Conduru, R. (2021) - África, Brasil e Arte Persistentes Desafios. ARS (São Paulo), 19 (42), 315-358.
Conduru, R. (2021) - África, Brasil e Arte Persistentes Desafios. ARS (São Paulo), 19 (42), 315-358.
Conduru, R. (2021) - África, Brasil e Arte Persistentes Desafios. ARS (São Paulo), 19 (42), 315-358.
PERSISTENTES DESAFIOS
315
RESUMO Analisando obras de Abdias do Nascimento, Clarival do Prado Valladares, Marianno
Carneiro da Cunha e Emanoel Araujo, entre outros autores, o artigo discute limites e
Artigo inédito
Roberto Conduru* impasses da concepção inclusiva de “arte negra”, delineada a partir da década de 1950, e
de “arte afro-brasileira”, consolidada a partir dos anos 1980, bem como problemas postos
id https://orcid.org/0000-
0003-0197-0300 à historiografia pela persistência desse modelo generalizante e pelo caráter excludente
do circuito de arte no Brasil, que as trajetórias e obras de Mestre Didi (Deoscóredes
Maximiliano dos Santos) e de Hélio Oiticica continuam desafiando.
*Southern Methodist PALAVRAS-CHAVE Arte negra; Arte afro-brasileira; Mestre Didi (Deoscóredes Maximiliano
University (SMU), EUA
dos Santos); Hélio Oiticica; Abdias do Nascimento
Roberto Conduru
ABSTRACT RESUMEN
Analyzing works by Abdias do Nascimento, Clarival do Prado Analizando obras de Abdias do Nascimento, Clarival do Prado
Valladares, Marianno Carneiro da Cunha, and Emanoel Valladares, Marianno Carneiro da Cunha y Emanoel Araujo,
Araujo, among other authors, the article discusses limits entre otros autores, el artículo discute los limites y impases
KEYWORDS Black Art; Afro-Brazilian Art; Mestre Didi PALABRAS CLAVE Arte negro; Arte afrobrasileño; Mestre Didi
(Deoscóredes Maximiliano dos Santos); Hélio (Deoscóredes Maximiliano dos Santos);
Oiticica; Abdias do Nascimento Hélio Oiticica; Abdias do Nascimento
316
T
OUTRA ARTE
Roberto Conduru
bens Gerchman (DANTAS, op. cit), um grupo que inclui artistas
de diferentes gerações mas cujas trajetórias profissionais haviam
iniciado recentemente. Ainda naquele ano, o espaço projetado
por Bernardes abrigou a produção de dois “novos artistas” com
317
aos Núcleos e que poderiam ser Bólides pelo seu sentido de cor”
(OITICICA, 1966). Em dezembro, Deoscóredes Maximiliano dos
Santos, o Mestre Didi, que começara a publicar livros de contos
no início da década, apresentou “Arte Sacra Afro-Baiana”, sua ter-
ceira mostra solo, a segunda no Rio de Janeiro, voltando a exibir
os emblemas de orixás que fabricava havia ao menos 30 anos, mas
que começara a expor como obras de arte apenas em 1964 (ELBEIN
DOS SANTOS, 1997).
Roberto Conduru
“Didi [expôs] seus objetos montados [...]: palha de dendê, búzios,
contas, couro, costuras, que aprendeu com o babalorixá Martinia-
no Bonfim, que, por sua vez, foi buscar na África, com os africanos,
os ensinamentos dessa arte” (MAURICIO, 1966b, p. 2). Mestre Didi
318
e Oxumarê, uma de suas missões desde quando se tornara Assògbá,
sacerdote máximo do culto de Obaluaê, no Ilê Axé Opó Afonjá, em
Salvador, em 1936 (SODRÉ, 2006, pp. 250-251). Trinta anos depois,
Maurício qualificou as obras apresentadas na G4 como
Roberto Conduru
posição de Oiticica na G4 mostra Mosquito da Mangueira experi-
mentando um Relevo Espacial de 1959. Essa imagem não é uma ex-
ceção. Naquele período, Oiticica registrava sua produção em foto-
grafias nas quais as obras eram percebidas, manipuladas, vestidas
Roberto Conduru
plásticos-materiais, que podem ser relacionados a fantasias de car-
naval, trajes de Egunguns e vestimentas de pessoas transitando ou
vivendo nas ruas, entre outras referências, obras dessa série como o
Parangolé Capa 31 e o P15 Parangolé Capa 11 incluem elementos plás-
320
primitivismo, como é característico do modernismo novecentis-
ta. O que também é observável em texto da mesma época no qual
Mário Pedrosa compara universos supostamente apartados, os po-
larizando com categorias como contemporâneo e atemporal, bran-
co e negro, ao defender que “o artista exige hoje [...] uma equivalên-
cia entre sua atitude, seu trabalho e a atitude e o trabalho do artista
negro”, e ao indicar consonâncias entre artistas nos diferentes cam-
pos – “O artista primitivo cria um objeto ‘que participa’. O artista de
Roberto Conduru
formativo que envolveu a transmissão intergeracional e interconti-
nental de saberes restritos a indivíduos ou pequenos grupos de reli-
giosos. E um artista como Agnaldo Manoel dos Santos estava longe
de ser um ingênuo, um primitivo em quem uma adormecida África
321
técnicas, temas, referências, mestres e discípulos (BEVILACQUA,
2021; CONDURU, no prelo).
