Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Puc-Sp
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Puc-Sp
PUC-SP
MESTRADO EM DIREITO
São Paulo
2022
GISELE PEREIRA AGUIAR
MESTRADO EM DIREITO
São Paulo
2022
GISELE PEREIRA AGUIAR
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________
_____________________________________________________________
Professora Interna
_____________________________________________________________
Professor Externo
RESUMO
In this work, we study some elements of Natural Law in the thoughts of two scholars:
the Brazilian José Pedro Galvão de Sousa and the Portuguese Paulo Ferreira da
Cunha, in order to draw approximations or distances between their works. Therefore,
we will make a brief theoretical framework on the subject, and then an analysis of
some texts from each of the aforementioned philosophers, to then compare their
confluent and dissonant thoughts and thus offer our conclusions.
(Eduardo Galeano)
Sumário
Introdução ............................................................................................................... 11
3.1. Notas sobre Paulo Ferreira da Cunha e sua perspectiva culturalista do Direito
Natural ...................................................................................................................85
Conclusão.............................................................................................................. 121
10
Introdução
11
Com relação ao conteúdo da presente dissertação, apresentaremos algumas
considerações acerca da doutrina do Direito Natural e do Jusnaturalismo no Capitulo
I. Em seguida, exporemos algumas considerações com relação à doutrina do Direito
Natural, tanto de José Pedro Galvão de Sousa, Capítulo II, como de Paulo Ferreira
da Cunha, Capítulo III, para ao final verificarmos, em seus ensinamentos, quais
elementos são possíveis de aferição como convergentes ou divergentes, Capítulo
IV.
No quarto capítulo faremos um cotejo das principais ideias dos dois autores
supramencionados, relacionado às suas concepções de Direito Natural, com suas
similitudes e discordâncias em relação a este assunto. Tendo-se em vista que tanto
12
para José Pedro Galvão de Sousa como para Paulo Ferreira da Cunha o Direito
Natural é indispensável em qualquer construção de pensamento jurídico.
Ao final, retomaremos das principais ideias objetivando resgatar tudo que foi
aqui investigado.
13
Capítulo I – Considerações sobre o Direito Natural e o
Jusnaturalismo
1
LECLERCQ, Jacques. Do direito Natural à Sociologia. Coleção Doutrinas e Problemas. São Paulo:
Duas Cidades, 1987, p.105.
2
CUNHA, Paulo Ferreira da Direito natural e jusnaturalismo: teste a alguns conceitos difusos. In O
direito, Loures, a.133 n.2, Abr.-Jun.2001, p.303 e ss.
14
Natural é a coisa, uma coisa difícil de reconhecer, sem dúvida, mas é
o ser, e o jusnaturalismo, os diferentes jusnaturalismos, são
3
teorizações a propósito dessa entidade.
Ensina Eduardo Vera-Cruz Pinto que o Direito Natural não é a letra da lei,
mas está ligado ao justo e ao espírito dos princípios universais:
3
Idem, p.315.
4
VERA-CRUZ, Eduardo. Curso Livre de Ética e Filosofia do Direito. Lisboa: Principia, 2010, p.140.
5
BOBBIO, Norberto. Direito e estado no pensamento de Emanuel Kant. São Paulo: Mandarim, 2000,
p. 192.
6
CUNHA, Paulo Ferreira da op. Cit. p. 305.
15
íntegro. A existência futura de um dispositivo que se posicionasse contra essa lei
natural, a imposição de tal norma positiva poderia ser refutada pelo seu caráter
contrapositivo em relação a uma norma natural.
Daí, positivar parte do Direito Natural não significa aprisioná-lo na letra da lei,
mas, significa sim, reconhecer em parte o justo, e oferecer elementos para que o
intérprete possa, verificando um determinado direito positivado, carregar parte do
Direito Natural, dar voz à pluralidade desse Direito. Não se pode, portanto, reduzir o
Direito Natural ao texto legal. Nas palavras de Eduardo Vera-Cruz Pinto:
Mário Miranda Filho, historiando a origem das expressões, assevera que tanto
“Lei Natural” quanto “Direito Natural” proviriam da filosofia clássica grega,
identificando a primeira nos diálogos Timeu (83e) e Górgias (483e) de Platão. Já
quanto ao Direito Natural, ‘Physei Dikaion’, o autor menciona que a maior obra que
Platão dedicou ao estudo da questão da justiça foi “A República”. Também em
Aristóteles, na Ética à Nicômaco (v. 7, 1134b) se encontraria referência ao Direito
Natural, ‘Physei Dikaion’. Segundo ele, de Platão tais conceitos emigram para Roma
encontrando acolhida inicialmente no 3º livro da República de Cícero, e na obra
deste autor, por sua vez, Santo Agostinho encontraria o conceito de Lei Natural, tal
como o expressa na obra De Libero Arbítrio e Contra Fausto. 8
7
VERA-CRUZ, Eduardo. Op. Cit. p.140.
8
MIRANDA FILHO, Mário. A tradição filosófica dos direitos humanos e da tolerância. Revista
Interdisciplinar de Direitos Humanos – RIDH. Bauru, v. 1, p. 22, dez, 2013.
16
O Jusnaturalismo é diametralmente oposto ao Positivismo Jurídico, escola
cuja doutrina, de caráter monista, reconhece uma única modalidade de Direito,
classificada de Direito Positivo. Não há, portanto, possibilidade de conflito entre os
conceitos de Direito Natural e Direito Positivo.
4. lei que tem por principal objetivo a garantia de uma vida digna à pessoa
humana.
9
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. 4 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2003, p. 16.
17
1.2. O JUSNATURALISMO NA HISTÓRIA
A ideia de uma justiça natural, ditada pelo cosmos, que não separa a natureza
da justiça e do direito, já era disseminada antes do século VI a.C, na Grécia.
Homero, ao debater a necessidade dos homens, Hesíodo, que discorreu sobre o
trabalho, Sólon, o filósofo da igualdade, Sófocles, que defendeu a lei natural,
Heródoto, adepto da eficácia da norma, e Eurípides, que se aprofundou no conceito
de legalidade, são exemplos de pensadores gregos que se esforçaram para exprimir
noções de justiça.
18
verdade, dirá quando começaram. Deveria eu, assim, por temor de
10
tuas ordens, expor-me a merecer o castigo dos deuses?
10
SÓFOCLES. Édipo Rei. Antígona. Trad. Jean Melville da versão inglesa de Sir Richard Jebbs. São
Paulo: Martin Claret, 2005, p. 186.
11
JAEGER, Werner Wilhelm. Paideia: a formação do homem grego. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes,
2013, p. 328.
19
“A República ensina sobre política mediante o exame da
natureza da justiça, que parece ser o objetivo da vida política, e
mostrando ao mesmo tempo que a plena realização da justiça é
impossível na política. Dessa forma, A República circunscreve e, no
mesmo passo, define as limitações de política. Assim, a discussão
central de A República não é o prelúdio essencial, mas apenas o
prelúdio, a um estudo sobre o que pode ser alcançado através da
1213
ação política nas melhores circunstâncias.”
“Algo que salta aos olhos com a solução platônica pelo mito
de Er é a ausência de coercibilidade no sentido de retorquir
imediatamente o ato injusto praticado, ou seja, que necessariamente
exista uma organização para a punição do corpo daquele que é
injusto. Afinal, o mito de Er exige para a abstenção do ato injusto a
crença nas divindades e, ainda, a espera pela punição post-mortem.
14
Nenhuma delas serve de garantia para o ato justo em vida.”
12
Tradução de: “The Republic teaches about politics by examining the nature of justice, which
appears to be the goal of political life, and by showing that the full realization of justice is impossible in
politics. In this way the Republic circumscribes and defines the limitations of politics. Thus the central
discussion in the Republic is the essential prelude, but only the prelude, to a study of what can be
achieved through political action in the best circumstances”.
13
PANGLE, Thomas. “Interpretative essay”, in The Laws of Plato. Chicago: The University of Chicago
Press, 1988, p. 377. Apud GONZAGA, Alvaro de Azevedo. O Erro de Kelsen: O prisionero da caverna
platônica. Forense Universitária, 2020, p. 23 e 24.
14
GONZAGA, Alvaro de Azevedo. O Erro de Kelsen: O prisionero da caverna platônica. Forense
Universitária, Rio de Janeiro 2020, p. 23.
15
Idem, p. 23.
20
E segue dizendo:
16
Idem, p. 23.
17
GONZAGA, Alvaro de Azevedo. O Direito Natural de Platão na República e sua positivação nas
Leis. Tese de Doutorado, PUC-SP, 2010, p. 163.
18
Vide Ética a Nicômacos (1097 a-b).
21
de alteração no espaço e tempo – ou seja, a lei positiva. A constante observação do
justo natural, com a preocupação permanente de inferir equidade à vida em
sociedade, permite que a lei positiva seja corrigida de tempos em tempos. Tal
conceito aparece no Livro II da Retórica de Aristóteles, Capítulo 1: “se a lei escrita
dispõe contra nós, devemos apelar para a lei universal e insistir em sua maior
equidade e justiça”.19
19
Apud BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Noções de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone,
2006, p. 16.
20
Apud Idem, p. 16.
21
As escolas helenísticas são designadas pelo Helenismo, que, segundo os historiadores, vai desde
a morte de Alexandre Magno, em 323 a.C., ao fim da República Romana em 31 a.C., com a
ascensão de Augusto como Imperador.
22
É característica do período Helenístico a língua grega como koinè, ou seja, como dialeto oficial em
todo território conquistado por Alexandre, bem como da cultura grega – é sabido que, por meio de
Alexandre, discípulo de Aristóteles, a Grécia deveria cumprir um papel civilizatório de todo mundo
conhecido. Alexandria torna-se uma importante capital cultural da Antiguidade, até mesmo quando
Roma ascende ao supremo poder político, econômico e jurídico.
22
Segundo o Epicurismo, o homem muitas vezes é capaz de construir sua
própria felicidade. Essa escola ensina que o homem, por ser inteligente, consegue
facilmente penetrar na realidade e compreendê-la, bastando-se, pois, a si próprio
para chegar à felicidade e à paz. Como apenas a autonomia e a independência do
mundo exterior condicionam a felicidade, tal estado de plenitude não é dependente
de riquezas, do poder, das divindades ou das conquistas.
23
O Ceticismo por alguns também é considerada como um corrente.
24
Um dos seguidores e admiradores de Epicuro, Lucrécio eleva-o à divindade, como ele ensina no
livro V do De rerum Natura: “De fato, foi um Deus aquele que primeiro descobriu a regra de vida que
agora se chama sabedoria; aquele que pela arte de pensamento, libertando nossa vida de tão
grandes tempestades e de tão profundas trevas, soube assentá-la num lugar tão tranquilo e de luz
tão clara. [...] É caminhando nas suas pegadas que vou buscando e expondo por palavras as razões
das coisas”.
25
LAÉRCIO, Diógenes de. Vida de los Filosofos Ilustres. Coleção Clássicos de Grecia Y Roma. Livro
X. Madrid: Alianza Editorial, 2007. Ensina que Epicuro propõe como cânones da verdade a sensação,
a prénoção e afecção. A sensação, aísthesis, são critérios verdadeiros, com validade objetiva, para
julgar. Em suas Máximas Fundamentais, Epicuro ensina que a sem a sensação, não se pode julgar
nada, nem as sensações falsas – é o que guia a busca pelo agradável e a fuga pelo desagradável. A
sensação é sem palavra, é álogos, nada diz, apenas percebe ou sente, é pontual e instantânea,
passiva e receptiva.
23
Laércio,26 o prazer é conforme à natureza, a dor, é contrária a ela. Com o auxílio
dessas afecções, pode-se distinguir entre o que se deve buscar e o que se deve
evitar.
Com isso, a justiça não deve ser buscada por ela mesma, mas de maneira a
não causar sofrimento. O direito será a técnica para obter o prazer, proibindo atos
prejudiciais e permitindo os úteis.
Como diz Epicuro, não é possível viver feliz sem ser prudente, honesto e
justo, nem ser prudente, honesto e justo sem ser feliz. Assim, não existiria também
um Direito Natural caracterizado como justo ou não justo. Em vez disso, as leis, em
contradição com o Racionalismo estoico, não seriam mais do que consensos entre
os membros de uma sociedade.
26
Ibidem, p.96
27
VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo:
Martins Fontes, 2020, p. 522.
24
Após averiguar que o Direito Natural não reside nem no Ceticismo nem no
Epicurismo, é preciso estudar o Estoicismo para verificar os elementos
jusnaturalistas dessa escola.
28
BRUNSCHWIG, Jacques. Estudos e Exercícios de Filosofia Grega. São Paulo: Loyola, 2009.
25
propunham a identidade de natureza e Deus, criando assim uma teologia natural.
Diógenes de Laércio, sobre os estoicos29, escreve:
Essa sabedoria transparece nos fatos naturais como, por exemplo, o instinto
de conservação natural dos homens, a busca do útil, a fuga do nocivo e o interesse
da comunidade acima do interesse individual. Na perspectiva da Providência, porém,
não há mal na natureza: este encontra-se no homem insensato, que se insurge
contra a lei divina natural e se recusa a viver em conformidade com esta natureza. O
mal é a sem-razão, a desmedida, a loucura humana.
29
EPICURO. Carta a Menequeu. In MORAES, João Quartim. Epicuro: as luzes da ética. São Paulo:
Editora Moderna, 1998, p. 147.
30
VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo:
Martins Fontes, 2020, p. 472
26
Aristóteles, fazendo crer que se tratam todas da mesma noção. O Estoicismo ignora
a noção de direito e de uma natureza que lhe pudesse servir de fonte – a natureza
seria apenas aquela força que ora contém o mundo, ora aquela que os faz crescer
na terra.31
Desta forma, a justiça volta-se para a moral privada, e o fim dela não é mais a
ordem harmoniosa da pólis. Disso, ele conclui que não é mais da natureza exterior
que procede o Direito, mas sim da natureza do homem, de sua razão, e, assim, o
33
CÍCERO. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Nova Cultural, 1978, p. 224.
34
CÍCERO, De Officiis, I, 7, 20 e seguintes, apud VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento
Jurídico Moderno. 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2020, p. 489 e ss.
28
Direito, ou o justo, estará nas leis dispostas pelo espírito humano – no fim, em um
positivismo jurídico.
Justiniano previu o jus gentium e o jus civile; o primeiro está para o Direito
Nacional, assim como o segundo está para o Direito Positivo. O jus gentium é
ilimitado, e guiado pela naturalis ratio; já o jus civile está limitado a certa
comunidade, de acordo com suas instituições representativas. Universal e
permanente, o Direito Natural tem o poder de traçar um limite entre o bom e o mau
(bonum et aequum); por outro lado, o Direito Positivo, restrito a determinado tempo e
espaço, separa o útil economicamente daquilo que não tem utilidade.
