Resenha Do Engels

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CRÍTICA

marxista

ARTIGOS
Reler Engels:
sua resenha
de Para a crítica da
economia política,
de Marx*
MICHAEL HEINRICH **

Por muito tempo, Marx e Engels foram considerados como uma unidade
indissolúvel, tanto no sentido político quanto no científico. Seja lá o que um
deles declarasse, isso deveria possuir, de modo equânime, validade para ambos.
Essa concepção dominou não apenas o “marxismo-leninismo” do partido oficial
da União Soviética; era algo amplamente disseminado, mesmo entre os muitos
autores marxistas que não compartilhavam com esse marxismo. As primeiras
dúvidas sobre essa unidade foram expressas por Georg Lukács, que constatou
diferenças entre Marx e Engels em suas concepções de dialética e, em especial,
criticou a tentativa de Engels de estender a dialética também à natureza (Lukács,
1970 [1923], p.63, nota 6). Desde os anos 1970, o conjunto da obra tardia desse
autor, sobretudo Anti-Dühring,1 foi colocado crescentemente sob a suspeita não
apenas de ter popularizado as análises marxianas, mas também de falsificá-las.
Engels foi concebido, por isso, como o inaugurador de um “marxismo” visto como
problemático, que não tinha mais muito a ver com a crítica marxiana. Contra
isso, os defensores de uma unidade intelectual entre Marx e Engels sustentaram
que ambos cultivaram por anos um diálogo intenso sobre todo tipo de questão
e que nunca ocorreu entre eles diferenças fundamentais. Muito pelo contrário,
Marx não apenas conhecia o Anti-Dühring, mas também auxiliou Engels nesse

* Tradução do artigo “Engels wieder gelesen: Seine Rezension von Marx‘Zur Kritik der politischen
Ökonomie’” por Laura Luedy e Hyury Pinheiro.
** Professor de Economia na Universidade de Ciências Aplicadas de Berlim. E-mail: [email protected]
1 Cf. Friedrich Engels, A revolução da ciência segundo o senhor Eugen Dühring. Trad. Nélio Schneider.
São Paulo: Boitempo, 2015. (N. T.)

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trabalho: uma parte do Anti-Dühring na seção sobre economia nasce diretamente
dos trabalhos preparatórios de Marx.
Tanto a representação da completa unidade científica e política de Marx e En-
gels, quanto a imagem de Engels como alguém que teria aplanado e falsificado a
crítica marxiana me parecem insustentáveis. Há não apenas uma série de evidências
convincentes a favor da existência de concepções distintas entre Marx e Engels;
aliás, seria bastante inusitado se duas cabeças igualmente excepcionais e que trazem
consigo tanto interesses distintos quanto experiências distintas dessem respostas
idênticas para todas as questões científicas e políticas. Contudo, a representação
de Engels como alguém que apenas teria aplanado a crítica marxiana é uma
simplificação grosseira. Assim como é problemático responsabilizar Marx pelo
stalinismo, é também questionável atribuir a Engels cada dogmatismo marxista.
A relação intelectual entre Marx e Engels é não apenas consideravelmente
mais complexa do que as posições ora delineadas permitem supor; ela precisa,
antes, ser distinguida segundo os diferentes campos e temas, bem como segundo
os seus distintos momentos, pois tanto Marx quanto Engels possuíam extrema
capacidade de aprender, de modo que suas concepções se transformavam ao longo
do tempo. Irei me ocupar de modo detido da relação entre ambos na minha biografia
de Marx.2 Trato, a seguir, apenas de um pequeno recorte dessa relação, a saber,
da resenha escrita em duas partes por Engels sobre o trabalho de Marx intitulado
Para a crítica da economia política: primeira brochura3 e publicado em 1859.
Nessa resenha, Engels se expressou sobretudo acerca do método marxiano
no interior da crítica da economia política. Ele distingue um método “lógico” de
um “histórico”, mas chega, então, à conclusão de que haveria uma concordância
fundamental entre desenvolvimento lógico e histórico. A partir disso surgiu na
recepção da resenha um “método lógico-histórico” (uma expressão que Engels
não empregou em lugar algum) que foi concebido por décadas como o “méto-
do marxiano”. Em razão disso, as declarações de Engels nessa resenha foram
utilizadas como explanações completamente autoevidentes do texto marxiano.
Isso foi comum não apenas no contexto do marxismo-leninismo soviético,4 mas
também entre autores como Ronald Meek (1956, p.148 ss.; 1973, p.130 s.) ou
Ernest Mandel (1976, p.21 s.).
No contexto da renovada discussão sobre a crítica da economia política que se
introduz a partir do fim dos anos 1960 – discussão na qual não apenas O capital,5

2 O autor se refere a Michael Heinrich, Karl Marx e o Nascimento da Sociedade Moderna. São Paulo:
Boitempo, 2018. (N. T.)
3 Cf. Karl Marx, Para a crítica da economia política. In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros
textos escolhidos. Trad. José Arthur Giannotti e Edgar Malagodi. São Paulo: Abril Cultural, 1985,
p.101-257. (N. T.)
4 Zeleny (1968) e Rosental (1973) realizaram as mais diferenciadas contribuições partindo dessa
mesma orientação.
5 Karl Marx, O capital: crítica da economia política. Livro I. Tradução de Rubens Enderle. São Paulo:
Boitempo, 2017. (N. T.)

