Aspectos Conceituais e Raízes Históricas Das Psicoterapias
Aspectos Conceituais e Raízes Históricas Das Psicoterapias
Aspectos Conceituais e Raízes Históricas Das Psicoterapias
e raízes históricas 1
das psicoterapias
Nuno Pereira Castanheira
Eugenio Horacio Grevet
Aristides Volpato Cordioli
Traçar um histórico claro das psicoterapias não Entre esses temas podemos encontrar: (1) a
é uma tarefa fácil. Há poucas publicações sobre natureza da alma ou da mente, incluindo pers-
o assunto, e muitas das existentes não apresen- pectivas substancialistas e não substancialistas,
tam uma linha temporal muito clara. É possível dualistas e monistas, etc.; (2) a natureza da re-
que essa quase inexistência de recursos biblio- lação entre a alma e/ou a mente e o corpo; (3)
gráficos seja devida não tanto à dificuldade do os fundamentos da diferenciação entre estados
tema e do levantamento de fontes historiográ- mentais – sensações, percepções, etc.; (4) a de-
ficas, mas ao fato de as abordagens filosófica e terminação e a análise das faculdades do ego
científica não terem sofrido uma separação cla- pensante, uma psicologia racional distinta de
ra até o final do século XIX. Antes disso, os es- uma psicologia empírica; (5) a natureza da re-
critos sobre a psique manifestam, em geral, al- lação dos diferentes estados mentais e sua in-
gum tipo de dependência de posicionamentos fluência sobre os estados físicos, dada a sua
ou terminologias metafísicas ou teológicas, que aparente capacidade de influenciar o compor-
seriam rejeitados de imediato pelos atuais pra- tamento; (6) a natureza e os fundamentos da
ticantes de uma psicologia orientada em âmbi- consciência; e (7) muitos outros tópicos que
to científico, como também privilegiam temáti- atravessam os campos da ontologia, da teolo-
cas marcadamente filosóficas. gia, da ética e da epistemologia.
Não deixa de ser significativo que, ainda desvalorizando a efetividade e a relevância his-
hoje, a reflexão filosófica acerca da psique re- tórica e conceitual que tiveram os idealizadores
tome muitos desses temas, justamente porque das diferentes técnicas psicoterapêuticas (ver
boa parte deles continua a habitar o espaço de Cap. 4).
indistinção entre filosofia e ciência. Prova dis- Cabe ressaltar também que, até o final do
so são as diferentes perspectivas que povoam o século XIX, quando começaram a surgir inter-
campo da filosofia da mente. Considerando a venções eficazes para as infecções, fazia pouca
relativa novidade da separação entre as abor- diferença quem estivesse a cargo do tratamen-
dagens filosóficas da psicologia e a abordagem to de uma pessoa doente. Todos tinham pou-
atualmente classificada como científica da psi- co a oferecer de concreto, diferindo apenas em
que, qualquer tentativa de falar de psicoterapia termos conceituais, independentemente da ra-
em momentos históricos prévios a esse predo- cionalidade ou irracionalidade dos argumen-
mínio da visão científica terá forçosamente que tos utilizados. Além disso, esses exemplos nun-
assumir a forma da analogia. ca consideram que tipo de sofrimento está sen-
Sabe-se que alguns autores, referindo-se a do aliviado, tornando vaga a pertinência de tais
momentos históricos mais distantes, costumam afirmações. Temos de convir que há enormes
sugerir que formas primitivas de psicoterapias diferenças entre tratar câncer terminal, pneu-
sempre existiram, fazendo alusões a curandei- monia, dor de dente, ataques de pânico, sofri-
ros ou xamãs como psicoterapeutas primor- mento existencial e questões da espiritualidade
diais.1 Tal tipo de analogia só é possível por- pessoal. Levando-se em conta que existe uma
que a empatia, o entendimento e a necessidade distância enorme entre esses exemplos e as in-
de darmos e recebermos auxílio são elementos tervenções psicoterapêuticas reais, podemos
fundamentais do gregarismo humano e do pro- concluir que eles servem apenas como elemen-
cesso civilizatório. Não obstante, dificilmente tos pictóricos, úteis para demonstrar que as re-
poderemos falar, nesses casos, de psicoterapia lações interpessoais são importantíssimas para
senão à custa da neutralização das especificida- dirimir o sofrimento físico e psíquico.5
des da visão de mundo de cada um desses mo- Dessa forma, para compreender como sur-
mentos históricos. giram as psicoterapias, não basta fazermos con-
Seguindo essa mesma linha de raciocínio jecturas históricas simplistas, que apenas criam
analógico, alguns autores veem um paralelo en- mitos sobre seu surgimento. Pelo contrário,
tre os efeitos benéficos sobre o sofrimento exis- acreditamos que o mais importante é entender
tencial de certos rituais religiosos ou manifes- o longo caminho epistemológico que nos per-
tações culturais e aquilo a que atualmente cha- mitiu abandonar explicações míticas para os fe-
maríamos de seus efeitos psicoterapêuticos.2 nômenos mentais e chegarmos a sistemas ex-
Na Grécia Antiga, a representação teatral tinha plicativos racionais e científicos.6 Devemos esse
como um de seus objetivos a produção de uma processo, que é por vezes chamado “do mito ao
reação emocional catártica grupal, entendida logos”, mais à filosofia do que à medicina. As-
como purificadora da alma.3 Outro exemplo sim, descrevê-lo permite contextualizar o leitor
ilustrativo é o sacramento da confissão da reli- conceitualmente, o que também facilita a com-
gião católica, no qual o pecador obtém alívio de preensão dos eventos históricos que circunda-
seu sofrimento ao confessar seus pecados a um ram o surgimento da psicanálise, a primeira
sacerdote consagrado, que o ajuda a atingir forma de psicoterapia estruturada, que, de for-
um padrão cristão de virtude.4 ma consistente, pode ser considerada o fato his-
Por fim, há os que preferem vincular o sur- tórico que dá início à profissão.
gimento das psicoterapias ao surgimento da
medicina. Esses autores advogam que, na an-
tiguidade, quando não havia muitos tratamen- RAÍZES FILOSÓFICAS DAS
tos eficazes, o efeito terapêutico era obtido pela PSICOTERAPIAS
qualidade da relação médico-paciente. Contu-
do, ao traçar uma associação direta entre a re- Conforme mencionado, antes de descrevermos
lação médico-paciente e as psicoterapias, esta- os fatos históricos específicos às psicoterapias,
mos superestimando os efeitos de fatores ines- precisamos entender o longo caminho que per-
pecíficos como causa de seu funcionamento e correu o conhecimento humano até o encontro
de uma visão racional do homem e de seu es- Sócrates. Entre esses pensadores, encontram-se
pírito. Esse conhecimento foi conquistado por Heráclito (535-475 a.C.), Anaxágoras (500-428
meio de um doloroso processo que intercalou a.C.), Demócrito (460-370 a.C.) e Epicuro
revoluções e estagnações e que custou a vida de (341-271 a.C.).
muitos de seus defensores. Na cultura ociden- Anaxágoras acreditava que a alma era cons-
tal, na qual estão inseridas as psicoterapias, esse tituída por ar, e Heráclito considerava que a
processo se iniciou na Grécia Antiga há apro- alma “[…] é a exalação a partir da qual tudo se
ximadamente 3 mil anos, perdurando até hoje. constitui […]”,8 permanecendo de vigília e par-
ticipando do processo cognitivo durante o so-
Antiguidade: os filósofos gregos no, quando os demais sentidos estão adorme-
Etimologicamente, a palavra “psique” tem ori- cidos. Já Epicuro acreditava que o universo fo-
gem no termo grego psukhe, que assumiu di- ra constituído pela ação das forças da natureza,
versos sentidos inter-relacionados, dependen- regidas pelo acaso. Essa ação não premeditada
do dos contextos em que era utilizado, mas que e randômica teria permitido à matéria assumir
podem ser sintetizados como: “sopro vital”, “vi- as formas conhecidas, inclusive a do homem.
