Universidade Federal Da Bahia: Instituto de Letras
Universidade Federal Da Bahia: Instituto de Letras
Universidade Federal Da Bahia: Instituto de Letras
Salvador
2014
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Salvador
2014
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Inclui anexos.
Orientador: Prof. Dr. Lucchesi, Dante.
Tese (doutorado) - Universidade Federal da Bahia, Instituto de Letras, Salvador, 2014.
CDD - 401.98142
CDU - 81’27(813.8)
4
Tese apresentada como requisito para obtenção do grau de Doutora em Linguística, Programa
de Pós-graduação em Língua e Cultura, Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia.
Banca Examinadora
AGRADECIMENTOS
De certa forma, vejo a defesa de uma tese como a finalização de uma etapa de
preparação acadêmica e o início de uma nova fase profissional. Assim, acho justo fazer
publicamente os agradecimentos a pessoas que foram importantes para que eu chegasse
a essa etapa divisória. Eu poderia apenas agradecer a pessoas que foram importantes no
que se refere a aspectos acadêmicos e profissionais, mas, como disse, num certo dia, a
minha amiga Norma Lúcia Fernandes de Almeida, sou muito emotiva, e, por isso, não
posso agradecer assim. Deixo, portanto, registrados os meus mais sinceros e
abrangentes agradecimentos:
Aos meus queridos colegas e amigos do Campus XV da UNEB, onde trabalhei e onde
pude aprender muito. Sou-lhes muito grata pela calorosa recepção que lá recebi e por
terem possibilitado a minha transferência da UNEB para a UEFS. Foi na minha volta
para a UEFS que reencontrei caminhos para pensar o tema desta tese.
À Carla Luzia Carneiro Borges, mais do que amiga ou colega, uma verdadeira irmã. À
Terezinha (minha sogra), com uma SAUDADE DO TAMANHO DO MUNDO, e a
todos os meus amigos (que, felizmente, entenderam a minha reclusão!). Não tenho
como nomear todos aqui...
A Deus, que está em mim e ao meu redor! Aos meus irmãos de fé, que me deram força
e paciência para prosseguir nos meus estudos: Meu pai, Dona Alfreda, Dona Hilda, Seu
João, Irmã Pretinha (esses in memoriam) e “Luta”, grande presente na minha vida.
Aos tantos bons professores que tive, desde os tempos das Sacramentinas. À Professora
Maria Luíza Braga, por ter me apresentado à Sociolinguística, durante um curso na
UEFS. À Ilza Ribeiro, sou muito agradecida por ter me incentivado a fazer uma pós-
graduação stricto sensu e pelas ajudas, embora nunca tenha percebido o quanto estava
me ajudando...
Ao Professor Dante Lucchesi, sou muito grata por todo o apoio, consideração e
conhecimentos que tenho recebido desde o dia em que o conheci, sendo um excelente
orientador, demonstrando ser uma pessoa de enorme grandeza intelectual e pessoal.
Aos Professores Jorge Augusto Alves da Silva e Alan Baxter por terem participado do
Exame de Qualificação desta tese, apontando-me os pontos positivos, os negativos e
sugerindo-me caminhos.
A Luiz Antônio Costa Araújo, que sempre me apoiou, dando-me força em diferentes
momentos dos nossos vinte e cinco anos de vida em comum, mostrando-me a força de
um grande amor.
A Rafael e Juliana, por serem filhos tão compreensivos e especiais. A Ana Flávia, por
ter me alegrado, com suas visitas, nesses tempos de tese.
8
RESUMO
Esta tese tem por objetivo central discutir a formação e a caracterização atual da
realidade sociolinguística brasileira, tomando como tema específico o uso variável da
concordância verbal com a terceira pessoa do plural, no português falado em Feira de
Santana, município do interior da Bahia, estado da região Nordeste do Brasil. Parte-se
do princípio de que as variedades populares do português brasileiro caracterizam-se por
uma extrema redução na sua morfologia flexional, motivada por questões sócio-
históricas, sendo a principal delas o contato entre línguas, resultante da importação de
um enorme contingente populacional de africanos escravizados por três séculos no
Brasil e relegados a um perverso sistema de exclusão social ao longo da história
brasileira. Acredita-se que tais condições sociais repercutiram significativamente na
estrutura da língua portuguesa, fazendo com que houvesse uma bipolarização de normas
linguísticas no Brasil, com um polo que abriga as variedades cultas, estas mais próximas
da norma-padrão, e outro que abriga as variedades populares, marcadas, como se expôs
acima, por processos de extrema redução na sua morfologia flexional. Nesse sentido,
com este estudo, investigou-se, com os pressupostos teórico-metodológicos da
Sociolinguística Variacionista, bem como de estudos sócio-histórico-demográficos da
comunidade de fala pesquisada, como se encontram distribuídos os dois polos
sociolinguísticos em Feira de Santana. Foi analisado um total de 48 entrevistas, sendo
36 da norma popular (12 gravadas na zona rural e 24 na zona urbana) e 12 da norma
culta urbana. Constatou-se que, não obstante as contínuas mudanças ocorridas no Brasil
a partir do século XX, ainda há uma bipolarização de normas no português falado em
Feira de Santana. Essa constatação empírica foi interpretada como um reflexo da
polarização sociolinguística que ainda caracteriza a sociedade brasileira na atualidade
(LUCCHESI, 2001, 2002 e 2006).
ARAUJO, Silvana Silva de Farias. The verbal agreement in Portuguese spoken in Feira
de Santana-BA: sociolinguistics and socio-history of Brazilian Portuguese. 341 pp. ill.
2014. Thesis (Ph.D.) – Instituto de Letras. Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2014.
ABSTRACT
This thesis aims to discuss the formation and the current characterization of Brazilian
sociolinguistic reality, taking as a specific subject the variation in subject-verb
agreement for the third-person plural in samples of Portuguese spoken in Feira de
Santana, a municipality in the inner of Bahia, state in the region northeastern Brazil. It
starts from the principle that the popular varieties of Brazilian Portuguese characterized
by an extreme reduction in its inflectional morphology, motivated by socio-historical
facts, the main one being the contact between languages, resulting of the importing a
enormous population of African slaves for three centuries in Brazil and relegated to a
perverse system of social exclusion throughout Brazilian history. It is believed that such
social conditions have affected significantly the structure of the Portuguese language,
causing a bipolarization of linguistic norms in Brazil, one pole housing the standard
norm and another the non-standard varieties, these, as said above, with an extreme
reduction of inflectional morphology. Thus, this study investigates, with the theoretical
and methodological assumptions of Variationist Sociolinguistics (as well as socio-
historical-demographic community researched speech) how are distributed the current
organization of the two poles sociolinguistic in Feira de Santana. We analyzed a number
of 48 interviews, 36 of the nonstandard speech (12 of which were carried out with
informants from the countryside and 24 from the urban area) and 12 of the standard
speech (literate informants). It was found that, despite the continuous changes in Brazil
from the twentieth century, there is still a bipolarization of norms in the Portuguese
spoken in Feira de Santana. This empirical observation was interpreted as a reflection of
sociolinguistic polarization that still characterizes the Brazilian society today
(LUCCHESI , 2001, 2002 and 2006 ).
RÉSUMÉ
FIGURAS E MAPAS
QUADROS
Quadro 7 Pessoas de 4 anos ou mais de idade que frequentam escola por grau
de cursos no município de Fera de Santana 1980/2000...................... 169
GRÁFICOS
TABELAS
Tabela Origem, cor e gênero dos escravos 1850 – 1870 Alto Sertão – Região
6 Nordeste-Itapicuru....................................................................................... 147
Tabela Origem, cor e gênero dos escravos – 1748 a 1749 Chapada Diamantina –
7 Rio de Contas.............................................................................................. 149
Tabela Frequência de uso da concordância verbal com P6, tomando-se por base
15 alguns estudos sobre o português popular urbano brasileiro...................... 245
Tabela Distribuição geral dos dados da CV com P6 na fala culta feirense............. 249
17
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 21
1ª PARTE
CAPÍTULO 1 – A TEORIA 26
culturas.................................................................................................... 91
2.3.2 Fluxos migratórios: o constante deslocamento de pessoas e de
culturas................................................................................................... 98
2.3.3 Urbanização e escolarização: dois processos tardios.......................... 100
2.3.3.1 Urbanização no Brasil numa perspectiva sócio-histórica.................. 100
2.3.3.2 Escolarização no Brasil numa perspectiva sócio-histórica................. 104
2.3.3.3 História da escolarização da população negra no Brasil.................... 113
2.3.3.4 Comparação entre a escolarização brasileira e a portuguesa............ 118
2.4. FINALIZANDO O CAPÍTULO.............................................................. 121
2ª PARTE
Fundamentos metodológicos: método e materiais
3ª PARTE
Análise empírica: a concordância verbal no português falado em Feira de Santana-
Ba
REFERÊNCIAS..................................................................................................... 310
ANEXOS................................................................................................................. 338
21
INTRODUÇÃO
1ª Parte
CAPÍTULO 1 – A TEORIA
1
Atente-se ao fato de a teoria sociolinguística considerar, em suas análises empíricas, variáveis de
diferentes naturezas, como estilísticas, sociais, estruturais, fonéticas, sócio-históricas e, até mesmo,
ideológicas, as quais possibilitam uma análise mais abrangente do fenômeno linguístico. Esse tópico será
discutido com detalhes ainda neste capítulo.
27
2
De certa maneira, a escolha do objeto observacional já traz em si o primeiro momento da elaboração
teórico-metodológica, uma vez que a porção da realidade a ser analisada relaciona-se aos objetivos da
pesquisa. Basta lembrar, por exemplo, que os filólogos da antiguidade clássica tomavam como fonte de
estudo textos escritos canônicos justamente por terem objetivos e premissas normativo-prescritivos.
3
No capítulo seguinte, discorre- se sobre a formação do PB, defendendo-se que as diferentes propostas
para esse fato podem ser, do mesmo modo, entendidas como diferentes formas de olhar o fenômeno
linguístico, quais sejam: de maneira apenas imanente/estrutural ou de maneira contextualizada sócio-
histórico-culturamente.
29
E mui poucas são as cousas que duram por todas ou muitas idades em
hum estado, quanto mais as falas que sempre se conformam com os
conceitos ou entenderes, juízos e tratos dos homens. E esses homens
entendem, julgam e tratam por diversas vias e muitas, às vezes
segundo quer a necessidade, e às vezes segundo pedem as inclinações
naturaes (Cap. XXXVI, p. 130 l. 2-7)
4
Foi utilizada a edição de autoria de Torres e Assunção (2000).
5
William Jones foi um juiz inglês que exercia funções em Calcutá e descobriu textos hindus antigos e
divulgou, em 1786, a hipótese de que as semelhanças entre o sânscrito, o grego e o latim não poderiam
ser atribuídas ao acaso e postulou que essas línguas tinham uma origem comum. Nesse sentido, Mounin
(1967, p. 164) salienta que outros estudiosos já haviam apontado o provável parentesco entre essas
línguas, mas que a mesma só adquiriu visibilidade a partir da apresentação de Jones à Sociedade de
Bengala e, ainda mais, a partir dos trabalhos de Schlegel em 1808.
30
6
A autora, neste trecho, explana sobre as teorias que se destacam na interpretação das mudanças
sintáticas a partir da década de 1970, sendo estas a gerativista, a funcionalista e a sociolinguística.
7
Conforme se afirmou no início deste capítulo, pode-se julgar a sociolinguística uma teoria mais
completa ou mais abrangente, também, por incluir em suas análises fatores externos à estrutura
linguística.
31
8
Obviamente, o estruturalismo saussuriano pode ser interpretado também como uma ruptura com a
linguística que se fazia, pois, para sustentar o seu axioma básico, o de que o objeto de estudo da
linguística seria a langue, um sistema homogêneo que permite a comunicação entre os seus usuários, foi
retirada de cena a dimensão variável e evolutiva das línguas, isto é, a mudança linguística. O que os une,
frisa-se, é a visão de que a estrutura linguística é suficiente para se descrever as características das
línguas, isto é, a visão imanenticista.
32
9
Paixão de Sousa (2006, p.14) salienta que, embora os renascentistas já tivessem tentado explicar o
problema da mudança e em muito terem contribuído para o surgimento da filologia românica a partir do
levantamento de questões sobre a herança latina, foram os linguistas oitocentistas que sistematizaram o
método histórico-comparativo principalmente por aliarem a esfera documental à esfera experimental.
10
O termo diacronia é utilizado com a acepção saussuriana, adiante comentada.
33
[...]
11
A autora traça uma distinção entre a tradição comparada e a histórico-comparada, no sentido de que a
primeira teria uma orientação mais experimental (indutiva) e a segunda mais documental (empírica).
12
Na teoria sociolinguística laboviana, vê-se, por outro lado, um imbricado jogo, em que se articulam
história e funcionamento das línguas bem como presente, passado e futuro dos fatos linguísticos.
(ARAUJO, 2005, p. 48).
13
"Na língua hindu, ou na língua grega, cada raiz é visivelmente, como o próprio nome expressa, um tipo
de germe vivo.” [Tradução nossa]
35
quando contrasta línguas não flexivas com as flexivas: “as de la primera clase solo
tienen uma especie de palabras [...] se podrá decir que todas las palabras son en ellas
raíces, pero raíces estériles, que no producen ni plantas ni árboles14 (W. Schlegel,
1808, apud Mounin, 1967, p. 162)”[grifo nosso] 15 Essa concepção internalista e
naturalista é também ressaltada em Paixão de Sousa (2006, p. 17):
14
“As primeira classe só tem uma espécie de palavras [...] poder-se-á dizer que todas as palavras são elas
mesmas estão raízes, mas raízes estéreis, que não produzem plantas ou árvores”. [Tradução nossa].
15
Essa orientação naturalista dos estudos comparatistas é interpretada por Mounin (1967) como algo
típico do mundo científico, em que uma nova ciência assimila os princípios e métodos (modelos teóricos)
elaborados por outras mais em voga ou mais avançadas. Nesse caso, é visível que se assume muito dos
construtos da biologia e paleontologia comparadas.
36
16
“Bopp vem operando sobre o sânscrito védico antes do primeiro milênio aC, sobre o grego homérico
dos séculos IX e VIII aC, sobre o latim dos séculos V e IV aC, depois sobre o gótico do século IV da
nossa era, o eslava do século IX, o persa moderno. Há, pois, uma época da gramática comparativa em que
esta não está ligada organicamente ao método histórico.” [Tradução nossa]
17
Mattos e Silva (2008) julga a teoria neogramática como a primeira a ser esboçada para a mudança
linguística.
37
18
Tendo em vista os propósitos deste trabalho, a exposição não é feita de forma exaustiva e nem tão
detalhada como a temática instiga. Atente-se ao fato de que existem diversos livros em que as ideias de
Saussure são bem esmiuçadas, entre os quais destacam Lucchesi (2004), Castelar de Carvalho (1997),
Bouquet (1997), entre outros, além de diversos artigos publicados.
39
19
Essa separação rígida entre língua (sistema) e sociedade será superada pelos sociolinguistas que
demonstram que a dinâmica das línguas depende das relações que as mesmas mantêm com os indivíduos
em sociedade. Da mesma forma, demonstram que as variações presentes na fala podem interferir na
organização do sistema, já que são regidas também por regras. Sobre isso se discorrerá adiante.
40
20
Certamente, quando fala da linguística moderna, a autora refere-se às vertentes estruturalistas e
gerativistas diacrônicas.
42
O esquema das funções da língua, pelo qual se pretende dar conta dos
indivíduos e das situações de fala, mantém-se no plano formal
abstrato. Nele, mais uma vez encontramos um emissor impessoal que
fala a um receptor também impessoal, numa situação indeterminada
do ponto de vista do contexto sociocultural. Escapa-lhe, portanto, o
conjunto de condicionamentos, que se atualiza tanto na condição do
indivíduo falante quanto na situação em que o ato de fala acontece.
(LUCCHESI, 2004, p. 91)
21
Os seus principais representantes são Wilhem Mathesius, Nikolai Trubetzkoy e Roman Jakobson.
22
Os processos de gramaticalização, processos esclarecedores para alguns tipos de mudança, podem ser
alocados como desdobramentos da teoria funcionalista.
23
De certa forma, os estruturalistas diacrônicos já faziam a junção sincronia e diacronia, mas essa junção
só será realmente levada a cabo pelos sociolinguistas variacionistas.
43
24
“As transformações lingüísticas visam muitas vezes o sistema, sua estabilização, sua reconstrução etc.
Assim, o estudo diacrônico não só não exclui as noções de sistema e de função, como torna-se, ao
contrário, incompleto, se não as toma em consideração” (Teses do Círculo Linguístico de Praga, p. 82-83,
apud Lucchesi 2004, p. 127).
44
linguística fosse interpretada como fruto de eventos de imitação, algo defendido, por
exemplo, por Bloomfield25.
Como reação a essa proposta visivelmente descritivista/indutiva, com
metodologia de base empiricista, presa aos dados do corpus, Chomsky dá início, em
1957, ao programa gerativista da linguagem. Este, ao contrário dos seus
contemporâneos, prioriza a metodologia dedutiva, postulando que a linguística, longe de
ser descritiva, deveria ser explicativa. Mas será a visão chomskyana sobre o processo
de aquisição da linguagem que causará uma transformação na forma de se considerar os
processos de variação e mudança linguísticas, a partir do ano de 1962, com a publicação
de Phonology in generative Grammar, de autoria de Halle (cf. MATTOS E SILVA,
2008, p.43).
Chomsky postula que há uma capacidade inata e intrínseca ao ser humano
para a faculdade da linguagem. Fala-se, pois, do problema lógico da aquisição, a saber:
como pode a criança adquirir uma língua específica e saber tanto sobre ela tendo contato
com dados tão “pobres” e com uma pobreza de estímulos? No quadro gerativista atual
(na teoria dos Princípios e Parâmetros), a resposta é encontrada na dotação genética do
ser humano, sendo a aquisição vista como fruto do “desabrochar” de um dispositivo
inato (LAD – language aquisition device), restando às crianças adquirirem
particularidades das línguas a que estão expostas, uma vez que os princípios gerais (que
não podem ser infringidos) elas já trariam. Em síntese, na proposta chomskyana, a
criança acrescenta à gramática universal (inata) a marcação de valores por meio do
contato com uma língua particular, isto é, do contato com os dados linguísticos
primários; gerando, assim, uma língua-I a partir de dados da língua-E.
Pelo exposto acima, presume-se que será interligando aquisição e mudança
linguísticas que surge a proposta diacrônica do gerativismo, em que a mudança se
resume basicamente a alterações paramétricas que se iniciam no indivíduo e se
espalham pela comunidade. A criança tem, nesse processo, um papel fundamental, pois,
em seu processo de socialização, introduz mudanças na sua gramática interna (GI) 26,
externadas em sua gramática externa (GE) que, por sua vez, servirão como modelos de
25
Nos Estados Unidos, imperava a concepção formalista nos estudos da linguagem/língua. Quando se
discorrer, no próximo capítulo, sobre a teoria para a mudança linguística postulada pelo norte-americano
Sapir, será evidenciada a autonomia da estrutura linguística perante a história.
26
De acordo com Kroch (2005), essas mudanças são introduzidas por desvios cometidos por crianças ao
adquirem a língua materna ou por adultos em aquisição de L2.
45
input. Assim, a mudança surge quando acontecem re-análises de partes dos PLDs
(dados linguísticos primários).
A questão, não é, contudo, simples. Nesse sentido, a maior polêmica gira em
torno da definição dos fatores que afetam a marcação diferenciada em uma dada língua
histórica. Sobre isso, explicita Lucchesi e Ribeiro (2009, p. 132):
27
Essa questão será retomada na seção 1.4, quando se mostrará o contraponto desse ponto de vista com a
proposta sociolinguística.
46
28
Ratificando o caráter controverso da nossa opção: Tarallo (1987), por exemplo, escreveu um texto que
o intitulou Por uma Sociolingüística românica “paramétrica”: fonologia e sintaxe, colocando aspas no
termo ‘paramétrica’. E, recentemente, o artigo foi copilado e publicado num livro organizado por
professores da Unicamp, sendo que o referido artigo foi alocado na seção Linguagem e sociedade: teoria e
descrição (cf. ALBANO, COUDRY, POSSENTI e ALKMIM, 2003).
48
29
Essa correlação deve ser entendida no sentido de que a sociolinguística apresenta descrições das línguas
e, ao mesmo tempo, projeta historicamente os fenômenos linguísticos em estudo. Evidentemente, a
concepção de estrutura é tomada aqui num sentido muito amplo. Em síntese: nos trabalhos
sociolinguísticos, embora se investigue a estrutura linguística, não se deixa de considerar a fala e questões
extralinguísticas.
49
[...] é Schuchardt que abre caminho para uma nova orientação que se
vai desenvolver principalmente entre os romanistas – o estudo da
variação linguística no espaço (dialetologia) e sua importância para a
compreensão da mudança no tempo. Schuchardt, partindo da fala e
não mais da escrita, admite, contrariamente aos neogramáticos, que a
mudança dos sons segue várias direções. Com isso, critica as
abstrações generalizantes dos neogramáticos e admite que “cada
palavra tem a sua história”.
Assim, no final do século XIX e início do XX, seguindo a trilha iniciada por
Schuchardt, Antoine Meillet e alguns precursores da moderna dialetologia introduziram
críticas mais sistematizadas à teoria neogramática, embora tenham sido subestimadas,
principalmente em decorrência da importância que assumiram os estudos sincrônicos,
sobretudo “abstratos”, com base nas ideias de Saussure.
Meillet foi discípulo de Saussure, mas adotou uma concepção “social” de
forma diferente do mestre de Genebra. Para ele, as condições sociais eram
imprescindíveis para a configuração das línguas e para as suas mudanças, de modo que
alocava a linguística no campo das ciências sociais. Segundo aponta Faraco (2005, p.
153), Meillet defendia, já em 1922, uma linha de estudo que buscasse reconhecer as
relações entre a mudança linguística e fatos sociais. Propôs, assim, que as diferenças
entre o léxico das línguas indo-europeias diferenciavam-se entre si devido aos usos
feitos pelas classes aristocráticas e não-aristocráticas, sendo as primeiras marcadas pela
rigidez nas redes sociais e as segundas por sua fluidez. Meillet (1928), ao se referir à
relação sincronia/diacronia, afirma que as mudanças entre línguas indo-europeias e
germânicas poderiam ser aceleradas, retardadas ou temporariamente detidas por causas
sociais e culturais.
Dos estudiosos da geografia linguística, avulta a contribuição dos franceses
Gaston de Paris e Jules Gilliéron que, ao descreverem variedades locais da língua
30
As informações sobre esses estudos são dadas com base em Câmara Jr. (1979).
50
francesa, constataram, no final do século XIX, que a mudança não atingia todos os
vocábulos da mesma forma, destacando, por exemplo, que havia regiões conservadoras
e inovadoras e centros irradiadores de inovações. Assim, os estudos da variação espacial
abriram caminhos para o estudo da mudança linguística, não mais “subalterna” às leis
fonéticas. Sob a vertente de estudos comparatistas, surgiu o interesse pelos dialetos,
considerados, então, como fontes de conhecimento acerca do modo como se teriam
operado as transformações em fases anteriores das línguas. Desse modo, as descrições
realizadas por esses estudiosos demonstravam – com rica documentação – a
inconsistência dos princípios em que se fundamentava a doutrina dos neogramáticos.