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mas também os Grundrisse6 e os Resultados do processo imediato de produção7
tiveram importante papel – a Introdução de 1857 atraiu fortemente a atenção.
Contra a concepção engelsiana, foi sustentado que Marx evidentemente, chega, na
seção sobre o método da Introdução, a um resultado oposto, o de que, na verdade,
o desenvolvimento histórico e a apresentação das categorias não transcorreriam em
paralelo (por exemplo, em Reichelt, 1970, p.233 s.; Backhaus, 1975, p.139 ss.).
Os defensores da unidade entre Marx e Engels tentaram minimizar essa evi-
dente contradição com argumentos pouco plausíveis (por exemplo, Holzkamp,
1974, em sua resposta a Bischoff, 1973). Enquanto isso, os críticos dessa unidade
se contentavam, na maioria das vezes, com a constatação da contradição e a toma-
vam como prova das incompreensões fundamentais de Engels, mas, em geral, não
se questionaram uma vez sequer sobre o que levara Engels a suas declarações.8
I.
Engels chegou à crítica da economia política antes de Marx. Como filho de
uma família de industriais, desde cedo viu o negócio familiar de dentro e, após
a escola, obteve qualificação comercial. Já aos 18 anos visitou Manchester com
seu pai, que era sócio de uma empresa estabelecida na cidade. Em 1844 enviou
para os Anais franco-alemães seu Delineamentos para uma crítica da economia
nacional,9 um artigo que Marx elogiou ainda em 1859, no prefácio a Para a crítica
da economia política: primeira brochura, como um “esboço genial” (MEGA II/2,
p.101; MEW 13, p.10). Foi sobretudo por meio desse artigo que Engels contribui
para que o jovem Marx encontrasse o caminho para a crítica da economia.
Sem dúvida, Marx se recuperou rápido do atraso já nos anos 1840. E, a
partir de 1850, no exílio londrino, Marx dá início a um segundo e aprofundado
estudo sobre economia, o qual redunda inicialmente nos Cadernos londrinos

6 Karl Marx, Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. Trad. Mario Duayer, Nélio Schneider
(colaboração de Alice Helga Werner e Rudiger Hoffman). São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Ed.
UFRJ, 2011. (N. T.)
7 Karl Marx, O capital. Livro I. Capítulo VI (inédito). Trad. do castelhano por Eduardo Sucupira Filho
e corrigido e cotejado com a edição alemã por Célia Regina de Andrade Bruni. São Paulo: Livraria
Editora Ciências Humanas, 1978. (N. T.)
8 A análise mais extensa e diferenciada sobre a resenha de Engels no espaço germanófono foi oferecida
por Kittsteiner (1977), que também investiga as causas das concepções de Marx e Engels. Concordo
com sua argumentação em vários pontos. Vejo, no entanto, como questionável a fundamentação
de sua tentativa de atribuir as diferenças entre os autores a um conceito distinto de ciência, pois,
para isso, Kittsteiner precisaria conciliar as declarações de Engels presentes na resenha com um
escrito seu surgido 25 anos mais tarde, o Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã,
como se os escritos de Engels constituíssem uma obra unificada e coerente. Não temos, de fato,
nenhum documento a partir do qual se depreenderia a concepção de ciência que Engels tinha no
fim dos anos 1850. Das contribuições anglófonas sobre a resenha de Engels, deve ser destacado,
em especial, Arthur (1996, p.179-188) que, no entanto, não pôde tomar ciência do intenso debate
alemão dos anos 1970, pois os respectivos textos não estavam traduzidos.
9 Friedrich Engels, Esboço de uma crítica da economia política. In: Friedrich Engels: política. Org. e
trad. José Paulo Netto. São Paulo: Ática, 1981, p.53-81. (N. T.)

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escritos entre 1850 e 1853. Só então Marx superou o mero emprego crítico das
categorias da economia política que caracterizou seus trabalhos dos anos 1840.
Só em Londres desenvolveu uma crítica efetiva das categorias econômicas que
deveria distinguir sua crítica da economia política. O primeiro resultado maior
dessa crítica foram os Grundrisse, escritos no inverno de 1857-1858. Com base
neles, Marx compôs, então, aquela Primeira brochura publicada em 1859 que
seria resenhada por Engels.
Muitos autores que partem de uma unidade intelectual completa entre Marx e
Engels lidaram com esse texto engelsiano como um tratado congenial ao método
marxiano. Com isso foram, no entanto, completamente apagadas as circunstâncias
em que ele surgiu. Enquanto Marx se ocupava intensivamente da economia política
nos anos 1850, Engels passava a maior parte de seu tempo em Manchester, na
firma “Ermen & Engels”, da qual seu pai era sócio. Nesse tempo, não possuía ali,
de modo algum, uma posição de destaque. Ele foi tratado com muita desconfiança
e, às vezes, literalmente vigiado, tanto por seu pai, que não concordava de modo
algum com as ideias políticas do filho, quanto pelo sócio de seu pai, Peter Ermen,
e seu irmão Gottfried. Com o dinheiro ganho, Engels manteve a família Marx
ao longo de anos e, no tempo que restava a ele, não raro escrevia artigos para o
New York Tribune que eram publicados sob o nome de Marx. Nos anos 1850, os
artigos para o Tribune foram a mais importante fonte de renda para Marx. Não
sobrava tempo a Engels para seus próprios estudos de teoria econômica. Isso se
torna muito explícito quando Marx lhe informa pela primeira vez, em uma carta
de 2 de abril de 1858, de modo detalhado sobre a concepção do plano de sua obra
e, nessa ocasião, visivelmente aguarda um debate a respeito de seu conteúdo. A
resposta de Engels de 9 de abril de 1858 foi, no entanto, muito breve e enfatizou
o quão estranho o pensamento abstrato teria se tornado para ele:

O estudo de teu abstract10 da primeira metade da brochura me ocupou demais, it is


a very abstract abstract indeed,11 como não se pode evitar em razão da brevidade,
e frequentemente tenho dificuldade em encontrar as passagens dialéticas, pois all
abstract reasoning12 se tornou muito estranho a mim. (MEGA III/9, p.126; MEW
29, p.319)

Isso não deve ter se alterado quando Marx pediu a ele, mais de um ano depois,
em 19 de julho de 1859, uma resenha da Primeira brochura que fora publicada
nesse meio tempo e que precisaria estar pronta, no mais tardar, na semana seguin-
te. Inicialmente, Engels nem mesmo reagiu, de modo que Marx novamente lhe
solicitou a resenha em 22 de julho. Um tanto relutante, Engels respondeu em 25

10 Resumo, extrato sumário. (N. T.)


11 É, de fato, um resumo (extrato sumário) muito abstrato. (N. T.)
12 Todo raciocínio abstrato. (N. T.)

