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V O LUME 10

NÚMERO 19
ANO 2021

https://doi.org/10.26512/pl.v10i1933802 Artigo recebido em: 28/08/2020


Artigo aprovado em: 12/02/2021
Artigo publicado em: 05/05/2021

KLÉOS, NÓSTOS, ARETÉ, OÎKOS


conceitos para pensar a presença feminina na Odisseia

KLÉOS, NÓSTOS, ARETÉ, OÎKOS


notions for thinking about the female presence in the Odyssey

Talita Camilo Lemos1


([email protected])

RESUMO
Pretende-se, enquanto leitura da Odisseia de Homero, analisar o papel das figuras femininas a partir
dos conceitos de kléos, nóstos, oîkos e areté, a fim de se sustentar uma visão na qual ninfas, humanas e
criaturas mágicas femininas seriam possibilitadoras do triunfo de Odisseu no cumprimento de sua
jornada de herói. Partindo da leitura da epopeia homérica (nas traduções de Carlos Alberto Nunes,
11 Christian Werner e Trajano Vieira) e de artigos científicos e ensaios filosóficos sobre a presença
feminina, objetiva-se: 1. definir os quatro referidos conceitos no universo homérico; 2. apontar as
figuras femininas com maior incidência/destaque na narrativa; 3. explicitar o exercício de
aproximação dessas figuras a tais conceitos, focando em Penélope, Atena, Circe e Calipso; e, 4.
finalmente, indicar a necessidade da presença e ação das mulheres na aventura de Odisseu, não
somente para que ele possa voltar para casa, mas para que sua glória tenha condição de se concretizar.

Palavras-chave: Areté. Kléos. Mulheres. Nóstos. Oîkos.

ABSTRACT
We intend, while reading Homer’s Odyssey, to analyze the role of female figures through the concepts
of kléos, nóstos, oîkos, and areté, in order to support a vision in which nymphs, humans and female
magical creatures would be the enablers of Odysseus’s triumph in fulfilling his hero journey. Starting
from reading the Homeric epic (in the translations by Carlos Alberto Nunes, Christian Werner and
Trajano Vieira), as well as scientific articles and philosophical essays on the female presence, the
objective is to: 1. define the four referred concepts in the Homeric universe; 2. point out the female
figures with the highest incidence/prominence in the narrative; 3. explain the exercise of bringing
these figures closer to such concepts, focusing on Penelope, Athena, Circe and Calypso; and, 4.
finally, to indicate the need for the presence and action of women in Odysseus’s adventure, not only so
that he can return home, but so that his glory is able to materialize.

Keywords: Areté. Kléos. Women, Nóstos. Oîkos.

1
Graduada em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB).
CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/1548934813908647.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4268-1636.

ISSN: 2238-7692
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A arte do passado não é um problema do passado, mas do presente.


Giulio Carlo Argan

INTRODUÇÃO

Registradas na forma de epopeias após um longo processo de transmissão oral, Ilíada


e Odisseia são consideradas obras inaugurais na literatura ocidental (SAIS, 2015, p. 7).
Assim, enquanto fortes influenciadoras da mentalidade ocidental, ainda muito reverberam no
imaginário e nos círculos de estudos de literatura, tradução, antropologia, sociologia,
economia, filosofia, história, psicologia, teoria política etc. Nas palavras de Otto Maria
Carpeaux:

As epopeias homéricas eram consideradas como cânone fixo, ao qual não era
lícito acrescentar outras epopeias, de origem mais moderna. A Ilíada e a
Odisseia eram usadas, nas escolas gregas, como livros didáticos; não da
maneira como nós outros fazemos ler aos meninos algumas grandes obras de
poesia para educar-lhes o gosto literário; mas sim da maneira como se
12 aprende de cor um catecismo. Para os antigos, Homero não era uma obra
literária, leitura obrigatória dos estudantes e objeto de discussão crítica entre
os homens de letras. Na Antiguidade também, assim como nos tempos
modernos, Homero era indiscutido: mas não como epopeia, e sim como
Bíblia. Era um Código. Versos de Homero serviam para apoiar opiniões
literárias, teses filosóficas, sentimentos religiosos, sentenças dos tribunais,
moções políticas. (CARPEAUX, 2012, p. 6)