É visível, portanto, que o olhar para a heterogeneidade linguística foi
fundamental para que se efetivasse uma forma contextualizada de se estudar a mudança
linguística. Nesse sentido, Gauchat (1905) pode ser considerado o grande precursor da
sociolinguística, com o seu estudo da comunidade francófona suíça de Charmey. Esse
trabalho se destaca dos demais por ser considerado o primeiro a ter como objeto a
mudança linguística em progresso, uma vez que o pesquisador trabalhou com a pesquisa
dialetológica na perspectiva diageracional, considerando três gerações de falantes
conviventes (menos de trinta anos, mais de trinta anos e mais de sessenta), observando a
variável /oy/. Assim, Gauchat antecipou, de certa maneira, a utilização do recurso do
tempo aparente, divulgado no modelo teórico-metodológico da Sociolinguística.
Outros estudiosos insistiram no caráter heterogêneo das línguas,
questionando, o caráter categórico e imanente das mudanças linguísticas. São estudos
em que se mostram a inconsistência das célebres dicotomias saussurianas,
demonstrando que os fenômenos linguísticos se realizam no contexto variável dos
acontecimentos sócio-histórico-culturais. Cita-se, por exemplo, a grande contribuição de
Eugenio Coseriu, que, por meio da sua visão tripartida da linguagem (sistema, norma e
fala), chamou a atenção para que se observasse que as variações linguísticas não são
aleatórias, mas motivadas por fatores externos à estrutura linguística. Demonstra
também, em seu clássico estudo, que a língua muda no funcionamento, ou seja, que a
mudança não é incompatível com o uso eficiente de um sistema linguístico (COSERIU,
1979).
Há também trabalhos como os de Mikail Bakhtin, Marcel Cohen e Emile
Benveniste 31 , os quais, ainda que não focalizassem diretamente o fenômeno da
31
Sobre esses estudos, recomenda-se a leitura do texto de Alkmim (2011[2001]).
51
32
Doravante, WLH (1968). Este é considerado o texto programático da sociolinguística, preparado para
ser apresentado num congresso, em abril de 1966, no Texas.
33
Leite, Callou e Moraes (2003), ao tratarem da superação da dicotomia saussuriana sincronia/diacronia
utilizam a expressão sincronia dinâmica para nomear a perspectiva de estudo atual em que se estudam
mudanças em progresso.
52
previsível que uma série de equívocos ocorresse, uma vez que não era possível
acompanhar os fatores envolvidos no processo.
Nesse sentido, Labov (1994) traça uma distinção entre a metodologia
tradicional da linguística histórica e a da sociolinguística (que pode ser entendida como
a vertente moderna dessa área da linguística). Para o autor, a linguística histórica é a
arte de fazer o melhor uso dos piores dados, pois, ao trabalhar com dados de estágios
pretéritos, o pesquisador trabalha com dados que sobreviveram no curso do tempo com
uma série de acidentes, assim elencados: (i) a dúvida se a escrita representa o vernáculo
do usuário ou se está inflectida de normas prescritivas; (ii) o fato de os dados só
proporcionarem evidências positivas e serem produzidas por pessoas de quem se
desconhece o perfil sociolinguístico34. Assim, a proposta sociolinguística, além de trazer
uma renovação teórica sobre os usos e as mudanças linguísticas, estabelece uma nova
metodologia para o estudo da evolução das línguas: o recurso do tempo aparente, algo
que será discutido ainda neste trabalho.
Sobre a linguística histórica, WLH (2006[1968], p. 38) salientam que
podem fazer parte do interesse do pesquisador três áreas de pesquisa, a saber: (i) a que
investiga como surgiram as línguas naturais; (ii) a que centra o interesse na genealogia
das línguas atuais; (iii) a que focaliza a questão do presente curso da mudança,
procurando determinar a direção da evolução e os seus fatores condicionadores, mais
explicitamente, se a direção e os fatores que atuam na evolução atual são os mesmo que
atuaram no passado. Centrando-se mais no terceiro aspecto, os autores afirmam ainda
que este pode ser tratado por meio de quatro faixas temporais, assim discriminadas: (a)
mudanças de longo prazo com efeitos similares ao longo dos milênios; (b) mudanças
completas que cobrem um século ou dois no máximo; (c) processos em marcha que
podem ser observados no curso de uma ou duas gerações; (d) porções puramente
sincrônicas em que são identificadas inferencialmente as direções da mudança de certos
elementos variáveis. Ao priorizarem a segunda e a terceira faixas, e não descartando o
quarto, fica bem explicitado que lançam, com seus trabalhos empíricos, as bases para
uma teoria da mudança linguística e não apenas para se entender a heterogeneidade
linguística.
É interessante notar que, na teoria sociolinguística, a mudança é vista como
processo e não como o resultado de uma lei categórica que “misteriosamente” atinge os
34
Para Moreno Fernández (1998, p. 116), essas dificuldades fazem com que haja um paradoxo histórico
similar ao paradoxo do observador enfrentado pelos sociolinguistas que trabalham com dados de fala.
53
36
Nesse ponto, WLH destacam a excelência dos trabalhos de Kökeritz (1953) e Fónagy (1956), que
evidenciaram que aas flutuações encontradas e socialmente condicionadas pertencem aos mecanismos
centrais da mudança linguística e não a algum processo marginal de “mistura de dialetos”.
56
37
A que defende que os padrões linguísticos do indivíduo mantêm-se inalterados a partir do momento em
que ele internaliza a sua gramática, aproximadamente com a idade de 15 anos, quando outros fatores se
mantêm constantes. Assim, o modo de falar de um homem com 80 anos, observado no ano de 2013, por
60
exemplo, representaria a língua do ano de 1948. Paiva e Duarte (idid., p. 18) define a hipótese clássica
como a que postula que há “mudança na comunidade e estabilidade no indivíduo através do tempo” .
38
Destaca-se que é importante identificar o que é inovador e conservador numa comunidade de fala. Esse
assunto será salientado no capítulo 4, quando se abordar o tema da concordância verbal, fenômeno
linguístico específico deste estudo.
39
Consoante informa Labov (2006[1972], p. 42), o sucesso do estudo em tempo aparente foi
parcialmente atestado por Hermann (1929) que voltou ao cenário do estudo realizado por Gauchat (1905),
uma geração depois, e constatou que três das variantes haviam avançado na mesma direção, ao passo que
uma, não, evidenciando influências conflitantes. Assim, o estudo em tempo real permite distinguir entre
gradação etária da população atual e os efeitos da mudança linguística. Também Labov, nos estudos de
Martha’s Vineyard e de Nova York, comparou dados de duas gerações utilizando dados do LANE
(Linguistic Atlas of New Englad) de respectivamente 1933 e 1940.
61
Assim, o estudo em tempo real (de curta ou de longa duração), ao ter como
base a comparação entre duas sincronias, permite ao pesquisador averiguar o percurso
da mudança tanto na estrutura linguística quanto na social.
Ressalta-se que neste trabalho optou-se por realizar uma abordagem sócio-
histórica da língua falada na comunidade de fala investigada (fazendo-se, portanto,
linguística histórica e não diacrônica). Por essa razão, na análise variacionista, além de
fatores extralinguísticos tradicionalmente utilizados na pesquisa sociolinguística –
idade, sexo e escolaridade –, considera-se também fatores sócio-históricos, como a
presença de migrantes no município, além de questões referentes à urbanização e à
escolarização do município em questão.
Dessa forma, adota-se, neste estudo, o arcabouço teórico-metodológico da
Sociolinguística Variacionista (LABOV, [2008 [1972]), também rotulada de
Sociolinguística Quantitativa, por operar com números e tratamento estatístico dos
dados coletados. Essa teoria, como já se mencionou, é ainda denominada Teoria da
Variação e da Mudança Linguística, já que, a partir da consideração de variáveis
explanatórias40, pode se constatar se a variação caminha, ou não, para uma mudança.
Essa é a linha adotada em função de ser considerada teoricamente coerente e
metodologicamente eficaz para a descrição da língua em uso numa perspectiva
variacionista.
Um estudo sociolinguístico visa, portanto, à descrição estatisticamente
fundamentada de um fenômeno variável, tendo como objetivo analisar, apreender e
sistematizar variantes linguísticas usadas por uma mesma comunidade de fala. Para
tanto, calcula-se a influência que cada fator (linguístico ou sociocultural) exerce na
realização de uma ou de outra variante. Os pesos relativos (frequências corrigidas)
refletem, de certa maneira, competência linguística dos falantes. O linguista interpreta
regras variáveis que descrevem e explicam os pesos relativos ligados aos fatores
associados à ocorrência das formas variantes a fim de se investigar o peso de questões
socioculturais na estrutura linguística da comunidade de fala analisada. Assim, a análise
sociolinguística busca estabelecer a relação entre o processo de variação que se observa
40
Nesta tese, as expressões variáveis explanatórias, variáveis independentes e grupos de fatores são
usadas como sinônimos.
62
41
Salienta-se que, conforme será explanado nos capítulos 5 e 6 desta tese, uma análise empírica
sociolinguística propriamente dita só será apresentada no que concerne ao uso da concordância verbal
com a terceira pessoa do plural ou P6.
63
42
Há um debate acerca da utilização de textos da modalidade escrita para a realização de estudos
sociolinguísticos. Entre outras coisas, discute-se se o caráter conservador da escrita não afetaria a
validade dos dados analisados. Sobre isso, Romaine (1982) pronuncia-se destacando que o paradoxo do
observador também pode levantar dúvidas sobre a “veracidade” de dados orais nas pesquisas
sociolinguísticas. Desse modo, julga-se mais proveitoso aceitar a utilização de textos escritos, contudo,
fazendo uma exploração mais ampla desses; por exemplo, usando fontes complementares, fazendo
estudos acerca das condições sociais de produção, identificando os emissores e receptores, considerando-
se diferentes gêneros textuais etc (cf. LOBO, 2001). Quanto aos dados orais, pode-se também adotar uma
metodologia mais próxima dos estudos etnográficos, fazendo o que propõem Villena Ponsoda (1994, p.
22) e Milroy (1980, 1992), uma imersão sociolinguística na comunidade de fala.
67
43
“Começamos dizendo que vamos explicar a evolução de uma língua em termos sociolinguísticos, mas
depois não vamos além da explicação estrutural da mesma e nunca se vê o nexo social ou cultural que tem
condicionado o processo. Ninguém pode negar que esta é uma tarefa árdua e requer muitos
conhecimentos para além dos linguísticos e que não pode ser realizado sem uma preparação prévia de
trabalhos monográficos, mas, na minha opinião, este é o único caminho a seguir para que a rubrica
"história de uma língua” correponda realmente à realidade que a língua é: um sistema de comunicação
que vive numa determinada sociedade, condicionado por certas circunstâncias de espaço e tempo”.
[Tradução nossa]
68
44
A sociolinguística histórica pode ser definida de forma muito ampla como uma ciência que, segundo
Lodge (2004, p. 9), "aplica os conceitos e técnicas de Sociolinguística a estados anteriores da língua, com
a ideia de as propriedades observadas das comunidades de fala contemporâneas [...] deve também ter sido
típicas em comunidades de fala anteriores". [Tradução nossa]
69
Salienta-se que, para esta tese, foi muito importante considerar estudos
sobre a historiografia brasileira, notadamente sobre o período em que se transplantou o
português para o Brasil, a exemplo do intenso contato linguístico e da tardia
implantação dos processos educacionais e urbanísticos. Isso é feito sistematicamente no
segundo capítulo. No Capítulo 3, por sua vez, aborda-se também questões sócio-
históricas, mas aplicadas ao entendimento da formação da comunidade de fala
investigada, isto é, do português falado em Feira de Santana-Ba, apresentando fatos de
sua história externa. Assim, nesses dois capítulos, escrutinam-se questões sobre o
campo (a) acima destacado.
Este estudo também focaliza o campo (b) acima especificado, pois analisou
diferentes amostras da fala feirense e, assim, reuniu elementos para demonstrar a
propagação da variação na concordância verbal, identificando em quais estratos sociais
mais ocorre a não aplicação da regra padrão da concordância de número nas formas
verbais. Por esta razão, para se realizar o trabalho empírico, trabalhou-se com um
corpus representativo de diferentes níveis (norma popular – rural e urbana – e a culta
urbana) bem como com dados relacionados a algo típico da região estudada, a migração.
Contrastam-se também os resultados encontrados com os obtidos por outros
pesquisadores que analisaram dados da capital baiana e de outras regiões do interior da
Bahia, marcadas etnicamente (pela ancestralidade africana) ou não. Em outras
oportunidades, essa análise contrastiva poderá ser realizada de forma mais sistemática.
Optou-se por trabalhar com dados dos dois polos da realidade
sociolinguística brasileira, o culto e o popular, e, dessa forma, o estudo lança luzes
sobre a polêmica formação da língua portuguesa do Brasil, além de reunir elementos
que permitem investigar quais foram as consequências do estreitamento das redes
sociais empreendido no Brasil, a partir da intensificação de processos de urbanização,
bem como a partir da democratização de acesso ao ensino.
Por outro lado, não se pode negar que os campos (c) e (d) são também
abordados. Sobre o último, por exemplo, será comentado, no quarto capítulo, o estudo
realizado por Araujo (2011), em que são apresentados os resultados de uma
investigação em que foram comparados dados do PE e do PB no que concerne à
concordância verbal de número referente à primeira pessoa do plural (P4).
No próximo capítulo, traça-se um panorama sócio-histórico das condições
em que se formou a vertente nacional da língua portuguesa, sendo abordados temas
como a demografia histórica brasileira e o passado rural e de precária escolarização no
73
45
Ressalta-se que, embora as duas sejam importantes teorias da mudança linguística e a última tenha
embasado este trabalho, preferiu-se abordá-las no próximo capítulo (e não neste que trata justamente dos
pressupostos teóricos), pelo fato de as duas teorias estarem no centro do debate sobre a gênese do PB e,
consequentemente, de sua diferenciação em relação ao PE.
74
46
O autor demonstra que, na história do PB, objetos diretos e sintagmas preposicionais diminuem à
proporção que aumenta a proporção de retenção pronominal nos sujeitos, argumentando que a perda da
referência pronominal fez com que o sistema se rearranjasse, marcando mais frequentemente a posição de
sujeito.
75
O título desta seção poderia ter sido “deriva românica versus crioulização”,
assim não foi feito porque, embora já tenha havido muitas defesas acerca de uma
possível origem crioula para o português popular brasileiro – desde o célebre estudo de
Coelho (1880 apud Tarallo, 1993) – atualmente, é consensual, mesmo entre os
estudiosos que defendem a importância de fatores extralinguísticos, a postulação de que
o intenso contato entre línguas diversas e ininteligíveis na sócio-história do PB não
chegou a acarretar a formação de um crioulo prototípico e sim um processo de
transmissão linguística irregular. Em outros termos, a hipótese da existência de um
crioulo no passado linguístico brasileiro encontra-se desacreditada, estando em seu
lugar a de que houve condições sócio-históricas específicas no Brasil que levaram a que
mudanças ocorressem na estrutura da língua portuguesa na sua condição de língua
76
transplantada, sem que tivesse havido uma simplificação total na sua gramática, a ponto
de gerar outra língua, tal como ocorre em situações típicas de crioulização.
Por outro lado, a teoria da transmissão linguística irregular, como uma
hipótese interpretativa para a gênese do português brasileiro, não é aceita de forma
unânime por todos os estudiosos. Ao contrário, é contestada por aqueles que defendem
uma explicação intrassistêmica, presa a fatores internos à estrutura da língua
portuguesa. Assim, nos estudos sobre a formação do PB, há um debate que termina por
envolver, de certa forma, as duas orientações para o estudo das mudanças linguísticas,
proposta por Mattos e Silva (2008), apresentadas no capítulo anterior 47 . A fim de
melhor sistematizar esse debate, será feita uma exposição separadamente sobre as
mesmas nas próximas subseções.
47
Refere-se à distinção entre Linguística Histórica e Linguística Diacrônica discutida na subseção 1.2
desta tese.
48
Como ocorre, por exemplo, em zonas de interpostos comerciais e em situações de colonização de
exploração onde se usa mão de obra estrangeira em atividades de plantations.
77
dominador é o único elo comunicativo, isto é, uma espécie de norte “na odisséia
babélica” do contato entre línguas.
Na Crioulística, esse vocabulário sucinto, forjado para que se possibilite
uma comunicação inicial, é denominado tecnicamente de jargão. Na literatura sobre o
assunto, manteve-se, durante muito tempo, a visão de que o processo de evolução desse
código emergencial se dava na seguinte ordem: jargão> pidgin> crioulo. Ou seja,
pressupunha-se que, a partir desse vocabulário reduzido, que desempenhava funções
comunicacionais muito restritas, e com grande erosão gramatical, surgiria uma língua
pidgin, desde que se mantivesse a situação de contato à proporção que fosse ocorrendo
o incremento de redes de comunicação verbal.
Esse código emergencial ampliado, minimamente estruturado – a língua
pidgin – sendo nativizado, na medida em que crianças do grupo dominado vão nascendo
e, tendo esse pidgin como modelo para a aquisição de sua língua materna, dá origem à
chamada língua crioula (termo crioulo, com sentido etimológico de ‘aquele que nasce
no lugar’).49 Assim, em termos gerais, pode-se afirmar que o que ocorre no processo de
pidginização e crioulização – respeitando-se os graus de intensidade, que variam a
depender de situações específicas em que se dá o contato entre línguas – é um processo
de erosão da estrutura da língua alvo, seguida de sua recomposição (LUCCHESI, 2003).
Por outro lado, é necessário frisar que há nuanças no processo de mudanças
linguísticas induzidas pelo contato entre línguas. Nesse sentido, existe a hipótese teórica
da transmissão linguística irregular como um processo variável, e não apenas as
situações típicas de pidginização e crioulização, pois determinados fatores
extralinguísticos podem levar, não a ocorrência de uma língua pidgin ou crioula
propriamente dita, mas a um processo de singularidades da língua considerada de
superstrato. Segundo Baxter e Lucchesi (1997; 2009) e Lucchesi (2000; 2003), são
exemplos desses fatores: (i) a facilidade de acesso dos falantes das outras línguas e de
seus descendentes aos modelos da língua alvo; (ii) a proporção relativa entre a
população de escravos e a população dominante; (iii) a homogeneidade ou a
heterogeneidade linguística da população escrava; (iv) a continuidade da importação de
49
Em abordagens recentes, considera-se também a possibilidade de a nativização ocorrer antes da
estruturação do pidgin como língua de intercurso na comunidade. Desse modo, as crianças que nascem
têm como modelo o jargão incipiente usado como meio de comunicação emergencial e, nesses casos, o
processo de crioulização é muito mais radical. Nesse sentido, Lucchesi e Baxter (2009, p. 103-104)
salientam, com base em Mühlhäusler (1986), que é possível também o pidgin alcançar uma reestruturação
gramatical semelhante à das línguas naturais, configurando o que se denomina de pidgin expandido.
78
50
No próximo capítulo, discute-se que, na formação de uma língua crioula, ou mesmo, na formação de
uma variedade de uma mesma língua, devem ser consideradas outras questões que não apenas a da
proporção numérica entre brancos e negros. Como, aliás, expõe Arends, (2008, p. 316): “Needless to say,
the issue of access to first-language speakers is not just a quantitative matter; the quality of the interaction
between whites and blacks may also have differed widely. Not enough is known, however, to specify the
linguistic impact that this may have had”.
79
Por outro lado, esse contato não deixou de influenciar a feição peculiar do
PB, como se pode observar, por exemplo, na alta frequência de usos variáveis na
concordância verbal e nominal em suas variedades populares, existindo nessas,
inclusive, uma estratificação diferenciada das variáveis em relação aos usos cultos, no
que diz respeito, por exemplo, a tendências de mudanças, à avaliação subjetiva, às
51
Atente-se para a teoria de Lightfoot (1979; 1991) a respeito da explicação para as mudanças
linguísticas. Segundo o estudioso, essas ocorreriam no momento da aquisição, em que as crianças
mudariam de parâmetros gramaticais a partir da presença ou ausência de dados robustos.
81
variações estilísticas52. De todo modo, fica explicitado que, de forma alguma, pode ser
desprezada a importância da presença africana na constituição da realidade
sociolinguística brasileira, ainda mais porque, como será exposto na seção seguinte
(2.2), foram os africanos e seus descendentes que estiveram na base da população
brasileira durante séculos, impulsionando as características do PB.
52
Essa questão será retomada nos próximos capítulos.
53
No âmbito dos estudos sobre a formação do português do Brasil, há muitos pesquisadores que
sustentam a hipótese da transmissão linguística irregular, a exemplo de Dante Lucchesi, Alan Baxter,
entre outros. A saudosa Professora Rosa Virgínia Mattos e Silva também a defendeu em diversos estudos.
82
neste capítulo [...] mostram que o português europeu não-padrão é suficiente para dar
conta da gênese do português brasileiro, não existindo justificativa para buscar outras
fontes mais distantes” (p.114). Segundo os autores, o português do Brasil estaria
seguindo/obedecendo a tendências prefiguradas da estrutura da língua portuguesa,
intensificadas, no Brasil, por uma “confluência de motivos”:
54
Em relação a essa direção das mudanças linguísticas, ressalta-se que é inapropriado entender o processo
de mudança dessa forma, pois, como defende Labov (1982, p. 20-21), é necessário considerar as
condições sócio-históricas em que as mesmas ocorrem, integrando o conjunto das relações sociais,
culturais e ideológicas nas quais a língua se atualiza.
83
55
Neste estudo, optou-se por utilizar ou a expressão formação do português do Brasil ou do português
brasileiro, e não português popular brasileiro, em razão de que, embora se reconheça a bipolarização
sociolinguística brasileira, considera-se que certos usos não padrão estigmatizados, iniciados nas classes
sociais baixas, também exerceram influência na feição das normas cultas, por influência de mudanças
linguísticas consideradas “de baixo para cima”. Tal fato evidencia a abrangência e a importância do
contato entre línguas na constituição da realidade linguística brasileira.
84
dominados e uma constante vinda de novos africanos que faziam com que o código
emergencial que estava sendo estabilizado fosse continuamente motivado a sofrer novas
erosões. Nos casos de exploração de mão de obra africana, era também mais difícil os
dominadores tentarem aprender a língua dos dominados pela simples razão de que elas
eram várias e, inclusive, bastante díspares entre si, ou seja, pertencentes a tipologias
diferentes.
Dando sequência à defesa de suas ideias, Naro e Scherre afirmam que um
dos recursos utilizados pelos portugueses que não falavam árabe ou outras línguas
estrangeiras era o sabir, destacando que essa língua possuía, em suas duas variantes,
traços pidginizantes/crioulizantes:
56
De todo modo, cabe notar que o número de escravos africanos no Brasil foi muito mais elevado do que
o total de prováveis africanos em Portugal, pois, como assinala Elia (1979, p. 60), eles, poderiam
totalizar, no século XV, cerca de 10 mil escravos, sendo até 10% da população lisboeta, enquanto, no
Brasil, há evidências de que esse montante foi muito maior, calculando-se que, entre os séculos XVI e
XIX, entraram em torno de 3,5 milhões e a 3,6 milhões (GOULART, 1949 apud LUCCHESI, 2000, p.
54) ou, até mesmo, quatro milhões, segundo Fausto (2001, p. 24). Quanto ao número de indígenas no
Brasil, cuja presença também não pode ser desconsiderada para a configuração do PB, Houaiss (1985, p.
56) conjetura o número de 4,5 milhões a 10 milhões quando da chegada de Cabral.
85
57
Silva (2005, p. 125-126), ao negar a interpretação de que o amplo quadro de variação que se verifica na
morfologia verbal do PB, tenha como origem o processo de desnalização, faz a importante observação de
que a mesma ocorre sob a tutela restritiva da acentuação. O autor discute, por exemplo, que, no português
popular brasileiro, o traço nasal é recorrente nas sílabas tônicas, em formas como “mendingo” e
“mortandela”.