da”, “espírito”, “princípio vital”, “alma”, “si mes- Refutava a ideia de existir algum motivo pre-
mo” e “pessoa”.7 determinado (teleológico) ou metafísico (além
O processo que conduziu de uma visão mí- da matéria) para a existência humana, susten-
tica do mundo e da mente a uma visão racio- tando que o espírito humano era um produto
nal e científica teve seu início na Grécia Antiga direto do corpo físico e que sua existência esta-
(1100 a.C. a 146 a.C.), período durante o qual va atrelada aos limites existenciais deste. Mui-
diferentes pensadores propuseram que estudos tos tinham uma interpretação ou visão unicista
sistemáticos e racionais constituíam a melhor e monista da relação entre a alma (mente) e o
forma para se chegar a conceitos mais próxi- corpo,10 que ainda é a visão preponderante nas
mos da verdade sobre o universo, o homem e neurociências da atualidade.
sua psique, que constituem as diferentes esco- Para aqueles que, como Demócrito, acredi-
las filosóficas. tavam em que a realidade era constituída por
Aristóteles,8 em seu influente tratado So- átomos e por vazio – os atomistas –, a alma era
bre a alma (Peri psukhes, no original grego, mas a fonte de todo o movimento, sendo constituí-
mais conhecido por sua nômina latina De ani- da por um agregado de átomos esféricos seme-
ma), afirma que as opiniões de seus predeces- lhantes ao fogo – os quais eram os mais móveis
sores se assentam na ideia de que a psique é e capazes de ser causa de movimento.8 Sendo
aquilo que distingue um ente animado de um um princípio primordial, o fogo não só é causa
ente inanimado em dois aspectos: o movimen- do movimento de outras coisas, mas também
to (ação) e a percepção sensível (relativa ao que causa do próprio movimento, sendo, portanto,
chamaríamos atualmente de funções cognitivas imortal. Disso resulta uma dificuldade básica
da mente ou da consciência). A psukhe era con- para os atomistas, para os quais a alma é uma
siderada, portanto, como aquilo que faz mover combinação da capacidade de mover e da ca-
e constituía, naquele período, o correlato psí- pacidade de conhecer: a relação alma-corpo e a
quico do corpo enquanto unidade ou agregado relação alma-mente.11
físico de seus diversos membros e partes. Outros, como os pitagóricos, consideravam
Os filósofos pré-socráticos ou fisiólogos9 – que todas as coisas – inclusive a alma como
os predecessores a que Aristóteles se refere – princípio de movimento e a alma como per-
são assim chamados devido ao fato de busca- cepção sensível – eram redutíveis ao número, o
rem fundamentos naturais para os fenômenos, qual seria o princípio primordial de tudo aqui-
nomeadamente nos chamados elementos pri- lo que é. Para os pitagóricos, a alma tem uma
mordiais: a terra, o fogo, a água e o ar. Embora natureza divina e sobrevive à morte do corpo,9
a designação “filósofos pré-socráticos” seja usa- fundando o antagonismo entre alma e corpo
da em ampla escala, ela não é exatamente rigo- que atravessará os mais de 25 séculos da cultu-
rosa, uma vez que alguns desses pensadores fo- ra ocidental.
ram contemporâneos de Sócrates. Ela será uti- As filosofias de Sócrates (470-399 a.C.), Pla-
lizada aqui para designar aqueles pensadores da tão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.)
Grécia Antiga que não foram influenciados por marcam um distanciamento relativo de visões
fisiológicas e mecanicistas da mente, dando iní- Esse método teve enorme influência em
cio ao Período Clássico. Neste, mantiveram-se técnicas psicoterapêuticas atuais. O diálo-
e desenvolveram-se os aspectos da filosofia na- go racional como método de tratamento
tural, porém foram colocados em segundo pla- por meio da correção de crenças erradas
no em relação às questões centradas na ética e ou distorcidas é adotado até hoje na tera-
na política, que também incluem a poética, a pia comportamental racional e emotiva e
história, a retórica e, em muitos aspectos, a ló- na TCC.
gica, a psicologia e a metafísica.
Antes de abordarmos alguns elementos das Agora, vamos retomar as teorias acerca da
teorias da alma do Período Clássico, é impor- natureza da psique. As reflexões de Platão a res-
tante mencionar um aspecto da filosofia de Só- peito da natureza da alma procuram reconciliar
crates que influenciou diretamente a psicotera- um conjunto de noções que estão associadas ao
pia: a maiêutica, o método utilizado pelo filó- fato de a alma ser a causa da vida orgânica, in-
sofo nos diálogos com seus concidadãos e que clusive do ser humano, e de ser responsável pe-
está presente nos textos que nos deixou Pla- las faculdades cognitivas, assim como pelas vir-
tão. Os diálogos socráticos começam, em ge- tudes morais. A concepção platônica de alma
ral, com opiniões cuja verdade é pressuposta é devedora da perspectiva pitagórica, uma vez
sem que seus fundamentos sejam questiona- que Platão concebe a alma como uma unidade
dos. Afirmando metodicamente sua ignorân- de natureza divina e, portanto, imortal que
cia – o célebre “Só sei que nada sei” –,12 Sócra- reencarna ciclicamente em um corpo mortal,
tes apresenta-se sempre diante de seus interlo- o qual, estando sujeito a necessidades, era res-
cutores despojado de doutrinas prévias, con- ponsável por todos os males de que ela era aco-
duzindo-os, por meio da inquirição, ao exame metida. O corpo físico era considerado um me-
das próprias opiniões, as quais invariavelmente ro receptáculo da alma e responsável por todo
revelam ser infundadas. Se inicialmente todos desvio ético (ação a serviço do bem comum).
parecem saber o que são a justiça, a felicidade, a O corpo e seus desejos eram entendidos como
coragem ou a beleza, por exemplo, logo seu co- obstáculos a serem transpostos ou domestica-
nhecimento se revela infundado, o que promo- dos.15
ve uma nova procura pela verdade dessas e de Portanto, a filosofia era, para Platão, um
outras noções.13 processo de catarse ou de purificação que pre-
A perplexidade ou aporia com que termi- parava o ser humano para a morte e para o re-
nam os diálogos socráticos não é, por parte da- gresso da alma a sua condição natural. Esse
queles que deles participam, uma constatação processo possibilita também o acesso do ser
resignada de sua ignorância, mas uma intensi- humano às formas, os princípios de tudo aqui-
ficação de sua vida. Efetivamente, para Sócra- lo que é, por via da anamnese,12 uma vez que a
tes, uma vida que não é sujeita a exame é uma alma partilha com aqueles a imortalidade e
vida que não está sendo plenamente vivida, que a imaterialidade.
se petrificou e que ficou prisioneira de noções Se, no Fédon, Platão apresenta uma pers-
sem sentido, diríamos, hoje, alienadas da rea- pectiva da alma principalmente separada dos
lidade. Assim, esse método de exame faz os sentidos e associada a funções exclusivamente
concidadãos de Sócrates tornarem-se mais vir- cognitivas, já na República e no Fedro,12 a alma
tuosos, pois só a consciência da sua ignorân- integra também funções somáticas e está divi-
cia permitirá retomar o movimento em busca dida em partes, as quais correspondem a cada
de um sentido para o seu estar vivo, um sen- uma de suas funções: racional, espiritual e ape-
tido que se descobre sempre dialogicamente.14 titiva. O resultado disso é que todas as funções
Estar consciente da própria ignorância é já uma psicológicas descobrem na alma a sua unidade:
forma de saber, uma dimensão crucial da ins- a alma constitui a unidade mental, sendo res-
crição “Conhece-te a ti mesmo” no frontispício ponsável não só pelo pensamento ou pelo de-
do templo de Apolo, deus da harmonia, no san- sejo, mas também por funções vitais, como as
tuário de Delfos, e que serviu de inspiração a nutritivas e as reprodutivas.11 O modo de rela-
Sócrates. ção da alma com as funções vitais é um aspec-
to da teoria platônica que fica por clarificar, o Isso implica, também, que não há lugar para a
que contribuirá para a crítica dirigida por Aris- imortalidade pessoal em Aristóteles, pois a al-
tóteles. ma não sobrevive à separação do corpo.