O universo cultural afro-brasileiro, sobretudo suas religi-
ões – ideário, terminologia, imaginário, cultura material, espa-
cialidade e ritualística –, ultrapassou os limites historicamente
impostos pelo colonialismo e o racismo. Entre as reações que ge-
rou está a apropriação de modo literal ou mediado, a incorporação
figurativa ou estrutural, nas artes plásticas, bem como em outras
Roberto Conduru
Luiz Alphonsus, entre outros, cujas obras resultaram ou foram
percebidas a partir de experiências em favelas e terreiros, ruas e
outros espaços de cidades no Brasil nos quais o africanismo é um
elemento intrínseco (CONDURU, 2020). Nesse sentido, cabe reto-
322
por meio de Exu Tranca Ruas, a entidade da umbanda cuja sabedo-
ria esperta e bem humorada serviria de referência para a subver-
são da conjuntura crescentemente opressora da ditadura civil-mi-
litar imposta a partir de 1964. Nesse sentido, a macumba1 pode ser
entendida como um dos sistemas de trocas socioculturais com os
quais artistas lidavam durante aquele período2.
A representação de afrodescendentes e suas práticas cul-
turais não era algo propriamente novo àquela altura. Ao contrá-
Roberto Conduru
entre outros, nos séculos seguintes, a qual continua vigente. So-
bre a diferença observável na produção artística a partir da década
de 1950, vale retomar um lamento de Odorico Tavares em 1951:
323
Diferentemente da predominante figuração mais ou menos
exótica do outro, alguns artistas da “geração tranca-ruas” pareciam
interessados em incorporar elementos do universo cultural afro-
-brasileiro às suas obras, à estrutura plástico-significante e/ou ao
processo de produção.
Uma experiência que já vinha sendo empreendida por ar-
tistas afro-brasileiros que não se limitaram às referências africa-
nas em suas criações. Desde 1953, Agnaldo Manoel dos Santos foi
Roberto Conduru
São Francisco. Também a partir dos anos 1950, Rubem Valentim foi
articulando estruturas plásticas de produção de sentido no candom-
blé e na umbanda – artefatos simbólicos de orixás, pontos riscados,
pejis e gongás – com a linguagem plástica do construtivismo para
324
perenes, autônomas, autossustentáveis e capazes de serem exibidas
estática e independentemente sobre suportes físicos com vistas à
percepção corporal distanciada, sobretudo visual, por pessoas no
ritual artístico.
OUTRA CRÍTICA
Roberto Conduru
e ênfases diversas, eles incorporaram estruturalmente a suas obras
um imaginário plástico que vivia à margem.
Quando não eram socialmente ignorados, os objetos fabri-
cados e usados em seus rituais eram destruídos ou apreendidos por
agentes estatais durante batidas policiais, para serem utilizados
325
na legislação e recentemente recrudesceu. Em meio à violência, sua
cultura material foi colecionada e preservada de modo assistemático
e negligente, embora também parcial e problematicamente cele-
brada como um dos símbolos da nação brasileira3. Apesar dos tex-
tos de Raimundo Nina Rodrigues (1904), Manuel Querino (1916),
Mário Barata (1941; 1957) e Arthur Ramos (1949) que propuseram
entender parte desses artefatos como obras de arte, e embora alguns
desses objetos tenham sido por vezes representados por artistas tão
Roberto Conduru
lerias de arte, em 1964.
