Favelas e Gentrificacao - Ampliando o Debate - Patricia Novaes

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Favelas e Gentrificação: ampliando o debate

Por Patricia Ramos Novaes

Os primeiros debates sobre o fenômeno da gentrificação no Brasil, bem como


em outros países da América Latina, surgiram a partir dos anos 2000 (JANOSCHKA,
SEQUERA, SALINAS, 2014)i relacionados a adesão dos governos estaduais e
municipais a políticas de “renovação” e “revitalização” urbana.
Em muitas cidades brasileiras, essas políticas vêm primando pelo
embelezamento, reordenamentos habitacionais e criação de novos espaços de cultura e
lazer destinadas às classes média e alta. Territórios populares nas cidades brasileiras
sofreram elitização e, por isso, na década seguinte o conceito de gentrificação passou a
ser acionado não só por pesquisadores nas suas análises acadêmicas, mas também pelos
meios de comunicação e por movimentos populares que sentiram os efeitos da elitização
nos espaços em que viviam.
Muitos estudos já apontaram que o conceito de gentrificação foi sendo ampliado
justamente para dar conta de novas experiências que a teoria clássica da gentrificaçãoii
não conseguia explicar. Dentre elas, destacam-se as transformações no padrão de lazer,
turismo e entretenimento, na qual se verifica a atração da população de classe média, em
maior medida, para consumir do que para estabelecer moradias, tal como apontado na
literatura sobre gentrificação comercial (CHERNOFF, 1980; CHABROL, et al, 2014)iii
e gentrificação turística (MENDES, 2013; GANT, 2015)iv.
Na cidade do Rio de Janeiro, a literatura relaciona o fenômeno da gentrificação
essencialmente a três localidades: a Região Portuária, o bairro da Barra da Tijuca e as
favelas da Zona Sul.
De acordo com algumas pesquisas (ALBINATI, 2017; MONTEIRO, 2017)v, a
Região Portuária poderá sofrer processos de gentrificação, na medida em que as obras
de “revitalização” da região vêm transformando o espaço físico, com a construção de
museus e a reurbanização do espaço público, mas também buscando atrair novos
consumidores de classe média (público-alvo do projeto), através da mudança das
representações negativas da região. O local pobre e degradado da região portuária está
sendo reinventado como local da cultura, do “business” e do futuro. E por outro lado a
herança negra e popular da região vem sendo tratada como passado.
Além disso, uma parte da população da Região Portuária foi removida e
reassentada em outras partes da cidade e o Plano de Habitação de Interesse Social
desenvolvido para a região no ano de 2015 não foi, até o momento, executado
permanecendo sem perspectivas para sua implementaçãovi.
Além da área portuária, pesquisas (MASCARENHAS, BIENENSTEIN e
SANCHEZ, 2011)vii apontam que a expansão do bairro da Barra da Tijuca, na zona
oeste da cidade, também vem promovendo processos de gentrificação. Este bairro de
classe média-alta que tem como características a ocupação predominantemente por
complexos condominiais de edifícios de altos padrão, shopping centers e centros
comerciais e empresarias, vem se expandindo para os bairros contíguos (Camorim,
Curicica, Jacarepaguá) de padrão médio e baixo. Esses bairros de expansão vêm se
constituindo em um novo nicho do mercado imobiliário, especialmente após as obras de
infraestrutura e outros investimentos na região para abrigar modalidades dos Jogos
Olímpicos de 2016 que se concentraram nesta região.
Por outro lado, diversas favelas presentes nestes bairros foram removidas ou
ameaçadas de remoção. O caso mais emblemático foi da favela Vila Autódromo que se
localiza ao lado do local escolhido para construção do Parque Olímpico, onde se
concentrou grande parte das modalidades dos jogos e, também, onde se construiu a vila
dos atletas, os conjuntos residenciais de médio e alto padrão que serviram para abrigar
