Dicionarioo Das Deusas Da Mesopotamia
Dicionarioo Das Deusas Da Mesopotamia
Dicionarioo Das Deusas Da Mesopotamia
PORTO ALEGRE
2021
1
PORTO ALEGRE
2021
2
BANCA EXAMINADORA:
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha orientadora, Katia Pozzer, por todo apoio, estímulo, carinho e
construção. Agradeço também pelos bolos e chás das reuniões do grupo de pesquisa e as
lembranças cheias de carinho que todas as orientandas ganhavam após a professora retornar de
alguma viagem. Será sempre um exemplo de educadora para mim.
À minha família pelo amor, apoio e estímulo intelectual desde a minha infância; por
toda liberdade de poder falar e sentir que minha opinião é importante; por toda paciência e
confiança. Amo vocês e me sinto privilegiada de fazer parte dessa família. Especialmente ao
meu irmão que foi quem me ensinou a ter mais paciência e um olhar atento à educação infantil.
À todas amigas e amigos que fizeram parte da minha jornada, as/os que estão aqui há
mais de 10 anos e as/os que chegaram há poucos anos ou meses. Especialmente à três amigas
que conheci em diferentes períodos: Bárbara Villar pela construção de uma amizade que
superou as diversas fases da nossa vida; Victória Melchiades por todas as aventuras vividas
desde nossa adolescência; Manoela Wolff por todo carinho e cuidado de uma verdadeira irmã
comigo.
Ao grupo de pesquisa LEAO por toda troca intelectual.
Aos meus professores, à professora Daniela Kern pelas aulas e atividades encorajadoras;
à COMGRAD, na pessoa da professora Joana Bosak, pelo suporte e amparo acadêmico para
que minha formatura acontecesse ainda esse ano; ao professor Edegar Costa pelo incentivo para
que eu realizasse atividades em escolas.
Agradeço aos sites Sci-hub e a Library Genisis, sem essas ferramentas meu trabalho não
teria sido possível pela ausência dos livros necessários no Brasil e pelo valor de importação.
Agradeço a mim mesma por ter conseguido terminar esse trabalho e tantos outros
projetos em meio ao caos.
E, por fim, mas não menos importante, agradeço às minhas gatinhas: Tieta, Mieta e
Greta por tornarem os meus dias mais movimentados e felizes.
4
5/25/49
What is college? I can learn nothing, for that
which I want to know I can accumulate, and have
done so, on my own, and the rest will always be
drudgery...College is safety, because it is the easy,
secure thing to do…
Susan Sontag, Reborn - Journals & Notebooks
1947 - 1963
5
RESUMO
Esta pesquisa, que teve seu início há muito tempo, tem como objetivo o desenvolvimento de
um material de pesquisa, o Dicionário das Deusas Mesopotâmicas, voltado para pesquisadores
da área de Antiguidade Oriental, mais especificamente aqueles que estudam a Antiga
Mesopotâmia. Também são elaboradas propostas de atividades que estimulam a utilização do
dicionário como material educativo, tanto para ensino básico quanto para o superior. O trabalho
de conclusão de curso funciona como um mapa que traça o início da pesquisa e a sua conclusão,
ou a ausência de conclusão. Os caminhos do mapa são traçados pelos capítulos, que abordam
assuntos como educação, decolonialidade, o fazer científico da História, desenvolvimento e
montagem do dicionário e, claro, debates sobre gênero na Antiguidade. A metodologia de
elaboração do dicionário também faz parte dos capítulos. Foram escolhidos três dicionários
estrangeiros como fonte base: Gods, Demons and Symbols of Ancient Mesopotamia (2004), de
Jeremy Black e Anthony Green; A Dictionary Of Ancient Near Eastern Mythology (1991), de
Gwendolyn Leick e Dictionnaire de la civilisation mésopotamienne (2001), de Francis Joannés
(et al). Em conjunto com artigos e sites de universidades, estes dicionários ajudaram na
construção de uma lista de deusas e dos verbetes que deram corpo ao Dicionário das Deusas
Mesopotâmicas. Ao final do trabalho é apresentado o Dicionário das Deusas Mesopotâmicas
pelo direcionamento do leitor para o site desenvolvido unicamente para este projeto.
ABSTRACT
My senior thesis works like a map that traces the beginning of the research and its conclusion,
or the absence of it. The paths of the map are traced by the chapters, which address issues such
as education, decoloniality, the scientific research on History, development and assembly of the
dictionary and, of course, debates about gender in Antiquity. The dictionary development
methodology is also part of the chapters. Three foreign dictionaries were chosen as main
sources: Gods, Demons and Symbols of Ancient Mesopotamia (2004), de Jeremy Black e
Anthony Green; A Dictionary Of Ancient Near Eastern Mythology (1991), de Gwendolyn Leick
e Dictionnaire de la civilisation mésopotamienne (2001), de Francis Joannés (et al). Alongside
with papers and universities’ websites, these dictionaries helped to build a list of goddesses and
the entries that embodied the Dictionary of Mesopotamian Goddesses. At the end of the work,
the Dictionary of Mesopotamian Goddesses is presented to the reader, by directing them to a
website developed solely for this project.
LISTA DE FIGURAS
SUMÁRIO
1 APRESENTAÇÃO DA PESQUISA 9
1.1 A PESQUISA COMO COMPARTILHAMENTO DE AFETOS E
OUTRAS FORMAS DE VER O MUNDO 10
1.2 MEU PERCURSO DE PESQUISA E ENVOLVIMENTO COM O
OBJETO 12
2 POR QUE AINDA OLHAR PARA O PASSADO? 14
3 ESTUDANDO GÊNERO NA ANTIGUIDADE ORIENTAL 20
3.1 BREVE HISTORIOGRAFIA 20
3.2 DISCUSSÃO TEÓRICA E CAMINHOS POSSÍVEIS 26
4 TRABALHANDO COM ENCICLOPÉDIAS/DICIONÁRIOS
TEMÁTICOS 33
5 APRESENTAÇÃO DOS DICIONÁRIOS ANALISADOS 35
5.1 METODOLOGIA 35
5.2 POR QUE ESTES DICIONÁRIOS? 36
5.3 DADOS ENCONTRADOS EM CADA DICIONÁRIO 36
5.4 ANÁLISE DO MATERIAL COLETADO 108
5.4.1 Aplicabilidade do material coletado 109
5.4.1.1 A Universidade 109
5.4.1.2 A Escola 114
6 CONCLUSÃO 117
REFERÊNCIAS 121
9
1 APRESENTAÇÃO DA PESQUISA
Em meio ao caos dos últimos anos no Brasil, dei meus primeiros passos como
pesquisadora na área de Antiguidade Oriental, especificamente estudando gênero. Ao pensar
uma pesquisa para o Trabalho de Conclusão do Bacharelado em História da Arte, eu tinha uma
coisa em mente: entregar um material para a sociedade que não se resumisse em 100 páginas
que ficariam em um acervo digital cujo acesso é restrito a pessoas da mesma área de estudo.
Havia um claro desafio: como tornar acessível e interessante uma área que tem pouca
visibilidade no Brasil? Optei por atuar em duas frentes: desenvolver um TCC que traçasse a
construção da minha pesquisa, do meu pensamento, e de como cheguei à ideia de fazer um
material didático; e, ao mesmo tempo, utilizar esse material aqui construído de forma direta,
aplicando-o em turmas de História e Filosofia por meio de propostas educativas elaboradas por
mim.
Enquanto organizava os verbetes que compõem o dicionário, percebi que a tarefa de
tradução dentro da área de gênero voltada para o Antigo Oriente Próximo é urgente. Busquei
traduzir trechos de textos e identificar seus títulos para mapear possíveis fontes de pesquisa.
Por falta de tempo, não foi possível um trabalho maior de tradução, porém, pretendo
desenvolvê-lo assim que possível.
Uma exigência feita por mim mesma, foi a criação de um site para hospedar o dicionário,
as fontes e o intuito do projeto. Também hospedei neste site possíveis roteiros de atividades
escolares para professores de História.
A estrutura dos capítulos do TCC foi montada para guiar o leitor pela pequena
viagem/aventura que foi percorrida por mim desde minhas primeiras experiências científicas,
ainda criança – enquanto observava mapas e cuidava de formigas e outros insetos – até este
trabalho, que não é fim nem começo, mas sim a continuação de uma vida enquanto mulher
cientista, feminista e socialista, na eterna luta pela democratização do conhecimento.
Gostaria de salientar um último ponto que diz respeito à escrita acadêmica: será
perceptível durante a leitura a mudança de pessoa, às vezes na primeira do singular, outras na
terceira do plural e outras na voz passiva. Isso não é falta de destreza acadêmica e não demonstra
incompatibilidade com o fazer científico. Muito pelo contrário: o escrever também faz parte do
fazer científico e, por isso, não cabe em “normas” ou “contratos sociais” acadêmicos brasileiros.
A alternância de pessoas não interfere em nada na leitura do texto e ainda complementa o
desenvolvimento da pesquisa, dando liberdade ao pesquisador de expor seu texto de forma
autêntica.
10
Desde muito cedo, o incentivo ao estudo apareceu para mim como um meio de expressão
por meio de atividades lúdicas. Além das aulas na escola, quando criança, meu pai e minha mãe
incentivaram-me a usar meu tempo livre para diferentes práticas: esportivas, aulas de música e,
claro, as aulas particulares que utilizavam jogos educativos para complementar minha
educação. Ou seja, desde criança percebi que existia um espaço no qual a minha opinião era
válida e que existiam diferentes formas de expressar diferentes conhecimentos. Ser ouvida, falar
e ouvir me fez perceber que o aprender é sempre uma troca entre duas ou mais pessoas em que
todas são ao mesmo tempo professores e alunos – o que nem sempre é fácil de executar,
principalmente dentro de uma sala de aula. Afinal, para falar é preciso se sentir suficientemente
confortável e para ouvir é preciso se despir de certos preconceitos. Se queremos que ocorra o
aprendizado, devemos fazer o constante exercício de driblar os mecanismos de poder, assim, o
professor precisa se despir da autoridade acadêmica e mostrar sua vulnerabilidade.
No texto “O Espectador Emancipado”, Jacques Rancière coloca muito bem como o
mestre pode agarrar-se à ignorância como estratégia de uma aprendizagem menos bruta, mais
libertária:
O mestre ignorante [...] é assim chamado não porque nada saiba, mas porque abdicou
do “saber da ignorância” e assim dissociou sua qualidade de mestre de seu saber. Ele
não ensina seu saber aos alunos, mas ordena-lhes que se aventurem na floresta das
coisas e dos signos, que digam o que viram e o que pensam do que viram, que o
comprovem e o façam comprovar. O que ele ignora não é a desigualdade das
inteligências. Toda distância é uma distância factual, e cada ato intelectual é um
caminho traçado entre uma ignorância e um saber, um caminho que abole
incessantemente, com suas fronteiras, a fixidez e a hierarquia das posições.
(RANCIÈRE, 2017, p. 15-16)
Esta ideia sobre aprendizado trazida por Rancière por meio do mestre ignorante não é
nova e o cerne deste pensamento é compatilhado por vários outros professores/pesquisadores.
No final da graduação, comecei a questionar as metodologias que eram aplicadas nas
salas de aulas da universidade, o que me fez chegar ao livro “Ensinando a transgredir – A
educação como prática da liberdade” da professora bell hooks. Tal livro é muito lido por alunos,
mas deveria ser uma leitura fundamental para professores universitários – antes, eu diria
“professores que desejam se atualizar”. Não acho, no entanto, que seja mais apenas um “desejo”
de atualização, mas uma obrigação ética e moral com as políticas antirracistas, decoloniais e
feministas – pois é quase um manual para uma sala de aula mais democrática e comprometida
com a sociedade.
11
Somente numa tal prática, em que os que ajudam e os que são ajudados se ajudam
simultaneamente, é que o ato de ajudar não se distorce em dominação do que ajuda
sobre quem é ajudado. (FREIRE apud hooks, 2019, p. 76)
Percebemos que o ato de ensinar requer o máximo de alteridade possível, bem como o
ato de pesquisar. Faço essa comparação pois, para mim, o percurso de pesquisa é anterior à
escolha de um “objeto” de pesquisa. A pesquisa começa já no processo de aprendizagem dentro
da sala de aula, quando o aluno se empodera e constrói sua identidade ao ponto de conseguir
olhar para algum assunto e elegê-lo como alvo de interesse. Mas, como estamos diante de duas
coisas que estão implicadas, a maturidade para a pesquisa só se dá na liberdade da
aprendizagem, que sempre parte da vulnerabilidade do professor em confiar nos seus alunos a
ponto de deixá-los se expressarem sem ter medo de perder o controle da sala de aula.
Tive muita sorte de ter encontrado uma orientadora que vê na pesquisa um compromisso
com a transformação do mundo e que sempre utilizou nossos espaços de grupo de pesquisa
como compartilhamento de afetos. Compartilhar afetos por meio da pesquisa aparece quando
você permite que o aluno se envolva com o assunto e estude um assunto que o envolva. A
pesquisa é ao mesmo tempo a partilha e a identificação. Sem a identificação é quase impossível
que a vontade de partilhar apareça. E sem a partilha, a pesquisa se torna um objeto inútil e sem
função alguma, já que a ciência se faz em comunidade e é difundida por meio de encontros
destinados a especialistas e curiosos.
Cada parte do meu trabalho é pensado em termos de comunicação não só da pesquisa,
mas sobre o que significa pesquisar e por que devemos insistir nos nossos assuntos – mesmo
que estes sejam muitas vezes escanteados ou apagados por serem assumidos como
insignificantes ou ultrapassados para uma parte das pessoas. Convido vocês a imergir num
percurso cuja argumentação é feita em camadas: primeiro, compartilho meus pensamentos
íntimos e meus motivos de estar pesquisando tal “objeto”, não de uma maneira egoísta, mas
coletiva sobre o pesquisar. Em uma segunda etapa, apresento uma defesa da minha área de
pesquisa para então traçar uma linha historiográfica e dos rumos possíveis da área. Por fim,
adentro nos rumos da pesquisa sempre buscando explicar e justificar minha escolha de maneira
12
didática. Acredito que por meio destes passos – seguindo a minha premissa de
compartilhamento e identificação – consigo uma troca de conhecimento com o leitor a partir de
uma intimidade e um entendimento comigo. Uma espécie de identificação com o locutor (eu)
através da criação de um laço afetivo da partilha, que acredito ser a chave para comunicar de
forma mais efetiva o que se pretende.
Nem tudo é tão por acaso quanto se pensa. Perto do final do curso, comecei a repensar
minhas escolhas e tentar entender o que me levou ao meu “objeto” de pesquisa. Objeto entre
aspas pois discordo deste termo. Eu não pesquiso uma massa amorfa e cinzenta que vai
ganhando forma conforme minhas palavras vão formando frases e a explicando. Pesquiso uma
história e cultura que estão sempre em constante interação dialética comigo e com quem
compartilho meus pensamentos. Não é algo que só estava lá esperando ser historicizada e
catalogada pelo nosso fazer científico Ocidental. Na verdade, tudo já existia e existe, meu papel
é apenas tornar esses eventos passíveis de diversas análises utilizando meu pensamento crítico.
Meu “objeto” não é um “objeto”, é um evento real e complexo que passa pelo processo de
decodificação e adaptação por meio das ferramentas por mim escolhidas para o decifrar. Assim,
todo pesquisador é um pouco tradutor, um tradutor de ideias. Retomando agora o tom do início
do parágrafo, precisei olhar para dentro de mim mesma para compreender os motivos de estudar
o que eu estudo – o que, para mim, é muito caro.
