MELLO (Rev BR Ed Geog., 2019) Invisiveis Sociais e Ensino

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INVISIBILIDADE SOCIAL NO ESPAÇO:

uma sugestão temática para a geografia escolar

RESUMO
O léxico nos diz que o invisível corresponde ao campo da
impossibilidade óptica, no entanto, há indivíduos perceptíveis ao
sentido visual ipsis litteris, mas que ligados a distintas
circunstâncias do quotidiano, figuram como invisibilizados em
Eduardo Vieira de Mello determinados espaços por outros atores sociais. Nessa lógica, a
[email protected] espacialidade da invisibilidade social constitui temática de
relevância, porém pouco explorada no ensino da geografia
escolar. Entende-se que o tema gera oportunidades para discutir
ocorrências da vida prática e percepções do corpo discente em
relação aos sujeitos considerados invisíveis sociais no espaço
Professor do Colégio Pedro II e Doutorando
urbano, em função da sua condição social ou ocupação que
e m G e o g ra fi a n o Pro g ra m a d e Pó s -
Graduação em Geografia (PPGG) da exercem. No artigo, do ponto de vista metodológico e de
Universidade Federal do Rio de Janeiro análises, se traçou relações entre a invisibilidade social e os
(UFRJ). conceitos-chave da geografia, os conteúdos sobre urbanização e
o desenvolvimento das cidades com base em solidariedade e
alteridade na formação escolar.

PA L AV R A S - C H AV E
Invisibilidade social, Espaço, Ensino de geografia, Cotidiano.

Revista Brasileira de Educação em Geografia, Campinas, v. 9, n. 18, p. 148-160, jul./dez., 2019


Invisibilidade social no espaço…

S O C I A L I N V I S I B I L I T Y I N S PAC E :
a thematic suggestion for school geography

ABSTRACT

In the lexicon meaning, invisible is related to the optical field impossibility, however, there are
individuals that, despite of seeing under visual perception ipsis litteris, figure as a non visible
in some spaces by others social actors along daily different events. In this logic, the spacial
social invisibility represents a relevant issue, but, at the same time, less explored in the
geographical teachings. Understand that these theme brings opportunity to discuss cases in
the routine activities and also students perceptions focused on persons considered social
invisible in the urban space, being devalued due to their low social conditions or job
occupations. In the paper, from the methodological and analysis points, relations were traced
between social invisibility and the concepts of geography, the contents on urbanization and
the development of cities based on solidarity and otherness in school education.

KEYWORDS

Social invisibility, Space, Geographical teachings, Daily.

Apresentação do tema

Na ciência geográfica existe uma gama de temáticas negligenciadas, pelas


pesquisas acadêmicas e pela geografia escolar, com expressivo potencial de aproximação
da prática pedagógica geográfica e as experiências dos alunos. A multiplicidade de
visões, de práticas, de vivências/experiências no espaço urbano forma um cabedal de
possibilidades na construção do conhecimento da geografia escolar, contudo, percebe-se
que há conservadorismo, por boa parte das práticas de ensino preconizadas ao ambiente
da sala de aula. Assim, a geografia escolar vem desconsiderando diversas manifestações
artísticas, religiosas, eletrônicas ou esportivas para descortinar “os mundos” para os
alunos. Nesse sentido, diversas práticas que fazem parte do cotidiano dos alunos não são
percebidas como ferramentas pedagógicas, sendo em muitos casos tão somente
desconsideradas pelas exposições dos professores.
O tradicionalismo temático no escopo da investigação científica oferece elevada
resistência ao inovador, sobretudo no tocante às práticas de ensino, como se na geografia
escolar houvesse a necessidade de aguardar o desenvolvimento e o amadurecimento de
um tema no âmbito das discussões academicistas para, somente após, ser apropriado
pelos materiais didáticos, para finalmente figurar entre os conteúdos dos ensinos
fundamental e médio.