Dessa forma, não é por coincidência que muito já foi estudado sobre as figuras
masculinas e suas incríveis jornadas de volta a casa, suas forças, seus feitos, suas raivas, suas
conquistas. Conforme destaca Carlos A. Nunes (apud HOMERO, 2002, p. 14), a Odisseia foi
elevada ao nível de “poema nacional”, sendo preferido e indispensável nas declamações ou,
melhor dizendo, nas entoações, em palácios e festas públicas ou tradicionais de toda sorte; e,
não parando por aí, ao tornar-se livro, continuou a ser lido, contado e serviu de fonte de
inspiração à criação de outras histórias. No entanto, tendo isso em conta, podemos observar
ainda uma carência na divulgação e fomentação de pesquisas que tratem de forma mais detida
as figuras que, como pretendemos argumentar neste artigo, desempenham não apenas papéis
cruciais para que a glória dessas personagens possa ser cumprida e lembrada, como também
podem ser lidas enquanto personagens independentes dos protagonistas,
merecendo um trato e uma investigação mais detalhada. Essas são as mulheres.

Talita Camilo Lemos


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Pretende-se, enquanto leitura da Odisseia de Homero – tendo-se em vista que a


quantidade de aparições de personagens femininas é maior que na Ilíada –, analisar o papel
das figuras femininas a partir dos conceitos de kléos, nóstos, oîkos e areté, com o intuito de
sustentar uma visão na qual as ninfas, as humanas e as criaturas mágicas femininas seriam as
possibilitadoras e os meios pelos quais Odisseu cumpre sua jornada do herói. Partindo-se da
leitura da epopeia homérica amparada pelas traduções de Carlos Alberto Nunes, Christian
Werner e Trajano Vieira, além de artigos científicos, ensaios filosóficos e excertos traduzidos
a respeito da presença feminina, pretende-se: 1. definir os conceitos de kléos, nóstos, oîkos e
areté dentro do universo homérico; 2. apontar as figuras femininas com maior incidência e
destaque ao longo da narrativa; 3. explicitar o exercício proposto de aproximação dessas
figuras a tais conceitos, focando em Penélope, Atena, Circe e Calipso; e, 4. finalmente,
indicar a necessidade da presença e da ação das mulheres na aventura de Odisseu, para que ele
não apenas possa voltar para casa, mas para que sua glória tenha condição de se concretizar.

1 O ENREDO DA ODISSEIA
38

A Odisseia é o cruzamento de pelo menos três narrativas: a volta de Odisseu para


Ítaca, sua casa, sob a maldição conjurada por Poseidon após o fim da Guerra de Troia; a busca
de Telémaco por Odisseu, seu pai, enquanto enfrenta as obrigações estatais com a chegada da
maioridade; e a inteligência de Penélope, que, com astúcia, consegue equilibrar os ânimos dos
novos pretendentes, as pressões do papel esperado de uma viúva e a esperança de que seu
marido voltará; além, é claro, das tramas divinas e sobrenaturais que cercam o mundo
terrestre, os mares, os céus e as grutas. Constituindo 24 cantos, o enredo poderia ser divido
em quatro sequências: 1. do Canto I ao IV temos a invocação à Musa, a apresentação do
conteúdo a ser cantado, a assembleia dos deuses e dos itacenses; 2. do Canto V ao VIII são
contadas as aventuras de Odisseu por ele mesmo no palácio de Alcínoo; 3. do Canto IX ao
XII Odisseu relata suas aventuras aos feácios; 4. do Canto XIII ao XXIII Odisseu chega a
Ítaca, Telêmaco volta a Ítaca, os pretendentes de Penélope são massacrados e ela reconhece o
marido. O Canto XXIV é o desfecho, com Hermes guiando as almas dos pretendentes ao
Hades e o encontro de Odisseu com Laerte.