Imaginei que repensar o caminho entre a minha entrada na universidade e o sétimo
semestre seria suficiente. Porém, durante uma conversa com um amigo, lembrei-me de um
objeto de afeto que hoje só existe na minha memória. Por volta dos meus quatro anos, meus
pais me deram de presente um Atlas enorme, as folhas eram quase do meu tamanho. Lembro
que era muito colorido e a ilustração era simplificada, não buscava ser fidedigno ao real, mas
tornar familiar, para crianças, as principais características de cada lugar. Outra coisa bastante
importante eram as informações que o Atlas trazia. Apesar de não lembrar de todas, posso citar
algumas: clima, vegetação, PIB, principais matérias de exportação e importação. Tudo isso
ilustrado e utilizando uma linguagem visual que me prendia por horas observando aquele
material.
A página que mais me chamava a atenção era o lado Oriental, especialmente o Egito.
Não por acaso. Uma das minhas tias, irmã mais jovem da minha mãe, ensinava-me
constantemente coisas sobre o Egito. Por causa dela, acabei decorando (e explorando no meu
13
Atlas) não apenas o Egito, mas outros países da África e da Ásia. Meus pais contam que eu
sabia na ponta da língua as capitais dos países localizados no que chamamos de lado “Oriental”.
Graças à minha tia e ao Atlas, meu sonho era ser arqueóloga. Não, eu não confundia
arqueologia e paleontologia, eu realmente queria estudar as civilizações antigas e entender sua
língua. O passado sempre me encantou pela sua forte presença no presente. Se eu tinha contato
com todas essas informações sobre a história egípcia era porque, de certa forma, aquela
sociedade produziu material para perpetuar sua existência. Sem dúvida alguma, a própria
situação de miscigenação da minha família me puxava para um passado ancestral por meio dos
conhecimentos espirituais da minha avó benzedeira. Ou seja, para entender minha avó e seu
dom, eu também precisava olhar para o passado.
Por muito tempo, acabei ignorando essa informação (assim como ignorei outras) e seu
caráter decisivo para me tornar uma pesquisadora que lida com a Antiguidade Oriental. Agora,
vários eventos da minha vida se conectam, é como se eu estivesse decodificando minha vida e
tornando-me consciente da minha própria trajetória: além das descendências que ficam mais
visíveis pelo meu sobrenome, parte da minha família por parte de pai ainda vive na Turquia;
dos sete aos dezesseis, fiz raqṣ sharqī (dança do ventre); convivi indo à casa de amigos árabes
dos meus pais, entre outras coisas.
Porém, tudo isso foi se perdendo com o tempo. Eram linhas com pontas soltas que, até
o começo deste ano, não faziam nenhum sentido para mim, eram apenas eventos aleatórios da
minha história. Durante o vestibular, voltei-me muito para a cultura brasileira, principalmente
por causa da prova de literatura e acabei deixando de lado essa curiosidade e desejo por culturas
orientais. Por acaso, em uma noite, estava com dificuldade para dormir e acabei procurando
algo para assistir. Encontrei um filme chamado Jodaeiye Nader az Simin (2011), A Separação,
em português. Dirigido por Asghar Farhadi, o filme iraniano narra a história de separação entre
um casal progressista, o que ajuda bastante a eliminar essa ideia de que todo persa – muitas
vezes confundido com árabe – é um muçulmano radical. Esse foi o começo da minha decisão
de aprofundar meus estudos em duas áreas: Oriente e cinema. A especificidade quanto à
Antiguidade veio na esteira da minha curiosidade pelo passado, talvez pela minha metodologia,
enquanto aprendiz da vida, de dar sentido à minha existência.
Para mim, este é o começo da minha pesquisa. Foram estes anos, principalmente os
iniciais, que definiram muitas escolhas que seriam feitas no futuro. Acho importante, mas não
fundamental, trazer esta minha perspectiva pois também serve como justificativa para estudar
o que eu estudo: ser fiel a mim mesma e à minha trajetória e reforçar como uma educação mais
libertadora e que instigue o pensamento crítico ainda na primeira infância pode moldar a vida
14
de uma criança. Assim, aproveito para seguir a narrativa e entrar em outra discussão que para
mim, enquanto uma jovem pesquisadora que almeja a vida docente, também é muito cara: por
que ainda olhar para o passado?
Embora em Porto Alegre haja uma escassez de mercado de trabalho na área das artes
que obriga jovens ainda na graduação a pensarem de forma egoísta e imponha uma dinâmica
completamente neoliberal, eu vejo a graduação como a primeira etapa da minha trajetória
acadêmica. Por isso mesmo nunca senti obrigação alguma em corresponder às expectativas que
não fossem as minhas, tampouco em seguir uma linha de pesquisa em assuntos contemporâneos
em nome da visibilidade ou de dinheiro. Para mim, a graduação é uma experiência (bastante
traumatizante, diga-se) e o Trabalho de Conclusão de Curso um exercício de liberdade e
responsabilidade que não envolve apenas seguir protocolos, mas proporcionar novos
questionamentos e pesquisas em diferentes áreas. Na verdade, surpreende-me muito as
dificuldades que encontrei ao longo destes quase quatro anos com meus interesses de pesquisa
vindo de um espaço que deveria ser liberal, no melhor sentido da palavra, e proporcionar a
diversidade. Ainda que nesta caminhada não tenham sido poucos os momentos que pensei em
desistir, principalmente quando um professor sugeriu que eu deveria ir “fazer cinema” já que
tinha tanto interesse na área, ou quando via certas coisas antiéticas, racistas, machistas e
classistas acontecendo num local público, repitia as palavras de Paulo Freire “Ser capaz de
recomeçar sempre, de fazer, de reconstruir, de não se entregar, de recusar burocratizar-se
mentalmente, de entender e de viver a vida como processo, como vir a ser...” (FREIRE apud
HOOKS, 2017, p. 5).
Uma pergunta que me fiz e faço quase todos os dias para que a resposta vire o motor do
meu desejo de pesquisar é “por que ainda olhar para o passado?”. Neste capítulo, apresentarei
as respostas que construí em conjunto com todas as bibliografias que li e pessoas com quem
conversei ao longo da jornada acadêmica.
Quanto mais vejo que para algumas pessoas a pesquisa em Antiguidade parece esgotada,
mais percebo um pensamento extremamente ocidental, positivista e engessado sobre o que é
lidar com sociedades antigas. Sempre me pareceu bastante óbvio que olhar para o passado era
observar a nossa própria constituição enquanto sociedade, observar as nossas diferenças
culturais e, inclusive, questionarmos quando e por que o nosso mundo decidiu que a cultura
dominante seria a Ocidental; quando os primeiros vestígios de uma suposta superioridade
15
começaram a aparecer nos discursos dos historiadores; quando decidimos que Hipócrates seria
o “pai” da medicina – mesmo quando tais práticas já eram realizadas pelos egípcios.
Os críticos à área de Antiguidade Oriental normalmente argumentam que o “objeto” de
pesquisa está muito distante (em tempo e espaço) e que existem outros assuntos mais próximos
que precisam de um olhar atencioso. Começando pela observação final, não se pode pensar que
o pesquisar é uma mera burocratização e que o pesquisador escolherá seu tema baseando-se em
logística. Tal pensamento vai completamente contra o que eu acredito. Não se escolhe um tema
de pesquisa como se escolhe um atalho mais curto para chegar ao destino. A escolha da temática
de pesquisa é um trajeto completamente pessoal e deve ser respeitado e encorajado, não
desencorajado. Sobre o tempo e o espaço, pergunto-me o quão distante de fato estamos nós
daquelas civilizações antigas. Não temos nada ainda para aprender sobre os processos
econômicos, sociais e culturais de sociedades que tanto deixaram como legado? E a distância
física realmente se torna um grande problema ou estamos todos tendo que lidar agora por causa
da pandemia do Coronavírus com esta nova realidade? Na verdade, a tecnologia não surge
justamente para diminuir as distâncias? Não existem inúmeros projetos de catalogação de
acervos antigos? E, por último, durante a graduação não passamos boa parte do tempo vendo
imagens pouco reais de quadros que estão em museus europeus? Parece-me que os argumentos
contrários aos estudos de civilizações antigas e distantes são frágeis e arbitrários, baseados em
preferências e interesses pessoais.
Por uma perspectiva sistêmica, o pensamento científico Ocidental construído em bases
metafísicas kantianas torna mais difícil ainda as pesquisas em História Antiga. Ora, se a base
do nosso fazer científico é a limitação do nosso espírito em acessar o real, “a coisa em si”, é
claro que se cria um preconceito com ciências que exigem os sentidos (a intuição) para se
desenvolverem. Como olhar para o passado, algo distante de inacessível verdade pelo
conhecimento lógico, então?
Pereira (2020), nos apresenta a alternativa da metafísica de Bergson para quem “o real
somente é impenetrável por uma operação da inteligência, que freia o movimento e estabelece
limites e pontos de parada.” (PEREIRA, 2020, p. 53). Assim, Bergson pensa o real como
imanência. Portanto,
[...] se considerarmos o passado não como o outro estranho e impenetrável ao discurso
histórico, mas como uma imanência que não se reduz à narrativa, nem se distancia
dela, sendo o narrado simplesmente o expresso que atualiza o passado, podemos supor
que tanto a narrativa produzida é uma obra de arte do sentido como o passado é
elemento da duração da experiência histórica. Portanto, pensar historicamente não
pode ser obra somente de um discurso que representa, mas de uma experiência que
dura, uma intuição que acessa o em si do passado. (ibid., p. 54)
16
Aqui entra o papel da intuição, reduzida por Kant ao sensível. A intuição e a inteligência
agem de forma diferente e complementar: se a inteligência permite o acesso ao real, é a intuição
que permite a compreensão deste. A imaginação também tem papel fundamental no fazer
científico da história: ela permite o abandono da representação e deixa aberto o acesso ao
passado (ibid.).
A operação de contar o passado não é uma mera tentativa de aproximação ingênua a
uma época perdida e escapável, nem uma busca pela identificação entre o dado
empírico e o discurso produzido sobre ele. Os tropos funcionam como estruturas que
prefiguram o enredo produzido. A imaginação histórica consiste na operação poética
que produz sentido sobre o passado, sendo o sentido o objeto mesmo da imaginação
histórica. (ibid., p. 56)
Podemos aprender, deste modo, que o primeiro passo para entender a importância de
olhar para o passado é abandonar velhos hábitos limitantes do pensamento “racional” Ocidental.
Despir-nos do olhar Ocidental além de fundamental para a prática da História Antiga enquanto
ciência, é extremamente necessário para quem estuda Antigo Oriente Médio.
Sobre o estudo do Antigo Oriente: há ainda um ponto que parece ficar esquecido por
muitas pessoas: estudar culturas orientais é lidar intimamente com teoria e prática decolonial,
o tempo inteiro. Não podemos pensar que uma pesquisa cuja localização se dá para além da
América Latina é, necessariamente, uma pesquisa que se passa em territórios que nada nos diz
respeito. Afinal, o Oriente Médio sofre interferências e tem sua soberania posta em dúvida tanto
quanto muitos países da América Latina. Os estereótipos criados para dar corpo a narrativas
racistas também atravessam as vivências de imigrantes advindos de terras orientais cujas
vestimentas se diferenciam das Ocidentais. Não podemos esquecer, claro, da grande
contribuição da visão Orientalista de estudiosos europeus para a estigmatização do Oriente
Médio muito debatida por um dos grandes nomes do pós-colonialismo, o pesquisador palestino
Edward Said. Então, estudar Oriente Médio, definitivamente, não é uma pesquisa internacional
que se dá no mesmo campo de pesquisas internacionais europeias ou estadunidenses.
Entrando especificamente no campo da História Antiga, interessa-me aqui trazer um
contraponto à maneira de ensinar Antiguidade que começa na Mesopotâmia e faz seu caminho
até Alexandria. Tal forma de apresentar o começo da história das culturas serve somente para
narrar a História da Cultura Ocidental, ou seja, parece que toda a narrativa serve para um único
fim: chegar às potências colonizadoras europeias. À esta prática damos o nome de
“colonialismo epistemológico” (LANDER apud ZAPATA, 2020, p. 197)1 e, segundo Zapata,
ela nos leva a considerar experiências - passadas e presentes - conectadas pura e exclusivamente
1
Todas as traduções de obras em língua estrangeira foram feitas de forma livre pela autora.
17
pensamento de raíz bastante decolonial de que “as sociedades antigas devem ser concebidas e
reconhecidas como "outras" culturas: nem melhores nem piores; nem primitivo nem arcaico;
nem mais nem menos civilizado, simplesmente, 'diferentes’'' (FLAMMINI apud ZAPATA,
2020, p. 205).
O exercício de uma legítima alteridade também é o que freia, por exemplo, a maneira de
olhar para produtos de civilizações antigas como “artefatos”. Isto, além de remeter ao mero
colecionismo arqueológico (que por sinal é a terceira forma de enriquecimento ilícito2 mais
praticada no mundo), também é uma forma reducionista de enxergar objetos culturais não como
produtos de especificidades de seus produtores, mas como relíquias imóveis que servem apenas
como objetos de fetiche e distinção social. Para estudar História Antiga, eu diria que não
podemos ser inocentes a ponto de levar todo e qualquer registro construído no passado como
uma fonte que traduz fielmente a realidade. O registro histórico e/ou arqueológico é a fonte que
utilizamos como meio para fazer sentido do passado. É preciso ter ciência que estamos lidando
com produtos ideológicos. Os povos antigos não estão livres de ideologias. Este pensamento
parte de uma pureza, a priori, completamente irreal. Todas as representações, sejam do presente
ou do passado, são condicionadas por especificidades históricas e ideológicas de seus
produtores.
Ainda sobre os materiais deixados por estas sociedades, há um péssimo hábito de lidar
com estes como imutáveis sem uma análise de seus pormenores. Um exemplo didático: um
selo-cilindro que representa uma divindade de uma certa cultura mesopotâmica achado fora da
cidade reconhecida por cultuá-la, abre espaço para um leque de possíveis interpretações que
acarretam em uma discussão sobre a dinâmica política e social inerente a esta troca cultural de
uma cidade com a outra. Não estamos tratando de uma sociedade que lida de uma forma pré-
estabelecida com os acontecimentos: estamos lidando com uma sociedade real, que resolvia
suas questões de forma tão orgânica quanto qualquer outra sociedade existente. Como coloca
Zapata “Não se trata simplesmente de um conjunto cristalizado e uniforme de objetos, ideias,
representações e formas de ação que são transmitidas de geração em geração, mas da maneira
própria como uma determinada sociedade deve responder intelectualmente a qualquer
circunstância” (ZAPATA, p. 203, 2020). Entender e respeitar os processos das sociedades do
2
“(...) na medida em que ainda hoje o mercado negro (sic) de objetos arqueológicos é o terceiro em volume de
negócios – depois do tráfico de armas e drogas – produz o enriquecimento ilícito de muitos comerciantes e grande
parte dos materiais por eles traficados se destina ao turismo, a as leiloeiras de “antiguidades” e em particular a
colecionadores privados, para os quais, para além de um bom investimento, é uma marca de distinção recolher e
expor os objetos saqueados; enquanto para outras pessoas tais bens constituem uma ofensa ou um grave perigo
para certas crenças, na medida em que representam um conjunto de ideias que entram em tensão com uma ideologia
considerada única e válida.” (ZAPATA, 2020, p. 210)
19
Oriente Médio antigas fora de uma escala de progresso do pensamento europeu exotificante é
o que nos permite adentrar dentro de pesquisas sérias que tratem da multiplicidade de elementos
que caracterizam tais sociedades como únicas.
Pesquisar Antiguidade Oriental e Oriente Médio em toda sua ampla gama de
especificidades e assuntos é assumir um compromisso com a decolonialidade que não permita,
de forma alguma, enxergar sociedades diferentes como menos evoluídas. Aceitar narrativas que
criam passados riquíssimos e belíssimo para sociedades do Oriente serve unicamente para
compará-las com as sociedades atuais, e por meio de uma série de preconceitos calcados no
colonialismo e no cristianismo europeu concluir, por exemplo, que o Islamismo é algo
ultrapassado e que seus seguidores não se atualizaram conforme os ocidentais gostariam.