O tratado De anima, de Aristóteles, apre- Um aspecto interessante relacionado com
senta a mais completa teoria sobre a natureza e a teoria aristotélica da alma aparece no tratado
as funções da alma da Antiguidade, fornecendo intitulado Poética3 e diz respeito à noção de ca-
uma síntese entre a noção da alma como princí- tarse, a qual Aristóteles associa a experiências
pio de movimento e como princípio responsá- de tipo religioso ou médico. A catarse é uma
vel pelos diferentes tipos de experiência dos se- maneira de purificação da alma produzida pela
res vivos, inclusive a experiência mental huma- descarga de uma dor emocional gerada por um
na em suas diversas manifestações. Para Aris- trauma ou acontecimento trágico.
tóteles, a alma é um tipo peculiar de natureza, Diferentemente do que se possa pensar, es-
um princípio que dá conta a mudança e repou- sa purificação não constitui apenas uma liber-
so nos corpos vivos, plantas, animais não hu- tação emocional. Uma vez que as emoções, pa-
manos e seres humanos.8 ra Aristóteles, são respostas de base cognitiva
A teoria aristotélica das entidades é carac- à experiência e ocupam um lugar central em
terizada pelo hilomorfismo, isto é, pela relação sua ética, a catarse desencadeia um processo de
entre um princípio formal e um princípio ma- compreensão dos acontecimentos que se revela
terial,16 e a alma não é exceção: todos os cor- psicológica e eticamente benéfico.3 Sua doutri-
pos vivos devem ser compreendidos de acordo na da catarse ensinava, por exemplo, que os te-
com essa relação. A alma é, portanto, o princí- mores podem ser transferidos ao herói da tra-
pio formal de todo o corpo vivo, determinan- gédia − ideia que muito mais tarde veio formar
do até mesmo sua função distintiva. A função uma das teses da psicanálise e da terapia do jo-
de uma entidade é aquilo que a torna comple- go. Como podemos perceber, devemos muito
ta. Por exemplo, para Aristóteles, a função do conceitos que são utilizados nas psicoterapias
ser humano é ser eudaimon, termo que normal- modernas aos filósofos socráticos.
mente se traduz por “felicidade”, e o Estagirita
define essa função como “uma atividade da al- Os estoicos
ma engendrada de acordo com a virtude”.17 No que se refere às raízes das psicoterapias, um
Na linha do que Platão já havia feito, Aris- destaque especial deve ser feito aos filósofos es-
tóteles também parte de uma divisão da alma. toicos. Para eles, as emoções negativas resulta-
No entanto, não fala de partes, e sim de potên- vam de erros de julgamento, e uma pessoa sá-
cias (dunameis), faculdades ou capacidades que bia era aquela que não deixava que as emoções
colocam em movimento um conjunto de fun- guiassem seu comportamento, tentando viver
ções vitais que organismos deste ou daquele ti- em sintonia com o que o destino oferecesse e,
po naturalmente realizam. Essas potências ou dessa forma, em harmonia com as leis da na-
capacidades da alma são a nutritiva (comum a tureza (o cosmos). Para Epicteto (55-135 d.C.),
plantas, animais não humanos e seres huma- “o que perturba as pessoas não são as coisas em
nos), a perceptiva e a desiderativa (animais não si, mas o que elas pensam sobre as coisas”. Os
humanos e seres humanos), e a locomotiva e estoicos pregavam a indiferença (apatia) como
raciocinativa (seres humanos). Cada uma des- caminho para se ter uma vida feliz e a serenida-
sas potências pressupõe a potência situada em de como atitude, tanto diante de tragédias co-
um nível mais abaixo, ou seja, a interdependên- mo de coisas boas. Uma pessoa que agisse dessa
cia das potências constituintes da alma implica forma atingiria a “perfeição intelectual e moral“
que seu exercício demanda algum tipo de vín- e se tornaria um sábio. Para Epicteto, um exem-
culo ao corpo.8 plo sábio teria sido Sócrates, que, mesmo diante
Em suma, para Aristóteles, e ao contrário da possibilidade de fugir depois de ter sido jul-
do que acontecia para Platão, a alma não tem gado e condenado à morte, se recusou e, com
existência além do corpo, e atividades mentais calma, enfrentou a morte por envenenamento
como a percepção e até o pensamento são pas- ingerindo cicuta, afirmando, por fim, que mais
síveis de explicação por meio dos mesmos prin- se prejudica aquele que comete do que quem
cípios que explicam os fenômenos naturais.11 sofre a injustiça, proferindo, segundo Platão,
tranquilamente suas últimas palavras: “Críton, a fenomenologia, primeiro com sua apropria-
devo um galo a Asclépio” (i.e., “Lembra-te de ção por parte de Franz Brentano (1838-1917)
saldar minha dívida”). – no quadro de sua psicologia descritiva – e,
A escola cognitiva moderna se apropriou da posteriormente, por Edmund Husserl (1859-
afirmativa de Epicteto, utilizando sua máxima e -1938).18,19 É também importante ressaltar que
tendo como princípio que as emoções pertur- Agostinho foi um pensador profundamen-
badoras são decorrentes de erros de avaliação te original e importante para a construção do
e percepção, levam a crenças disfuncionais e, conceito de mente por ter forjado o conceito de
quando corrigidas, possibilitam o desapareci- “mundo interior”.
mento dos sintomas. Também, terapias da “ter- O texto de referência no campo das inqui-
ceira onda” cognitivista, como a de aceitação rições a respeito da natureza da psique foi, pa-
e compromisso, preconizam que pensamentos ra os autores medievais, o De anima, o tratado
estoicos são úteis para enfrentar momentos di- de psicologia de Aristóteles. No entanto, foram
fíceis que não podemos modificar. Além dis- Agostinho de Hipona (354-430 d.C.) e Boécio
so, em suas reuniões, os Alcoólicos Anônimos (480-525 d.C.), autores de influência platônica
(AA) utilizam a Oração da Serenidade, que diz: e neoplatônica, que introduziram duas noções
“Senhor, dai-me a serenidade para aceitar as dualistas cruciais para compreender a psicolo
coisas que eu não posso mudar, coragem para gia da Idade Média e que ainda ressoam nos de
mudar as coisas que eu possa e sabedoria para bates atuais relativos à constituição da pessoa
que eu saiba diferenciar entre uma e outra: vi- humana: respectivamente, a noção de que a
vendo um dia a cada vez, aproveitando um mo- alma humana é uma substância racional que
mento de cada vez; aceitando as dificuldades governa o corpo e a noção de que uma pessoa
como um caminho para a paz”. é uma substância individual de natureza racio-
nal.20
Idade Média Aristóteles foi redescoberto na Alta Idade
A Idade Média é normalmente tida como um Média (séculos XI a XIII), uma retomada que
período de trevas e de uma ignorância avessa à foi promovida pelas novas traduções de seus
inquirição racional promovida por seu vínculo trabalhos para o latim – entre as quais, do De
à mundividência cristã. Tais posições negligen- anima –, e isso contribuiu para o desenvolvi-
ciam o fato de se tratar de uma época plural que mento da pesquisa em psicologia, nomeada-
atravessa cerca de 1.500 anos – a época em mente por intermédio de autores da escolásti-
que nos encontramos tem apenas 500 anos –, ca, como Tomás de Aquino. A perspectiva mais
durante a qual surgiram diversas e sofisticadas naturalista do texto aristotélico levou os autores
posições em todos os campos do conhecimento medievais – profundamente vinculados a cren-
humano, algumas das quais são objeto de inte- ças religiosas e dependentes de doutrinas teoló-
resse e de discussão ainda hoje. gicas a respeito da criação da alma por Deus e
A psicologia é um desses campos, no sen- de sua eternidade – a debates cujo objetivo era
tido clássico de inquirição acerca da natureza reconciliar a recém-redescoberta teoria aristo-
e da função da psique, próximo daquilo a que télica da alma com o dualismo agostiniano, no-
atualmente se chama de filosofia da mente. meadamente no que diz respeito à determina-
ção da natureza das pessoas humanas.20
Um exemplo da relevância atual do pen- Conforme já mencionado, a obra de Aris-
samento medieval para a psicologia e para tóteles é caracterizada pelo hilomorfismo, isto
a filosofia da mente é a noção de intencio- é, para ele, todas as entidades são constituídas
nalidade, a ideia de que o pensamento ou pelo binômio matéria-forma, dois aspectos de
a consciência são sempre a respeito de algo uma e apenas uma entidade. De modo simpli-
e envolvem um tipo de relação que não é ficado, uma pessoa é composta por um corpo
meramente redutível às relações físicas. – sua matéria – e uma alma – a forma que faz
ela ser aquilo que é. Nesse sentido, parece que
Tal noção foi desenvolvida por Tomás de alma e corpo são dependentes entre si e que a
Aquino (1225-1274) e contribuiu de forma de- primeira não pode sobreviver sem o segundo.
