Tema 1 - Entrevista - Manuel Sarmento

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QUEM ESTÁ NA ESCUTA?

DIÁLOGOS, REFLEXÕES E TROCAS DE ESPECIALISTAS QUE DÃO VEZ E VOZ ÀS CRIANÇAS


S U MÁR IO

A LÔ , Q U E M FAL A? P O R M APA DA I N F Â NCIA B R A S I LE I R A 3


RE T RATO E M PO SIT IVO E NTR EV I STA CO M M A N UE L JACI NTO SA R M E NTO 5
CRIACIDADE VOZES DA CIDADE

A A RTE DE ADE NTR AR L AB IRI NTOS I NFA NT I S PO R A D R IA N A F R I E DM A N N 16


HUMARA BACHPAN NDIPH I LI LE: EU ESTOU VIVA!

P O É T I C A DA INF ÂNC IA P O R S EV E R I NO A NTÔN IO E K AT IA TAVA R E S 25


PEQUENOS GRANDES MU NDOS COLEÇÃO DAS CRIANÇAS DAQUI

TE S S I T U R A DE VÍNC U LO S EM C A MP O PO R DAV I D R E E KS E R E N ATA M E I R E L LE S 34


PROJETO ENCONTROS E MEI DONA LEOPOLDI NA

N A RRAT IVA S DO O LHAR P O R G A B R I E L A RO M E U


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TECENDO SABE RES CECIP

C A RTO GR AFIA DE U M A E SC UTA S EN S Í VEL PO R L I N DA LVA SOU ZA


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I NFANT PE RÚ TE RE-CREO, TUS NOTICIAS

PA RA LE R , VE R E CO MPART I LHA R
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APR ESENTAÇÃO

A LÔ , Q U E M FAL A?

Esta publicação sinaliza caminhos, constrói pontes e abre atalhos para uma temática bastante cara
nos dias de hoje: a importância em ouvir, observar e dialogar com o universo da criança. No entanto,
ainda que as práticas de escuta infantil estejam cada vez mais disseminadas em esferas e ambientes
distintos, no público e no privado, na cidade, na escola e em instituições diversas, é urgente ampliar
o debate sobre questões que iluminam abordagens históricas, metodológicas e éticas.
Quem está na escuta? reúne artigos de pesquisadores que atuam em diferentes áreas e quem
abre a discussão, numa entrevista exclusiva, é Manuel Jacinto Sarmento, professor em Sociologia
da Infância da Universidade do Minho, de Portugal. Ele trata da participação infantil na
cidade e da representação da infância nos dias de hoje no texto intitulado Retrato em
positivo. Para Sarmento, é urgente estabelecer uma relação recíproca, de fala e de
escuta, entre adultos e crianças.
Assim como Ariadne, a educadora e antropóloga Adriana Friedmann, idealizadora do
Mapa da Infância Brasileira, aponta caminhos em A arte de adentrar labirintos infantis. Escu-
tar as crianças, diz a pesquisadora, é como fazer uma viagem ao território da infância. No percurso
pelos universos infantis, o viajante descobre diversidade de linguagens, costumes, sabores, chei-
ros, músicas, danças, brincadeiras, histórias e paisagens. Assim, ao escutar e descobrir o que as
crianças têm a dizer, novos mundos e repertórios descortinam-se à frente do adulto.
Para ouvir as crianças, no entanto, é preciso estar atento à Poética da infância. Nesse artigo,
os professores e pesquisadores Severino Antônio e Katia Tavares tratam de uma educação em
que as crianças possam pensar, sentir e se expressar poeticamente. Os autores defendem que as
crianças, principalmente as pequenas, exercitam espontaneamente um pensamento mitopoético,
em que tudo fala, assim como se transforma em tudo.