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Como um desses temas posiciona-se a invisibilidade social no espaço geográfico,


intrínseca as dimensões do cotidiano urbano do corpo discente, mas raramente discutido
ao longo da formação escolar. Nesse ponto, reforçam os destaques de Quincas et al.
(2018), ao alegarem que há necessidade de se conceber um raciocínio geográfico escolar
e, acrescenta-se aos autores, que esse raciocínio seja pautado também em discussões que
intermedeiem as relações da vida extraescolar da cidade em sala de aula.
Entende-se que a invisibilidade social esteja exatamente nessa linha, com estudos
já consolidados nos campos da Sociologia, da Antropologia e da Psicologia Social,
constitui um tema relativamente novo para a Geografia Escolar. Sendo (o tema)
relacionado a um conjunto de pessoas que exercem profissões desprovidas de status, de
glamour, de reconhecimento social, de adequada remuneração (ROJAS, 1992) ou se
encontram sem atividade laboral, compondo também indivíduos diretamente afetados
pelo déficit habitacional, como as pessoas “sem teto”. Constituem sujeitos sem ocupação
ou de classe de trabalhadores que realizam tarefas imprescindíveis à sociedade moderna
e à organização espacial das cidades, mas assumidos como de “categorias inferiores”
pelos mais variados motivos, sendo considerados “elementos executores” ao realizarem
seus trabalhos, aos quais alguns outros indivíduos, que inclusive compartilham os
mesmos espaços, não gostariam de desempenhar.
Um indicador claro da invisibilidade social, em determinados espaços, é o uso do
uniforme rotulando os trabalhadores como não pertencentes à classe dominante. Como
exemplos de profissões, cuja mão de obra carrega o estigma da invisibilidade social,
podem ser mencionados os colhedores de lixos, as faxineiras/diaristas, os seguranças, os
frentistas, os garçons, os motoristas de ônibus e outros profissionais de caráter
operacional (MELO et al., 2005; COSTA, 2009).
Colocando-se o tema em destaque, se considera fundamental problematizá-lo,
em prol da conscientização do corpo discente e da desconstrução das referidas situações,
tendo como meta o ideal libertário à autonomia intelectual dos estudantes e o
desenvolvimento da capacidade avaliativa e de ações nos acontecimentos dos seus
espaços vividos. Espera-se, desse modo, propiciar mudanças na forma dos alunos se
relacionarem com aqueles que são alvos da invisibilidade social em suas vidas,
objetivando-se três aspectos: a) conceber posturas comportamentais de compreensão/
valorização das atividades dos sujeitos considerados invisibilizados; b) em promover de
discussões sobre a dinâmica espacial, políticas públicas, empatia e altruísmo na
formação escolar e; c) em ressignificar as distinções socioespaciais com o intuito de
reduzir o “lugar” da invisibilidade pelos mais diversos espectros.

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Invisibilidade social no espaço…

Os itens destacados, no parágrafo anterior, constituem justificativas que podem


permear a condução de projetos escolares em geografia com vistas a requalificar os
olhares dos alunos em suas dimensões espaciais do cotidiano sobre a invisibilidade
social.
Se para o ambiente de formação escolar e nas pesquisas em Geografia o tema
ainda não apresentou muitos estudos, em contrapartida, a questão espacial da
(in)visibilidade social já é abordada, direta ou indiretamente, por diferentes mídias, como
os três exemplos abaixo que categoricamente a ilustram.
Em 2004 o cineasta Sergio Arau lançou o filme Um dia sem mexicanos que
exprimiu, de maneira contundente, a importância das atividades dos indivíduos
invisibilizados na organização espacial da cidade de San Diego, estado da Califórnia,
elucidando sobre a invisibilidade com a seguinte sinopse:

A Califórnia está em estado de choque: da noite para o dia um terço de sua


população simplesmente sumiu. Todos os 14 milhões de desaparecidos têm em
comum as raízes hispânicas: são seguranças, diaristas, frentistas, policiais,
operários e babás que garantiam o bem-estar da população branca. Enquanto
autoridades procuram explicações para o caso, os californianos começam a
perceber a importância dos antes desvalorizados chicanos. (Um dia sem
mexicanos, 2004 – Sinopse do filme).