A dificuldade para enquadrar os trabalhos de Didi foi logo
detectada por Antônio Olinto, que bem observou como eles “fo-
gem a uma classificação rígida” (OLINTO, 1964, p. 8). Embora
326
1966a), dois anos depois, quando os experimentou na G4, ideali-
zada como um bastião da vanguarda. De modo similar, Romero
Brest qualificou Didi como um “primitivo”, afirmando que seus
“objetos tanto podem ser esculturas como matéria de decoração”
(apud OLINTO, 1965, p. 2). E um texto não assinado publicado
no Jornal do Brasil resumiu o autor e a mostra “Arte Sacra Afro-
-Baiana” de maneira semelhante: “Didi, o folclore na G-4” (DIDI,
1966, p. 3).
Roberto Conduru
A transferência de suas obras para a seção de Escultura pelo júri de
seleção (PANORAMA das artes plásticas, 1966, p. 4) e a premiação
delas como “Arte Decorativa Estadual”4 são outros indícios da dis-
rupção que causavam.
327
Em seus textos, embora reconheçam e proponham parte
da cultura material das religiões afro-brasileiras como arte, Nina
Rodrigues, Barata e Ramos a mantêm restrita ao universo afro-
brasileiro. Sem a articularem à totalidade do cânone artístico
brasileiro, eles reforçam, por meio da crítica de arte, a persistente
marginalização e desvalorização de africanos e afrodescendentes
no Brasil.
Também na crítica de Manuel Querino, a cultura material
Roberto Conduru
nascidos ou não na Bahia, respectivamente, evitando caracte-
rizações raciais e incluindo trabalhadores técnicos e manuais –
uma visão que deriva das diferenças entre “artes maiores” e “ar-
tes menores” próprias ao sistema de arte europeu, mas também
328
transformavam lugares, coisas e corpos nos rituais religiosos. A
aparente contradição, ou ambiguidade, de apresentar a culiná-
ria na Bahia como arte em outro texto de 1916 (publicado postu-
mamente) (QUERINO, 1928) e observar a tendência para as artes
liberais exclusivamente na escultura de “símbolos fetichistas”,
não em outros artefatos, ou em espaços, sujeitos e rituais religio-
sos, talvez também derive dos critérios assimilados por Querino
em sua formação artística e acadêmica.
Roberto Conduru
rização da escultura, particularmente das figurações em madeira,
em detrimento de outros tipos de produção artística africana, no
sistema de arte ocidental no século 20. O que limita a compreensão
da cultura material das religiões afro-brasileiras, ao desconsiderar
329
Ainda assim, a luta contra as desigualdades da sociedade
brasileira, a produção artística de afrodescendentes como Agnal-
do, Valentim e Didi, e até a crítica de Nina Rodrigues, Querino,
Barata e Ramos fomentaram outros modos de articular africanis-
mo e arte no Brasil.
Mário Barata apresentou “A escultura de origem negra no
Brasil” (BARATA, 1957) no I Congresso do Negro Brasileiro, reali-
zado no Rio de Janeiro, em 1950, pelo Teatro Experimental do Ne-
Roberto Conduru
sacra afro-brasileira, Nascimento não restringe a “arte negra” ao
domínio do sagrado, nem apenas a autores afrodescendentes.
O acervo do MAN foi constituído a partir de aquisições, tro-
cas e colaborações, de ações do TEN como o concurso do “Cristo
330
ampliado de “arte negra” que se tornou público a partir de sua pri-
meira apresentação, em 1968, no Museu da Imagem e do Som, no
Rio de Janeiro. Visão que é corroborada em textos e entrevistas
de Nascimento sobre o Museu. Em “Cultura e estética no Museu
de Arte negra”, ele afirma: “Nosso museu abriga obras de pretos,
de brancos, de amarelos, dos homens de todas as raças e naciona-
lidades. Importam aqueles valores estéticos que só a raça ou a vi-
vência dos valores da raça negra conferem à obra” (NASCIMENTO,
Roberto Conduru
inspirador” (NASCIMENTO apud ACERVO de Arte Negra para Mu-
seu, 1968, p. 2).