O estudo da Antiguidade Oriental que se baseia no respeito e na prática decolonial se
faz importante para o exercício de lidar com as diferentes formas de existir,
Por fim, gostaria de acrescentar aqui um pequeno parágrafo sobre o que é a História da
Arte? História da Arte é a História das Imagens Pictóricas? Para mim, não. Porém, não entendo
a tamanha aversão a trabalhos teóricos dentro do campo de História da Arte que não estão
interessados em discutir apenas imagens pictóricas. Este amplo campo que forma os estudos de
artes deveria dar conta de muitas coisas para além das imagens pictóricas ou abordagens
contemporâneas ou modernas de espaços de arte(s). Muitas áreas de estudo precisam de bases
teóricas de onde partir, de livros que sejam referências que levam a questões básicas sobre suas
áreas de interesse. Por isso, meu Trabalho de Conclusão de Curso se encontra neste meio, entre
a produção de um material para a utilização de pesquisa em História da Arte, que não deve se
limitar ao visual pictórico, e a teorização das imagens encontradas por meio de um verbete que
traga informações fundamentais sobre as figuras retratadas ali. Aceitar que algumas pessoas
queiram se comprometer com estudos teóricos que podem não ser orientados por imagens, mas
que ainda se encontram dentro do campo de História da Arte, por: a) servir a possíveis pesquisas
do campo; b) teorizar a partir de uma perspectiva cujo fim é servir à História da Arte; c) criar
20
um material básico de orientação que ainda não existe no campo; d) tensionar o que pode ou
não ser História da Arte.
Podemos pensar, pela data, que a primeira publicação que retrata o campo do estudo
sobre mulheres na Antiguidade acontece dentro da Primeira Onda dos Estudos Feministas (anos
1960)3. A contribuição de Jean Bottero para a obra Histoire mondiale de la femme (1965) é
localizada, até então, como o primeiro escrito sobre o papel das mulheres na Mesopotâmia.
Porém, é a partir do final dos anos 1970 e começo dos anos 1980, em conjunto com a Segunda
Onda dos Estudos Feministas - esta que teve como principal contribuição a noção de papéis de
gênero como uma construção social imposta ao sexo biológico (BAHRANI, 2001) – que
começam a aparecer mais trabalhos abordando a temática da condição da mulher nas sociedades
orientais antigas. É importante frisar que, no começo dos estudos, temos ainda uma visão muito
masculina e Ocidental na área de estudo. Muito da teoria francesa e estadunidense foi utilizado
por pesquisadores e, por se tratar de uma visão muitas vezes carregada de preconceitos
reproduzidos por orientalistas do passado, erros foram cometidos. Por exemplo, criou-se uma
teoria estática dos povos do Oriente Médio, como se a sociedade sempre tivesse sido aos moldes
islâmicos. Sobre isto, alerta Josué J. Justel:
Enquanto pesquisadores, precisamos estar sempre atentos, ainda hoje, para não
reproduzirmos pensamentos retrógrados e visões já ultrapassadas no campo de pesquisa. Além
3
Segui aqui a classificação das Ondas dos Estudos Feministas dada por Zainab Bahrani, em seu livro Women of
Babylon (2001). Ver referências bibliográficas.
21
deste erro de uma extrapolação de interpretação, outro equívoco que contaminou parte do
campo desta Segunda Onda dentro dos estudos da Antiguidade foi a busca por uma sociedade
Matriarcal, como se isso fosse provar a não-natureza da dominação masculina. Cultos a
divindades femininas e às essências de uma feminilidade começaram a aparecer em
movimentos fora da academia, o que aumentou a curiosidade sobre a Antiguidade Oriental
(BAHRANI, 2001). Porém, tal busca por uma sociedade matriarcal não apenas não apresenta
bons frutos como também não é uma forma feminista ou progressista (BAHRANI, 2001), é
apenas seguir os passos de uma dominação masculina e buscar uma dominação feminina como
traço da história.
Entre encontros dos anos 1980, temos La femme dans le sociétés antiques (1980 e 1981)
em Strasbourg e o XXXiiie Rencontre Assyriologique Internationale que aconteceu em Paris no
ano de 1986 com o título La Femme dans le Proche-Orient antique: XXXiiie Rencontre
Assyriologique Internationale. Segundo a pesquisadora Joan Goodnick Westenholz coloca na
sua revisão intitulada Towards a New Conceptualization of the Female Role in Mesopotamian
Society e publicada no Journal of the American Oriental Society, em 1990, a temática do
encontro foi escolhida, como consta no prefácio dos anais, por duas razões, diz P. Garelli: “(a)
estava de acordo com o ambiente parisiense e (b) era um tópico para o qual filólogos e
arqueólogos poderiam contribuir igualmente.” (GARELLI apud WESTENHOLZ, 1990, p.
510). Em 1987, acontece o Women’s Earliest Records na Brown University, “Para este evento
se reunieron algunos de los principales especialistas que habían trabajado el tema de la mujer
en cada época concreta del Próximo Oriente Antiguo” (JUSTEL, 2011, p. 333).
Ainda nos anos 1980, foram lançadas publicações importantíssimas feitas por
pesquisadoras alinhadas com novas formas de entender o passado. Entre os principais escritos
deste período encontramos Frauen in altsumerischer Zeit de Julia Asher-Grève. Apesar da obra
ter sido lançada em 1985, Asher-Grève a escreveu entre 1976 e 1979. No livro, a pesquisadora
tem como objetivo identificar o papel social das mulheres dentro da sociedade Suméria,
utilizando-se de imagens e textos produzidos lá. Não foi sem críticas que Asher-Grève publicou
seu livro. Porém, também foi uma obra muito celebrada e considerada como uma pioneira na
abordagem no campo de estudos de gênero na Antiguidade Oriental. Atualmente, Asher-Grève
continua produzindo textos importantes e sendo uma referência dentro da área de estudos. Em
2013, ela e a já citada Joan Goodnick Westenholz publicaram o livro Goddesses in Context: On
Divine Relationships and Gender in Mesopotamian Textual and Visual Sources, o qual analisa
questões referentes às deusas mesopotâmicas – obra muito importante para o desenvolvimento
do meu trabalho.
22
No ano de 1987, outro grande nome para a área de gênero em Antiguidade Oriental,
Irene J. Winter, publicava Women In Public: The Disk of Enheduanna, The Beginning Of The
Office Of En-priestess And The Weight Of Visual, um estudo sobre a sacerdotisa Enheduanna e
a importância do seu papel. Winter começa seu artigo fazendo uma reflexão sobre a imagem
construída da mulher dentro da cultura mesopotâmica:
As mulheres são favoravelmente consideradas quando aconselham, nutrem e
incentivam homens em suas lutas por sucesso e realização. Particularmente valorizada
é a relação mãe-filho e as situações em que as mulheres agem para manter as normas
da sociedade por meio de rituais ou de ações socialmente integradoras. (WINTER,
1987, p.189).
período que influenciou a visão de todas as áreas que lidam com gênero, inclusive as
pesquisadoras de Antiguidade Oriental, está Gender Trouble, de Judith Butler, lançado em
1990.
No artigo intitulado: Le développement des ‘Gender Studies’ dans l’histoire du Proche-
Orient antique (2006), Helène Nutkowicz nos oferece uma visão quantitativa dos trabalhos
publicados com a temática de gênero entre metade dos anos 90 e o começo dos anos 2000.
Embora aproximadas e parciais, algumas estatísticas permitem perceber a orientação
dessas publicações desde a última década. De 90 estudos, cerca de 40 foram
publicados entre 1995 e 2000, e cerca de 50 entre 2000 e 2004. A tendência continua
a crescer. Para o Antigo Oriente Próximo, dessas 90 publicações consideradas
"estudos de gênero", 36 tratam do Antigo Testamento, 16 do Cristianismo, 7 dos
estudos Bizantinos, 5 do Judaísmo e 4 do Egito. Os outros se referem a Qumran, Philo,
gramática semítica, Etiópia, Cabala etc. Entre esses estudos, 27 são dedicados às
mulheres, enquanto outros - muito menos numerosos - destacam questões como
eunucos, profetas, santos, homossexualidade, para citar apenas alguns exemplos.
Deve-se notar que 59 mulheres escreveram essas obras, em comparação com 29
homens. Por fim, 74 desses estudos contêm o termo “gênero” em seu título.
(NUTKOWICZ apud JUSTEL, p. 379, 2011)
É nos anos 2000, como resultado de uma reflexão exaustiva e ousada que surge,
possivelmente, um grande divisor de águas: o livro Women of Babylon: Gender and
Representation in Mesopotamia (2001) de Zainab Bahrani. Na obra, Bahrani reflete sobre as
imagens de mulheres da antiguidade no território da Babilônia analisando não sua estilística,
mas a relação dialética entre a existência de um “feminino” e de uma imagem “de mulher”
social e a propagação destas mesmas imagens por meio da cultura visual. Para a autora, é
importante olhar para os discursos das sociedades antigas como ideológicos, “Se ‘mulher’ ou
‘a natureza da feminilidade’ são conceitos ideológicos, então, o registro não é um reflexo da
mulher como um sujeito da experiência, mas mulher e feminilidade como imagem”
(BAHRANI, 2001, p. 30).
Bahrani bebe da mesma fonte de críticos pós-colonialistas, historiadores, semióticos da
desconstrução, antropólogos, estudiosos da cultura etc., como Edward Said (1978), Gayatri
Spivak (1988), Jacques Derrida (1974), Antonio Gramsci (1987), Charles Peirce (1991), Judith
Butler (1990) entre outros; e, obviamente, suas colegas de estudo de gênero na Antiguidade
Oriental, Irene Winter e Asher-Grève. E, assim como a pesquisadora, as novas gerações
também passaram a utilizar mecanismos de análise contemporâneos para lidar com sociedades
antigas.
Direcionando agora a discussão para a década de 2010, antes de entrar diretamente nos
trabalhos desenvolvidos no campo de Antiguidade Oriental, faz-se necessário refletir sobre
alguns trabalhos de teoria de gênero – novos ou resgatados - que influenciaram os debates.
24
Dentro das academias latino-americanas, incluindo o Brasil, temos uma entrada definitiva de
Paul B. Preciado com sua obra Counter-sexual Manifesto (2000) e, mais tarde, com Testo
Junkie (2008). Preciado traz consigo importantes reflexões sobre os textos de Butler (1990) e
Haraway (1985). Também foi possível observar o resgate de autoras como, por exemplo, Audre
Lorde, que foi uma importantíssima teórica do movimento das mulheres negras nos anos 1970-
1980 e possui posições que dialogam com Preciado e Butler.
Entretanto, nem Preciado nem Lorde constam nas referências bibliográficas dos
trabalhos da década passada em Antiguidade Oriental, apenas Butler está na lista de teóricas de
gênero utilizadas para refletir sobre o passado. Será que estamos satisfeitas, então, com as
ferramentas que temos até agora? Não se faz importante, vinte anos após a publicação do livro
de Bahrani, revisarmos nossas metodologias para estudar gênero na Antiguidade? Estamos
satisfeitas com as noções de performance aplicadas a imagens? É importante refletirmos sobre
tais questões para nos mantermos atualizadas no debate de gênero se realmente acreditamos que
o passado é fundamental para o presente e imprescindível para a construção do futuro. Não
parece exagerado, em um campo em que muitos ainda aceitam a visão de Heródoto como fonte
segura da existência de uma chamada “prostituição sagrada”, ou que erroneamente apontam
cenas de sexo como possíveis cenas de prostituição num paralelo com imagens da Europa
Medieval, pedir que estejamos cada vez mais cientes das ferramentas que as teorias do nosso
tempo nos oferecem.
Uma coletânea bastante interessante e plural que a década de 2010 nos trouxe, já nos
seus últimos respiros, foi Gender and methodology in the ancient Near East: Approaches from
Assyriology and beyond (2018), organizado pelas pesquisadoras Stephanie Lynn Budin, Megan
Cifarelli, Agnès Garcia-Ventura e Adelina Millet Albà. Faço aqui um destaque especial para
Agnès Garcia-Ventura que parece encabeçar essa nova leva de pesquisadoras de gênero na
Antiguidade. O livro é dividido em três capítulos nomeados, respectivamente, Assyriology and
Ancient Near Eastern Archaeology, Egyptology e Ancient Israel & Biblical Studies. Dentre
todos os 23 artigos, três deles parecem acompanhar questões afinadas com o movimento
feminista e o movimento LGBTQI+ atuais. São eles: Politics of the Body Productive:
Agriculture, Royal Power, and the Female Body in Sumerian Sources, de M. Érica Couto-
Ferreira; “Only in Dress?” Methodological Concerns Regarding Non-Binary Gender, de
Sophus Helle, e Identifying Gender Ambiguity in Texts and Artifacts, de Ilan Peled. No mesmo
ano, Saana Svärd e Agnès Garcia-Ventura lançaram outro livro sobre gênero e Antigo Oriente
Próxima, Studying Gender in the Ancient Near East (Eisenbrauns, 2018)
25
mesmo vale para os registros visuais. Essas fontes precisam ser entendidas numa relação muito
mais complexa com a realidade que a mera representação dela. Afinal, estamos lidando com
uma sociedade complexa que possui suas próprias crenças, leis, signos; enfim, sua própria
organização social. Além disso, é necessário lembrar que temos acesso apenas a uma parte da
produção dessas sociedades, aquilo que conseguimos achar em escavações arqueológicas. Sem
comentar, ainda, sobre o acesso ao significado e o contexto destes objetos que nunca teremos o
verdadeiro conhecimento sobre.
Aliás, outro ponto importante para os pesquisadores se atentarem fala justamente sobre
a nossa realidade e como estamos amarrados ao nosso próprio tempo e espaço, ou melhor, às
ideologias do nosso próprio tempo e espaço. Isso não significa que estamos fadados a falhar
enquanto pesquisadores. Mas que o processo de pesquisa precisa necessariamente começar pelo
pesquisador entendendo que ele não está livre de preconceitos e ideais limitadoras advindas de
uma educação Ocidental e pouco crítica. Brigitte Lion (2007) traz um exemplo de como a
socialização ocidental pode contaminar nossa forma de fazer ciência:
Os assiriólogos são frequentemente vítimas de seu treinamento que favorece a história
ocidental e começa com Heródoto. Agora, ele não escreveu que as mulheres da
Babilônia foram vendidas aos seus maridos pelos pregoeiros (I, 196) e todas foram
uma vez na vida ao templo de Afrodite para se prostituírem (I, 199)? Mesmo que essas
lendas façam as pessoas sorrir, o número de estudos dedicados a temas como
prostituição ou casamento sagrado na Mesopotâmia é surpreendente: é
desproporcional ao material que temos sobre essas questões. (ibid, p. 17)
Não apenas Lion, Justel também relata essa mesma preocupação em relação à pesquisa
sobre gênero e mulheres no Oriente Médio:
Em outras ocasiões, vemos pesquisadores usando fontes clássicas para o estudo da
sociedade do Oriente Médio, às vezes com consequências não muito afortunadas. O
exemplo mais claro é a leitura de uma passagem de Heródoto 31, na qual o autor relata
que as mulheres babilônicas tinham o costume de se prostituir no templo de Afrodite
pelo menos uma vez na vida. (JUSTEL, 2011, p. 382)
Os gregos já disseram com bastante frequência que os orientais eram bárbaros aos
seus olhos e representavam a alteridade absoluta: devemos nos lembrar disso...
Sobretudo porque essa alteridade, para os gregos, tinha a figura do feminino; os
"bárbaros" da Mesopotâmia certamente não concordariam com essa visão do mundo.