Em outro exemplo, observando-se a cerimônia de encerramento dos Jogos


Olímpicos de Londres, aos doze de agosto de 2012, houve cordialmente como de práxis,
a exposição dos atrativos da próxima cidade-sede. Na ocasião, o Rio de Janeiro ganhou
destaque com seus símbolos, cartões postais e algumas personalidades para representar a
passagem da “chama olímpica” para os jogos do Rio 2016.
Em meio às celebridades, os holofotes focaram Renato “Sorriso” – funcionário da
companhia de coleta de lixo e de limpeza da cidade do Rio de Janeiro – com seu
gingado que sempre se destacou nos intervalos entre as escolas de samba no
sambódromo carioca. Contudo, na encenação do evento londrino, após alguns passos
marcados surge um segurança britânico de postura séria e tenta mostrá-lo que o “espaço
de destaque” não era adequado para sua exibição, porém, fora o segurança que se
rendeu ao requebrado do Sorriso e tentou imitá-lo sem muito sucesso.
Em situação inversa, da visibilidade para a invisibilidade, o violinista Joshua Bell,
um virtuoso acostumado a casas de show lotadas, com preços de ingresso que chegam a
ultrapassar os trezentos dólares, se prontificou a tocar gratuitamente durante mais de uma
hora em uma estação de metrô de Nova York no horário de máxima circulação, no
documentário Stop and hear the music (vide o documentário em: http://

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www.youtube.com/watch?v=hnOPu0_YWhw), qual não foi surpresa, pouco mais de uma


dezena de pessoas realmente pararam para ouvir sua desenvoltura derivada de suas
habilidades musicais.
Ao observarmos os três casos supracitados, apresentam como denominador em
comum, questões relativas à invisibilidade social em contextos espaciais. No filme de
Sergio Arau ao revelar a importância dos mexicanos, e mais amplamente dos
latinoamericanos, na sociedade californiana, acaba retratando diversas atividades que
conferem invisibilidade social àqueles que as exercem no espaço citadino.
No caso do Renato Sorriso, o dançarino de samba e profissional da limpeza
urbana conseguiu sair da invisibilidade e do anonimato de sua profissão e se projetou
com máximo de vigor para as redes televisivas internacionais ainda que por poucos
minutos. E o violinista demonstrou que a valorização da cultura é resultante da
construção social e da visibilidade espacial, ao invés do enaltecimento e do
reconhecimento de seu talento, como deveria ser a priori.
Com base nos exemplos, se pode demonstrar que a temática da invisibilidade
social é campo enriquecedor do ponto de vista educativo (formal e não-formalizado),
bem como a discussão sobre a teia de relações espaciais exercidas pelos invisibilizados
sociais. Dessa forma, tem a possibilidade de ser tema incorporado ao ambiente escolar,
em função do elevado potencial pedagógico em diversos sentidos, desde a busca por
uma formação cidadã, pautada na alteridade, até propiciar a integração e a intimidade
entre as vivências dos alunos com seus discursos, e os conceitos fundamentais da
Geografia, como será destacado a seguir.

Fundamentações teóricas

As referências teóricas que ancoram o desenvolvimento do presente artigo se


baseiam em dois grupos: a) estudos sobre invisibilidade social e a literatura associada ao
tema nas ciências humanas; e b) a discussão sobre o ideário de uma Geografia
“marginal” como expressão do pensamento libertário, como base para uma geografia
contemporânea, valorando o subjetivo, o cotidiano, as urbanidades e os conceitos-chave
da disciplina com base na espacialidade da invisibilidade social. Obviamente os dois
grupos citados devem ser tratados de modo imbricado com o objetivo de enfatizar as
relações socioespaciais e as dimensões pedagógicas (formais e não-formais) e suas
aplicações ao ambiente escolar.

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Invisibilidade social no espaço…

Estudos sobre invisibilidade social

[...] ‘Tá vendo aquele colégio, moço? Eu também trabalhei lá.