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de julho que não poderia mais providenciar o artigo naquela semana, pois “isso é
um trabalho, e para isso precisaria ter recebido notice13 com maior antecedência”
(MEGA III/9, p.522; MEW 29, p.464). No dia 3 de agosto enviou, então, com
nítido desconforto, a primeira parte da resenha a Marx:

Aqui está o início do art.[igo] sobre teu livro. Revise-o cuidadosamente e, caso
não te agrade in toto,14 rasga-o e escreva a mim tua opinião. Estou tão desacos-
tumado com essa espécie de escrita devido à falta de prática que tua mulher irá
rir muito da minha falta de jeito. Se podes deixá-lo pronto, então o faça. Alguns
exemplos convincentes da visão materialista seriam apropriados... (MEGA III/9,
p.534; MEW 29, p.468)

Dado que não se encontram os exemplos sugeridos por Engels e que não há
na correspondência nenhuma evidência de alterações textuais realizadas, Marx
provavelmente admitiu o texto no jornal tal como o recebera de Engels. Como se
depreende de sua carta, Engels estava tão pouco convencido de seu texto, quanto
muitos de seus receptores no século XX.
II.
A resenha de Engels deveria ser publicada em três partes no Das Volk,15 jornal
da associação alemã para a formação dos trabalhadores em Londres. Naquele tem-
po, Das Volk foi dirigido por Marx, não formalmente, mas na prática. A primeira
parte, que trata da concepção materialista de história esboçada no prefácio do
escrito de Marx, foi publicada em 6 de agosto de 1859; a segunda parte, que lida
sobretudo com o método, em 20 de agosto. A terceira parte, que deveria tratar da
mercadoria e do dinheiro, não veio a público, pois o jornal precisou interromper
sua publicação por motivos financeiros. É provável que Engels sequer tenha
escrito essa terceira parte.
Na primeira parte da resenha, Engels, de início, posiciona historicamente o
escrito marxiano. Por conta do atraso econômico, a burguesia alemã, diferente-
mente da inglesa, não teria gerado até então nenhuma literatura econômica. O
caso do “partido proletário alemão” foi, no entanto, distinto: “Toda sua teoria
resultou do estudo da economia política e também data do instante do surgimento
desse partido a economia alemã, científica e independente” (MEGA II/2, p.247;
MEW 13, p.469). Ao falar aqui de “partido proletário alemão”, Engels não tem
em mente nenhum partido em seu sentido hodierno enquanto forma fixa de or-
ganização com estatuto de partido, com membros e com funcionários eleitos – à
época não havia esse tipo de partido –, mas sim todos aqueles que representam

13 Aviso. (N. T)
14 Em sua totalidade (N. T.)
15 O povo (N. T.)

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conscientemente os interesses do proletariado, em parte como pessoas singulares,
em parte em pequenos grupos mais ou menos formais. Todos eles criticavam, de
distintos modos, as relações econômicas.
No entanto, o que Engels diz na próxima frase não vale de modo algum para
todo o “partido proletário alemão”: “Essa economia alemã se baseia essencialmente
na concepção materialista da história, cujos traços fundamentais estão expostos
brevemente no prefácio da obra mencionada” (ibid.). Essa concepção materialista
não era de modo algum dominante. Na Alemanha, as representações religiosas
eram, entre outras, significativas nos primórdios do movimento dos trabalhadores.
Foram sobretudo Marx e Engels que, desde a segunda metade dos anos 1840,
representavam uma tal “concepção materialista da história” e que quiseram afir-
má-la contra a crítica moralizante do “verdadeiro socialismo”. Tiveram sucesso em
relação a isso no interior da Liga dos Comunistas com o Manifesto comunista,16
mas ela formava apenas uma pequena parte do movimento dos trabalhadores
de então. Mesmo Engels indica que a nova concepção enfrentou resistência não
apenas entre a burguesia, “mas também entre a massa de socialistas franceses
que queriam mudar o mundo com a fórmula mágica: liberté, égalité, fraternité”17
(MEGA II/2, p.249; MEW 13, p.471).
Quando, ao fim dessa primeira parte, Engels escreve que, após a derrocada da
revolução de 1848-1849, “nosso partido” cedeu a outros a rixa entre emigrantes18 e
“[estava] feliz por encontrar novamente algum sossego para estudar”, fica evidente
que, agora, “nosso partido” referia-se, antes de tudo, aos próprios Marx e Engels.
Contudo, a assertiva de que eles não teriam participado da rixa entre emigrantes
não é completamente correta. No exílio inglês, Marx e Engels escreveram em
1852 um livro detalhado sobre essa rixa (Os grandes homens do exílio) que, por
falta de um editor, não foi impresso e permaneceu, assim, desconhecido.
O fato de que Engels tenha enfatizado tão fortemente a concepção de his-
tória esboçada no prefácio marxiano certamente contribuiu para que ele fosse
considerado, na sua recepção tardia, como um dos documentos de fundação do
“materialismo histórico”. Contudo, Engels ainda não fala de modo algum aqui
de uma grande teoria chamada “materialismo histórico”, mas sim de uma “con-
cepção”, da concepção materialista de história. Ele acentua, então, que se trata
de uma perspectiva determinada no interior da consideração da história, a qual
no entanto – e isso Engels também destaca – deveria ser primeiro demonstrada