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Em Tessitura de vínculos em campo, os documentaristas David Reeks e Renata Meirelles,
PA RA N AVEG A R MA I S
coordenadores do Território do Brincar, abordam as relações entre pesquisador e criança em mo-
mentos de encontros marcados pelo espontâneo, num banho de rio ou compartilhando brincadei- Sempre que aparecer
ras. Contam que há uma busca genuína em revelar-se como pessoa, antes mesmo de se mostrar este código, também
chamado QR Code, é
em papéis como pesquisador, educador ou fotógrafo na missão de dar voz às crianças. A “fala” da
sinal que ali há mais
criança, aliás, extrapola a oralidade. E, assim, os gestos infantis expressam verdades do humano. informações para descobrir
Dos gestos aos olhares. Radiografando uma espécie de etnografia literária e poética, a jorna- e navegar. Para ter acesso ao
conteúdo, é preciso dispor de
lista e documentarista Gabriela Romeu, uma das idealizadoras do Infâncias, traça perspectivas da
uma câmera em um telefone
observação em Narrativas do olhar (notas de um diário). Com que olho eu olho? Numa multiplicidade celular e um programa feito
do visível, a pesquisadora empresta olhos de diferentes personagens da literatura para experimentar para ler o código. Depois, basta
apontar o leitor do celular para
escutar longe e espiar além, provocando deslocamentos e desestabilizando certezas nos processos.
a imagem que o aplicativo
Os sentidos de ouvir foram também ampliados. A arte-educadora Lindalva Souza, coordena- rapidamente converte o código
dora do Vozes da Infância Brasileira (VIB), traça rotas diversas para uma escuta lúdica, que inclui e carrega um link.
criação de mapas, construção de objetos, oficina de desenhos e brincadeiras de faz de conta. Para
compartilhar as muitas formas de “ouvir” meninos e meninas de diversas instituições de São Pau-
lo, o convite é percorrer o texto Cartografia de uma escuta sensível.
Mas há ainda mais rotas e caminhos para trilhar: outras experiências de escuta infantil ao longo
das páginas são ricas fontes de inspiração. E, para quem ainda tiver fôlego, vale seguir a jornada com
referências de livros, sites e filmes que fomentam a discussão.
Boa viagem! Boa leitura!
MAPA DA INFÂNCIA BRASILEIRA
www.mapadainfanciabrasileira.com.br

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E NTR EVISTA MAN U EL JAC I N TO S A R M EN TO

RETRATO E M P O S I T I V O

Na relação entre adultos e crianças, quem está na escuta e quem é que tem voz? Para o professor
em Sociologia da Infância Manuel Jacinto Sarmento, da Universidade do Minho, de Portugal, mais
do que ocorrer uma inversão de papéis, em que criança fala e adulto escuta, é preciso tornar essa
relação recíproca. Desafio tremendo numa sociedade que, em geral, “não dedica atenção suficiente
para descobrir o que pensam e o que querem meninos e meninas”.
O pesquisador, dedicado a temas como a condição social da infância e culturas infantis, destaca
que nas últimas três décadas vem ocorrendo uma ruptura com um retrato da infância em negativo – que
não fala, que não pode, que não sabe. “Assim, a criança começa a ser cada vez mais pensada a partir
do que é, do que sabe, do que pode, das suas competências, das suas formas de construir cultura, do
modo como elabora sistemas ideológicos não necessariamente coincidentes com os dos adultos.”

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E NTR EVISTA MAN U EL JAC I N TO S A R M EN TO