Lá eu quase me arrebento, fiz a massa, pus cimento, ajudei a rebocar.
Minha filha inocente, vem pra mim toda contente:
‘Pai vou me matricular!’ Mas me diz um cidadão: ‘Criança de pé no chão, aqui
não pode estudar.’[...]"
(Trecho da música Cidadão [1992], compositor ZÉ RAMALHO)

As disparidades socioespaciais e a construção da invisibilidade são intimamente


ligadas, como nos demonstrou o trecho da letra da música de Zé Ramalho (1992). Essa
lógica merece ser clarificada, como aponta Bock (1999), ao alegar que assumir um
compromisso social é interrogar o que está posto como verdade e, em alguns momentos,
não aceitar “[...] que as coisas são porque são, mas sempre duvidar e buscar novas
respostas. É estranhar, é inquietar-se com a realidade [...]” (BOCK, op. cit., p.319).
O compromisso social implica na ação de um agente preocupado com a
sociedade, mas para Freire (1998), ser comprometido com a sociedade exige alguns
requisitos. Primeiro que o agente, promotor desse compromisso social, seja capaz de agir
e refletir e, antes de se comprometer socialmente, precisa reconhecer o seu contexto de
atuação. É necessária uma reflexão desse agente sobre seu lugar no mundo, associada
indissoluvelmente à sua ação sobre o mundo, como também afirmou Carneiro (2009).
Partindo dessas ideias e dialogando-as com a invisibilidade social, ainda que
ocorra a percepção de comprometimento social de um agente promotor, não elimina a
precarização das relações de trabalho e as multiplicidades de situações que tornam os
sujeitos invisíveis, pois seus contextos/espaços de atuação são geradores de realidade
pouco reconhecida pelo julgo dos olhares alheios.
Em especial sobre a invisibilidade social pode-se afirmar que dentre os diversos
fatores que geram esse fenômeno, Rojas (1992) reconhece seis tópicos elementares,
conforme em seu livro o Homem Light: uma vida sem valores, destacados abaixo:

- materialismo: faz com que um indivíduo tenha certo reconhecimento social


pela única razão de ganhar muito dinheiro;
- hedonismo: viver bem à custa do que quer que seja é o novo código de
comportamento, o que atira para a morte dos ideais, o vazio de sentido e a
busca de uma série de sensações cada vez mais novas e excitantes;
- permissividade: destrói os melhores propósitos e ideais;
- revolução sem finalidade e sem programa: a ética permissiva substitui a moral,
o que produz uma desordem generalizada;
- relativismo: tudo é relativo com o que se cai na absolutização do relativo,
brotam assim umas regras presididas pela subjetividade;
- consumismo: representa a nova fórmula pós-moderna da liberdade. (ROJAS,
op. cit., p.37).

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Na mesma referência Enrique Rojas (op. cit.) aponta que, muitas vezes, não se
reconhece os invisíveis sociais, pois existe em nossa sociedade uma máxima colocada
em prática, “a preocupação com o sucesso a qualquer preço e a valorização do
tempo” (ROJAS, 1992, p.42), como atributos do Mundo contemporâneo. Entretanto,
contrapondo a ideia de que a invisibilidade social é característica dos tempos recentes,
pode-se citar o livro Como morrem os pobres e outros ensaios de George Orwell (2010),
que retrata os cotidianos de pessoas invisibilizadas em diferentes contextos
socioespaciais europeus como: sem tetos, bóias-frias, presidiários e pacientes em
hospitais da Inglaterra e da França do final do século XIX e do início do século XX.
Contudo, o caráter atual da invisibilidade social, apontado por Enrique Rojas, é a
intensificação marcante e mais acentuada de disparidades espaciais, sociais e
econômicas causadas pelas precarizações do trabalho e das condições de vida
promovidas pelo sistema capitalista à luz do meio técnico-científico-informacional. Há a
geração de nítidos processos de fragmentação socioespacial, o que acarreta divisões
pautadas, sobretudo, no poder de consumo, na alocação de recursos e, como afirma
David Harvey (2009), na financeirização de tudo.
Desse modo, esses fenômenos se traduzem na possibilidade ou não de atender
aos apelos que compelem as pessoas a se enxergarem no que consomem (SOBRAL et al.,
2009), em um claro processo de (re)produção de modo de vida e de autopromoção
individual ou de grupos sociais.
Partindo-se desse pressuposto, a inserção plena na vida social está fortemente
relacionada com o nível da condição financeira, tornando como entes visíveis
socialmente, aqueles inseridos em mercados de trabalho restritos com garantias de venda
da sua força de trabalho por bons salários, prestadores de serviços ou autônomos bem
qualificados, rentistas e proprietários dos meios de produção que, ao serem lançados
como consumidores, exibem seus sucessos em aquisição de produtos e de serviços ou
até mesmo em ostentações em redes sociais. Assim, segundo Porto (2006), seria o
consumismo um dos fatores determinantes da invisibilidade social,

