Cap e Livro PDF - Compressed
Cap e Livro PDF - Compressed
Cap e Livro PDF - Compressed
VOLUME XVII
copyright©2022 João Carlos Corso; Rogério Luiz Klaumann de Souza
H673
História da religião e das práticas de religiosidade / [livro eletrônico]/
João Carlos Corso; Rogério Luiz Klaumann de Souza (Orgs.).
Ponta Grossa: Texto e Contexto, 2022. (Coleção Singularis, v.6)
263 p.; e-book PDF Interativo
CDD: 220.67
Ficha Catalográfica Elaborada por Maria Luzia F. B. dos Santos CRB 9/986
CONSELHO EDITORIAL:
Presidente:
Drª. Larissa de Cássia Antunes Ribeiro (Unicentro)
Membros:
Dr. Fábio Augusto Steyer (UEPG)
Drª. Silvana Oliveira (UEPG)
*Todos os direitos reservados aos organizadores. Doutorando Anderson Pedro Laurindo (UTFPR)
*Os textos publicados neste livro são de Drª. Marly Catarina Soares (UEPG)
responsabilidade dos autores. Drª. Naira de Almeida Nascimento (UTFPR)
*Este ebook será disponibilizado em livre acesso não Drª Letícia Fraga (UEPG)
sendo permitida a venda ou reprodução parcial ou Drª. Anna Stegh Camati (UNIANDRADE)
total sem a autorização dos organizadores. Dr. Evanir Pavloski (UEPG)
Drª. Eunice de Morais (UEPG)
Drª. Joice Beatriz da Costa (UFFS)
Drª. Luana Teixeira Porto (URI)
Dr. César Augusto Queirós (UFAM)
Dr. Valdir Prigol (UFFS)
Dr. Luís Augusto Fischer (UFRGS)
Drª. Clarisse Ismério (URCAMP)
Dr. Nei Alberto Salles Filho (UEPG)
SUMÁRIO
História da Religião e das práticas de Religiosidade
4
SUMÁRIO
6
Introdução
10
CAPÍTULO 1
Luteranismo e o modelo empresarial no vale do Itajaí /SC no tempo
presente
Gabriel Luiz Manrique Ursini (UFSC)
https://doi.org/10.54176/VJVG7706
29
CAPÍTULO 2
Igreja católica e a fuga da precaridade no meio rural:
Ações biopolíticas e disciplinares da Diocese de Tubarão/SC
(1955-1964)
João Augusto Ramos (UFSC)
https://doi.org/10.54176/WSRK5022
47
CAPÍTULO 3
Militares e protestantes em defesa do capitalismo durante a
ditadura militar no Brasil
Rogério Luiz Klaumann de Souza (UFSC)
Thiago Rodrigo da Silva (UFSC)
https://doi.org/10.54176/IORW1938
SUMÁRIO
História da Religião e das práticas de Religiosidade
5
71
CAPÍTULO 4
Uni-vos para estudar o evangelho: uma análise do livro Epístolas
aos Espíritas
Luiz Cláudio Altenburg (Fundação Indaialense de Cultura)
https://doi.org/10.54176/GFQQ7460
90
CAPÍTULO 5
Violência de gênero e a religião pentecostal/neopentecostal no
Brasil contemporâneo
Maria Cecilia Takayama Koerich (UFSC)
https://doi.org/10.54176/OVYJ2151
114
CAPÍTULO 6
Rituais fúnebres da igreja católica de Rito Ucraniano em
Prudentópolis–PR.