16 Karl Marx; Friedrich Engels, Manifesto comunista. Trad. Álvaro Pina. São Paulo: Boitempo, 2002.
(N. T.)
17 Liberdade, igualdade, fraternidade (N. T.)
18 A expressão “Emigrantengezänk”, traduzida aqui como “rixa entre emigrantes”, é usualmente
empregada de maneira pejorativa para se referir a situações de disputa em torno de questões au-
tointeressadas e menores travadas entre militantes políticos em exílio. O caso específico referido
por Engels nessa ocasião diz respeito, sobretudo, às disputas travadas em Londres entre os círculos
formados em torno de Gottfried Kinkel e Arnold Ruge. (N. T.)

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no material histórico concreto, “pois é óbvio que, aqui, nada se pode fazer com
uma mera frase” (MEGA II/2, p.249; MEW 13, p.471).
III.
Ao lidar com o método na segunda parte da resenha – parte sobre a qual a
recepção desse texto no século XX se concentrou –, Engels segue o desejo de-
clarado de Marx: “[Escrever] brevemente sobre o método e o que há de novo no
conteúdo” (MEGA III/9, p.515). No entanto, o problema é que não se encontra
nenhuma observação explícita sobre método no escrito de Marx e, mesmo em
suas cartas, não há qualquer tratamento mais detalhado disso.
Engels começa com Hegel e a crítica de sua dialética. Para o leitor do escrito de
Marx isso poderia ter sido um tanto surpreendente, pois a dialética hegeliana não era,
ali, de modo algum o assunto. Por que, então, Engels se refere a Hegel? A recepção
da filosofia hegeliana e sua crítica – sobretudo na primeira obra conjunta de Marx
e Engels, A sagrada família19 – constituíram etapas decisivas em seus respectivos
desenvolvimentos intelectuais. Além disso, Engels foi informado por meio de
várias cartas de Marx sobre o fato de que o embate com Hegel teve um papel bem
concreto na elaboração marxiana da crítica da economia política. Em 16 de janeiro
de 1858, Marx – que se debruçava, então, sobre o manuscrito dos Grundrisse –
compartilhou com Engels: “O fato de eu ter novamente folheado a Lógica de Hegel
by mere accident 20 – Freiligrath encontrou alguns tomos de Hegel que pertenciam
originalmente a Bakunin e enviou a mim como presente – me prestou um grande
serviço no método da elaboração” (MEGA III/9, p.24 s.; MEW 29, p.260). Marx
foi ainda mais explícito em sua carta de primeiro de fevereiro de 1858 ao fazer a
seguinte observação sobre a obra econômica planejada por Ferdinand Lassalle:

Percebo a partir dessa nota [uma anotação no livro de Lassalle sobre Heráclito que
se referia à análise do dinheiro, M. H.] que o sujeito pretende, em seu segundo
grande opus,21 expor a eco.[nomia] polít.[ica] de modo hegeliano. Para seu azar,
ele aprenderá que uma coisa é levar uma ciência, por meio da crítica, precisamente
ao ponto de se poder apresentá-la dialeticamente, e outra bem diferente é aplicar
um sistema de lógica pronto e abstrato a noções desse mesmo sistema. (MEGA
III/9, p.59; MEW 29, p.275)

Na última frase, Engels pôde discernir sem dificuldades a própria intenção de


Marx.22 Lê-se o começo da segunda parte da resenha quase como um comentário

19 Karl Marx; Friedrich Engels, A sagrada família ou a crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e
consortes. Trad. org. e notas de Marcelo Backes. São Paulo: Boitempo, 2011. (N. T.)
20 Por mero acaso (N. T.)
21 Obra (N. T.)
22 Três semanas mais tarde, em carta endereçada a Lassalle em 22 de fevereiro de 1858, Marx caracterizou
seu projeto como segue: “O trabalho em que estou envolvido no momento é a crítica das categorias

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a essa observação. Engels registra, de início, que a crítica marxiana da economia
mira não apenas as questões singulares controversas, mas também a ciência eco-
nômica como um todo. “Desenvolver uma ciência em sua própria conexão interna”
(MEGA II/2, p.250; MEW 13, p.472) teria sido a realização de Hegel (desde então
não mais alcançada). Entretanto, prossegue Engels, “o método hegeliano em sua
forma disponível [é] absolutamente inutilizável, é essencialmente idealista… Ele
partiu do puro pensar e, aqui, teve que partir dos fatos mais renitentes”. Apesar
disso, o modo hegeliano de pensar teria assentado como fundamento um enorme
sentido histórico. “Ainda que a forma fosse abstrata e idealista, seu desenvolvi-
mento do pensamento caminhou de todo modo paralelamente ao desenvolvimento
da história mundial, e o último deve ser, na verdade, apenas a prova do primeiro”
(MEGA II/2, p.251; MEW 13, p.473).
Essas asserções, no entanto, mais levantam questões do que respondem. Por
um lado, Engels enquadra a filosofia hegeliana em um “idealismo” estranho ao
mundo, preso ao “puro pensar”; por outro lado, precisa reconhecer o quanto de
realidade essa filosofia contém. Para explicar esse curioso diagnóstico, Engels
defende que o desenvolvimento hegeliano do pensamento e o desenvolvimento
factual da história transcorrem “paralelamente”. Se, porém, o método hegeliano
partiu do “puro pensar” e não dos “fatos”, como foi possível, de resto, que o
desenvolvimento de pensamento hegeliano transcorresse “paralelamente ao de-
senvolvimento da história mundial”?
Com sua tese do paralelismo, Engels só pode invocar Hegel de maneira muito
restrita. Na Filosofia do Direito, Hegel enfatiza “que a ordem do tempo no fe-
nômeno efetivo é em parte outra que a ordem do conceito. Por exemplo, não se
pode dizer que a propriedade tenha estado aí antes da família, e, apesar disso, ela
é tratada antes desta” (HW 7, p.86, adendo ao §32).23 As Lições sobre a História
da Filosofia de Hegel poderiam servir melhor de apoio à concepção de Engels. Na
sua introdução, Hegel faz a afirmação de que “a sucessão dos sistemas da filosofia
na história é a mesma que a sucessão na derivação lógica das determinações do
conceito na ideia”. Contudo, ele logo restringiu novamente esse paralelismo, no
que observou de modo um tanto enigmático que, “de um lado, a sequência en-
quanto sequência temporal da história” se distingue “da sequência na ordem dos
conceitos. Mostrar de maneira mais precisa onde jaz esse aspecto nos conduziria,
porém, para muito longe de nossos fins [nesta exposição]”. Logo a seguir, ele
registrou o ponto decisivo: “para conhecer o progresso da filosofia na aparência
e na figura empírica em que ela historicamente ocorre como desenvolvimento da