as delegações esportivas e após os jogos foram comercializados. Mesmo com intensa
resistência das famílias que levou a uma grande mobilização de setores da sociedade
civil, universidades, defensores públicos, vereadores e deputados, cerca de 500 famílias
foram removidas com o discurso do risco ambiental, pois se localiza próximo a uma
lagoa. Mas a organização e resistência das famílias garantiu a permanência de cerca de
30 famílias e a execução de obras de urbanização no local.
Na Zona Sul, pesquisas recentes vêm apontando processos de gentrificação em
favelas. Em geral, elas apontam mudanças no padrão dos comércios e serviços, no perfil
da população que circula e consome estes serviços, além do encarecimento do custo de
vida e novas oportunidades criadas para venda e aluguel de imóveis por valores nunca
praticados na favela (OST, 2012; LACERDA, 2016)viii.
Observou-se também que os locais onde antes ocorriam os bailes funk passaram
a ser ocupados por outros sons, como soul music, samba e jazz e esses espaços
cobravam valores de ingressos inacessíveis aos moradores (MIRANDA E
ix
FORTUNATO, 2016) .
Outras análises apontam que a distribuição de títulos de propriedade decorrente
da regularização fundiária em algumas favelas na zona sul, gerou processos de
privatização de estoques de terras públicas. Tal fato poderia caminhar para legitimação
de processos de gentrificação, na medida em que criou novas condições de mercado em
territórios que vêm passam por um forte processo de requalificação econômica, social e
cultural (BONAMICHI, 2016)x.
Porém, o que nos parece mais pertinente até agora nos estudos sobre
gentrificação na cidade do Rio de Janeiro, especialmente nas favelas, é que este
fenômeno não se estabeleceu completamente.
Isso se deve a uma série de motivos. No caso das favelas, o peso simbólico dos
territórios da ilegalidade, da violência e da marginalidade parece funcionar como um
bloqueio ao pleno desenvolvimento dos experimentos de gentrificação. Outros
bloqueios parecem derivar das características físicas das favelas e da ausência ou
precariedade na implementação das políticas públicas voltadas para esses territórios,
especialmente a política de segurança, a política de habitação e a política de
urbanização. E não podemos deixar de observar as mobilizações dos moradores que
fazem frente ao processo de exclusão, permanecendo e resistindo nas favelas.
A política de segurança pública, através do programa de polícia “pacificadora”,
parece ter garantido a penetração do mercado nestes espaços, o que pode ser notado pela
quantidade de bares, bistrôs, hostels, agências de turismo que abriram desde a
implementação das Unidades de Polícia Pacificadora – UPP nestes territórios, seja de
empreendedores externos à favela, seja de moradores. Além disso, percebeu-se a
revalorização dos prédios localizados na área formal no entorno das favelas.
Por outro lado, o programa de polícia “pacificadora” não rompeu o padrão de
atuação repressivo nestes territórios. De fato, em algumas favelas notou-se a
minimização dos tiroteios que tanto alteravam as dinâmicas de sociabilidade e de
entrada e saída nas favelas. No entanto, as “duras”, as revistas vexatórias e o uso
ostensivo das armas pelos policiais permaneceram, demostrando que a militarização nas
favelas nunca deixou de existir.
Cabe mencionar, ainda, que a partir do ano de 2016 quando o projeto de polícia
“pacificadora” ganhou claros sinais de enfraquecimento, ocorreram inúmeros
confrontos da polícia com traficante dentro das favelas, resultando em mortes tanto de
moradores, quanto de policiais.
Pode-se dizer que a política urbana, através dos programas PAC-Favelasxi e
Morar Cariocaxii, propiciou algumas melhorias na infraestrutura das favelas, porém não
alcançou o que se pretendia, além de ter levado a processos e tentativas de remoções de