Juliane Martenovetko (UNICENTRO)
João Carlos Corso (UNICENTRO
https://doi.org/10.54176/FWYN1526
144
CAPÍTULO 7
Feminilidades e Masculinidades nos rituais fúnebres do Sítio
Cabeceiras, Barbalha-CE
Emmanuela Harakassara Rodrigues de Lima (UFSC)
https://doi.org/10.54176/PFBB1901
162
CAPÍTULO 8
Práticas religiosas sob o governo das tecnologias de controle de
populações no cemitério municipal de Indaial/SC
Graciela Márcia Fochi(UFSC)
Rogério Luiz Klaumann de Souza (UFSC)
https://doi.org/10.54176/GTGZ3301
SUMÁRIO
História da Religião e das práticas de Religiosidade
6
190
CAPÍTULO 9
A Östpolitik Vaticana: diálogos entre igreja e comunismo soviético
no papado de João XXIII
Edson Claiton Guedes (UFSC)
Marcus Vinicius de Souza Nunes (UDESC)
https://doi.org/10.54176/CJIT5032
209
CAPÍTULO 10
Curandeiros, fanáticos e possuídos:
Gestão do imaginário e biopolítica dos ingovernáveis (Santa
Catarina, primeira república, 1898-1905).
Rafael Araldi Vaz (UNIPLAC)
https://doi.org/10.54176/BPUR9768
235
CAPÍTULO 11
A busca pela cura: as intercessoras do grupo “Jesus te ama”
Ana Paula Mariano dos Santos (UEM)
Marcia Regina de Oliveira Lupion (UEM)
https://doi.org/10.54176/LZLJ5565
258
Sobre os Autores
SUMÁRIO
História da Religião e das práticas de Religiosidade
144
CAPÍTULO 7
1. Esses dois trabalhos foram citados a título de exemplo. Nos dias atuais há uma vasta
discussão na historiografia brasileira voltada para essa temática.
SUMÁRIO
História da Religião e das práticas de Religiosidade
148
cearense na segunda metade do século XIX. Na década de 1860, o
cólera, que percorria o território brasileiro, chegara ao Cariri, causan-
do pânico e morte. À época, despontou a figura do Padre Ibiapina2
que, em sua atuação missionária e social pela região, estimulou o tra-
balho comunitário, a criação de casas de caridade e a instituição de
cemitérios.
Envoltos por um cenário de secas constantes e de uma epide-
mia, é possível entrever como um discurso escatológico, em torno
da ação divina perante o pecado, veio reforçar as pregações capu-
chinhas sobre a morte, o padecimento das almas no purgatório, o
fogo do inferno e do paraíso. O que de certo modo contribuiu para
instituir a ritualização desse fenômeno na região.
Posto isso, nos interessa analisar não o fenômeno da morte com
todo seu feixe de complexidades, mas examinar, em especial, como
são divididos e desempenhados os rituais fúnebres por homens e
mulheres em uma fração do espaço caririense: o sítio Cabeceiras em
Barbalha, Ceará.
As mulheres que moram nessa localidade aprenderam com suas
ancestrais a entoar para os que morriam as canções de incelencias.
2. Padre. José Antônio Maria Ibiapina (1806-1883) teve forte atuação social e missionária no
Cariri e no Sertão em geral, construindo casas de caridade – onde órfãs e mulheres pobres
eram educadas, seja para integrarem a congregação que o missionário buscava fundar, ou
para formar boas esposas e mães – e fundando cemitérios, além de estimular o trabalho
comunitário em uma época de secas e epidemias. “O trabalho realizado por Ibiapina
no Vale teve, realmente algo de extraordinário: fundou uma congregação religiosa de
mulheres, talvez a primeira do Nordeste, a qual, a despeito de sua ilegalidade canônica,
constituiria um precedente importante na tentativa das futuras gerações eclesiásticas do
Cariri para estabelecerem ordens genuinamente brasileiras. Com as suas casas de caridade,
difundiu, no interior, as primeiras instituições educacionais para mulheres. Por fim, reuniu
pobres e ricos no trabalho em comum pela glória de Deus e pelo progresso material do
homem” (DELLA CAVA, 2014, p. 35).
SUMÁRIO
História da Religião e das práticas de Religiosidade
149
Essas canções são orações cantadas em velórios, dedicadas à salva-
ção das almas e, principalmente, ao culto dos anjos, crianças falecidas
com menos de sete anos de idade. O sentido das incelências lembra,
em parte, a prática das carpideiras que “manifesta-se através de ge-
midos rituais das filhas e das noras, pela sua mãe ou sogra, defunta,
agonizante ou simplesmente ameaçada” (LADURIE, 2008, p. 295).