[...] pois nos leva a acreditar que o único meio de se construir uma identidade
seja através do consumo. Os despossuídos dos meios de consumir se tornam,
portanto, desfocados e fora da esfera social, já que não cumprem um papel que
lhes é previamente imposto. (PORTO, 2006, p.17).

No que concerne à esfera do trabalho, Rodriguez (2002) aponta para o aumento


de dualismo: de um lado coloca uma margem pequena de trabalhadores qualificados, e

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de outro um número extremamente maior de trabalhadores não qualificados e envolvidos


em trabalhos precários, mal remunerados e temporários, sobretudo no setor informal.
Esses últimos, por estarem fora ou precariamente envolvidos na esfera do trabalho,
acabam por deparar-se com o fenômeno da invisibilidade social.
É importante ressaltar que a invisibilidade social não está restrita a questão
trabalhista, suas condições e mercado de trabalho, deve ser vista também de modo mais
amplificado, outrossim, aqueles que também são invisíveis, por condições variadas como
gênero, etnia, casta, faixa etária, viciação/adicção, xenofobia, deficiências, indivíduos
com necessidades específicas ou dificuldades de relacionamento.

Por uma Geografia da invisibilidade social

A proposição enfatizada constitui como um dos diversos espectros da dinâmica


socioespacial urbana vinculados às temáticas que permeiam o cotidiano do sujeito-
aluno, mas não contemplados na geografia escolar e parcialmente investigados nas
esferas acadêmicas.
Refletindo sobre essa ideia na Geografia, assim como em outros campos do
conhecimento, é preciso desconstruir certos conteúdos e práticas cotidianas que tornam
a formação humana rígida, conservadora e apolítica, ou seja, é preciso desmistificar,
entre os diferentes contextos sociais de educandos, conhecimentos sobre favelização,
periferização, condições e modos de vida das classes sociais mais desfavorecidas. A
compreensão da alteridade e de valores sobre solidariedade e ajuda mútua são de
extrema importância para a construção de saberes e práticas para a educação e para a
cidadania que se busca ou se projeta.
Não ocupando o centro das atenções da geografia escolar e às margens da escola,
mas que está para além de seus muros, o esforço do desenvolvimento é desconstruir
limites, com vistas a promover a aproximação das práxis da Geografia na educação com
nossos alunos, como Cavalcanti (2011, p.11) destacou a importância de se [...]
compreender o mundo com os fundamentos da Geografia e para poder atuar com os
saberes produzidos por ela, tendo como referência central o próprio sujeito e sua
capacidade cognitiva e emotiva [...]
Especificamente sobre as ideias relativas à (in)visibilidade social e as relações na
dinâmica espacial configuram tema relevante, uma vez que [...] a geografia é o campo do
conhecimento onde se procura uma ordem para o diverso, esta ordem espacial das coisas
quer dizer que sua distribuição tem uma lógica, uma coerência [...] (GOMES, 1997,