moradias, nas quais algumas não se consumaram em razão da resistência e mobilização
dos moradores. Neste sentido, essa política não alterou as condições urbanas em termos
de esgotamento sanitário, limpeza urbana, condições de habitabilidade, iluminação,
entre outras. Ao contrário, as condições urbanas permanecem precárias se comparadas
com as condições urbanas dos bairros nos quais as favelas estão inseridas.
Já as políticas sociais organizadas no âmbito do programa Rio+Social xiii, embora
tenham contribuído para o acesso da população a alguns serviços que levaria à
promoção da cidadania, como saúde, educação e capacitação para o trabalho, demostrou
não terem sido eficazes. Por outro lado, propiciou o estímulo ao empreendedorismo,
fundado na ideologia do sucesso individual, o que envolve certa ilusão, na medida em
que poucos possuem habilidades ou condições financeiras de atingir este ideal. Assim,
aqueles que tinham mais condições de aproveitar a oportunidade para terem fontes de
renda foram beneficiados pela nova realidade, enquanto muitos tantos ainda vivem na
insegurança e precariedade.
A questão é que a introdução da dinâmica de mercado com ausência de
mecanismos de regulações estatais levou à especulação imobiliária e ao aumento dos
valores de venda e aluguel praticados nas favelas. Como resultado, gerou processos
objetivos e subjetivos de aumento do custo de vida e deslocamentos de moradores para
outras partes da cidade e até mesmo para dentro das favelas.
Além disso, essa dinâmica do mercado levou a mudanças no padrão dos
comércios e serviços nestes territórios. Para além do surgimento de espaços voltados ao
turismo e ao consumo da classe média, viu-se o aumento dos valores praticados em
alguns comércios tradicionais que buscaram se adequar às novas demandas.
Neste sentido, entendemos que os processos de mercantilização e “integração”
da favela à cidade pelo consumo encontraram algumas barreiras. Além das apontadas
acima, lembramos as tentativas de organização da sociedade local que denunciaram a
não correspondência entre os deveres que tiveram que assumir abruptamente e a
qualidade dos serviços públicos prestados. Mas também é preciso levar em consideração
que esses experimentos ocorrerem em territórios de favelas, marcados por uma
configuração física bastante peculiar, por serem morros com alta densidade demográfica
nas áreas ocupadas. Além disso, combinam estruturas viárias bastante precárias, que
muitas vezes se tornam uma verdadeira barreira para um projeto de expansão urbana.
Em suma, o pretendido resgate das favelas, através das políticas públicas e do
acesso ao mercado formal, esteve longe de assegurar à população local a expansão da
cidadania, através da garantia dos direitos sociais mais amplos, como moradia digna,
mobilidade, saneamento, saúde, educação, cultura, segurança, expandindo, assim, o
direito à cidade. Essa afirmação parte das percepções de que as políticas públicas
voltadas a esses territórios não cumpriram sua função integradora e reguladora do
mercado.
Por estes motivos, achamos pertinente acionar a ideia de gentrificação periférica
para interpretar as experiências de elitização que as favelas da zona sul da cidade vêm
passando. Esta ideia refere-se ao entendimento de que as favelas permaneceram como
territórios populares e estigmatizadas pela marginalidade, porém com algumas partes
destes espaços passando por processos de formalização de serviços (abastecimento de
água e energia elétrica, transporte, comércio, entre outros) e investimento público em
urbanização. Nesses espaços percebem-se processos de elitização, principalmente em
termos do padrão de serviços e comércios ofertados, reproduzindo, na escala micro, a
estrutura socioespacial desigual e combinada de formalidade e informalidade, marca da
nossa urbanização periférica.