35
GAIO, Digesto, I, 1, 9
36
KASER, Max. Método dos Jurisconsultos Romanos. In Romanitas, 1962, p. 107 e seguintes,
tradução não disponível em português, apud VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico
Moderno. 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2020, p. 502.
29
1.2.2. O Jusnaturalismo e a Idade Média
Não resta dúvida que na Idade Média verifica-se uma doutrina do Direito
Natural que se identificava com a lei revelada por Deus a Moisés, bem como com o
Evangelho. Foi obra, sobretudo, de Graciano (século XII) e de seus comentadores.
Michel Villey em comento sobre o Direito Natural na Idade Média, faz uma
distinção entre o período da Alta Idade Média, antes de São Tomás, e o período
posterior afirmando que:
37
GHISALBERTI, Alessandro. As Raízes Medievais do Pensamento Moderno. Trad. Sivar Hoeppner
Ferreira. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”, 2011. 2a Edição. p.
14 e seguintes: Afirma que a Idade Média representa uma continuidade do pensamento moderno.
Considera que a transcendência, necessária para explicar a razão da história e da experiência; e a
imortalidade, como aspiração da natureza humana; são convicções da inteligibilidade do mundo e da
possibilidade do homem elaborar um conhecimento rigoroso, qual seja: a ciência. Tal tema é
fortemente retomado em Marsílio Ficino e Pico della Mirandola no Renascimento, acolhendo a vida
humana, sem temer a morte, com a dignidade que lhe é devida como princípio da eternidade –
paradoxal realização da imortalidade dos mortais.
30
Na Alta Idade Média, a tendência do mundo clerical, único
detentor da cultura, foi de reconhecer como fonte do direito a Torá
bíblica e os Evangelhos: donde a interdição da usura e das guerras
particulares - a força dos juramentos, no direito feudal, e do contrato
consensual, a época da primeira expansão do comércio -, a sagração
dos reis, etc. O imperador e os reis, investidos por Deus do seu
poder, teriam o encargo de executar o direito bíblico,
complementando-o.
E em seguida:
38
VILLEY, Michel. Filosofia do Direito. Definições e fins do direito. Os meios do direito. São Paulo:
Martins Fontes, 3ª ed. 2019, p. 300.
31
Por sua vez, a Escolástica (método de ensino filosófico que dava grande valor
ao debate entre os alunos sob orientação do professor) situa-se no período da
estabilização da sociedade medieval, nos séculos XII e XIII.
39
Aurélio Agostinho viveu na região da atual Argélia, de 354 a 430 e é o mais importante dos Padres
da Igreja, representando o apogeu da Patrística – sua produção é imensa, e não sem certa
arbitrariedade que caracteriza as escolhas pontuadas em tão longo período, voltamo-nos a
possibilidade de uma doutrina do Direito, pois há referencias indiretas e não específicas de uma
doutrina jurídica.
40
Alguns consideram Santo Agostinho como o primeiro pensador medieval, já que sua obra, de
grande originalidade, influencia fortemente os rumos que tomaria o pensamento medieval em seus
primeiros séculos, outros o consideram como um pensador antigo, pela sua própria posição histórica.
Entendemos que Santo Agostinho pode ser visto como um pensador de transição, porque está
temporalmente na Idade Antiga e filosoficamente na Idade Média. Estudou muito e foi professor de
retórica e filosofia.
41
VILLEY, Michel. La Formation de La Pensée Juridique Moderne. Paris: Montchrestien 1975, p. 83-5
apud DE CICCO, Cláudio. História do Pensamento Jurídico e da Filosofia do Direito. 8 ed.. São
Paulo: Saraiva, 2017, p.130.
42
Santo Agostinho escreveu tal obra para refutar definitivamente a acusação movida pelos políticos
de então, de que a causa principal da decadência do Império Romano do Ocidente teria sido sua
adesão ao Cristianismo, quando Teodósio a tornou religião oficial do Estado.
32
própria, sua leis próprias, e esta cidade está destinada a ser eternamente vitoriosa
sobre a primeira – por esta razão merece todo o apego do coração dos homens.
Para Santo Agostinho a justiça é Deus e nada menos que Deus,43 para ele
toda justiça e todo direito residem na lei eterna de Deus. Verifica-se aqui que não há
lugar para a justiça interior. Considera que a justiça da Cidade dos Homens, que não
concede primeiro a Deus o respeito que lhe é devido, não pode ser senão injusta e
enquanto não se modele à fé cristã, assim continuará.44
Para o bispo de Hipona, a autoridade das leis da Cidade dos Homens estará
na obediência devida a César, máxima cristã de conhecimento comum: o cristão
deve obedecer às leis dos homens para sua própria salvação na ordem temporal.
Para ele, as leis da Cidade dos Homens servem à paz da cidade, protegem o povo
e, como não se esquece de lembrar, Deus está presente em todos os
acontecimentos, mesmo os mais misteriosos.
Para Santo Agostinho existem três tipos de Leis: a lei eterna, a lei natural e a
lei humana. Entende que a lei eterna é a lei em que reside a razão divina, e esta lei
deve refletir na lei natural, que por conseguinte é a lei esculpida em nossos corações
com nossa participação, como criaturas racionais na ordem do Universo. Por fim, a
lei humana deve basear-se no direito natural que é a manifestação da lei eterna.
43
AGOSTINHO, Aureliano. Contra Faustum, XXII, 27. São Paulo: Paulus, 1997.
44
Cidade de Deus, XIX, 21: “Onde não há justiça, não há direito. Não se deve chamar retos os
estabelecimentos injustos do homem”.
33
sentido mais intelectualista. Mas nada está no intelecto sem passar
45
pelos sentidos. Daí o realismo Tomista.
Deste modo, a fonte última de toda lei humana seria a própria lei divina que
se manifesta na lei natural. Entretanto, as possíveis imperfeições da lei humana
derivam não da lei eterna ou divina, mas sim das próprias imperfeições do homem.
Isso porque o homem é revestido de falibilidades que decorre da pobreza do
espírito humano.
Pelo exposto, fica claro que Santo Agostinho é um adepto do Direito Natural.46
Bases metafísicas não faltam: Deus impõe ordem sobre a natureza e a justiça é
obedecer a essa ordem e Deus, por conseguinte; estigmatiza “pecados contra a
natureza” .47
45
DE CICCO, Cláudio. História do Pensamento Jurídico e da Filosofia do Direito. 8 ed.. São Paulo:
Saraiva, 2017, p.122.
46
AGOSTINHO, Aureliano. Contra Faustum, XXII, 27. São Paulo: Paulus, 1997, p. 97-100.
47
De nuptiis, II, 20 a 35.
48
A Escolástica traz a doutrina das causas segundas: Deus, causa de tudo, abstém-se de agir
diretamente sobre tudo, atribuindo funcionamento automático às coisas, atribuindo suas leis naturais,
sua natureza. O movimento dos seres impele-os a determinado fim, à plenitude do Ser, sempre da
potência ao ato – dinâmico. Esse movimento obedece às leis naturais, à natureza, instintivamente.
Por obedecer a essas leis com liberdade, o homem distingue-se dos animais e pode, portanto,
afastar-se da ordem natural.
34
acordo com a tradição cristã, superando assim a Antiguidade greco-latina.49
Assevera ainda que a obra de São Tomás seria pouco original; contudo não era a
originalidade exatamente o mérito de São Tomás, além do que, nem era este o seu
intento.
Nessa esteira, São Tomás de Aquino cria uma doutrina que, assim como o
Jusnaturalismo à época, é teocêntrica, pois invoca a Deus para justificar o elemento
racional. Afirma que a lei natural é aquela fração da ordem imposta pela mente de
Deus, governador do Universo, que se acha presente na razão do Homem. Como
explica Cláudio De Cicco:
49
É com base em Platão, Aristóteles, no Estoicismo e em textos do Gênese que se justifica a ideia
de ordem no mundo, liga-se a hipótese do Direito Natural à hipótese teísta de que o mundo é obra de
um criador, obra inteligente, ordenada – em contrapartida a negação do Direito Natural é o ateísmo.
50
REALE, Giovanni. História da Filosofia. v. 2. São Paulo: Paulus, 2003, p. , 227.
51
DE CICCO, Cláudio. História do Pensamento Jurídico e da Filosofia do Direito. 8 ed.. São Paulo:
Saraiva, 2017, p.122.
35
São Tomás, assim como Santo Agostinho, distingue quatro tipos de Leis. A
Lex Aeterna, a Lex Naturalis e a Lex Humana, que seriam fundadas na Lex Divina.52
Por sua vez esclarece que a Divina Providência governa racionalmente o mundo, e
por isso, o próprio plano de Deus, como príncipe do Universo, tem a natureza de Lei,
razão pela qual esta deve ser eterna, isto é, pelo simples motivo de que a mente
divina nada concebe no tempo, pois é eterna - logo a lei que concebe é também
eterna. Em um sentido amplo, qualquer lei humana não é mais que o ditame da
razão prática existente no príncipe que governa a sociedade.
Assim, por que haveria de existir uma lei natural e por qual motivo o ser
humano deveria submeter-se a ela?53
São Tomás responde que, sendo a lei uma regra ou medida, ela pode
encontrar-se em um sujeito de dois modos: como princípio regulador e medidor ou
como coisa regulada e medida. Se tudo é submetido à lei eterna, todas elas
participam da lei eterna, recebendo desta uma inclinação a seus próprios atos e fins.
Como a criatura racional está mais submetida que todas as outras à providência
divina, provendo a si mesma e às outras, participa também da razão eterna, e essa
participação da lei eterna na criatura racional se denomina lei natural – por ela, como
insígnia da razão divina na alma, o homem pode distinguir o bem do mal. Todos os
atos da razão e da vontade derivarão da lei natural. As criaturas irracionais, não
participam da lei eterna segundo a razão, então, com relação a elas, pela própria
natureza da Lei, não se pode falar em Lei.
52
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, V. XII, Ia.e. , IIa.e., São Paulo: Loyola, 2004, quaestios 90 e
seguintes.
53
Equivocadamente algumas pessoas invocam o Livre Arbítrio como uma disposição natural e
absolutamente livre a fim de fundamentar qualquer volição humana, mesmo que não amparada pela
racionalidade nas escolhas. Cabe a necessidade de compreender que o Livre arbítrio consiste em
governar-se à luz divina, e, portanto, de maneira racional, o que sempre irá operar escolhas balizadas
na lei eterna e divina.
36
tornar possível a convivência entre os homens, que são animais naturalmente
sociais e políticos.
Por fim, Tomás de Aquino explica a necessidade de outra lei que sirva de
fundamento às demais, que é a lei divina. O homem, com efeito, é ordenado para
fins que superam a capacidade humana: o fim da bem-aventurança eterna, muito
superior às leis precedentes. Além disso, dada a volatilidade dos julgamentos
humanos, especialmente no que toca a singularidades e contingências, é necessária
a lei divina para que o homem saiba exatamente o que fazer por intermédio de uma
lei sem erros: o homem se limita a legislar sobre o que tem capacidade de julgar,
que são atos externos e visíveis, e a lei humana não pode reprimir ou comandar atos
interiores. Por fim, em virtude do bem comum, as leis humanas não podem reprimir
todas as más ações, logo a lei divina vem para proibir todos os pecados.
Ainda na Suma Teológica, Tomás de Aquino afirma que a Justiça pode ser
vista como uma virtude geral, por repercutir em todos os atos o alcance do bem
comum. A justiça deve orientar inclusive a lei que pauta todos os atos. A lei humana
deriva da lei natural por intermédio do legislador, que a transforma em direito posto e
reclama sua efetivação. Considera que o processo de derivação da lei humana pode
ocorrer: i) per conclusionem, quando a lei positiva deriva da natural por um processo
lógico necessário, semelhante a um silogismo; ii) per determinationem, quando o
Direito Natural comporta uma lei muito genérica e que necessita de uma orientação
concreta sobre como deve ser aplicada.54
Ainda sobre o Direito Natural, segundo Villey, tais regras não são
permanentes para São Tomás.56 Para ele a chave do Direito Natural está na
54
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Noções de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 2006,
p. 20.
55
VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. 2 ed. 3ª tiragem.. São Paulo:
Martins Fontes, 2020, p. 138.
56
Idem, p. 149: “Mas então, se a nossa busca do justo conforme a natureza não pode jamais resultar
em fórmulas fixas e precisas, para que serve o direito natural? De que serve essa ciência incerta?
Somente para isso, que já é muito: para nos dotar de diretrizes de caráter muito geral, flexíveis,
37
definição de natureza que os antigos tinham. Segundo Villey57 a natureza, para São
Tomás de Aquino e para Aristóteles também, além da causa material e das relações
de causalidade, tem uma forma comum por trás dela, qual seja, o Homem. Ao lado
das substâncias primeiras, os indivíduos, existem as substâncias segundas, os
Universais, também compreendidos pela Natureza. Esses Universais, o gênero e a
espécie de onde o indivíduo provém, são as causas formais.
Uma questão que pode surgir é se isso quer dizer que o Direito Natural exclui
necessariamente ou ameaça o Direito Positivo?
Acredita-se que não, pois para São Tomás o Direito Natural é pressuposto
ontológico do Direito Positivo: nada impede que do Direito Natural ecloda o Direito
Positivo, contudo, devido às lacunas deste, de sua dinâmica, o Estado-Juiz precisa
de regras precisas para julgar, para criar uma ordem concreta do direito e a
Natureza constitui fonte do julgamento justo. Se o homem é naturalmente um animal
social e político, naturalmente há Estado, cidades, comunidades políticas –
naturalmente há soberanias, chefes de Estado e de governo. Vivendo em
agrupamentos sociais, é certo que o homem deve obedecer às leis positivas como
corolário do Direito Natural: deve ser justa, logo há um direito de resistência possível
já que o injusto, ou as leis estabelecidas por um louco, carecem da autoridade que
participa do Direito Natural.
imprecisas e provisórias. Pode acontecer que na falta de algo melhor o juiz tenha que se contentar
com essas diretrizes incertas, ou seja, no silencia das leis positivas escritas”.
57
Idem, p 184 e seguintes.
38
considerado tarefa impossível. Eis a origem remota da separação
entre fé e razão que ganha força no mundo moderno, até chegar à
dualidade kantiana entre Gnoseologia e Ética, mundo do ser e do
dever ser, substrato do Positivismo Jurídico de Hans Kelsen no
século Passado.
Já o nominalismo nega a possibilidade de se conhecer a
essência do ser e só admitia o conhecimento arbitrário de nomes das
coisas ou nomen, por isso Nominalismo. Está na origem do
relativismo gnoseológico da filosofia liberal contemporânea e no
desprezo pelo conteúdo da proposição jurídica, prestando mais
58
atenção aos signos linguísticos.
Por essas considerações, é impossível dizer que a Idade Média é a Idade das
Trevas. Tratou-se de um período de síntese e conciliação dos postulados religiosos
com os postulados filosóficos gregos, que iniciaram diversas correntes de
pensamento no Medievo. Como afirma Miguel Reale, a Idade Média foi a Idade
Inicial em que brotaram variadas formas de organização e de pensamentos,59 e se
existem trevas nesse período, elas existem somente na ignorância dos próprios
preconceitos.