Nessa esteira de transformação, o professor cita também o rompimento com a ideia equivoca-
da de que as crianças são indivíduos em devir – ou um vir a ser. “Todos seres humanos – crianças,
adultos, idosos – estão em processo de mudanças e transformações contínuas, do ponto de vista
biológico, ideológico, intelectual e cultural. O devir é próprio da condição humana, não é específi-
co da infância”, explica Sarmento, chamando a atenção para pensar a infância a partir da positivi-
dade de suas próprias características.
Na entrevista a seguir, o pesquisador português trata de temas relacionados à representação A MODERNIDADE
da infância nos dias de hoje, quando impera uma imagem midiatizada da “criança do horror”, à
INSTITUI UMA INFÂNCIA
escuta das crianças em diferentes esferas, contextos e países e à participação infantil nas cida-
des. As crianças, por terem uma enorme plasticidade da renovação das formas e dos conteúdos, SEPARADA DOS ADULTOS
poderão propor e sugerir outros modos de ver o mundo que não aqueles cristalizados nas culturas QUE SE CARACTERIZA
dominantes”, define Sarmento. (GABRIELA ROMEU) EXATAMENTE PELA
DEFINIÇÃO DAQUILO QUE
ELA NÃO TEM, MAIS DO
ARQUIVO PESSOAL

QUE PELA DEFINIÇÃO


Como a criança vem sendo pensada ou entendida ao longo DAQUILO QUE A CRIANÇA
dos últimos séculos, desde o nascimento do sentimento
É, PODE, FAZ.
de infância?
A criança foi por muito tempo pensada basicamen-
te em torno de duas ideias essenciais: 1) a de que ela
não tem uma cultura própria e precisa ser educada;
pra isso são criadas instituições como as escolas para
que ela possa adquirir a cultura dos adultos; 2) a de
que não tem também uma moralidade própria e que
por isso precisa ser socializada dentro dos valores, das

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E NTR EVISTA MAN U EL JAC I N TO S A R M EN TO

normas, das regras, do comportamento para que possa exercer suas funções enquanto adul- NO INÍCIO
to de forma integrada. De alguma maneira a modernidade institui, então, uma infância se-
DA REVOLUÇÃO
parada dos adultos que se caracteriza exatamente pela definição daquilo que ela não tem,
mais do que pela definição daquilo que a criança é, pode, faz. Por isso precisa ser educada. INDUSTRIAL SURGE
A infância da Modernidade é uma infância pensada como uma geração em devir, em transforma- A IMAGEM DA
ção, no sentido de futuro. De qualquer forma, importa-nos pensar que todos seres humanos – CRIANÇA TRAQUINA,
crianças, adultos, idosos – estão em processo de mudança e transformação contínuas, do ponto
TRANSGRESSORA,
de vista biológico, ideológico, intelectual e cultural. O devir é próprio da condição humana, não é
específico da infância. O que aconteceu nos últimos 25 anos foi uma ruptura com essa concepção REBELDE E,
da modernidade. Assim, a criança começa a ser cada vez mais pensada a partir do que ela é, do EVENTUALMENTE,
que ela sabe, do que ela pode, das suas competências, das suas formas de construir cultura, do PERIGOSA PARA
modo como ela elabora sistemas ideológicos, não necessariamente coincidentes com o dos adul-
A SOCIEDADE.
tos; faz isso no mundo social em relação aos adultos, nas relações entre crianças. Essa é a grande
transformação nos últimos, digamos, 25 anos, 35 anos no máximo, no pensamento sobre a infân-
cia: a criança é pensada a partir da positividade das suas próprias características.

Quais representações de infância foram surgindo desde então?


Ao longo de todos os tempos, houve mudanças na concepção da infância. A criança foi estigma­
tizada como uma criança romântica, inocente, boa, bela, pura. Já no início da Revolução Industrial
surge a imagem da criança traquina, transgressora, rebelde e, eventualmente, perigosa para a
sociedade. Um exemplo é o romance Oliver Twist. Essa personagem de Charles Dickens é muito
reveladora dessa situação. A criança é uma vítima social e, ao mesmo tempo, considerada pela
sociedade como alguém que necessita ser contida porque sua transgressão põe em risco as nor-
mas sociais. Existe, portanto, uma concepção da criança romântica e uma concepção da criança
transgressora ou perigosa – ou as visões angelical e demoníaca da criança.