(LION, 2007, p. 9)
No mito de Atrahasis, a criação dos homens é atribuída a um deus, Enki / Ea, que
concebe o projeto, e a uma deusa que o ajuda a realizá-lo. No entanto, no Poema da
Criação da Babilônia, o deus Marduk organiza o universo a partir do corpo de Tiamat,
a deusa primordial vencida: aqui encontramos a parte do feminino, mas muito
29
maltratada, a velha deusa tendo assumido uma figura maligna e ameaçando a ordem
divina, salva pelo heroísmo do jovem deus masculino; um pouco depois, esse mesmo
deus cria a humanidade, sem nenhuma colaboração de uma deusa. (LION, 2007, p. 6)
O casamento era, de fato, uma esfera na qual a noiva era tratada como um objeto, uma
troca. Por outro lado, a figura materna dela apresentava também uma autoridade que podia
decidir sobre o matrimônio da filha. Essa área de jurisprudência e seus agentes se mostra
dominada por homens, temos apenas registros de juízes, não de juízas. Ainda assim, “As
mulheres podem iniciar um processo, comparecer perante os juízes e testemunhar” (ibid., p. 7).
Podemos, por assim dizer, que a saída feminista nessa situação complexa é uma análise
que não compre narrativas do passado que buscam uma sociedade matriarcal. Ou seja,
narrativas que substituem uma dominação por outra - primeiro porque não há evidências;
segundo porque é um posicionamento antifeminista. Nem narrativas fáceis que colocam a
mulher na antiguidade como um mero objeto alienado e sem conhecimento da sua condição
social.
A atuação das mulheres dentro e fora da esfera privada na sociedade mesopotâmica é
inegável. Por isso, estou de acordo com a afirmação de Lion (2007):
Embora a maior parte da documentação seja escrita por homens, a pedido dos homens
e diga respeito aos homens, não podemos, no entanto, falar do silêncio ou da
invisibilidade das mulheres, uma vez que estão presentes em quase todos os âmbitos.
Os estudos de gênero devem, portanto, mostrar como seu lugar se articula com o dos
30
homens. Mas os resumos são difíceis, tão grande é a diversidade de lugares, tempos e
situações. (ibid, p. 8)
Voltando um pouco sobre a discussão entre esfera pública e privada, há uma falsa ideia
que as mulheres estiveram sempre destinadas à vida privada enquanto o homem à vida pública.
Acontece que essa característica da sociedade só se mostra verdadeira a partir do Segundo
Milênio. Ainda no Terceiro Milênio as mulheres pareciam ter mais direitos ou mais atuação, e
foram progressivamente os perdendo.
No terceiro milênio, as mulheres das famílias reais eram ativas e administravam
grandes propriedades, com suas próprias equipes administrativas, da mesma forma
que os homens, conforme evidenciado pelos registros relativos à administração das
propriedades das rainhas de Lagash (c. 2400-2350 BC); entre os indivíduos mais ricos,
as mulheres parecem exercer atividades econômicas semelhantes, mas em menor
escala. No início da Terceira Dinastia de Ur, a Rainha Shulgi-simti era a chefe de um
grande centro de coleta de gado, fornecido, entre outras coisas, por mulheres da
família real e esposas de altos funcionários. A segunda metade do terceiro milênio
também é uma época em que as mulheres podem mandar erguer estátuas e fazer
inscrições votivas. A princesa Enheduanna, filha de Sargão de Akkad, sacerdotisa do
deus da lua em Ur, compõe hinos; um relevo acompanhado de uma inscrição a
representa em suas funções religiosas. Assim, nessa época, as atividades econômicas
e a visibilidade variavam mais de acordo com a posição social do que com as
categorias de gênero. (ibid., p. 8)
Fica claro, a partir dessa reflexão, a importância de não olhar apenas para o gênero, mas
classe social, etnia, período, local, etc (ibidem).
Uma outra abordagem interessante e complexa para se analisar a partir do gênero é o
panteão de deusas mesopotâmicas - assunto de suma importância para esse trabalho. Para
elaborar a problemática entre representação das deusas enquanto mulheres e o status social da
31
mulher real na sociedade, podemos nos questionar sobre por que há tão poucas mulheres
desempenhando trabalhos intelectuais se a escrita tem como símbolo maior uma deusa? A partir
dos registros arqueológicos conseguimos ter acesso a diversas profissões e o gênero dos
profissionais.
A maioria das profissões que exigem educação intelectual e letrada é reservada aos
homens: as médicas são excepcionais. Os adivinhos, que devem dominar um corpus
muito antigo de adivinhação escrito por escrito, são homens, enquanto a inspiração
divina, que não requer educação alfabetizada, também toca profetas e profetisas.
Quando as mulheres aprendem a arte dos escribas, é para atender às necessidades das
mulheres em palácios ou nadîtum, cujo contato com o mundo exterior permanece
limitado. Quatro tabletes de exercícios escolares estão marcados com "[escrita] pela
mão de uma escriba" em seus colofões e testemunham que as meninas recebem o
mesmo treinamento que os meninos, incluindo o aprendizado do sumério. O fato de
os alunos indicarem ser do sexo feminino, ao passo que em três dos quatro casos não
colocaram o nome, não revela uma forma de orgulho, nascida da consciência de terem
acedido a formação habitualmente reservada aos rapazes? (ibid., p. 13)
narrativas e rituais que regulam a interação entre as esferas divina e humana. (ibid., p.
44)
A performance é realizada por uma figura humana pertencente à realeza que, por meio
desse ritual, recebia mandamentos dos céus servindo como um “informante divino”. Assim, os
reis não apenas afirmaram seu poder social e “enquadraram a ordem do mundo, mas também
definiram hierarquias de poder e proporcionaram uma interação social ordenada” (ibid., p. 43-
44).
Podemos pensar: de que forma esses ritos religiosos podem atuar dentro das relações de
gênero dentro da sociedade mesopotâmica? Um dos exemplos de Casamento Sagrado
conhecido atualmente pelos pesquisadores é o de Inanna e Dumuzi. O símbolo da cama e do
trono são duas figuras importantes para a performance do casamento desses dois deuses: é na
cama que se dá a consumação do casamento e é no trono que os deuses se sentam no final da
cerimônia. A feitura destes móveis aparece no mito de Inanna e a Árvore de Huluppu. Nesse
mito, de forma bastante resumida, Inanna, a poderosa deusa, busca ajuda de Gilgamesh para
conseguir se livrar de criaturas que estão hospedadas na sua árvore Huluppu. Gilgamesh ajuda
Inanna e, com os restos da árvore, constrói para eles dois tronos e uma cama.
A partir deste mito gostaria de fazer uma provocação relativa aos papéis de gênero
contidos: por que Inanna, uma das deusas mais poderosas do panteão mesopotâmico - senão a
mais poderosa - aparece totalmente desamparada nessa história? Gilgamesh não apenas salva a
deusa indefesa: ele aparece como um domesticador da natureza selvagem da árvore expulsando
seus habitantes e, de forma violenta do ponto de vista simbólico, transformando essa natureza
rebelde em um móvel: símbolo do mundo doméstico e do casamento sagrado.
A árvore Huluppu abrigava diferentes animais, incluindo o pássaro Anzu que escolheu
aquela árvore para fazer seu ninho. Um espaço fértil, porém, uma fertilidade não submissa, uma
fertilidade, ou um desejo, descontrolado. Além disso, podemos observar, como nos lembra
Dupla (2018) ao associar o mito da Huluppu com a cidade de Uruk, a diversidade de seres de
outras culturas, como a semita Lilith. A partir de uma perspectiva de gênero, acredito que seja
interessante especular sobre os papéis sociais que este mito nos apresenta com a performance
de Gilgamesh ao castrar a natureza da Huluppu e transformar o signo de liberdade, de vida no
signo do lar. Se pensarmos conforme a metáfora da cidade apresentada por Dupla (2018), o
herói representa, então, o processo de dominação do território.
Ainda olhando para os mitos, cabe pontuar uma característica interessante: diferente do
mito de criação encontrado em Gênesis 2, no Atra-hasîs, por exemplo, o homem e a mulher não
33
No final de 1939, Mário de Andrade teve sua situação enquanto servidor público do
Ministério da Educação e Saúde de Capanema4 regularizada após o período de instabilidade e
foi admitido como consultor técnico do Instituto do Nacional do Livro por Augusto Meyer para
a preparação do texto do anteprojeto da Enciclopédia Brasileira. Podemos observar que Mário
de Andrade se apoia em três princípios centrais para o desenvolvimento de tal projeto: “(...) a
cultura como meio de emancipação do homem, a cultura como base da formação da nação e o
papel do Estado como viabilizador das ações culturais” (AMARAL, 1999, p. 401). Além disso,
Mário justifica a criação da Enciclopédia a partir de um pensamento de democratização da
informação e constituição de uma “identidade brasileira”
4
Gustavo Capanema (1900-1985), político mineiro que atuou como ministro no governo de Getúlio Vargas entre
os anos de 1934 e 1945.
34
fundamental fazê-la chegar até a camada da população que tem dificuldades em adquirir
bens culturais. (ibid., p. 401)
5
Disponível em:
https://www.britishcouncil.org.br/sites/default/files/demandas_de_aprendizagempesquisacompleta.pdf, acessado
em: abr. 2021.
35
materiais para estar ali. Então, a partir de um olhar carinhoso à educação e à pesquisa, resolvi
dedicar meu Trabalho de Conclusão de Curso ao desenvolvimento de uma obra que fosse
necessária e didática para estudantes e leigos.
Para que uma área comece a trilhar sua trajetória buscando um estabelecimento e uma
tradição nas universidades, primeiro, é preciso que existam materiais na língua nativa falada no
país. Mas, não apenas isso. É preciso, também, que estes materiais sejam de fácil entendimento
e despertem a curiosidade de quem lê, ao mesmo tempo em que informam de forma clara e
sucinta. Sendo assim, o Dicionário das Deusas Mesopotâmicas, retomando as perguntas de
Mário, serve para pesquisadores, professores e curiosos em geral. Seu caráter cultural busca,
simultaneamente, ser um material de divulgação científica pelo seu pioneirismo e, ao mesmo
tempo, servir como fonte auxiliar de pesquisa.
5.1 METODOLOGIA
outro lado, as citações presentes neste TCC foram todas traduzidas por motivos de
acessibilidade e função deste material didático.
A escrita dos verbetes se deu da união dos textos em cada dicionário, mas não apenas.
Também foram utilizados livros, artigos e o projeto Ancient Mesopotamian Gods and
Goddesses6 (2016).
Para a montagem do dicionário, foi decidido separar as deusas de acordo com sua
função. Por exemplo, a divisão das Deusas Mãe. Houve também a preocupação que essas
deusas não fossem reduzidas ao arquétipo, afinal, muitas executam mais de uma função. A
separação é instrumental, porém, também preocupada em não reproduzir apenas um discurso
“instrumentalizante” que apague as singularidades de cada deusa. Por este mesmo motivo,
busquei citar ao máximo as principais histórias e escritos nos quais elas apareciam.
5.2 POR QUE ESTES DICIONÁRIOS?
A escolha dos dicionários se deu de forma bastante objetiva: foram escolhidos os mais
conhecidos e mencionados na literatura. Entretanto, durante o processo de coleta de dados,
mudanças fizeram-se necessárias. Por exemplo, o Reallexikon Der Assyriologie Und
Vorderasiatischen Archäologie. (1993), foi retirado da lista uma vez que seu conteúdo, ainda
que bastante completo e importante para a área, não era exatamente o que esse trabalho buscava.
Outro dicionário também precisou ficar fora da seleção, Dictionnaire des civilisations de
l’Orient ancien (1999), de Guy Rachet. Porém, este último foi pela ausência de sua
disponibilidade online ou física. Assim, mais uma vez fica claro que há uma questão de falta de
disponibilidade de material. Isso sem entrar no mérito de que todos os dicionários usados são
estrangeiros, ou seja, outro obstáculo que se coloca no trajeto dos jovens pesquisadores: a
língua.
Durante a coleta de dados, duas coisas foram percebidas. Primeiramente, que a escrita
dos nomes das deusas pode aparecer de forma diferente. No A Dictionary Of Ancient Near
Eastern Mythology (1991), de Gwendolyn Leick, temos “Ayya”. Já na obra de Black & Green
Gods, Demons and Symbols of Ancient Mesopotamia (2004), temos “Šerida/Aya”. Por outro
lado, a segunda observação é que o conteúdo, ao compararmos, pode ser bastante útil e até
complementar. Ao analisar os verbetes de “Ayya” e Šerida/Aya”, qualquer pessoa poderia
perceber que se trata da mesma personagem histórica pela localidade de seus cultos e suas
ligações com outros deuses – mesmo que nesta última informação também haja um desencontro
6
Disponível em: http://oracc.museum.upenn.edu/amgg/index.html, acessado em abr. 2021.
37
Ichiro 1979, 13
epithet is Akkad.
kallatum, ‘the bride’,
and belet-ulsazu
unat, ‘Mistress
adorned with
voluptuousness’. As
the wife of the sun-
god Šamaš she was
greatly venerated in
Sippar and during
the Old and Neo-
Babylonian periods,
less in her own right
than in her capacity
to intercede with her
husband. She is also
found among the
treaty-gods of Hatti.
Speiser, in Pritchard
1975, 5–17;
Lambert, in Alster
(ed.) 1980, 62f;
Dalley 1989, 165–81
a dream. He addresses
Gatumdug as mother and
father and asks for the
protection of her
favourable udug and lama
deities. Gatumdug's
temple was originally in
the temple area at Lagaš
but was subsequently
moved to Girsu.
Gula/Nintinu The goddess Gula (whose La déesse Gula (^d gu-la Gula—Babylonian
gga name means 'great') was a ou ^d ME.ME) appartient goddess of healing.
healing goddess, who aux principales divinités See Ninisina
'understands disease', and du panthéon
a patroness of doctors. She mésopotámien. Fille
was also worshipped d’Anu*, elle habite les
under the names Cieux. En tant que déesse
Nintinuga, Ninkarrak and de la Guérison, Gula est
Meme, originally the la déesse poliade de la
names of other goddesses; ville d’Isin*, réputée
and as Ninisina, 'Lady of d’ailleurs comme centre
Isin'. Her principal shrine de formation des
was the E-gal-mah at Isin, médicins. Gula est
52
Le temple* de Gula à
Isin est l’É.GAL.MAH,
mais la déesse possède
également des temples
dans de nombreuses
autres localités telles
Nippur, Ur*, Umma*,
Lagas*. Sippar* ou
Uruk*. Trois temples lui
sont dédiés dans les villes
de Babylone* (Esabad,
Ehursagsikilla et
Ehursagkuga), Borsippa*
54
La constellation de la
Lyre symbolise la déesse
Gula dans le ciel, et son
chien apparaît sous la
forme de la constellation
d’Hercule.
Bibliographie: J. Black et
A Green, Gods, Demons
and symbols of Ancient
Mesopoamia, Londres,
1992.
Inanna/Ištar The goddess Inana or Istar ISHTAR. Elle est, à juste The etymology of
was the most important titre, la plus célèbre des her name is doubtful;
female deity of ancient déesses de by the end of the
Mesopotamia at all Mésopotamie*, sous son third millennium BC
periods. Her Sumerian nom sumérien* it was taken to derive
name Inana is probably d'INANNA (variante: from ^d nin.an.na,
derived from a presumed INNIN) ou sous celui, ‘Lady of Heaven’ (in
Nin-ana, `Lady of akkadien*, d'Ishtar, the Emesal-dialect,
Heaven'; it also occurs as L'étymologie exacte du gašan.an.na). The
Innin. The sign for Inana's premier reste inconnue, cuneiform sign mùš,
name (the ring-post) is même si l’on s'accorde à with which her name
found in the earliest le mettre en rapport avec is usually written,
written texts. Istar (earlier l'expression NIN.AN.AK goes back to an
Estar), her Akkadian «la maîtresse du ciel», archaic pictograph
name, is related to that of devenu INA(N)NA par representing a rolled-
the South Arabian (male) chute du Ninitial et du K up reed-stalk . It is
deity `Athtar (see Arabian final (une autre found among the
gods) and to that of the étymologie, proposée par earliest written
Syrian goddess Astarte T. Jacobsen fait records from Uruk.