58
DE CICCO, Cláudio. História do Pensamento Jurídico e da Filosofia do Direito. 8 ed.. São Paulo:
Saraiva, 2017, p.122-123.
59
GONZAGA, Alvaro de Azevedo; ROQUE, Nathaly Campitelli, Formação Humanística para
Concursos. 2020, 5ª ed., p. 220. apud REALE, Miguel. Formação da Política Burguesa. Brasília: UNB,
1983. Reedição da obra de 1934. I Parte.
60
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.
XX.
39
Propondo a verificação em alguns aspectos da Modernidade, poderíamos
citar diversos nomes marcantes para a questão do Jusnaturalismo na Modernidade.
Como o fito deste tópico é delinear a racionalidade e sua relação, ou não, com o
jusnaturalismo na Idade Moderna optaremos por citar, dentro do referencial teórico
que optamos logo no inicio desse texto, alguns pensadores de destaque dessa
época que contribuirão para o esforço histórico aqui proposto.
Contextualizando o Direito Natural nessa nova fase, Michel Villey aponta que:
61
VILLEY, Michel. Filosofia do Direito. Definições e fins do direito. Os meios do direito. São Paulo:
Martins Fontes, 3ª ed. 2019, p. 302.
62
VILLEY, Michel. Filosofia do Direito. Definições e fins do direito. Os meios do direito. São Paulo:
Martins Fontes, 3ª ed. 2019, p. 307.
40
dos homens, quiseram conciliar a doutrina da escritura com a dos
63
Filósofos.
63
CHAUÍ, Marilena de Souza. Introdução à História da Filosofia. v. 2. São Paulo: da Religião Cristã.
São Paulo: UNESP, 2008, p 98.
64
CALVINO, Jean. A Instituição da Religião Cristã. São Paulo: UNESP, 2008, p 115-116.
65
VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo:
Martins Fontes, 2020, p. 359-60.
41
doutrina Calvinista, devendo ser conservado pelo legislador. Com o fim de conservar
os bens é lícito socorrer-se da força pública: a justiça exige que cada um guarde,
conserve o que é seu e que os magistrados mantenham essa exigência. Os fatos
devem ser mantidos tais e quais porque a Providência assim dispôs. Michel Villey,
citando um Sermão de Calvino em que este se dirige aos pobres menciona: “És um
sacrílego quando vais pilhar o bem alheio, quando vais arrancar da mão de Deus o
que ele reserva a um outro”.66
66
CALVINO, Jean. Sermon 136 sur Deutér. 23, apud VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento
Jurídico Moderno. Martins Fontes, 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2020, p. 360.
67
Cf. STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 148.
68
STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 147 e HOBBES, Thomas.
Leviatã, capítulo XVLI (438), São Paulo: Edipro, 2012, onde Hobbes diz que a matemática é a mãe de
toda a ciência da natureza.
69
Idem, p. 147.
42
filosofia tradicional, para Hobbes, comete um grande erro ao supor que o homem é
naturalmente social e político.
70
Apud Idem, p. 150.
71
Idem, p 151.
72
Idem, p 155.
73
Cf. HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Edipro, 2012. Capítulos XIV (92) e XXVII (197)
43
se, consoante a doutrina epicurista e spinozista da preservação no Ser, com toda a
ação tendendo à alguma paz. Essa é a raiz de toda a justiça.
Como afirma Leo Strauss76, para John Locke, a lei natural impõe deveres ao
homem, seja em estado de natureza, seja em estado de sociedade civil. Sendo
idêntica à lei da razão, ela pode naturalmente ser conhecida pelo intelecto sem o
auxílio de nenhuma lei positiva – o que lhe garante um status de ciência, e dela pode
ser derivado um código de conduta moral em que estaria contido, em sua
integralidade, a lei natural.
74
Conclusões com base em STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Lisboa: Edições 70, 2009, p.
160-3.
75
STRAUSS, Leo. Op. cit, p. 165-73.
76
Idem, p. 174 e seguintes.
44
revelação do Novo Testamento, mas com ele não se confunde. Locke acredita que
para os homens, Deus é o nosso Rei, e estamos submetidos à lei da razão; e
enquanto cristãos, Jesus, o Messias, é o nosso rei e estamos submetidos a ele pela
lei revelada no Evangelho77.
Assim, conclui Locke, que todo homem e, principalmente, todo cristão deve
estudar a lei natural.
A lei natural deve ter reconhecimento geral de Lei. Ora, isso não é possível
sem que se conheça um legislador e que esta lei especifique sanções, positivas ou
negativas; como se pode falar de Lei sem coerção? Dessa maneira, se promulgada
por Deus, a revelação que nos dá a conhecer, as sanções são necessariamente
transcendentais. Se forem transcendentais, a razão não poderia conhecê-las, e, com
isso, fechar-se-ia o ciclo aqui, pois são reveladas as sanções pelo Evangelho, de
maneira clara e evidente.78
Se assim é, pergunta Leo Strauss, como Locke concebe dois tratados sobre o
governo? Mais: como é considerado o pai do empirismo inglês? A resposta é que,
talvez, John Locke tenha encontrado obstáculos na demonstrabilidade da revelação
das escrituras e da conformidade da lei natural a elas, obstáculos práticos, que o
tenham forçado a tomar outro rumo.79
Para Locke, havia duas leis – a lei natural integral e a lei natural parcial.80 A
primeira assenta-se nas bases já escritas de suas ideias. A segunda, no argumento
de que se a maioria dos homens conhece a Revelação por meio somente do contato
com a tradição, Locke diz que o conhecimento que se tem de que esta revelação
veio efetivamente de Deus, nunca pode ser maior do que o conhecimento que se
77
LOCKE, John. The Reasonableness of Christianity, Lightining Source. apud STRAUSS, Leo. Direito
Natural e História. Lisboa: Edições 70, 2009.
78
LOCKE, John. The Reasonableness of Christianity, Lightining Source apud STRAUSS, Leo. Direito
Natural e História. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 139 e 147.
79
Idem, p. 177.
80
Idem, p. 183.
45
tem do acordo ou desacordo das ideias que um homem assim pode ter. Com isso,
Locke conclui que a certeza de uma vida após a morte – com todas as suas
recompensas que dão a natureza de Lei a uma lei natural - pertence ao domínio da
fé e não ao da razão natural dos homens. Assim, no sistema lockeano integral, na
visão dos homens deístas ou, porque não, de ateus, a distinção moral entre bem e
mau perde sua validade como lei. Como resolver essa aporia: a lei natural assenta-
se em bases transcendentais, mas para serem validas como lei não podem ter como
pressuposto de validade essa transcendentalidade?
Locke ensina que a felicidade pública está relacionada com o seu sistema
integral, o que resulta em ela poder ser aprovada por parte considerável da
humanidade, sem conhecerem realmente o verdadeiro fundamento da moral. Este é,
em sua visão cristã transcendental, a vontade de Deus, as recompensas ou
castigos, tais como o paraíso ou o inferno, ou também, julgamentos de consciência.
Essa felicidade pública garante, para Locke, o cumprimento de várias regras morais
e conduz o homem a uma felicidade prospera e, ainda que separadas de suas
verdadeiras bases, permanecem assentadas nelas, de qualquer modo. As
felicidades públicas, portanto, consistem nesses vínculos sociais, suas convenções e
práticas quotidianas que formam os costumes, enfim, tudo aquilo que caracteriza,
numa visão não-lockeana, o naturalmente social e político.81
Logo, na visão de Leo Strauss,82 a lei natural parcial, não sendo inteiramente
idêntica à lei integral, que é conforme o Novo Testamento. Este autor, limita-se a
descrever as condições que uma determinada sociedade política tem de cumprir
para ser civilizada, e não sendo necessário que se tenha, para tal desiderato, a
concepção cristã de Deus, parece que Locke se contradiz e não reconhece
nenhuma lei natural em sentido estrito – o que difere em muito das interpretações
usuais do Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. Isso se dá, ensina Leo Strauss,
devido a um caráter mais estratégico-político: Locke, no Tratado, dirige seus
argumentos ao senso comum de seu tempo.
81
Conclusões conforme: LOCKE, John. The Reasonableness of Christianity Lightining Source, p. 144:
“Antes de Jesus, essas Justas medidas do bom e do mau, que foram introduzidas pela necessidade
em toda parte, que foram prescritas pelas leis civis ou recomendadas pelos filósofos, permaneceram
assentes nas suas verdadeira bases. Eram vistas como vínculos da sociedades, e conveniências da
vida comum e práticas salutares.” Apud STRAUSS, Leo. Direito Natural e História. Lisboa: Edições
70, 2009, p. 184-185.
82
Idem, p 188-189.
46
Como a lei natural, como lei que é, requer uma sanção e esta pressupõe
alguém para aplicá-la, o estado de natureza lockeano é individualista e supõe que
cada homem é o executor das sanções que concernem à lei natural. Isso sob pena
de não ser lei, ou, em todo caso ser ineficaz. Assim, sendo lei, e existindo no estado
de natureza, esse estado é consequentemente um estado pacífico, de
autopreservação, mas de preocupação mútua onde o gênero humano busca a
preservação de todos também: o estado de natureza lockeano é um estado social,
mas sem soberano, no qual todos se ligam por vínculo da lei natural.
87
Idem, p. 216.
88
Apud BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. São Paulo: Editora Malheiros, 1997, 10ª ed. p. 86.
48
Aqui encontra-se um enfraquecimento do cosmopolitismo estoico e a
consequente retomada das antigas pólis em contraposição aos grandes Estados
Territoriais Modernos. É isso que Rousseau ensina.89
89
Cf. BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 471.
90
STRAUSS, Leo. Op. cit., p. 222-223.
91
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Primeiro Discurso In Discurso sobre os Fundamentos e a Origem da
Desigualdade entre os Homens. São Paulo: Martin Claret, 2005, p. 26-28.
92
Idem, Introdução.
49
amoral, demonstrando tanto quanto possível, conformidades com a lei natural. Diz
Rousseau:
Aqui há uma concordância com o que foi visto em Hobbes, ou seja, a lei
natural inspira-se em princípios anteriores à razão, em paixões. Mas, ao mesmo
tempo, distancia-se de Hobbes, em razão de diferenciar-se acerca de quais paixões.
Hobbes dizia que a paixão suprema era o medo da morte violenta. Para Rousseau,
o homem selvagem só teme a dor e a fome. Suas alegações são de que o homem
selvagem é muito próximo do animal – e o animal não sabe o que é morrer. Adquirir
o conhecimento da condição de mortal, o medo da morte, afastou em muito o
homem do estado de natureza nessa condição próxima a do animal.94 Mais próximo
do animal, do não-civilizado, mais alto fala a lei natural.
93
Idem, p.28.
94
Idem, p 43.
95
Idem, p.61.
50
tacitamente, mas com prejuízo de um estado gracioso, de uma liberdade que não
mais se pode retomar.
96
STRAUSS, Leo. Op. cit., p. 240.
97
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 422.
98
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2007.
51
O holandês Hugo Grócio (1583-1645)99 teve uma carreira movimentada. Sua
biografia mostra que foi estudante brilhante e teve grande atividade na vida pública:
jurista, advogado que trabalhou para a Companhia das Índias Holandesas, aos 24
anos procurador-geral da Holanda, protegido de Luís XII da França, e embaixador
nesse mesmo país, entre outros fatos notórios que não são foco nesse breve
estudo. É importante notar que recebeu educação protestante e humanista de peso,
tanto que chegou a formar-se teólogo, muitas de suas obras contém citações dos
Padres da Igreja e, algumas se voltam a esses temas, mas de maneira ecumênica (o
que lhe acarretou obras no Índex).
99
REALE, Giovanni. História da Filosofia – Do Humanismo a Descartes. v. 3. São Paulo: Paulus,
2003, p. 100.
100
GROCIO, Hugo. DGP. §§VI e VII., apud VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico
Moderno. 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2020, p. 35.
52
adviria o Direito Internacional). Afirma, ainda, que esse direito é ditado pela “razão,
sendo independente não só da vontade de Deus como também da sua própria
existência”.101 Tal doutrina abre caminho no campo da Moral, do Direito e da Política,
ao iluminar a cultura laica e antiteológica.
No começo da guerra dos trinta anos, era necessário que a Europa evitasse
novos conflitos para poder reiniciar um desenvolvimento social. Nesse contexto é
que surge o Tratado da Guerra e da Paz, no qual, Grócio concebe, sob a visão da
guerra, uma ciência do direito.
101
In BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Noções de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone,
2006, p. 20.
102
VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo:
Martins Fontes, 2020, p. 651.
53
eixo para o antropocentrismo característico dos humanistas: o justo está no homem,
sua fonte é o homem, na razão – é o que dita a reta razão, a boa razão.
Ainda segundo Grócio, o jus voluntarium pode ser proclamado pelo Estado,
mas também pela família e pela comunidade internacional (jus inter gentes, o Direito
que regula as relações entre os povos ou os Estados).
103
In BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Noções de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone,
2006, p. 20.
104
GROCIO, Hugo. DGP. §§VI e VII. P. 5, apud VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico
Moderno. 2 ed. 3ª tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2020, p. 653.
54
sua capacidade de se adaptar à perda gradual da influência da Igreja na sociedade.
Confiava-se na existência de uma razão humana universal, que trazia consigo um
código de ética que destacava o caráter único do indivíduo, independentemente do
tempo e espaço.
O juiz romano, exemplifica Michel Villey,106 não estaria submetido a uma regra
elaborada pela doutrina – a segurança jurídica que começa a ser exigências dos
negócios jurídicos, para fomentar o liberalismo e impulsionar a ascensão burguesa,
exige regras bem definidas, positivadas, racionais, contudo menos equitativas serão
as decisões. O direito tomará um viés axiomático.
105
VILLEY, Michel. VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. 2 ed. 3ª tiragem.
São Paulo: Martins Fontes, 2020, p. 657.
106
Idem, p. 659.
55
Michel Villey critica107 o método de Grócio, a que ele próprio chamava de a
posteriori, uma espécie de método experimental. Segundo Grócio, que reconheceria
as dificuldades de demonstrar a evidência de seus postulados mais básicos, o
consentimento e o assentimento dados pelos homens às regras desde tempos
longínquos, fariam com que fossem tidas como aceitas pela universalidade dos
homens. Parece que Grócio está altamente contaminando sua doutrina com uma
espécie de alienação, no melhor sentido marxista do termo, e instituindo uma
ideologia que disfarça um Positivismo que recebeu de diversas instituições,
legalizando o domínio burguês. O direito, como consequência, fica estranhamente
mesclado, o monarca encontra aporte ao absolutismo e o direito de resistência, com
base no contrato e na soberania, fica anulado. Tudo está resolvido e resolvido pelo
Racionalismo jurídico.
