Análise Comentada Do Poema Infante
Análise Comentada Do Poema Infante
Análise Comentada Do Poema Infante
Poema «O Infante»
O poema abre com uma frase lapidar (processo ao gosto de Pessoa e muito utilizado em Mensagem): «Deus quer, o
homem sonha, a obra nasce» (v. 1). É nela que se encerram as linhas dominantes de todo o texto. Essa frase é constituída por
três segmentos: «Deus quer / o homem sonha / a obra nasce» – cada um dos quais se encontra organizado em torno de
formas verbais no presente do indicativo («quer», «sonha», «nasce»), exprimindo realidade, atualidade, valor de lei. Esboça-se
um princípio basilar [...] segundo o qual é a vontade de Deus que leva os humanos a pôr de pé uma obra. Notar ainda a
presença da gradação, no verso 1, para exprimir a lógica da relação Deus / homem / obra. As formas verbais escolhidas
assentam em verbos expressivos, cujo sentido, para ser precisado com suficiente rigor, necessita de ser esclarecido. É com a
finalidade de ilustrar a frase lapidar do v. 1, que surgem os restantes 11 versos do poema, que iremos considerar em função do
alcance de cada um dos três segmentos referidos.
Deus quer
Há uma força superior detentora do querer. É dela que depende a responsabilidade das decisões a tomar. Deus deve
(é essa a lógica instituída) querer para que o homem sonhe e a obra nasça. E Deus quis (v. 2). Então o homem sonhou (v. 4) e
a obra nasceu (vv. 5-8) – notar como as formas verbais contidas nos versos 2 a 11 se encontram predominantemente no
pretérito perfeito do indicativo [...] exprimindo que o princípio em causa foi respeitado e se verificou. De facto, nada falhou por
parte do querer divino. Ele era necessário e aconteceu. Estava determinado que Deus teria de querer para que as realizações
humanas se efetivassem – e «Deus quis». Deus quis a unificação da terra, que o mar fosse dominado de forma a servir de
elemento de união entre os continentes e os povos, e estes pudessem estabelecer comunicação. Para isso, Deus sagrou o
Infante («Sagrou-te», v. 4, «te sagrou», v. 9 – repare-se na insistência, para exprimir que a decisão do Infante de se aventurar no
mar tem origem divina e não em qualquer capricho humano) e, através dele, sagrou o povo português («criou-te português», v.
9, «em ti nos deu sinal», v. 10), predestinou-o para os grandes feitos das descobertas. Então, Deus (cujo querer é impreterível)
quis que fosse o Infante/Portugal a dominar os mares e a estabelecer comunicação entre os povos e os continentes. Mas esse
querer «que a terra fosse toda uma» pode ser entendido num sentido físico e material, mas ainda (e é a lógica do texto que
admite essa dupla interpretação – já que Portugal, tendo materialmente feito tudo, ainda se não cumpriu…) num sentido
espiritual. Comunicar é mais que ocupar uma posição de contiguidade, implica também uma dimensão cultural e espiritual
profunda.
o homem sonha
O Infante (representando o povo português – a ligação é confirmada pelo v. 10) partiu para o cumprimento da missão
que lhe estava confiada. Teve de ultrapassar dificuldades, já que o poeta diz que ele «foi desvendando a espuma» (notar a
expressividade do verbo conjugado perifrasticamente, com o sentido de descobrir, mostrar, revelar…). Os esforços do Infante
foram coroados de êxito – «cumpriu-se o mar» (v. 11); fisicamente, o mundo tornou-se um. O império português ergueu-se e “se
desfez” (v. 11). A dimensão material dos desígnios divinos foi realizada. Mas… falta ainda cumprir-se a outra dimensão, a
espiritual, que já ultrapassa o Infante e é devida aos portugueses. O Infante, apesar do halo de sagrado com que Deus o
coroou, era mortal; cumpriu a parte da determinação divina que, na representação dos portugueses e de Portugal, lhe
competia, e passou. Dele permanece o exemplo e o estímulo que é devido aos mitos. A dimensão espiritual do império
(confiada por Deus ao povo português, tal como a sua dimensão material, o império real), essa, encontra-se por cumprir.