(Biblical Ashtoreth), with originellement d’Inanna The god-list of Fara
whom she was l’essence divine présente mentions Inanna
undoubtedly connected. dans les silos à grain). Le behind An and Enlil
The principal tradition nom d'Ishtar est and before Enki.
concerning Inana made clairement sémitique et Otherwise the
her the daughter of An, se rattache aux formes de sources of the pre-
and closely connected l’Ouest désignant la Sargonic period do
56
with the Sumerian city of déesse sous les noms not indicate a very
Uruk. According to d’Attar, Ashtar(a) tet widespread
another tradition she was Astarté. La fusion entre veneration of the
the daughter of the moon Inanna et Ishtar s’est goddess. She is
god Nanna (Sin) and sister opérée dès la fin du III^e invoked in only few
of the sun god Utu millénaire et a conduit à personal names and
(Samaš). She was also une équivalence presque does not appear to be
regarded as daughter of parfaite : l’idéogramme a recipient of
Enlil or even of Enki in ^dMÙS (anciennement lu frequent offerings.
variant traditions. Inana's ^d(I)NINNI) rend les There are no
sister was Ereskigal, deux noms INANNA et indications of
queen of the underworld. Ishtar. Mais l’on trouve Inanna’s role either
Her minister was the également les graphies as a specific goddess
goddess Ninsubur. The phonétiques ^dish-tar, of love or of war.
fact that in no tradition ^des4,-târ ou ^din-nin. Towards the middle
does Inana have a Identifiée à la planète of the third
permanent male spouse is Dilbat (Vénus), l’«étoile millennium BC,
closely linked to her role du berger », Ishtar était kings of the Kish-
as the goddess of sexual symbolisée par le nombre dynasties
love. Even Dumuzi, who 15 (soit la moitié du (Enannatum I,
is often described as her nombre 30, attribué à son Lugalatarsi), as well
'lover', has a very père Sîn*). La déesse as Lugalzaggesi of
ambiguous relationship hurrite* Sauska a été Uruk, mention
with her and she is également, au milieu du Inanna in their royal
ultimately responsible for II^e millénaire à Ninive*, inscriptions. The
his death. Nor were any assimilée à Ishtar. La earliest literary texts
children ascribed to her place importante tenue dedicated to Inanna
(with one possible par Ishtar dans le are usually taken to
exception, Sara). panthéon féminin a date from the period
It seems likely that with conduit enfin à désigner of Agade, when the
the persona of the classical sous le nom commun daughter of king
goddess Inana/Ištar a d’ishtarâtu les déesses en Sargon, Enheduanna,
number of originally général. composed some
independent, local lengthy hymns in
goddesses were On à répertorié au moins praise of the
syncretised (see local trente-cinq lieux de culte goddess. (Since all
gods). The most important d’INANNA/Ishtar en the compositions
of these was certainly the Babylonie*. Les plus ascribed to
Inana of Uruk, where her importants semblent Enheduanna are only
principal shrine E-ana avoir été l'Eulmas preserved on later
(`House of Heaven') was d'Agade*, Neo-Sumerian
located. But other local l'Ehursagkalamma de copies, the dating of
forms of the goddess were Kis*, l’Eanna* d'Uruk* the texts remains
recognised and received et l'Eturkalamma de hypothetical.) It is
independent cults: Inana Babylone*. Dans cette likely that the
of Zabala (in northern dernière ville, Ishtar était tutelary deity of the
Babylonia), Inana of également la divinité dynasty was actually
Agade (especially tutélaire de la principale the Semitic goddess
honoured by the kings of porte de la ville. En Eštar/Ištar, the
57
number of prayers
were therefore
addressed to Ištar
(Seux 1973, passim)
in an effort to
appease her angry
heart, to influence
the omens and to
grant peace and
protection to her
subjects. Apart from
these expressions of
individual piety and
religious fervour,
there are some
mythological
compositions of the
post-Old Babylonian
period which
approach the goddess
in a less unequivocal
manner. The so-
called AGUŠAYA-
HYMN (Foster,
Groneweg) probably
records the
institution of a
particular festival.
The ironic tone of
the poem is
remarkable. It opens
with a praise of the
warlike Ištar, who
runs down her
enemies like an ‘on-
rushing vehicle’.
Greedy for battle,
she appears
‘bellowing like a
wild bull’. Her
clamour exasperates
Ea who decides to
put an end to her
aggressive
behaviour. With ‘the
dirt of his nails’ (as
in Inanna’s Descent!)
he creates Saltu,
‘powerful in form,
68
monstrous in her
proportion’, in fact
an exaggerated
version of Ištar. He
provokes Saltu to a
violent temper and
tells her to rudely
challenge Ištar to a
fight. The goddess,
confronted with this
virago, is appalled
and demands Ea to
remove the appalling
monster. Ea is happy
to do so, as long as
Ištar agrees to
modify her own
behaviour.
According to Ea’s
plan the
confrontation has the
desired effect: she
resolves to give up
her incessant and
undignified clamour
for battle. Ea
instigates a festival
in which people
could dance madly
about the streets,
commemorating the
warlike aspect of
Ištar-Agušaya.
Groneberg 1985;
Colbow 1991;
Groneberg 1997
Kramer 1976, 14
de cette démone.
La représentation la plus
détaillée se trouve sur
une amulette néo-
assyrienne* en bronze de
grande taille qui devait
être accrochée dans la
maison d’un riche patient
et qui se trouve
aujourd’hui au musée du
Louvre. La face est
divisée en cinq registres
proposant un thème
différent: des symboles
divins*, des figures
apotropaïque, la chambre
du malade (adulte),
l’expulsion de la démone
par Pazuzu et la rivière
symbolisant la ligne de
communication avec le
monde souterrain. Pour
son voyage à travers la
steppe Lamastu dispose
d’un âne, et d’un bateau*
pour traverser la rivière,
et divers ustensiles
féminins forment son
bagage.
Bibliographie: C. Michel,
“Une incantation paléo-
assyrienne contre
Lamastu”, Or 66, 1997,
p. 58-64.
F. A.M. Wiggermann,
“Lamastu, Daughter of
Anu, a Profile”, dans M.
79
Mamitu Mamitu—Akkadian
goddess The name
derives from
Akk.mamitum,
‘oath’, and she seems
to have originally
been a
personification of the
oath, who pursues
and punishes the
perjurer. Later she
acquired chthonic
aspects and was
considered to be the
wife of Nergal or
Erra. In the Gilgameš
Epic (Tablet 10,6)
80
she is called
‘creatress of
destiny’, who with
the Anunnaki ‘allots
life and death’. The
short version of the
name is Mami or
Mame, which is
easily confused with
Mamma.
Mamma, Mamma/Mama/Mam
Mama, i—Akkadian
Mami goddess The name is
the baby-word for
‘mother’. Her most
common epithets are
ummi, ‘mother’, or
asû, ‘midwife’.
Mamma occurs
frequently in
Mesopotamian
female personal
names since the Pre-
Sargonic period, but
never in Sumerian
names. Roberts
1972, 43f;
Krebernik, RLA VII
1989, 330
Balawat), he built a
temple there to a god
whose name is written in
the same way, possibly in
origin a local deity with a
similar name.
population of Sumer
worshipped a female
goddess, each
community their
own, which were in
due time replaced by
male gods, either by
‘marriage’ (as Enki
and Damgalnunna at
Eridu, one of the
oldest Sumerian
religious sites) or by
suppression. This
situation is
sometimes reflected
in mythological texts
or god-lists (see
Cosmogonies),
where the mother-
goddess was usually
listed on third or
fourth place behind
An, Enlil (and Enki),
but never comes
first. In the great
god-list An=dAnum
the identity of
different mother-
goddesses
(Ninhursaga,
Ninmah, Nintu,
Ninmenna, Aruru,
Dingirmah, Mamma,
Belet-ilî) merged
almost completely,
and by the time of
the Isin-Larsa period
she almost
disappeared from the
lists. In mythological
texts, the mother
goddess is involved
in the creation of
mankind (Enki and
Ninmah, Atra-hasis
(see Flood-myths),
Epic of Gilgameš).
There are also
numerous, if almost
86
subliminal references
in other myths and
religious texts which
underline her
essential role as the
sustainer of animal
and human life.
During the Old
Babylonian period,
many formerly
independent mother
goddesses became
wives of gods, and
assumed an
increasingly
mediating and
interceding function.
‘Feminine’ qualities,
such as compassion,
forgiveness and
humility were
ascribed to these
goddesses and even
Ištar, the most
independent of
Mesopotamian
goddesses, is
addressed as a
merciful mother-
goddess in the first
millennium BC,
maybe under Hurrian
influence. In Ugarit
and Syria, the
mother-goddess (see
Aštart) has a
relatively inferior
role compared to the
Weather-god as far
as the mythological
texts are concerned.
The archaeological
evidence of the
ubiquitous nude
goddess and the
evidence of the
personal and
geographical names,
however, seems to
87
point to a similar
popularity as
elsewhere in the
Near East. Helck
1971; Urbin-
Choffray 1983, 380–
1; Kienast 1985,
106–16; Lambert
1986, 125–30;
Frymer-Kensky 1992
Wohlstein 1976;
Ichiro 1979, 371–2
in which the
supplicant addresses
Ninlil in an attempt
to influence her
husband. In Assyria,
Ninlil became the
wife of the national
god Aššur.
Neo-Sumerian
period. According to
the Sumerian temple
hymns (Sjöberg,
Bergmann, No. 18)
she had a temple in
Akkil. In
mythological texts,
Ninšubur is the
sukkal ‘vizier’ of
either An or Inanna.
The earliest
reference to this
function is from an
Early Dynastic
votive offering. In
the service of the
male god he is male;
in the service of the
goddess, most
prominently in
Inanna’s Descent,
female. The function
of sukkal is a
combination of
different offices,
herald and
messenger, minister
with executive
powers in the
absence of the
master. In the Sacred
Marriage texts of
Isin, Ninšubur leads
the bridegroom to his
beloved. In this
context she is ‘the
holy handmaid of E-
anna (Jacobsen, 41).
Bergmann, ZA 56;
Jacobsen 1973
Au I^er millénaire,
Nisaba est restreinte à ses
seules fonctions
“féminines” de fécondité
et de réconciliation, et
disparaît entièrement en
tant que déesse de la
Sagesse. Quand
Assurbanipal* renoue
avec la tradition des
hymnes royaux célébrant
les pouvoirs intellectuels
du roi, Nisaba n’y figure
plus: ce sont Marduk* et
Nabû qui le dotent
d’intelligence et de
sagesse. La carrière de
Nisaba présente ainsi un
parallèle frappant avec
celle de Sesat (cette fois
en tandem avec Thot)
dans l’Égypte
contemporaine.
agrig zi.den.lil.la,
‘true stewardess of
Enlil’, and ša sibitte
ša ma ssarte ša
habalata, ‘goddess
of imprisonment,
detention, of the
ropes’, probably an
allusion to her
underworld aspect
which was important
in magic.
Tašmetum Tašmetum—
Babylonian goddess
Her name, which
derives from
Akkadian šamû,
means something
like ‘the granting (of
requests)’. She was
wife of Nabû and
was worshipped with
him in Borsippa.
With Nabû she is
often invoked in Late
Babylonian and Late
Assyrian prayers and
ritual texts, as a
merciful mediator,
protector from evil
and goddess of love
and potency.
Astronomically she
was identified with
Capricorn.
5.4.1.1 Universidade
“ciência” enquanto outros são rebaixados a um tipo de assunto banal e sem qualquer método.
Como inserir pesquisas quase “alienígenas” nesse espaço? Como pautar outros saberes,
principalmente a História Antiga, numa universidade que muito pouco olha para o passado e
futuro e os enxerga apenas como o que antecede o presente e o que precede o presente, uma
universidade que nega o poder de imaginação, função revolucionária, aos alunos, em nome da
racionalidade e do “aqui e agora”?
Enquanto professores, alunos e pesquisadores, temos principalmente dois espaços para
divulgarmos nossos saberes: o ensino interno e externo (extensão e estágios docentes), e a
pesquisa. Aqui, será abordado apenas o ensino interno e a pesquisa. Ainda que estes dois
possam se entrecruzar, pois a sala de aula é um laboratório – incluindo as salas de aula dos
ensinos fundamental e médio - pensarei como espaços separados conforme lida a atual
universidade.
No que se refere a pesquisa, podemos pensar o exemplo do LEAO e a utilização de
dicionários como fontes primárias que nos ajudam a identificar personagens históricos e suas
ligações a partir de verbetes sucintos e de fácil instrumentalização. Um dicionário, que reúna
deusas mesopotâmicas sob verbetes que trazem a tradução de materiais inacessíveis para boa
parte da população brasileira por causa da língua e apresente um conjunto de referenciais
teóricos, facilitaria a propagação de novas pesquisas.
O campo de pesquisa sobre gênero na Antiguidade cresce no mundo inteiro, inclusive
aqui no Brasil. Por outro lado, cabe-nos perguntar: quem são esses novos pesquisadores? Qual
sua origem? Como acessaram esse ramo? Como contribuem para a popularização do assunto?
Não nos serve uma área de pesquisa limitada pela visão de poucos e protegida por muros feitos
de textos em inglês, francês e alemão. Atenção: popularizar um tema não significa que ele será
para todos, afinal, existe uma escolha construída individualmente por cada trajetória.
Popularizar é permitir que quem possui curiosidade tenha acesso à área mesmo não sabendo
línguas estrangeiras. Popularizar é criar, por meio da pesquisa e da tradução, nossas próprias
fontes na nossa própria língua.
Dito isso, na pesquisa, o Dicionário das Deusas Mesopotâmicas serve como fonte
bibliográfica e facilitador, no que tange ao acesso à conteúdo de Mesopotâmia. Pensar a sala de
aula universitária pode ser um pouco mais complexo para debater os usos deste material. Mas
é justamente por ser um assunto complexo que reivindica demandas complexas, que se torna
possível debater o todo da educação universitária.
No começo deste Trabalho de Conclusão de Curso, fiz um pequeno comentário sobre
certos assuntos darem mais visibilidade e dinheiro para quem os estuda, isto inclui pautas
111
identitárias que estão na mídia. Então, faço o seguinte questionamento: como sobreviver
pesquisando algo que não interessa aos financiadores da ciência e que não segue uma agenda
baseada muito mais no lucro que num compromisso com as mudanças sociais? Num mundo
que pauta seus interesses baseados em dinheiro, visibilidade pessoal e “clicks” que geram
engajamento, não estamos realmente livres para estudarmos e pesquisarmos o que temos
vontade. Estamos condicionados pela materialidade da nossa situação, e nossos desejos são
podados por não pertencerem à hegemonia.
A quem cabe então mudar isso? Ora, as ciências humanas não são apenas ferramentas
para interpretar a sociedade e a história, mas para transformá-las. Cabe aos professores,
pesquisadores, estudantes e quaisquer outras funções civis forjar suas próprias condições
materiais para a superação de uma sociedade que segregue o conhecimento em “mais valoroso”
e “menos valoroso”.
A sala de aula das universidades é um dos espaços supostamente liberais que deveriam
suscitar esse tipo de transformação do conhecimento. Entretanto, o que vemos atualmente é
apenas a mudança do desenvolvimento teórico do mundo a construir que se planeja e se
terceiriza para as pessoas do futuro. Sobre a importância de se pensar a teoria em conjunto com
a prática – que deve ultrapassar os muros das universidades e dos museus – evoco o saudoso
Lênin no escrito “As Tarefas Revolucionárias da Juventude”, de 1920:
Um dos maiores males e pragas que nos deixou como herança a velha sociedade
capitalista é o completo divórcio entre o livro e a vida prática. (...) Sem trabalho, sem
luta, o conhecimento livresco do comunismo, adquirido em folhetos e obras comunistas,
não tem absolutamente nenhum valor, pois ele apenas daria continuidade ao antigo
divórcio entre a teoria e a prática, que constituía o mais repugnante traço da velha
sociedade burguesa… (LENIN, 2015, p. 14)
Deste modo, como começar a mudar nossa prática didática? Retomo a ideia lançada nos
primeiros parágrafos do capítulo dois: nós, pesquisadores de História Antiga, precisamos
entender a História para além do fazer científico kantiano e enxergar na sala de aula o potencial
para a construção de discursos que unam passado, presente e o futuro não enquanto uma linha
contínua, retilínea e um marasmo de coincidências. Pelo contrário: o passado não é um fim em
si, é uma página interpretativa aberta; o presente não é o que está acontecendo agora e me coloca
como um mero espectador da história, é a possibilidade da construção do aqui e do agora; o
futuro não é o resultado de operações matemáticas que levam em consideração apenas as
variáveis “passado + futuro”, é o combustível da esperança de quem sonha e constrói um mundo
diferente.