Com relação aos direitos subjetivos, Grócio ensina que são: “uma qualidade
da pessoa que a torna apta a possuir ou a realizar uma certa ação, sem que a moral
seja ofendida”.108
107
Idem, p. 664.
108
Apud Idem, p. 666.
109
Idem, p. 667.
110
Idem, p. 308.
56
Emmanuel Kant, por seu turno, oferece argumentos que atribuem peso à
racionalização do Jusnaturalismo. Para o filósofo, a prática moral não se baseia
apenas na experiência, mas fundamentalmente no que denomina ‘imperativo
categórico’: uma lei relativa à racionalidade universal humana que traduz o agir
conforme um ideal desejável e que, ao mesmo tempo, equivalha a uma máxima
universal. Em outras palavras, o imperativo categórico coloca a razão como o
princípio orientador dos limites da ação e da atitude humana. O imperativo
categórico é único, absoluto e não deriva da experiência. A ética traduz-se como o
compromisso de agir consoante o próprio preceito ético fundamental - motivado por
ele e para alcançá-lo, ou seja, menos para atingir um determinado objetivo e mais
para viver sob esse preceito. Viver sob uma determinada moral, cultivando-a como
um dever e assim torná-la válida como uma lei universal, imanente da natureza.
Deste modo, o direito posto torna-se passível de crítica com base em padrões
éticos de princípios reconhecidos pela razão humana.
111
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Noções de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 2006,
p. 42.
57
Em acréscimo, salienta-se a questão das ‘lacunas da lei’, casos típicos de
limitação da ação do legislador:
112
Idem, p. 42.
113
GLÜCK. Commentario alle Pandette. Milão, 1888, vol. 1, pp. 61-62. Apud BOBBIO, Norberto.
Idem, p. 21.
114
Idem, p. 21-22.
58
Para tanto, nos tópicos a seguir, buscaremos verificar como o Jusnaturalismo
foi fortalecido, ou ressignificado, em algumas perspectivas, e como o próprio
Positivismo Jurídico passou por remodelações com inserções de elementos
necessários para aprimorar uma Teoria do Direito.
59
Capítulo II – O Direito Natural na concepção de José Pedro Galvão
de Sousa
Tal obra contempla sua posição mais assente sobre o tema. É por isso que,
mesmo tendo acessado bibliografia mais ampla sobre o assunto, focaremos nossa
investigação em apontar os principais aspectos dessa obra para que possamos
cotejá-la com o pensamento de Paulo Ferreira da Cunha. Como o próprio autor
115
Nascido em 6 de janeiro de 1912 em São Paulo. Lecionou em diversas Faculdades, na Pontifícia
Universidade Católica de Campinas, na Faculdade de Filosofia e Letras de São Bento, na Faculdade
de Direito do Largo de São Francisco (Universidade de São Paulo), na Faculdade de Comunicação
Social "Casper Líbero" da qual foi diretor, na Faculdade de Direito da UNESP e na Faculdade de
Direito de São Bernardo do Campo. Mas fez história na Faculdade Paulista de Direito (atualmente
incorporada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), da qual foi um de seus fundadores em
8 de janeiro de 1946, tendo sido vice-diretor e vice-reitor.
Foi professor visitante de Filosofia Política da Faculté Libre de Philosophie Comparée, Paris. Fundou
o Centro de Estudos de Direito Natural, que hoje leva o seu nome.
Integrou como membro a Academia Paulista de Direito, o Instituto dos Advogados, o Instituto de
Direito Social, a Sociedade de Língua Portuguesa, a Academia Brasileira de Ciências Morais e
Políticas e a Real Academia de Jurisprudência y Legislación de Madrid, como acadêmico honorário.
Tem como referencial teórico em suas pesquisas, a doutrina de São Tomás de Aquino, sobretudo na
prima secundae, questão 93 a 98 da Suma Teológica, além de Francisco Elias de Tejada (El derecho
político; La Formacion de la Sociedad Politica natural); Eric Voegelin (The new science of politics;
História das ideias políticas de Erasmo a Nietzsche); Eugenio D’ors (Curso de Derecho Romano);
Alvaro D’ors (El Derecho Politico); Leonardo Coimbra (Metafísica e Direito Natural); Pedro da
Fonseca (Metafísica e Lógica). Com relação a referencias históricas, Bernardino Llorca (História de la
Iglesia Catolica), Marcel Bigne de la Villeneuve (Teoria del Estado).
Deixou, como discípulos Ricardo Henrique Dip (La Prudencia Juridica); Felix Adolfo Lamas (La Razon
Pratica y el Derecho Natural); Miguel Ayuso Torres (El Leviatan; La Agora y la Piramide Juridica).
Faleceu em 31 de maio de 1992 deixando um legado bibliográfico muito rico no campo da política e
da filosofia jurídica: O positivismo jurídico e o direito natural; Política e Teoria do Estado; Perspectivas
históricas e sociológicas do direito brasileiro; Introdução à história do direito político brasileiro;
Socialismo e corporativismo em face da Encíclica "Mater et Magistra"; Raízes históricas da crise
política brasileira; Capitalismo, socialismo e comunismo; A historicidade do direito e a elaboração
legislativa; Da representação política; A constituição e os valores da nacionalidade; O totalitarismo
nas origens da moderna Teoria do Estado (um estudo sobre o "Defensor Pacis" de Marsílio de
Pádua); O Estado tecnocrático; Iniciação à Teoria do Estado; Direito Natural, Direito Positivo e Estado
de Direito; Dicionário de Política (José Pedro Galvão de Sousa, Clóvis Lema Garcia e José Fraga
Teixeira de Carvalho); Para Conhecer e Viver as Verdades da Fé.
60
observa no prefácio: “Os estudos aqui reunidos foram escritos em diferentes épocas,
mas há entre eles uma conexão que dá unidade ao presente volume”.116
116
SOUSA, José Pedro Galvão de. Direito Natural, Direito Positivo e Estado de Direito. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1977, p. 2.
117
Idem, p. 12.
118
Idem, p. 2.
119
Idem, p. 6.
120
Tendo-se em vista que a obra foi publicada na década de 70 do século passado, trata-se de um
trabalho elaborado na década de 40 do mesmo século.
61
autor, “conserva a própria atualidade do tempo em que foi pela primeira vez
publicado”121. Trata-se do trabalho desenvolvido à época para o concurso de
Professor Catedrático de Filosofia do Direito da Faculdade de Direito do Largo São
Francisco.
121
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 5.
122
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 6.
123
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., pp. 8/9:
62
Três correntes de pensamento foram fundamentais, segundo o autor, para
determinar uma mudança de rota naquele direito natural tradicional da Grécia Antiga
até a Idade Média. Primeiro, o voluntarismo, doutrina que privilegia a vontade em
detrimento das disposições intelectuais do homem; segundo, o racionalismo, que
traz a razão como a única forma disponível ao homem para alcançar o pleno
conhecimento; e, por fim, o individualismo, conceito político que valoriza a autonomia
individual frente à noção de grupo ou sociedade.
124
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 14.
63
Seja o conhecido exemplo da obrigação de restituir uma
coisa dada em depósito. Trata-se de um preceito secundário da lei
natural, aplicação do princípio geral de justiça – dar a cada um o que
lhe pertence. Suponhamos que eu tenha recebido uma arma em
depósito. Se o depositante ou proprietário pedir a devolução dessa
125
arma para cometer um crime, é claro que eu não devo entregá-la.
126
125
Idem, p. 16.
126
Este clássico exemplo é extraído da obra de Platão “A Republica” em 331-e: “dar a cada um o que
lhe é devido, máxima que se afigura bem enunciada (...) devolver o que nos foi dado para guardar,
se, ao pedi-lo, o dono se encontra perturbado das idéias.”. p. 55
127
Também podemos nos perguntar se cabe ao legislador positivo sancionar quaisquer normas ou se
é seu dever seguir estritamente o que manda o direito natural. Para São Tomás de Aquino, vale a
segunda opção: o legislador deve, sim, respeitar as exigências da lei natural. Na visão tomista das
virtudes cardeais, a vontade do legislador deve ser guiada pela prudência e pela razão, para, assim,
encontrar o bem, interpretá-lo, e transformá-lo em lei. A prudência, portanto, é a grande virtude do
legislador, é a força que o faz agir de maneira moderada, incisiva e, por fim, justa.
128
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., pp. 19/20: o autor cita e analisa movimentos como: o
utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill; o positivismo de Augusto Comte; a teoria da
criminalidade dos italianos Ferri e Lombroso; o positivismo sociológico de Spencer; o caráter
psicológico do positivismo italiano; o teleologismo de Ihering; a teoria jurídica do Estado de Laband e
Jellinek; o direito positivo “intuitivo” de Gurvith; o modelo positivista jurídico-moral de Ripert; a
corrente de positivismo independente de Merkel, Berbohm, Austin e Edmon Picard; o formalismo
ceticista jurídico; e o positivismo marxista, com seu caráter econômico.
64
1 – o que reduz todo direito ao direito positivo, sem admitir nenhuma
espécie de direito natural (exemplo: o “direito puro” de Picard);
2 – o que atribui um valor intrínseco absoluto ao direito positivo,
negando-lhe um fundamento suprajurídico, mas admitindo também
um direito natural (exemplo: o positivismo de Rousseau);
3 – o que fundamenta o direito positivo em uma lei superior, de ordem
129
cósmica ou sociológica (exemplo: o sistema de Spencer).
O autor então discorre sobre a obra de Spencer, Pedro Lessa, Icilio Vanni,
Micelli e Leon Duguit, nomes que defendem a existência de uma norma superior ao
direito positivo e, portanto, representam a terceira possibilidade acima
fundamentada.
129
Idem, p. 22.
130
Idem, p. 26: “Corolários da fórmula de justiça são os diversos direitos subjetivos ou liberdades
individuais, como os direitos à integridade física, à liberdade de locomoção, à propriedade, de doar e
legar, de contratar livremente etc.”.
131
Idem, p. 27.
65
O autor se refere ao filósofo e sociólogo Icilio Vanni como o grande
representante do “positivismo crítico”, que deduz o fundamento do direito das
“condições de existência humana no estado de associação”; tal fundamento teria, no
entanto, um caráter social e psicológico, em detrimento de uma qualidade natural e
biológica. Os conceitos fundamentais do direito estariam, portanto, armazenados no
âmago da psicologia social. O filósofo também defende a ligação do direito a uma
“ordem universal”, discorre a respeito de sua constituição histórica e conduz uma
investigação ética de seus preceitos racionais. Galvão de Sousa, com base nesse
ponto, faz uma colocação pertinente:
“Ora, afirmar que o direito depende da ordem universal; que ele se funda
nas condições de existência do homem no estado associativo e que, por
sua vez, esse estado é natural ao homem; enfim, que há uma natureza
humana específica em função da qual devemos procurar a valutazione
ética do direito – tudo isso não é reconhecer a existência de um
132
fundamento objetivo e natural da ordem jurídica?”.
Galvão de Sousa, enfim, cita Léon Duguit, que manifesta uma ideia
semelhante de direito natural, também fundamentada em uma base psicossocial. O
autor exemplifica com os conceitos de justo e injusto, que aparecem como uma
constante na natureza humana de forma extremamente variável, apesar de
manterem um caráter permanente de proporção e igualdade. Duguit pode ser
comparado a Cícero quando discorre sobre os fundamentos do Direito, apesar de
seu posto revolucionário na ciência jurídica. Ambos defendem a permanência da
norma do direito em seu princípio, com infinitas possibilidades de mudanças em
suas aplicações. Tal constatação está presente primordialmente na consciência do
132
Idem, p. 31.
133
Idem, p. 34.
66
ser humano, e indubitavelmente resulta do direito natural, ou seja, é própria de todo
e qualquer indivíduo desde o seu nascimento. O autor aponta, aqui, uma contradição
na obra de Duguit: apesar de desprezar o direito natural, o filósofo defende a
necessidade de uma sociedade para a vida do homem e, portanto, sua
inevitabilidade de agir conforme tal princípio “tirado dele mesmo, de sua dupla
natureza individual e social”. O caráter social do homem é o que determina a regra
de direito, ou seja, para o homem se manter vivo, ele necessariamente precisa estar
em uma sociedade e, para viver em sociedade, é primordial que aja de acordo com
as normas exigidas pelo bem-comum. Mais adiante, o autor aponta que
“posteriormente, Duguit explicou melhor a coexistência do sentimento de
solidariedade com outro sentimento que se acha na origem do estado de
consciência criador da regra de direito – o sentimento de justiça”134.
Por fim, Galvão de Sousa constata que Duguit faz uma confusão entre direito
ideal e direito natural ao rejeitar este último: “É pena que Léon Duguit não chegasse
a conhecer perfeitamente o objetivismo da concepção clássica de direito natural, de
que ele, por vezes, com algumas de suas próprias ideias, tanto se aproximou”.135 O
autor faz um alerta para a frustração provocada pelo positivismo na filosofia, ao
tentar, de forma inútil, substituir a natureza fundamental da realidade por uma
reunião de ciências particulares; tal frustração se estende à filosofia jurídica, com a
destituição do conceito de direito natural. Presta solidariedade, enfim, a Del Vecchio,
na seguinte citação:
134
Idem, p. 40.
135
Idem, p. 43.
136
Idem, p. 45.
67
negar o princípio absoluto da justiça. Ora, o direito ou é objeto da justiça, ou é
simples produto das flutuações do arbítrio legislativo”.137
Sem o direito natural, o legislador não tem motivo para buscar o bem-estar da
comunidade ou para impor o cumprimento de quaisquer normas. Por conta disso, é
comum testemunhar afirmações vindas dos próprios positivistas a respeito da
aceitação de um princípio essencial e constante, que se coloca acima da vontade
humana, e que serve como alicerce para a constituição do fundamento da ordem
jurídica.138
137
Idem, p. 46.
138
Tal como a Norma Fundamental de Hans Kelsen.
139
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., pp. 48/49.
68
movimentos do apetite sensível. (...) Eis a razão pela qual os
positivistas, que fundamentam suas doutrinas no bem útil, são
140
incapazes de construir uma filosofia do direito completa.
Mas, para se conhecer o direito natural tal como se formou através do longo
evolver das doutrinas que remonta a Aristóteles e aos romanos, bem como se
entender as distinções entre o bem e o mal, o justo e o injusto, é preciso conhecer
as suas bases metafísicas, e esse é o objeto da Segunda Parte da obra em
comento.
140
Idem, p. 51.
141
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 53: “O direito natural não é algo de desencarnado das
realidades terrenas, nem um direito meramente moral e sem valor jurídico, tal como ensinam
erradamente alguns, partindo aliás de um falso pressuposto: a separação entre a moral e o direito. /
Nos capítulos seguintes ver-se-á, primeiro, a unidade fundamental dessas duas ordens normativas
que regema atividade humana. Depois, serão considerados alguns aspectos do relacionamento entre
ambas, a nos mostrarem, por um lado, a ordem jurídica positiva derivando da lei natural e, por outro,
o direito natural inserindo-se no direito positivo”.