Nesse caso, trata-se de uma tradição mediterrânea de ascendência
comprovadamente pré-cristã, também presente na África e em agru-
pamentos indígenas da América dita pré-colombiana, em que o cho-
ro e o grito dessas mulheres funcionavam como uma convocação
aos seus vizinhos, sempre solidários nessas horas.
A prática fúnebre de entoar as incelenças no Sítio Cabeceiras em
Barbalha, Ceará, de remota origem, transmutou-se no grupo de In-
celenças. Organizado no final dos anos 80 do século XX e, até então,
administrado pelos agentes culturais da Secretaria Municipal de Cul-
tura da cidade, o grupo foi formado com o objetivo de engrandecer
as apresentações culturais da festa de carregamento e hasteamento
do pau da bandeira de Santo Antônio, padroeiro da cidade. Também
serviria como complemento a um outro grupo de religiosos daquela
localidade, os Penitentes da Irmandade da Cruz, que já participavam
desse evento desde o ano de 1973, o que já justifica a baliza inicial de
tempo da nossa proposta.
A irmandade de Penitentes é composta somente por homens
religiosos, que costumavam sair em passeata altas horas da noite e
a se “disciplinarem” com chicotes em frente aos cruzeiros, ou seja,
praticavam o autoflagelo em prol da remissão dos pecados humanos,
que tanta ira causavam em Deus, e da salvação das almas. Os Peni-
tentes também participavam dos velórios, cantando benditos para
SUMÁRIO
História da Religião e das práticas de Religiosidade
150
os defuntos. Nesse mundo anticartesiano, conta mais sentir do que
pensar e, em tal atmosfera, o canto é a manifestação mais candente
do espírito que afasta o maléfico e proclama a crença no bem.
O problema-chave é que a destruição da vida e o sofrimento ex-
cessivo que esse fato provoca, contraditoriamente, parece não cessar
a distinção que se traduz no peso que se atribui aos campos da femi-
nilidade e da masculinidade. Não por acaso, Ladurie (2008) percebe
um contraste entre masculino e feminino: “o tocar de sinos na aldeia
não é o mesmo quando o cadáver é de homem ou de mulher” (LA-
DURIE, 2008, p. 296). Não é de se estranhar, pois, se o gênero diz
respeito as imagens construídas do masculino e do feminino na so-
ciedade dos vivos, ele também o será reproduzido seguindo idêntica
hierarquia no mundo dos mortos.
Essa linha demarcatória, alicerçada na vida e reproduzida e con-
sumada na morte, em nosso enfoque, corresponde não apenas a uma
conjetura de múltiplas vias, mas a um mirante de onde se vê melhor
toda problemática que permeia o debate; debate esse que, em última
hipótese, se manifesta de modo inequívoco nas categorias de mascu-
linidades e feminilidades.
Desse modo, decorrem dessas propostas a compreensão da li-
nha demarcatória que distingue os conceitos de sexo e gênero; linha
que, decerto, norteia este trabalho. Dessa forma, compreendemos
que “[...] o gênero está ligado a noções socialmente construídas de
masculinidades e feminilidades; não é necessariamente um produto
do sexo” (GIDDENS, 2005, p. 102). Considerando, por fim, que as
relações sociais estão permeadas de signos de poder, pensamos nos
estudos de Michel Foucault (1981), nomeadamente o que ele chama
SUMÁRIO
História da Religião e das práticas de Religiosidade
151
de biopoder, no qual ele associa as categorias de nascimento, sexuali-
dade e reprodução. Além disso, interessa-nos, partindo das catego-
rias foucaultianas, examinar não o poder em si, como algo dado e
fechado, mas as relações de poder que trafega pelas vias tortas do
indivíduo e do mundo social.