112
Exemplo 1:
se especula sobre esse signo feminino da fecundidade ligado à maternidade - discurso que ajuda
a sedimentar uma visão de mulher baseada na fertilidade, no “dar à luz a algo” - e, por
consequência, forja o espaço que condiciona a figura da mulher à função materna; por outro
lado, vemos a valorização das atribuições intelectuais da mulher desenvolvidas a partir de
Nisaba e Gula. Nisaba é a deusa da escrita ligada à educação. Seu nome está presente na hora
de abençoar alunos e discutir burocracias sociais. Gula é “aquela que conhece as doenças” e é
capaz de tratá-las. Além disso, Gula repassou seus conhecimentos para seus filhos, o que
evidencia o caráter de formação intelectual para o outro. Isso vale para Nisaba e sua bênção aos
novos professores.
Até mesmo a agricultura, por exemplo, pode ser lida de outra forma que não a tradicional
ligada à fertilidade – que, inclusive, é uma interpretação “emprestada” de outras culturas.
Conforme consta no verbete de Ašnan do Dicionário das deusas mesopotâmicas, “[ela] recebeu
ferramentas utilizadas na agricultura como um arado e um jugo e uma casa para se estabelecer”
(uma referência à sedentarização). Ou seja, o texto faz uma alusão unicamente técnica à deusa.
Ela utiliza as ferramentas para desenvolver a agricultura e fazê-la prosperar. Apesar de no texto
“Enki e a Ordem Mundial” os atributos lembrados da deusa serem “(...) a amante que causa as
relações sexuais, o poder da terra [...] o bom pão do mundo inteiro” (BLACK, 2005, p. 222)”,
não podemos atribuir qualquer ligação com à fertilidade como um “dom da mulher”.
Toda essa problemática pode e deve ser discutida em sala de aula à luz de teorias e
textos feministas contemporâneos – conforme o debate atual dentro da área. Em termos
práticos, essa discussão nos traz para o tempo presente e nos faz refletir sobre a “naturalização”
da figura da mulher como aquela que procria e que cuida por parte de algumas correntes de
pensamento. Outros estudos ainda podem ser citados para fortalecer a ideia de que, no passado,
talvez as coisas não fossem tão “naturais” quanto o presente da História – produzido por
intelectuais com pouca vontade de abandonar o olhar ocidental e contemporâneo sobre gênero
– nos faz acreditar. Cito aqui como exemplo o recente estudo7 desenvolvido pela Universidade
da Califórnia e publicado na Science Advances, o qual sugere que mulheres pré-históricas das
Américas também eram caçadoras e coletoras – colocando em dúvida um “conhecimento”
popular presente em muitos livros de história.
Tal exercício suscita questões atuais e ajuda na construção de uma outra versão do
passado que é oportuna para a construção do presente e o sonho do futuro. Por se tratar de uma
7
A divulgação deste estudo para nossa língua pode ser acessada pelo site do jornal G1. Disponível em:
https://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2020/11/05/mulheres-cacadoras-eram-comuns-e-podem-ter-
dividido-funcao-com-homens-na-pre-historia-das-americas-aponta-pesquisa.ghtml, acessado em: abr. 2021.
114
aula do ensino superior, a discussão pode ser aprofundada a partir de bibliografias mais densas,
como citado anteriormente.
Exemplo 2:
desobediência de uma regra, a união diante da gravidez como a opção tomada por Enlil, entre
outras possíveis questões levantadas pelos alunos em sala.
É inegável, temos de concluir, que estamos lendo um material produzido por uma cultura
com suas ideologias e que ajuda na formação do corpo da mulher como um espaço permissível
à violência e ao desejo do homem. E, ainda mais, narrativas que evidenciam como o estupro é
cometido por quem detém um poder simbólico de realizar seus desejos acima do direito do
outro.
5.4.1.2 A escola
Talvez a maior diferença entre esses pontos apresentados numa aula na Universidade e
em uma aula na Escola seja a limitação da última em relação à disponibilidade e conhecimento
de referências bibliográficas para respaldar a discussão. O que, de forma alguma, significa um
desconhecimento de causa. Acontece que o conhecimento científico não se faz apenas do
conhecimento individual de causa, mas da construção colaborativa e coletiva a partir de
discussões que envolvem métodos de análise e obras já elaboradas sobre o assunto – em
conjunto com a intuição, claro.
Em outra perspectiva, abordar a disciplina de História a partir de uma crítica ao modo
de historicizar o passado já nas escolas de ensino fundamental e médio ajuda na elaboração
prática de alunos com outra visão de mundo que já chegarão na universidade exigindo
discussões que abarquem o atual e que saiam do campo das ideias rumo a práxis.
Então, é de suma importância que o professor da escola abandone a narrativa do passado
histórico que, conforme coloca Nilton Mullet Pereira,
(...) acabou por criar uma relação com o passado, que se deu em uma lógica
cientificista e estabeleceu que o único modo de recriar o passado seria através de uma
descrição objetiva, construída sob a ideia de que o passado é anterior ao presente,
nunca coexistente (PEREIRA, 2020, p. 56)
E, no lugar, adote uma visão da História como um fazer também imaginativo e intuitivo.
Isso significa abandonar os acontecimentos pontuais. A história não é uma linha feita de
tracejados, ela é contínua e não faz “paradas” para que Dom Pedro grite às margens do Ipiranga
enquanto ela espera a performance que será registrada como um marco. Somente a imaginação
permite que o aluno pense a continuidade histórica em contraposição aos livros didáticos que
dividem capítulos por eventos históricos.
Pereira (2020) fala que a imaginação é a maneira de nos livrarmos do “fardo da história”
que, de acordo com ele, “(...) tende a tornar o futuro um desdobramento do presente, como se
116
o futuro estivesse necessariamente ligado ao presente numa relação de causa e efeito” (ibid., p.
60).
Talvez fique mais claro o que significa “ver a história como contínua" se pegarmos de
empréstimo o esquema de evolução do ser-humano linear/progressivo. Neste caso, pontua-se
determinadas espécies como marcos notáveis dentro da linha evolutiva, não evidenciando as
incontáveis formas de vida que estão entre um ponto e outro. Dessa maneira, passamos a
enxergar a palavra evolução como um processo em etapas onde uma espécie sucede a outra em
pontos definidos em detrimento de um processo que se mostrou contínuo e fluido. Podemos
tomar como exemplo a coexistência dos Neandertais e Sapiens descobertas pelo estudo de
arqueólogos da Universidade de Tel Aviv. É esta forma de coexistir entre passado, presente e
futuro, e não apenas como meros demarcadores de passagem do tempo, o que nos interessa
aqui.
Porquanto, não é o único assunto que precisa ser discutido antes de entrarmos no
exemplo de atividade em sala de aula. Outro ponto que precisa ser frisado é a diferenciação
feita pela sociedade capitalista entre professores universitários e professores de educação
escolar. Essa demarcação coloca um no espaço de poder legitimado a partir de salário,
benefícios e títulos, enquanto o outro é “apenas” mais um educador. Isso acarreta sérios
problemas estruturais dentro da educação brasileira “básica” que reflete na educação “superior”.
Novamente, cabe aos professores essa união de classe e a luta pelos direitos de todos,
independente de seus títulos.
A alfabetização é um dos passos mais importantes da educação. É nos anos que
antecedem à entrada na Universidade que a criança/jovem vai formar sua visão sobre o que é
aprender, como é aprender e o que precisamos aprender. O que podemos fazer de forma prática
é a construção da autoestima dos professores de ensino fundamental e médio enquanto sujeitos
fundamentais na construção do aprendizado humano. Sujeitos educadores e pesquisadores
primordiais que galgam a primeira experiência científica dos alunos. Cabe aqui dialogar com
Paulo Freire (1996), que já enxergava o educador como um pesquisador para além do seu título
universitário:
Fala-se hoje, com insistência, no professor pesquisador. No meu entender o que há de
pesquisador no professor não é uma qualidade ou uma forma de ser ou de atuar que
se acrescente à de ensinar. Faz parte da natureza da prática docente a indagação, a
busca, a pesquisa. O que se precisa é que, em sua formação permanente, o professor
se perceba e se assuma, porque professor, como pesquisador. (FREIRE, 2011, p. 26)
de aulas. Reitero que a separação dos exemplos entre Universidade/Escola pode ser adaptada e
seu aprofundamento dependerá de cada situação educativa. Aqui, trarei um exemplo que
considero de extrema importância para o debate público e, quanto antes aparecer como uma
questão social para nós, melhor.
Exemplo1:
Este exemplo pode ser facilmente aplicado numa aula de História, Filosofia ou
Sociologia. Como chegar à discussão é uma escolha do professor. Apresentarei uma
possibilidade dentre tantas outras que a criatividade de um pesquisador pode alcançar.
O professor pode começar a aula com uma série de perguntas para os alunos: Qual a
função de uma prisão? Castigos/sentenças funcionam como métodos pedagógicos?
Ainda que haja diferenças óbvias entre o passado e presente, podemos, por exemplo,
utilizar escritos antigos para nos questionarmos sobre a construção do presente enquanto um
espaço ativo, isto é, um espaço de transformação. Após esta demarcação, que não exclui o
passado com suas especificidades mas relembra a coexistência, o professor pode introduzir o
texto A hymn to Nungal, explicando antes quem é Nungal, através da consulta ao Dicionário
das Deusas Mesopotâmicas. Nungal é conhecida como a “Deusa da Prisão” para alguns povos
mesopotâmicos. Nesta rima, em específico, temos duas narrativas sobre a prisão, a de Nungal
e a de um preso. É interessante observarmos como Nungal possui um discurso similar ao que
ainda usamos - e alguns até acreditam - sobre a função educativa que as prisões possuem.
Nungal acredita que sua casa (a prisão) “dá à luz um ser justo” (BLACK, 2005, p. 342). Do
outro lado, temos a voz de um prisioneiro para quem a prisão é “[a] casa do crime capital, que
impõe punição! Casa que escolhe os justos e os ímpios” (ibid., p. 339)
Observemos que estamos falando de um texto extremamente antigo em sua
materialidade, mas extremamente atual em seu discurso. Parafraseando Nungal, ao olhar para
o nosso mundo, a experiência nos diz que punições realmente dão à luz a um ser justo? Agora,
o professor poderia trazer exemplos contemporâneos de discursos punitivistas, estudos e
reportagens que mostram casos de impunidade devido à classe social, casos de pessoas presas
injustamente, etc. Cabe ao nosso mundo pensar como pensávamos há mais de dois mil anos
atrás? Se não cabe, é importante perguntar: é possível pensar uma sociedade sem prisões? Quais
alternativas temos? A partir desta pergunta, o diálogo deve ficar aberto para que os alunos
pensem alternativas e explorem sua imaginação em conjunto com senso crítico. A atividade
118
pode ser estendida para a pesquisa em casa e debate em grupo de alunos seguido de
apresentação sobre as reflexões sobre o tema na próxima aula.
Estas são as propostas de atividade que poderiam ser desenvolvidas utilizando o
Dicionário de Deusas Mesopotâmicas como fonte inicial de pesquisa e debate. Podemos pensar
ainda inúmeras outras formas de trazer o passado para o presente a fim de desenhar os alicerces
para um futuro. A imaginação é a maior ferramenta que o pesquisador (incluindo o professor)
pode usar a seu favor.
6 CONCLUSÃO
O que se faz numa conclusão sobre um trabalho que ainda está em aberto? Por se tratar
da elaboração de um material de apoio educativo, as conclusões dizem respeito mais ao percurso
da feitura de tal material que sobre o conteúdo em si - além, claro, de apresentar o dicionário
pronto.
As leituras feitas desde o início da minha experiência enquanto bolsista de Iniciação
Científica fazem parte dessa conclusão, ainda que nem todas elas apareçam aqui citadas
diretamente. As leituras decisivas para a minha formação e meus escritos, tanto esse quanto
outros, são das autoras aqui citadas: Brigitte Lion, Stephanie Lynn Budin, Zainab Bahrani e
Agnès Garcia-Ventura, para os Estudos de Gênero na Antiguidade; bell hooks, Paulo Freire,
Jacques Rancière e os escritos pedagógicos do MST, para pensar a educação; Edward Said,
Gayatri Spivak, Chandra Mohanty, Horacio Miguel Hernán Zapata e Nilton Mullet Pereira,
para dialogar sobre decolonialismo e visões sobre a História.
O trabalho de listar, coletar material, identificar e desenvolver texto que está presente
aqui por meio da listagem, identificação das deusas e desenvolvimento dos verbetes começou
também por meio da pesquisa em selos-cilindros do grupo de pesquisa LEAO. Por isso, não
tive muitas dúvidas quanto qual seria a melhor forma de desenvolver uma análise comparativa
senão a) fazer uma lista prévia de cada deusa presente em cada dicionário analisado; b) formar
uma lista unitária com essas deusas; c) comparar com outras fontes como sites desenvolvidos
por universidades; d) colocar os textos presentes em cada dicionário lado a lado para facilitar
essa comparação; e) e, por último, trabalhar nos verbetes utilizando os dados dos dicionários,
livros e artigos.
Durante o desenvolvimento deste trabalho, desafios foram lançados: defender a
importância de uma área muitas vezes deixada de lado; achar as fontes em formato digital; a
questão de língua e as escolhas de tradução; pensar uma forma de montar o dicionário que
119
lírica o que é essa conclusão, deixo as palavras de Wisława Szymborska sobre os caminhos e
acontecimentos da vida, “(...) porque afinal cada começo/é só continuação/e o livro dos eventos/
está sempre aberto no meio” (Szymborska, 2011 p. 97).
Por último, mas não menos importante, o resultado dessa longa trajetória de construção
de afetos e diálogos, o Dicionário das Deusas Mesopotâmicas, pode ser conferido no seguinte
link: https://deusasmesopotamicas.wixsite.com/my-site ou nas páginas abaixo em anexo.
121
REFERÊNCIAS
BLACK, Jeremy; GREEN, Anthony. Gods, Demons and Symbols of Ancient Mesopotamia
An Illustrated Dictionary. Londres: The British Museum, 2005.
___. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2011.
hooks, bell. Ensinando a Transgredir: A Educação Como Prática da Liberdade. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2019.
JUSTEL, Josué J. Mujeres y género en la historiografía del Próximo Oriente Antiguo: pasado,
presente y futuro de la investigación. ARENAL, Granada/Espanha, Universidad de Granada v.
18, n. 2, p. 371-407, jul./dic., 2011.
PEREIRA, Nilton Mullet. O que pode a imaginação na aprendizagem histórica? CLIO: Revista
de Pesquisa Histórica, Recife, Universidade Federal de Pernambuco, v. 38, n. 1, jan./jun.,
2020.
RANCIÈRE, Jacques. O Espectador Emancipado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2017.
WINTER, Irene. Women in public: the disk of enheduanna, the beginning of the office of en-
priestess and the weight of visual evidence. In: DURAND, Jean-Marie (Ed). Femme dans Ie
Proche-Orient Antique. Editions Recherche sur les Civilisations: Paris 1987.
ZAPATA, Horacio Miguel H. ¿Tiene sentido estudiar historia antigua del cercano Oriente hoy?