69
compreensão do direito natural. Para ele, o ser humano, “para viver como homem”,
isto é, conforme a sua natureza, deve obedecer a certas normas, que ele denomina
de lei natural. Essas normas não somente coexistem com a natureza, mas lhe
preexistem, na mente divina, pois a natureza humana é criada por Deus142. Tal
entendimento é, e sempre foi, o aspecto mais combatido do direito natural. As
correntes positivistas argumentam que essas leis são produto da razão humana,
sem intervenção divina. A fim de fundamentar sua posição, e contrapor-se aos
positivistas, o autor, em várias passagens procura reforçar seu entendimento. A
título de exemplo, citamos essa passagem:
Galvão de Sousa considera o ser humano muito diferente dos outros animais
porque, dotado de “uma débil centelha da sabedoria, do poder e do bem eternos”,
possui essência ou natureza racional. É essa razão que o leva a saber que deve
fazer o bem e evitar o mal. E chega a apoiar citação de Martyniak de que a
142
Idem, p. 56: “Tal ordenação da conduta humana é o fundamento último e a norma suprema da
moralidade dos atos humanos e de toda a ordem moral e jurídica. É a lei da natureza enquanto na
mente do Autor dessa natureza, o qual é o legislador supremo do universo. É a lei eterna, cuja
irradiação, no homem, chamamos de lei natural”.
143
Idem, p. 64.
144
Idem, p. 65.
145
Idem, p. 70.
70
tendência para a reprodução, no ser humano, “não é um instinto animal”. Também
apoia o entendimento dos romanos (citando Ulpiano), de que só os seres
inteligentes (ou seja, os seres humanos) podem ser sujeitos de direito, porque são
dotados de razão.
146
Idem, p. 69.
147
Idem, p. 81.
148
Idem, p. 70.
149
Comunicação apresentada ao Convegno di Studi sull’Opera di Giambattista Vico, Bari, 7-8 de
dezembro de 1975.
71
que entende ser o direito determinado exclusivamente pelos legisladores e os
tribunais dos diferentes países. Os argumentos são basicamente os mesmos já
expendidos na primeira parte do livro, acima analisados.150 Também repete os
argumentos contra Léon Duguit, com seu conceito de solidariedade; contra Icílio
Vanni, com sua “valoração ética”; contra Micelli, com sua consciência reguladora
comum a todos os homens.
150
Repete a passagem em que Cícero, “com as louçanias do seu estilo”, demonstra que se os
decretos dos chefes e as sentenças dos juízes constituíssem o direito, nada os impediria de alterar,
com suas deliberações, a natureza das coisas. Por que motivos não poderiam decidir que o que é
mau e pernicioso se considerasse bom e salutar?
151
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 75.
152
Idem, pp. 75/76: “Importa, pois, ter presente que: 1º) a natureza, quando aplicada esta noção ao
direito para daí se chegar à ideia de direito natural, é algo de concreto, vívido, realizado na história;
2º) o direito natural não é um paradigma ideal a servir de modelo ao direito positivo, mas um princípio
ordenador, um fundamento, uma diretriz”.
72
considerar o direito natural um direito ideal para servir de modelo às legislações
positivistas.153
153
Ibidem, p. 79: Para ele o direito positivo é uma “técnica de realização do justo” e o direito natural “é
expressão do justo em si” (...) “O que se deve procurar no direito natural não é um modelo para as
legislações e os regimes políticos (pois estes e aquelas dependem do condicionamento histórico de
cada povo), mas sim a razão do justo que deve impregnar todos os regimes e todas as leis. O direito
natural não é um direito ideal, mas um direito fundamental”.
154
Idem, p. 81: “Mais uma vez, a transcendência e a imanência do direito natural. Ele é
transcendente, enquanto contido na lei eterna; imanente, enquanto expressão da natureza humana, a
qual participa da lei eterna pela razão, que permite ao homem o conhecimento da ordem natural”.
73
No capítulo VI (O Direito Natural e as Fontes do Direito155), Galvão de Sousa
baseia esse trabalho afirmando que o tema “fontes do direito” passou por ampla
revisão, causada pelo “declínio do positivismo jurídico” e pelo “repúdio ao legalismo
formalista”, que haviam desfrutado de grande prestígio entre juristas do século
anterior156. O positivismo nega o direito natural, sustentando que o único direito
realmente existente é o direito positivo; o legalismo pretendia restringir o direito à lei
escrita.
155
Comunicação apresentada às Terceiras Jornadas de Direito Natural, de Santiago do Chile (21 a 26
de junho de 1977).
156
Observe-se que o autor está se referindo ao século XIX, pois o livro foi publicado em 1977.
157
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., pp. 87/88: “Efetivamente, é pelo direito, como expressão
de uma ordem instituída na sociedade, que se alcança a harmonização das liberdades, indispensável
para assegurar o convívio pacífico dos homens. Mas o que sobretudo importa é que a coexistência
humana seja realizada segundo os princípios da justiça. Do contrário, como diria Santo Agostinho,
não haveria nenhuma diferença entre uma sociedade bem ordenada e um agrupamento de
bandoleiros. Diremos hoje, de gangsters ou de terroristas”.
74
e peculiar à idade moderna, outras sociedades já estavam
politicamente organizadas e naturalmente tinham uma ordem jurídica
própria, da qual não podiam prescindir (...). O monismo jurídico, não
concebendo outro direito senão o estatal, levado ao extremo por
Kelsen na identificação do Estado com a ordem jurídica, implica um
univocismo que faz perder toda a riqueza de significações do conceito
158
de direito.
158
Idem, pp. 90/91.
159
Idem, p. 93.
75
Renascimento e a revolução protestante, com a nova mentalidade de se ver na lei o
produto da vontade do príncipe (absolutismo monárquico) ou do povo (absolutismo
democrático), reduzindo-se o direito à lei, donde o legalismo formalista e a
identificação positivista da ordem estatal com a ordem jurídica.
Galvão de Sousa não nega a importância da lei escrita, mas “cumpre não
atribuir à lei um poder mágico criador e transformador das coisas, (...) cavando-se
um abismo entre o direito formalmente elaborado e a vivência social, ou seja, entre
as fontes do direito no sentido técnico-jurídico e as fontes reais ou materiais”.160
160
Idem, p. 96.
161
Idem, p. 97.
76
do direito positivo faz com que todo e qualquer elemento que se mostre contrário ao
direito natural torne-se imediatamente injusto ou injurídico.
162
Idem, p. 100.
163
Artigo escrito para a Revista de Direito Civil, Imobiliário, Agrário e Empresarial, de São Paulo
(1977).
164
Tese contrária a essa pode ser verificada nas obras de Francois Guizot, História do Governo
Representativo na Europa; Jacque Heers, História da Idade Média; Joan Huizinga, o outono na Idade
Média; Jacques Le Goff, A Sociedade Medieval, para quem, o poder na Idade Média era distribuído
dentre as várias partes do chamado “corpo místico de Cristo” no aspecto temporal. Além, da Clássica
divisão entre autoridade espiritual e poder temporal presente na patrística e sobretudo na primeira
escolástica, reis e cortes duelavam pela representatividade dos extratos sociais existentes na
sociedade medieval. Isso significa dizer que o Rei medieval não apenas tinha limitações impostas
77
sucedeu o absolutismo democrático e o poder institucionalizado eliminou
gradativamente o poder pessoal. Galvão de Sousa nota que, por exemplo, na
França de Luiz XIV o rei não ousava tocar no direito civil, porque se tinha a
consciência bem clara de que a sociedade, pelo costume e pelas suas instituições,
gerava uma ordem jurídica própria, não devendo o Estado desconhecê-la, nem
muito menos absorvê-la. O mesmo ocorreu, na mesma época, na monarquia
federativa da Espanha e na Itália iluminista do século XVIII. Observa que:
pela autoridade espiritual do papa, senão também pelo conjunto das exigências impostas pela
sociedade medieval no aspecto corporativo. Por essa razão, o rei detinha funções militares, fiscais e
representativas do consenso social e espiritual, todavia, tais funções eram sopesadas pelo
extraordinário poder dos senhores feudais e do clero reunidos nas cortes (parlamentos medievais).
165
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 106.
166
Idem, p. 107.
78
entre súditos e o poder soberano, constituindo lei fundamental, no sentido de firmar
os princípios concernentes à estruturação do poder político e de garantir os direitos
dos cidadãos. Posteriormente, a Constituição passou a estabelecer também os
princípios fundamentais de toda a ordem social.
167
Idem, pp. 109/110.
79
que acarreta a transformação do direito civil, em termos de direitos subjetivos, em
direito público.168
168
No seu entender é a crise do direito civil, atribuindo-a à publicização do direito, ao individualismo
voluntarista e a uma ruptura com o direito histórico. Começa por comparar as concepções que tinham
do matrimônio os juristas romanos, que o viam como instituição, que transcendia o direito positivo e a
visão do individualismo, reduzindo o casamento a mero contrato. Da mesma maneira, outros ramos
do direito civil, como o direito das coisas, com a propriedade, e no direito das sucessões, com a
sucessão hereditária, tinham como pressupostos a constituição natural da família e o direito natural
da propriedade. O direito das obrigações está, no tocante à reparação do dano, informado pelo
princípio superior correspondente ao alterum non laedere dos romanos. O voluntarismo individualista
faz da vontade a criadora do direito, mediante a lei e o contrato. Para o positivismo jurídico o direito é
emanação da vontade e não decorrência de uma ordem subjetiva que transcende a vontade a ela se
impõe e a autonomia dos particulares vai sofrendo restrições progressivas e o direito público,
reduzido a direito do Estado, tende a absorver o direito privado.
169
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., pp. 115/116.
170
Idem, pp. 122/123.
80
O autor apela para que os legisladores deem a devida importância ao direito
civil, mas a valorização do direito civil só pode ser devidamente levada a efeito
mediante uma exata compreensão do direito natural, à luz de uma visão realista da
sociedade e do direito. E arremata:
171
Idem, p. 123.
172
Este capítulo é um desenvolvimento de discurso de abertura das Jornadas Brasileiras de Direito
Natural (São Paulo, 23 a 30 de setembro de 1977, tema: O Estado de direito).
173
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., pp. 126/127. Nesse sentido ver também, Jacques
Maritain, o Homem e o Estado, O Humanismo Integral; Guido Gonella, As bases na ordem social,
Ismael Quiles, La persona Humana.
174
Ou Law of the Land. Segundo Albert Von Dicey, The Law of the Constitution, Cap. II e … Van
Caennegen, Legisladores, Juizes e Professores. Para o sistema anglo saxônico, o fundamento do
81
impacto do absolutismo, encaminhando-se para a monarquia constitucional e
parlamentar, até hoje subsistente, deu ao sistema político da Grã-Bretanha uma
solidez contrastante com a instabilidade dos regimes adotados pelos povos
europeus. Criação original do povo inglês, numa época em que o direito estava
profundamente radicado na vivência histórica e não sofria o influxo de
abstracionismos ideológicos, tal foi o common law, até hoje assinalando de forma
bem característica o sistema jurídico anglo-saxônico.
direito não é político, mas experiencial, de modo que a terra e a propriedade constituem desde os
primórdios do Common Law o fundamento objetivo para o exercício dos direitos individuais. Tal noção
é bastante distinta da noção de Estado Direito, vez que nesse caso o direito é produto da deliberação
política dos parlamentos. Enquanto no Common Law o costume e o precedente formam as fontes
primárias do direito, na tradição romano-germânica o direito é produto da vontade política e reveste-
se de conteúdo prescritivo normativo.
175
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 132.
176
Assim como na Inglaterra, o Direito Norte Americano não parte da Construção moderna de Estado
Direito, segundo a tradição continental. De acordo com a jurisprudence norte americana, a defesa dos
direitos individuais pressupõe uma articulação entre a tradição clássica do direito constitucional, o
direito federal, os direitos estaduais e principalmente o Stare Decisis. Nesse sentido ver, James Bryce
The American Constitution.
82
federativo. As emendas constitucionais subsequentes foram acrescentando
liberdades e direitos não previstos anteriormente. Posteriormente veio o controle
jurisdicional da legislação e da administração. Essas inovações terminaram com o
espírito do common law e sob influência do individualismo de Locke, das
concepções de Montesquieu e dos iluministas, conduziram ao amplo termo “Estado
de direito liberal-burguês”. Mas aqui o jusnaturalismo foi mitigado pelo sentido
pragmático e pelo empirismo da nova sociedade, refletido nos seus guias políticos e
nos legisladores, voltados para objetivos práticos imediatos, sem perder de vista as
condições históricas da comunidade nacional em formação.
177
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., pp. 145/146.
83
instituições possam produzir seus efeitos ex opere operato e realizar
milagres. Assim, o Estado de direito não depende só do bom arranjo
constitucional. Isto é necessário, e necessário, também, é que haja
uma adaptação das instituições ao meio histórico. Mas é
indispensável que os homens, aos quais cabem as responsabilidades
do poder, tenham plena consciência do que significa o direito natural,
como fundamento da ordem jurídica positiva e princípio ordenador da
atividade do Estado na condução da sociedade à realização dos fins
humanos. É pela superação do positivismo jurídico e sem os
equívocos e ambiguidades do liberalismo, que se poderá chegar a um
Estado de direito, contra as opressões do totalitarismo e da
178
tecnocracia nos dias presentes.
178
Idem, pp. 150/151.
84
Capítulo III – O Direito Natural na concepção de Paulo Ferreira da
Cunha
179
Paulo Ferreira da Cunha exerce atualmente o cargo de Professor Titular de Direito da
Universidade do Porto além de ser Juiz do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal. É também
professor Associado da Laurentian University, Canadá e Professor Visitante da Universidade de São
Paulo (USP) e da Kyiv de Direito. Professor Honorário da Universidade Presbiteriana Mackenzie e
PhD tanto na Universidade de Paris II como na Universidade de Coimbra. Obteve duas PhD em
Direito: pela Universidade de Paris II (Jurisprudence, na seção de História do Direito) e pela
Universidade de Coimbra (Direito Constitucional, na secção de Saúde Pública).
Podemos destacar como especialidade o estudo do Direito Público, Direito Constitucional, mas em
especial Filosofia do Direito, Filosofia Política e Ciência Política.
Vencedor de diversos prêmios, dentre eles, o Prêmio Jabuti (2007), melhor livro de Direito;
Independência Português Historical Society Prize, menção honrosa, 2006. Além de ser Membro
Honorário do Instituto de Direito Constitucional e Cidadania no Brasil, e Acadêmico Perpétuo da
Academia Paulista de Letras Jurídicas.