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Escrita em grego homérico2, a Odisseia ainda hoje passa por uma série de traduções e
atualizações que tentam apresentar o mundo fantástico de Homero para crianças e adultos ao
redor do mundo. No Brasil temos as empreitadas mais famosas de Carlos Alberto Nunes,
Manuel Odorico Mendes, Christian Werner, Haroldo de Campos, Trajano Vieira e Donaldo
Schüler. Por ser uma obra única e desafiante, transportar os significados de uma língua para
outra é uma empreitada hercúlea: alguns termos, por conterem um apelo muito maior no
contexto em que foram criados do que para nós, podem, e de fato o fazem, escapar à sua
tradução “literal”. Palavras como “kléos”, “nóstos” ou “oîkos” poderiam ser substituídas por
“glória”, “retorno” e “(gestão do) lar”, respectivamente; todavia, isso obliteraria a
complexidade dos termos, além, é claro, de olvidar a própria existência da epopeia em sua
organização. Daí a necessidade de um contato mais fidedigno do leitor com a obra, e, por isso,
a fim de nos inserirmos em um diálogo com a obra, seja qual for o recorte escolhido,
acreditamos ser importante um conhecimento introdutório de certos termos na língua original.

2 TERMINOLOGIA: OS CONCEITOS QUE PERMITEM A CONSTRUÇÃO DA


14 NARRATIVA

2.1 Areté

Areté (ἀρετή), característica de alguém virtuoso, é a excelência, o valor que amarra os


valores sociais, a virtude das virtudes. A raiz da palavra remete a áristos, um superlativo para
agathós, “aquele que é bom”, que forma palavras do vocabulário da língua portuguesa como,
por exemplo, aristocracia. Desse modo, a areté, identificada como uma das primeiras palavras
quando se fala de educação – antes mesmo de “paideia”, por exemplo, identificada apenas no
século V, e ainda assim com um sentido diferente do que adquiriu posteriormente, pois se
trata. nesse momento, de uma educação aristocrática (Cf. JAEGER, 2001, p. 26) –, é atribuída
somente para os áristoi e não para os homens comuns.
Sabendo que a língua é sempre reflexo da cultura, é importante ressaltar que tal termo
– que traduzimos por “excelência” ou “virtude” – remete, desde o início, ao universo
masculino. Sendo assim, ἀρετή (areté), essa virtude das virtudes, diz respeito explicitamente

2
Assim como grande parte dos idiomas, o grego antigo possui uma longa história de mudanças com a passagem
do tempo e as transformações políticas, artísticas e geográficas. Tradicionalmente, nos estudos linguísticos ele se
divide em: eólico, arcado-cipriota, ático-jônico, dórico, lócrio, panfílio e grego homérico.

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aos guerreiros, visto que possui raízes na palavra ἄρειος (áreios), isto é, “devoto de Ares”
(Ἄρης), popularmente conhecido como “deus da guerra”. Isso também se repete com outros
termos, como por exemplo ἀνδρεία (andréia), traduzida por “coragem”, que tem seu étimo na
palavra ἀνήρ, ἀνδρός (anér, andrós), “homem”. O mesmo ocorre com a palavra latina virtus,
virtutis, que significa tanto força física quanto moral, da qual herdamos a palavra “virtude”,
que remete a vir, viri, “homem”. Correspondem, assim, tanto a excelência quanto a coragem
ao âmbito masculino, ou, noutros termos, a características que apontam para o universo
bélico.
Areté diz respeito tanto ao espírito quanto ao corpo (em Homero o termo já possui
esse sentido mais amplo), quer dizer: o que é melhor, mais nobre, mais bravo, mais virtuoso,
excelente (LIDDELL-SCOTT, 1883, p. 216). A vida dos heróis gira em torno dessa busca
pela excelência, pois eles nunca se contentam com o que já foi conquistado e sempre visam a
estar à frente dos demais nesse quesito, já que a ordem social se baseava nisso:

O verso 208 do Canto VI da Ilíada, na fala de Glauco, resume o ideal grego


de educação individualista, do agon, na luta, em que o preceptor desperta no
aluno o espírito de competição levada ao extremo, educando-o para ser
38 sempre o primeiro e de todos os mais distinguir-se (NUNES apud
HOMERO, 2002, p. 14)

A negação da honra era inconcebível, “a maior tragédia humana” (JAEGER, 2001, p.