cisiva para o desenvolvimento de uma das cor- Tal perspectiva tendencialmente monista
rentes filosóficas mais influentes do século XX, parece incompatível com o dualismo de inspi-
ração agostiniana, de acordo com o qual alma so em devir contínuo no qual ele mesmo nunca
e corpo são elementos distintos e as pessoas aparece, sendo representável em relações mate-
são almas que usam os corpos. A necessidade máticas, obtidas por intermédio da experiência
de compatibilização da perspectiva aristoté- e de dispositivos de medição.14 Isso conduziu à
lica com as doutrinas teológicas produziu um chamada “matematização do real”, a qual go-
conjunto diferenciado de teses a respeito dessa verna ainda hoje a visão científica do mundo, e
questão. Boaventura afirma o dualismo alma/ a uma recusa dos princípios imateriais de orga-
corpo, ao mesmo tempo que defende que a al- nização e de causação que orientam a escolásti-
ma resulta da composição de forma e matéria ca de inspiração aristotélica.
espiritual. O projeto filosófico de René Descartes
Já Tomás de Aquino adota uma posição dis- (1596-1650) deve ser compreendido no contex-
tinta da posição de Boaventura, preservando o to dessa revolução. O projeto cartesiano é, por-
hilomorfismo aristotélico ao mesmo tempo que tanto, um projeto de refundação das ciências e
afirma a subsistência da alma independente- da própria metafísica, e o texto mais represen-
mente do corpo, embora de modo incompleto, tativo desse ímpeto refundador cartesiano são
pois a alma é apenas a forma da matéria-corpo. as Meditações sobre filosofia primeira.21 No cen-
Para compatibilizar o hilomorfismo com o dua- tro desse projeto, encontra-se a dúvida hiper-
lismo, Tomás de Aquino defende que as pessoas bólica, cuja finalidade é suprimir a mais inaba-
são entidades possuidoras de almas racionais e lável das certezas a respeito da realidade e de
que a alma é uma entidade subsistente por si seu conhecimento – desde os dados dos senti-
mesma. No entanto, alma em si mesma, en- dos à geometria e à aritmética –, permitindo,
quanto forma separável do corpo, não constitui assim, a reconstrução das ciências a partir de
uma pessoa – já que esta é uma entidade psi- novas fundações.21
cofísica –, e sim uma espécie de subjetividade
mínima.20 A dúvida cartesiana constitui a resposta
filosófica à nova realidade revelada pe-
Idade Moderna: Racionalismo las descobertas de Galileu, uma realida-
Filosófico e Descartes de descoberta por uma nova ciência para
Os desenvolvimentos medievais das teses de a qual todas as mudanças de estado dos
Aristóteles, particularmente por parte da esco- corpos são explicáveis por meio de rela-
lástica, foram sujeitos à crítica no Renascimen- ções mecânicas. O ponto arquimediano
to (séculos XIV a XVI), coincidindo com um sobre o qual se apoia tal reconstrução do
interesse renovado em Platão e seus seguidores. conhecimento é o Cogito, ergo sum (i.e.,
Essas críticas foram acompanhadas por “Penso, logo existo”).22
descobertas revolucionárias nas ciências natu-
rais, entre as quais se destacam o heliocentris- Não obstante a sua crítica à filosofia da Idade
mo de Nicolau Copérnico (1473-1543) e as ex- Média, nomeadamente à escolástica, a obra de
periências de Galileu Galilei (1564-1642), que Descartes foi influenciada, quer ele reconheça
conduziram a dúvida cética acerca do real que ou não, pela obra de Agostinho de Hipona. De
orienta tradicionalmente a iniciativa científica fato, o Cogito, ergo sum descobre um preceden-
à sua mais radical implicação ontológica, pon- te na filosofia medieval, a saber, no Si fallor sum
do em questão tudo aquilo que até ali era tido (i.e., “Se me engano, é porque existo”) de Agos-
como verdadeiro. tinho.23
O que mudou com Galileu não foi só a ciên- Para Descartes, posso duvidar da existência
cia, mas a própria articulação fundamental que de tudo exceto de que eu próprio existo, uma
guiava a compreensão da realidade. Ao a pontar vez que o duvidar – tal como o crer, o imaginar,
o telescópio para os céus, Galileu descobriu o conhecer, etc. – é uma modalidade do pen-
que, diferentemente do que afirmavam a ntigos samento, e este último tem de existir em uma
e medievais, o céu não era imutável, as suas substância ou coisa pensante (res cogitans) que
verdades não eram eternas. Diferentemente os subjaz – que é o seu subiectum, o seu sujeito
do que acontecia na Grécia Antiga, o ser não – e reúne tais processos em uma unidade cons-
é mais aquilo que aparece por si mesmo sem ciente de si mesma, em um eu (ego). Em oposi-
necessidade de interferência, mas um proces- ção à coisa pensante – como seu obiectum, co-
mo seu objeto, como aquilo que faz frente e re- seu Discurso do método, a ideia clara e distinta:
siste ao ego e à dúvida –, está o mundo, carac- “Se eu duvido, eu penso; se penso logo existo”, o
terizado como coisa extensa (res extensa), cuja famoso Cogito, ergo sum. Seu racionalismo afir-
natureza é a extensão.21 ma que tudo o que existe tem uma causa inteli-
Essa é, muito resumidamente, a base do gível, mesmo que essa causa não possa ser de-
dualismo cartesiano, de acordo com o qual é monstrada. Contudo, como caminho para o co-
possível a mente e o corpo existirem de forma nhecimento, dá prioridade à introspecção em
independente, uma vez que são substâncias de detrimento da experiência. Considera a dedu-
natureza distinta. Para garantir que a mente é, ção um método superior à indução. Seu racio-
de fato, uma natureza distinta do corpo e que nalismo filosófico teve influência marcante nas
suas percepções são verdadeiras, e não apenas terapias que usam a introspecção, o raciocínio
ilusões produzidas pela própria atividade, Des- lógico e a dedução como métodos para se che-
cartes vê-se obrigado a introduzir uma terceira gar ao conhecimento e à cura. Sua influência
instância, um Deus omnipotente e infinitamen- é particularmente importante na terapia cog-
te bom que funda o ser das substâncias finitas.21 nitiva, sobretudo na terapia racional emotiva,
Apesar de ser uma visão dualista, que con- que acredita no poder da razão e da lógica e no
cebe a mente como algo totalmente separado exame das evidências (questionamento socráti-
do corpo (cérebro), a visão cartesiana foi revo- co) para corrigir crenças disfuncionais e, con-
lucionária, pois permitiu que todos os aspec- sequentemente, alterações emocionais e com-
tos da vida mental consciente, inclusive senti- portamentais.