É membro da Academia Europeia de Teoria do Direito, em Bruxelas; Centro de Estudo das Grandes
Ideias, Chicago; Centro Europeo di Studi su Mito e Simbolo, Messina; Equipe Internationale de
Philosophie Interdisciplinaire Pénale (Institut de Criminologie, Université Paris II); Instituto de Direito
Constitucional e Cidadania, Londrina, Associação Internacional de Direito Constitucional, da
Sociedade de Direito Natural, Nova York; Observatório Constitucional, São Paulo; Personne, culturas
et Droit, RéseauInternacional "Droits Fondamentaux" (repertório des Enseignants et Chercheurs
Francófonos dans le domaine des Droits Fondamentaux); Seção de Philosophie penale de l'Institut
Michel Villey derrame cultura la juridique et la philosophie du droit (Université Paris II); Institut de
Criminologie, nd EIIPP – Equipe Internationale de Philosophie Interdisciplinaire Pénale); Società
Internazionale per l'Unità delle Scienze, Génova; UK Association for Legal e Filosofia Social, Londres,
etc.
Autor de inúmeros artigos e textos jurídicos publicados em diversos meios.
85
contradições. Mesmo assim, o autor deixa claro, ao longo de sua produção
acadêmica, que a ânsia diante desse objeto de questionamentos não cessará.
180
CUNHA, Paulo Ferreira da. Princípios de Direito – Introdução à filosofia e Metodologia Jurídicas.
Colecção Resjurídica, 1993, p.38.
181
Idem, p. 32.
182
Idem, p. 30.
86
Inegável que Paulo Ferreira da Cunha afasta-se da ortodoxia jusnaturalista,
isso não significa que o autor torna-se um opositor do jusnaturalismo tornando-se um
positivista normativista. O tridimensionalista e culturalista Miguel Reale bem pontua
que não é preciso extremar para distanciar:
183
REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. 27. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 41.
184
REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. 1. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1988. p. 60.
87
nos parecem necessárias no estado atual dos estudos
epistemológicos. É dessa analise que vamos partir, para chegarmos à
distinção nítida entre o conceito de lei, que os físicos elaboram, e o
185
conceito de lei ou norma, que podem ter os juristas”.
Isso porque o Direito e as leis jurídicas não podem ser iguais às leis da física
por exemplo. É nesse tom que Reale constrói a ideia de que o Direito está no mundo
da Cultura e não da natureza. A fim de esclarecer mais:
Sobre o valor fonte do Direito, Reale nos ensina com relação ao homem:
185
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2002. p. 243.
186
REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. 27. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 28.
187
REALE, Miguel. Lições Preliminares do Direito. 27. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 29.
188
REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. 1. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1988. p. 160.
189
REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. 1. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1988. p. 162.
88
delineia-se como uma categoria histórica, ou seja, uma conquista da obra
civilizadora da espécie humana.
De tudo isso, certo é que não resta dúvida que Paulo Ferreira da Cunha é um
grande estudioso do Direito Natural, sendo um profundo estudioso do tema do
Jusnaturalismo, e por isso merece nossa atenção.
Cabe dizer que estas considerações não serão feitas a partir da ordem
cronológica das obras aqui selecionadas, pois ao observar-se o conjunto, não se
vislumbra uma linearidade de pensamentos, mas um “devir” (um ir e vir) de
questionamentos. Por conta disso, elaboramos um texto que visa a resgatar os
principais temas, ora mencionados, com expectativa de apresentar alguns desses
movimentos.
E é somente mais à frente, nessa obra, que o autor mostra de maneira clara a
relação e a distinção do Direito Natural, da Lei Natural e da Moral ao afirmar:
190
Idem, p. 18/19.
89
O Direito Natural não se confunde com a moral. Já a
chamada ‘lei natural’ pode integrar-se nessa categoria, mas essa não
é lei jurídica – antes constitui uma espécie de consciência moral
comum de todos os povos. (...) porque o direito natural não é moral –
é direito, e a lei natural não é direito, é moral. Há uma diversidade de
funções destas duas ordens normativas e uma interligação
191
profunda.
191
Idem, p. 32.
192
CUNHA, Paulo Ferreira da. Direitos Humanos – Jusnaturalismo e Jushumanismo: O desafio da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, Almedina, 2003, p. 39.
193
Idem, p. 39.
194
CUNHA, Paulo Ferreira da. Problemas do Direito Natural. Conferência no III Seminário
Internacional de Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte. Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo, 2002. Disponível em: [http://www.hottopos.com/videtur14/paulo.htm]. Acesso em:
27.10.2021.
90
contrário do que muitos julgam, o Direito Natural não é o arquétipo
inteligível do Direito, a Ideia de Direito, não é o Direito justo cuja
transposição ou directa aplicação prática garantiria a felicidade. O
Direito Natural é critério do Direito Positivo e seu limite máximo ou
mínimo – por isso pode ser identificado já com um conjunto de”
Princípios”, que as normas “depois” positivariam, adoptando a base
universal às particularidades do tempo e lugar. É uma forma algo
simplista de ver o problema, retratando-o muito à imagem e
semelhança do Direito positivo, mas pode valer como ponte de
195
acesso ao problema.
195
Idem.
196
CUNHA, Paulo Ferreira da. Direito natural e jusnaturalismo: teste a alguns conceitos difusos. In: O
direito, a.133 n. 2 (janeiro-março, 2001), E. I. – Editora Internacional Ltda. p. 320.
197
CUNHA, Paulo Ferreira da. Problemas do Direito Natural. Conferência no III Seminário
Internacional de Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte. Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo, 2002. Disponível em: [http://www.hottopos.com/videtur14/paulo.htm]. Acesso em:
27.10.2021.
91
a aspiração humana à Justiça nunca se deixará enclausurar no papel
das leis. E por isso é a Justiça (e o Direito que dela deriva e para ela
quer tender) ‘constante e perpétua vontade de atribuir a cada um o
que é seu’ – constans et perpetua voluntas ius suum cuique tribuendi.
Daí que o Direito Natural seja o grande inspirador e o grande julgador
198
do Direito positivo.
3) Existe Direito que não seja coercitivo, como em casos de direito tradicional
e Direito Internacional Público clássico.
Para dar mais robustez ao seu argumento, de que a lei pode ser injusta,
invoca, então, a figura de Antígona:
198
Idem.
199
Idem.
200
Idem.
92
“E lex iniusta non est lex, a lei injusta não é lei, como afirmou,
justissimamente, Tomás de Aquino”. Depois ilustra sua ideia de “projeto
cultural e espiritual do Direito”. Enumera os valiosos pensamentos: 1) A
justiça é a vontade constante e perpétua de atribuir a cada um o seu. 2) Os
preceitos do Direito são os seguintes: viver honestamente, não prejudicar
ninguém, atribuir a cada um o que é seu. 3) A jurisprudência é o
conhecimento das coisas divinas e humanas, o conhecimento do justo e do
injusto. Tais princípios, segundo o autor, deveriam ser vistos como filtro para
os “comportamentos sociais em uso, aqueles que poderiam ser
considerados o mínimo denominador comum da civilidade ética, e assim
201
aptos a passarem, estilizados, para o domínio do juridicamente imposto.
Fala agora sobre como o Direito é visto; de uma forma tripartida: 1) como
manifestação da justiça – seu princípio e seu fim. 2) encarado em si mesmo – a
atribuição do seu a seu dono. 3) como jurisprudência – para poder avaliar
corretamente aquilo que é justo ou injusto. Em seguida desenvolve uma tríade para
que seja, muito propriamente, anexada à maneira de como o Direito é vislumbrado.
É ela: 1) a Justiça (Iustitia). 2) o Seu (Suum). 3) a Pessoa (Persona). Dessa forma,
levando em conta esta essencial tríade, Paulo Ferreira da Cunha pensa que o modo
de se ver o Direito possa se aproximar mais do ideal de Justiça.
Defende, pois, que aqueles poucos “mais apegados ao ser e à verdade que
às aparências e às conveniências não consideraram nunca que tivesse
desaparecido simplesmente por haver passado de moda”.203 Por fim, admite o
201
CUNHA, Paulo Ferreira da. Problemas do Direito Natural. Conferência no III Seminário
Internacional de Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte. Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo, 2002. Disponível em: [http://www.hottopos.com/videtur14/paulo.htm]. Acesso em:
27.10.2021.
202
Idem.
203
Idem.
93
problema: “Sejamos claros. Sejamos sinceros: O Direito Natural não se pode provar.
(...) Voltamos à carga com as únicas armas que temos – que são introspecção,
sinceridade, recta intenção, tenaz busca da verdade, na qual acreditamos, embora
não nos proclamemos seus donos ou arúspices”.204
204
Idem.
205
Idem.
206
CUNHA, Paulo Ferreira da. Reflexões sobre o Direito Contemporâneo. Revista Páginas de
Filosofia, v. 1, n. 1. Universidade do Porto, jan-jul 2009. Disponível em:
[https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/PF/article/viewFile/865/958]. Acesso em:
24/09/2021.
94
jusnaturalismo não deve aceitar toda e qualquer perspectiva pluralista em sua
doutrina pela simples visão bipolar de oposição ao Jusnaturalismo.207
Nota que até os anos oitenta do século passado a dicotomia maior ainda
estava caracterizada pela oposição: jusnaturalismo versus juspositivismo. Depois
disso, surgem novas correntes de pensamento. O jusnaturalismo clássico se
desdobrará em vários novos fluxos. Também o positivismo segue nesse caminho,
apresentando análises, sobretudo, sociológicas. Desse positivismo sociológico ou
historicista, nasce o pensamento jurídico pós-moderno. Assim como o positivismo,
segundo o autor, respaldado em Michel Villey e Jacques Leclercq209, o
jusnaturalismo realista clássico também se aproximou da sociologia jurídica e esteve
em diálogo com a fenomenologia. Por vezes, como exemplifica com Percy Black210,
a conciliação entre as duas correntes antagônicas foi proposta, porém com
resultados infrutíferos.
207
Idem. “(...) de Stammler à fenomenologia, passando pela escola sudocidental alemã, se haviam
apontado outros caminhos, naturalmente muito ao arrepio do legalismo. A expressão jusnaturalismo
parece comportar assim um sentido latíssimo, em que se identifica com a rejeição do positivismo e do
monismo jurídicos. Por isso há também a tentação de com o jusnaturalismo identificar todas as
perspectivas pluralistas no Direito, especificamente nesta sede autognótica e onto-fenomenológica”.
208
Idem. Para alguns seria o retorno à ideia de uma dimensão transpositiva ou natural da juridicidade.
Aliás, ela nunca deixara de ser proclamada pelos jusnaturalistas de vários matizes, não apenas de
inspiração cristã (ou especificamente católica romana, como limitativamente proclamam, ainda hoje,
certos positivistas), mas de outras confissões, e até de raiz marxista.
209
LECLERCQ, Jacques. Du droit naturel à Ia sociologie, trad. brasileira, Do Direito Natural à
Sociologia, Livraria duas Cidades, São Paulo, s/d. apud CUNHA, Paulo Ferreira da. Reflexões sobre
o Direito Contemporâneo. Revista Páginas de Filosofia, v. 1, n. 1. Universidade do Porto, jan-jul 2009.
Disponível em: [https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/PF/article/viewFile/865/958].
Acesso em: 24.09.2021.
210
BLACK, Percy. Challenge to Natural Law and to Positive Law forever irresolvable?, in Vera Lex,
New York, vol. XI, n.º 1, p. 11. apud CUNHA, Paulo Ferreira da. Reflexões sobre o Direito
Contemporâneo. Revista Páginas de Filosofia, v. 1, n. 1. Universidade do Porto, jan-jul 2009.
Disponível em: [https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/PF/article/viewFile/865/958].
Acesso em: 26/10/2021.
95
No panorama que sobra, o autor enxerga o esquecimento do Direito Natural
Clássico e a persistência de um “positivismo puro e duro do legado napoleônico sob
o império da lei e sob a prática negadora de filosofias”.211
E observa:
211
CUNHA, Paulo Ferreira da. Reflexões sobre o Direito Contemporâneo. Revista Páginas de
Filosofia, v. 1, n. 1. Universidade do Porto, jan-jul 2009. Disponível em:
[https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/PF/article/viewFile/865/958]. Acesso em:
12.10.2021.
212
Idem.
213
CUNHA, Paulo Ferreira da. Filosofia do Direito – Primeira Síntese, Almedina, 2006.
214
Idem, p. 131.
96
automaticamente se pregar a desobediência vai uma enorme e quase
intransponível distância: recusar a lei só poderá fazer-se se daí não
advierem males maiores. (...) A injustiça da lei deve, desde logo,
traduzir-se na violação de algum dos três preceitos jurídicos,
características internas das normas jurídicas (viver rectamente, não
prejudicar ninguém, atribuir a cada um o que é seu). O homem
moderno encontra-se infelizmente cada vez mais desprovido de
meios técnicos e axiológicos capazes de servirem a um juízo sobre a
justiça das normas. A sua cultura degrada-se, o seu conhecimento do
mundo restringe-se, a sua normal capacidade de avaliação sem
paixão volve-se quase nula, o subjectivismo cresce. E assim é
deveras perigoso taxar de injusta uma norma sem a fazer passar pelo
215
crivo da profunda e plural crítica.
215
Idem, pp. 134/135.
216
Idem, p. 137.
217
Idem, pp. 137/138.
218
O nominalismo, ao qual o autor se refere, consiste na doutrina que se assenta na concepção de
que é inadmissível a existência do universal tanto no mundo das coisas como no pensamento. Para
tal corrente a universalidade só é encontrada como nome, como manifestação fonética.
219
CUNHA, Paulo Ferreira da. Princípios de Direito – Introdução à filosofia e Metodologia Jurídicas.
Colecção Resjurídica, 1993, p. 22.
97
Ou seja, São Tomás retoma os conceitos do Direito Natural, desde
Aristóteles, e coloca a necessidade de a sociedade ter regras, normas positivadas,
para seu bom funcionamento e ampliação das virtudes.
220
Como já observamos em VERA-CRUZ, Eduardo. Curso Livre de Ética e Filosofia do Direito,
Principia, 2010, p. 140.
221
O Realismo jurídico possui uma visão muito mais ligada ao fato ou a realidade social.
222
Idem, p. 48/49.
223
Idem. p. 49.
98
dizê-lo, mas a verdade é que o tipo que resulta da actual malha
legislativa é o de um servo do Estado gigante. Pagador, servidor,
submisso, todos os dias ferido na sua dignidade e atropelado nos
seus direitos naturais (e até positivos) por leis e actos da
administração que o lesam e perseguem como se qualquer cidadão
de um criminoso se tratasse. A lei é feita para o mau, sim, mas por
vezes exagera-se. Para ele e por causa dele – mas não desprezando
os bons, e tomando-os por maus. Enquanto isso, e enquanto a lei a
todos se destina, por entre as suas malhas, e a rir-se nas barbas das
autoridades, o bandido verdadeiro, o assassino, o ladrão, o violador,
escapa e até lhe pedem desculpa por cima, como vítima da
224
sociedade. Parece, assim, que os maus nunca são punidos.