a obra nasce
A obra referida no poema toma, no seu desenvolvimento, dois sentidos precisos: por um lado, exprime uma
consequência direta (concreta), por outro lado uma possibilidade (uma generalização). Isto é: por um lado, Deus quis, o homem
(o Infante/Portugal) sonhou, a obra (o império português) nasceu; por outro lado, pretende-se dizer que sempre que se
conjugam tais aspetos, sempre que Deus quer e o homem sonha, então a obra – o outro império, de dimensão cultural e
espiritual – nascerá. A obra nascida é apresentada no texto com característica de sonho – em consonância com o verbo usado
no v. 1 – «o homem sonha». O império construído, a unificação dos continentes, tomou alicerces no mar (na orla branca); no
mar, atingiu-se uma ilha, dessa ilha um continente; da escuridão se fez luz (clareou); da ignorância se passou ao
conhecimento, a civilização ocidental encontrou-se com a oriental. E assim se atingiu, correndo, «o fim do mundo», assim se
eliminaram as barreiras e os limites. E deste modo, do mar (do azul profundo), de repente, irrompeu a unificação dos
continentes. [...] Nasceu a obra, a terra unificou, o mar passou a unir em vez de separar, o império se cumpriu e se desfez…
Dependia de Deus querer, e foi desejado por Ele que o homem (o Infante, os portugueses, Portugal) sonhasse. Esse
sonho aconteceu, e desse sonho surgiu a unificação dos mares e a criação do império (um sonho ao mesmo tempo
nacionalista e universal). Mas esse império fez-se e se desfez, ergueu-se e desmoronou-se; império material, constituído por
valores terrenos. Ora… há algo mais ambicioso que importa considerar. Portugal foi incumbido de fazer com que «a terra fosse
toda uma» (v. 2), e essa unificação tem também uma dimensão espiritual que ainda se não cumpriu. É preciso que se cumpra
Portugal. Portugal deverá liderar um novo império, mas não já de índole material, como o que se ergueu e se desfez. O que
falhou em todo o processo? Deus quis, o homem sonhou, a obra nasceu. Uma obra efémera, perecível, como tudo o que é
material e humano. Em Deus não está a culpa, já que sagrou o Infante e o destinou (a ele e a quantos ele representava) a
feitos muito acima da sua condição material. Ele e o povo por si representado foram incumbidos da missão de dominar e
unificar o mar. A nível do temporal, o homem cumpriu o que lhe competia, no sentido das forças de que havia sido investido. A
obra levantada foi a do cumprimento do mar… e do império. Mas isso já é história, porque o império se desfez. Como ser
humano é possuir limitações, não houve continuidade para esse império. Por isso o poeta implora com tanto fervor: «Senhor,
falta cumprir-se Portugal!» (v. 12 – notar o regresso ao presente do indicativo, para exprimir urgência). Que o ânimo deste povo
recupere para que os esforços do Infante tenham continuidade e para que Portugal se assuma na direção para que foi
predestinado…
Trata-se já de um outro império, não de um império material como o que se formou e se desfez. É uma outra
predestinação para Portugal. A que se quererá referir o poeta, no derradeiro verso do poema? A uma qualquer utopia? A um
império linguístico-cultural liderado pela língua portuguesa ou pelo espírito criativo e de missão de que os portugueses têm
dado provas, desde o princípio da sua história?
Seja o que for que espera Portugal, tratar-se-á de uma predestinação divina («Deus quer» – v. 1), cujo desempenho
foi confiado ao Infante/povo português, mas apenas foi cumprido na sua dimensão temporal/material [...]. É preciso que
Portugal se cumpra integralmente, que complete com a dimensão espiritual a materialidade do império que formou. Também
para isso – que ainda falta – ele foi predestinado por Deus.
SILVA, Lino Moreira da, 1989. Do Texto à Leitura (Metodologia da Abordagem Textual) Com a Aplicação à Obra de Fernando Pessoa.
Porto: Porto Editora