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p.131), ou ainda como em Claval (2001, p.37) que [...] a geografia acresceu em
profundidade quando tratou de compreender como a vida dos indivíduos e dos grupos se
organiza no espaço, nele se imprime e nele se reflete [...]”
Assim, a invisibilidade social no espaço constitui tema que tem possibilidade de
explorar os conceitos-chave da geografia, como exemplifica Duncan (1990) quando
propõe um sistema de significado para percepção e representação sobre paisagem
urbana – sendo as estratégias de “invisibilização” dois tipos: Invisibilização seletiva da
paisagem – apreensão parcial e; Invisibilização por meio de intervenções no substrato
espacial.
Acerca do trabalho de Duncan (op. cit.), Souza (2010) exemplifica o primeiro
tipo de invisibilização seletiva da paisagem. Para tanto, compara duas fotos da mesma
posição, uma com zoom da enseada de Botafogo com o bairro destacando sua orla e
outra fotografia sem aproximação, que revela a favela ao fundo ocupando o morro em
último plano, que na primeira imagem não constava, caracterizando a invisibilização
parcial da paisagem considerada.
Sobre a invisibilização por meio de intervenções no substrato espacial de Duncan
(op. cit.), cita-se os outdoors que foram instalados na cidade de São Paulo,
estrategicamente colocados para omitir áreas favelizadas, contudo alguns foram retirados
a partir de 2007 por efeito da “lei cidade limpa”, ou nas vias urbanas expressas Linhas
Amarela e Vermelha no Rio de Janeiro que, previamente a realização da Copa do Mundo
de 2014, receberam estruturas de placas em acrílico com objetivo semelhante aos
outdoors já citados. A organização espacial, atendendo a interesses e objetivos
específicos, nos apresenta alterações na paisagem definidas por agentes modeladores do
espaço capazes de realizar tais intervenções.
Sob a ótica do conceito de lugar, como espaço vivido, a análise geográfica em
relação à realidade mais imediata dos alunos, compreende-se, como ressalta Cavalcanti
(2011) que

[...] a fim de tornar inteligíveis as possíveis leituras do mundo urbano em sala de


aula o lugar é uma das ferramentas intelectuais que compõem o pensamento
geográfico, formado por um conjunto de mediadores entre os sujeitos e a
realidade, no processo de conhecimento e intervenção nessa própria realidade.
[...] (CAVALCANTI, 2011, p.12)

Assim, podemos pensar que a geração da invisibilidade social pode ser


reconhecida como uma variável, de acordo com o egocentrismo individual ou coletivo,
mas que nas relações socioespaciais baseadas em sentimentos tem a possibilidade de ser

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desconstruída por outros laços afetivos no espaço, cabendo também aos professores e as
professoras o estímulo aos alunos de percepções mais solidárias e cordiais nos modos de
experienciar seus espaços vividos.
Retomando para a questão dos indivíduos invisibilizados socialmente, quando
esses se apresentam em grupos na dinâmica espacial, concebem relações de poder
localmente estabelecidas, logo, formulam territórios e estabelecem territorialidades em
grande parte fluidas, como são os casos das atividades de trabalhadores na informalidade
e das ações dos sem-tetos, dos sem terras, de adictos, de membros de facções, de
torcidas organizadas, etc. Além disso, as ofertas espacialmente desiguais das redes
técnicas tendem a reforçar o caráter da invisibilidade social, pois são justamente nos
espaços considerados opacos, segundo Santos (2002), que se mostram mais
desprivilegiados tanto de acesso ou disponibilidade de serviços e de produtos como
também da qualidade que esses apresentam.

Procedimentos metodológicos e atividades sobre a invisibilidade


social na Geografia Escolar

Para além do discutido, acredita-se que descortinar as relações espaciais e


contribuições/interferências da invisibilidade social no nosso cotidiano no espaço urbano
e no espaço escolar constitui o objetivo, possibilitando aos alunos a compreensão à luz
de conceitos-chave da Geografia.
Em concomitância, no desenvolvimento das atividades pedagógicas é possível
adentrar em tópicos de importância na formação escolar do corpo discente, de modo a
transformar a percepção dos alunos em relação aos invisíveis sociais, como:
a) tornar visíveis os espectros geopolíticos intraurbanos, elaborados por grupos sociais
invisíveis;
b) analisar as relações entre os invisíveis e os arranjos espaciais oriundos das atividades
exercidas pelos mesmos;
c) identificar os problemas urbanos e a precarização das relações de trabalho, por meio
de atividades pedagógicas e experiências didáticas e;
d) desenvolver a autonomia intelectual do aluno no sentido de perceber os fenômenos no
espaço vivido;
Do ponto de vista procedimental e metodológico, elaborar as estratégias de
discutir com os alunos o objeto de análise: a invisibilidade social e a dinâmica