De modo similar, ao pensar “o negro nas artes plásticas
brasileiras” também em 1968, Clarival do Prado Valladares
331
e outros artistas com ascendência africana que atuaram no período
da colonização portuguesa até Agnaldo Manoel dos Santos, Rubem
Valentim, Mestre Didi e outros “raros [...] mestiços ou negros, de
formação cultural expressiva, vinculados à temática e a valorização
de origem, que se mantêm e se realizam por fé sólida, encontrada
nas motivações” (VALLADARES, 1968, p. 107), mas também artistas
afrodescendentes tão diversos como Estevão Silva e Almir Mavignier,
entre outros, em cujas obras “ninguém poderá identificar genuinidade
Roberto Conduru
tipo racial, aos costumes e valores culturais afro-brasileiros”, seja de
modo eventual ou persistente (Ibidem, p. 109).
Entre meados dos anos 1950 e 1968, o modo de equacionar
africanismo e arte no Brasil mudou de modo radical. Em vez de
332
nada ao mundo religioso, mas cita Ivan Serpa e Bruno Giorgi en-
tre os “artistas influenciados pela presença do negro” (NASCIMEN-
TO, 1968, p. 21), enquanto Valladares menciona “raros exemplos de
obras de continuidade temática da cultura africana implicada aos
rituais do candomblé” (VALLADARES, 1968, p. 104), mas parece
não ter percebido ou não reconhecer os primeiros diálogos da “gera-
ção tranca-ruas” com o universo sociocultural afro-brasileiro. Se no
caso do primeiro a adesão à luta contra o racismo e as desigualdades
Roberto Conduru
por outrem no Brasil. Diferenças no modo de entender “arte negra”
que aproximam Nascimento e distanciam Valladares das “manifes-
tações vanguardistas” de Oiticica, de Mestre Didi e dos artistas reu-
nidos na G4, entre outros então.
333
arte ganhou outro nome. Em 1969, no início de seu autoexílio
nos Estados Unidos durante a ditadura civil-militar no Brasil,
Nascimento (1969; 1976) passou a usar a designação “Afro-Brazilian
art” (arte afro-brasileira) para se referir à sua produção artística e
às de outrem. Em vez da marcação étnica a partir de um fenótipo, as
cores de pele dos autores das obras, a ênfase recaiu na ascendência
africana dos autores e/ou no africanismo dos temas das obras.
Entretanto, essa designação e esse entendimento inclusivo
Roberto Conduru
capítulo publicado por Marianno Carneiro da Cunha no livro His-
tória geral da arte no Brasil, organizada por Walter Zanini em 1983
(CARNEIRO DA CUNHA, 1983). Expositivamente, o marco é “A
mão afro-brasileira: significado da contribuição artística e históri-
334
um termo que, na realidade, já nasceu envelhecido pela própria di-
nâmica a que se têm submetido os elementos culturais africanos no
Brasil” (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p. 1026). Sua visão parece
restrita, de início, quando afirma que “arte afro-brasileira é uma
expressão convencionada artística que, ou desempenha função no
culto dos orixás, ou trata de tema ligado ao culto” (Ibidem, 1983, p.
994). Mas logo se pode perceber a amplitude de sua análise, seja ao
tratar da “apropriação de símbolos novos por essas religiões”, seja ao
Roberto Conduru
o apêndice com verbetes sobre “artes corporais e decorativas”, nos
quais analisa trajes, joias e outros objetos de uso pessoal, desafian-
do categorias dominantes na história da arte ocidental. No primei-
ro tópico, Carneiro da Cunha analisa o africanismo na produção de
335
Dos artistas cobertos em geral por essa definição muitos são brancos,
outros mestiços e relativamente poucos são negros. Poderíamos
subdividi-los portanto em quatro grupos, ou seja: aqueles que só utilizam
temas negros incidentalmente; os que o fazem de modo sistemático e
consciente; os artistas que se servem não apenas de temas como também
de soluções plásticas negras espontâneas, e, não raro, inconscientemente;
finalmente os artistas rituais. Os três primeiros grupos definiriam o
termo afro-brasileiro em seu sentido lato e o último grupo em sentido
estrito. (CARNEIRO DA CUNHA, 1983, p. 1023)
Roberto Conduru
culo XX” (CARNEIRO DA CUNHA, op. cit., p. 1022), talvez por não
perceber “temas negros” em obras de Estevão Silva, Arthur Timóteo
da Costa e outros. Já Araujo não tem hesitado em contrapor obras
de africanos e afrodescendentes, mais quase todo tipo de represen-
336
entendimento inclusivo da “arte afro-brasileira”. Vide exposições e
publicações como Os herdeiros da noite: fragmentos do imaginário ne-
gro (ARAUJO, 1995), Negro de corpo e alma (AGUILAR, 2000) e Para
nunca mais esquecer: negras memórias, memórias de negros (ARAU-
JO, 2002), entre outras. Vide o acervo, as mostras de longa e curta
duração, bem como outras atividades do Museu Afro Brasil, por ele
criado em São Paulo em 2004.