Tres razones y algunas reflexiones. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 40, n. 84, p.
193-216, ago., 2020.
123
ANEXO
Abba:
De acordo com Leick (1991), Abba é uma deusa babilônica de origem Amorita mencionada em
diversos textos encontrados na cidade de Mari. Ainda que não se saiba suas funções divinas ou
atributos, seu nome era usado em cidadãos e sua figura era cultuada em um templo na cidade
de Isin. Por outro lado, no mito de Enki e Ninhursag, Abba aparece como um deus criado por
Ninhursag (deusa mãe).
Anunitu/Annunitum:
Deusa babilônica cultuada nas cidades de Kisurra, Sippar, Nippur, Uruk e Ur. Leick (1991)
aponta que em no templo de Ur, Annunitum era cultuada enquanto Ulmašitum. De acordo com
Black & Green (p. 34, 1992), Annunitum e Ulmašitum eram dois aspectos de Inanna quando
cultuados em Agade. Seu nome é uma composição original que significa “A Ištar de
Skirmisher”.
Na obra Cuneiform Texts from Babylonian Tablets in The British Museum: Part XLVIII: Old
Babylonian Legal Documents (1968) de J. J. FINKELSTEIN, Annunitum aparece num
juramento (oath formula) em textos de caráter legal. A deusa também aparece como uma deusa
guerreira no texto épico de Narâm-Sîn (LEICK, p. 20, 1991).
Ašnan:
Ašnan é conhecida como a deusa dos grãos e introdutora da agricultura. De acordo com o mito
de “Lahar e Ašnan” ou “Debate entre ovelhas e grãos”, um mito de criação mesopotâmico, An
criou os Anunnaki - um grupo de 7 deuses. Entretanto, a existência dos Anunnaki precedia a
criação de deuses relacionados à agricultura, vegetação e pecuária. Por isso, o grupo de deuses
“tinham que comer grama com a boca como ovelhas e beber água de um fosso” (idem, p.108).
Assim, no espaço divino dos deuses (duku), foram criados Lahar e Ašnan e, logo após, enviados
à terra, onde receberam “instrumentos” necessários para que suas graças fossem proliferadas.
Lahar ganhou um espaço para criar ovelhas, plantas e ervas; Ašnan recebeu ferramentas
utilizadas na agricultura como um arado e um jugo e uma casa para se estabelecer (uma
referência à sedentarização).
124
Ašnan aparece também de forma bastante descritiva em “Enki e a Ordem Mundial”, (326 - 34)
“Enki encarregou de tudo isso aquela cuja cabeça e corpo estão manchados, cujo rosto é coberto
de xarope, a amante que causa as relações sexuais, o poder da terra, a vida do cabeça negra -
Ezina, o bom pão do mundo inteiro.” (BLACK et al, 2006, p. 222).
Ašratu: identificada como a versão acadica para Asherah (deusa semítica), Ašratu é a ‘Senhora
da abundância e fertilidade’ (LEICK, p. 14, 1991), e foi integrada ao panteão babilônico como
esposa de Amurru (ou uma das esposas) e nora de Anu.
Ayya/Serida: Ayya (acádico) ou Serida, esposa do deus solar Utu/Šamaš, é conhecida “menos
em seu próprio direito do que em sua capacidade de interceder junto ao marido” (idem, p. 17).
Ayya foi cultuada, principalmente, em Sippar e está associada à fertilidade e sexualidade. Além
disso, seu nome aparece na sociedade em nomes de pessoas comuns (BLACK, p. 173, 1992).
Na rima “Uma šir-namšub para Utu”, Serida é chamada como (9-18) “Ó Serida, jovem líder de
batalha!” (BLACK et al, p. 260, 2006). Ayya/Serida ainda aparece no texto “A jornada de
Nanna-Suen para Nibru”.
Baba/Bau: Baba (também grafada como Bau) é conhecida como uma das Deusas da Cura.
Sendo cultuada principalmente na cidade de Lagaš, sua representação pictórica em kudurrus
babilônicos é uma espécie de peneira de grãos e seus templos eram espaços para leituras
oraculares nos primeiros tempos dinásticos. Baba é filha de An e esposa de Ningirsu com quem
teve dois filhos, Ig-alima e Šul-šagana, também teve mais 7 filhas (cuja paternidade de Ningirsu
não é clara), todas divindades menores da cidade de Lagaš.
Belet-ekallim:
Conhecida por ser a protetora do rei e da família real, Belet-ekallim possuia o título de “Senhora
do Cetro” e “Senhora da Casa Grandiosa”. Seus templos podiam ser encontrados em Larsa, Ur
e Qatna. Belet-ekallim é citada na carta de uma mãe a um filho relatando um sonho
possivelmente premonitório. A carta pode ser encontrada no livro Women's Writing of
Ancient Mesopotamia de Charles Halton e Saana Svärd (2018) na página 194.
125
Bélet-ili:
Uma das Deusas Mães da mitologia mesopotâmica. Seu nome significa “Senhora dos Deuses”.
Belet-Seri:
Damgalnuna/Damkina:
A associação de Damgalnuna como deusa mãe pode ser aferida pelo verso “Ela é quem dá a luz
aos grandes deuses, ela é sua deusa” (BLACK;GREEN, p. 269, 2004) escrito na rima “Um sir-
sag-hula para Damgalnuna”. Segundo Black & Green (2004), “Assurnasirpal II, rei da Assíria
(883-859 AEC), construiu um templo em Kalhu para eles [Damkina e Enki]” (idem). Os autores
também colocam que a deusa é associada ao leão e a constelação da Ursa Menor.
Dumu-zi-abzu:
Na cidade de Eridu, entretanto, a deusa era vista como um deus e “fazia parte do grupo de Enki”
(idem, p. 35).
Ereškigal:
Ereškigal é conhecida como “Rainha do Grande Submundo [lugar abaixo]”. Embora não
tenhamos muitos registros de reza à deusa, ela aparece amplamente registrada em textos
mitológicos. Em “Gilgameš, Enkidu e o Submundo”, Ereškigal recebe sua parte para reinar (o
submundo) após a criação do mundo. Um dos exemplos mais famosos de textos mitológicos
que narram sobre Ereškigal é “A Descida de Inanna ao Submundo”. Inanna aparece como irmã
de Ereškigal e seu oposto.
Uma característica de Ereškigal é que ela não pode sair do submundo, por isso, é necessário
que se vá até ela. Para tal, há um ritual de passagem pelos portões do Submundo que consiste
em despir-se de roupas e adereços a cada portão (7 ao total). Essa espécie de “rito de passagem”
é descrito em “A Descida de Inanna” e “Nergal e Ereškigal”. Este último texto conta o encontro
126
sexual entre o deus Nergal e a Deusa do Submundo, que durou 7 dias e noites até o retorno de
Nergal ao céu - no fim da história, Nergal fica no Submundo com sua amante para todo sempre.
Um exemplo de registro da vida cotidiana que aparece a função e assimilação da deusa pela
sociedade é “The Grave Inscription of Queen Mullissu-mukannišat-Ninua”, o texto da sepultura
da rainha Mullissu-mukannišat-Ninua, esposa de Assurnasirpal II:
“No futuro, ninguém - nem uma mulher da corte ou uma rainha - deve ser colocada dentro (meu
caixão). Este caixão de pedra não deve ser removido de seu lugar. Quem retirar este caixão de
pedra de seu lugar, o espírito não receberá oferendas funerárias com (outros) espíritos. (Fazer
tal coisa) é um anátema para Šamaš e Ereškigal.” (HALTON;SVÄRD, p. 165, 2018).
Gatumdug:
A “Mãe de Lagaš” ou “A mãe que achou Lagaš”, como é conhecida a deusa da cidade de Lagaš,
Gatumdug, mais tarde associada à Bau (BLACK;GREEN, 2004). O príncipe Gudea refere-se,
em seu hino sobre a reconstrução de templo de Ningirsu, à Gatumdug como mãe e pai ao mesmo
tempo (idem).
Geštinanna:
Geštinanna aparece em textos mitológicos como irmã de Dumuzi. Quando este é condenado a
ficar preso no Submundo no lugar de Inanna, sua esposa, Geštinanna o ajuda a esconder-se em
diferentes lugares. Após Dumuzi ser encontrado, ele e a irmã dividem-se e cada um fica um
período de 6 meses no Submundo. A deusa escreve um lamento para seu irmão quando
capturado no texto “Dumuzi’s Dream” e, por isso, também é ligada ao luto, “ (235-44 Geštin-
ana chorou em direção ao céu, chorou em direção à terra. Seus gritos cobriram o horizonte
completamente como um pano, eles se espalharam como linho. Ela dilacerou os olhos, dilacerou
o rosto [...]” (BLACK et al, 2006, p. 83)
Assim como Dumuzi e sua mãe Duttur (Deusa Ovelha), Geštinanna também possui relações
com o meio rural. Por causa desses atributos há uma aproximação entre Geštinanna e a deusa
acádica Bélet-sëri (Deusa dos Estepes/da zona rural). Por causa dessa mescla de identidades,
desde a Primeira Dinastia de Isin Geštinanna também ficou conhecida como "a escriba do
submundo" (BLACK;GREEN, 2004).
Gula/Nintinugga: Barbara Böck em seu livro The Healing Goddess Gula: A Portrait (2014),
diz que as primeiras fontes que constam o nome da deusa Gula são da cidade de Fara e Abu
Salabikh datando dos primeiros anos do Período Dinástico (2600-2450BC). Gula é a patrona
dos médicos justamente por suas características de “entender doenças”. A deusa é lembrada
também como esposa de Ninurta ou Pabilsag ou ainda de Abu - deus menor da vegetação - e
mãe de Damu, deus da cura, e Ninazu, também associado com a cura. Sua imagem está
normalmente associada à figura do cachorro, seus adoradores costumavam deixar miniaturas
em formato do animal nos seus tempos (BLACK;GREEN, 2004). A personalidade de Gula e
outras deusas ligadas à saúde foi misturada pois, além do nome de origem, a deusa também foi
127
Inanna/Ištar:
Inanna, como é referida na suméria e Ištar, como é conhecida em acádico, nasce do sincretismo
religioso que une 3 características de divindades já existentes: “uma guerreira e quase viril, de
origem semita, Ištar; outra, suméria, feminina e padroeira do amor livre e do sexo, Inanna; uma
terceira, identificada ao planeta Vênus (Dilbat), estrela da manhã e do entardecer” (POZZER,
2018, p. 5). Parte de uma família poderosa no panteão mesopotâmico, Inanna/Ištar é filha do
Deus-Lua, Sîn, irmã de Ereškigal e de Šamaš, Deus-Sol. A deusa também aparece como filha
de An e ligada à cidade de Uruk. (BLACK;GREEN, 2004).
Ainda em relação ao sincretismo, Black e Green dizem que “Parece provável que, com a
persona da deusa clássica Inanna / Ištar, várias deusas locais originalmente independentes foram
sincretizadas. A mais importante delas era certamente a Inanna de Uruk, onde seu principal
santuário E-ana ('Casa do Céu') estava localizado. Mas outras formas locais da deusa foram
reconhecidas e receberam cultos independentes: Inanna de Zabala (no norte da Babilônia),
Inanna de Agade (especialmente homenageada pelos reis da dinastia de Agade), Inanna de Kiš;
e, na Assíria, Ištar de Nínive e Ištar de Arba'il. Inanna também estava intimamente associada à
deusa Nanaya, com quem era adorada em Uruk e Kiš.” (idem, p. 108).
Inanna/Ištar era uma das divindades mais importantes da Mesopotâmia e suas características
envolvendo sexo, guerra, amor e outros assuntos demonstram sua extrema complexidade
enquanto uma figura feminina.
POZZER, Katia Maria Paim. Arte, Sexo e Religião: a deusa Ištar na Mesopotâmia. Das
Questões, janeiro/julho, v. 5, n. 5, 2018.
Išara:
Išara, deusa de origem desconhecida, tem seu registro mais antigo nos textos pré-sargônicos de
Ebla (LEICK, 1991). Foi associada ao amor, mas também a doenças e maldições, “Em Mari,
ela parece ter sido muito popular e muitas mulheres foram chamadas em sua homenagem, mas
ela é bem atestada em nomes pessoais na Babilônia, geralmente até o final do período Kassite.
Seu epíteto principal era belet rame, "Senhora do Amor", que também foi aplicado a Ištar.”
128
(LEICK, 1991, p.94). A deusa foi associada à cobra basmu e mais tarde ao escorpião -
representando também a constelação de escorpião. De acordo com Black & Green (2004),
“Uma importante deusa de mesmo nome era adorada no sudeste da Anatólia e no norte da Síria,
dentro do panteão hurrita. Ela estava associada ao submundo.” (BLACK;GREEN, 2004, p.110)
Ki:
Com o nome significando “terra”, “solo”, Ki não é considerada uma deusa oficial pela falta de
evidências da existência de um culto para ela (LEICK, 1991). Ki seria o par de An (céu). O par
de deuses seriam os filhos da deusa Nammu. De acordo com Kramer "os teólogos insatisfeitos
com uma divindade feminina como governante de uma entidade cósmica tão importante como
a terra, retiraram seu poder dela e o transferiram para uma divindade masculina" (KRAMER,
1976 apud Leick, 1991, p.104).
Kišar:
Kišar, assim como seu par Anšar, era uma deusa primordial. Na Epopéia da Criação da
Babilônia, eles são o segundo par de filhos de Apsu e Tiamat e pais de An (BLACK;GREEN,
2004).
Lama:
Nos registros iconográficos, são muitas as representações de Lama servindo como uma entidade
introdutória que faz a ligação - uma espécie de apresentação - entre o devoto e o deus de sua
devoção. Parece, de acordo com escritos antigos, ter existido mais de uma Lama em templos
antigos (LEICK, 1991). Quanto a representação iconográfica, de acordo com Black & Green,
“Na arte Neo-Suméria, babilônica Antiga, Kassita e Neo-Babilônica, essas deusas são
representadas de uma forma bastante consistente, geralmente introduzindo os adoradores na
presença de divindades importantes e vestindo uma saia longa, muitas vezes com babados, com
uma ou ambas as mãos levantadas súplica ao deus principal.” (BLACK;GREEN, 2004, p. 115)
Lamaštu:
Não há consenso se Lamaštu é de fato um demônio ou uma deusa. Essa entidade, filha de Anu
e Antu, possui um corpus documental extenso e muito interessante. Os demônios, em sua
maioria, agem conforme o comando dos deuses. Entretanto, Lamaštu age conforme seu próprio
desejo. Seus alvos são fetos, recém-nascidos e bebês, “aborto espontâneo e morte no berço
foram atribuídos a ela” (BLACK;GREEN, p.155, 2004).
Nos textos, a possível deusa ou demônio é descrita enquanto uma figura monstruosa, “dentes
(como) dentes de burro, um rosto (como) o rosto de um poderoso leão. A parte inferior de suas
costas é salpicada como um leopardo, sua bochecha é pálida como o ocre.” (FARBER, p. 169,
2014), aparece com os seios desnudos e possui pés de Anzu (garras de pássaro).
Como dito anteriormente, existem vários encantamentos para afastar e proteger de Lamaštu,
além de objetos mágicos como amuletos. Em 2014, foi lançada uma coletânea contendo tais
textos, “Lamaštu: an edition of the canonical series of Lamaštu incantations and rituals and
related texts from the Second and First Millennia B.C.” de Walter Farber.
129
FARBER, Walter. Lamaštu: an edition of the canonical series of Lamaštu incantations and
rituals and related texts from the Second and First Millennia B.C. Michigan: Eisenbrauns, 2014.
Lisin:
Associada à constelação de Escorpião, Lisin era cultuada com seu irmão Ašgi nas cidades de
Adab e Keš. Também era conhecida como “Mãe Lisin” e, “como uma deusa mãe, foi equiparada
a Ninhursaga ou considerada filha de Ninhursaga” (BLACK;GREEN, 2004, p. 122). De acordo
com Black & Green (2004), Lisin era a esposa de Ninsikila. Contudo, após certo tempo, seu
nome foi interpretado de maneira errada e houve uma inversão: Lisin virou um deus e Ninsikila,
uma deusa.
