História Cultural e Micro-História
História Cultural e Micro-História
História Cultural e Micro-História
de 2019
ISSN 2238-0620
Resumo: Este artigo realiza algumas reflexões acerca da relação existente entre a história
cultural e a micro-história, bem como busca traçar a trajetória desses dois campos teórico-
metodológicos, evidenciando suas influências e aquilo que combatiam. A partir de uma
revisão bibliográfica e de referenciais teóricos foi possível constatar que as duas partem da
mesma discussão historiográfica, sendo uma resposta ao estruturalismo e à visão positivista
de desenvolvimento. Ambas se beneficiaram muito com a valorização da análise de pequenos
acontecimentos e com a influência da antropologia cultural, porém, a partir da década de 1990
a história global passou a defender a utilização da longa duração como escala de análise. Por
conseguinte, conclui-se que não se deve fazer uma escolha entre os níveis de experiência, e
sim empregar a variação de escala para alcançar a realidade complexa.
Palavras-chave: História Cultural. Micro-História. Historiografia.
Abstract: This article aims to do some reflections about the relation between cultural history
and micro-history, and seeks to trace the trajectory of these theoretical-methodological fields,
showing their influences and what they were against. From a bibliographical review and
theoretical references it was possible to verify that both go from the same historiographic
discussion, being an answer to the structuralism and the positivism vision of development.
Both benefited greatly from the analysis of small events and the influence of cultural
anthropology. However, from the 1990s onwards, global history began to defend the use of
long term as a scale of analysis. Therefore, it’s concluded that one should not make a choice
between the levels of experience, but rather use the variation of scale to achieve complex
reality.
Key words: Cultural History. Micro-history. Historiography.
Considerações iniciais
A história cultural passou por várias renovações historiográficas ao longo do tempo,
sendo interpretada de diferentes maneiras desde o século XIX até a atualidade. Sua última
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renovação foi na década de 1970, quando se constituiu a nova história cultural, liderada por
Júlia Leite Gregory
* Graduada em História pela Universidade do Vale do Taquari e Mestra em História pela Universidade do Vale
do Rio dos Sinos. Atualmente é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da mesma universidade,
sendo bolsista PROSUC-CAPES. Tem interesse nas seguintes temáticas: história social, história das elites,
micro-história, comércio de terras, imigração e colonização.
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autores como Ginzburg, Chartier, Davis, Darnton e Burke. Tudo pode ser objeto de estudo
para a história cultural, pois tudo diz respeito ao modo de agir e ser dos seres humanos. A
qualidade do estudo não depende do objeto e sim, do modo como se trata o fenômeno
histórico. Essa nova história cultural surgiu como resposta ao estruturalismo e à história das
mentalidades, que entendia a cultura como um terceiro nível de experiência histórica, sendo
derivada do econômico e do social, concepção combatida pelos novos historiadores culturais.
História Cultural
No século XIX e início do XX já havia publicações a respeito dos campos do social e
do cultural, embora de maneira bastante tímida em relação às temáticas dos domínios
econômico e político. Mas foi em meados do século XX que o interesse por aqueles campos
recebeu maior destaque entre historiadores marxistas e da escola dos Annales. A partir das
décadas de 1950 e 1960, historiadores marxistas passaram a se interessar pela história social e
a publicar livros e artigos sobre a composição social e a vida cotidiana das classes populares
(HUNT, 1992). Os historiadores da escola dos Annales, desde a década de 1920, já vinham
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propondo uma história mais interdisciplinar que problematizava o social, preocupada com os
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Este artigo se refere à micro-história italiana. Para saber mais sobre os diversos movimentos que têm sido
reconhecidos como micro-história ao redor do mundo, ver: MARQUIEGUI, Dedier Norberto. ¿Existió la
microhistoria? História Unisinos, v. 20, n. 3, p. 249-259, 2016.
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sobre o aparato conceitual desse campo de análise e alguns até afirmaram sua inconsistência.
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Os historiadores dos Annales combatiam a história historicizante, preocupada com fatos singulares,
principalmente os de natureza política, diplomática e militar. Uma história que não dialogava com outras
disciplinas e pretendia buscar a verdade dos fatos através de documentos verdadeiros e autênticos. Contra essa
história, estes historiadores propunham uma história totalizante que problematizasse o social e fosse preocupada
com as massas anônimas. Uma história permeada pelo espírito de síntese interdisciplinar, disposta a analisar as
estruturas e a compreender e explicar a reconstrução de fatos em série (VAINFAS, 1997).
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Uma crítica influenciada pelas teorias de Geertz foi a falta de antropologia nos trabalhos dos
historiadores das mentalidades, que não buscavam em suas pesquisas os significados que os
próprios atores sociais empregavam às suas práticas sociais. Outro problema da disciplina foi
crer que a história é capaz de produzir uma narrativa verdadeira sobre a realidade, algo
refutado por muitos historiadores, sendo que alguns até mesmo não veem diferença entre o
discurso histórico e o ficcional. Além disso, a história das mentalidades foi criticada por
propor uma coerência nos modos de pensar e agir de uma determinada sociedade, em
detrimento da pluralidade de crenças e racionalidades existentes em uma mesma cultura ou
indivíduo (VAINFAS, 1997).