86
estatística, de modo que não é possível saber se se trata de uma variação ou de falhas do
desempenho. 58 Como, em Portugal, não há muitos estudos realizados com a teoria
sociolinguística quantitativa, e os dados recolhidos pelo autores foram obtidos com o
uso da metodologia dialetológica tradicional59, essa dúvida não pode ser sanada, embora
o estudo realizado por Gandra (2009), entre outros que serão comentados nesta tese,
aponte que não é muito comum a falta de concordância verbo-sujeito no PE. Essa autora
realizou um estudo, tendo como corpus dados do projeto Corpus Dialectal para o
Estudo da Sintaxe (CORDIAL-SIN)60, com entrevistas gravadas em comunidades rurais
portuguesas, cujos informantes possuíam pouca ou nenhuma escolarização. Os
resultados apontam para um preponderante uso da concordância padrão entre o sujeito e
o verbo, pois das 904 ocorrências de verbos com sujeito referencial na terceira pessoa
do plural apenas 32 ocorrências (3,5%) apresentam perda da concordância, ou seja, o
percentual de concordância atinge o altíssimo índice de 96.5%. 61 Gandra (2009) ainda
ressalta a disparidade dos seus resultados quando comparados com os resultados obtidos
por Silva (2005) e a similaridade com os de Souza (2005), que utiliza dados do
português arcaico:
62
Pesquisas desenvolvidas com dados do projeto Vertentes têm revelado que, em comunidades rurais
afro-brasileiras isoladas, o índice de falta de concordância verbal e nominal é superior ao que,
normalmente se postula para a fala popular urbana, conforme atestam, por exemplo, os estudos de Baxter
(2009) e Lucchesi, Baxter e Silva (2009).
63
Esse assunto será mais detalhado na próxima seção.
89
64
Quantificação divulgada por Lucchesi (2009, p.41).
92
65
Rodrigues (1986, p.95) informa que existiam duas línguas gerais, a paulista, de base tupiniquim,
utilizada como instrumento de colonização pelos bandeirantes, e, a língua geral amazônica de base
tupinambá, presente do Maranhão até a Amazônia.
93
diretamente para o estudo do latim, fato que só foi mudado após a reforma pombalina,
no mesmo ano de 1759. Esse ensino, obviamente, não possibilitava uma maior
familiaridade com estruturas da língua portuguesa.
Diante dessas questões referentes ao convívio de portugueses com
indígenas, cabe analisar qual foi a sua real importância na formação da realidade
sociolinguística brasileira. Nesse aspecto, julga-se fundamental não desconsiderar a
hipótese de que os indígenas também passaram por processos de transmissão linguística
irregular ao adquirirem o português como segunda língua. Essa hipótese, geralmente,
não é aventada, tendo em vista que se acredita que houve uma ampla disseminação da
língua geral no Brasil colônia. No entanto, é necessário que se avalie de forma mais
acurada a extensão do uso dessa língua e, de igual forma, a natureza do que seria a
língua geral.
Nesse sentido, Mussa (1991, p.152-153) argumenta que a língua geral ou
brasílica não era vastamente usada no Brasil colonial, sendo mais restrita aos
aldeamentos dominados pelos padres da Companhia de Jesus. Nessa concepção,
informa:
Silva Neto (1963[1950]), num dos mais completos estudos sobre a história
da língua portuguesa no Brasil, também apresenta dados que levam a se questionar a
amplitude da generalização da língua geral no período colonial brasileiro, chegando,
inclusive, a sugerir que, além da “língua geral”, os índios falavam uma variedade
simplificada do português, denominada por ele de “língua travada” (p.64). O autor
assevera: “os portuguêses da Europa, e seus filhos falariam um português de notável
unidade, enquanto os aborígenes, os negros e os mestiços se entendiam num crioulo ou
semi-crioulo” (p.15). Nesse sentido, é possível que os inúmeros mamelucos nascidos no
período já estivessem implementando mudanças fonológicas e morfossintáticas
induzidas pelo contato linguístico em decorrência de processos de transmissão
linguística irregular do português. O autor, apoiado numa vasta documentação, traz
depoimentos de missionários e viajantes europeus que sustentam essa hipótese, como,
94
A propósito, embora nunca tenha havido uma democracia racial no Brasil 66,
foram muito frequentes relações de troca de experiências culturais e linguísticas entre
brancos e negros, a exemplo do que demonstra Gilberto Freyre, no livro Casa Grande &
Senzala. A esse respeito, Silva Neto (1963[1950]), utilizando diversos depoimentos
sobre a sócio-história brasileira, traz trechos que demonstram que o convívio entre
culturas diversas foi uma tônica na história do Brasil, exercendo influências múltiplas
na formação do PB, de maneira a configurá-lo de forma diversas do PE, como se pode
ver nestes trechos:
66
Sobre a persistência do preconceito racial no Brasil, em diferentes momentos de sua história,
recomenda-se a leitura do livro de Fernandes (1972).
97
LUCCHESI e BAXTER, 2009 e MATTOS E SILVA, 2000, 2002, 2008, entre outros).
Assim, o projeto da elite brasileira não conseguiu homogeneizar e nem europeizar o PB,
mesmo porque, conforme se demonstra nas duas subseções seguintes, outros fatos
socioculturais, além da demografia histórica, foram mais imperativos na constituição
brasileira da língua portuguesa.
Brasil e, de outro, o português idealizado pela escassa elite brasileira, zeladora dos
padrões linguísticos e culturais lusitanos.
Certamente, foi essa natureza bipolarizada do português brasileiro, antevista
por Silva Neto (1963[1950]) e sistematizada por Lucchesi (1994, 1998, 2001, 2002,
2006, 2009) que levou Teyssier (1994 [1982]) a garantir que as diferenças linguísticas,
no Brasil, são mais sociais do que espaciais. E não é difícil entender por que essa
realidade se formou, desde que se correlacione a demografia histórica brasileira aos
constantes deslocamentos dos falantes do português popular brasileiro. Sobre isso se
posiciona Lucchesi (2009, p.48): “Esse constante e massivo deslocamento de
populações pobres, que já havia se verificado com o fenômeno das bandeiras, pode
explicar em boa medida a homogeneidade diatópica das variedades populares do
português do Brasil”.
Assim, como preconceito social e linguístico correlacionam-se, as marcas
características das variedades populares brasileiras não demoraram a ser estigmatizadas,
uma vez que aqueles que estudaram e/ou que são favoráveis à europeização da cultura
brasileira tiveram acesso às avaliações negativas sobre essas variedades. Dentre esses
aspectos estigmatizados, sem dúvida, a ausência da concordância entre verbo e sujeito,
matéria desta tese, é a marca linguística “denunciadora” da origem popular do falante,
independentemente de sua origem geográfica.
Retomando a discussão sobre as duas principais propostas para a gênese dos
fatos linguísticos definidores do PB, especificadas no início deste capítulo – a da deriva
e a da transmissão linguística irregular –, afirma-se que, devido aos fatos sócio-
históricos arrolados neste capítulo, avulta a importância de se considerar a importância
do contato entre línguas na formação do português popular brasileiro. Fica evidente que
a razão das semelhanças em diversas amostras do português popular do Brasil relaciona-
se à sua origem amalgamada por processos de transmissão linguística irregular.
O abismo que separa a fala culta da popular no Brasil, com diferenças de
usos e de tendências consideráveis, não pode ser correlacionado a uma deriva
linguística. É mais coerente interpretá-lo à luz de uma consistente análise sócio-
histórica, correlacionando-a a análises empíricas, feitas a partir de dados linguísticos
controlados por meio de um aparato teórico-metodológico que dê conta da
sistematização entre língua e sociedade. Nesse sentido, além da demografia histórica e
do deslocamento constante dos “atores” da formação da nação brasileira, reforçou a
constituição do PB o atraso de urbanização (e da consequente economia industrial) e de
100
68
Atente-se para a autonomia dos engenhos na época colonial, onde havia uma autossuficiência dos
mesmos, contando com escolas de primeiras letras, comércio, capelas etc.
102
1970 33,60%
1980 25,5%
1991 20,1%
2000 13,6%
2009 9,7%
Quadro 3: Taxa de analfabetismo de pessoas de 15 anos ou mais de idade no Brasil
Fonte: Adaptação de Síntese de Indicadores Sociais - SIS (2000) e SIS (2010)
69
É sabido que os critérios utilizados para avaliar se uma pessoa é ou não alfabetizada tem mudado ao
longo dos anos. Segundo Mortatti (2004, p. 18-19), até 1940, esse critério se baseava na declaração das
pessoas a respeito de sua capacidade de ler e escrever o próprio nome; a partir do censo de 1950, o
critério passou a se basear em uma definição mais ampliada de alfabetizado, pois passou a se considerar
se a pessoa era capaz de ler e escrever um bilhete simples no idioma que conhecesse, descartando-se os
casos em que a pessoa apenas soubesse assinar seu próprio nome. É possível, ainda, avaliar o nível de
letramento das pessoas, medindo-se, inclusive, as suas capacidades de plenamente fazerem usos das
práticas sociais de leitura e escrita.
70
Disponível em: <www.ipm.org.br>. Acesso em 26 de junho de 2006.
106
dos maiores déficits educacionais abrangendo a população com mais de quinze anos,
conforme demonstra o quadro seguinte:
Brasil 13,6
Colômbia 8,4
Chile 4,2
Argentina 3,2
Quadro 4: Taxas de analfabetismo na população de mais de 15 anos em países da América Latina
Fonte: BRASIL, Ministério da Educação. Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio
Teixeira. Mapa do Analfabetismo no Brasil. MEC/Inep [2003], p. 6 apud WAISELFISZ, Julio
Jacobo. Relatório de desenvolvimento juvenil 2003. Brasília: Unesco, 2004, p. 41.
74
De acordo com esse plano dos estudos jesuíticos, além das aulas elementares de ler e escrever, eram
oferecidos três cursos: o de Letras, o de Teologia e o de Ciências Sagradas, de nível superior e destinado,
principalmente, à formação de sacerdotes.
108
Havia, assim, nos anos dos setecentos e início dos oitocentos, uma
acentuada elitização do ensino público, e, em face da precária escolarização da
população do Brasil da época, pode-se deduzir que havia também uma restrita situação
de ensino realizada em âmbito privado ou doméstico. Essa situação começou a ganhar
novos contornos a partir da segunda metade do século XIX, no período pós-
abolicionista e republicano.75 Nesse contexto, a escolarização passa a ser incentivada,
pois, além de ser vista como essencial pelas elites e camadas médias em ascensão, havia
também um estímulo em razão de mudanças socioeconômicas, pois, de uma cultura
predominantemente oral, a urbanização crescente e as mudanças daí advindas
demandavam a necessidade da escrita para se efetuar as transações que esse sistema
emergente criava (BARROS, 2005). Saliente-se que o incentivo à educação, como uma
maneira de se construir uma civilização “moderna” e “avançada” já constava no
Programa dos Candidatos Republicanos, editado em 1881 (apud Chelbauer, 1998, p.
55).
Noemi Pereira de Santana (2009) salienta que esse período do Brasil
caracteriza-se por situações, como: o ideal de educação para todos, a padronização
linguística e a difusão e sedimentação da cultura escrita:
75
Havia, segundo Hilsdorf (2001, p. 71), o argumento iluminista de que “sem luzes os povos jamais serão
felizes”.
111
massiva a partir do século XIX” (MAGALHÃES, 1996, 10/12, apud SOUZA, 2009, p.
161). Aumentaram, inclusive, o número de escolas privadas ao final desse século.
Fazendo-se um paralelo com essas modificações sociais, não se pode deixar
de pensar na Revolução Industrial que trouxe à cena a burguesia. Assim, entende-se que
os burgueses precisavam de mão de obra qualificada para suas indústrias, sendo,
portanto, essa necessidade uma das razões pelas quais tanto se investiu em Educação
naquele século.76
Assim, destacam-se as sucessivas reformas de Instrução Pública, com novos
Regulamentos de Ensino, decretos e normas suplementares. As reformas destinadas ao
sistema educacional no Brasil foram necessárias e tardias, haja vista que, em seguida à
Independência, o país estava carente de medidas destinadas à Educação. Nunes (2009,
p. 121), por exemplo, assinala que, no período pós-independência, o que havia sido feito
para a instrução pública na Bahia fora consequências da Reforma Pombalina (1759).
Curiosamente, medidas que efetivamente visavam à melhoria do ensino só vieram a se
efetivar no período do reinado de Pedro II, conforme se depreende do trecho seguinte:
76
Essa correlação entre o Iluminismo e a Revolução Industrial Inglesa é muito bem definida em
Schelbauer (2005) e Thompson (1997).
77
Alunos mais adiantados ou monitores lecionavam a colegas menos preparados sob a supervisão de um
professor. As salas de aulas eram “militarmente” arrumadas e as turmas tendiam a ter numerosos alunos.
112
tinha como objetivo inicial tornar os operários dóceis e instruídos: ensinar a ler, escrever
e contar, por meio de uma disciplina punitiva e cronometrada, dado que o tempo
determinava todas as ações pedagógicas (NUNES, 2009).
Em 1827, é promulgada Lei de 15 de outubro, cujo Artigo Primeiro
assegurava que, em todas os locais (fossem cidades, vilas e lugares ais povoados),
deveriam existir escolas de Primeiras Letras, quantas fossem necessárias. Interessante é
observar que a formação aligeirada de professores, prática tão comum no Brasil, já
havia naquela época, pois a lei também previa que professores sem a qualificação
adequada fossem recebê-la em escolas das capitais, cobrindo eles próprios as despesas.
Essa mesma lei determinava a idade de vinte e cinco anos como mínima para o
magistério e diferenciava os conteúdos de ensino para estudantes do sexo masculino e
feminino.
Passado o período do Primeiro Império, quando comandava D. Pedro I, a
Regência Trina continuou a tomar uma série de medidas que consolidavam a criação de
uma cultura escolar no Brasil. Em 1832, diminui-se, por exemplo, a idade mínima para
o exercício do magistério de vinte e cinco para vinte e um e, na Bahia, foram criadas
mais setenta escolas de Primeiras Letras, juntando-se às noventa e quatro já existentes
“A província da Bahia ficava, assim, com 164 escolas de primeiras letras, 150 para
meninos e 14 para meninas, ampliando sua rede escolar” (NUNES, 2009, p. 129). Em
1835, uma importante medida foi tomada, a que criava a Assembléias Legislativas
Provinciais que eram incumbidas de tratar de aspectos referentes à instrução pública,
instância responsável por uma série de medidas referentes ao cotidiano escolar. Houve,
portanto, uma expansiva disseminação da escolarização na Bahia no Período Regencial.
Durante o Reinado de D. Pedro II, inicia-se a criação de medidas para concretizar o
funcionamento das Escolas Normais na Província 78 , destinadas à formação para o
magistério e, em 1842, criou-se o Conselho de Instrução Pública na Bahia.
A despeito dessa aparente preocupação com a melhoria na Educação na
Bahia, a situação continuou, durante muito tempo, a ser precária. Nunes (2009, p. 147)
informa, por exemplo, que Manoel Pinto de Souza Dantas, o presidente da Província da
Bahia, declarou em 1866, que “a instrução primária muito deixava a desejar por não
estar bem disseminada, apesar de com ela se despender cerca de quarta parte da renda
78
As Escolas normais foram oficialmente criadas em 1836, mas só passaram a funcionar em 1841. A
demora se deu, entre outras razões, porque os dois concursados para o ensino na instituição foram à
França adquirir formação adequada para à área de formação de professores.
113
Desse modo, se, de acordo com Houaiss (1985, p. 88-89), no correr dos
séculos XVI a XVIII, os portugueses plenamente escolarizados representariam algo
entre 0,5 a 1% da população brasileira, o que dizer desse percentual entre a população
de origem africana? Sobre essa questão, discorre-se na próxima seção. Ressalte-se que,
partindo da premissa de que neste trabalho, o tema escolarização no Brasil não é central
– sendo focalizado apenas em vista de contribuir para o debate acerca da formação do
PB –, o mesmo não é muito detalhado, de modo que muitos aspectos foram omitidos.
Por outro lado, como se defende a tese de que o contato entre línguas e culturas foi
importantíssimo para a feição brasileira da língua falada no Brasil, explana-se, também
de forma sucinta, sobre a educação da população negra no Brasil e também sobre a
educação em Portugal.
79
Esse aumento de 10% pode ser explicado pelo fato de que, após 1888, os africanos e afro-brasileiros
entraram nas estáticas oficiais, pois, oficialmente, já não eram mais considerados “peças”.
114
Figura 1: Comparação entre número médio de anos de estudo entre brancos e negros
Nota: A população negra é composta por pardos e pretos.
80
No ano de 2000, Oliveira (2003, 2006) localizou na irmandade negra denominada Sociedade Protetora
dos Desvalidos, fundada em Salvador no ano de 1832, um acervo com atas escritas por africanos e negros
brasileiros forros. Sobre esse acervo e estudos dele decorrente, ver Lobo e Oliveira (2009).
115
“Não tendo limite o numero de alumnos que devão ser admitidos nas escolas publicas, e não
podendo o professor fazer escolha delles, devendo acceitar a todos, da-se um facto que mais
reverte em prejuizo dos bons que em proveito dos maus. Refirome a certa classe de alumnos
cujo contacto com os outros é pernicioso: são esses negrinhos que por ahi andão, filhos de
Africanos Livres, que matriculão-se, mas não frequentão a escola com assiduidade, aparecendo
la uma vez por outra, de modo que nenhuma utilidade tirão da escola; mas deixão nella os vicios
de que se achão contaminados; ensinando aos outros pratica de actos e uso de expressões
abominaveis, que aprendem ahi por essas espeluncas onde vivem. Para estes devião haver
escolas aparte, pois é notavel a tendencia que para elles tem os bons meninos.”
explicar em boa medida o fracasso escolar dos alunos das camadas mais baixas da
sociedade brasileira.
82
De igual modo, salienta-se a sua origem rural, com base, entre outros autores, em Cunha (1972, p. 70-
73).
119
Ano Situação
1900 73%
1911 69%
1920 65%
1930 60%
1940 52%
1950 42%
83
Holanda (1963, p. 119) chama atenção para a diferença entre a América Espanhola e a Portuguesa, no
que diz respeito à imprensa e ao número de diplomados em cursos superiores.
120
1960 33%
1970 26%
1981 21%
1991 11%
2001 9%
Quadro 5: Taxa de analfabetismo em Portugal ao longo do século XX
1845 19.463
1846 50.354
1847 56.172
1848 60.000
1849 54.000
1850 23.000
Quadro 6: Número de africanos importados, segundo Holanda (1963, p. 61)
84
Censo do IBGE (2010).
85
Matinha, antigo povoado do distrito de São José das Itapororocas, era denominado Matinha dos Pretos,
e passou a ser considerado distrito de Feira de Santana a partir de 2008, com o Decreto nº 7.462, de 21 de
fevereiro de 2008. Foi neste distrito onde foram gravadas as entrevistas da zona rural utilizadas nesta tese.
125
86
Cabe salientar que, já nas suas origens, Feira de Santana caracterizava-se por ser um lugar de passagem
de viajantes, vaqueiros e tropeiros, pois, no seu território atual, estava a Estrada das boiadas, por onde
eram conduzidos animais comercializados em Cachoeira, Santo Amaro e Salvador.
126
Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Feira_de_Santana
90
Disponível em: <http://www.sei.ba.gov.br/>. Acesso em 09. out.2011.
128
Mapa 2:
91
Segundo informa Almeida (2005, p.48), Flexor (1996) utiliza o termo (re)ocupação por conta de o
território da Bahia já ser habitado por índios antes da colonização portuguesa.
92
Algumas reflexões e algumas partes do texto desta subseção, notadamente, às que se referem ao
povoamento do Recôncavo, foi publicada em Araujo e Araujo (2009).
130
93
Santos (1998[1959]) defende que, embora se trate de uma representação geográfica, o Recôncavo
Baiano representa mais um conceito histórico do que uma unidade fisiográfica. Por essa razão,
considerando aspectos exclusivamente geográficos, alguns pesquisadores não consideram os municípios
da Região Metropolitana de Salvador como pertencentes ao Recôncavo. Neste estudo, julgou-se
pertinente considerá-los, por se entender que dessa forma as motivações sócio-históricas desta tese são
preservadas, isto é, preserva-se a distinção entre a formação sócio-história do interior e do litoral (este
abrigando a costa marítima e o Recôncavo). Coaduna-se, pois, com Santos (op. cit.).
131
94
Segundo Araujo e Araujo (2009, p. 111), além da qualidade do solo, favorável ao cultivo da cana-de-
açúcar, a proximidade com o porto da cidade da Bahia favorecia uma significativa concentração de
engenhos espalhados pelo Recôncavo. Vale lembrar que, no Recôncavo, deságuam três importantes rios:
o Jaguaripe, o Subaé e o Paraguaçu, que, no passado, favoreciam bastante a circulação de pessoas,
animais e produtos entre diversas cidades do interior e do interior também para a capital.
132
95
De acordo com Prado Jr. (1999, p. 306), ao Brasil, Portugal estendeu tanto sua forma de organização do
espaço como seu sistema político, não sendo criado nada de novo. Dividida em comarcas, a capitania
(durante o século XIX, passa a se chamar província) constituía-se a unidade administrativa central. Estas
eram compostas de termos, divididos, por sua vez, em freguesias.
133
96
TABELA 1 – DISTRIBUIÇÃO DOS ENGENHOS – COMARCA DA BAHIA
TERMOS Nos DE ENGENHOS %
BAHIA (SALVADOR) 167 20,7
SÃO FRANCISCO 141 17,5
SANTO AMARO 136 16,8
CACHOEIRA 88 10,9
AGUA FRIA 81 10,0
ABADIA 62 7,7
MARAGOGIPE 48 5,9
JAGUARIPE 44 5,5
ABRANTES 24 3,0
ITAPIRUCU 16 2,0
Total 807 100,0
96
Cf. Araujo (2006, p. 99).
97
As freguesias eram, lato sensu, conjuntos de paroquianos, povoações sob o ponto de vista eclesiástico.
Mas, tomando por base a definição cunhada por Nascimento (1986, p. 29), a uma freguesia corresponde
“um espaço material limitado, divisão [político-administrativa] e religiosa da cidade, onde estavam
localizados os habitantes, ligados à sua igreja matriz [e por isso, deviam tomar] parte de suas solenidades,
ali realizavam seus batizados, casamentos e [serem] sepultados”. Este, embora pudesse ser dividido em
bairros ou distritos, tinha por unidade mínima o quarteirão.
98
Remete-se o leitor ao caráter rural da sociedade brasileira, discutido no capítulo 2 desta tese.
99
Segundo Araujo (2006, p. 55-56), a área inicial do termo da cidade da Bahia (como era conhecida
Salvador até o século passado) corresponde, atualmente, ao território dos municípios de Amélia
Rodrigues, Camaçari, Candeias, Catu, Conceição do Jacuipe, Dias D’Ávila, Itaparica, Lauro de Freiras,
Mata de São João, Pojuca, Madre de Deus, Salvador, Santo Amaro, São Francisco do Conde, São
Sebastião do Passé, Saubara, Simões Filho, Teodoro Sampaio, Terra Nova, Vera Cruz e parte dos
municípios de Coração de Maria, Itanagra e Salinas das Margaridas.
134
100
ARAUJO (2006, p. 100).
135
101
Almeida (2005) analisou o uso variável no preenchimento de sujeito referencial, a partir de dados orais
coletados em duas microrregiões baianas representadas por três comunidades (Barra/Bananal, Mato
Grosso, ambas localizadas na Chapada Diamantina) e Matinha (na zona rural de Feira de Santana, estando
na região do Semiárido). A autora partiu da premissa de que os estudos demográficos contribuem para o
entendimento “sobre a constituição e a consolidação do português em áreas rurais onde houve contato
entre o português, em maior ou menor escala, e as línguas africanas e brasílicas, entre outras, e onde o
processo de escolarização é recente”. (p. 45). Atende-se ao fato de que as comunidades estudadas pela
pesquisadora possuem formações sócio-histórico-demográficas diferenciadas, as primeiras originadas nos
chamados “ciclos do ouro” (século XVIII) e a segunda, nos “ciclos da agropecuária” (século XVII a XIX,
segundo Neves, 2008). Os resultados apontaram para uma pequena diferença entre as comunidades da
Chapada e a do semiárido, sendo que, nesta última, havia o favorecimento do sujeito nulo, pelo fato de
seus moradores serem mais escolarizados, já que as marcas morfológicas podem identificar o sujeito nulo.