3. Entrevista concedida por Francisca Rodrigues de Matos (Chica Lora). Barbalha, 2013.
4. Entrevista concedida por Sueli de Matos. Barbalha, 2013.
SUMÁRIO
História da Religião e das práticas de Religiosidade
154
Por volta da década de 1980, Celene Queiroz, funcionária públi-
ca ligada à Secretaria de Cultura de Barbalha, procurou Maria Rodri-
gues de Lima, conhecida pela alcunha de Terezinha de Chico Severo,
por ser esposa de um penitente conhecido por esse cognome. Celene
Queiroz sabia da existência da prática fúnebre “incelência” e propu-
nha a criação de um grupo que reunisse mulheres das Cabeceiras que
tivessem conhecimento dos benditos dedicados às almas, a fim de
se apresentarem durante os festejos de Santo Antônio. O Decurião
Joaquim Mulato (1920-2009), como era conhecido o líder dos Peni-
tentes, foi então consultado e concordou com a ideia de criação do
grupo, como se observa na seguinte passagem
Aí ele, aí Padrinho Severino disse: “Olhe Terezinha, Selene tá dizendo
para que vocês não formam um grupo de Incelenças”. Eu digo: Oxente,
como?! Formando.
Aí, Joaquim disse: “É Terezinha. (Joaquim era meu primo) pode, você
querendo formar, chama umas muié de respeito e forma, pra ir pro
folclore.”
Eu disse: pois está bom!! Aí, as Incelenças ficou conhecida, mas antes
elas não eram conhecidas (informação verbal)5.
Porém, foi estabelecido que as mulheres durante as apresenta-
ções não poderiam adotar práticas rituais idênticas as dos homens,
tais como o autoflagelo, atuando somente na divisão dos benditos.
Quem vê divisão de tarefas exclusivamente como natural, efetiva-
mente, perde de vistas que a sua construção obedece a modelos que
são construídos social e culturalmente. No caso do grupo de Peni-
tentes, esse fato se mostra em toda sua inteireza.
Posto isso, é evidente que as práticas rituais vão sendo organi-
zadas conforme a sociedade constrói o masculino e o feminino. Por
isso, “a postura aqui assumida consiste em considerar sexo e gêne-
5. Entrevista concedida por Maria Rodrigues de Lima. Barbalha, 15 set. 2013.
SUMÁRIO
História da Religião e das práticas de Religiosidade
155
ro uma unidade, uma vez que não existe uma sexualidade biológica
independente do contexto social em que é exercida” (SAFIOTTI,
2004, p. 108-109). Assumida essa posição teórico-histórica, partimos
para o estudo das experiências que, em larga medida, atribui o senti-
do da investigação proposta.
Assim, diante do exposto nas narrativas, consideramos válido
compreender como se organiza e se estrutura as relações de gênero entre
as Incelenças e os Penitentes.
A estrutura de relações de gênero significa dizer que o gênero é muito
mais que interações sociais face a face entre homens e mulheres. Significa
enfatizar que o gênero é uma estrutura ampla, englobando a economia e
o estado, assim como a família e a sexualidade, tendo, na verdade, uma
importante dimensão internacional. O gênero é também uma estrutura
complexa, muito mais complexa que as dicotomias dos papéis de sexo
ou a biologia reprodutiva sugeririam (CONNEL, 1995, p. 189).
Essa divisão sexual dos rituais fúnebres entre esses religiosos do
Sítio Cabeceiras limita e, em algumas situações, reflete o controle
dos corpos femininos. Cabe-nos, de certo modo, tentar nos remeter
à matriz desse domínio. Ao que tudo indica, isso se deu à medida
em que “as grandes religiões monoteístas fizeram da diferença dos
sexos e da desigualdade de valor entre eles um de seus fundamentos.
A hierarquia do masculino e do feminino lhes parece da ordem de
uma Natureza criada por Deus” (PERROT, 2019, p. 83). Para os Pe-
nitentes, a atividade ritual de sair altas horas da noite nas veredas da
Chapada do Araripe, ou até mesmo a prática ritual do autoflagelo são
vistas como naturais e aceitas pelas mulheres da localidade. Quando
são questionados por que as Incelenças só devem cantar para os an-
jos, comparam a pureza da Virgem Maria a das mulheres Incelenças.