i
JANOSCHKA, Michael; SEQUERA, Jorge; SALINAS, Luis. Gentrification in Spain and Latin America
- a Critical Dialogue. International Journal of Urban and Regional Research, vol. 38.4, p. 1234–65,
july 2014.
ii
Chamamos de teoria clássica as análises em torno das transformações urbanas relacionadas à reversão
do processo de suburbanização, em maior medida pela ação dos “pioneiros”, ou seja, dos grupos de classe
média que reabilitavam moradias em bairros centrais em decadência. Sobre isso ver: HACKWORTH,
Jason; SMITH, Neil. The changing state of gentrification. Tijdschrift voor Economische en Sociale
Geografie, p. 464-477, 2001.
iii
CHABROL, Marie; FLEURY, Antoine; VAN CRIEKINGEN, Mathieu. Commerce et gentrification. Le
commerce comme marqueur, vecteur ou frein de la gentrification. Regards croisés à Berlin, Bruxelles et
Paris. in: Gasnier A., Lemarchand N. (dir), Le commerce dans tous ses états. Espaces marchands et
enjeux de société, Rennes, PUR, , 277-291, 2014.
iv
GANT, Agustin cocola. RC21 International Conference on “The Ideal City: between myth and reality.
Representations, policies, contradictions and challenges for tomorrow's urban life” Urbino (Italy), p. 27-
29, August, 2015.
Mendes, Luis. Gentrificação turística em Lisboa: neoliberalismo, financeirização e urbanismo austeritário
em tempos de pós-crise capitalista 2008-2009. Cad. Metrop., São Paulo, v. 19, n. 39, pp. 479-512,
maio/ago 2017.
v
MONTEIRO, João Carlos Carvalhaes dos Santos. Estigmatização territorial e limites para a
revalorização urbana: o caso da zona portuária do Rio de Janeiro Congress of the Latin American Studies
Association, Lima, Peru, April 29-May 1, 2017.
ALBINATI, Mariana Lusher. A produção de espaços culturais na Zona Portuária do Rio de Janeiro: entre
isotopias e heterotopias. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa
e Planejamento Urbano e Regional, Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional,
2016.
vi
Sobre isso ver: WERNECK, Mariana. Habitação Social do Porto Maravilha: cadê? Boletim
Observatório das Metrópoles, 2017.
Disponível em:
http://www.observatoriodasmetropoles.net/index.php?option=com_k2&view=item&id=2017%3Ahabita
%C3%A7%C3%A3o-social-do-porto-maravilha-cad%C3%AA%3F&Itemid=180&lang=pt. Acessado em
Janeiro de 2018.
vii
MASCARENHAS, Gilberto; BIENENSTEIN, Glauco; SÁNCHEZ, Fernanda. O jogo continua:
megaeventos esportivos e cidade. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.
viii
OST, Sabrina Marinho. O Mercado Sobe a Favela: um estudo sobre o Santa Marta pós-UPP.
Dissertação (mestrado) – Universidade - Fundação Getúlio Vargas, Escola Brasileira de Administração
Pública e de Empresas, 2012.
LACERDA, Larissa Gdynia. Conflitos e Disputas pela Mercantilização de Territórios Populares: o caso
da favela do Vidigal. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e
Regional, 2016.
ix
MIRANDA, Irma. Teixeira.; FORTUNATO, Rafael. O turismo sobe o morro do Vidigal (Rio de
Janeiro, Brasil): uma análise exploratória. Turismo e Sociedade, 9, 2: 1-20, 2016.
x
BONAMICHI, Nayana Corrêa. Favela on sale: regularização fundiária e gentrificação de favelas no Rio
de Janeiro. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa e
Planejamento Urbano e Regional, Programa de Pós Graduação em Planejamento Urbano e Regional,
2016.
xi
Recursos federais do Programa de Aceleração do Crescimento destinados a urbanização de favelas.

xii Programa de urbanização de favelas criado em 2010 reunindo os recursos federais do PAC, da
prefeitura e do Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID.
xiii
Inicialmente denominado UPP Social, o programa foi criado em 2010 e implementado nas favelas
com Unidade de Polícia Pacificadora - UPP com objetivo de coordenar intervenções dos vários órgãos da
Prefeitura e promover parcerias com outros órgãos públicos e privados para a realização de projetos
sociais, educacionais e de geração empregos e negócios com a finalidade de integração das favelas à
cidade.

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