Sobre a pouca diferença dos resultados, a autora, perspicazmente, frisa que mesmo na zona de mineração,
o contato entre portugueses e africanos não foi muito intenso como nas áreas de plantation.
136
sertão e dos seus tabaréus [...]”. Com essa obra, apesar da preocupação do autor em não
apresentá-la como de cunho histórico ou sociológico, o autor realizou um profundo
estudo sobre a formação e o desenvolvimento da aristocracia rural nos sertões da Bahia,
baseando-se, inclusive, em vasta pesquisa documental e bibliográfica, centrando na
região em que nascera.
Abordando a oposição Recôncavo/ Interior, anteriormente focalizada nesta
tese, Boaventura (1989, p. 16) defende uma distinção radical entre essas duas regiões,
vinculando o sertão à “civilização do pastoreio”, a qual no seu entendimento agregou
uma série de distinções socioculturais, econômicas e demográficas:
102
Essa relação “menos hierarquizada” entre senhores e escravos será retomada nesta tese,
principalmente, quando se tratar das relações de meação e compadrio, apontadas por Neves (2008) como
típicas das atividades agropecuárias nas regiões sertanejas baianas.
137
Lins (1971 apud BOAVENTURA, op. cit. p. 09)103 compara a obra desse
autor à Casa grande e senzala, pondo em destaque suas diferenças, pois enquanto
Freyre (1980 [1933]) retrata fidalgos que “comumente viviam nas costas dos negros,
que não só suavam por eles nas plantações de cana e nas caldeiras dos engenhos, como
ainda os carregavam nas redes e cadeirinhas de arruar”, o de Boaventura retrata uma
relação menos hierárquica entre senhores e escravos:
103
Ressalva-se que o livro de Boaventura só foi editado e publicado em 1989, pelo Centro Editorial e
Didático da Universidade Federal da Bahia, embora a introdução da obra seja datada de 1953. Assim, em
1971, o jornalista e político baiano Wilson Lins, ao tempo em que comparava a obra de Boaventura à
Casa grande e senzala, clamava, no Jornal A Tarde, para que os originais da obra boaventuriana não
demorassem a encontrar um editor, algo que, infelizmente, aconteceu, pois só dezoito anos depois do seu
clamor, foi publicado o livro. Esse artigo de Lins foi anexado a obra de Boaventura (1989).
138
104
Destaca o cultivo do algodão, consorciado com o de milho e de feijão, cujas safras eram transportadas
em lombos de animais até a Villa de Cachoeira, para, de lá, serem transportadas à cidade da Bahia, por
via fluvial. Como se vivia a Revolução Industrial, a produção algodoeira seguia para a Inglaterra,
gastando nas estradas de chão o mesmo tempo que se gastava nos navios até Liverpool ou Manchester,
até que se construiu a ferrovia no Recôncavo. (cf. NEVES, 2008, p. 193). Portanto, o interior vinculava-se
ao litoral por meio da circulação de pessoas que comercializavam o excedente da produção sertaneja em
feiras de produtos e/ou de gado, não obstante a inexistência de estradas, possuindo “unicamente trilhas
feitas pelos cascos de animais” (APEB, 1862, apud NEVES, 2008, p.213), situação propícia para o
desenvolvimento de Feira de Santana, conforme se discutirá adiante.
105
A autora salienta que, nas Cartas Régias de 1698 e 1699, a Coroa portuguesa anunciava a cobrança de
foros, “sendo que a de 1699 advertia que os sertões, ainda despovoados, causavam grandes prejuízos ao
desenvolvimento da Colônia.” (ANDRADE, 1990, p. 31).
106
Para Andrade (1990, p. 44), no início do período de povoamento de Feira de Santana, já se estava
numa terceira fase da criação de gado na Bahia, quando a pecuária tornou-se autônoma da agricultura,
deixando de ser subsidiária da monocultura açucareira, ou seja, nessa terceira fase o gado não serviria
mais apenas para carregar as safras.
139
recebidas, no século XVI, por seus pais. Desse modo, no dizer de Antonil (1982[1711]),
“sendo o sertão da Bahia tão dilatado, ...quase todo pertence a duas famílias...”.
Realmente, a extensão das áreas de propriedade das duas famílias era
enorme. Os d’Ávila foram possuidores do maior latifúndio das Américas, a Casa da
Torre (Morgado da Casa da Torre), com sede na atual Praia do Forte (município de
Mata de São João, na Bahia), atingindo até o Piauí e, há quem afirme que até o
Maranhão. Já, os Guedes de Brito edificaram o Morgado da Casa da Ponte, tendo
expandido as sesmarias recebidas pela família, muitas vezes, pela conquista de
territórios indígenas. Desse modo, na prática, poucas sesmarias precisaram ser doadas
nos sertões da Bahia, pois funcionou mesmo o arrendamento feito por essas famílias,
embora fosse uma prática ilegal, conforme destaca Neves (2008, p. 104). Em ambas as
propriedades, exerceu-se, principalmente, a pecuária, com enormes rebanhos,
associadas a certas culturas, como fumo e algodão.
107
Primeira feira de gado da Capitania, estabelecida por Francisco D’Ávila, em 1614. Localizava-se na
Paróquia de Santo Amaro de Pitanga, próxima a atual Camaçari, tendo grande prestígio até 1820 (cf.
ANDRADE, op.cit., p. 41).
108
Para Oliveira (2000, p.10), o fato de se vincular o surgimento de Feira de Santana à fazenda de
Araujo/Brandão, além da intenção de silenciar outras vozes na construção do desenho urbano, “essa
141
versão possui outros objetivos mais localizados, entre estes destacaria a necessidade da afirmação da
‘Petrópolis baiana’ [que] era o terceiro distrito de maior população perdendo para Santa Bárbara e para
São José da Itapororocas, este a antiga sede administrativa”. Tal situação de desvantagens levou, segundo
o autor, uma parcela da cidade a buscar meios para tornar Feira de Santana o principal sítio de significado
da história local, a começar pela transferência da sede administrativa do poder político para o então
povoado de Santana dos Olhos d’Água, quando ela não era nem sequer uma freguesia. Como poderá se
comprovar adiante, bem como pela criação da Região Metropolitana de Feira de Santana, foi um projeto
que logrou êxito, pois, não demorou para “Feira” ser, de fato, uma “princesa”, perdendo em importância
sócio-econômica apenas para a “rainha” Salvador.
109
Acredita-se ser mais seguro afirmar que, pelo menos até o início do século XVII, os vaqueiros tinham
uma origem indígena, pelo fato de os índios possuírem mais habilidades em embrenharem-se pelos
caminhos do sertão. Após esse período, os vaqueiros deveriam ser mestiços, com ascendência indígena,
negra ou mesmo branca.
142
TABELA 3
QUANTIDADE DE ESCRAVOS CONSTANTES EM INVENTÁRIOS
POST MORTEM NA REGIÃO DO ALTO SERTÃO DA BAHIA, COM BASE NA
DESCRIÇÃO FEITA POR NEVES (2008, p. 194-205)
1758 – 1895
110
Vianna Filho (2008[1946], p. 185) destaca que a meação era mais um sistema de colaboração do que
de subordinação, exigindo-se apenas duas qualidades: fidelidade absoluta e domínio completo da região.
111
Na pecuária pós-escravista, remuneravam-se administradores de fazendas e vaqueiros, conforme
condições específicas, definidas em contratos verbais de trabalho, pelo sistema de “sorte” ou “de giz”.
(NEVES, op. cit., p. 265).
146
dezoito escravos por unidade agrária. 112 A tabela seguinte reproduz os resultados
encontrados:
TABELA 4 113
Frequência de escravos por plantel
1768 – 1833
Nº de escravos Nº de plantéis
Menos de 05 05
De 06 a 10 11
De 11 a 20 06
De 21 a 50 06
Mais de 51 02
FONTE: APEB. Judiciário, Inventários
112
O autor ressalva que os inventários da amostra realizada, por serem de épocas diferentes, em alguns
casos, trazem os mesmos escravos em mais de um documento, por haver espólios de herdeiros.
113
Reprodução da tabela divulgada em Neves (op. cit., p. 270).
147
TABELA 5 114
Origem, cor e gênero dos escravos
1768 – 1883
Origem / cor Homens Mulheres Não identificados Total
Africanos 53 11 - 64
Angolas 21 3 - 24
Minas 6 1 - 7
Benguelas 4 - - 4
Hauçás 2 - - 2
Nagôs 2 - - 2
Congos 1 - - 1
Rebolos 1 - - 1
Africanos (sem ident.) 16 7 - 23
Brasileiros 206 186 3 395
Crioulos 113 103 1 217
Cabras 52 55 1 108
Mulatos 23 16 1 40
Pardos 16 12 - 28
Mestiços 2 - - 2
Sem Identificação 34 27 2 63
Não declarados 25 23 2 50
Pretos 9 4 13
TOTAL GERAL 293 224 5 522
115
FONTE: APEB. Judiciário, Inventários
TABELA 6
Origem, cor e gênero dos escravos
1850 – 1870
Alto Sertão – Região Nordeste-Itapicuru
ORIGEM / COR HOMENS MULHERES TOTAL
AFRICANOS 44
Africanos 06 - 06
Nagô 16 02 18
114
Reprodução da tabela divulgada em Neves (op. cit., p. 277).
115
Nos esclarecimentos feitos por Neves (op. cit., p. 276), “crioulo”, qualquer negro nascido no Brasil.
“Cabra”, crioulo filho de mulato e negro, de cor mais escura do que o mulato. “Mulato, expressão
pejorativa, mestiço de branco com o negro. “Pardo”, designativo de cor entre branco e preto, talvez
intermediação de mulato e branco. “Mestiço”, apenas alusão genérica atribuível a qualquer miscigenado.
148
Angola 13 03 16
Jejê 01 02 03
Moçambique 01 - 01
BRASILEIROS 152
Crioulos 51 21 72
Cabras 24 12 36
Mulatos 24 18 42
Indígenas - 01 01
(vermelhos)
Cablocos - 01 01
SEM 14 03 17
IDENTIFICAÇÃO
Pretos - 01 01
TOTAL GERAL 150 64 214
Fonte: APEB. Seção Judiciário. Série Inventários. In: PONDÉ (1971 apud ALMEIDA, op.
cit., p. 56)
116
Ao comparar as tabelas 5, 6 e 7, a autora posiciona-se: “Como se vê pela comparação das três tabelas
acima, o número de escravos arrolados em uma matrícula de apenas dois anos na região de Rio de Contas
é superior aos números arrolados, a partir da análise de vários inventários, para um período de mais de
cem anos no que diz respeito a Igaporã e vinte anos no que diz respeito a Itapicuru. Outra diferença que
poderia apresentar conseqüências lingüísticas diferenciadas é o fato de que em Rio de Contas, no século
XVIII, há uma grande concentração de escravos africanos, ou seja, escravos que ou ainda não sabiam o
português ou o sabiam como segunda língua”.
149
TABELA 7:
Origem, cor e gênero dos escravos – 1748 a 1749
Chapada Diamantina – Rio de Contas
ORIGEM/COR 1748 1749
HOMENS MULHERES HOMENS MULHERES TOTAL
AFRICANOS 764
Costa da Mina 174 32 152 25 383
Angola 150 54 118 34 356
Moçambique 04 - 08 - 12
Benguela 06 - - 02 08
Cabo Verde 05 - - - 05
BRASILEIROS 103
Rio de Contas 21 13 26 05 65
Salvador 04 03 07 06 20
Vale dos Santos 01 - 01 05 07
Maragogipe 01 - 01 03 05
Minas Gerais - - 01 01 02
Cachoeira - 01 - 01 02
Pernambuco - - 01 - 01
São Paulo - - 01 - 01
SEM 01 - 13 05 19
NATURALIDADE
TOTAL GERAL 886
Assim, conclui:
exemplo, muito se serviram da presença indígena. Ainda segundo Viana Filho (op. cit.),
por exemplo, o famoso sertanista Matias Cardoso Almeida, ao chegar à Bahia, em 1690,
trouxe mais de 100 homens brancos e grande número de índios e não há nenhuma
referência ao elemento negro. Da mesma forma, o eminente Cristóvão de Barros
Cardoso trouxe, em suas expedição à Bahia, 150 brancos e mamelucos e 3.000
frecheiros (sic) tapuias.
Ao tratar da paisagem humana do pastoreio, Boaventura (1989, p. 73-75),
defende a existência de uma “gente diferente da que vivia no trabalho da zona
marítima”. Para o estudioso, não houve muita mestiçagem com o negro, havendo mais a
mistura do “sangue índio” com o “sangue português”:
escravidão. Nesse sentido, Silva (op. cit.) chega a levantar o questionamento de que a
postura de Euclides da Cunha, bem como de outros estudiosos da época, poderia ser
uma forma de branquear a população brasileira, vendo no índio uma figura mais heróica
do que na do negro do litoral. Questionamento válido, mas que não encontra respaldo à
luz dos testemunhos expostos nesta seção, pois, como informam os estudiosos, foi, de
fato, em menor número a presença de africanos nas regiões sertanejas durante o seu
povoamento.
Ao final desta seção, ressalta-se que não se fez uma exposição mais
detalhada sobre a presença portuguesa na região do semiárido baiano, por se julgar que
essa não foi muito diferente do que ocorreu em outros interiores brasileiros, ou seja,
foram portugueses e/ou seus descendentes, sem muita instrução, que vieram habitar as
terras interioranas baianas117. Sobre essa questão, Neves (2011), amparado no ramo da
história denominado História de família, destaca que poucos membros da nobreza
portuguesa fixavam-se no Brasil após a exoneração dos cargos que ocupavam,
permanecendo apenas representantes da pequena aristocracia rural, que formaram a base
da elite colonial, os representantes desta, por sua vez, raramente preferiam “isolar-se”
no sertão, distante dos núcleos urbanos. Esse mesmo autor declara que, na região do
Alto Sertão da Bahia, o ápice da ocupação portuguesa se deu no século XVIII, após a
descoberta de jazidas, tendo congregado muitos portugueses, que lá se misturavam com
baianos e paulista ao conseguirem arrendamentos de terras. O Alto Sertão da Bahia,
segundo informa o autor, também atraiu a presença de mouros, judeus e ciganos, que
fugiam das perseguições na Europa, optando pelo isolamento dos sertões.
117
Uma abordagem da situação desses portugueses foi feita no capítulo anterior.
153
região no século XIX, mas muito poucos, por ocasião da construção da ponte em
Cachoeira. Para o autor, gente de ascendência europeia sempre constituíram uma
minoria em Feira de Santana, representando, em 1950, não mais do que um décimo dos
habitantes do município. Acrescenta o autor:
Tomando por base a composição racial, Poppino (op. cit, p. 79-80) propõe
quatro estratos para a sociedade feirense do século XIX, não restringindo a estrutura
social ao binômio senhor/escravo, e defende que a origem racial, de certo modo,
indicaria a ocupação do povo do município. No primeiro, além dos fazendeiros e
comerciantes, faziam parte desse estrato os representantes da Igreja e do Estado e
militares graduados. Esses eram considerados brancos, mesmo que apresentassem traços
visíveis de ascendência índia ou negra. O segundo estrato era formado pelo vaqueiro de
origem indígena e depois por mamelucos. Não recebiam remuneração por sua atividade,
mas, em troca de seu trabalho, recebiam um percentual em gado, equivalente a ¼ das
crias decorridos cinco anos acumulados. O terceiro era formado por pequenos
lavradores, os denominados roceiros, que constituíam a maior parte dos habitantes, além
de ex-escravos que vendiam produtos na feira. E, por fim, o quarto era constituído por
escravos, quase sempre comprados pelos fazendeiros em outras localidades e até mesmo
no próprio termo da Feira de Santana. Na sua pesquisa, o autor afirma que o número de
roceiros sempre foi superior ao de escravos na região.
O povoamento da região de Feira de Santana não se deu forma pacífica. “Os
primeiro povoadores tiveram de enfrentar os perigos de uma guerra com os índios e de
um ataque por bando de negros [fugidos dos engenhos do Recôncavo]” (POPPINO,
1968, p. 80) Apesar dos conflitos que promoveram a fuga dos indígenas para além da
Serra da Jacobina, alguns indígenas foram inseridos no processo das relações
socioeconômicas, ao passo que se desenvolvia a atividade criatória, delineando a
composição racial da população. Alguns se dedicavam ao cultivo de fumo ou tornavam-
se vaqueiros. Houve muita miscigenação nessa região, principalmente pelo fato de
poucas mulheres de origem portuguesa terem ido ao sertão antes que a situação ficasse
mais pacífica com os índios da região, no século XVIII.
154
formado pequenos quilombos em suas matas. Sobre essa questão, o entendimento que
se sustenta nesta tese é o de que a maior concentração de escravos no município de
Feira de Santana deva se dado mais a partir do século XIX, com a plantação de lavouras
de algodão e também com o recebimento de muitos ex-escravos que vieram trabalhar
em Feira de Santana. Nesse período de final do século XIX e início do XX, há de
também se considerar que muitos brancos e mestiços migraram para Feira de Santana
para trabalharem na cidade, que, a esta altura, já desenhava esta que seria sua forte
vocação: a de ser um polo comercial.
A seguir, será discutida a dinâmica de dois processos fundamentais para a
consolidação da bipolarização do português no diassistema brasileiro, por consolidarem
a situação de polarização sociolinguística e socioeconômica ocorrida na sócio-história
do PB, a saber: as tardias urbanização e escolarização. A respeito do processo de
urbanização, destaca-se a sua importância para a constante vinda de migrantes para
Feira de Santana, atraídos pelas oportunidades de trabalho que a cidade oferecia, a qual
influiu na composição demográfica no Município. Ressalta-se que, essa questão da
migração é discutida na próxima seção, e não nesta que trata da composição étnica
numa perspectiva histórica, devido à sua estreita relação com a urbanização em Feira de
Santana-Ba.
que houve nos áureos tempos do período colonial. Para Poppino (op. cit.) são notáveis
as forças políticas, econômicas e sociais que impulsionaram o notável desenvolvimento
em Feira de Santana-Ba.
Se Feira de Santana abrigou uma importante feira de gado, atraindo pessoas
de diversas regiões para a compra de gado e de produtos no período colonial, também,
no período republicano, continuou a atrair pessoas, mas, principalmente pelo seu rico
comércio, consolidando-se como “um empório do sertão”, denominação atribuída
comumente por jornalistas da época, conforme informa Oliveira (op. cit., p. 09). Essa
característica atratora do município não cessou no século XX, tendo atraído, inclusive,
muitos migrantes nordestinos que se instalaram na cidade de Feira de Santana para
atuarem no comércio, como, aliás, pode ser aferido pelos nomes de pioneiras lojas do
comércio local, como A Cearense, Sobral, entre outras. No século XXI, Feira continua a
atrair pessoas, provenientes de cidades circunvizinhas, mas também de outros estados,
para trabalharem em suas indústrias.
Assim, após a Segunda Guerra Mundial, a cidade de Feira de Santana,
congregou mais motivos para aumentar o desenvolvimento de indústrias na região.
Segundo Poppino (op. cit.), principalmente, porque, entre os anos de 1940 e 1950,
houve um incremento no estabelecimento comercial na cidade em virtude do
crescimento populacional, do progresso dos transportes e da dificuldade de importação
de produtos. Desse modo, se até os anos 1940, a indústria era incipiente, apenas com
aproveitamento de carne e de gêneros alimentícios, hoje, conta com vários outros
produtos, inclusive, com fábricas multinacionais, como a da Nestlé. O Município saiu,
pois, da condição de comunidade rural para a de centro comercial e industrial de grande
importância no Estado da Bahia e do Brasil.118
Nesse sentido, considerando a dinâmica urbana da cidade nos dias atuais, é
surpreendente que, até 1850, nenhum dos distritos do Município dispunha de fontes
públicas e, na cidade de Feira de Santana, só havia uma única fonte para servir a
viajantes e a residentes que não dispusessem de poços em suas casas; isso mesmo após
1860. A pavimentação pública também era muito incipiente nesse período, cabendo aos
próprios moradores pagarem as despesas com o calçamento de suas ruas. O primeiro
hospital da cidade foi construído no ano de 1865 (POPPINO, 1968, p. 34).
118
A partir da década de 1970, o desenvolvimento industrial da cidade foi impulsionado com a criação do
Centro das Indústrias de Feira de Santana (CIFS) e do Centro Industrial Subaé (CIS), que atraíram ainda
mais migrantes de todas as regiões para a cidade, que vislumbravam possibilidades de trabalho e ofertas
de serviços.
158
POPULAÇÃO RESIDENTE
ANOS
TOTAL (%) (1) URBANA (%) (1) RURAL (%) (1)
que, durante os anos finais do século XIX e as três primeiras décadas do XX, houve
profundas mudanças na cidade e que “essas transformações, articuladas entre si,
produziram novidades em termos de modelos de sociabilidade, gerando um novo padrão
de comportamento público e uma nova ‘urbe’ ”. (ibid., p. 17). Na interpretação do autor,
essas mudanças estariam inseridas no ideal republicano e estariam em consonância com
as ideias iluministas de trazerem progresso, pautadas na ciência e na razão e, não raro,
na crença de que uma sociedade sem mestiçagem e com padrões urbanos seria mais
propícia para ser “evoluída”. No que diz respeito à sociedade feirense, o autor assim
pronuncia-se:
ANIMAES SOLTOS
Continúa a vagar pelas ruas da cidade, contra expressa determinação
do código de posturas, uma porção considerável de animaes de toda
espécie, cuja acção damnhia e maléfica ainda em local de numero
passado especificamos.
Contra esse grande abuso, clamamos e clamaremos com todas as
nossas forças e esperamos que, quando a administração municipal que
se finda já não corrija o mal, a administração futura, em quem recaem
as esperanças de todos, sane por completo essa falta de comprimento a
lei fazendo desaparecer uma macula que ennegrece o alabastro dos
nossos créditos de povo civilisado. (Folha do Norte de 17-12-1912.
MCS/CENEF apud OLIVEIRA, 2000, p. 42)
119
Folha do Norte de 04 /05/1929, número 1033, p.1. MCS/CENEF. In: Oliveira (2011, p. 34-35).
161
contatos com a “cidade” (algo que pode gerar influências múltiplas, tanto o rural no
urbano quanto o urbano no rural120).
A respeito dessa complexa situação de Feira de Santana-Ba, Almeida
(2005), no estudo já citado neste capítulo, ponderou as possíveis influências na cidade
da seguinte forma, destacando o imbricado jogo de relações rural/urbano:
120
Em vista da alta valorização do modus vivendis urbano, nos dias atuais, julga-se que é mais forte a
influência do falar urbano no rural, embora o contrário não deva ser descartado.
121
Neste local do trecho, a autora (ALMEIDA, 2005) inseriu a seguinte nota: “A situação de Feira de
Santana é bastante complexa, como tentei mostrar em um trabalho apresentado no seminário ‘Parlendas
do Vasto Sertão, na UEFS, 2001. Apesar de todos os processos de urbanização ocorridos no município,
fica a impressão de que seus dialetos rurais já não são tão arcaizantes e simplificados, apesar de todo o
município conservar algumas características ruralizantes, mesmo em sua zona urbana. É bom deixar claro
que nos dialetos rurais baianos não são encontrados alguns fenômenos que são encontrados no dialeto
caipira, por exemplo”.