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E NTR EVISTA MAN U EL JAC I N TO S A R M EN TO

Daria para dizer qual é o retrato da infância que tem vigorado mais recentemente?
Nos últimos anos, a partir de 2004 ou 2005, particularmente na Europa – e suponho que também HOJE AS CRIANÇAS
no Brasil e na América Latina –, o que tem dominado a representação da infância na mídia é a da
ESTÃO MUITO
criança como imagem do horror, por exemplo, a criança que morre solitária nas praias da Turquia,
em consequência da fuga para a Europa. A imagem que é midiatizada é a do horror. Vejo que esta é MIDIATIZADAS,
uma mudança significativa, pois estamos num tempo em que a crueldade social e a desagregação SOBRETUDO SOBRE
da própria sociedade, em consequência de múltiplos conflitos e das crises do capitalismo financeiro, ESSA FORMA DA
são situações que ocorrem em vários países. Tudo isso tem consequência sobre a vida das crianças,
CRIANÇA DO HORROR.
o modo como são tratadas e, em particular, a maneira como a mídia e a opinião pública as estigma-
tizam. Eu acho que a criança do horror é hoje a imagem de um tempo de grandes preocupações, um
tempo em detrimento das calamidades que vivemos.

Num livro que coorganizou, Infância (in)visível (Junqueira & Marin, 2007), o senhor fala que a so-
ciedade muitas vezes esquece a criança e que é preciso respeitar o direito de viver a infância, entre
outras questões que vão sendo tecidas ali. Queria que o senhor falasse um pouco mais sobre a
invisibilidade da infância, com relação à cidadania, ao meio científico e na própria sociedade.
Para que a situação possa ser descrita melhor, o livro a que refere coloca o in entre parênteses, criando
a tensão entre visibilidade e invisibilidade. Hoje as crianças estão muito midiatizadas, sobretudo so-
bre essa forma da criança do horror. Mas é verdade que, em geral, não dedicamos atenção suficiente
para ver o que as crianças querem e o que pensam. Apesar dos esforços significativos que têm sido
feitos no âmbito dos chamados estudos da Infância, o que tem ocorrido de forma muito acentuada nos
últimos tempos é uma preocupação em definir os modos de comportamento com que os adultos inter-
pretam as crianças: tentar ver o modo como as crianças estão, como elas agem, como se comportam
etc. Desenvolveu-se muito significativamente, nos últimos anos, uma literatura de autoajuda, de dife-
rentes gurus, que tem exatamente essa intenção: como educar melhor seu filho, como criar crianças
competitivas na escola, como garantir que a criança se salve numa selva humana. Existe uma série de

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E NTR EVISTA MAN U EL JAC I N TO S A R M EN TO

livros dessa natureza, e eu creio que essa é uma forma de contribuir para a invisibilidade da infância.
Em nome de dar visibilidade à infância, esses livros acreditam explicar os comportamentos da criança,
seus modos de pensar, seus modos de agir. Há, portanto, uma relação paradoxal.

O senhor falou sobre ouvir a criança, de uma escuta, algo que é bastante recente e que vai na contra-
mão das questões da história que levantou. Eu queria entrar um pouco mais nessa questão. Quando é
que surge esse processo de escuta e como que os adultos podem abrir processos nesse sentido, que
incluam as crianças em suas manifestações mais genuínas, em suas formas de se expressar?
Hoje eu vejo que se tornou um lugar-comum ouvir a voz das crianças, mas é uma ideia que vai na
A CRIANÇA TANTO
contramão de tudo aquilo que tem sempre sido teorizado sobre as crianças. As crianças têm sido
colocadas no lugar de quem escuta e não no lugar de quem fala. E é importante esse esforço. Não no FALA QUANTO ESCUTA,
sentido de inverter esses lugares, mas no sentido de torná-los recíprocos. A criança tanto fala quanto ASSIM COMO O ADULTO
escuta, assim como o adulto simultaneamente deve tanto falar quanto escutar nessa relação. Essa SIMULTANEAMENTE
questão se coloca em vários níveis, um deles é o educacional. A escola foi pensada, sobretudo, numa
DEVE TANTO FALAR
perspectiva de ensinar as crianças a partir de uma cultura exógena a elas. Mas isso foi evoluindo
historicamente. E hoje a ideia de ouvir as crianças no plano pedagógico significa que os saberes es- QUANTO ESCUTAR.
coados não advêm apenas dos saberes instituídos pelo currículo oficial, mas podem ser construídos
nos saberes instituídos nas relações dos adultos com as crianças, na construção do conhecimento.
Isso significa uma alteração profunda do ponto de vista da relação pedagógica e do ponto de vista da
ação educativa. É curioso, pelo menos em Portugal, essa alteração é muito mais visível na educação
infantil do que nos níveis posteriores.