Desde a década de 1980, em muitas exposições, publicações e
Roberto Conduru
a expressão tem sido historicamente utilizada tanto num sentido restrito,
para circunscrever um conjunto exclusivo de artistas afro-brasileiros,
quanto aberto, definido não pelo fenótipo dos produtores, mas pelo
“conteúdo afro-brasileiro” dos produtos, de modo a incluir artistas de
outras procedências raciais. (MENEZES, 2017, p. 222)
Roberto Conduru
expositivamente em 1988 e institucionalizada em museu a par-
tir de 2004, o meio de arte brasileiro continuou a hierarquizar,
desvalorizar e excluir afrodescendentes. As poucas e esporádi-
cas exceções confirmam a perversa regra do racismo à brasileira:
338
A esse respeito, vale retomar um dos marcos iniciais da
historiografia da arte no Brasil, o artigo que Manuel de Araújo Por-
to-Alegre publicou em 1841, no qual cita um alemão, um filho de ita-
lianos e um ex-escravo entre os oito artistas que constituem a escola
fluminense de pintura (PORTO-ALEGRE, 1841). Assim, ele esboça
uma história da arte nacional brasileira com uma produção cuja au-
toria é irrestrita a pessoas nascidas no território brasileiro e inclui
um artista africano ou afrodescendente. Em que pese essa virtual
Roberto Conduru
centes exceções. À medida que as artes plásticas foram ganhando
proeminência cultural e passaram a ser modos de distinção social
e econômica no país, eles foram marginalizados, quando não ex-
cluídos, do campo artístico. A relativa proeminência arduamente
339
Moisés Patrício e Peter de Brito mobilizaram afrodescendentes para
intervir corporalmente em eventos artísticos e assim expor, des-
naturalizar e arruinar a transecular exclusão da negritude. Ou-
tra intervenção nessa peleja foi o gesto curatorial de Hélio Me-
nezes ao desfraldar Bandeiras, do coletivo Frente 3 de Fevereiro,
nas fachadas do Instituto Tomie Ohtake e do Museu de Arte de São
Paulo, durante a exposição “Histórias afro-atlânticas”, em 2018, e
do Centro Cultural São Paulo, na exposição “Abre-caminhos”, em
Roberto Conduru
de 1960, mediadores como Oiticica propunham com obras, ações e
imagens outro tipo de inclusão dos afrodescendentes, nos anos 2010
foram os próprios afrodescendentes a demandar, configurar e con-
quistar outros modos de participação e, consequentemente, outro
340
afrodescendentes de diferentes gerações, entre os quais alguns
que vinham transformando o meio de arte brasileiro com suas
obras há algumas décadas. Um movimento que tem se intensificado
desde então. Refletindo sobre “fomento, criação e circulação das
artes negras entre 2016 e 2019”, Alexandre Araújo Bispo afirma que “a
sensibilidade em torno da importância das artes negras cresceu, como
mostram alguns exemplos de exposições e ações culturais realizadas
principalmente em São Paulo” (BISPO, 2020). Com efeito, na década de
Roberto Conduru
Acúmulo e intensidade que também são observáveis na críti-
ca. Em 1968, Nascimento já propusera que “A raça negra no Brasil,
assim como tem produzido tantos criadores, precisa contar também
com seus próprios analistas e teóricos para elaborar o juízo crítico
341
campo curatorial nacional” (RIBEIRO, 2020). Sem dúvida, um dos
desafios atuais do circuito de arte brasileiro é ampliar e consolidar
a integração, com igualdade de condições e possibilidades, de afro-
descendentes como artistas, críticos, curadores, historiadores, pro-
fessores e espectadores-participantes, entre outros tipos de atuação.
