realmente prazeroso de ver e assistir. Parabéns! Você realmente prova
que a música e a dança não têm sexo, idade, cor nem língua. Eu vejo
com frequência seus covers de dança e admito que invejo um pouco
como você mostra às pessoas que não, o kpop não é apenas para
adolescentes de 12 anos. Continue assim :D”12 (tradução nossa)

O corpo negro e gordo de um dos integrantes, dançando no meio de Paris,


desliza sobre o chão dessa cidade símbolo do bon vivant europeu, não somente
ressignificando os movimentos coreográficos do K-pop, mas também a reivindicação de
uma outra forma de ocupar os clichês e ideais de modernidade. Traços de orientalidade
e negritude são dançados num cenário ocidental, marcado pelo eurocentrismo e pela
branquitude. Através de comentários, percebe-se que o K-pop já é reconhecido como
10 “PERUCA ARREBATADA” (tradução nossa). Gíria usada pela comunidade LGBTQIA+ para
expressar surpresa e admiração.
11 Disponível em: <https://youtu.be/I0f-qmOd6rk>. Acesso em: 26 de set. de 2020.
12 Disponível em: < https://youtu.be/I0f-qmOd6rk>. Acesso em: 26 de set. de 2020.

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espaço de tensionamento de normas generificadas para além de uma comparação com as


regras da sociedade sul-coreana – embora as marcações de sua origem sejam
constantemente acionadas.

Considerações finais

Os grupos de K-covers que contam com homens negros, mestiços, gordos e


portanto dissidentes dos padrões de corporalidades ideiais da indústria sul-coreana são
julgados nos ambientes de compartilhamentos de vídeos tanto por uma fidelidade às
coreografias quanto pela capacidade de reencenação e territorialização dos gestos dos
artistas de K-pop em contextos distintos. Sustenta-se portanto, a ideia de que, apesar de
cumprirem os movimentos desenhados pelas coreografias do K-pop, estes K-covers
apresentam uma outra ideia de atitude que circunda o imaginário sobre as comunidades
LGBTQIA+: a ideia da bicha, da lacração, close e da afetação - conjunto de
acionamentos performáticos que se materializam na interculturalidade, ou seja, na zona
de contato dos materiais simbólicos do K-pop com os contextos culturais diversos.
A proposta deste artigo é reconhecer as marcas, traços e materialidades estéticas
e culturais de fenômenos da cultura pop como dotados de um duplo movimento
especulativo: ao mesmo tempo que são parte integrante de indústrias do entretenimento
que se inserem numa lógica global, há “coreografias” e movências que promovem o
aparecimento de roteiros performáticos (TAYLOR, 2013) improváveis nas zonas de
interculturalidades. O K-pop ao se deslocar mundo afora promove o aparecimento de
traços performáticos, de sujeitos, de marcações de classe, raça e gênero, imprevistas,
deslocando para o campo das culturas os embates de ordens macro e também
micropolíticas. É a partir das rasuras coreográficas evidenciadas em K-covers no
Youtube que se debatem as dimensões estéticas e políticas dos corpos na comunicação e
cultura contemporâneas.

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