mentos, desejos, pensamentos e comportamen- Em relação ao estudo da mente e da psico-
tos, pudessem vir a ser estudados pelo método logia, a principal vantagem que essa mudança
científico.24 paradigmática trouxe foi possibilitar que os es-
O dualismo cartesiano é o mais importante tudiosos da mente pudessem manter suas con-
representante do interacionismo, o qual afirma vicções religiosas sem perderem a objetivida-
que mente e corpo são fundamentalmente dis- de científica. Os fenômenos mentais saudáveis
tintos, mas capazes de interagir um sobre o ou- e patológicos passaram a ser considerados co-
tro.25 O problema central do dualismo intera- mo resultantes de uma relação intrincada e in-
cionista reside justamente na determinação do separável que a mente tem com o corpo físico.
modo de relação entre mente e corpo. Descar- O comportamento humano passou a ser enten-
tes aborda essa questão em seu Tratado sobre dido como determinado pelo livre-arbítrio, re-
as paixões da alma, dizendo que os seres hu- sultante de uma luta constante entre a vontade e
manos têm uma alma racional capaz de receber a capacidade reflexiva. As afecções mentais pas-
sensações a partir do cérebro, agindo, por sua saram a ser entendidas como alterações neuro-
vez, sobre o cérebro e controlando o corpo por lógicas, que afetam funções na esfera da men-
meio da vontade. A relação entre mente e cére- te e da subjetividade. Dessa forma, um paciente
bro é mediada pela glândula pineal, localizada com esquizofrenia não seria mais considerado
no centro do cérebro.26 possuído por uma entidade sobrenatural quan-
Essa tese foi já rejeitada em termos científi- do referia estar ouvindo vozes do demônio; tal
cos, permanecendo em aberto esclarecer que ti- fenômeno passou a ser entendido como um sin-
po de nexo causal possibilitaria a interação en- toma neurológico (alucinação auditiva).
tre a mente – uma entidade não física, do ponto Embora o trabalho filosófico de Descartes
de vista cartesiano – e o corpo – uma entidade tenha ocorrido em um período histórico que
física –, sem violar as leis da física.25 No entan- resultou no abandono gradual da visão teo-
to, isso abriu portas para o estudo das manifes- lógica e dogmática em vários campos do co-
tações da mente como parte do mundo físico, nhecimento, a já referida Revolução Científi-
as quais devem ser entendidas e estudadas le- ca (1543-1687), seu método só foi introduzido
vando-se em conta as leis naturais. no estudo da psicologia no final do século XIX,
Descartes é considerado um dos principais dando origem à psicologia científica por opo-
filósofos do racionalismo, corrente filosófica sição à psicologia filosófica, que usava a intros-
que privilegia a razão como principal instru peção no estudo das funções mentais.
mento para se chegar ao conhecimento verda- No âmbito da psicoterapia, a nova metodo-
deiro. Como critério de verdade, propôs, em logia teve forte influência no estudo do com-
portamento humano e, posteriormente, no de- como faz Locke, de que a identidade pessoal
senvolvimento da terapia comportamental, que é algo real, fundada em uma substância. Para
adotou muitos de seus princípios. Hume, pelo contrário, a identidade pessoal é
uma ficção resultante de ilusões do pensar fun-
O empirismo inglês dadas nos princípios gerais de associação que
A partir do século XVIII, uma escola filosófi- estão na base da sua teoria do conhecimento,29
ca ganhou prestígio na Inglaterra: o empiris- particularmente da crítica ao princípio de cau-
mo. O empirismo defendia a experiência como salidade.29
fonte de todo o conhecimento e era representa- De acordo com Hume, a conexão necessá-
do, principalmente, pelos filósofos John Locke ria, constitutiva do princípio de causalidade,
(1632-1704) e David Hume (1711-1776). entre um acontecimento A (causa) e um acon-
Locke, que também estudou medicina e tecimento B (efeito), não pode ser descoberta a
ciências naturais, postulou que a mente era partir de dados empíricos. Aquilo a que nós as-
uma tábua rasa ou folha em branco, onde se- sistimos na experiência é apenas a sucessão de
riam gravadas as sensações e percepções cap- acontecimentos – primeiro A e depois B –, sem
tadas do mundo externo pelos sentidos.27 Pa- que a conexão entre ambos seja dada de mo-
ra Locke, a experiência levava ao aprendizado, do necessário. Ilustrando sua posição de fundo,
que era a fonte do conhecimento humano, o Hume diz que o fato de o Sol ter nascido hoje
qual advinha da experiência captada pelos sen- e de o ter feito todos os dias até este momen-
tidos. Um dos maiores contributos de Locke to não nos permite afirmar que é absolutamen-
para a psicologia e a filosofia da mente foi sua te necessário que nasça amanhã.30 Esses são os
teoria da identidade pessoal. termos gerais daquilo que ficou conhecido, em
epistemologia, como o problema da indução ou
Para Locke, o ser humano distingue-se da da inferência indutiva.
pessoa, uma vez que a constituição física Assim, embora todos os nossos raciocínios
do humano não é suficiente para dar con- acerca daquilo que existe factualmente estejam
ta da pessoa, a qual apresenta característi- fundados na experiência passada, a afirmação
cas de ordem psicológica, em particular a de um nexo causal e, portanto, da necessidade
memória, que criam a continuidade tem- futura da conexão entre A e B é efeito daquilo a
poral das experiências subjetivas. A cons- que Hume chama de costume.30
tituição física permite que sejamos identi- O costume consiste em uma disposição do
ficados como seres pertencentes à espécie entendimento humano para inferir a existência
humana, mas não como pessoas.27,28 de objetos a partir da experiência repetida de
uma conjunção de acontecimentos, na qual um
A perspectiva de Locke assenta-se em sua acontecimento (efeito) se segue ao outro (cau-
concepção de identidade, na qual substância, sa). O costume é um princípio da natureza hu-
ser humano e pessoa assumem significados dis- mana, uma espécie de instinto natural que não
tintos: falamos de uma e a mesma massa quan- encontra fundamento último nas coisas. Isso
do seus átomos permanecem em conjunto; fa- significa que o raciocínio provável é o único
lamos de um e o mesmo ser humano – ou de meio e descobrirmos algo a respeito do mundo,
um e o mesmo animal – quando estamos na obrigando-nos a regressar sistematicamente à
presença de um mesmo corpo vivo organiza- experiência para testar nossas hipóteses.
do cuja vida é transmitida às diferentes partes O mesmo pode ser afirmado relativamente
de matéria que o constituem; e falamos de uma a uma noção de identidade pessoal que se as-
e a mesma pessoa quando nos referimos a um sente em uma concepção do ego como substân-
ser possuidor de razão e reflexão capaz de cons- cia (ver posição cartesiana) e não apenas como
ciência de si, isto é, capaz de ser para si mes- uma ilusão que reúne um conjunto de expe-
mo uma e a mesma coisa pensante em diferen- riências mentais aparentemente similares, ain-
tes tempos e lugares.27 A identidade pessoal é da que distintas entre si. Hume é um proponen-
constituída, para Locke, por essa mesmidade de te da seguinte posição: a identidade pessoal se
consciência. constitui um conjunto de experiências assentes
Hume também contribuiu para a teoria da no costume.29 A convicção a respeito da reali-
identidade pessoal, mas não parte do princípio, dade/substancialidade da identidade pessoal
nasce dessa identidade ficcional, criada a par- experiência é uma espécie de relação bidire-
tir do costume, a expectativa de regularidade cional: só há experiência e, consequentemen-
constitutiva do aparato cognitivo humano. te, conhecimento para o ser humano porque
Hume abriu, assim, a possibilidade de que seu aparato cognitivo estabelece as condições
todo conhecimento pudesse ser repensado e de aparecimento dos objetos da experiência.