E como essa escuta ocorre, ou não, no âmbito das políticas públicas?


No plano político, temos que reconhecer que há um retrocesso significativo da nossa socie-
dade no que diz respeito a ouvir a voz das crianças. As crianças são mais consideradas como
destinatárias das políticas públicas e muito menos como sujeitos dessas políticas públicas. No

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E NTR EVISTA MAN U EL JAC I N TO S A R M EN TO

entanto as crianças têm opiniões e posições, e essas posições e opiniões são relevantes, para o
que se passa, por exemplo, na escola ou na cidade. Ouvir as vozes das crianças no domínio das
construções das políticas públicas parece logo algo essencial. Não para transformar as crianças
em deputados, vereadores, prefeitos ou secretários, mas para que essa voz, da forma como ela
pode ser expressa, tenha influência no domínio da vida em comum. E aqui estão dois conceitos
centrais: o da participação, pois as crianças devem ter a possibilidade de influenciar a vida co-
ativa, e o de cidadania, pois as crianças não são pré-cidadãs, as crianças são cidadãs ativas e
assim devem ser tratadas.

Como é que esses conceitos se concretizam na prática?


Bom, no plano das instituições, pode ocorrer a criação de dispositivos de escuta da voz das CREIO QUE FAZ
crianças, por exemplo, assembleias e conselhos das crianças. No plano municipal, vejo que a
questão fundamental está em ter uma contínua capacidade de mobilização da opinião das crian-
SENTIDO E É
ças por múltiplos meios, por exemplo, através de sondagens de opinião junto às crianças, fren- NECESSÁRIA A
tes de acordo com a voz das crianças, dar abertura de espaço de comunicação livre das crianças, CONSTITUIÇÃO
como chats coativos, possibilidade das crianças se dirigirem aos prefeitos e aos responsáveis DE ESTRUTURAS
políticos para exprimirem sua opinião. E creio também que faz sentido e é necessária a consti-
tuição de estruturas representativas, de conselhos municipais em que as crianças possam par-
REPRESENTATIVAS,
ticipar. Em alguns municípios com algum êxito estão experimentando a inserção das crianças DE CONSELHOS
no orçamento participativo através, por exemplo, da criação de uma verba própria dentro do MUNICIPAIS EM QUE
mesmo, sobre a qual elas possam pronunciar suas opções. Isso me parece muito positivo. Sinto AS CRIANÇAS
que é sempre necessário conciliar dois riscos: o risco da manipulação e o risco de pensar que
as crianças vão agir como se fossem políticos adultos. Ora, se as crianças agirem como políticos
POSSAM PARTICIPAR.
adultos, deixam de ser crianças e, portanto, perde-se completamente o sentido daquilo que é a
participação infantil.

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É possível pensar essa participação infantil nas esferas estaduais e federais?