econ.[ômicas], ou if you like [se preferir], o sistema da economia burguesa criticamente apresentado.
Ele é, ao mesmo tempo, apresentação do sistema e crítica do sistema por meio da apresentação”
(MEGA III/9, p.72; MEW 29, p.550). Essa declaração marxiana – que é frequentemente citada hoje
em dia e que denomina o dimensionamento da crítica por meio da apresentação de modo muito
mais claro do que o trecho anteriormente referido – não era, contudo, conhecida por Engels.
23 Tradução do professor Marcos Lutz Müller, a ser publicada em breve pela Editora 34. (N. T.)

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ideia, precisa-se, evidentemente, já trazer consigo o conhecimento da ideia [...]”
(HW 18, p.49). Em outras palavras: só se pode conhecer o afirmado paralelismo
entre o desenvolvimento histórico dos sistemas filosóficos e o desenvolvimento
lógico das determinações da ideia se o desenvolvimento lógico da ideia já tiver
sido compreendido. O paralelismo não é, portanto, de maneira alguma dado ime-
diatamente, mas é, sim, um resultado mediado – que, no entanto, Hegel não quis
pôr como fundamento de sua apresentação da história da filosofia.
O problema fundamental de Engels – a saber, conciliar o “idealismo” da
filosofia hegeliana com seu caráter de conter realidade (Realitätshaltigkeit) – me
parece se basear no fato de que a filosofia hegeliana se fecha fundamentalmente
à classificação simples de “idealista” (classificação que encontramos não só em
Engels, mas também em Marx). Para os contemporâneos de Hegel, tal classificação
era qualquer coisa menos autoevidente. Ainda em 1848 encontra-se na Enciclo-
pédia de Wigand,24 no verbete “Idealismo”, a indicação de que Hegel não poderia
ser designado precisamente como idealista (Band 6, p.872).25 Esse déficit tanto da
concepção marxiana quanto da engelsiana sobre Hegel não pode, no entanto, ser
mais bem investigado aqui. Irei ocupar-me dos detalhes desse tema no segundo
volume de minha biografia de Marx.
Depois da caracterização de Hegel, Engels trata – muito brevemente – da
crítica de Marx ao autor. Marx teria sido o único a conseguir “descascar da lógica
hegeliana o cerne que abrange as efetivas descobertas de Hegel nesse campo, e
colocar o método dialético, despido de seus invólucros idealistas, na figura simples
em que ele se torna a única forma correta do desenvolvimento do pensamento”.
Esse seria o “método que subjaz como fundamento da crítica da economia política
de Marx” (MEGA II/2, p.252; MEW 13, p.474). No entanto, a caracterização que
Engels faz da crítica marxiana permanece completamente vaga. Nem a “figura
simples” daquele método é esboçada, nem se mostra que consequências têm o fato
de que esse método permanece como fundamento da crítica à economia política.
Não se trata de muito mais do que a mera alegação de que Marx teria criticado

24 Otto Wigand foi o editor de muitos escritos jovem-hegelianos, incluindo “A Situação da Classe
Trabalhadora na Inglaterra”, de Engels.
25 Vale notar nesse verbete que, para Wigand (1848), o “verdadeiro criador do Idealismo é Berkeley, que
afirmava que Deus, o espírito infinito, cria imediatamente, em cada espírito finito, a representação
do corpóreo, do mundo. Esse Idealismo foi chamado de dogmático e até mesmo de místico”. Em
face dele, o Idealismo kantiano, chamado de “crítico, transcendental e formal”, não é entendido
aqui propriamente como “Idealismo”, dado que Kant “não duvidava do ser-aí efetivo das coisas, mas
apenas da sua correta representação”. Fichte, por sua vez, ensinava que “o mundo é um produto
do eu”, pelo que seu Idealismo “costuma ser chamado de autoteísta”. Já “Schelling – que buscou
afinar o ideal com o real enquanto dissolveu o ser e o saber, a natureza e o espírito, o um e o todo
no ser infinito de Deus – e Hegel – que igualmente assumia a unidade do conceito e do ser – não
podem, por isso, ser chamados de idealistas”. Portanto, supondo a visão de Wigand como expres-
siva de seu tempo, classificar uma filosofia como “idealista” nos anos 1840 significava reconhecer
nela a ideia ou o sujeito ocupando uma posição de autonomia e domínio em relação à existência
sensível ou ao objeto, sendo, assim, a unidade entre ambos um indício “não-idealista”. (N. T.)