31), e essa busca constante pela excelência era comum entre os gregos homéricos, em tempos
de guerra e de paz.3 A cólera de Aquiles, cantada na Ilíada, dá-se devido ao desrespeito ou
não reconhecimento da honra do herói, e é perfeitamente concebível para a cultura da época:

A ânsia de se distinguir e a aspiração à honra e à aprovação parecem ao


sentimento cristão como vaidade pessoal pecaminosa; os Gregos, porém,
viram nisso a aspiração da pessoa ao ideal e suprapessoal, onde começa o
valor. (JAEGER, 2001, p. 32)

2.2 Kléos

Kléos (kλέος) é a palavra grega para fama, glória, renome, equivalente ao latim fama.
O conceito de kléos está ligado diretamente à memória e, portanto, ao desejo de perpetuar de

3
Podemos destacar, em tal caso, o exemplo presente na Odisseia, quando Odisseu está com os feácios (Od.
VIII). Nessa passagem acontecem os jogos da região, havendo a disputa pelo melhor. Nesse contexto é permitido
que o protagonista também participe, e ele pode então mostrar o quão valoroso é a partir desses jogos.

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alguma forma o que foi a existência do indivíduo nos anos vindouros. Nas palavras de
Vernant (1978, p. 31): “representa o termo último da honra, seu extremo ápice, a areté
realizada”. Através do kléos, a cultura é iluminada pela narrativa memorialística daquele que
já não se faz presente; ela é a presentificação das personagens – que talvez já não estejam
mais presentes em corpo, mas que serão reconhecidas por aqueles que, ao escutarem sua
história, serão herdeiros de suas façanhas.
Desse modo, a bela morte (καλός θάνατος; kalós thánatos) (VERNANT, 1978, p. 31)
dos guerreiros, retratada majoritariamente na Ilíada, dá-se em uma forma de imortalização
literária, ou seja, de perpetuação da lembrança do herói. É importante lembrar que a forma
como o kléos é cumprido e narrado possui uma ligação profunda com a tradição oral da
Grécia Arcaica. Defendemos neste trabalho que, mesmo que possuam um estatuto diferente e
sejam vistas e tratadas de outro modo, existe igualmente o kléos das figuras femininas, ou
seja, o seu eco, a sua “glória imperecível” [kléos áphthiton]; “[...] um traço do homem
homérico, talvez o mais característico, comum aos dois poemas: a preocupação com a opinião
da posteridade, sobre o que na sua curta existência fizessem ou deixassem de fazer” (NUNES
apud HOMERO, 2002, p. 14).
16

2.3 Oîkos

Oîkos (οἶκος) diz respeito não só às economias, aos pertences, mas à casa, às
propriedades, aos patrimônios e ao próprio seio familiar. A própria palavra “economia”, por
exemplo, possui originalmente o termo oîkos em sua composição (οἰκονομία, trans.
oikonomia, que é a junção de οἶκος + νομία, lei, costume, significando justamente a
administração dos bens familiares). Nicole Loraux, em seu Maneiras trágicas de matar uma
mulher: imaginário da Grécia Antiga, aponta que há uma ligação entre as mulheres e o
espaço doméstico, perpetrado pelo silêncio, onde a visibilidade da mulher não se dá tal como
a do herói, uma vez que este realiza sua ação sempre no ambiente externo. No presente
trabalho, pretendemos partir dessa divisão para instigar uma nova leitura da Odisseia a
respeito daqueles conceitos, outramente relacionados exclusivamente aos homens,
aproximando-os agora das mulheres.

2.4 Nóstos

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Nóstos (νόστος) é o retorno para o oîkos, ou seja, é a jornada do herói rumo à sua
conclusão. No caso da Odisseia, a narrativa epopeia trata inteiramente desse quase
interminável nóstos de Odisseu4, que, ao angariar o ódio de Poseidon, tem seu retorno em
muito dificultado. Para assegurar que esse retorno heroico seja bem-sucedido, isto é, que essa
última etapa da jornada seja concluída da melhor forma possível, são necessários alguns
cuidados – a serem especificados.
Parte dessas precauções são de responsabilidade das esposas, e são de extrema
importância para a figura do herói como um todo, pois, caso não sejam tomadas, ocasionam a
inconclusão de sua jornada e, assim, o empobrecimento do kléos. É exatamente o que
acontece no caso exemplar (de que também falaremos posteriormente) de Agamemnon, que,
tendo lutado na Guerra de Troia e vencido, ainda assim não pode receber as devidas glórias, já
que foi assassinado ao regressar para casa, tendo assim, sua memória e fama arruinadas.