163
diversas cidades do interior e de regiões rurais, gerando sérios conflitos na cena urbana
do Município, à medida que os novos moradores penetravam no “endeusado” espaço
urbano. Como teriam reagido “feirenses da gema” em relação aos migrantes? De
antemão, responde-se que, diante da forma como se instaurou a conjuntura urbana em
Feira, certamente, os vaqueiros, os roceiros, não mais seriam tolerados na “Princesa do
Sertão”, que, urgia que fosse vista como a “Petrópolis Baiana”. Nesse sentido, ainda
mais preconceito e discriminação sofreriam os “nortistas”, como eram chamados os
migrantes que advinham de outros estados do Nordeste. Sobre isso, transcreve-se o
trecho seguinte, extraído de um texto escrito por um importante promotor e jornalista,
no mais antigo periódico em circulação em Feira de Santana, o Jornal Folha do Norte :
122
Apud Almeida (2005, p. 78)
164
A notícia seguinte levantada por Oliveira (2011) também serve para discutir
a questão do rural versus urbano em Feira de Santana:
123
Jornal Folha do Norte de 20 ago. de 1949, número 2091, p.4. MCS/CENEF. In: Oliveira, 2011, p. 27.
124
Folha do Norte de 08/10/1938, número 1526, p.4. MCS/CENEF.
165
“Esses local quando a gente chega assim, não é bem chegado, não é bem vindo, né? Então o
povo não olha bem assim, não lhe agasalha como Feira de Santana assim. Se você chegar e não
tiver lugar pá ficar sempre tem um lugarzinho assim, o pessoal nem conhece, mas consegue
assim uma dormida pá dá um dia, qualquer coisa. E lá não é assim, né? Qualquer coisa tá muito
bom, mas é aquela coisa assim: Bom dia! Boa tarde! E fechando suas portas parecendo até que é
vagabundo né? Feira de Santana não! É aquela coisa, né? Não é abrir as portas pá todo mundo,
né? Mas quem chega tombém é bem acolhido em Feira de Santana”.
166
125
Nesse sentido, atende-se para a situação de influências múltiplas de “baixo para cima” e “de cima para
baixo” que ocorreram no município, haja vista que a cidade continuou a ser um ponto de múltiplos
contatos, pelo fato de ter recebido muitas pessoas que vinham de distritos, cidades vizinhas e da zona
rural, onde havia um sistema de ensino ainda mais incipiente.
167
126
Houve mudanças no nome dessa escola: Escola Normal de Feira de Santana (1927), Escola Normal
Rural de Feira de Santana (1935) e, novamente, Escola Normal de Feira de Santana (1941). No ano de
1962, com uma lei promulgada pelo então governador Juracy Magalhães, a Escola Normal passou a ser
denominada de Instituto de Educação Gastão Guimarães e muda-se de prédio.
168
Como se percebe com a leitura do trecho, era uma tônica o desejo de apagar
as marcas da ruralidade na região, de maneira que a Escola Normal em Feira de Santana
tinha, de certa forma, “a missão” de preparar professores(as) para atuarem na zona rural,
embora com currículo estruturado de forma mais curta. Ressalta que mesmo com um
currículo mais simplificado, esses normalistas teriam uma melhor formação, pois era
muito frequente a existência de professores leigos na zona rural. Observa-se, nesse
sentido, que o projeto da Escola Normal em Feira de Santana foi bem sucedido, pois a
mesma contava com mais estudantes matriculados em comparação com outras que
existiam na Bahia. O trecho seguinte corrobora com essa afirmação:
Vale ressaltar que encontramos dificuldades com esse período por não
termos localizado estudos dedicados a escrever essa história. Partimos,
então, para a análise dos censos demográficos. Nesse caso,
encontramos ainda dificuldades em relação aos números divulgados
pelo IBGE. A contagem, por exemplo, de pessoas com ensino
primário completo era realizada a partir da idade de 10 anos. Ora,
sabemos que, mesmo hoje em dia, crianças com 10 anos, em sua
maioria, não concluíram ainda o antigo primário. (ALMEIDA, 2012,
p. 10-11)
127
As entrevistas do Projeto A língua Portuguesa do Semiárido Baiano, que forneceram os dados
analisados nesta tese, foram gravadas nos povoados Olhos d’Água das Moças e Matinha.
172
A vida é... Fica naquela, né? Naquela dificuldade, você sabe que aqui
não tem como você tirar um dinheiro, não tem uma empresa, não tem
um... Não tem um meio... um meio de você sobreviver, ter uma vida
estável, é naquela né, naquela dificuldade. Você sente falta de tanta
coisa que... que num tem. Então é isso, as coisa aqui não é... é assim
essa decadência aí, né. Não é brincadeira não. (inf. 1, masc., jovem,
curso primário completo).
128
Para Sé (ibidem), mesmo após a abolição da escravatura, os africanos e afrodescendentes teriam
sofrido as consequências de um sistema embasado “numa mentalidade escravista”.
173
sertão da Bahia teriam sido formados por escravos que escapavam dos engenhos do
Recôncavo. Nesse sentido, os pesquisadores que defendem a origem quilombola para a
Matinha afirmam que a Fazenda Candeal, extensa propriedade localizada onde hoje é a
Matinha, abrigou uma série de escravos fugidios no século XIX. Para esses estudiosos,
a fazenda foi, paulatinamente, sendo dividida por seus herdeiros até que uma parte dela,
denominada Matinha, deu origem ao Distrito. O nome Matinha faz referência a
“Matinha dos Pretos”, a mata onde os escravos teriam se refugiado.
A outra versão para a origem do Distrito faz referência ao cruzeiro erguido
na comunidade, por evocação a São Roque, feita por uma antiga moradora da região, a
Dona Antônia (ou a Madame da Matinha, como é referenciada por antigos moradores da
comunidade), a qual, com muitas posses, ergueu o cruzeiro, para pagar a promessa, no
sítio onde seria construída a igreja matriz do Distrito129, a rua da Matinha, apresentada
abaixo:
129
Para Sé (2009), é a partir do cruzeiro que o povoado passa a ter um núcleo central, que se tornaria mais
tarde cenário para os principais acontecimentos sociais da comunidade.
174
O motivo para a promessa feita pela antiga moradora teria sido o surto que
atingia a vizinhança no ano de 1920, a peste bubônica: Se a peste não atingisse a região,
o cruzeiro seria erguido. Algo que aconteceu em vista da não incidência da peste na
comunidade.
A respeito da polêmica acerca da origem do povoado, esclarece-se que,
tomando como ponto de partida a dinâmica de vida atual observada na comunidade, os
indícios são muito poucos a favor de um possível núcleo quilombola, pelo menos se
pensando no sentido tradicional de núcleo de resistência negra.130
Nesse sentido, entende-se, nesta tese, que o distrito da Matinha exemplifica
uma comunidade de fala rural não isolada, em que a fala de seus moradores é típica da
norma popular brasileira. Entende-se, ainda, que por ser uma comunidade originada
numa fase em que a língua portuguesa já estava mais consolidada no espaço brasileiro,
as marcas de uma aquisição imperfeita do português, como a que se teve em Helvécia-
Ba (cf. BAXTER, LUCCHESI e GUIMARÃES, 1997) são menos perceptíveis.
Assim, acredita-se que deve estar havendo na fala dos moradores da
Matinha uma normatização no sentido de aproximar-se dos falares urbanos, como pode
ser notado pela extrema valorização que os seus moradores dão aos valores urbanos na
comunidade. A respeito disso, cita-se a forma saudosa com que a Missão Rural é
lembrada por moradores antigos da Matinha. A Missão Rural foi uma iniciativa do
governo federal do final da década de 1940, que levou, para algumas comunidades
rurais, médicos, assistentes sociais, educadores em geral, os quais ajudaram a
transformar o povoado em uma comunidade com maior organização urbana. Remete-se
ao depoimento de Dona Joana, dado a Frederico Sé (cf. SÉ, 2009):
130
Até hoje, a Matinha não se autoidentificou enquanto comunidade negra rural quilombola (CNRQ)
junto à Fundação Palmares.
175
dados coletados em outras regiões. Portanto, a opção por se trabalhar nessa pesquisa
com um corpus representativo dos dois polos da realidade sociolinguística brasileira, o
culto e o popular, justifica-se por se observar que os estudos linguísticos realizados
sobre o assunto anteriormente exposto, geralmente, tomam a língua portuguesa do
Brasil sem se atentar para as especificidades sócio-históricas das comunidades de fala
que formam a variante brasileira da língua portuguesa.
No próximo capítulo, é apresentada uma revisão acerca do fenômeno
linguístico escolhido para se discutir a constituição sócio-histórica feirense: a
concordância verbal de número.
177
100% 91,95%
90%
80,60%
80%
70%
60%
50% Concordância
40%
30% Não concordância
19,40%
20%
8,05%
10%
0%
Português de Português do
Portugal Brasil
131
A escolaridade de seus informantes ia desde o ensino fundamental incompleto até o superior completo.
Portanto, esses resultados refletem realidades diferentes de outros estudos que privilegiam ora falantes do
português popular rural e/ou rurbano ora do culto, em que, no primeiro tipo de norma, encontram-se
percentuais bem mais baixos de aplicação da regra padrão de marcação de plural.
132
Dos 807 dados investigados, 742 foram com marcas de concordância explícita e 65 com a variante
zero.
180
135
Percentual muito destoante do que ocorre na fala popular brasileira. Os resultados de Varejão (2006)
estão mais próximos do que ocorre na fala culta brasileira, conforme revela o estudo de Graciosa (1991,
p.57), que, tomando por base dados de informantes cultos cariocas, encontrou um percentual de
apagamento de marcas de número no verbo na ordem de 5%.
136
Depois, discute-se o caráter mais estigmatizante da ausência de marcas CV em P4, mais do que em P6.
182
137
128 dados), contabilizando 0,8% . Ressalta-se, contudo, que a aplicação da
concordância pode ser vista como categórica, não apenas pelo índice de aplicação que
se aproxima dos 100%, mas também pelo fato de o exemplo encontrado ser considerado
caso de concordância facultativa, até mesmo, pela tradição gramatical: sujeito composto
em posição pós-verbal. Os resultados de concordância verbal com P4 foram
comparados com dados do PB, cujas características sócio-culturais dos informantes são
equivalentes as dos informantes europeus 138 , sendo o índice de ausência de marcas
explícitas de CV encontrado de 40.9%. Julga-se que o percentual só não foi maior em
face da alta frequência do uso da forma pronominal a gente com formas verbais não
marcadas na amostra brasileira, principalmente entre os informantes mais jovens, sendo
que esses dados não foram computados. Apresenta-se, a seguir, um gráfico com os
resultados:
100% 99,20%
80%
59,10%
60%
40,90% Concordância
40% Não concordância
20%
0,80%
0%
Português de Portugal Português do Brasil
137
A ocorrência encontrada foi “ERA eu e o meu marido; fiz isso muitos anos.”. Trata-se de uma resposta
dada por uma mulher da faixa mais alta quando indagada pelo inquiridor sobre quem trabalhava na
fabricação dos tecidos (Inq: E eram os homens que faziam?).
138
Doze informantes, com pouca ou nenhuma escolarização, residentes na zona rural do município de
Feira de Santana-Ba. Acervo do Projeto “A língua portuguesa do semiárido baiano – fase 3”.
183
P6, utilizando, por sua vez, documentos notariais 139 , analisou 886 ocorrências,
encontrando 872 (98,4%) com marcas explícitas de plural e 14 (1,6%) sem marcas
formais. O autor atribui o baixo índice da variante zero ao tipo de texto, “carregada de
fórmulas e construções cristalizadas” (p.03). Salienta, contudo, que a ocorrência dessa
variante está associada aos seguintes contextos: (i) de casos facultativos da regra geral
da concordância segundo a prescrição gramatical; (ii) de sujeito referencial expresso, já
que foram encontradas apenas duas ocorrências com ausência de marcas explícitas no
verbo com sujeito nulo; (iii) de menor saliência fônica, no que se refere à oposição
singular/plural. Assim sendo, os contextos apontam para a excepcionalidade do uso da
variante zero no português arcaico.
Naro e Scherre (2007, p.58), por sua vez, ao investigarem a concordância
verbal em oito textos pré-clássicos editados por diferentes autores, encontraram
ocorrências em que a concordância com P6 é “relativamente” variável:
139
O corpus foi extraído de noventa e dois documentos, de caráter particular, do Noroeste de Portugal e
da região de Lisboa, editados por Martins (2001) e Maia (1986).
185
estrutura social mais ampla da comunidade de fala. Assim, não se pode ignorar a
natureza distinta da variação na CV no PB em relação ao que ocorre no PE, sobretudo,
pelo fato de a variante zero servir como verdadeiro estereótipo sociolinguístico no
Brasil140, associado à população socioeconomicamente menos favorecida ao longo da
história brasileira. Do mesmo modo, observando a estrutura linguística, é digno notar
que há amplamente ausência de marcas formais de concordância no vernáculo
brasileiro, inclusive, em contextos mais salientes, como em “nós é fraco” e “eles veio”,
ao passo que, no PE, a variação está associada a contextos estruturais específicos, como
a posposição do sujeito e distância entre sujeito e verbo, contextos esses que também
são essenciais para a variação na norma culta brasileira.
Silva (2005), que trilha caminhos diacrônicos no estudo da variação da
concordância verbal no PB, também postula a natureza distinta do fenômeno no PE,
conforme se observa no trecho seguinte:
140
Cf. termo laboviano, LABOV, (2008 [1972], p.360).
186
141
Rodrigues (1987, p.01), de maneira análoga, considera a concordância verbal como “uma área da
gramática intimamente entrelaçada com os domínios social e cultural, donde a aplicação dessa regra, por
parte de falantes analfabetos ou semi-escolarizados, em tese, ser diferente da sua aplicação: (1) na língua
padrão escrita; (2) na fala normal das classes educadas ou de estratos socioeconômicos superiores; (3) nos
veículos de comunicação de massa, como rádio e televisão, situações em que a regra aplicada é, ou deve
ser, a preconizada pela gramática normativa”.
187
100%
90% 84%
80%
70% 62%
60%
50%
38% Concordância
40%
30% Não concordância
20% 16%
10%
0%
Comunidades afro- Comunidades de
brasileiras (LUCCHESI, pescadores do norte
BAXTER e SILVA, 2009) fluminense (VIEIRA, 1995)
Gráfico 3: Resultados gerais de estudos sobre a concordância verbal com P6 no português popular
100%
90%
79%
80% 73%
70%
60%
50% Concordância
40% Não concordância
27%
30% 21%
20%
10%
0%
SCHERRE e NARO (1997) MONGUILHOTT, 2001)
Gráfico 4: Resultados gerais de estudos sobre a concordância verbal com P6 com informantes
escolarizados (4 a 11 anos de escolarização)
142
Os autores (cf. LUCCHESI, BAXTER e SILVA, 2009, p. 346) notam a semelhança entre o que ocorre
em Helvécia e em dialetos crioulos de Cabo Verde e o crioulo de Damão (na Índia).
188
100% 94%
90%
80%
70%
60%
50% Concordância
40% Não concordância
30%
20%
10% 6%
0%
(Graciosa, 1991)
Faixa etária P1 P4 P6
PR PR PR
1 – (20-40 anos) 0.94 0.96 0.84
2 – (41-60 anos) 0.40 0.50 0.26
3 – (61 + anos) 0.10 0.09 0.02
Fonte: Lopes e Baxter (op. cit., p. 42)
143
Até onde se tem notícias, a pesquisa de Bortoni-Ricardo foi a primeira a focalizar, com aparato
teórico-metodológico consistente, a variação na concordância verbal referente à primeira pessoa do plural
no PB.
144
A procedência rural desses migrantes em São Paulo é indicada por Rodrigues (op. cit., p.96) da
seguinte forma: “Outro traço identificador desse estrato populacional é o de sua procedência. Tivemos
oportunidade de confirmar que, em São Paulo, grande parte dessa população analfabeta ou semi-
alfabetizada é proveniente da zona rural ou, no caso das gerações mais novas, descendentes de migrantes
rurais, não só do interior do Estado, mas de todas as regiões do Brasil”. Indo na mesma direção, Bortoni-
Ricardo (1985) denomina essas comunidades populares habitantes das periferias das grandes cidades
como “rurbanas”, por conservarem muitos dos traços dos dialetos rurais, conforme já fora exposto nos
capítulos 2 e 3 desta tese.
190
145
No romanço lusitânico, ocorreu a síncope vocálica e não a síncope silábica, como ocorreu em outras
línguas românicas.
191
controlada a variável sexo, os seus resultados indicaram que são as mulheres que menos
realizam as marcas de número nos verbos, favorecendo, inclusive, a não aplicação desta
regra de plural, conforme demonstra a tabela seguinte146:
Tabela 11 – Reprodução da tabela apresenta por Rodrigues (op. cit., p. 200) concernente aos
resultados da variável Sexo
P4
Fator Subfatores Frequência PROB.
P6
Sexo 1 Masculino 367/511 = 72% .53
2 Feminino 591/845 = 70% .47
* Valores referentes à “variante zero”.
Ressalta-se que a diferença maior entre os pesos referentes aos dois sexos
está na concordância com P4. A autora interpreta esse resultado expondo que,
socialmente, a não aplicação com P4 é mais saliente do que com P6, destacando, ainda,
o fato de as mulheres, no português popular “rurbano” em São Paulo, ficarem mais
circunscritas a trabalhos domésticos e terem, assim, menos acesso ao português
urbano. 147 Bortoni-Ricardo (1985, 2011), demonstrou que a urbanização dos dialetos
rurais se dá basicamente com o reconhecimento, por parte do migrante, de que seus usos
linguísticos são estigmatizados, tendo encontrado resultados que atestam que ocorre
entre esses informantes um aumento de uso da variante –mos por conta da socialização
do migrante no espaço urbano, enquanto para P6 não havia inovação ou mudança em
relação ao seu dialeto de origem; sendo os resultados para essa última variável próximos
aos encontrados por Naro (1981) para o dialeto carioca.
Por sua vez, o controle da variável idade, de certa forma, trouxe resultados
que levam a se constatar a predominância da regra não padrão nas normas populares, de
146
Salienta-se o caráter diferenciado na norma popular rural e rurbana, haja vista que, em estudos
realizados com dados de comunidades urbanas, atesta-se o contrário, isto é, as mulheres usando mais
formas de prestígio, como demonstram os estudos de LABOV (1976, p. 331) e de TRUDGILL (1974, p.
94).
147
Coelho (2006), em sua dissertação de mestrado na USP, intitulada É nós na fita! Duas variáveis
lingüísticas numa vizinhança da periferia paulistana (o pronome de primeira pessoa do plural e a
marcação do plural no verbo), atesta como, de fato, na periferia de São Paulo é estigmatizado o uso do
pronome nós sem a concordância verbal de número explícita. Mais ainda, o autor conclui que o uso da
variante zero é “exagerado” entre os mais jovens como uma forma de resistência aos valores urbanos,
pois a usam com maior frequência, mesmo sendo os mais escolarizados da sua amostra.
192
modo que a regra padrão deve ser adquirida por pressões sociais nas cidades grandes.
São os migrantes das faixas 2 e 3 (respectivamente, 36 a 50 anos e mais de 51 anos) que
mais usam as marcas de plural nas formas verbais. A autora especula da seguinte forma
acerca da variável idade:
Para finalizar esta seção, apresentam-se algumas conclusões que podem ser
formuladas a partir das questões expostas: (i) a erosão na morfologia flexional no PB é
um fenômeno estruturado e é um estereótipo sociolinguístico associado à população
pobre, com baixa ou nenhuma escolarização, associado ainda a moradores oriundos de
comunidades rurais; (ii) no que se refere à variante zero do plural das formas verbais no
PE, constata-se que a mesma ocorre de forma marginal e esporádica, muito associada a
contextos que geram dúvidas até mesmo em informantes cultos brasileiros ou
portugueses; (iii) a história sociolinguística brasileira marcada por uma situação de
contato massivo e radical entre línguas, e acompanhada de processos de discriminação e
exclusão da população de origem africana no Brasil, foi decisiva para o quadro tão
estruturado de variação na concordância verbal de número no PB, embora não tenha
provocado uma erosão total na flexão de pessoa e número do verbo; (iv) os resultados
de pesquisas com dados do português arcaico e com dados do português europeu
contemporâneo desautorizam a se postular a continuação no PB de uma deriva secular
da língua portuguesa no sentido de perdas progressivas de marcas de plural nos verbos;
(v) a direção da mudança linguística projetada com dados no PB, no que concerne à
variação na concordância verbal de número, sugere a hipótese de aquisição de regras.
Na próxima seção, faz-se uma revisão dos estudos realizados sobre a
variação no uso da concordância verbal de número no PB, discutindo-se alguns dos
principais resultados alcançados. Já na seção subsequente, apresentam-se as
193
148
Gonçalves (2007) investigou 3.642 dados extraídos de 36 entrevistas sociolinguísticas gravadas no
interior de Minas Gerais e encontrou como favorecedores à não aplicação da concordância padrão os
fatores informantes da área rural e informantes com idade superior a 63 anos, além dos fatores
linguísticos verbos “regulares”, sujeito posposto ao verbo. Os fatores extralinguísticos, a nosso ver,
coadunam com a hipótese reitora deste estudo.
195
Tivemos, até cerca de vinte e cinco a trinta anos atrás um dialecto bem
pronunciado, no território da antiga província de S. Paulo. É de todos
sabido que o nosso falar caipira – bastante característico para ser
notado pelos mais desprevenidos como um sistema distinto e
inconfundível – dominava em absoluto a grande maioria da população
e estendia a sua influência à própria minoria culta. As mesmas pessoas
educadas e bem falantes não se podiam esquivar a essa influência.
(AMARAL, op. cit., p. 11)
Mais adiante, o autor salienta que, à medida que o sistema educacional foi
se expandido pelo estado de São Paulo e o trabalho escravo sendo substituído pelo
assalariado (quando o Estado foi se “modernizando”), esse falar caipira foi ficando
“acantoado em pequenas localidades que não acompanharam de perto o movimento
geral do progresso e subsiste, fóra daí, na boca de pessoas idosas, indelevelmente
influenciadas pela antiga educação” (AMARAL, op. cit., p. 12). A propósito, como a
Dialetologia Tradicional Monodimensional inquiria apenas a fala de informantes mais
idosos, nascidos em comunidades rurais e com pouca mobilidade social, as informações
documentadas por esses primeiros estudiosos são valiosas para se observar como se
estruturava a variação na flexão verbal de número em regiões interioranas do Brasil
entre as décadas de 1920 a 1950 do século passado.
A obra de Amaral (op. cit.), em sua maior parte, trata de questões sobre o
vocabulário relacionado a atividades pecuárias e agrícolas utilizado por pessoas do
interior. Contudo, nas páginas iniciais, o autor apresenta traços característicos da
fonética e da sintaxe da fala das pessoas “caipiras”, sendo impressionante a riqueza de
detalhes e a consonância de sua descrição ao que seria divulgado pelos estudos
linguísticos anos mais tarde. Há exemplos de vários usos comuns na fala popular
brasileira, que envolvem processos fonológicos, perífrases verbais com gerúndio,
variação na flexão de gênero etc.
Quanto à flexão de número, objeto de estudo desta tese, o autor trata de
casos de ausência de marcas tanto em nomes quanto em verbos. Demonstra que, como
196
Para a flexão de número, o autor mostra que a forma plural se confunde, por
vezes, com a do singular, enfatizando também a variação entre os morfemas padrão de
número e os seus alomorfes:
Nesse sentido, é preciso destacar que, na análise dos dados deste trabalho, as
formas alomorfes não padrão (a exemplo do que se vê nas formas “cantemo”,
“comeru”, “vamo”) são considerados como marcas da concordância de número, de
modo que apenas são considerados casos de ausência quando a ocorrência se identifica
com formas do singular, como ocorre, por exemplo, em “nós brinca”, “eles ia”.