Sobre a questão dos Direitos Humanos (questão esta que faz emergir, desde
sua origem, deleitosas discussões a respeito de sua base, se advinda do Direito
Natural, ou, se distinta em toda essência), Ferreira da Cunha se dedica ao assunto
no capítulo II do livro Direitos Humanos227, intitulado Jusnaturalismo e
224
Idem, p. 110.
225
CUNHA, Paulo Ferreira da. Problemas do Direito Natural. Conferência no III Seminário
Internacional de Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte. Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo, 2002. Disponível em: [http://www.hottopos.com/videtur14/paulo.htm]. Acesso em:
27.10.2021.
226
Idem.
227
CUNHA, Paulo Ferreira da. Jusnaturalismo e Jushumanismo. O desafio da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. In: Direitos Humanos. Almedina, 2003.
99
Jushumanismo. O desafio da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de
1789. Nele, o autor esclarece, mais uma vez, que sua apresentação é de cunho
didático, quase nada erudita, um convite ao diálogo com os tantos autores usados
para compor tal bibliografia. Neste artigo, ainda há uma inovação para caracterizar o
viés do pensamento explanado: o ‘jushumanismo’.
228
Idem, p. 38.
229
Idem, p. 39.
230
Idem, ibidem.
231
CUNHA, Paulo Ferreira da. O Direito, a Política e o Sagrado. Universidade do Porto, 2004: Nesse
artigo, além do Divino, o autor aborda questões importantes, como a dificuldade que se tem também
em definir o significado de sagrado, sua relação com a questão do Estado, além de fazer um resgate
histórico de alguns fatos e oferecer algumas reflexões dos papéis dos reis, dos juízes etc.
232
CUNHA, Paulo Ferreira da. Jusnaturalismo e Jushumanismo. O desafio da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. In: Direitos Humanos. Almedina, 2003. p. 43.
100
Como pioneiramente terá visto Francisco Puy, os próprios
Direitos do Homem são a linguagem hodierna do Direito Natural. Na
verdade, a única linguagem capaz de ser escutada ainda, a esse
propósito, no mundo atomizado e muito pouco filosófico dos nossos
233
dias.
Mais tarde faz questão de explicitar seu viés jusnaturalista sobre o ponto em
questão. Acredita que os Direitos do Homem são os Direitos Naturais
233
CUNHA, Paulo Ferreira da. CARVALHO, Ana Sofia. Da Tutela dos Direitos Fundamentais Em
Portugal, hoje. In Revista eletrônica Julgar, 2021. p. 23. Disponível em:
[file:///C:/Users/user/Downloads/20210921-JULGAR-Tutela-dos-Direitos-Fundamentais-em-Portugal-
Paulo-Ferreira-da-Cunha-Ana-Sofia-Carvalho-1%20(1).pdf]. Acesso em 02/12/2021.
234
CUNHA, Paulo Ferreira da. Jusnaturalismo e Jushumanismo. O desafio da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. In: Direitos Humanos. Almedina, 2003 p. 44.
101
pré-existir em algum tipo de latência, ou que, uma vez historicamente
alcançados, passam para um nível superior de juridicidade, do qual
235
não mais será legítimo verem-se apeados.
Esta corrente traz uma divinização da razão humana. “O Direito Natural passa
a ser o Direito que a Natureza humana postula com o auxílio da razão”.239 Por meio
dessa razão humana se formulariam leis e, dessa forma, se alcançaria a felicidade e
o bem coletivo. “Le but la société est le bonheur commun”.240 Entretanto, assevera
que, muito embora o jusracionalismo não se identificasse com o sistema vigente à
época – o despotismo esclarecido, que não levava em consideração o interesse do
povo – não demorou para que o pensamento, esse Direito Racionalista, servisse aos
déspotas para reafirmar o sistema. “Trata-se de leis gerais, abstractas, hipotéticas,
que não são mais do que a expressão coercitiva e formal deste espírito elitista. Este
é um Direito dos intelectuais, dos ‘professores’, um Direito que quer moldar a si
235
Idem, p. 40.
236
Idem, p. 49.
237
CUNHA, Paulo Ferreira da. Filosofia do Direito – Primeira Síntese, Almedina, 2006.
238
CUNHA, Paulo Ferreira da. Princípios de Direito – Introdução à filosofia e Metodologia Jurídicas.
Colecção Resjurídica, 1993.
239
Idem, p. 25.
240
Idem. “O Objetivo da Sociedade é a felicidade comum”
102
próprio, um Direito utópico”.241 E lembra Michel Villey: “O jusracionalismo tem três
quartos de positivismo incorporado”.242
241
CUNHA, Paulo Ferreira da. Princípios de Direito – Introdução à filosofia e Metodologia Jurídicas.
Colecção Resjurídica, 1993. p. 26.
242
Idem. VILLEY, Michel. apud CUNHA, Paulo Ferreira da.
243
CUNHA, Paulo Ferreira da. Do jusracionalismo luso-brasileiro e da unidade essencial do
jusnaturalismo – Reflexão problemática filosófico-histórica. Collatio 12 – CEMOrOc – Feusp / IJI –
Universidade do Porto, 2012. Disponível em: [http://www.hottopos.com/collat12/17-30FC.pdf]. Acesso
em: 28.10.2021.
244
No mesmo sentido: “Um dos dogmas aparentemente estabelecidos na doutrina do direito natural é
a de que (numa tese que entronca em Leo Strauss, e difundida sobretudo em círculos adeptos da
tríade aristotélico-romanístico-tomista) haveria um direito natural clássico e um direito natural
moderno, muito diversos e incompatíveis. Sempre foi uma dicotomia que nos intrigou, sobretudo
quando confrontado com a realidade da argumentação de fundo, sobretudo no séc. XVIII,
apresentado como o grande século de consumação da viragem, a qual teria começado, porém, muito
antes.” In CUNHA, Paulo Ferreira. As revistas do Cemoroc: liberdade científica e inspiração – em
comemoração do seu 25.º Aniversário e no seu 300.º Número. No. especial comemorativo do volume
300 e dos 25 anos das revistas do Cemoroc (1997-2022) Convenit Internacional 38 jan-abr 2022 p.
14. Disponível em [http://www.hottopos.com/convenit38/8PFC.pdf] Acesso em 10/12/2021.
245
No mesmo sentido: “O Direito Natural de Aristóteles não é, realmente, o dos Iluministas (a que
alguns acham dever chamar, mais que jusnaturalistas, “jusracionalistas”). Embora seja, sobretudo,
um artificialismo político atirar o Direito natural clássico contra o moderno e vice-versa, porque muito
têm ainda em comum.” In CUNHA, Paulo Ferreira. Encruzilhadas do Pensamento Jurídico na
Sociedade da Informação. Revista Opinião Jurídica, Fortaleza, ano 19, n. 30, p.196-209, jan./abr.
2021 p. 200. Disponível em
[https://periodicos.unichristus.edu.br/opiniaojuridica/article/view/3669/1271] Acesso em 03/12/2021.
246
CUNHA, Paulo Ferreira da. Do jusracionalismo luso-brasileiro e da unidade essencial do
jusnaturalismo – Reflexão problemática filosófico-histórica. Collatio 12 – CEMOrOc – Feusp / IJI –
Universidade do Porto, 2012. Disponível em: [http://www.hottopos.com/collat12/17-30FC.pdf]. Acesso
em: 28.10.2021.
103
Retoma o conceito já descrito sobre a dualidade jusnaturalista. Questiona se,
de fato, ele pode ser aceito de forma plácida. Propõe que a resposta, que talvez não
se revele, deva ser procurada pela observação, por toda busca em diversas
literaturas.
247
Idem. “Tomás Gonzaga vive tempo suficiente para passar da defesa (talvez algo postiça) do
absolutismo puro e duro no primeiro Tratado de Direito Natural editado em língua portuguesa, para,
talvez recordando em si o legado dos seus maiores, todos juristas, se tornar no paladino da
legalidade e dos direitos contra a bota opressiva do general governador, nas suas Cartas Chilenas. E
finalmente, de juiz a preso e degredado, decerto com (prudentes) ideais independentistas, acabará
adepto do credo revolucionário, enquanto certamente usufrui dos réditos da escravatura, pois se casa
com uma viúva que disso vivia, já nas costas do Índico, em Moçambique. As duas sucessivas partes
dos seus poemas a Marília espelham o trânsito da ilusão à desilusão: e não apenas em matéria
amorosa”.
248
Idem. “Melo Freire continua pombalista sem Pombal, o que é uma coerência incómoda. Pombal
fizera a economia dos códigos com as remissões da Lei da Boa Razão. Agora o período marino quer
rever as Ordenações... Mas aí é que Melo Freire aproveita para propor um Novo Código... Que não
irá avante, porque Ribeiro dos Santos lhe sai a caminho, invocando as velhas leis do Reino... Não se
sabe até que ponto só velhas leis... E alguns acabam por considerá-lo já um proto-liberal”.
249
Idem. “(...) esteve no seu tempo sem verdadeiramente ser apenas do seu tempo. Sem perder de
vista as fontes e as questões do momento, sempre teve a sua pátria na República das Letras, e,
como tal, não só pela desilusão e amargura das perseguições que lhe moveram, mas também por
real inclinação, prefere afinal Camões às Pandectas. Perante a ameaça de um Código confiscador
das liberdades e ao arrepio da tradição nacional, procura suster o perigo, não poupando o redator do
projeto, Melo Freire. Mas depois, passada a tempestade, mais que tudo almeja por remeter-se à vida
privada, na companhia de poucos amigos e dos sempre fiéis livros. O árcade Elpino Duriense
(pseudônimo árcade de Antônio Ribeiro) é um sábio de grande comedimento e aticismo”.
104
como já explanado. Segue dizendo que existiu um iluminismo luso-brasileiro sui
generis. Descreve como cada um deles distribuiu seus pensamentos ao longo de
suas produções intelectuais e acaba por concluir que, de alguma forma, tais
produções – e algumas de bastante valor ao Direito – se tornaram por vezes
confusas e questionadas. “É uma encruzilhada histórico-ideológica: até que ponto o
tradicionalismo e o velho liberalismo (não, obviamente, o neoliberalismo
neoconservador de hoje) têm pontos de contacto?”250, interroga, por exemplo, o
pensamento de Melo Freire, que no fim é considerado por alguns um proto-liberal. E
depois analisa atitudes e posturas dos quatro autores.
Passa então a analisar alguns mitos que envolvem o Direito Natural moderno.
Citando Christian Lazzeri252 aponta erros recorrentes quando se interpreta tal Direito.
1) Nem todos os jusnaturalistas modernos são contratualistas. Explica que a ruptura
com a ideia aristotélico-tomista não-contratual não foi completa. 2) Muitos dos
conceitos utilizados pelos jusnaturalistas modernos não são originais. Já foram
pensados e elaborados anteriormente. 3) Por mais que tais pensadores do Direito
Natural moderno tentem laicizar as ideias do poder de origem contratual entre
Homens, isso não implica na total independência de uma jurisdição divina. 4) “A
teorização de que a constituição do poder político (e da sociedade política, por
contraposição ao estado de natureza) é uma vantagem para os que virão a ser
governados e que assim a razão de ser do contrato social é a utilidade corresponde
250
Idem.
251
Idem.
252
Idem. LAZZERI, Christian. apud CUNHA, Paulo Ferreira da.
105
também a uma simplificação e uma generalização em que não podem caber todos
os jusnaturalistas”.253 Em seguida afirma:
253
CUNHA, Paulo Ferreira da. Do jusracionalismo luso-brasileiro e da unidade essencial do
jusnaturalismo – Reflexão problemática filosófico-histórica. Collatio 12 – CEMOrOc – Feusp / IJI –
Universidade do Porto, 2012. Disponível em: [http://www.hottopos.com/collat12/17-30FC.pdf]. Acesso
em: 28.10.2021.
254
Idem.
255
Idem.
256
CUNHA, Paulo Ferreira da. Direito Natural Positivo – Princípios, Valores e Direito Natural nas
Constituições e nos Códigos Civis Portugueses e Espanhóis. In: Estudos em Homenagem à
Professora Doutora Isabel de Magalhães Collaço. Almedina, 2004.
106
denominação pode ecoar, de modo hermenêutico, na Constituição portuguesa.
Lembra em nota257 que a primeira vez que se cogitou colocar valores em destaque
na Constituição, o foi feito pelo português Mário Bigotte Chorão, em 1975, na
Universidade de Saragoça.
Não se pode, pois, segundo o autor, falar unicamente pela história moderna.
Para análise profícua, se torna fundamental retomar ideias de outrora: “Perder de
vista o rasto clássico das ideias, limitá-las ao debate moderno, é ver apenas uma
parte da questão”.259 Ainda coloca a mesma preocupação em relação ao Direito
Natural: “E idêntico problema detectamos na crítica ao direito natural, por abstracto e
apriorístico, crítica que será merecida em sua versão moderna, mas já desprovida de
sentido na sua versão realista, e sobretudo nos seus esforços dialécticos”.260
257
Idem, p. 875.
258
Idem, p. 878.
259
Idem, p. 879.
260
Idem, ibidem.
107
Igualdade, e das duas recebendo inspiração, aqui a tríade é colocada
como que num crescendo histórico, da própria história da revolução
portuguesa: primeiro conquista-se a liberdade (está a falar-se,
evidentemente, da liberdade política), depois, assegura-se o suum
cuique autêntico da Justiça (mas ainda numa ideia de algum
titularismo decerto...), porque o coroar da sociedade que se pretende
construir está na dimensão solidária, do dar mais do que é o seu do
261
outro.
261
Idem, p. 880.
262
Idem, ibidem.
263
Idem, p. 881 – Los derechos Inherentes a la Dignidad de la Persona Humana. In: Persona y
Derecho. Pamplona, 1991.
264
Idem, p. 882.
265
Idem, p. 885.
266
Idem, p. 891.
108
veem-se, enquanto direito positivo, traços e elementos trans-positivos que podem
dialogar com os princípios jurídicos gerais, os valores e mesmo com o Direito Natural
ou os seus princípios, ainda que o jusnaturalismo interpretativo se fará mais
presente na Espanha. Finaliza apontando:
267
Sem querer incorrer em qualquer sincretismo, é possível verificar que o Brasil observa uma visão
muito mais juspositivista do que jusnaturalista. Não apenas pelas próprias interpretações com relação
aos princípios gerais do direito, mas também por um exemplo que temos na questão de interpretação
do Preâmbulo de nossa Constituição Federal, conforme julgamento de nossa corte máxima
constitucional, o Supremo Tribunal Federal (STF), que pacificou seu entendimento que o preâmbulo
não é norma constitucional, não podendo, portanto, prevalecer sobre texto expresso na Constituição
Federal, e nem poderá servir de paradigma comparativo para declaração de inconstitucionalidade,
porém, por traçar as diretrizes políticas, filosóficas e ideológicas da Constituição, será uma de suas
linhas mestras interpretativas. Nesse sentido: CICCO, Claudio De e GONZAGA, Alvaro de Azevedo.