3 MULHERES CENTRAIS DESDE O INÍCIO: MUSAS, SIRENAS E MOIRAS

38 A cultura grega na época de Homero – embora a existência do poeta seja debatível até
os dias de hoje, suas datas de nascimento e morte são tradicionalmente localizadas nos séculos
IX-VIII a.C. – era calcada na tradição oral. O papel da memória será (era) nevrálgico para a
construção da memória coletiva e constitutivo para a cultura nascente. Por isso, entrar em
contato com a Odisseia é antes de tudo entrar em contato com uma narrativa organizada de
forma muito específica.
A concepção de cultura dos gregos antigos contava com a noção de poesia para
explicar a arte e, vinculando-a à noção de música, fomentou a existência dos poetas-cantores.
Os aedos (do verbo ἀείδω, cantar) eram os profissionais responsáveis por eternizar a cultura
por meio do canto das poesias em apresentações, grandiosos eventos que reuniam multidões.
Sendo assim, a música possuía grande importância nesse contexto, uma vez que os gregos a
utilizavam como método mnemônico. A própria métrica era esse auxiliar da memória, a
conexão com a música, já que a utilização de tempos longos e breves (noções presentes no
campo da música e na língua grega em si) permitia essa musicalidade do verso e, logo, sua
fixação.5 Desse modo, cantava-se para não esquecer os valores culturais, em uma espécie de

4
Segundo Liddell e Scott (1883, p. 1010): “Νόστος was the title of several old Ep. poems on the homeward
journeys of the Greek heroes after the taking of Troy, as the Odyssey was the νόστος of Ulysses, Ath”.
5
A rima, por exemplo, é uma forma de memorização. Exemplos da nossa cultura seriam o repente e o rap.

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imortalização dos feitos do povo; e a própria Odisseia e a Ilíada são exemplos dessa poesia
cantada.
A educação helênica, antes da filosofia, era de base homérica – tanto que em suas
primeiras bases era uma educação aristocrática, bem ao modelo dos cantos homéricos –,
fazendo de seus poemas essa espécie de guia cultural e moral e outorgando a Homero o título
de “educador da Grécia”. Desse modo, podemos perceber a dimensão do canto nessa tradição
oral, desempenhando uma função semelhante a nossa escrita, sendo pois um registro (no caso
da música, imaterial) com a função de recordação, propagação e, consequentemente,
preservação do conteúdo cultural.
Com isso, o canto permite trazer uma imagem do passado projetando o futuro; o
próprio ato de cantar é o que é valoroso (o conteúdo vinha em segundo lugar), pois é capaz de
fazer com que o tempo faça sentido, com que a cultura prevaleça para além da fragilidade da
vida humana, da vida breve dos indivíduos. É um método para a efetivação da memória,
contra o esquecimento da história, das personagens, da cultura em si. Isto posto, insere-se aqui
o importante papel cultural da memória.
Sucede que um conceito tão abstrato a nós culturalmente como o de memória possuía
18 uma representação no imaginário grego através de personificações femininas, as Musas.
Inspiradoras do canto, eram as filhas, somando nove, de Zeus e Mnemosine. O próprio nome
delas revelava essa relação crucial de memória para a presente cultura, vinculando-se à
palavra latina mens (mente) (NUNES apud HOMERO, 2002, p. 423). Ou seja, eram filhas da
Memória, o que é profundamente significativo, já que todo o épico dependia de seu canto,
dessa inspiração, e são elas a quem os poetas recorrem para a efetivação da narrativa: “O
homem multiversátil, Musa, canta [...]” (NUNES apud HOMERO, 2014, p. 13).
As Musas eram o próprio referencial feminino para a memória. Assim, sendo a
memória a tecnologia de transmissão mais usual, fazia-se necessária a presença de seres
superiores, não falhos, limitados ou passíveis de esquecimento; seres que tudo sabem, quais
sejam: divindades, que pudessem garantir a fidelidade e integridade dos fatos ocorridos.
Nesse contexto, tais figuras divinas, as Musas, davam a forma (o próprio ato de cantar) e o
conteúdo, constituindo toda a narrativa: seu cantar sempre será o acontecimento. Ou seja, as
Musas, ao mesmo tempo que velam, estão à frente do processo de memorização. O clamor
dos poetas no início das epopeias reforça a necessidade de rogar a essas divindades para
reconstituir os acontecimentos e os fatos dignos de serem mantidos vivos pela
cultura.