Mamitu:
Deusa acádica, seu nome significa “juramento”, “ela parece ter sido originalmente uma
personificação do juramento, que persegue e pune o perjuro” (LEICK, 1991, p. 114), também
é conhecida por ser esposa de Nergal ou Erra. Mamitu aparece na Epopéia de Gilgamesh como
“criadora do destino” (idem).
Nomes da deusa mãe acádica. De acordo com Leick (1991) Mamma aparece em nomes
femininos na Mesopotâmia desde o período Pré-Sargônico, menos em nomes sumérios.
Mamu:
Mamu é conhecida como uma deidade suméria feminina, filha de Utu, ligada aos sonhos.
Entretanto, também aparece em registros como um homem, deus do sonho (BLACK;GREEN,
2004). De acordo com Black & Green (2004), o rei Assurnasirpal II construiu um tempo a um
deus cuja escrita do nome era igual a de Mamu.
Deusa mãe:
Normalmente identificadas como figuras feitas em argila com quadris largos e seios grandes,
essas representações são encontradas em várias regiões da Mesopotâmia sendo consideradas
umas das primeiras possíveis manifestações divinas. De acordo com as fontes históricas, como
por exemplo os mitos de criação como o Atra-hasis e Enki e Ninmah, o papel de deusa mãe
poderia ser desenvolvido por qualquer deusa (BLACK;GREEN, 2004). Entretanto, “geralmente
a maternidade da maioria dos deuses primitivos era atribuída a uma deusa em particular que,
no Segundo Milênio AEC, aparece sob uma variedade de nomes intercambiáveis, alguns dos
quais são realmente títulos, mas que podem ter sido na origem várias divindades diferentes.”
(idem., p. 132). A lista de deusas conhecidas consideradas deusas mães é: Aruru, Belet-ilî,
Damgalnuna, Dingirmah, Mami/Mama, Ninhursaga, Ninmah, Ninmenna, Nintu (LEICK, 1991;
BLACK;GREEN, 2004). A deusa mãe ainda pode agir como parteira.
130
Nammu:
Nammu aparece em algumas tradições como aquela que deu a luz a An (céu) e Ki (terra) e
outros deuses. Mas é Enki quem é reconhecido como seu filho de forma mais popular. Por
carregar esses nascimentos, “na mitologia, Nammu aparece como a mais antiga Deusa Mãe”
(LEICK, p. 124, 1991) e tal característica aparece no mito de Enki e Ninmah. Na cidade de
Eridu, Enki era chamado de “filho de Nammu”, o que poderia significar um culto anterior à
Nammu. No período Neo-sumério, a popularidade da deusa foi decaindo. Entretanto, na cidade
de Ur ainda eram construídas estátuas em sua homenagem e seu nome se encontra no nome do
rei Urnammu (LEICK, 1991). A escrita do seu nome é feita com o símbolo engur, também
utilizado para escrever Apsu (água doce, referência às águas do terreno ao Sul da Mesopotâmia).
“Nos tempos antigos, ela [Nammu] personificou o Apsu como a fonte de água e, portanto, da
fertilidade na baixa Mesopotâmia.” (Leick, p. 124, 1991). Outro fato sobre Nammu é que a
ideia da criação dos seres humanos parte dela, conforme o já citado mito de Enki e Ninmah.
Nana:
O rei Rimsin de Larsa a chamava de "a criança, transbordando com a força da vida, do grande
An". Em um escrito, Nana aparece ao lado de An e Inanna como uma trindade de Uruk. Nana
estaria possivelmente ligada à Inanna e Baba por atributos da fertilidade (LEICK, 1991).
Durante o período de Ur III, Nana possuía templos em Drehem e Umma e no período Babilônico
Antigo na cidade de Uruk.
Nanaya:
Nanaya compartilha características sexuais com Inanna e, em Uruk, ela, sua filha Kanisura e
Inanna eram cultuadas em conjunto como uma trindade (BLACK;GREEN, 2004). Por outro
lado, Nanaya não era apenas uma característica de Inanna “uma vez que nas listas de oferendas
de Uruk ela é mencionada ao lado de Inanna” (LEICK, 1991). Embora não apareça, até então,
em textos mitológicos, sua figura está presente em encantamentos para o amor e é evocada sob
“Nanaya, senhora da atratividade sexual”.
Nanše:
Nanše foi uma importante deusa na cidade de Lagaš cujos atributos divinos se relacionavam
com a interpretação dos sonhos e com a água (rios e canais). No texto “The building of
131
Ningirsu’s temple”, Gudea busca Nanše para ajudá-lo com a mensagem de Ningirsu (irmão de
Nanše) entregue a ele por meio de um sonho: “(24-32) Então, vou levar meu sonho para minha
mãe e vou pedir a minha intérprete de sonhos, uma especialista por conta própria, minha irmã
divina de Sirara, Nanše, para revelar seu significado para mim.” (BLACK, p. 46, 2006). Para
se comunicar com ela, Gudea ofereceu pão e água fria. Em “Enki e a Ordem Mundial”, Nanše
é encarregada de cuidar dos pássaros e dos peixes. De acordo com o texto, suas funções eram
“(418-21) inspetora da pesca no mar [...] Ela será responsável por aceitar peixes deleitáveis e
pássaros deliciosos” (BLACK et al, p. 224, 2006). Nanše, além de irmã de Ningirsu, também
aparece como filha de Enki e irmã de Nisaba. “The home of the fish” é outro texto que associa
a deusa de forma bastante direta com a pesca e os pescadores.
Ningal:
Ningal é a matriarca parte de uma notável família divina composta pelo Deus Lunar Nanna/Sin
e seus dois filhos Inanna e Utu/Samas (Deus Solar). Ela era cultuada principalmente na cidade
de Ur junto com Nanna - registros históricos apresentam cantos/rezas dedicadas ao casal. Nos
poemas dedicados à Inanna cuja autoria é atribuída à sacerdotisa Enheduanna, Ningal é
lembrada e celebrada pelo parentesco com a deusa.
Seus atributos divinos estariam ligados também à interpretação dos sonhos. Ningal foi
introduzida na Síria e na cidade de Ugarit com o nome Nikkal (LEICK, 1991).
Ningirin:
Cultuada em Murum e mencionada nos textos de Fara, seu nome significa “Senhora dos
Encantamentos”.
Ninhursanga/Ninhursag:
A “Senhora da Montanha”, título dado pelo seu filho Ninurta no texto “Lugal.e” (Ninmah é
renomeada como Ninhursanga), também é conhecida por incorporar uma das Deusas Mães. Em
“A canção da enxada”, por exemplo, Ninhursanga é lembrada como “A mãe dos deuses”
A deusa possuía, até a Dinastia da Antiga Babilônia, templos nas cidades de Lagash, Tell Obeid
e Keš. Nesta última, era conhecida como “Belet-ili de Keš” ou “Aquela de Keš”
(BLACK;GREEN, 2004). Depois deste período, o templo de Adab se tornou o mais importante
espaço dedicado ao seu culto. “Muitos reis da Mesopotâmia (desde o período da Antiga Suméria
até Nebukadzrezzar I) se autodenominavam "amados de Ninhursag" e afirmam ter construído
templos e capelas para ela. Eannatum, Entemena e Uruinimgina dizem em suas inscrições que
foram amamentados pela deusa.” (LEICK, p. 132, 1991).
Ninisina/Nin’insina:
Filha de An e Uraš, Ninisina é “A Senhora de Isin”, deusa padroeira da cidade. Ninisina é mãe
do deus Damu - associado à cura - e esposa de Pabilsag. Em “Uma sir-gida para Ninisina”,
muitos aspectos de Ninisina são exaltados: sua capacidade de curar pragas de demônios, seu
papel de parteira para as humanas e a invenção da jóia com pedras de šuba (com simbolismo
132
sexual) para Inanna. Neste texto, Ninisina aparece passando seus ensinamentos para o filho,
“(1-14) Ela testa a lanceta cirúrgica; Ninisina afia o bisturi. Ela aperfeiçoou os poderes divinos
da medicina e os entregou a seu filho, o rei de Girsi, o amável Damu” (BLACK, p. 255, 2006).
“No final do período da Antiga Babilônia, ela se identificou com a deusa semítica Gula”
(LEICK, p. 133, 1992).
Ninlil:
Ninlil, amplamente conhecida como companheira do deus Enlil e mãe do deus lunar Nanna/Sin
na mitologia mesopotâmica. Os dois principais textos que narram as aventuras do casal são
“Enlil e Ninil” e “Enlil e Sud”. No primeiro, a jovem Ninlil é avisada por sua mãe para não se
banhar nas águas sagradas do rio e tomar cuidado. Contudo, Ninlil vai ao rio e enquanto
caminha pelas margens, a deusa é encontrada por Enlil que confessa seu desejo por ela. Ninlil
nega a proposta de beijo e sexo. Contudo, o deus a toma mesmo assim e implanta em seu útero
a semente de Suen-Asimbabbar. A narrativa pode ser interpretada como uma relação não
consensual e lida como estupro. Após o ato, “(54-64) Enquanto Enlil andava em Ki-ur, os
cinquenta grandes deuses e os sete deuses que decidem os destinos, mandaram Enlil preso em
Ki-ur.” (BLACK et al, p. 104, 2006) Enlil sai da cidade e Ninlil o segue e se tornam um casal.
A segunda narrativa, “Enlil e Sud”, por outro lado, narra o casamento entre Enlil e a deusa Sud,
que depois é batizada como Ninlil. “A mãe de Sud era Ninšebargunu, a deusa de Ereš, uma
antiga divindade agrícola e seu pai era Haia, deus das reservas. Ninlil é explicitamente
identificado com a deusa dos grãos Asnan, bem como Nintu, a deusa do nascimento” (LEICK,
p. 133, 1992)
Ninmah:
Ninmah, a Grande Senhora, algumas vezes nomeia Ninlil e Ninhursag evidenciando seu caráter
enquanto mais uma Deusa Mãe. No texto “Enlil e Sud”, Aruru, irmã de Enlil, aparece nomeada,
entre outros nomes, como Ninmah. A deusa também aparece no poema “Enki e Ninmah”, no
qual faz o papel similar ao de uma parteira. Neste mesmo texto, Enki e Ninmah, já bêbados,
iniciam um jogo de “criação e destino” de seres humanos.
Ninmah possuía um templo da cidade de Adab e dividia seu nome com uma constelação.
Ninsianna:
Ninsianna possui uma identificação com a deusa Inanna/Ištar, conforme o texto “Iddin-Dagan's
Sacred Marriage Hymn” (Römer, 1965), (Reisman, 1973), “(228) Uma ‘canção de heroísmo’
de Ninsianna” (REISMAN, p. 192, 1973). Ninsianna também teria ligação com o planeta Vênus
(LEICK, 1991).
REISMAN, Daniel. Iddin-Dagan's Sacred Marriage Hymn. Journal of Cuneiform Studies Vol.
25, No. 4 (Oct., 1973), The University of Chicago, pp. 185-202.
133
Ninsun/Ninsumun:
Ninsun é reconhecida, junto com seu companheiro Lugalbanda, o rei deificado de Uruk, como
pais de Gilgameš. Na Epopéia de Gilgameš, especificamente no encontro com o monstruoso
Huwawa, o herói reivindica sua raíz, “(90-91) Pela vida de minha própria mãe Ninsumun e de
meu pai, sagrado Lugalbanda! Devo me tornar novamente como se estivesse adormecido ainda
no colo de minha própria mãe Ninsumun?” (BLACK et al, p. 344, 2006).
O significado do nome da deusa “Senhora das vacas selvagens”, poderia sinalizar alguma
associação de seu culto com o gado (BLACK;GREEN, 2004). Além de Gilgameš, Gudea,
Urnammu e Shulgi, reis das cidades de Lagash e Ur, respectivamente, também se declaram
filhos de Ninsun.
Ninšubura:
Como um pobre, vista-se com uma única roupa e coloque os pés sozinha no E-kur, a casa de
Enlil [...]
E ordenada que a ministra siga buscando ajuda em Nanna e Enki até as preces serem atendidas.
De acordo com Leick (1991) a figura de Ninšubura variou, com o tempo e espaço, como uma
mulher ou um homem, “No tempo da Antiga Suméria, ele era conhecido como a divindade
tutelar de Uruinimgina de Lagash” (idem, p. 134). Ninšubura, enquanto mulher, possuía um
templo em Akkil.
Nintud/Nintu/Nintur:
“A senhora que dá a luz” aparece identificada, no período Neo Sumério, com a deusa
Ninhursag. Na mitologia, Nintud está presente em Enki e a Ordem Mundial, no mito sumério
de criação, Ninlil e Sud e A tigi to Nintud-Aruru. Sendo esta última uma canção feita
especialmente para ela.
Nisaba:
134
Nisaba foi descrita, cultuada e lembrada em inúmeros escritos, tanto mitológicos quanto rezas
e na área de educação. Possuía templos em diversas cidades.
Padroeira da cidade de Ereš durante o período de Isin-Larsa, Nisaba parece, pela escrita do seu
nome estar associada com uma espiga de milho, ter uma origem ligada aos grãos. Entretanto,
ficou conhecida como a Deusa da Escrita ou, mais especificamente, de acordo com Jeremy
Black et al (2006), “a deusa da escrita e, portanto, da literatura e da burocracia essenciais para
uma administração agrícola bem-sucedida” (idem, p. 3). Seus parentescos com outros deuses
costumam mudar dependendo da região e do tempo: Nisaba, conforme registros mais antigos,
era filha de An e Uraš. Entretanto, em Lagaš, era cultuada como filha de Enlil. Por outro lado,
no texto “Enlil e Sud”, Enlil é mãe de Sud.
Nungal:
Ainda que as leis mesopotâmicas tenham sido registradas, são raros os relatos sobre as prisões.
De acordo com Black et al (2006), esse texto “Como uma composição curricular, enviou uma
mensagem aos escribas em treinamento de que era seu dever defender um sistema jurídico justo,
ao mesmo tempo em que mostrava o que estava reservado para o caso contrário” (idem, p. 339).
Ṣarpanitum/Erua:
Tašmetum:
Tašmetum, geralmente, aparece nos registros históricos escritos em conjunto com seu
companheiro Nabû. Porém, isso não impede que a deusa tenha sua própria autonomia divina e
135
seus próprios devotos. (1) Tašmetum aparece em preces como “uma mediadora misericordiosa,
protetora do mal e deusa do amor e potência.” (LEICK, p. 156, 1991)
1. Ver a oração em formato de carta de Akatiya para Tašmetum em Ein altassyrischer Brief
and die Göttin Tašmetum de Guido Kryszat (2003).
Uraš:
Uraš aparece na mitologia como esposa de An, um outro nome da deusa suméria Ki (terra),
possivelmente com o mesmo significado. Ela também é conhecida como mãe das deusas
Ninisina e Nisaba, o texto “A sir-gida to Ninisina” apresenta esse aspecto da deusa: “(83-89)
Minha mãe Uraš, a senhora dos deuses, teve um memorável sexo com An” (BLACK et al, p.
256, 2006). Em outro texto, “A hymn to Nisaba”, a maternidade de Uraš também fica em
evidência, “(1-6) Nisaba, grande vaca selvagem nascida de Uraš” (idem, p. 293).
Uttu:
Uttu é conhecida como “A Deusa da Tecelagem”. No texto “Debate entre ovelhas e grãos”
Uttu é associada à feitura de vestimentas, “(12-25) Não havia pano para vestir; Uttu não havia
nascido - nenhum turbante real era usado” (BLACK et al, p. 226, 2006). Outra associação feita
com a deusa é a aranha tecendo sua teia (BLACK;GREEN, p. 182, 2004).