Tomando de empréstimo palavras de Ladurie (2008), dir-se-ia que
à mulher das incelenças se atribui um axioma sublime: “Oprimida
SUMÁRIO
História da Religião e das práticas de Religiosidade
156
como mulher, é sacralizada como mãe” (LADURIE, 2008, p. 255).
Não é nenhum fenômeno aleatório o fato de o grupo ser composto
quase em sua totalidade por mulheres casadas e mães.
No caso dos grupos da Barbalha, as mulheres entraram pelas
frestas de uma estrutura que é coetânea ao seu desejo reprimido de
poder, o que, provavelmente, encontra amparo na alma e no princí-
pio católicos, conforme enuncia Perrot:
O catolicismo é, em princípio, clerical e macho, à imagem da sociedade
de seu tempo. Somente os homens podem ter acesso ao sacerdócio e
ao latim, Eles detêm o poder, o saber e o sagrado. Entretanto, deixam
escapatórias para as mulheres pecadoras: a prece, o convento da
Virgem Maria, antídoto de Eva. A rainha da cristandade medieval.
(PERROT, 2016, p.84).
Saffioti (2004) reforça as palavras de Perrot, embora sob um pris-
ma mais amplo, quando afirma que “As religiões estão inteiramente
perpassadas pela estrutura de poder patriarcal” (SAFFIOTI, 2004,
p. 122). Discutir esse poder implica situá-lo em uma reflexão que se
estende para lá das fronteiras de paradigmas puramente religiosos.
Isso, aliás, faz-nos pensar na estrutura das relações de gênero em
Connel (1995), que se apresenta não somente de modo complexo,
mas, nessa complexidade, engloba a economia, o Estado, a família e
a sexualidade. E nesse evolver, ela se exprime além das noções bio-
lógicas e de papeis sexuais. Em amplíssima medida, é essa lógica que
anima intelectualmente a nossa pesquisa.
Doutro lado, analisar as narrativas dos grupos religiosos nos in-
duz a refletir as estruturas de poder, partindo das formulações ense-
jadas pelos estudos de Foucault (1981), nos quais o pensador francês
concebe o poder como formas de exercício que fluem e circulam.
Esse poder, que, seguramente, é encontrado nas narrativas e nas prá-
SUMÁRIO
História da Religião e das práticas de Religiosidade
157
ticas rituais dos Penitentes, também é encontrado nas narrativas das
Incelenças. Interessa examinar não apenas como ele se revela, mas,
sobremaneira, como ele se dissimula e se reparte, ou, dito de outro
modo, como ele se exprime enquanto relação.
Ainda que se saiba que “poucas mulheres questionam a sua infe-
rioridade social” (SAFIOTTI, 2004, p. 34), algumas atitudes são por
vezes tomadas pelas mulheres Incelenças. Inseridas em um contexto
de inúmeras apresentações culturais, as incelenças ficam conhecidas
regionalmente como “alimentadoras de vozes dos Penitentes”, por com-
parecerem às apresentações respondendo ao refrão dos benditos
cantados por eles. E como alimentadoras de vozes são anunciadas
habitualmente antes de entrarem em cena. Em uma apresentação
emblemática do grupo, de repente, uma das mulheres toma o micro-
fone do apresentador e grita: “alimentadoras de vozes nunca mais!
Somos as Incelenças e temos os nossos próprios benditos”.
Nesse cenário, é conveniente recuar um pouco no tempo e aludir
a um episódio narrado por uma das Incelenças que desconfiava que
o marido fazia parte do grupo dos Penitentes porque
Os Penitentes de primeiro não eram que nem os de hoje não. Não
podia andar se mostrando, só andavam a meia noite. Rezava um terço
numa casa, mas num tinha ninguém. Não era para ir ninguém para uma
renovação se eles tivessem. Se tivesse gente, afastava tudo para o lado.