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Hegel com sucesso e de que ele teria também comprovado de fato o que, em Hegel,
estaria por se comprovar.
IV
O parágrafo seguinte veio a ser decisivo para a recepção. Segundo afirma
Engels, de acordo com o método adquirido, a crítica da economia política pode
ser, de fato, esboçada “lógica” ou “historicamente”. No entanto, ele não tornou
explicitamente claro o que quis dizer com “lógica” ou “historicamente”. Precisa-
mos, então, deduzir isso de suas declarações:

Dado que na história, assim como em seu espelhamento literário, o desenvolvimento


em linhas gerais também avança das relações mais simples às mais complexas, o
desenvolvimento literário-histórico da economia política concedeu um fio condutor
natural ao qual a crítica pôde se atrelar, e, em linhas gerais, as categorias econô-
micas apareceriam aí na mesma ordem que no desenvolvimento lógico. (MEGA
II/2, p.252; MEW 13, p.474f)

“Historicamente” ocorre aqui em uma figura dupla: como a história econômica


factual e como seu “espelhamento literário”, como a história das teorias econô-
micas, portanto. O “desenvolvimento lógico” das categorias deve evidentemente
consistir em uma apresentação progressiva que parte das relações mais simples às
mais complexas. Mas o que são relações “simples”? É o processo de trabalho? É a
mercadoria? O dinheiro? Ou é a ação conjunta dos ditos três fatores de produção,
a saber, trabalho, capital e terra? A relação “simples” e a categoria que a expressa
de maneira alguma são evidentes; sua determinação é, ainda nesse momento, um
ato conduzido pela teoria. Se a história econômica e seu espelhamento literário
de fato começam com as relações mais simples, isso não é algo a respeito do que
se pode decidir com base numa mera descrição de sequências fáticas.
Embora Engels conceba o “desenvolvimento literário-histórico” como “fio
condutor natural”, ele constata, no mesmo parágrafo, que a apresentação não
poderia, decerto, se orientar por ele, pois a história transcorreria “frequentemente
por saltos e em ziguezague”. A partir disso, Engels conclui:

o modo lógico de abordagem era, portanto, o único apropriado. Esse modo, no


entanto, não é outro que o histórico, despido da forma histórica e das contingências
perturbadoras. Tal como essa história começa, assim esse curso de pensamento
precisa começar, e seu progresso mais amplo nada será além da imagem espelhada,
na forma abstrata e teoricamente mais consequente do curso histórico. (MEGA
II/2, p.253; MEW 13, p.475)

O modo “lógico” de abordagem se torna, aqui, uma abordagem “histórica”


retificada, isto é, um desenvolvimento histórico sem ziguezague. A partir disso,
na história da recepção do século XX, o método “lógico-histórico” foi, então,

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atribuído sem mais a Marx por aqueles que supunham uma unidade intelectual
entre esse autor e Engels.
Críticos dessa concepção tiveram uma tarefa fácil. Na “Introdução” de 1857,
Marx discutira detalhadamente a relação entre o devir histórico e o desenvolvi-
mento lógico, o que resultou, então, no seguinte registro:

Seria, portanto, impraticável e falso deixar que as categorias econômicas sucedam


umas às outras na sequência em que, historicamente, foram as categorias deter-
minantes. Antes, sua ordem é determinada através da referência que elas fazem
umas às outras na moderna sociedade burguesa, e que é precisamente o inverso
daquilo que aparece como sua ordem natural26 ou da série que corresponde ao
desenvolvimento histórico. (MEGA II/1.1, p.42; MEW 42, p.41)

V
A pergunta interessante é, no entanto, como Engels chegou de resto à sua
concepção de paralelismo entre o desenvolvimento lógico e o (literário-)histórico
das categorias. Um motivo importante para isso me parece ser a comunicação
insuficiente entre Marx e Engels. Eles certamente trocaram opiniões sobre pro-
blemas políticos, sobre ações de amigos e de opositores em um grande número
de cartas. No entanto, uma discussão efetiva de questões teóricas da crítica da
economia política mal ocorreu. Marx deu apenas indicações muito escassas sobre
seu trabalho. Engels não pôs os olhos nem sobre os Grundrisse nem sobre os
manuscritos da Primeira brochura. Mesmo mais tarde, esse continuou sendo o
caso. Engels viu pela primeira vez o texto do livro primeiro de O capital quando
Marx lhe enviou as provas de impressão. Na correspondência dos anos 1850 e
1860 há ainda muito mais exemplos de que Marx recorre aos conhecimentos es-
pecializados de Engels sobre comércio, sem que, contudo, sejam travados debates
teóricos efetivos entre ambos. A consequência disso foi que Engels, à ocasião da
morte de Marx, não sabia em absoluto em que estado de elaboração estavam os
livros dois e três de O capital. Ele tomou conhecimento disso apenas durante a
revisão dos manuscritos póstumos.27
O primeiro e único relato algo detalhado sobre o plano da Primeira brochura
consta na já referida carta de Marx a Engels de 2 de abril de 1858. Marx começa
com o plano de seis livros (sobre o capital, a propriedade da terra, o trabalho as-
salariado, o Estado, o comércio internacional e o mercado mundial) e adiciona,
como explicação:

26 O adjetivo “naturgemäß”, que traduzimos, aqui, por “natural” é originalmente formado por uma
associação do radical Natur (natureza) e do sufixo -gemäß, que significa “de acordo com”, “na
medida de”. Em contraste com “naturell” (natural) ou “natürlich” (naturalmente, natural), a expressão
“naturgemäß” pode ser entendida como indicando uma associação menos imediata com o que se
entenda, nesse contexto, “natureza”. (N. T.)
27 Ver suas cartas a Lawrow do dia 2 de abril de 1883 (MEW 36, p.3), a Nieuwenhuis, do dia 11 de
abril de 1883, (MEW 36, p.7) e a Bernstein, do dia 14 de abril de 1883 (MEW 36, p.9).