A contribuição dessa fase pioneira dos estudos dialetológicos para o estudo
da concordância verbal pode ser observada também nos trabalhos de Antenor Nascentes
e Mario Marroquim, que documentaram a ausência de marcas de plural nos verbos,
respectivamente nos anos de 1922 e 1945.
Nascentes (1953[1922]) descreveu as peculiaridades do “linguajar carioca”,
mostrando as simplificações que ocorriam na fala popular, tal como fez Amaral
149
Esses exemplos estão apresentados nas páginas 29 e 52 da obra de Amaral (1976[1920]).
197
de número nas formas verbais, ficando a pluralidade marcada apenas nos determinantes,
conforme abona a citação seguinte:
Alguns exemplos fornecidos pela autora são: (i) “Tudo os patrão quer que
nós vai trabalhar com eles”; (ii) “Nós fica perdido, né?”; (iii) “O que nós vai fazer?”.
No tocante à região focalizada neste estudo, Gomes Filho (1981) estudou a
fala de trinta moradores da sede do distrito de Maria Quitéria (São José das
Itapororocas), politicamente pertencente ao município de Feira de Santana-Ba. O
pesquisador, orientado pelo Prof. Nelson Rossi, dispôs-se a realizar um trabalho
descritivo em uma comunidade de fala menos urbanizada, numa época em que as
atenções voltavam-se para os falares cultos urbanos. Desse modo, embora o seu
trabalho, não tenha priorizado uma metodologia laboviana, e sim a descrição do falar da
comunidade, possibilitou à constatação de que, àquela altura, a variação no uso das
marcas de número nos verbos existia no dialeto em questão.
Gomes Filho (op. cit.) investigou o uso variável com P4 e P6, tendo como
base trinta entrevistas de meia hora cada, com um total de trinta informantes nativos e
sem histórico de viagens longas, categorizados segundo os critérios escolaridade, idade
e sexo (os dois equitativamente distribuídos). Considerou três níveis de escolaridade (Ø
– analfabetos; 1- mobralenses; 2- estudantes da então 8ª série do primeiro grau). Para a
idade, os informantes foram divididos em intervalos de cinco anos, da seguinte forma:
para os sem escolaridades e mobralenses, as idades iam de 28 a 33 anos e, para os
estudantes, iam de 14 a 19 anos, com exceção de um informante que tinha 23 anos.
Quanto à P6, os resultados revelaram que, em termos percentuais, havia
maior aplicação da regra padrão na fala dos estudantes do nível 2, do sexo masculino,
ao que atribuiu o papel da ação normativa da escola. Quanto à P4, o autor expõe que foi
muito recorrente em seu corpus “apócope no MNP, como em nós conhecemo, falemo,
pegamo, passemo” (p. 67), formas essas considerados por ele como com aplicação da
199
regra de CV. Ressalta ainda que ocorrências de formas verbais com sujeito de P4 foram
reduzidas, pois o contexto da entrevista favorecia mais a ocorrência de formas de P1 ou
de P6, sendo as de P4, de certa forma, induzidas pelo entrevistador a aparecerem.
Chama a atenção o fato de terem sido registrados dados, como “a gente fizemo”, raras
mesmo em dialetos populares. Do mesmo modo, chama atenção o fato de a maior
frequência do uso padrão da CV com P4 ser encontrada com os informantes do sexo
masculino, o que era esperado por ser o dialeto popular, muito ligado à dinâmica rural.
Assim, as mulheres usam a variante padrão com P4, nos índices de 33,3%, 73,6% e
83,3%, respectivamente com escolaridade Ø, 1 e 2, ao passo que os homens usam-na,
com essas escolaridades, respectivamente com os seguintes índices percentuais: 100%,
81,2%, 79.4%.
Diante dos testemunhos de dialetólogos e filólogos do início do século
passado, fica comprovada a origem popular da ausência de marcas formais de plural nos
verbos. Destaca-se, daí, a importância de estudos com dados do português popular
contemporâneo falado em cidades do interior, permitindo que se observe como se
encontra o continuum sociodialetal brasileiro atualmente. Assim, torna-se possível
investigar como se encontra o processo de variação no uso das marcas flexionais de
número e de pessoa, que era geral no interior do Brasil do início do século XX.
Mesmo após a divulgação de descrições e estudos mais aprofundados sobre
a variação nas marcas flexionais dos verbos, autores de gramáticas normativas
continuam a prescrever ainda usos pautados na tradição gramatical, sem problematizar
junto aos seus alunos os possíveis fatores que levam ao apagamento das marcas de
plural nos verbos150, algo que, se fosse feito, levaria a um ensino, de fato, produtivo.
Sobre isso já se pronunciaram Lemle e Naro (1977), Mollica (1993) e Vieira (2007),
quando defendem que o professor de Língua Portuguesa, em sua tarefa de ensinar outra
variedade do português a seus alunos (a norma padrão ou, até mesmo, a culta formal151),
deva dar mais ênfase aos aspectos em que a variedade do aluno mais difere do modelo
que se almeja ensinar, priorizando, dessa forma, exercícios com verbos em contextos
menos salientes e de sujeitos pospostos e mais distantes em relação aos verbos. Vieira
(op. cit., p. 99) assim se pronuncia:
150
Embora, de maneira tímida, avanços já podem ser notados. Alguns autores de gramáticas e livros
didáticos, atendendo ao que pregam os Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997), têm
considerado exemplos da fala popular ao tratarem do tema da CV.
151
Para Parkvall e Álvarez López (2003, p. 113), “as normas cultas representam versões faladas do
português brasileiro padrão, descrito nas gramáticas normativas”.
200
152
Remeta-se o leitor a toda polêmica que envolveu algumas colocações pautadas em pesquisas
linguísticas presentes no livro didático “Por uma vida melhor”, da "Coleção Viver, aprender”, no ano de
2011, no Brasil.
201
bem simples e não passível de dúvidas nos usuários, quando, na verdade, é sabido que o
mesmo é complexo e gera dúvida até mesmo entre falantes cultos. Os compêndios, de
maneira geral, limitam-se a informar que o verbo deve concordar (em número e pessoa
gramatical) com o sujeito da oração, expondo que, quando este apresentar apenas um
núcleo (sujeito simples) e for pluralizado, o verbo deve ficar no plural e concordar com
a pessoa gramatical a que se refere (por exemplo: Os meninos comem muito). Já,
quando tiver dois núcleos (sujeito composto), a variação é permitida, sendo
apresentados os casos de concordância facultativa, a exemplo do que ocorre em casos de
núcleos do sujeito ligados pela conjunção ou com sentido de exclusão “Roma ou Viena
será a sede das próximas Olimpíadas” (exemplo: de Terra, 1991) (cf. ALMEIDA, 1999;
BECHARA, 2001; CUNHA e CINTRA, 1985; ROCHA LIMA, 2002; CEGALLA,
1990, dentre outros). Os contextos em que a tradição gramatical admite concordância
variável são descritos com pormenores na seção 5.3 no capítulo seguinte, onde são
apresentados os contextos em que alguns dados foram excluídos nesta pesquisa.
153
Castilho (2009, p. 412) ressalta que, em português, a relação de CV não é assimétrica, pois enquanto o
verbo concorda com o sujeito isso não se dá com os argumentos internos nem com os adjuntos, embora
chame atenção à possibilidade de a forma verbal concordar com outros termos da oração que não apenas
o sujeito no PB não padrão, como, por exemplo, acontece com concordância verbo-adjunto adnominal
genitivo; fornecendo o seguinte exemplo: “O aumento desses crimes estão provocando situações
irreversíveis”.
202
mental subjacente nos usos linguísticos154. Isso faz suscitar questões, como: o que faz
existir processos variáveis em certos aspectos da gramática e em outros não? Essas são
discussões importantes, mas que, para o escopo desse trabalho, não se pretende esgotar
ou mesmo focalizar de forma mais direcionada, pretendendo, por outra, apenas tecer
algumas observações sobre a variação e a invariância no tocante ao tema da
concordância verbal no português brasileiro; ficando essas questões na pauta de estudos
futuros.
Nesse sentido, apresentando um enfoque mais formal do tema da CV,
primeiramente, chama-se atenção ao fato de a concordância verbal ser importante para a
identificação do sujeito e do objeto direto da oração (constituintes com potencial
referencial) no PB, como destaca Perini (2008, p. 103-111). Assim, por exemplo, em
uma sentença com dois sintagmas nominais, como “João viu as meninas”, a
identificação do sujeito é dada pela concordância. Já em “João viu a menina”, a posição
pré-verbal assumida por “João” o faz ser identificado como sujeito, uma vez que ambos
SN’s são de 3ª pessoa do singular e, portanto, candidatos em potencial para assumirem a
categoria de sujeito. Por questões como essas é que Perini (loc. cit.) demonstra que
“Belisquei a menina” é gramatical, ao passo que “Beliscou a menina” ou “Beliscava a
menina” só o são em contexto anafórico, já que, nestas duas últimas sentenças há muitas
interpretações semânticas (eu, ele, ela, você, a gente, dentre outras se for considerada a
norma popular). Desse modo, o autor formula a seguinte regra de identificação do
sujeito: “o sujeito é um SN cuja pessoa e número sejam compatíveis com a pessoa e
número indicados pelo sufixo de pessoa-número do verbo.”, fazendo as seguintes
ressalvas: (i) se na oração só houver um SN nessas condições, esse SN é o sujeito; (ii)
se houver mais de um SN, então o sujeito é o SN que precede imediatamente o verbo;
(iii) mas se o SN em questão for um clítico (me, te, nos, se) , ele não conta, e o sujeito é
o SN precedente. (PERINI, op. cit., p. 108). Para o autor, essa regra se aplica a verbos
com estrutura que se denomina transitiva, composta de (Sujeito-Agente) + verbo +
sufixo de PN-Agente + SN-Paciente.
Sobressai-se, pois, a autoridade da concordância na identificação do sujeito,
de modo que sentenças como * A menina quebramos a janela e *Morri um gato
(exemplos de Perini, op. cit, p. 116-117) são agramaticais. A partir disso, observa-se
154
Por outro lado, salienta-se que há estudos que já defendem que a Língua-I de cada indivíduo é
constituída de uma gramática nuclear e uma periferia marcada, onde valores paramétricos opostos ao da
gramática nuclear podem estar presentes (cf. KATO, 2005).
204
que há uma interface semântica na relação sujeito-verbo, sendo mais forte a relação
entre o sujeito e a pessoa gramatical da forma verbal do que entre esse e o número,
razão pela qual orações como “vi a janela” faz o usuário identificar a pessoa do sujeito
(eu) por outras relações que não pela presença do SN janela. Disso decorre que a
variação na concordância verbal com a pessoa gramatical é menos frequente do que
com o número.
Assim, há muita variação no PB falado quanto ao plural nas formas verbais,
sendo, cada vez mais comuns frases como: “Esses menino(s) come muito”, embora,
como observa Perini (2010, p. 273), “[...] todas as variedades do PB têm alguma
concordância verbal, porque nenhuma aceita *eu chegou ou *ela cheguei”. Pode-se ver,
então, que há um limite na variação, já que a interface sintaxe-semântica faz com que o
falante rejeite certas construções. Assim, entende-se por que, no PB, a variação na
concordância verbal de número é muito mais recorrente do que a de pessoa, segundo foi
afirmado acima. Sobre isso, afirma Castilho (2010, p. 273):
155
Informação extraída do texto de Rubio (2008).
206
por exemplo, frases como “eu comer” por “eu comi” ou “eu estava comendo”.156 Mas,
por outro lado, é sabido que o contato linguístico pode afetar uma língua sem gerar uma
língua nova (cf. PARKVALL E ÁLVARES LÓPES, 2003; LUCCHESI, 2003), como
se observa no PB, em que as reduções se aplicam basicamente às flexões de número.
156
Os próprios dados linguísticos primários são falhos e disso decorre que a variação é radical. Assim, os
pidgins e crioulos são muito propícios para se estudar a faculdade humana da linguagem, notadamente os
processos relacionados à aquisição de L1 e L2.
207
Pronomes sujeitos
Nós A gente Total
Faixas etárias nº. de ocor. % nº. de ocor. %
Faixa I (20 a 40 anos) 15 5,86 241 94,14 256
Faixa II (41 a 60anos) 72 51,4 68 48,57 140
Faixa III (mais de 60 100 80,0 25 20,0 125
anos)
TOTAIS 187 35,9 334 64,1 521
157
Para o município, afluem pessoas de várias regiões da Bahia em busca de “itens” que as cidades
grandes oferecem, como um bom centro comercial e serviços médicos e educacionais de qualidade.
211
2ª Parte
P6:
(1) Mas já tive colegas que morreram de acidente. (Variante padrão ou explícita)
(2) Por que o progresso vai chegando e as coisa vai mudando, né? (Variante não
padrão ou zero)
158
É bastante comentada a característica do falar feirense de usar o pronome pessoal tu com verbos não
marcados. Esse fato serve, inclusive, para moradores de outras cidades, principalmente os da capital,
identificarem quem usa esse tipo de variante zero como sendo típico de quem é “de Feira”. Esse uso, em
Feira de Santana, pode ser facilmente ouvido na fala de pessoas escolarizadas, de profissionais de todas as
áreas, sem que qualquer estigma lhes seja associado. Nesse sentido, no âmbito do Projeto “A língua
Portuguesa do Semiárido Baiano – Fase 3”, algumas análises já foram realizadas, a exemplo dos trabalhos
de Assunção (2008) e de Santana (2008, 2009). Nesta tese, não se considerou esse uso variável, por se
entender que tal variação exigiria o estudo de outra variável dependente, qual seja, a da alternância TU ~
VOCÊ. Também se intentou investigar a variação com a primeira pessoa do plural (P4), mas, diante dos
resultados iniciais para tal investigação (comentados, sucintamente, no próximo capítulo), em que foram
encontrados escassos usos de forma verbal com o pronome nós, julgou-se mais produtivo ater-se ao uso
variável com a terceira pessoa do plural.
159
Todos os exemplos apresentados com numeração foram extraídos do corpus desta pesquisa.
213
160
Na discussão dos resultados, melhor explicitam os contextos em que foram descartados alguns dados
para esta tese.
214
(5) Os mestre de obra que tem aqui dento já vem com sua equipe pronta.
(6) ... só não pode é correr porque os colega vem e bate de novo.
161
Entende-se que Monguilhott (2001, 2009) defende a motivação mais linguística do que sociocultural
para a variação na CV pelo fato de seus dados serem provenientes da fala de informantes escolarizados.
217
162
Sobre isso já se explanou, nas seções 4.1 e 4.2, quando se discutiu os resultados das variáveis sexo,
escolaridade e faixa etária em outros estudos que analisaram a CV no PB.
218
típico caso de variação estável; posição que pode ser considerada pertinente,
especialmente ao se procurar encaixar o fenômeno na estrutura linguística e social,
como se defendeu no final da Seção 5.1.
Sobre a relação variação e mudança, é importante observar que, se entre
informantes cultos, está havendo um maior distanciamento da norma padrão, a força da
avaliação e do encaixamento social, não licenciam a implementação de um sistema sem
marcas de concordância de número nos verbos. Por outro lado, ainda que, nos dias
atuais, tenha aumentado o uso de marcas de plural nos verbos, mesmo entre informantes
das classes populares (por interferência de fatores como aumento de escolaridade e de
maior mobilidade nas redes sociais), há fatores linguísticos que levam ao apagamento
das marcas, a exemplo de posição do sujeito, distância do núcleo do sujeito e o verbo,
saliência fônica, entre outros, fazendo com que a mudança não seja implementada nem
para a perda nem para a marcação explícita de plural.
5.4.2 Escolaridade
nível de perceptibilidade, de modo que algumas variantes zeros nos verbos são traços
graduais e outras descontínuos.163
Assim, influenciados por fatores linguísticos ou estilísticos, informantes
escolarizados podem usar a variante zero com sujeito de terceira pessoa do plural, mas,
com de primeira pessoa do plural, este uso deve ser inexistente ou raro, já que esses
informantes possuem em seu repertório linguístico a outra forma e têm consciência das
implicações sociais do uso de ambas as variantes.
Na etapa da revisão da literatura, foi verificado que o estudo de Monguilhott
(2009) controlou os grupos de fatores faixa etária e escolaridade de forma conjunta,
enquanto Vieira (1995) cruzou essas duas variáveis a fim de sanar a dúvida de que o
fato de os mais escolarizados de sua amostra estarem na faixa 1 não teria influenciado
nos resultados que apontavam para o aumento da CV entre os mais jovens. No caso do
estudo de Vieira (op. cit.), os resultados desse cruzamento revelaram que,
independentemente da escolaridade, os informantes da faixa etária mais alta exibiam
maior tendência ao uso da variante zero. Contudo, segundo aponta a própria autora, a
escolaridade de seus informantes era muito ínfima, além de não ter sido controlada
durante a seleção dos informantes, o que a fez ter cautela na interpretação de seus
resultados.
Levando em consideração esses estudos, nesta tese, realizaram-se
cruzamentos entre essas variáveis (idade e escolaridade), tendo em vista que, assim,
melhor se poderia desfazer alguns possíveis enviesamentos de resultados. Pretendeu-se
examinar, por exemplo, se o fator escolarização influenciaria mais o uso da CV em
jovens cultos ou em idosos cultos.
5.4.3 Diazonalidade
163
De modo análogo, Rubio (2007) compara o uso da variante zero com P4 ao do r retroflexo ou r
caipira, este típico do interior paulista, sendo ambos estereotipados nos centros urbanos. Rodrigues
(1987), conforme se explanou no capítulo 4, também atesta o uso mais estereotipado da variante zero
com P4 do que com P6, pois, além de denunciar a baixa escolarização, denuncia a sua origem geográfica.
221
das descrições dos falares rurais antes que a “modernização” levasse à extinção de suas
principais características.
A propósito, para interpretar as particularidades do falar rural em relação ao
falar urbano, deve-se recorrer às condições de formação da realidade linguística
brasileira, em que uma massa de pessoas sem instrução e arraigada a processos mais
“tradicionais”, típicos de ambientes do interior, opunha-se a uma incipiente elite mais
ligada a hábitos “modernos”, estas mais próximas ao litoral, nos pequenos povoamentos
urbanos. Em outros termos, a substituição das características mais “rústicas” ocorreu de
forma mais lenta no interior.
Portanto, trabalha-se com a hipótese de que existem diferenças na fala dos
informantes da zona rural em relação aos da zona urbana, principalmente pelo fato de a
ausência de marcas de número na flexão verbal ser um aspecto caracterizador da
fronteira sociolinguística brasileira, que separa a fala culta da popular. Sob essa ótica,
não se pode esquecer que os habitantes das zonas mais afastadas dos grandes centros
tiveram/têm menos acesso a instâncias que levem à aquisição de padrões linguísticos da
norma culta.
Por outro lado, na formulação da hipótese, julgou-se que os resultados dessa
variável não seriam típicos de realidades dicotômicas: falares urbanos versus falares
rurais, pois os dados da fala rural foram coletados numa comunidade, conforme se
argumentou no Capítulo 3, com características já bem “modernizadas”, podendo ser
rotulada por rurbanas (cf. SOUTHALL, 1973 e BORTONI-RICARDO, 1985, 2011).
Aliás, julga-se que, em face do processo de urbanização da população brasileira,
intensificado a partir da década de 1940, bem como devido ao uso de tecnologias e
hábitos urbanos no campo, torna-se, cada vez mais, difícil realizar estudos com dados
prototípicos da fala rural, embora certo nível de diferença possa ainda ser observado.
Mesmo com essas ressalvas, investigou-se a influência dessa variável no uso das marcas
de plural nos verbos, partindo-se do entendimento de que o cancelamento da regra
padrão de concordância seja mais frequente entre os informantes da zona rural do que
entre os da zona urbana.
Assim, diferenças linguísticas advindas da esfera diazonal podem ser
identificadas, apesar de a comunidade estar localizada próxima a sede do município e de
os seus moradores deslocarem-se muito para lá. Convém destacar que a Matinha possui
uma rica história de consciência cultural, ligada à preocupação em preservar as
tradições/ culturas locais, cujo exemplo mais forte pode ser visto no importante grupo
222
abandonam traços linguísticos típicos de sua região por aqueles típicos da região que
passam a ocupar.
A variável foi controlada da seguinte forma:
164
Termo citado por Bortoni-Ricardo (2011, p. 125).
165
Na coleta de dados, isto é, no processo de constituição da amostra, não foram criadas condições para
se medir os graus de integração dos filhos de migrantes (novos vínculos de amizade com falantes sem a
mesma origem migratória e de classes sociais diferentes) e, tampouco, de urbanização, tal como fez
Bortoni-Ricardo, que inquiria seus informantes com perguntas, como “Quem são seus três melhores
amigos?” e os categorizava de acordo com um índice que levasse em conta o grau de escolaridade do
falante, sua mobilidade social (se ascendente ou não), sua participação em eventos urbanos, sua exposição
à mídia e sua informação política.
224
ausência de concordância com P6 não ser tão típico do falar rural. Já, com P4,
confirmou-se a interferência das mulheres, de qualquer faixa etária, no favorecimento
da regra de não concordância e os homens mais velhos ao uso da regra de concordância
verbal de maior aceitação social. Esses resultados foram interpretados por Rodrigues
(op. cit., p. 250) pela diferença do estatuto social do homem e da mulher em
comunidades populares nos grandes centros urbanos.
Também Bortoni-Ricardo (1985, 2011), focalizando a comunidade rurbana
de Brazlândia, evidencia o papel inovador dos homens no que se refere à aquisição de
formas padrão no plural dos verbos:
166
Segundo Bortoni-Ricardo (2011, p. 264), o principal fator que parece fortalecer a difusão dialetal das
mulheres é o contato intergeracional que se dá no domínio do lar, por meio de sua relação com seus filhos
crescidos.
226
167
“O princípio da coesão estrutural pode ser formulado com base na propensão de coocorrência de
estrutura de uma mesma gramática numa determinada porção da sentença, nas situações de alternância de
código, e não numa coocorrência categórica, estritamente restringida pelos princípios abstratos da
gramática. Essa propensão seria condicionada, em primeiro lugar, pelo grau de coesão da estrutura
delimitada. Assim, como já foi dito, haveria uma maior propensão de coocorrência de estruturas de uma
mesma gramática em seus nódulos mais coesos do que nos nódulos mais periféricos” (LUCCHESI e
Ribeiro, 2009, p. 151-152).
168
Dados retirados do corpus.
229
Transitivos
(35) muitos que é tirado a mestre de obra aqui no Feira Seis quer ser dono
do mundo
Locativos
(36) eles vieram e ligaram.
Intransitivos
(37) Só trabalham, estudam não.
Inacusativos
(38) morreu duzentas e poucas pessoas.
Cópula/ de ligação
(39) Hoje são aqueles pop star...
Auxiliares
(40) ... Agora tem coisas que tá faltando.
Passivas
(41) os colégio mesmo foi reformado
Modais, aspectuais e leves
(42) Ah, eles apronta tudo, tudo que eles quer aprontar.
(43) os menino pegou e meteu pedra na gente.
(44) eles começou a trabalhar, abrir a Rio-Bahia,
salientes tendem a ser mais marcadas do que as menos salientes. Naro (1981, p. 78)
refinou a análise, propondo uma escala de saliência que se pauta em dois critérios, o da
presença ou ausência de acento na desinência e o da quantidade de material fônico
que diferencia a forma singular da forma do plural, isto é, um grupo de tonicidade e
um grupo de diferença de material. A escala que mais é utilizada nos estudos que
tratam da variação na CV com a terceira pessoa do plural com dados do português
brasileiro é a seguinte, presente no texto de Scherre e Naro (1998, p. 03-04): 169
Nível 1 (oposição não acentuada): "contém os pares nos quais os segmentos
fonéticos que estabelecem a oposição são NÃO ACENTUADOS em ambos os
membros"
1a: não envolve mudança na qualidade da vogal na forma plural
- Eles conhece0 Roma. Conhece Paris
- Ceys conheceM?