Os Penitentes entravam e fechava a porta. Era oculto, os Penitentes.
Tinha caso que morria gente na casa e as filhas não sabiam e nem as
muié se ele era Penitente (informação verbal)6.
Dona Terezinha, casada com seu Chico Severo, certa noite fica
acordada até tarde, esperando o seu retorno. Nesse dia, ela flagra
ele lavando as costas com água de sal, assepsia corriqueira após o
ritual de autoflagelo. Nesse momento, as suspeitas de Dona Terezi-
6. Entrevista concedida por Maria Rodrigues de Lima. Barbalha, 15 set. 2013.
SUMÁRIO
História da Religião e das práticas de Religiosidade
158
nha são confirmadas, Chico Severo é Penitente. A curiosidade e o
artifício de dona Terezinha lhe proporcionaram adentrar ao segre-
do do grupo masculino.
Ora, a partir desses eventos identificamos o quanto, em deter-
minadas situações, esse poder pode ser fluído e reafirmado confor-
me as circunstâncias, sem ignorar que o referido locutor e até os
agentes da Secretaria de Cultura da cidade reproduzem a estrutura
sexista de poder retratada pelos Penitentes, que por sua vez repro-
duzem toda engenharia mental imposta pelo patriarcado. No caso
a que nos referimos, a desigualdade de gênero está presente do ní-
vel individual ao institucional, conforme foi percebido por Saffioti
(2004), principalmente na esfera da religião católica, em que a hege-
monia masculina é marcante.
Integra a ideologia de gênero, especificamente patriarcal, a ideia,
defendida por muitos, de que o contrato social é distinto do contrato
sexual, restringindo-se este último à esfera privada. Segundo este
raciocínio, o patriarcado não diz respeito ao mundo público ou, pelo
menos, não tem para ele nenhuma relevância. Do mesmo modo
como as relações patriarcais, suas hierarquias, sua estrutura de poder
contaminam toda a sociedade, o direito patriarcal perpassa não apenas
a sociedade civil, mas impregna também o Estado. Ainda que não se
possa negar o predomínio de atividades privadas ou íntimas na esfera
da família e a prevalência de atividades públicas no espaço do trabalho,
do Estado, do lazer coletivo, e, portanto, as diferenças entre o público
e o privado, estão estes espaços profundamente ligados e parcialmente
mesclados. (SAFFIOTI, p.54, grifo nosso).
Os estudos de gênero ganham ao longo do tempo novos contor-
nos e agregam elementos a partir do contexto social em que estão
inseridos. Tais elementos podem ser definidos como masculinidades
e feminilidades (CONCEIÇÃO, 2017). Salientamos que o emprego
desses conceitos, com o objetivo de compreender a realidade em que
estão imersos os grupos de Incelenças e Penitentes, são aqui enten-
SUMÁRIO
História da Religião e das práticas de Religiosidade
159
didos na qualidade de categorias móveis, ainda que as sujeitas e os
sujeitos desse estudo não as compreendam por esse viés, achamos
que esses conceitos são funcionais tanto no que se refere a um como
ao outro grupo, tendo em conta que “quando falamos em masculi-
nidades e feminilidades estamos nomeando configuração de prática
de gênero” (CONNEL, 1995, p. 92).
Nessa compreensão, quando evocamos o conceito de masculini-
dades, interpretamos conforme Connel (1995):
A masculinidade é uma configuração de prática em torno da posição
dos homens na estrutura das relações de gênero. Existe, normalmente,
mais de uma configuração desse tipo em qualquer ordem de gênero de
uma sociedade. Em reconhecimento desse fato, tem-se tornado comum
falar de “masculinidades” [...]
Se a “masculinidade” significasse simplesmente as características dos
homens, não poderíamos falar da feminilidade nos homens ou da
masculinidade nas mulheres (exceto como desvio) e deixaríamos de
compreender a dinâmica do gênero. O gênero é sempre uma estrutura
contraditória. É isso que torna possível sua dinâmica histórica e impede
que a história do gênero seja um eterno e repetitivo ciclo das mesmas e
imutáveis categorias. (CONNEL, 1995, p. 188-189).