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A passagem do capital para a propriedade da terra é igualmente histórica, pois a
forma moderna da propriedade é produto da ação do capital sobre a propriedade
feudal da terra etc. Assim também a passagem da propriedade da terra para o tra-
balho assalariado é não só dialética, mas também histórica, pois o último produto
da moderna propriedade da terra é o pôr universal do trabalho assalariado, que
então aparece como base de toda a merda. (MEGA III/9, p.122; MEW 29, p.312)

Também no esboço da determinação do dinheiro “enquanto dinheiro” Marx


escreve:

a circulação simples de dinheiro não tem dentro de si o princípio da autorreprodu-


ção e, portanto, aponta para além de si. No dinheiro – como mostra o desenvolvi-
mento de suas determinações – está posta a exigência do valor que entra na
circulação, que se mantém nela e que, igualmente, a põe – o capital. Essa passagem
é igualmente histórica. A forma antediluviana do capital é o capital comercial que
continuamente desenvolve o dinheiro. Igualmente [se dá] o surgimento do capital
efetivo a partir do dinheiro ou do capital mercantil que se apodera da produção.
(MEGA III/9, p.125; MEW 13, p.317)

Caso se conheça, como Engels, apenas essa carta, pode-se, então, chegar
definitivamente ao pensamento de que Marx parte de um paralelismo sistemático
entre o desenvolvimento “lógico” (dialético-conceitual) das categorias e a con-
sumação histórica das relações econômicas correspondentes a essas categorias.
Como, porém, se depreende da “Introdução” de 1857, Marx não partiu precisa-
mente de um paralelismo consistente: às vezes o desenvolvimento histórico pode
corresponder à ordem das categorias no desenvolvimento conceitual, às vezes ele
pode transcorrer de maneira exatamente inversa. As observações citadas a respeito
das passagens “históricas” não tinham para Marx nenhum sentido sistemático e
constitutivo da apresentação, precisamente; tratava-se de observações, por assim
dizer, suplementares, o que, porém, não poderia se tornar claro de maneira alguma
para Engels apenas com base nessa carta.
A questão a respeito do paralelismo ou do não-paralelismo entre o desenvolvi-
mento histórico e o desenvolvimento conceitual das categorias não era, de modo
algum, uma questão central para Marx. Como, no mais tardar, o Urtext de 185828
torna nítido, para ele a relação entre o desenvolvimento histórico e o conceitual
diz respeito a uma questão completamente diferente. Por volta do fim desse texto

28 Para a crítica da economia política: texto originário (MEGA II/2, p.17-94) consiste em escritos
fragmentários produzidos durante a elaboração de Para a crítica da economia política: primeira
brochura (1859). Neles, Marx chega a esboçar a passagem do dinheiro ao capital, a qual acaba
excluída da versão publicada. Sob o título de Urtext zur Kritik der politischen Ökonomie, esses
fragmentos foram publicados pela primeira vez em 1941 junto aos Grundrisse. Ver Heinrich (2014,
p.160). (N. T.)

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Marx escreve: “Mostra-se determinadamente nesse ponto como a forma dialé-
tica da apresentação só é correta se conhece seus limites” (MEGA II/2, p.91). O
ponto tratado nessa ocasião era a existência do “trabalhador livre”, isto é, das
trabalhadoras e trabalhadores que, como pessoas, são juridicamente livres, tendo,
portanto, a possibilidade de vender sua força de trabalho, e que, ao mesmo tempo,
são livres dos meios de produção e de subsistência, de modo a precisarem vender
sua força de trabalho. Esse é um pressuposto histórico “para o devir e, mais ainda,
para o ser-aí do capital”, (ibid.) que não devem ser deduzidos dialeticamente. A
“forma dialética da apresentação” supõe o capital já existente, pode mostrar suas
determinações e dinâmica imanentes (por exemplo, o desenvolvimento da força
produtiva, a acumulação, a propensão às crises) e pode também explicitar sobre
quais pressupostos o capital se apoia (a existência das trabalhadoras e trabalha-
dores “livres”). Apenas uma análise histórica pode mostrar, porém, como esses
pressupostos foram criados, e esse é, então, o ponto em que a “forma dialética da
apresentação” não é mais suficiente, em que a consideração histórica precisa se
tornar parte componente da apresentação. No livro I de O capital isso acontece no
exame da “acumulação originária”, após as determinações do processo capitalista
de produção terem sido esclarecidas.
Em O capital, um outro limite da apresentação dialética também se torna
visível: a análise conceitual explicitou que os limites da jornada de trabalho não
se deixam determinar conceitualmente, que eles são resultado da luta entre capi-
talistas e trabalhadores. Isto é, a duração da jornada de trabalho é um resultado
histórico que só pode ser explicado através de uma investigação histórica. A análise
histórica é, portanto, parte componente da apresentação da crítica da economia
política, mas o é nos pontos e sob pressupostos que só são conquistados através
da abordagem “lógica”. Isso nada mais tem a ver com a busca por paralelos entre
o desenvolvimento “lógico” e o “histórico”, como ela é indicada na carta de Marx
de 2 de abril de 1858.
O outro aspecto do “histórico” destacado por Engels, o “desenvolvimento
literário-histórico” e seus paralelos com o desenvolvimento “lógico” das cate-
gorias, é sugerido, numa certa medida, pela própria Primeira brochura: depois
da abordagem de uma categoria, Marx esboça o desenvolvimento histórico das
teorias sobre ela. Após a análise da mercadoria no primeiro capítulo, segue a se-
ção “Apontamentos históricos para análise da mercadoria”; após a abordagem do
dinheiro como medida do valor, segue a seção “Teorias da unidade de medida do
dinheiro” e, ao final do capítulo sobre o dinheiro, seguem, então, as “Teorias sobre
os meios de circulação e o dinheiro”. No Manuscrito de 1861-63, que foi esboçado
como a continuação direta da primeira brochura, encontram-se, depois da análise
do capital e do mais-valor, as Teorias sobre o mais-valor. Tal abordagem frag-
mentada pressupõe que as teorias das categorias singulares se deixam apresentar,
na medida do possível, como independentes umas das outras e na mesma ordem