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socioespacial dos invisíveis enquadram-se como etapa inicial. Ademais, entende-se como
atividades de relevância:
a) havendo a possibilidade, a realização de uma inversão de papéis entre um
indivíduo considerado invisível no espaço escolar e o professor;
b) a aplicação de entrevistas e de questionários aos “invisíveis sociais” do ambiente
escolar (seguranças, equipe de limpeza e de manutenção do colégio) e outros
grupos sociais invisibilizados do cotidiano do corpo discente;
c) traçar comparativos (antes e depois das atividades pedagógicas) sobre a
percepção dos alunos sobre a invisibilidade social e espacial;
d) elaborar cartilhas para que os alunos envolvidos distribuam ao corpo discente
não participante das atividades e;
e) editar vídeos sobre a invisibilidade social com os alunos, para reconhecerem
seus comportamentos no espaço da escola e da cidade.

Considerações finais

As individualidades, as expectativas, as histórias de vida e os valores atribuídos a


determinados “sujeitos”, que dinamizam os espaços das cidades, são esvaziados pelos
seus status sociais ou discriminação, sofrendo pela generalização/standartização/
precarização das atividades profissionais que labutam em uma multiplicidade de
situações vivenciadas no cotidiano urbano.
Logo, o tratamento e a análise da invisibilidade social, como sendo um tema
geográfico, remetem discuti-la com base nos conceitos-chave. Desse modo, se reafirmar
própria identidade da Geografia em sala de aula, dando interessante margem, como
destacaram Quincas et al. (2018), para a construção de raciocínio geográfico, e
acrescentando-se a ideia dos autores, para um cotidiano mais reflexivo e fraterno sobre
os papeis que os indivíduos invisibilizados exercem, influenciando em espectros das
experiências dos alunos e seu campo de relacionamentos.
Entende-se que aguçar a percepção do corpo discente para os problemas, que o
fenômeno da invisibilidade social provoca, contribui com a formação de visão de mundo
dos alunos. Nessa perspectiva, almeja-se uma construção de olhares do corpo discente
forjado, como Cavalcanti (2011) alega, em saberes que desenvolvam capacidade
cognitiva e emotiva de ver as coisas do mundo.

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Invisibilidade social no espaço…

Sendo bem essa linha defendida aqui, há o desejo que os alunos não
(re)produzam discursos ou que venham a praticar ações que levem a invisibilidade
social, permitindo a diminuição da carga de preconceito sobre as atividades profissionais
específicas ou de serviços ofertados.
Por último, a busca pela diminuição da desigualdade socioespacial passa pelo
(re)exame do fenômeno da invisibilidade social, desconstruindo-a no cognitivo e no
procedimental dos alunos. Ao se entender que a estratificação social e espacial é
construída, dentre outros aspectos, por relações espaciais e sociológicas do trabalho, se
anseia por uma formação escolar que conduza a reconhecer o papel das atividades e dos
trabalhadores, ainda hoje invisibilizados, no cotidiano das cidades.

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SOUZA, M.L. Os conceitos fundamentais da pesquisa socioespacial. Ed. Bertrand Brasil: Rio de
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STOP AND HEAR THE MUSIC. Produção: Joshua Bell. New York. Curta-metragem: 16 min. 2007.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hnOPu0_YWhw
UM DIA SEM MEXICANOS. Direção e produção: Sergio Arau. Elenco: Yareli Arizmendi, Caroline
Aaron, Melinda Allen, Fernando Arau, Maureen Flanningan, John Getz, Eduardo Palomo e Muse
Watson. Roteiro: Sergio Arau, Yareli Arizmendi, Sergio Guerrero, Sarah Polley. San Diego (EUA):
Altavista Films. 1h31min. San Diego. 2004. Colorido, 35mm. DVD.

Recebido em 29 de maio de 2019.

Aceito para publicação em 14 de outubro de 2019.

www.revistaedugeo.com.br 160

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