Nível 2 (oposição acentuada): "o segundo nível contém aqueles pares nos
quais [os segmentos fonéticos que estabelecem a oposição] são ACENTUADOS em
pelo menos um membro da oposição"
2b: envolve acréscimo de segmentos sem mudanças vocálicas na forma plural; inclui o
par foi/foram que perde a semivogal
- Aí bateu0 dois senhores na porta
- (eles) bateRU sete chapa da cabeça dele
169
Os exemplos foram retirados na própria escala de saliência fônica fornecida pelos autores.
232
1a. - envolve oposição entre vogal oral e vogal nasal e ditongação, quando o
verbo tem na terminação plural vogais médias anteriores como em ame / amem, vende
/ vendem ou parte / partem;
1b. - envolve oposição entre vogal oral e vogal nasal e ditongação em
terminações plurais constituídas de vogal central, como em: canta / cantam, seja /
sejam, partia / partiam;
1c. - envolve acréscimo de segmentos na forma plural: quer / querem,
trafegar / trafegarem, partir / partirem;
(46)
DOC: Eles acolhem bem, né?
INF: Acolhem bem...
(47)
DOC: Hum. Eles já estão grandes?
INF: Não, são pequeno ainda, um tem nove, o outo tem sete, o outro tem três.
(48)
DOC: E eles falam que gostam de estudar lá?
INF: Diz que gosta.
171
Vieira (1995, p. 67-69) também formulou a redação da escala dessa variável chamando a atenção para
o acréscimo do traço suprasegmental de nasalidade nos itens 1a, 1b e 1c.
235
Sem estímulo
Foi utilizado o recurso “não se aplica” neste caso.
Com estímulo para a concordância (mesmo verbo)
DOC: “Eles trabalham muito?”
172
Embora, nesta tese, não tenha sido controlado o fator “ausência de efeito de gatilho”, julga-se
pertinente a inclusão desse fator na realização de futuras análises.
236
Numeral
(57) “Sei que dois foram criados ali; e quatro estão desaparecidos.”
Quantificador tudo
(58) “Eles tudo foro junto ao cinema; Eles tá tudo esparramado”
173
Foram responsáveis pela gravação das entrevistas da Fase 3 do Projeto, as professoras Silvana Silva de
Farias Araujo (feirenses filho de migrantes), Norma Lucia Fernandes de Almeida (feirenses filhos de
feirenses), Eliana Pitombo Teixeira (cultos) e Zenaide Oliveira Novaes Carneiro (migrantes).
174
Conforme foi apresentado no capítulo 3 desta tese, nas outras fases do projeto, foram constituídas
amostras com entrevistas sociolinguísticas gravadas em comunidades rurais no semiárido baiano
(ALMEIDA, 2008). Já, nessa terceira fase, o projeto volta-se para a comunidade urbana de Feira de
Santana, município de maior representatividade demográfica e econômica da imensa faixa do semiárido
baiano.
237
SEXO Masculino
Feminino
FAIXA ETÁRIA Faixa I (25 a 35 anos)
Faixa II (35 a 45 anos)
Faixa III (acima de 65 anos)
CARACTERIZAÇÃO Norma Popular Norma Norma
DA SUBAMOSTRA Feirenses filhos de culta semi-culta
feirenses (Ensino
Feirenses filhos de Médio)
migrantes Feirenses Feirenses
filhos de filhos de
Migrantes feirenses feirenses
Feirenses da zona rural
176
175
Durante o meu afastamento para realização do curso de doutoramento, o projeto ficou sob coordenação
da Profa. Dra. Norma Lúcia Fernandes de Almeida.
176
Almeida (2005, 2008) já havia constituído uma amostra na zona rural de Feira de Santana na mesma
localidade. Contudo, para esta tese, foram realizadas novas entrevistas, a fim de permitir uma comparação
com as faixas etárias utilizadas na zona urbana do município. Nesse sentido, expressamos nossos
agradecimentos às bolsistas Juliana Gomes de Azevedo e Rosiane Silva de Almeida pela realização do
trabalho de campo.
238
Norma Popular:
177
A intenção era gravar apenas informantes que tivessem estudado por até quatro anos, porém, em vista
da dificuldade de se encontrar informantes com essa característica (principalmente na faixa 1), foram
gravadas entrevistas com informantes que estiveram na escola por mais tempo, sendo que alguns estavam
concluindo o Ensino Fundamental, mas no sistema de “Aceleração”, em que se estuda duas séries em um
ano. Nesse sentido, considerando a pouca qualidade do ensino que frequentaram e, principalmente, que as
suas atividades profissionais não lhes proporcionam maior contato com o letramento, julga-se que a
característica popular da sua norma linguística ficou preservada.
239
3ª série 1ª série
Faixa III 66 anos 82 anos 69 anos 66 anos
(mais de 65) Aposentado lavrador Aposentada Empregada
(serviços 3ª série (lavradora) doméstica
gerais) 3ª série 3ª série
Analfabeto
Quadro 10: Apresentação dos informantes da norma popular (feirenses filhos de migrantes)
Norma culta:
178
Cf. SANKOFF, TAGLIAMONTE e SMITH, 2005.
241
5.8 SÍNTESE
3ª Parte
Nº de Frequência Nº de Nº de Frequência
ocor./Total ocor./Total ocor./Total
6%
Concordância padrão
Concordância não padrão
94%
24%
Concordância padrão
Concordância não padrão
76%
Tabela 15 – Frequência de uso da concordância verbal com P6, tomando-se por base
alguns estudos sobre o português popular urbano brasileiro
179
Guardando-se as devidas proporções, já que, de acordo com o que será indicado na seção 6.5, os
resultados concernentes à norma popular do corpus desta tese revelaram particularidades associadas aos
subtipos da norma popular considerada. Em suma, os percentuais apresentados, no gráfico 2, são gerais
para a norma popular feirense ao passo que, posteriormente, os resultados serão apresentados de maneira
mais detalhada.
180
Estes resultados percentuais para o trabalho da autora dizem respeito aos dados provenientes de
informantes analfabetos. Para informantes pouco escolarizados a frequência encontrada para a
concordância padrão e não padrão foi, respectivamente, 35% e 65%.
246
100% 91,95%
90% 80,60%
80%
70%
60%
50% Concordância
40%
30% Não concordância
19,40%
20%
8,05%
10%
0%
Português de Português do
Portugal Brasil
181
Sobre essa questão, remete-se ao trabalho de Vieira (2011), que, ao analisar a CV no PB (Nova
Iguaçu- RJ), no português de São Tomé (PST) e no PE (Oeiras- Lisboa), encontrou um percentual de
ausência de marcas de plural em apenas 1% dos dados lisboetas e de 7% nos dados são-tomenses
(considerando informantes com três níveis de escolaridade). Mesmo com percentuais baixos nas
variedades africana e portuguesa, principalmente neste último, a autora analisou o tipo de dado que se
tinha nas variedades em questão, de modo que foi feita a constatação de, fundamentalmente, contextos
linguísticos pontuais da não concordância com marcas de plural nos dados no PE, que a levou a afirmar
que há um caso de regra semicategórica na fala lisboeta no que concerne ao uso da CV com P6. Portanto,
o veredicto da pesquisadora foi dado pela combinação de resultados quantitativos e qualitativos.
249
comparando-os com a realidade da fala popular. Somente desse modo é possível traçar
um perfil sociolinguístico da comunidade de fala analisada.
A tabela seguinte traz os resultados advindos do levantamento realizado na
amostra de fala culta:
Nº de aplic/total Percentual
Concordância padrão 619/659 93.9%
Concordância não padrão 40/659 6.1%
(60) “Então, a gente..., em termos de prejudicar, como diz algumas pessoas, é..., que
reclamam dessas bolsas, não.”
(64) “Existia pequenas brincadeira, mas não dessa forma tão violenta e agressiva quanto
é hoje.”
182
Informa-se que Santos (2010) analisou dados da norma semiculta feirense (12 entrevistas) e encontrou
o alto índice de 73.6% de concordância padrão. Havendo, assim, uma similaridade entre as normas culta e
semiculta feirenses.
250
(65) “Hum-hum. Porque já foi procurado... esses estudantes foram procurados e..., por
diversas vezes..., é... tentou-se diálogo, tentou-se um... mudar as coisa, mas é [...]”
(66) “[...] que hoje entra rios de dinheiro nessa cidade do governo federal e é um
prefeito completamente apático, principalmente pra violência [...]”
(69) “E tem essa questão que eu gosto muito no cinema brasileiro, que existe alguns
críticos que acha que esses filmes brasileiros estão tomando o Nordeste como cenário
[...]”
Como se constata a partir dos exemplos acima, 25% dos dados de não
marcação de plural nas formas verbais com P6 na fala culta envolvem casos de sujeito
posposto. Deve-se destacar ainda que praticamente todas as ocorrências são com verbos
inacusativos; à exceção da ocorrência (65), uma estrutura passiva (que não deixa de ser
uma construção inacusativa). Portanto, trata-se de contextos reconhecidamente
desfavorecedores da CV, de acordo com a literatura das análises sobre o tema.
(70) “As pessoas hoje... vai analfabeto, inclusive o Fantástico já fez esse teste [...]”
(71) “é... são tantos, [inint] são bobagens assim que, que marca, né?”
(72) “muitas vezes, minhas irmãs que, às vezes, ficava tomando conta, ou irmãos,
ligavam pra Feira, que ela estava em Salvador, dizia corre... corre que vai morrer
amanhã.”
(73) “O outro motivo é que os profissionais que hoje trabalha nas academias não têm
qualificação [...]”
(74) “Porque eu acho que também essas greves acho que denegriu um pouco a
reputação do professor, do profissional.”183
(75) “É, nessa fase que eu te falei que eu perdi meio a minha juventude, os livros e a
História me ajudava muito. Por exemplo, eu não tinha sociabilidade, mas tinha
sociabilidade com os livros.”
(76) “Minha educação, a educação que meu pai e minha mãe deu pra gente foi
perfeita... pra todos os meus irmãos, perfeita... perfeita. [...]”
(77) “Que, na escola particular, é um número mais reduzido, pelo menos é. Na escola
pública, a gente chegou e era salas cheias, né?... [...]”
fato de que podem envolver também construções de foco (PERES e MÓIA, 1995, p.
473), como no exemplo dado por esses dois autores “É de bolos de chocolate que o
Paulo gosta”. Envolvem, ainda, construções existenciais, como é o caso do exemplo
(77) acima.
(79) “É! Não admitia que alguém cortasse meu cabelo, porque eu passei no vestibular,
foi através dos meus méritos, não devia nada a ninguém a não ser a meu pai e minha
mãe que me deu essa condição pra que eu fizesse vestibular, passasse.”
(80) “E tem essa questão, que eu gosto muito no cinema brasileiro, que existe alguns
críticos que acha que esses filmes brasileiros estão tomando o Nordeste como cenário,
[...]”
Alguns estudos revelam que a presença do pronome que, sendo invariável,
desfavorece a marcação de plural nas formas verbais. Naro (1981) afirma que tal
pronome mascara a figura do sujeito, desfavorecendo a concordância padrão. Almeida
(2006) identificou peso relativo no valor de .34 tendo como valor de aplicação o
favorecimento da marca padrão, ao passo que Monguilhott e Coelho (2002)
encontraram o valor de .47 (algo que também favorece levemente a variante zero), do
mesmo modo que Silva (2005), com valor de .33. Já Oliveira (2005) encontrou .55 a
favor de marca zero, valor que a autora considerou próximo ao ponto neutro, levando-a
a não conjeturar em relação a tendências relativas a esse fator. Vieira (1995, p. 103)
verificou uma diferença de comportamento entre os casos de sujeitos antepostos na
oração por relativo que e os demais, com, respectivamente, pesos relativos nos valores
de .57 e .44, “comprovando a hipótese de que a estrutura que apresenta o relativo
favorece mais o cancelamento da marca de número do que as demais estruturas de SNs
antepostos, o que, provavelmente, se deva ao fato esse pronome ser invariável, não
marcado”.
(81) “Olhe, eu num tenho agora, c´um meu filho pequeno, eu não tenho como assistir
muito jornal, essas coisas. Os programas que eu assisto é desenho animado [risos]”.
(82) “Tem profissionais que são formados há vinte, trinta anos, que tem algumas coisas
que, se não procura se reciclar [...]”.
(83) “[...] que eu conheço algumas pessoas do próprio curso que fazem uma coisa que
não pensavam em fazer, que tentou outro vestibular, e não conseguiu [...].”
Começando a discutir esses casos pelos dois últimos exemplos (84) e (85),
cabe ressalvar que os sujeitos dessas frases estão num tipo de estrutura “complexa”,
pois incluem um sintagma preposicionado (SPrep). Assim, o sujeito por possuir
modificadores que integram expressões com número distinto do núcleo nominal ou,
mesmo, por distanciar-se do núcleo do predicador verbal, pode gerar a não concordância
padrão entre verbo e sujeito, independentemente de expressarem noções quantitativas,
coletivas ou partitivas. Quanto aos quatro primeiros exemplos deste grupo, sucede que,
estando o sujeito distante da forma verbal pela existência de uma oração relativa, gera
uma distância entre eles, de modo que, como exposto anteriormente, desfavorece a
aplicação da concordância padrão.
(86) “Eles encaram tudo com mais naturalidade. Você chega ni, numa casa assim, às
vezes, você nem imagina que as pessoas sabe qu’é que você [bus] qual é a sua e a
pessoa fala abertamente, todo mundo respeita, você chega num lugar não é tachado [...]”
184
A partícula de negação (não) e os clíticos não foram considerados como elementos intervenientes entre
o sujeito e o verbo.
254
(87) “Então, num faltou... na questão alimentar num faltou nada. Reclama-se das
liberdades de expressão, mas o... os militares não tinha essa inteligência toda pra [risos]
[...]”
(88) “Hoje, as famílias degeneraram, os pais não têm moral pra dar aos próprios filhos,
aonde os filhos vai adquirir moral? [...]”
(89) “são os cursos de fluxo e aceleração, onde o aluno entra analfabeto, sai mais
analfabeto ainda e pra completar, os governos deixa todo mundo [abrir] faculdades
particulares sem a mínima condição de funcionamento [...]”
(90) “[...] porque quando as pessoas me faz um favor, eu acho qu´eu não pago nunca
[...]”
(91) “[...] as academias... não exige uma carteira de saúde pra que a pessoa faça sua
matrícula e frequente.”
(92) “Muito boa. Eu tenho hoje oito irmãos comigo, são.... tivemos... meu pai e minha
mãe tiveram dez filhos, tem oito vivo. Deu uma educação perfeita! Os oito hoje são
adultos, todos são independentes, nenhum é alcoólatra, nenhum é viciado em droga e dá
benção a meu pai todos os dias que chegam na casa dele.”
255
(93) “Bom... a gente tenta passar. Se eles cumprem, cumprem ... é outra história. Mas
que a gente tenta passar, por exemplo, se eu estou em casa e eles vão deitar, eles ainda
me pedem a benção e eu os abençoou. Se vai viajar, me pede a bença e eu os abençoou.
Foi criado ainda nesse ritmo e se encontra uma pessoa mais velha, ele chama de senhor
e senhora ou quando encontra com tios e tias ou os vós tem que pedir a benção.”
(94) “Esses canalhas, quando assumem o poder, eles pensam que é dono da... da cidade,
dono do estado ou dono país, eles não são donos de nada! [...]”
(95) Academia eu não acho aconselhável, eu não quero nem que os donos de academia
ouçam uma coisa dessas po... pode até querer me matar (risos) [...]”
Grupos de fatores
Sexo do informante
Realização e posição do sujeito
Faixa etária do informante
Indicação de plural no SN sujeito
Input: 0.983
Log likelihood: -110.008
Significance: 0.034
Quadro 13 – Grupos selecionados como favorecedores da aplicação da regra de CV padrão na fala culta
de Feira de Santana-Ba
185
Os grupos Concordância nominal do sujeito e Efeito de gatilho tiveram que ser desconsiderados
devido à existência de knockouts. Esses nocautes serão adiante comentados.
257
residentes numa cidade com um forte passado rural – e que, tiveram, inevitavelmente,
contato com os padrões comportamentais e linguísticos de pessoas que vieram de
cidades menores ou da zona rural da circunvizinhança –, e, assim, torna-se evidente que,
na sua condição de cultos, demarquem a sua identidade também por meio de um falar
que os distancie da fala popular. O trecho seguinte, por exemplo, extraído da fala de um
informante culto, da faixa II, engenheiro civil e professor universitário, ilustra o quanto
as pessoas escolarizadas policiam-se para evitar a ausência da concordância, cometendo,
por vezes, hipercorreções, como a que se constata abaixo, quando o entrevistado
interrompe o entrevistador para fazer uma “correção” na sua própria fala:
INF: E retorno aos pontos... onde me marcou, e marcam, ainda muito: o mercado, feira
livre... ainda gosto de fazer feira.
DOC: Hum-hum.
INF: Vou ao... a ... Centro de Abastecimento.
INF: E gosto de tá ali na feira, escolhendo os artigos, os preços e... convivendo num...
naquele meio... que tá na minha raiz, nas minhas lembranças.
DOC: Hum-hum.
INF: A feira livre...
DOC: E...
INF: Estão, aliás.
186
Recomenda-se também a leitura do artigo de Scherre e Yacovenco (2011).
259
187
Guy (1981, 1989), Oliveira (2005), entre outros, revelaram essa projeção histórica da variação.
260
positivamente na marcação do plural explícito na fala culta, fazendo com que o falante
se aperceba da “necessidade” da concordância entre esses termos.
188
Essa questão foi discutida no capítulo 2 desta tese, onde se abordam aspectos referentes à história
social do PB. No capítulo 1, por sua vez, apresenta-se a fundamentação teórico-metodológica que dá
ensejo a uma interpretação contextualizada dos fenômenos linguísticos variáveis.
262
100 99,4%
90 91,4% 93,4%
80
70
60
50
40
30
20
10
0
Faixa III Faixa II Faixa I
Gráfico 8 – Distribuição pelas faixas etária do uso da CV padrão na fala culta de Feira de
Santana-Ba
1
0,88
0,9
0,8
0,7
0,6
0,5
0,4
0,4 0,31
0,3
0,2
0,1
0
Faixa III Faixa II Faixa I
Gráfico 9 – Atuação da faixa etária no uso da CV padrão com P6 na fala culta (pesos relativos)
263
189
No caso das subamostras do português popular, conforme já foi salientado nesta tese, considera a
forma padrão a forma inovadora.
264
anos de 1997, 1975 e 1958.190 Depreende-se, pois, que apenas os informantes da faixa
III formaram o seu vernáculo antes da intensificação do processo urbanização em Feira
de Santana, bem como dos processos de democratização de acesso ao ensino e de
popularização dos meios de comunicação de massa. Sobre essa questão, chama-se
atenção para os temas sobre a urbanização e escolarização apresentados nos Capítulos 2
e 3 desta tese, notadamente destacam-se as questões sobre a demografia histórica
feirense, a exemplo do fato de, em 1950, o município ter apenas 32% de sua população
residente no perímetro urbano e, nas décadas seguintes, esses percentuais terem se
invertido, graças à migração de uma grande leva de pessoas vindas do campo e de
cidades menores (FREITAS, 1998, p. 125).
Desse modo, vislumbra-se, na fala culta de Feira de Santana, uma realidade
próxima ao que ocorre nos processos de mudança “de baixo para cima”, já que se
observa o contexto de menor resistência nas faixas etárias mais jovens (para o uso da
variante zero), essas formadas com informantes que, a priori, tiveram maior facilidade
ao ingresso no ensino superior, dada a superação do caráter elitista, que fora acentuado
em décadas pretéritas no Brasil. A propósito disso, vale destacar, o depoimento de
alguns informantes homens das faixas etárias I e II que verbalizaram que foram os
primeiros membros da sua família a concluir um curso de nível superior. Do mesmo
modo, salienta-se a dificuldade que os pesquisadores do Projeto “A língua portuguesa
do semiárido baiano – Fase 3” encontraram, para localizar informantes da faixa III, com
o perfil de serem cultos e feirenses filhos de feirenses, principalmente no caso do sexo
masculino. Acerca dessas constatações, salientam-se duas questões: primeiramente que,
as mulheres, tradicionalmente, em Feira de Santana e em outras cidades onde a abertura
de faculdades e universidades foi tardia, concluíram cursos da área de licenciatura, já
que, só foram oferecidos cursos nessa área (talvez, pelo fato de serem
“operacionalmente mais baratos” e também devido à necessidade de se formar futuros
alfabetizadores no período pós-republicano). Outra questão que se salienta é a
predominância de pessoas do sexo feminino com formação superior no Brasil, segundo
pesquisas divulgadas pelo IBGE (2010).
Em vista do exposto, cabe melhor esclarecer por que, então, não se julgou
oportuno considerar o comportamento “inovador” dos informantes da faixa etária jovem
e mediana como um indicativo de uma mudança em progresso. Para tanto, é
190
As entrevistas foram gravadas a partir do ano de 2008 a até o primeiro semestre de 2011, com exceção
de dois homens cultos da faixa III, cujas entrevistas foram realizadas em março de 2012.
265
Gráfico 10 – Atuação das variáveis sexo e faixa etária uso da CV padrão na fala culta feirense
programa de regras variáveis nos dados dos cultos. Na tabela 22, estão os resultados,
seguidamente dos comentários que derivam da interpretação feita:
(97) “os meus pais são casados, nunca se separaram” (mórfica e mórfica)
(98) “todos são casados” (com quantificador)
(99) “as histórias, os livros eram meu, meus companheiros” (composto)
(100) “Ficou ele e a menina em pé, ou, de pé”. (composto)
(101) “Muitos dizem que a universidade” (com quantificador)
(102) “Olha, existe duas formas” (com numeral)
191
5 dados do total do corpus investigado foram retirados no controle dessa variável, porque eram casos
de sujeito não realizado também precedido por sujeito desse tipo.
268
Foram controlados dez fatores para essa variável, tendo como hipótese
central a de que a ocorrência cujo sujeito anteposto apresentasse núcleo ou o último
constituinte com marca de plural explícito teria à aplicação da regra padrão de
concordância verbal favorecida. Para dar conta dos dados encontrados, foram criados
fatores que abarcassem também casos de sujeito formado por apenas o pronome pessoal
eles(as), bem como por numeral e pelos quantificadores todos (as) e tudo (não se
levantou dado com este quantificador invariável na fala culta). A consideração dessa
variável permite investigar também a influência do núcleo do sujeito no uso da CV,
muito controlada em outros estudos. A tabela seguinte mostra a distribuição encontrada
no controle dessa variável:
Apesar de esse grupo de fatores não ter sido selecionado pelo GOLDVARB,
pode-se observar que a frequência de aplicação da regra de concordância verbal cai
significativamente quando o último constituinte do SN não exibe marcas de plural em
contraste com a frequência quando o constituinte exibe uma marca de plural: 78,6% de
270
frequência, no primeiro contexto, versus 97,7%, no segundo. Isso pode ser visto como
um indício de ausência de marca de plural antes do verbo inibe a aplicação da regra. O
problema estatístico desse grupo deve estar relacionado ao baixo número de ocorrências
de SNs com último constituinte sem marca de plural (apenas 28 em um total de 327).