modificado por uma nova experiência, como No entanto, esse conhecimento não é arbitrá-
ocorre nas psicoterapias bem-sucedidas. Tais rio, porque os fenômenos se dão no espaço e no
teorias foram utilizadas na década de 1950 por tempo, isto é, sensivelmente, uma vez que o ser
psicoterapeutas como justificativa para a indi- humano não cria a realidade, sendo apenas ca-
cação de abordagens psicoterapêuticas, pro- paz de a acolher de acordo com os limites im-
cessos que seriam curativos por representarem postos por sua constituição mental.31
uma nova experiência emocional corretiva. Tal perspectiva tem implicações na psicolo-
gia e no conhecimento da alma, reunindo em
Immanuel Kant e a crítica um só o problema da relação entre mente e cor-
transcendental po e a questão da identidade pessoal. Tal como
O projeto crítico de Immanuel Kant (1724- acontece em Descartes, também em Kant, to-
-1804) tem início com a Crítica da razão pu- dos os pensamentos ou representações devem
ra (Kant, 1994) e é parcialmente inspirado pe- ser acompanhados pelo ego, constituindo-se,
las teses apresentadas por Hume acerca do co- assim, a unidade da autoconsciência.
nhecimento. Embora Kant tenha reconhecido a Contudo, essa unidade é, em Kant, apenas
pertinência das objeções de Hume ao princípio uma condição formal do conhecimento, não
de causalidade, em particular quando dirigidas sendo possível afirmar com certeza cognitiva
aos dogmas do racionalismo, afirmando, inclu- sua existência como substância – como uma res
sive, que este o havia despertado do seu sono cogitans, conforme em Descartes.31 Podemos,
dogmático, ele não se identificou com a res- contudo, pensar e dar sentido a essa unidade
posta cética encontrada por Hume no costume, pessoal como possibilidade, cuidando sempre
uma vez que ela parecia pôr em questão a vali- para não chegarmos a conclusões a seu respei-
dade de todo o conhecimento.31 to que confundam conhecer e pensar e que, as-
Assim, Kant dispõe-se a realizar uma críti- sim, ultrapassem os limites impostos pela expe-
ca da faculdade cognitiva de modo a evitar a riência, isto é, conclusões metafísicas acerca de
tendência da razão humana a fazer afirmações sua existência.
que transcendem aquilo que é permitido pela Esse tipo de posição crítica do conhecimen-
experiência, isto é, a fazer afirmações de tipo to da identidade pessoal é importante, pois per-
metafísico. Para tanto, decide realizar uma re- mite, em psicoterapia, manter uma posição de
volução copernicana no modo de olhar para a neutralidade relativa sobre as teorias predomi-
atividade cognitiva, assumindo a perspectiva nantes que fundamentam seu funcionamento.
transcendental, a qual consiste na determina- Tal tipo de visão não deixa de ser uma releitu-
ção das condições de possibilidade de todo o ra da máxima socrática “Só sei que nada sei”, a
conhecimento com origem na experiência, in- qual também deveria ser a postura crítica de to-
dependentemente de considerações de ordem do psicoterapeuta.
metafísica.31
O primeiro passo nesse processo foi a dis- O positivismo
tinção entre conhecer, uma operação da facul- A partir do século XIX, a abordagem filosófi-
dade do entendimento, e pensar, uma operação ca e científica dos fenômenos mentais, como a
da faculdade da razão (Kant, 1994, Bxxv-xx- percepção, a memória, a inteligência e a aqui-
-vii), vinculando o primeiro aos dados espaço- sição do conhecimento, também passaram por
-temporais, isto é, aos fenômenos recebidos pe- uma mudança profunda, com o abandono gra-
la sensibilidade, e o segundo, à atividade espe- dual do método analítico e da introspecção.
culativa que ultrapassa os limites da experiên- Defendendo ideias ainda mais radicais que os
cia possível. empiristas ingleses, positivistas como Augusto
A consequência da posição kantiana no que Comte (1798-1857) passaram a defender que
diz respeito ao conhecimento com origem na tudo deveria ser provado e verificado, inclu-
vidos conjuntos de controles sociais e de admi- Além disso, ideias libertárias desses mo-
nistração fundamentados na produção não de vimentos ajudaram a corrigir erros histó-
um silêncio, como na hipótese repressiva, mas ricos, fazendo a Associação Americana de
de muitos silêncios que servem de outros tan- Psiquiatria (1972) e a Associação Ameri-
tos pontos de apoio aos mais diversos discursos cana de Psicologia (1973) retirarem o ró-
e a seus processos de normalização e institucio- tulo patológico da homossexualidade. To-
nalização.34 davia, quando os defensores desse tipo de
Foucault chama de “biopolítica” esse do- ideias tiveram a oportunidade de geren-
mínio aberto pela administração da vida e por ciar os serviços de saúde mental, propi-
sua sujeição ao cálculo, um domínio no qual ciaram muito mais um estado de tensão
o binômio poder-saber se constitui em agente e luta de poder do que o desenvolvimento
de transformação da vida humana.34 Diz Fou- de abordagens racionais e efetivas para os
cault: “O homem, durante milênios, permane- grupos de pessoas que sofrem de doenças
ceu o que era para Aristóteles: um animal vivo mentais graves.
e, além disso, capaz de existência política; o ho-
mem moderno é um animal, em cuja política, Esse tipo de pensamento filosófico também
sua vida de ser vivo está em questão”.34 possibilitou o surgimento de psicoterapias que
Surgiu, dessa forma, no campo da medici- se contrapunham aos modelos tradicionais, co-
na, uma série de patologias orgânicas, funcio- mo a terapia centrada no cliente de Carl Rogers,
nais e mentais com origem nas práticas sexuais, a terapia humanista, ou logoterapia, de Viktor
bem como a classificação e a gestão dos praze- Frankl, a terapia sistêmica e de grupos e a teo-
res. Não se impõe o silêncio sobre o sexo, mas o ria dos fatores comuns. Esta última propõe que
controle das manifestações de prazer e da vida fatores comuns a todas as terapias seriam os in-
por via da produção de discursos e da dissemi- gredientes críticos para a mudança terapêuti-
nação dos diferentes silêncios. O discurso sobre ca, e não as técnicas propostas pelas diferentes
sexo e seu ímpeto normalizador procura incor- escolas ou modelos de psicoterapia. Contudo,
porar nos indivíduos e em seus comportamen- muitas dessas técnicas nunca comprovaram sua
tos aquilo que neles escapa a toda a norma por efetividade, não se consolidando como méto-
via de um mecanismo de dupla incitação: o po- dos psicoterapêuticos bem estabelecidos.
der persegue o prazer e afirma-se neste último;
o prazer intensifica-se por escapar ao poder, ao Teorias da localização
mesmo tempo que se realiza no exercício des- anatômica da mente
te último.34 Outro assunto de intenso debate entre filósofos
Tal visão filosófica propiciou o aparecimen- e médicos helênicos foi o da localização anatô-
to de movimentos alternativos dentro da saú- mica da alma. Se, na atualidade, não temos dú-
de mental a partir da década de 1960, servin- vida de que a atividade mental é um fenôme-
do como base teórica para o surgimento da no resultante da atividade cerebral, durante mi-
antipsiquiatria, movimento que se opunha fe- lênios essa associação não era tão óbvia, tendo
rozmente ao diagnóstico psiquiátrico, aos tra- havido propostas de inúmeras localizações, en-
tamentos farmacológicos, às internações e aos tre elas nos pulmões, no timo, no coração, no
manicômios. Esse movimento considera que as cérebro e nos intestinos.