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que o desenvolvimento “lógico” das categorias, o que Engels, então, interpretou
como paralelismo entre o desenvolvimento literário-histórico e o lógico.
No trabalho com as Teorias sobre o mais-valor tornou-se claro para Marx,
no entanto, que essa escrita fragmentada da história da teoria não é mais viável:
as teorias do mais-valor – de uma categoria da qual a economia burguesa de
maneira alguma dispôs explicitamente e que, no máximo, estava implicitamente
disponível – não se deixam absolutamente formular sem ao menos as ”teorias do
lucro”. Por isso, com O capital redigido a partir de 1863, Marx desistiu do plano
de escrever uma história da teoria em separado para cada categoria singular. Uma
“história da teoria” deveria formar um livro próprio, o livro IV de O capital.29
Nem Marx, nem Engels retornaram alguma vez a essa resenha. Aqueles que
acreditam na completa unidade intelectual de Marx e de Engels deduzem do
silêncio do primeiro um consentimento: de acordo com o argumento habitual,
se Marx conheceu a resenha e não a contradisse, então ele deve necessariamente
tê-la aceitado como uma apresentação adequada de suas próprias posições. A mim
parece, antes, ser correto o oposto. Marx estimava Engels enquanto cientista,
assim como enquanto amigo que o apoiou tanto material quanto idealmente ao
longo de toda sua vida. Sempre que possível, procurou citar os escritos de Engels.
No livro I de O capital foram citados, de Engels, quatro vezes os Delineamentos
para uma crítica da economia nacional de 1844, onze vezes A situação da classe
trabalhadora na Inglaterra30 de 1845, e duas vezes o ensaio sobre a lei inglesa
das dez horas, publicado em 1850. O fato de que ele não tenha citado uma só vez
a resenha de Engels importa tanto mais, dado que, no posfácio à segunda edição,
ele se ocupa exatamente dos problemas metódicos da apresentação, assim como
de sua relação com a filosofia hegeliana, algo que também está no centro da re-
senha de Engels. Se ele partilhasse das concepções de seu amigo, provavelmente
teria mencionado sua resenha nessa ocasião com o maior prazer. Que ele tenha,
porém, evitado isso, permite que se suspeite que ele não partilhava exatamente
dessas concepções.
A resenha de Engels não é nem um tratado congenial ao método marxiano,
nem é simplesmente expressão de uma concepção que aplana a crítica marxiana
da economia política, concepção essa que no futuro se fortalece ainda mais. Na
resenha, Engels precisou tomar posição quanto a questões com as quais ele mes-
mo não mais se ocupava há muito tempo e sobre as quais o estado de reflexão de
Marx lhe era muito insuficientemente conhecido. A partir das poucas indicações
que teve, ele procurou – num curtíssimo período de tempo – fazer o melhor que

29 Esse livro nunca foi escrito. Dado que as Teorias sobre o mais-valor surgiram graças ao conceito
superado de uma história das categorias singulares, elas também não poderiam – em contraste com
a opinião geral – ser consideradas como rascunho para esse livro IV de O capital.
30 Friedrich Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra: segundo as observações do autor
e fontes autênticas. Trad. B. A. Schumann. São Paulo: Boitempo, 2010. (N. T.)

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lhe foi possível. Com a noção abrangente que temos dos textos de Marx e dos
desdobramentos das questões postas por ele, bem como com o desaparecimento
da questão sobre as passagens dialéticas e históricas, conseguimos hoje perceber
facilmente os erros e insuficiências da resenha de Engels. Concebê-la, porém,
simplesmente como a primeira expressão de um aplanamento engelsiano progres-
sivo ou mesmo de uma falsificação ignora as condições sob as quais ela surgiu, e
também a participação que as declarações de Marx tiveram nos mal-entendidos
de Engels.
Siglas

HW
HEGEL, Georg Friedrich Wilhelm. Werke in 20 Bänden. Frankfurt/M.: Suhrkamp 1970.

MEGA
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Gesamtausgabe. Berlin: Walter de Gruyter.

MEW
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Resumo
O artigo analisa a resenha de Engels sobre Para a crítica da economia política,
discordando tanto dos defensores de uma unidade científica e política completa
entre Marx e Engels, quanto daqueles que apresentam Engels como um falsifi-
cador e simplificador da obra de Marx. O argumento do autor é que os erros e
insuficiências presentes na resenha se devem às condições em que foi escrita, bem
como às declarações do próprio Marx.
Palavras-chave: economia política, método, desenvolvimento lógico, desenvol-
vimento histórico.
Abstract
This article analyses the abstract in reference to Marx’s Critique of Political
Economy, written by Frederic Engels. The author disagrees with those that present
Engels as having a complete accordance, scientific and political, with Marx, but
also with those that accuse him of faking and simplifying his thought. Instead,
the author arguments that Engel’s abstract fails because of the poor conditions in
which he wrote, as well as Marx’s statements.
Keywords: political economy; method; logical process; historical process.

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