Teoria Geral do Estado e Ciência Politica, Revista dos Tribunais, 8ª edição. 2020, p. 135 e ss.
268
Idem, p. 893.
269
Tal elaboração mais voltada a questionamentos é alvo de crítica de Jorge Miranda, professor
catedrático e presidente do conselho diretivo da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Em
apreciação da dissertação de doutoramento, apresentada por Paulo Ferreira da Cunha, Jorge
Miranda discorre sobre os problemas que o texto apresenta. Dentre eles aponta uma observação:
“(...) muito mais de cultura geral do que de especialização técnica; de cultura geral não só jurídica,
mas também histórica, filosófica, literária e até musical! (...) a ponto de, eventualmente, alguém
menos aberto à largueza de horizontes, poder vir a questionar onde deveria inserir-se o presente
doutoramento”. Jorge Miranda, In: Apreciação da Dissertação de Doutoramento do Mestre Paulo
Jorge Fonseca Ferreira da Cunha – Constituição, Direito e Utopia. Revista da Faculdade de Direito da
Universidade de Lisboa. LEX – Edições Jurídicas Ltda. n. 1, 1996.
109
Jushumanismo e que o Direito Natural jamais deve ser reduzido ao Direito Positivo
embora não exista entre eles um maniqueísmo ou uma prescindibilidade. Considera,
ainda, que o direito natural tende a visar uma maior universalidade se comparado ao
Direito Positivo. Inclusive, com relação ao Juspositivismo, considera tal corrente
pobre por estar aprisionada apenas à letra da lei.
110
Capítulo IV – Algumas aproximações e distanciamentos do
pensamento de José Pedro Galvão de Sousa e de Paulo Ferreira da
Cunha
270
CUNHA, Paulo Ferreira da. Princípios de Direito – Introdução à filosofia e Metodologia Jurídicas.
Colecção Resjurídica, 1993, p. 18.
111
ressentia até o que mais especificamente revelava o direito, os
julgamentos judiciais. Portanto, antes de Aristóteles, pode afirmar-se
271
que o Direito existia e não existia. ”
Ressalta que o Homem deve viver de acordo com a sua natureza, a partir de
certas normas que ele denomina: lei natural, cuja essência preexiste à natureza, pois
é criada por Deus.
Por seu turno, Ferreira da Cunha não compartilha da ideia de que o Direito
Natural tem sua fonte somente em princípios teológicos. Adota postura diversa, não
tão ortodoxa, quando de sua descoberta. Observa-se que:
271
Idem, p. 20.
272
SOUSA, José Pedro Galvão de. Direito Natural, Direito Positivo e Estado de Direito. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1977, p. 64.
273
Idem, p. 56.
274
Idem, p 70.
112
Moral. (...) Poderemos caracterizar o Direito Natural como algo
imanente ao Homem e às coisas da Natureza e não da razão. Não é
a vontade do ser, é, é uma realidade situada. Está na Natureza e é
independente da vontade do Homem. (...) tem um núcleo absoluto
imutável e universal. (...) São constituintes do Direito Natural um
conjunto de valores e ideias consideradas justas em cada sociedade,
sendo este independente das leis que regem essa mesma sociedade,
podendo não estar de acordo com essas leis, consequentemente
275
tidas por não justas.
275
CUNHA, Paulo Ferreira da. op. cit., pp.18/19.
276
CUNHA, Paulo Ferreira da. Jusnaturalismo e Jushumanismo: O desafio da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. In: Direitos Humanos. Almedina, 2003, p. 39.
277
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., Capítulo I.
278
Idem, p. 147.
279
CUNHA, Paulo Ferreira da. op. cit., p. 18.
113
O Direito Natural não se confunde com a moral. Já a
chamada ‘lei natural’ pode integrar-se nessa categoria, mas essa não
é lei jurídica – antes constitui uma espécie de consciência moral
comum de todos os povos. (...) porque o direito natural não é moral –
é direito, e a lei natural não é direito, é moral. Há uma diversidade de
funções destas duas ordens normativas e uma interligação
280
profunda.
280
Idem, p. 32.
281
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 49.
282
CUNHA, Paulo Ferreira da. op. cit., p. 30.
283
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit.
284
DEL VECCHIO, Giorgio apud SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 45.
114
Também nota que os fundamentos que regem O Direito Natural e o Direito
Positivo são bastante díspares, enquanto o primeiro baseia-se no “bem honesto”, o
positivismo encerra-se no “bem útil” e a grande crítica encontra-se no fato de que o
bem útil não pode ser visto como fundamento, mas tão somente como meio.285
Indaga, pois:
285
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 51.
286
Idem, pp. 126/127.
287
Idem, pp. 150/151.
288
CUNHA, Paulo Ferreira da. Problemas do Direito Natural. Conferência no III Seminário
Internacional de Cristianismo, Filosofia, Educação e Arte. Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo, 2002. Disponível em: [http://www.hottopos.com/videtur14/paulo.htm]. Acesso em:
27.10.2021.
115
expõe um método para provar a existência do Direito Natural), Ferreira da Cunha
admite uma falta de substância que comprove a teoria do Direito Natural: “Sejamos
claros. Sejamos sinceros: O Direito Natural não se pode provar. (...) Voltamos à
carga com as únicas armas que temos – que são introspecção, sinceridade, recta
intenção, tenaz busca da verdade, na qual acreditamos, embora não nos
proclamemos seus donos ou arúspices”.289 Este autor também insiste, em vários
momentos, no esquecimento do Direito Natural nos tempos atuais e lembra que o
que se vê é a persistência de um positivismo puro e duro negador da filosofia.290
289
Idem.
290
CUNHA, Paulo Ferreira da. Reflexões sobre o Direito Contemporâneo. Revista Páginas de
Filosofia, v. 1, n. 1. Universidade do Porto, jan.-jul. 2009. Disponível em:
[https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/PF/article/viewFile/865/958]. Acesso em:
12.10.2021.
291
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit.
292
CUNHA, Paulo Ferreira. Reflexões sobre o Direito Contemporâneo. Revista Páginas de Filosofia,
v. 1, n. 1. Universidade do Porto, jan-jul 2009. Disponível em:
[https://www.metodista.br/revistas/revistas-ims/index.php/PF/article/viewFile/865/958]. Acesso em:
12.10.2021.
293
CUNHA, Paulo Ferreira da. Filosofia do Direito – Primeira Síntese, Almedina, 2006.
116
uma antecipação do positivismo jurídico, preparando-o. Para o
positivismo jurídico o direito é emanação da vontade e não
decorrência de uma ordem subjetiva que transcende a vontade e a
294
ela se impõe.
Ferreira da Cunha cita Peces Barba para confirmar a mesma ideia, a de que
“todos os direitos só podem ser humanos”.298 Entretanto, diferentemente de Galvão
de Sousa, reflete para além dessa questão e, em nota299, vislumbra,
contemporaneamente, a necessidade de se pensar no problema do direito dos
animais, e também nos direitos não atinentes a homens nascidos e vivos300,
protodireitos e normas do que deles derivam. Apesar de reconhecer que o assunto
seja polêmico e dificílimo, afirma que o que existe hoje é um direito ao ambiente –
294
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 114.
295
Idem, p. 118.
296
Idem, p. 87.
297
Idem, p. 63.
298
CUNHA, Paulo Ferreira da. Princípios de Direito – Introdução à filosofia e Metodologia Jurídicas.
Colecção Resjurídica, 1993, p. 86.
299
Idem, nota 15, p. 95.
300
Presunção romana.
117
que se pressupõe um direito Humano ao ambiente – mas que margeia o assunto
pertinente aos animais e plantas.
301
SOUSA, José Pedro Galvão de. op. cit., p. 16.
302
CUNHA, Paulo Ferreira da. op. cit., p. 58.
303
CUNHA, Paulo Ferreira da. op. cit., nota 82, p. 78.
304
Shylock é o judeu agiota que foi muito humilhado por um rico mercador de Veneza, Antônio.
Antônio, em situação que lhe falta dinheiro, pede ajuda a Shylock. No contrato, Shylock estabelece
uma cláusula onde diz que caso o devedor Antônio não pagar o empréstimo no vencimento, o credor
(Shylock) terá o direito de retirar do corpo de Antônio, uma libra (453 gramas) de carne. Chega o dia
do pagamento e Antônio não tem o dinheiro que deve a Shylock e reconhece que “o doge (juiz de
Veneza) não pode impedir o curso da lei”. O juiz pede que o judeu volte atrás em sua intenção. A
resposta de Shylock resume o maior argumento dos positivistas, que só acreditam na lei: “Jurei por
nosso santo Sabá que exigiria a execução da cláusula penal de meu contrato. Se me recusardes, que
o dano que disso resultar recaia sobre a Constituição e as liberdades de vossa cidade!”. (Ou seja,
excesso de justiça, excesso de injustiça, summum ius, summa iniura.). Shylock não se comove. Quer
retirar a libra de carne, exigindo a execução do contrato. Diante da problemática apresentada no
texto, pensa-se: o que parece mais justo? O estrito cumprimento da lei ou aplicação de princípios de
Direito Natural? O advogado de Antônio diz ao judeu que ele vai receber o que lhe é devido, em
estrito cumprimento do contrato – e aí se configura, estranhamente, o exato cumprimento da lei. In: O
118
Em face de todo o exposto, notamos alguns pontos importantes a serem
considerados de modo a elaborar uma síntese desta análise.
Mercador de Veneza (William Shakespeare, Obra Completa: Rio de Janeiro, Nova Aguillar, 1995, v. II,
pp. 437/497).
305
No conto, o padre Brown investiga o desaparecimento do último lorde Glengyle, num remoto
castelo da Escócia. No castelo mora apenas um jardineiro simplório, pois o lorde não deixou
herdeiros. Depois de idas e vindas, de análises de pistas e de adoção e abandono de hipóteses,
resolvem desenterrar o lorde, e encontram o esqueleto está sem cabeça. Brown descobre, na horta
cuidada por Israel, um pedaço de canteiro sem hortaliça. Cavam no local e acham a cabeça do lorde.
Brown interpela a sós o jardineiro, que conta a sua história. Um dia foi levar um telegrama ao lorde,
no castelo. Glengyle, que acreditava que todos os homens eram desonestos, gratificou o mensageiro
com uma moeda de farthing. Dias depois recebeu a visita de Israel Gow, que informava ter recebido
do lorde uma moeda de uma libra e trazia o troco exato de 19 xelins, 11 pence e 3 farthing. Israel não
sabia, mas o lorde havia lançado um desafio à humanidade: se um dia encontrasse um homem
honesto, este teria todo o ouro de Glengyle. Assim, o lorde levou Israel para o castelo e instituiu-o seu
herdeiro, determinando que, por ocasião de sua morte, todo o ouro existente no castelo passaria ao
criado. Daí a explicação para todos os objetos estranhos encontrados, faltando pedaços, no quarto
ocupado pelo lorde: tudo o que faltava era exatamente o ouro que Israel, escrupulosamente, havia
retirado dos objetos, obedecendo exatamente ao que determinava lorde Glengyle. E a cabeça
separada do corpo? Aqui aparece o Direito Natural. Israel Gow tinha retirado da sepultura a cabeça
de lorde Glengyle a fim de extrair alguns dentes de ouro da caveira, recebendo justamente o que lhe
fora prometido. Se o investigador da Yard seguisse estritamente a lei, haveria de instaurar inquérito
contra Israel Gow por profanação de túmulos e, com exagero, furto ou desrespeito aos mortos. Mas o
padre Brown teve visão mais abrangente, levando em conta a personalidade do investigado (ou
melhor, a pessoa, um dos parâmetros do Direito, segundo Ferreira da Cunha), e as circunstâncias do
caso, concluindo: “Esta não é uma história de crime. É antes a história de uma estranha e distorcida
honestidade”. In: Conto “A honra de Israel Gow”, que consta do livro “Contos Fantásticos no labirinto
de Borges”. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2005, pp. 105/118. O autor é Gilbert Keith Chesterton.
119
compreensão de que o Direito Natural seja superior a toda natureza humana já
apresenta a preexistência primordial e sua soberania diante do Direito Positivo.
Por fim, ressalta-se que ambos evidenciam nos casos práticos cotidianos a
presença do Direito Natural e como ele se relaciona diretamente com a Justiça e a
Moral, enquanto o Direito Positivo falha nessa ligação, pois nem tudo o que rege a
Letra da Lei necessariamente tem precisão para decidir aquilo que é Justo. A nós
ficam guardadas grandes lições que despertaram a reflexão e expadiram nosso
universo.
120
Conclusão
Ao fim, pudemos constatar que, de fato, tanto José Pedro Galvão de Sousa
quanto Paulo Ferreira da Cunha colocam a matéria como desígnio supremo no
desenvolvimento de seus conceitos e teorias. Para ambos, o Direito só pode criar
corpo, se tornar legítimo, a partir do que reza o jusnaturalismo clássico, a corrente
filosófica que apresenta o Direito Natural.
121
Já diante dos textos selecionados de Paulo Ferreira da Cunha, conseguimos
evidenciar que o autor não descarta outras formas para a procedência do Direito
Natural. Na verdade, admite que o Direito Natural é sublime à natureza humana, que
basta se perceber sua soberania perante toda razão, independente de qual seja a
essência deste entendimento, para acolher sua existência e sua extrema
importância.
Vale ressaltar que os dois autores, em síntese, também acham que o Direito
Natural nunca poderá se abreviar ou se compor com as noções do Direito Positivo.
Não há compatibilidade, pois enquanto o primeiro vigora a partir de Princípios
Superiores ao Homem, o segundo é vigente somente pela letra da Lei normatizada,
positivada.
Embora Paulo Ferreira da Cunha enfatize que toda sua obra deva ser
apreciada como questionamentos filosóficos, e não como teorias doutrinárias ou
definitivas, pudemos notar opiniões bem tracejadas a respeito de alguns temas.
Quando o autor discorre sobre as várias correntes clássicas do estudo do Direito e
também das modernas, observamos que sua defesa está sempre direcionada ao
que articula o Direito Natural. Ferreira da Cunha consegue fazer um panorama
bastante útil e detalhado da “evolução” dos principais pensamentos do Direito. Nesta
122
tarefa, discorre sobre a Jusracionalismo, corrente que faz oposição direta ao
Realismo jurídico clássico tomista, que possui em seu cerne muitos elementos
positivistas e que, ainda, se mostra muito confusa por não definir claramente quais
são suas presunções. Do mesmo modo, fala sobre o Jushumanismo, viés filosófico
que dialoga diretamente com a questão dos Direitos Humanos, principalmente com
relação à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. O autor
compreende, afinal, que há, sim, pontos de encontro entre o Jusnaturalismo e o
Jushumanismo, mas que os juristas necessitam retomar bases do Direito Natural
para que os Direitos Humanos sejam de fato efetivos.
124
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