doenças mentais não existem e são apenas ró- Entretanto, duas escolas polarizaram o de-
tulos fictícios utilizados para excluir indivíduos bate que duraria séculos, dividindo-se entre
com comportamentos indesejados do convívio aqueles que defendiam o coração e aqueles que
social. Tal concepção social das doenças men- defendiam o cérebro como o “assento da alma
tais serviu como catalisadora de importantes humana”.35 Entre os defensores da teoria cardio-
mudanças na abordagem em saúde mental, co- cêntrica, encontravam-se Aristóteles, Diócles
mo a desinstitucionalização, a ressocialização e (375-295 a.C.) e Zenão (333-264 a.C.), enquan-
o atendimento concentrado em centros multi- to Alcmeão (século VI a.C.), Pitágoras (569-475
disciplinares e comunitários, apoiados por in- a.C.), Hipócrates (460-370 a.C.) e Platão eram
ternações de curta duração em hospitais gerais. defensores da teoria encefalocêntrica.36
ton Mesmer (1734-1815). Ele defendia que a suas orientações teóricas, encontraríamos seis
doença mental surgia a partir de um desequi- modelos gerais: (1) o modelo psicanalítico,
líbrio do campo magnético corporal, que des- criado por Freud, que leva em conta o determi-
regulava os elementos, como ferro, contidos no nismo dos conflitos psíquicos inconscientes e
sangue, o qual podia ser revertido com o uso dos mecanismos de defesa do ego sobre os sin-
de pedras com propriedades magnéticas. Jun- tomas mentais e a conduta humana; (2) o mo-
to com o método magnético, Mesmer também delo comportamental, que foca as formas de
utilizava longas sessões catárticas grupais que comportamento aprendido e condicionado de
envolviam técnicas hipnóticas. Rapidamente, Pavlov, Watson, Skinner, Wolpe e Bandura; (3)
suas técnicas foram usadas por médicos e lei- o modelo cognitivo, desenvolvido por Ellis e
gos ao longo de toda a Europa, o que desenca- Aaron Beck, que enfatiza o papel de cognições
deou uma forte reação dos meios acadêmicos, disfuncionais como fator responsável pelos sin-
que acusaram seus praticantes de pseudocien- tomas, principalmente depressivos e ansiosos;
tíficos e charlatães. (4) o modelo existencial/humanista/centrado
O uso da sugestão e da hipnose de modo na pessoa, de Carl Rogers e Viktor Frankl, que,
heurístico foi a inspiração para cunhar o termo fundamentado na fenomenologia e no existen-
“psicoterapêutico”, empregado pelo médico in- cialismo, propõe que o sofrimento humano de-
glês Daniel Hack Tuke em um capítulo de seu corre da perda de significado existencial; (5) o
livro intitulado Illustrations of the Influence of modelo dos fatores comuns ou não específi-
the Mind upon the Body in Health and Disease: cos, proposto por Jerome Frank, que preconiza
Designed to Elucidate the Action of the Imagina- que a boa relação, a empatia e o calor humano
tion, de 1872. Tuke argumentava que a ciência com o paciente são suficientes para melhorar
e a medicina deveriam estudar o efeito curativo os sintomas; e (6) o modelo dos fatores biopsi-
de técnicas que usavam a sugestão e a hipnose, cossociais, proposto originalmente por George
porque era evidente que elas poderiam auxiliar Engel (1913-1999), que preconiza que fatores
no tratamento de determinadas afecções. O ele- biológicos, psicológicos e sociais determinam
mento revolucionário de Tuke encontra-se no todas as doenças mentais e que fundamentou
fato de propor que haveria uma comunicação intervenções específicas para os diferentes fato-
evidente entre a mente (psique) e o corpo que res, como a terapia interpessoal, a terapia fami-
deveria ser desvendada.40 liar e a terapia de grupo.
O termo popularizou-se quando Hippoly-
te Bernheim (1837-1919), famoso professor da O modelo psicodinâmico ou a
escola médica de Nancy, citou, em seu famoso psicanálise: o primeiro modelo
livro, as ideias de Tuke.40 Entretanto, é impor- de psicoterapia estruturada
tante ressaltar que, enquanto o termo era uti- Em 1886, depois de abandonar sua carreira co-
lizado por Tuke no sentido que hoje chamaría- mo neurocientista e professor assistente de psi-
mos de placebo, Bernheim empregou o termo quiatria na Universidade de Viena por causa do
mais próximo do sentido de “psicoterapia”. Isso baixo salário, Freud passou a trabalhar na clí-
ocorreu porque, além do uso de hipnose, nica privada junto com um colega mais velho e
Bernheim sugeriu o emprego de longas sessões bem estabelecido chamado Josef Breuer (1842-
de conversas com pacientes como abordagem -1925). Breuer e Freud atendiam a comunida-
terapêutica. Médicos respeitados, como Jean- de judaica abastada de Viena, e seus pacien-
-Martin Charcot (1825-1893) e Pierre Janet tes eram, geralmente, mulheres que apresen-
(1859-1947), aprimoraram o uso da hipnose tavam quadros neuróticos e psicossomáticos,
em quadros dissociativos, tornando a técnica as quais eram tratadas com longas conversas e
menos suspeita e aceita no meio médico no fi- sessões de hipnose. Como muitas delas relata-
nal do século XIX. vam vivências traumáticas que tinham aconte-
cido na infância, ou pouco antes de desenvolver
A explosão das psicoterapias seus sintomas, Freud passou a defender a ideia
no século XX de que, além da biologia constitucional, fatores
Em 2017, 174 tipos diferentes de psicoterapias psicológicos e eventos traumáticos eram os res-
são citados na Wikipédia.41 Contudo, se as psi- ponsáveis pelo surgimento de sintomas histé-
coterapias fossem agrupadas de acordo com ricos. Além disso, como muitos desses eventos
traumáticos eram de âmbito sexual (p. ex., abu- lanie Klein tiveram um papel importantíssi-
so, iniciação precoce da sexualidade, assédio mo na propagação das ideias psicanalíticas no
por uma pessoa mais velha), Freud concluiu mundo anglo-saxão. Além disso, a visita que
que a sexualidade era um tema central na etio- Freud fez aos Estados Unidos, em 1911, foi de
logia das neuroses. fundamental importância para a divulgação
Como seus pacientes não se lembravam dos de sua obra e a difusão de sua técnica no conti-
fatos que revelavam sob hipnose, Freud pro- nente norte-americano.
pôs que uma dimensão mental inconsciente Pouco tempo depois de sua visita aos Esta-
influenciava dinamicamente o estado de cons- dos Unidos, ocorreu a fundação da Associação
ciência humano. Contudo, após anos de práti- Psicanalítica de Nova York (1911) e da Associa-
ca, convenceu-se de que o tratamento hipnóti- ção Psicanalítica Americana (1912), esta última
co dos quadros neuróticos não era efetivo, por- criada por Ernest Jones. Diferentemente do que
que muitos pacientes não entravam em estado ocorreu na Europa, a psicanálise conseguiu um
dissociativo ou se recusavam a ser hipnotiza- lugar de destaque nas grandes universidades
dos. Em virtude disso, Freud passou a desen- norte-americanas, o que determinou o domí-
volver um método que consistia basicamente nio de suas teorias na psiquiatria durante toda
em forçar as memórias reprimidas do incons- a primeira metade do século XX. Independen-
ciente a se tornarem conscientes pela rememo- temente do problema conceitual que isso possa
ração forçada. ter significado para outras formas de entendi-
mento das doenças mentais, foi um fator cabal
Percebendo que esse método também não para a difusão das psicoterapias como método
era muito eficaz, Freud passou a solicitar terapêutico em todo o mundo.