Penso a participação infantil no plano municipal, que é o plano das noções políticas das proximida- NÓS PRECISAMOS
des. Já é mais difícil, por exemplo, pensar nessas formas de participação no plano nacional. Ou mes-
ENCONTRAR FORMAS
mo, no caso do Brasil, no plano estadual. No entanto há formas múltiplas de participação em outros
planos. Nessa matéria, o Brasil é absolutamente exemplar, posso citar ações no movimentos sociais IMAGINATIVAS DE
com crianças, como o Movimento Nacional Meninos e Meninas de Rua e o Movimento Sem Terrinha, FAZER MOBILIZAÇÕES
que são talvez os que eu conheço melhor, pois tive a oportunidade de trabalhar com colegas brasi- QUE NÃO SEJAM
leiros e brasileiras que atuam nesses projetos. Mas é no plano municipal que encontramos a melhor
MANIPULATÓRIAS.
forma de garantir a participação. Há movimentos de cidades amigas das crianças ou ainda de cidades
educadoras, que vão um pouco ao encontro dessa ideia, fazendo com que a vida seja de fato coati-
vamente construída também pelas crianças. Eu próprio dirijo um projeto numa cidade aqui próxima,
Guimarães, chamado Carta da Cidadania Infanto Juvenil, cujo objetivo é que as crianças e os jovens
possam participar coativamente da vida em todos os assuntos fundamentais. E fizemos isso através
de uma mobilização de crianças nas diferentes estruturas municipais, que aqui são freguesias, os
bairros onde as crianças foram mobilizadas para se pronunciar sobre os mais diferentes assuntos,
virando um documento que aponta linhas estratégicas de viabilização dos direitos das crianças e dos
jovens no contexto municipal. Repito, nós precisamos encontrar formas imaginativas de fazer essas
mobilizações que não sejam manipulatórias nem breves simulacros de participação.

Falando desses projetos e iniciativas inspiradoras, o senhor destaca alguns países exemplares?
O que acontece é que os contextos econômicos e políticos de cada país afetam profundamente o
modo como se concebem e se desenvolvem as políticas públicas, pelo menos as políticas públicas
para a infância. Vou dar um exemplo: o movimento lançado pelo Unicef relacionado às cidades ami-
gas das crianças teve uma enorme influência na Itália. Mas o governo Berlusconi conseguiu criar con-
dições de destruição de tudo. Agora, entre os movimentos amigos das criança, há exemplos muito in-
teressantes em países da América Latina, como a Argentina. Encontramos também algumas cidades

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amigas das crianças que são exemplares do ponto de vista do desenvolvimento do seu trabalho na
Espanha, na região da Catalunha. O Brasil é um país que costuma ser outro exemplo importante. Do
ponto de vista das políticas públicas respeitadoras dos direitos da infância costumam ter destaque
países como a Noruega. Mas, como disse, tudo isso varia muito conforme os contextos, as condições
e, sobretudo, os enquadramentos político e econômico dos países.

O senhor falou um pouco sobre a questão de projetos sobre e para crianças, mas gostaria que co-
mentasse sobre a coautoria infantil nas pesquisas. Como é que as pesquisas podem trabalhar de
fato com a ideia de coautoria das crianças?
Dois aspectos fundamentais a considerar. O primeiro aspecto tem a ver com a escuta das vozes da AS CRIANÇAS SE
criança na pesquisa. Isso significa buscar uma rigorosa fidelidade do modo como as crianças se
EXPRIMEM PELA
exprimem. E as crianças se exprimem pela palavra, pelo corpo, pelo gesto, pelos desenhos, pelas
formas gráficas que realizam. Essa rigorosa atenção aos conteúdos e às formas de comunicação das PALAVRA, PELO
crianças na pesquisa exigem metodologias verdadeiramente adaptáveis a elas. Ultimamente, por CORPO, PELO
exemplo, temos desenvolvido trabalhos na produção de metodologias visuais com crianças – os ví- GESTO, PELOS
deos. Difícil hoje realizarmos trabalhos e pesquisa com crianças que não recorram a essas metodolo-
DESENHOS, PELAS
gias visuais. E nesse sentido é necessário considerar todos os recursos éticos e ter uma grande finura
do ponto de vista da capacidade de interpretação daquilo que as crianças fazem. Admitindo sempre FORMAS GRÁFICAS
que muito da comunicação da criança pode ficar em suspenso e não ser um objeto de interpretação. QUE REALIZAM.
O pesquisador tem sempre a obrigação de propor as suas interpretações, mas com reserva corres-
pondente à ideia de que não vai totalizar a informação das crianças. Isso é muito comum ao analisar
os desenhos das crianças; há sempre coisas que nos supreendem e coisas que provavelmente não
são suscetíveis à interpretação e ficam suspensas.
O segundo aspecto tem a ver com uma ampliação da escuta das vozes da criança também
no próprio momento de concepção e desenvolvimento da pesquisa. Não apenas com relação à
informação que as crianças produzem, mas a própria definição do que vai ser a pesquisa, de quais