Ao usar “abundância” entre aspas e “vulnerabilidade” sem
aspas no título de seu texto antes citado, Bispo sinaliza os limites
desse dinamismo recente. A seu ver,
Roberto Conduru
– isso só não basta. É preciso ainda muito empenho para sair da zona
de vulnerabilidade a que estão expostxs artistxs, curadorxs, críticxs,
pesquisadorxs e a própria obra artística. (BISPO, 2020, n. p.)
Roberto Conduru
são do termo no discurso nacional desde 1988, o termo ainda não
se difundiu no pensamento e no discurso popular” (CLEVELAND,
2013, p. 17, tradução minha).
É possível argumentar que “afro-brasileira” e suas derivações
343
identificação e de exclusão social de afrodescendentes, entre outras
práticas que mantêm as disparidades que caracterizam a sociedade
brasileira. O que ajuda a entender por que a questão da negritude, da
cor da pele como marcador social e signo de distinção e de pertença
cultural, voltou a ser priorizada recentemente.
Assim, a variação recente na nomeação me parece estar vin-
culada menos à temática e mais à autoria. Mesmo que se entenda
quão problemática é a fixação taxonômica no campo artístico, as-
Roberto Conduru
desde os anos 1950, na qual a possibilidade de inclusão sem balizas
precisas tem como par o risco da generalidade, além da já observada
prática excludente.
É certo que a experiência do mundo está aberta a todos e é fei-
344
outro, a falta de critérios mínimos para configurar esse campo é
problemática também por validar a priori a representação dos afro-
descendentes pelos outros, sob pena de preservar a norma vigente
durante a escravidão, quando os africanos e seus descendentes qua-
se sempre eram objetos e muito raramente sujeitos da (auto)repre-
sentação, o que infelizmente ainda persiste no país.
O que me faz retornar a Oiticica e a Mestre Didi, com os quais
eu comecei esse breve ensaio. Em 1968, suas obras foram tomadas
Roberto Conduru
globalmente. Mas os diálogos que ele plasmou com o universo socio-
cultural afro-brasileiro não têm suscitado leituras em volume mi-
nimamente proporcional6. A meu ver, a crítica de suas obras, assim
como as de Emiliano Di Cavalcanti, Lasar Segall, José Medeiros, Cary-
345
pensar a dimensão propriamente artística do que é proposto como arte
“preta”, “negra” ou “afro-brasileira”, entre outras qualificações.
Embora tenha se lançado como artista plástico há quase
60 anos e tenha seu nome relativamente consolidado no meio de
arte, Mestre Didi continua sendo uma exceção que confirma a re-
gra de exclusão dos artistas afrodescendentes e da arte proveniente
do campo religioso afro-brasileiro. Sua obra é pouco apresentada e
discutida além de mostras e publicações com foco no africanismo,
Roberto Conduru
tistas7. E a arte sacra afro-brasileira, que antes caracterizava quase
exclusivamente a “arte negra”, agora segue sendo negligenciada8.
Reduzindo esse subcampo a Mestre Didi, ao mesmo tempo que li-
mitam seu trabalho à dimensão sacra, agentes e instituições artísti-
346
NOTAS
1. Aqui se usa o termo não em seus sentidos específicos, mas em sua acepção generalizante
das religiões afro-brasileiras, seus rituais e parte de sua cultura material, para reverter a
visão pejorativa. A esse respeito, ver: PRANDI (1990).
3. Sobre esse processo, ver: MAGGIE (1992), CORRÊA (2006), CONDURU (2008), RAFAEL
(2012), VALLE (2018; 2020), ALMEIDA (2020).
6. Sobre esses diálogos, ver: BASBAUM; COIMBRA, (2002, pp. 58-59), CONDURU (2007, p.
Roberto Conduru
83; 2020), CROCKETT (2020).
7. Entre as exceções, destaco Mestre Didi, sala especial com curadoria de Emanoel Araujo,
na 23ª Bienal Internacional de São Paulo, com curadoria de Nelson Aguilar, em 1996, e sua
participação no 29º Panorama da Arte Brasileira, realizado no Museu de Arte Moderna de
São Paulo, com curadoria de Felipe Chaimovich, em 2005.
347
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