Sobre a permeabilidade das masculinidades e feminilidades entre
os grupos, evocamos uma narrativa de seu Epitácio, que na ocasião
da entrevista estava com 66 anos, mas entrou para o grupo dos Pe-
nitentes aos 8 anos de idade.
Por aqui nunca houve isso não. Tô com setenta e seis anos e nunca
ouvi falar nisso não. Agora teve um defunto que eu tive medo, eu não,
nós tudim. Nós entremo pra dentro de casa e o defunto tava na cama
lá, deitadim lá... Morto, tava dormindo, acordado e morto, né? Aí, todo
mundo, todo aquele negócio se remexeu, né? E nós tava assim, tudo
cantando lá do outro lado do rio. E aquele defunto se mexia [...]‘’O
defunto tá se mexendo’’, aí tudo levantando. Aí com pouco saiu foi
um gato debaixo dele, tava dentro, por debaixo dele, do lençol. Aí, os
caba ainda quiseram correr ainda, mas era um gato. Acho que o povo
descuidado, né? Ele entrou e ficou mais o defunto deitado. Aqui e acolá,
o lençol se remexia. Eu digo ‘’ Ele quer se levantar. Ele não ta morto
SUMÁRIO
História da Religião e das práticas de Religiosidade
160
não. ’’ Aí o caba ia lá subia a cabeça, mas não via nada. ‘’Nam, ele tá
é morto não. ’’, aí o lençol fazia isso, se remexia. Até quando o gato
correu pra porta. O gato [ ], aí eu sei. Mas negócio de raposa, gato... O
cachorro chega e deita é assim, debaixo do caixão (informação verbal)7.
Espera-se que os Penitentes do sítio Cabeceiras tenham condu-
tas e sentidos apropriados ao que está definido como masculino:
força, coragem, não ser sentimental etc. Essas características os
distanciariam do comportamento das mulheres. Recorrendo aos
grifos na fala de seu Epitácio, não seria contraditório ele e os de-
mais penitentes terem sentido medo? Correr do quarto onde esta-
va o defunto seria uma atitude historicamente construída naquele
grupo como masculina?
BIBLIOGRAFIA
AMADO, Janaina; FERREIRA, Marieta de Moraes (Orgs). Usos e abusos da história
oral. 8ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. 3ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2013.
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. São Paulo: Unesp, 2014.
CAVA, Ralph Della. Milagre em Joaseiro. Tradução de Maria Yeda Linhares. 3. ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2014.
CONCEIÇÃO, Joanice. Irmandade da Boa Morte e Culto de Babá Egum: masculidades,
feminilidades e performances negras. Jundiaí: Paco Editorial, 2017.
CONNEL, Robert W. Políticas de Masculinidade. Educação e Realidade, Porto Alegre,
v. 2, n. 20, p. 185-206, 1995.
KLEIN, Melanie. Os efeitos das primeiras situações da angústia sobre o desenvolvimento
sexual da manina. In:______. Psicanálise da Criança. São Paulo: Mestre Jou, 1975.
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins
Fontes, 1992.
ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de envelhecer e morrer. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1981.
GIDDENS, Anthony. Sociologia. 4 ed. Porto Alegre: Artmed, 2005.
ENTREVISTAS
Maria Rodrigues de Lima (D. Terezinha ou Terezinha de Chico Severo), 78 anos, agricultora,
residente no Sítio Cabaceiras, Barbalha-CE. Entrevista realizada em: 15/09/2013.
Epitácio Fabricio dos Santos, 65 anos, agricultor, residente no Sítio Cabeceiras, Barbalha-
CE. Entrevista realizada em 19/07/2016.
Sueli de Matos, 32anos e Francisca Rodrigues de Matos (mãe de Sueli), residente no Sítio
Cabaceiras, Barbalha-CE. Entrevista realizada em: 15/09/ 2013.