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são os métodos e técnicas que serão usados, quais são os procedimentos. Essa participação das O OLHAR É SEMPRE
crianças é o que configura as metodologias participativas de pesquisa com crianças. Aqui há um
CONTAMINADO
momento absolutamente determinante e de poder: a criança vai ter o poder de dizer “vamos por
aqui ou por ali” juntamente com o pesquisador. Não se trata de um poder absoluto, mas de um PELA CULTURA, E
poder partilhado. Assim, a criança cria seus próprios diários de campo, produz fotografias e filmes, ESSA CULTURA AS
constrói as suas próprias interpretações. A pesquisa será depois o resultado dos múltiplos aportes CRIANÇAS PARTILHAM
que é da produção dos dados, que são feitos, neste caso, pelas crianças e pelos investigadores
COM OS ADULTOS.
adultos. Isso é também outro método no qual temos dado alguns passos para a construção das
pesquisas participativas com meninos e meninas, em que o poder da criança marca efetivamente
os resultados da pesquisa.

Ao resgatar o olhar das crianças e ao incluí-las nos processos participativos, a gente pode cons-
truir uma visão renovada dessa sociedade, ou seja, a gente pode transformar a sociedade se
levarmos isso a sério?
É muito interessante porque, nos últimos anos, vários filósofos que se debruçam sobre a criança,
como Giorgio Agamben, Walter Cohan, Jorge Larossa e José Gil, têm afirmado isso. É como se hou-
vesse uma descrença na capacidade dos adultos em renovarem o mundo. E nós temos necessida-
de de buscar esse lado, esse lugar inicial, aparentemente não contaminado das crianças para fazer
ações de inovação. Acho que essa ideia é interessante, no entanto tenho algumas reservas. Sei
que as crianças não vivem fora do mundo social e vivem em constante interação com os adultos, CRÉDITOS DAS FOTOS: PETRA PEZIBEAR / NHAT-TIEN
LE / EDDY VAN WALLENDAEL / BRUNO GADJET / J.
não existe o puro olhar da visão infantil. O olhar é sempre, desde o primeiro momento, contami- MARCOCHI / STEVEN MEAN / YOLANDA COERVERS /
RITA EISENKOLB / AMBER CLAY / BESS HAMITI / LISA
nado pela cultura, e essa cultura as crianças partilham com os adultos. Agora, é verdade que as RUNNELS / JAN DEN OUDEN / QUIM MUNS / PAM
SIMON / ANDI KETAREN / LUIDMILA KOT / NGUYEN
crianças, por terem uma enorme plasticidade da renovação das formas e dos conteúdos, poderão DINH LICH / ABIGAIL THOMPSON / ARAVIND KUMAR
/ THOAI CAO / MICHELLE MARIA / NATHANEL LOVE /
propor e sugerir outros modos de ver o mundo que não aqueles que estão cristalizados nas cultu- DAVID WAGNER / RUSLAN GILMANSHIN / JAQUELINE
ras dominantes das nossas sociedades. SCHMID / NICO GRUTTER / SALLY WYNN / MIHAI
PARASCHIV / YANNICK LEPÈRE / DIMITRIS VETSIKAS
WWW.PIXABAY.COM

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