Abaixo, são mostrados alguns exemplos com a especificação da codificação realizada:
(103) “as COISAS são dadas na universidade” (núcleo com marca de plural)
(104) “umas alunas minhas de CURSINHO são alunas de uma professora” (último
constituinte do SN sem marca de plural)
(106) “Meu PAI e minha MÃE nasceram em Feira” (núcleo sem marca de plural)
(107) “As filhas mesmo das minhas CUNHADAS falam o português estropiado”
(último constituinte do SN com marca de plural)
será mais discutida nesta tese, quando se apresentarem os resultados referentes à norma
popular.
Partiu-se da hipótese de que, nas orações cujos sujeitos tivessem como traço
semântico a característica de ser o agente da ação verbal, haveria um maior uso da
variante padrão da regra de concordância verbal com P6. Foi aventado que sujeito
formado por um nome ou estrutura com traço [+animado] favoreceria a aplicação da
regra padrão. Contudo, nos dados da norma culta, não foi encontrado nenhuma
ocorrência de sujeito de terceira pessoa do plural sendo um animal, de maneira que foi
controlado apenas o traço [+humano] e [-humano], sendo exemplos deste último usos
com traço [-animado], como “As ruas eram esburacadas”.
272
Nº de aplic/total Percentual
Concordância padrão 321/1310 24.5%
Concordância não padrão 989/1310 75.5%
ilustram o perfil das ocorrências analisadas, sendo os cinco primeiros com a variante
não padrão e, as subsequentes, com a padrão:
(108) “No interior, se o cara roubar uma coisa, os próprio vizinho vai lá e pega.”
(109) “Aí eles passou direto.”
(110) “[...] só não matou porque duas pessoa tirou, mas por pouco não se matou um ao
outro[...]”
(111) “As coisa foi melhorano, começou a ter agente e tudo, a orientar a gente [...]”
(112) “Quando eles vai botar na entrevista ou denunciar, [...]”
(113) “Depois elas morrero [...]”
(114) “[...] eles fizeram a planta da casa, [...]”
(115) “Meu irmão disse que eles ganham muito vendeno cerveja ou outras coisa, [..]”
(feirenses filhos de
feirenses)
TOTAL 321/1310 24,5% 989/1310 75.5%
Variáveis
Saliência fônica
Concordância nominal no SN sujeito
Realização e posição do sujeito
Efeito de gatilho
Faixa etária do informante
Sexo do informante
Tipo de verbo
Forma do último SN sujeito que está antes do verbo
Input: 0.108 Log likelihood: -565.790 Significance: 0.018
Quadro 14 – Grupos selecionados como favorecedores da aplicação da regra de CV padrão na
192
fala popular de Feira de Santana-Ba
192
Como os informantes da zona rural, eram todos feirenses filhos de feirenses, realizou-se o
procedimento metodológico de amalgamar as variáveis diazonalidade e relação do informante com a
migração e não controlar a primeira dessas. No final deste capítulo, será mostrado o resultado de uma
rodada em que a variável diazonalidade foi considerada e ocorre que os resultados mantém-se idênticos,
diferindo apenas na seleção da variável diazonalidade; contudo, o nível de significância fica com um
valor mais alto ( .042 ).
277
pelos resultados expostos na Tabela 32, e, também, pela não seleção dessa variável nos
dados na norma culta investigados neste trabalho, julga-se pertinente considerar como
válida a contra-argumentação feita por Guy (op. cit). 193 Observa-se, pois, que as
variedades linguísticas mais diretamente afetadas pelo contato entre línguas na sócio-
história brasileira, bem como pelo processo de exclusão social a que estiveram
submetidos os seus usuários, são as que mais evidenciam uma atuação proeminente da
variável saliência fônica.
A propósito dessa questão, no que diz respeito ao português europeu
popular, convém destacar que os raros estudos variacionistas realizados com rigor
quantitativo também não ratificaram a importância da variável saliência fônica, tal
como ocorre nos dados da fala culta brasileira.
No trabalho de Monguilhott (2009, p. 150), que encontrou um percentual de
8.05% de ausência de marcas de números nos verbos com P6 com dados do PE, a
variável não foi selecionada, nem mesmo nos dados de informantes com apenas
escolarização de nível fundamental da zona não urbana. A autora constatou, inclusive,
que, com verbos com maior saliência (o fator 2c), ocorria a menor frequência de
aplicação da regra padrão. Assim, atribui esse resultado ao fato de ser nesse fator que se
abrigavam os dados de verbo cópula (é/são), tipo de verbo que desfavoreceria a
marcação explícita de plural, levando-a a afirmar: “O que parece ocorrer no PE é que
esses pares, embora salientes, não parecem apresentar estigma social.” Sobre isso,
ressalta-se que a delineação diferenciada que se verifica nos dados da norma popular
brasileira, quando comparada com a europeia, pode ser explicada pelo grande estigma
associado à variante zero no PB, ainda mais nos casos de maior percepção fônica, e que
esse estigma, por sua vez, associa-se ao fato de a variante zero ser mais típica da fala de
pessoas “marginalizadas” ao longo da sócio-história brasileira. Assim sendo, na
variação na fala popular (caminhando para aproximar-se mais da norma culta), com
processos de mudanças de “cima para baixo”, é natural que os falantes usem mais a
regra padrão em contextos mais salientes, justamente por serem mais perceptíveis no
nível fônico.
Rúbio (2012, p. 333), ao analisar dados do PE (Corpus de Referência do
Português Contemporâneo), com entrevistas coletadas por pesquisadores portugueses
em diversas regiões de Portugal, entre as décadas de 1980 e 1990, encontrou a
193
Esse ponto de vista foi retomado por Guy (2005) e ratificada, conforme se expôs na seção 5.5.2.6.
279
194
Os grupos selecionados estão estreitamente relacionados a questões estruturais, a exemplo da
posposição do sujeito.
195
Os exemplos elencados pelo autor são: “(84.a) mas isso, felizmente os incêndios do monte é no verão,
quando a gente vê o sol, não é, e quando há, quando há, às vezes uma pessoa se for a tempo apaga aquilo
depressa.”; “(84.b) : é. e depois há, há isto que, que parece-me, parece-me que tem importância, é que,
dantes a farmácia era a farmácia oficina, on[de], onde ha(...), havia... como sabem... agora os
medicamentos é quase tudo especializado e “(84.c) as picarias é um género de touros só para curiosos,
não, não é toureio, nem nada; largase um touro”.
196
A variável escolaridade não foi selecionada em seu estudo, revelando frequências de uso muito
próximas, em que se destaca o surpreendente índice de 91,2% de concordância padrão no fator sem
escolarização, seguido, respectivamente, de 93,5% e 94,4%, nos fatores ensino básico e ensino
secundário. Ao investigar a variação, excluindo os dados com o verbo ‘ser’, o percentual de uso da
variante não padrão foi ainda menor, 4,5%.
280
Como não foi controlada a variável tempo verbal, não foi possível testar
essa hipótese em termos quantitativos.
(123) “Tem uns aluno que não gosta do professor de português [...]” (SN sujeito com
concordância não padrão)
(124) “[...] as pernas véia vão cansando.” (SN sujeito com concordância não padrão)
282
(125) “Meus estudos lá foi ótimo.” (SN sujeito com concordância padrão)
(126) Eles cortaram, eu falei que ia botá no PROCON [...] (“Não se aplica”)
Por outro lado, o usuário da norma popular não faz mais a flexão de número
nas formas verbais nos casos de sujeito nulo, embora se esperasse uma elevação do uso
da flexão por razões funcionais. O valor neutro do peso relativo de .50 revela ser a
variante zero natural ao vernáculo do falante do português popular de Feira de Santana.
Os exemplos seguintes ilustram algumas das ocorrências desse fator encontradas no
corpus:
197
Foi feito o amalgamento em vista do baixo número de ocorrências no fator Sujeito anteposto ao verbo
com uma relativa, apenas encontraram-se dez, sendo nove com concordância não padrão. Quanto ao fator
Sujeito anteposto ao verbo com Sprep, foram encontradas trinta e duas ocorrências, sete com a variante
padrão e vinte e cinco com a não padrão.
198
Foi realizado o amalgamento dos dois fatores, tendo em vista que só foram levantadas oito
ocorrências com sujeito posposto separado por um ou mais constituintes, esses com uso categórico da
variante zero.
284
(127) “Hoje em dia é uns menino bom. Não me toma dinheiro. Quando eu vou lá, eles
que me dá, é assim!”
(128) “DOC: A questão da sua época... você acha que os seus eram mais rígidos?
INF: É, eram mais rígidos... a agente trabalhava na roça...”
Nota-se que, nos exemplos acima, há uma alta distinção fônica entre a
forma singular e a plural, ao contrário do que ocorre nos exemplos seguintes, que,
apesar de serem também com o verbo ‘ser’ anteposposto, não são de alta saliência:
199
Dessas, 19 ocorreram com o mesmo verbo e 8 com verbo diferente.
287
(150) “DOC: Uma coisa, assim, que você almeja, assim, qu’eles ALCANCE?
INF: Ah, eu quero qu’eles alcance tudo.”
200
Observou-se, ainda, que, algumas vezes, o documentador corrigia a sua própria fala, como no que se
vê no trecho: DOC: Aí veio as vãs, VIERAM as vãs... INF: Veio as vãs, foi. Foi melhorando. Nesses
casos, foi considerado que houve estímulo para a variante explícita, já que a última forma era com a
forma padrão.
288
norma do PB, a variante inovadora é a padrão, enquanto que, na norma culta, é a não
padrão.
Nesse sentido, na tabela seguinte, ainda que não seja possível observar um
padrão crescente com a implementação da concordância padrão, no sentido de partir da
faixa etária II em direção à faixa I, é plausível sustentar que a ausência das marcas de
número nas formas verbais é uma estratégia antiga na comunidade de fala popular, a
qual está sendo substituída pela variante com plural explícito. Os resultados sugerem,
pois, que, na fala popular feirense, há uma tendência a um processo de mudança em
curso, em direção ao uso das marcas de número nas formas verbais.
100,00% 99,4%
91,4% 93,4%
90,00%
80,00%
70,00%
60,00%
50,00% Norma culta
Norma popular
40,00%
30,00% 29,2% 28,9%
20,00%
16,6%
10,00%
0,00%
Faixa III Faixa II Faixa I
Gráfico 11 – Distribuição dos resultados pelas faixas etárias no uso da CV padrão na fala culta
e popular de Feira de Santana-Ba
1 0,88
0,8
0,56 0,56
0,6
0,4 0,4 Norma culta
0,4 0,31
Norma popular
0,2
0
Faixa III Faixa II Faixa I
Gráfico 12 – Atuação da faixa etária no uso da CV na fala culta e popular de Feira de Santana-
Ba (pesos relativos)
291
201
Na rodada com os dados conjuntamente, doze variáveis foram selecionadas, com exceção da Relação
do informante com a migração. As selecionadas confirmaram os resultados que já vêm sendo expostos
nesta tese, sendo os fatores favorecedores ao uso padrão da CV, em ordem decrescente de seleção das
variáveis: escolarização superior, formas verbais com maior saliência fônica, último constituinte do
SN sujeito com plural e com o pronome ‘eles (as), sujeito imediatamente anteposto, verbo ‘ser’
anteposto ao SN predicador, sexo feminino, concordância nominal padrão no SN sujeito, verbos
com concordância padrão na pergunta imediata do documentador, faixas etárias mais jovens,
sujeito com traço [+humano], zona urbana, verbos de ligação e intransitivo e indicação mórfica de
plural do SN sujeito. Log likelihood = -712.310 Significance = 0.049
292
1
0,43
0,52 0,55
0,5
0
Faixa III
Faixa II
Faixa I
Nesse sentido, saliente-se que a hipótese que foi levantada neste estudo (cf.
subseção 5.4.5) partia da premissa de que seriam os homens, na norma popular, que
favoreceriam o uso da variante padrão. E, para tanto, baseou-se em uma série de estudos
que se detiveram em dados da fala popular, a exemplo das pesquisas realizadas por
Bortoni-Ricardo (2011[1985]), Rodrigues (1987), Lucchesi e Araujo (2009), entre
202
outras , cujos resultados apontavam para um “maior ajuste” aos padrões
202
Praticamente, todas as pesquisas que investigaram dados das comunidades rurais afro-brasileiras
baianas, realizadas no âmbito Projeto Vertentes, constataram que as mulheres desfavoreciam as formas
prestigiadas, sendo esses resultados explicados pelo maior acesso à dinâmica urbana por parte dos
homens (LUCCHESI, BAXTER e RIBEIRO, 2009).
293
urbanos/cultos por parte dos homens. Contudo, a hipótese não foi comprovada, pois,
diante dos resultados fornecidos pelo programa estatístico, fica entendido que as
mulheres estão à frente no que concerne a implantação das marcas de concordância de
número na comunidade de fala de Feira de Santana. Saliente-se ainda que isto ocorre em
todas as subamostras da fala popular considerada, inclusive, no que concerne aos dados
da zona rural (a qual apresentou uma frequência geral da regra padrão com percentual
de 21.6%, sendo 19.3% entre os homens e 23.1% entre as mulheres).
A propósito disso, julga-se que o fato de Feira de Santana ser uma cidade
onde tanto os homens quanto as mulheres têm oportunidades de adquirir as formas
linguísticas prestigiadas – já que estão ambos atuando no mercado de trabalho,
buscando qualificar-se em termos de escolarização e interagindo em diversas redes
sociais –, explica a atuação das mulheres no favorecimento das regras prototípicas do
uso culto; ao contrário do que se dá em comunidades rurais ou em comunidades onde as
mulheres ficam mais circunscritas ao ambiente doméstico.
Dado o exposto, se for considerado que aspectos socioculturais têm
influência sobre a língua (como está na base dos pressupostos da Sociolinguística
Variacionista), não se pode negar que, da mesma forma, fatos da língua podem ser
utilizados como meio para se chegar a um melhor conhecimento de fenômenos sociais
(tal como está nos postulados da Sociologia da linguagem). Assim, a realidade
vislumbrada por meio dos resultados da variável Sexo do informante (bem como da
pesquisa de cunho sócio-histórico-demográfico realizada para este estudo e exposta no
Capítulo 3), permite afirmar que Feira de Santana vem, de fato, passando por profundas
alterações em sua dinâmica social, deixando para trás uma série de características que o
vinculavam a uma pequena cidade com característica eminentemente rurais. Portanto,
ainda que persita o hiato entre a fala culta e a popular na comunidade feirense, já se
constatam resultados linguísticos que a vinculam como próxima a cidades com
características urbanizadas/ modernizadas, onde as mulheres têm condições de adquirir
formas padrão, inclusive favorecendo mais do que os homens tal uso. Coaduna-se, pois,
os resultados da fala feirense com os resultados de estudos que focalizaram dados
urbanos coletados em cidades nos Estados Unidos e no Canadá (LABOV, 1975, 1981 e
CHAMBERS, 1985).
Sobre isso, cabe salientar que também foi investigado como estavam
correlacionadas as variáveis Sexo e Faixa etária, procurando-se examinar se, na norma
popular, eram as mulheres da faixa III que apresentavam comportamento linguístico
294
Totais
Padrão 123/425 29% 119/408 29% 79/477 17% 321/1310 25%
Não padrão 302/425 71% 289/408 71% 398/477 83% 989/1310 75%
203
Procedeu-se ao amalgamento, porque ocorreu uso categórico com os verbos ergativos: vinte e um
dados, todos com não CV padrão.
296
(155) “Os jovem não iam entrar no mundo das drogas e acho que todo mundo ia viver
feliz, né?”
204
Foram amalgamados os fatores Núcleo com marca de plural; Determinante ou modificador pré-
nominal com marca de plural; Quantificador Todos ou Todas; Último constituinte do SN com marca de
plural (SPrep ou Relativa).
205
Foram amalgamados os fatores último constituinte do SN sem marca de plural; Núcleo sem marca de
plural; Determinante ou modificador pré-nominal sem marca de plural e Quantificador Tudo.
298
Tabela 43– Atuação da variável Traço semântico do sujeito na fala popular feirense
Fatores Ocorrências/Total Percentual Peso Relativo
[+ humano] 269/1041 25.8% .52
[- humano] 52/267 19.5% .42
TOTAL 152/571 24.5% ---
Log likelihood: - 563.971 Significance: 0.059
206
Um fator é considerado estatisticamente relevante quando o nível de significância a ele associado é
menor ou igual a 0.050.
207
Salienta-se que nesta rodada todos os resultados para as outras variáveis mantiveram-se idênticos ao da
rodada selecionada como a mais relevante.
299
Tabela 32 – Distribuição geral dos resultados das variantes referentes à concordância verbal
com P6 pelos subtipos da norma popular feirense
208
Foram considerados filhos de migrantes informantes cujos pais fossem oriundos de cidades do interior
de outros estados ou de cidades menores na Bahia ou, até mesmo, da zona rural do município de Feira de
Santana.
300
209
Seus informantes têm menos chances de adquirir o uso culto.
301
210
Atente-se para as observações feitas sobre essas duas últimas variáveis expostas neste capítulo.
303
211
É imprescindível considerar as ressalvas expostas na seção 6.3.3.
212
Nas pesquisas variacionistas consultadas para a realização deste trabalho, o percentual de não
marcação de plural nas formas verbais com P6, na fala europeia, oscila de 3,5% a 8%.
304
Variáveis selecionadas
Dados conjuntos da fala feirense – Escolaridade
(normas culta e popular) – Saliência fônica
– Forma do último constituinte do SN
sujeito que está antes do verbo
– Realização e posição do sujeito
– Sexo
– Concordância nominal do sujeito
– Efeito de gatilho
– Faixa etária
– Caracterização semântica do SN sujeito
– Diazonalidade
– Tipo de verbo
– Indicação de plural no SN sujeito
Quadro 17 – Variáveis selecionadas no cômputo geral dos dados da fala feirense
Log likelihood: -712.310
Significance: 0.049
brasileira e europeia, distinção essa que fica ainda mais evidente quando se toma por
base dados de fala popular. A variável Realização e posição do sujeito mostra-se,
contudo, como um elo entre as diferentes amostras investigadas, o que leva a crer que o
contexto de posposição do sujeito atua universalmente como desfavorecedor da
aplicação da regra de concordância com marcas explícitas de plural. Por outro lado, se
essa verificação estrutural é importante, apenas uma análise em que se consideram
aspectos sócio-histórico-culturais permite escrutinar eficientemente os usos linguísticos
variáveis.
A propósito desses assuntos, nas considerações finais desta tese,
apresentadas seguidamente, retomam-se algumas das ideias centrais expostas neste
trabalho, quando se espera que sejam esclarecidas questões que se mantiveram dúbias,
ou ainda, que sejam ratificadas aspectos que precisam ser enfatizados.
306
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não por acaso, esta tese iniciou-se com uma discussão teórica acerca das
diferentes formas de investigar a variação e a mudança linguística. Assim foi feito por
que o axioma básico deste estudo foi o de que a interpretação acerca da realidade
sociolinguística brasileira deva estar alicerçada num sólido entendimento acerca das
condições sócio-históricas que encontrou a língua portuguesa no Brasil. Dessa forma,
no capítulo 1, foi traçado um percurso das diferentes abordagens sobre a variabilidade e
a mudança linguística e também foi exposto o modelo teórico-metodológico adotado
para interpretar a variação na concordância verbal na fala de Feira de Santana-Ba.
Nesse sentido, a tese filiou-se a um viés sócio-histórico, isto é, interpretou-
se o fenômeno da variação na concordância verbal de número de forma contextualizada,
procurando associá-la à formação da realidade sociolinguística brasileira. Para tanto, foi
imprescindível a consideração de fatos da sócio-história brasileira – expostos no
capítulo 2 –, a exemplo do contato entre línguas e dos tardios processos de urbanização
e de escolarização, atrelados a uma política de segregação social. Dando seguimento a
essa linha de raciocínio, foram abordados, no capítulo 3, resultados de estudos
historiográficos e demográficos que focalizaram o município de Feira de Santana.
No que tange à concordância verbal, fenômeno linguístico escolhido para
discutir a formação e a caracterização atual do português brasileiro, foi feito um
apanhado geral de estudos que focalizaram esse tema e verificou-se que os seus
resultados manifestam diferenças e semelhanças. De modo geral, as diferenças
sobressaem quando são cotejados resultados de pesquisas com dados de comunidades
de diferentes perfis, a exemplo do que ocorre com dados do PE ou da norma culta e
semicultas do PB contrastados com dados do português popular brasileiro. A respeito
disso, fica evidente que as variedades populares brasileiras são as que mais preservam
os efeitos do contato entre línguas na história sociolinguística do país. Por conseguinte,
avaliou-se que muitas das pesquisas já realizadas sobre a concordância verbal no PB
desconsideram a existência de duas histórias sociolinguísticas, realizando análises
empíricas de dados com diferentes perfis de maneira conjunta, o que, como
demonstrado no capítulo 6, obscurece o comportamento real da variação.
Assim, na análise empírica deste estudo, acolheu-se a visão da realidade
linguística brasileira como bipolarizada (cf. LUCCHESI, 1994, 2001, 2002, 2006),
analisando os dados separadamente, além da forma conjunta. Julga-se que esse
307
procedimento foi importantíssimo, pois, desse modo, foi possível investigar a existência
de possíveis entrecruzamentos na comunidade de fala feirense; tendo-se em conta que
esta comunidade pode ser tomada como representativa do que ocorre no geral das
comunidades urbanas brasileiras neste limiar do século XXI.
Os resultados indicam que, não obstante as contínuas mudanças ocorridas na
dinâmica social do Brasil a partir da década de 1940 do século passado, com um
aumento de estradas e com a democratização de acesso ao ensino e aos meios de
comunicação de massa – aspectos que aumentam a chance de aquisição de formas
linguísticas privilegiadas – ainda prevalece um hiato entre a fala do seguimento culto e a
do seguimento popular. Em outras palavras, ainda é possível depreender, nos padrões de
fala atuais do PB, uma variação diastrática no que tange ao uso da concordância verbal
de número, algo que reflete as condições de formação da variedade brasileira da língua
portuguesa. Nesse sentido, frisa-se a estreita relação entre baixa ou nula escolaridade e a
origem pobre dos informantes, algo que, por sua vez, vincula-se à exclusão a que, por
séculos, foi submetida uma parcela da população no Brasil; gerando a existência de duas
histórias sociolinguísticas brasileiras.
Na amostra do português culto de Feira de Santana, detectou-se uma
variação com índices que demonstram que o uso da variante zero na concordância
verbal com sujeitos de terceira pessoa do plural é um fenômeno marginal, pois só foi
detectado um índice de 6.1% dessa variante. Com essas ocorrências, foi realizada uma
minuciosa descrição, em que se verificou que a variante não padrão ocorre em contextos
pontuais e, mais ainda, naqueles amplamente apontados na literatura como
desfavorecedores da concordância, a exemplo de posposição de sujeitos, de separação
entre sujeito e verbo e de sujeitos compostos. Precisamente, 67,5% dos dados da
variante não padrão encontrados na fala culta concentram-se nesses contextos. Já, na
amostra do português popular, foi detectada uma realidade distinta, pois 75,5% das
ocorrências de formas verbais com sujeitos de terceira pessoa do plural foi com a
variante não padrão, essas ocorrendo em diferentes contextos, inclusive, nos mais
salientes.
Para além dessa distribuição diferenciada das frequências de uso das
variantes, os resultados fornecidos pelo programa estatístico (o GoldVarb X) também
revelou diferenças consideráveis no que concerne à seleção das variáveis nas duas
normas sob análise. Dentre essas, destacam-se os resultados da variável faixa etária,
selecionada como estatisticamente relevante nas duas subamostras pesquisadas, porém
308
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de 2000.
339
ANEXO B – Postais antigos “Feira de Santana: Dia da Famosa Feira. Estado da Bahia –
Brasil”
213
Destaca-se o “convívio rural e urbano”, vaqueiros passeando por entre prédios.
342
Fonte: http://digabahia.com.br/2012/03/feira-de-santana-cidade-bate-recorde-de-
homicidios-em-fevereiro/