a seus pacientes que tentassem falar tu- Contudo, o declínio da psicanálise como
do o que vinha a sua cabeça sem censu- método hegemônico ocorreu a partir da se-
ra, criando uma técnica que passaria a ser gunda metade do século XX, quando descober-
chamada de associação livre. Freud notou tas no campo das neurociências e da medici-
que, por meio desse método, os pacien- na passaram gradualmente a dominar os mo-
tes contavam sonhos, cometiam atos fa- delos teóricos e conceituais das doenças men-
lhos ou faziam associações que ajudavam tais. Além disso, somaram-se críticas devido ao
a desvendar o conteúdo inconsciente de longo tempo de formação, ao custo dos trata-
suas mentes sem a necessidade da hipno- mentos e à baixa efetividade da psicanálise em
se. O resultado final foi um método tera- certas patologias, como na depressão recorren-
pêutico que ele chamou de psicanálise. te. Esses problemas fizeram muitos terapeutas,
como Aaron Beck (1921), que originalmen-
Apesar de a psicanálise sofrer críticas e for- te tinham formação psicodinâmica, pensarem
te resistência nos meios acadêmicos da Europa em formas mais objetivas de psicoterapia. Es-
continental, na Inglaterra e nos Estados Unidos, sas novas modalidades psicoterapêuticas cog-
ela rapidamente encontrou adeptos e se propa- nitivistas e comportamentais, que lidavam ape-
gou como técnica psicoterapêutica, tornando- nas com aspectos conscientes da personalida-
-se um modelo quase hegemônico de psicote- de, eram mais fáceis de ser aprendidas, além de
rapia até a primeira metade do século XX. Na preconizarem tratamentos de curta duração e
Inglaterra, a fundação da Sociedade Psicanalí- focados na redução dos sintomas. Da mesma
tica Britânica por Ernest Jones (1879-1958), em forma, essas psicoterapias eram “manualiza-
1913, e a tradução das obras de Freud por James das”, adaptando-se muito mais facilmente ao
Strachey (1887-1967), em 1925, contribuíram modelo empírico da medicina e ao ensaio clí-
enormemente para a rápida difusão da psicaná- nico randomizado (ECR). Essas características
lise na língua inglesa. Outro fator determinan- permitiram que, rapidamente, dados empíricos
te para seu crescimento na Grã-Bretanha foi o embasassem sua eficácia, o que acarretou indi-
fato de Jones auxiliar inúmeros psicanalistas do cações precisas e custeio por seguros de saúde
continente europeu a se exilarem na Inglater- nos Estados Unidos.
ra durante a Segunda Guerra Mundial, entre Como reação a esses entraves, formas mais
eles Sigmund Freud, Anna Freud (1895-1982) e curtas de tratamentos psicodinâmicos foram
Melanie Klein (1882-1960). Anna Freud e Me- propostas, e escolas com modelos mais sim-
plificados de psicanálise surgiram, como a es- tamento de fobias em seres humanos, até ser
cola da psicologia do ego, defendida por Anna substituída pela exposição in vivo. Muitos com-
Freud, e a escola americana ou a mentalização, portamentalistas menos radicais passaram a
de Peter Fonagy (1952). Ainda, a Associação propor que era inegável que a cognição deter-
Mundial de Psicanálise passou a apoiar intensa- minava ou influenciava o comportamento, o
mente a pesquisa em psicoterapia de orientação que propiciou o desenvolvimento de técnicas
analítica e a interlocução entre a psicanálise e a mistas denominadas cognitivo-comportamen-
psiquiatria, promovida por figuras de destaque tais.
na Associação Americana de Psiquiatria, como
Glen Gabbard (1949). Terapia existencial/humanista
e centrada na pessoa
A terapia comportamental Nos anos de 1950, também como alternati-
Com suas raízes datadas do final do século XIX, va à psicanálise, surgiu uma técnica centrada
o behaviorismo, ou comportamentalismo, teve na pessoa que valorizava fatores inespecíficos
seu início com os trabalhos teóricos e experi- das psicoterapias, como a pessoa do terapeu-
mentais do russo Ivan P. Pavlov (1849-1936), ta, a empatia, o calor humano e a autenticidade,
que, por meio de pesquisas com cães, descobriu desenvolvida por Carl Rogers (1902-1987). Na
o reflexo condicionado, e do norte-americano mesma época, Viktor Frankl propôs uma forma
Edward L. Thorndike (1874-1949), que propôs de psicoterapia existencial-humanista inspira-
a “lei do efeito”, segundo a qual os efeitos de um da no existencialismo, que salientava o valor da
comportamento afetam a probabilidade de que liberdade de escolha. Frankl, que foi prisioneiro
ele ocorra novamente, tendendo a ser repetido de campo de concentração durante a Segunda
se acompanhado por recompensa ou evitado Guerra Mundial, estabeleceu que o objetivo de
se seguido por um castigo. Posteriormente, em sua psicoterapia (logoterapia) era a descoberta
experimentos que seriam considerados com- de um sentido para a vida, defendendo que de-
pletamente antiéticos nos dias de hoje, John vemos encontrar um motivo para a realização
Watson (1878-1958) usou o modelo pavloviano pessoal mesmo nas condições mais adversas.
de aprendizagem para desenvolver fobias em Para ele, o desespero e o suicídio seriam a saída
crianças e comprovar que não havia n ecessidade escolhida por aqueles indivíduos que não en-
de trauma no passado para o a parecimento dos contram significado para a vida. Frankl se con-
sintomas. Na contramão desses experimentos, trapôs a Sartre, que considerava a vida um
Mary Covers Jones (1897-1987) usou as mes- absurdo que deveria ser suportado heroica-
mas ideias para desenvolver um método para mente. Há uma entrevista em que o próprio
curar as fobias. Frankl explica esses princípios.42
Ainda, usando as ideias de Thorndike que Apesar de altamente atrativas do ponto de
propunham que o meio ambiente exercia pres- vista filosófico, as psicoterapias focadas na pes-
são para que ocorresse o aumento ou a extin- soa e existencialista tiveram pouco sucesso co-
ção de comportamentos humanos por meio do mo métodos efetivos. Contudo, as terapias da
condicionamento operante, Burrhus F. Skinner “terceira onda”, as cognitivo-comportamentais,
(1904-1990) criou uma forma de psicoterapia também usam muitos dos conceitos da aceita-
chamada de behaviorismo radical. Esses com- ção e da realização pessoal.
portamentalistas radicais, como Watson e Skin-
ner, consideravam que apenas poderíamos le- O modelo cognitivo e as
var em conta em psicologia fatos observáveis, terapias cognitivas e
negando qualquer papel às cognições e às emo- cognitivo-comportamentais
ções sobre o comportamento humano. A TCC surgiu em razão do descontentamen-
Nos anos de 1950, Joseph Wolpe (1915- to que existia com a psicanálise e com o beha-
-1997), um médico sul-africano, desenvolveu viorismo radical nos Estados Unidos, no final
uma técnica de dessensibilização sistemáti- dos anos de 1950. Seus principais idealizadores,
ca para tratar fobias produzidas em gatos por Albert Ellis (1913-2007) e Aaron Beck (1921),
meio de condicionamento clássico, que depois criaram uma psicoterapia baseada no poder das
eram eliminadas com a exposição gradual. Es- cognições (pensamentos e crenças) e crenças
sa técnica teve enorme sucesso também no tra- em provocar emoções adequadas ou perturba-
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