Historiadores da quarta geração dos Annales, como Roger Chartier e Jacques Revel,
criticaram o posicionamento dos autores das mentalidades, que as entendiam como um
terceiro nível de experiência histórica. Para aqueles,
Esses historiadores foram influenciados pelas teorias de Foucault, para quem nenhum
objeto intelectual, seja a loucura, a medicina ou o Estado, é natural, todos eles são construídos
historicamente e, portanto, sujeitos a mudanças por determinada época ou lugar. Foucault,
assim como os marxistas e os historiadores dos Annales, ofereceu contribuições importantes
para o campo da história cultural, estudando a cultura “pelo prisma das tecnologias de poder,
que ele situou estrategicamente no discurso” (HUNT, 1992, p. 12).
A antropologia e a teoria da literatura também são disciplinas significativas nessa
renovação do estudo das culturas. A contribuição mais notável para a história cultural talvez
tenha sido a do antropólogo Clifford Geertz.
como os eventos, ou a história, são organizados pela estrutura (a cultura), e como a estrutura
sofre transformações ao longo do tempo, ou seja, entender como a reprodução de uma
estrutura torna-se sua transformação (BIERSACK, 1992).
A crítica literária, por sua vez, “tem ensinado os historiadores a reconhecer o papel
ativo da linguagem, dos textos e das estruturas narrativas na criação e descrição da realidade
histórica” (KRAMER, 1992, p. 131-132). Dois expoentes desta disciplina são Hayden White
e Dominick LaCapra que, embora se apoiem em diferentes teóricos, ambos
Assim como os dois autores citados, Roger Chartier também se dedicou ao estudo da
linguagem e das práticas discursivas, mais especificamente à história da leitura. A
contribuição de Chartier para a história cultural foi defender que os produtos culturais são
recebidos, compreendidos e manipulados de diversas maneiras, portanto, a finalidade do
trabalho do historiador cultural seria identificar de que maneira eles são apropriados pelos
grupos humanos (CHARTIER, 1995). Deste modo, a teoria de Chartier vai de encontro à
teoria de Geertz, pois este pressupõe que todas as expressões culturais têm o mesmo
significado dentro de determinado universo simbólico, anulando as diferenças na apropriação
dos produtos culturais. Chartier também não reconhece a cultura como um nível diferente do
econômico e do social, para ele, “todas as práticas, sejam econômicas ou culturais, dependem
das representações utilizadas pelos indivíduos para darem sentido a seu mundo” (HUNT,
1992, p. 25).
Nesse sentido, Chartier juntamente com Michel de Certeau, contribui para a história
cultural afirmando que a cultura pode ser examinada a partir da relação interativa entre
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práticas e representações.
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da profissão e distanciando-os de seus colegas. Esta nova história cultural deixa explícito os
recursos epistemológicos que utiliza e entende a narrativa como ferramenta para ordenar e dar
significado e não apenas como ornamento. Algumas de suas obras também expressam uma
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vontade de atrair um público mais vasto, oferecendo uma sedução verbal e estrutural
(SERNA; PONS, 2013).
Um ponto em comum no trabalho destes historiadores é que suas obras geralmente se
debruçam sobre uma pequena escala de observação, como indivíduos ou uma pequena
comunidade, objetivando captar os esquemas culturais dos antepassados a fim de entender as
razões de seus atos e as suas intenções. São pesquisas que analisam partes de um todo que já
não é mais possível reconstituir como inteiro, investigando objetos parciais ou pequenos
episódios, após um período em que a historiografia de Braudel destacava a importância das
grandes narrativas. É uma historiografia que busca alcançar o passado iluminando partes.
Porém, isso não significa que o todo não é mais importante para a historiografia, significa que
todas as partes possuem uma conexão com o todo, portanto, são uma maneira de acessar a
realidade. “En una narración histórica, el hecho concreto puede tomarse como la respuesta
local a una pregunta universal y con ello podemos ahondar en el conocimiento humano”
(SERNA; PONS, 2013, p. 36).
Estes historiadores ampliaram o domínio da história cultural, apontando aspectos
hierarquicamente decisivos e redescobrindo um passado que até então estava despercebido
para os historiadores. Por fim, seus principais objetos de estudo tem sido:
Micro-história italiana
Após essa explanação sobre a constituição do campo da história cultural na
historiografia, será exposto as relações deste domínio com a micro-história, bem como o
surgimento e desenvolvimento desta última. Primeiramente, é importante destacar que assim
como a nova história cultural, também a micro-história nasceu de uma insatisfação frente às
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(GRIBAUDI, 2016, p. 38). Isso deixa claro a estreita relação da micro-história com a história
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oral, a qual também busca dar voz aos indivíduos invisibilizados. A historiografia
conservadora privilegiava alguns espaços e grupos sociais em detrimento de outros, porém,
para os micro-historiadores, assim como para os historiadores da nova história cultural, a
cultura popular (a qual era um campo ignorado por aquela historiografia) representa “[...] um
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modo diferente de ler uma mesma realidade e [...] um recipiente de possíveis bifurcações para
a história que não foram tentadas” (CASELLATO, 2016, p. 57).
Entretanto, a esquerda institucional recusou as sugestões da micro-história e acabou
sendo ultrapassada por esta, que alcançou sucesso mundial, sendo introduzida em regiões
como América do Norte, América Latina, norte da África, Ásia e em outros países do
continente europeu, tendo como importantes disseminadores os historiadores Jacques Revel e
Natalie Zemon Davis, bem como os seus protagonistas Giovanni Levi, Carlo Poni, Carlo
Ginzburg e Edoardo Grendi (GRIBAUDI, 2016).
A revista “Quaderni storici” foi um periódico de extrema importância para a
instituição das redes e dos lugares de elaboração das práticas que seriam definidos
explicitamente como micro-história. “O periódico é uma referência para a historiografia
italiana e caracteriza-se pela abertura para as ciências humanas, para a geografia e para a
antropologia” (CASELLATO, 2016, p. 58). Assim como a coletânea “Micro-histórias”,
lançada em 1981 pela editora Einaudi e dirigida por Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, “[...]
que impulsionou a experimentação historiográfica sobre o terreno empírico e conjunto teórico
e epistemológico, aprofundando limites disciplinares, cronológicos e geográficos [...]”
(CASELLATO, 2016, p. 60).
Com a institucionalização da micro-história no espaço acadêmico, ela passou de um
projeto político e científico para uma prática metodológica. Assim, a micro-história busca
singulares a sua especificidade não repetível” (LEVI, 2016, p. 25). Uma das características da
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metodologia é a generalização das perguntas e não das consequências, ou seja, “as mesmas
perguntas podem ser direcionadas a contextos diferentes, não para ter confirmações e
analogias ou semelhanças, mas para ter respostas válidas somente naquele caso específico”
(LEVI, 2016 p. 26). Assim, a micro-história busca na análise de um caso singular, as
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perguntas que objetivam uma reconstrução da realidade sempre parcial, que não está livre de
ser um fragmento de verdade.
Ela defende a não linearidade e pretende mostrar que não existem certezas absolutas: a
observação minuciosa de um fato possibilita novas perguntas que ampliem a compreensão da
realidade, corrigindo simplificações feitas pelas grandes narrações. Na realização de uma
pesquisa micro-histórica é imprescindível a sobreposição de diversos tipos de fontes, o que
possibilita a reconstrução do entrelaçamento de diversas conjunturas. Como afirma Carlo
Ginzburg, a análise micro-histórica permite “[...] a reconstituição do vivido impensável
noutros tipos de historiografia. Por outro lado, propõe-se indagar as estruturas invisíveis
dentro das quais aquele vivido se articula” (1989, p. 178).
Assim, apesar da teoria de Geertz ter influenciado profundamente a micro-história no
que concerne à redução da escala de análise, aquela apresenta limitações de acordo com Levi.
A descrição densa de Geertz não questiona as limitações, as possibilidades e a
mensurabilidade da racionalidade humana dentro de um mesmo contexto, apenas se contenta
em descrever os significados das ações, com o objetivo de combater o anti-relativismo.
Deixando de problematizar o contexto, tem-se uma história cultural sem análise social, ou
“[...] uma análise social extremamente estereotipada extraída de uma história cultural
intensivamente investigada” (LEVI, p. 151). Para Levi,
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todos os historiadores que atuam na nova história cultural utilizam a micro-história como
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um espaço permite perceber é uma modulação particular da história global” (REVEL, 1998,
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Para saber mais sobre história global, ver: VENGOA, Hugo Fazio. “La historia global y su conveniencia para el
estudio del pasado y del presente”. História Crítica. Edição Especial. Bogotá, v. 39, 2009, p. 300-319. FICKER,
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p. 28). Nenhuma escala é mais verdadeira do que as outras, é o conjunto delas que nos
permite chegar o mais próximo da realidade.
Considerações finais
O caminho trilhado até aqui já expôs a relação entre a história cultural e a micro-
história, o que nos leva a constatar que as duas surgiram diante das mesmas insatisfações
historiográficas (longas narrativas preocupadas com causas e origens, a concepção linear de
desenvolvimento, a ideia de cultura como um nível de experiência histórica, a preferência de
alguns temas sobre outros), as quais foram motivadas por inquietações do presente vivido por
aqueles historiadores. A nova história cultural e a micro-história se preocuparam em
apresentar um contexto extremamente complexo, e a analisar assuntos que antes eram
ignorados, como a cultura popular. Porém, diante de tantas semelhanças, jamais é possível
afirmar que são a mesma coisa ou que seus historiadores compartilham das duas concepções.
A nova história cultural é um domínio da história e se dedica a estudar a cultura da melhor
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