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Outro ponto importante é que, além disso, o próprio conteúdo narrativo da Odisseia é
construído de forma a abordar, por diversas vezes e em passagens variadas, essa cultura que
depende exclusivamente da memória para a reconstrução de fatos ocorridos, e isso se dá pelo
papel que as personagens exercem, frequentemente, como narradoras.
Em diversas passagens, narrando o passado, elas desempenham a função de manter
viva e fiel a memória dos fatos dentro do poema, tanto em relação aos acontecimentos da
Odisseia quanto aos da Ilíada (enquanto epopeias inseridas em uma mesma tradição, sendo os
acontecimentos da primeira narrativa posteriores aos da segunda no universo homérico).
Desse modo, é sempre preciso lembrar o que ocorreu em Troia, com as personagens presentes
lá, que também estão presentes aqui, e isso acontece na voz de muitas pessoas – com destaque
para a morte de Agamemnon, contada múltiplas vezes, inclusive pelo próprio defunto.
Quando Odisseu encontra-se na terra dos feácios (VI-XIII) narrando o que lhe ocorreu
como uma espécie de aedo, os convidados o ouvem assiduamente, ficando inebriados ao
escutá-lo: “Quando finda a fala, todos, quietos, permaneciam estáticos na sala escura, pois que
o encanto os dominava.” (Od. XIII, 1, 2, trad. Trajano Vieira6). Há, nessa passagem, a
presença da memória exercida, além da forma e da construção do conteúdo, como uma
38 espécie de fala sobre si, sobre o formato em que a própria epopeia é construída.
As sirenas, assim como as Musas, cantam; porém, as segundas são levadas a cantar
por imperatividade do aedo: elas o inspiram e este é quem realiza a seleção dos elementos
mais importantes. O canto das Musas é, assim, intermediado pelo canto do poeta. Os cantos
das epopeias homéricas só duram a sucessão do tempo em que são cantados; possuem um
meio e um fim. As sirenas, por sua vez, desempenham um papel ambíguo, afinal, sua cantoria
alegra, mas pode levar à morte.
Além disso, enquanto as Musas estão invisíveis, são evocadas e realizam seu itinerário
de forma métrica e memorialística, as sirenas aparecem dentro da narrativa dramatizando sua
aparição, cantando infinitamente seu itinerário formal, atraindo atenção sobre si. As sereias
das lendas tardias, nas novas roupagens do mito ou do folclore, são figuras representadas
cantando o puro aspecto sonoro, remontando ao que é primitivo e sexual. Mas as sirenas
homéricas são figuras sapienciais; elas tudo sabem porque tudo viram, e, sendo assim, o canto
atrai e exerce tamanho poder de fascínio, justamente por ser a perfeita junção entre o
encantamento através do canto e o poder da esfera semântica da palavra (Cf. CAVARERO,
2011). Desse modo, quem escuta tem ânsia por saber mais, justamente por causa da

6
Os tradutores serão explicitados apenas quando houver citação direta ao texto.

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relação do homem com a Verdade e com os fatos infinitos, ou seja, o papel do canto na
formação, no poder de guiar da música e na memória. Admirados com o canto das sirenas, os
homens não poderiam mais parar de ouvi-lo, fazendo com que seus barcos se chocassem
contra os rochedos.
As figuras femininas permeiam o imaginário grego, como renomadas personagens
presentes nos cantos, deidades ou mesmo pela mitologia, que entremeia conceitos mais
abstratos como os de memória (visto há pouco), destino, morte, violência7, dentre outros. As
Moiras, por exemplo, podem ser lidas como as verdadeiras responsáveis por a trama
acontecer: elas são as fiadoras do destino. E é contra esse destino que Odisseu irá se rebelar.
Ora, Odisseu, odiado por Poseidon, é amaldiçoado pelo deus de forma que seu nóstos é
extremamente dificultado, com inúmeros desafios, conquistas e provas incessantes, que o
colocam constantemente em situação de risco e morte.8 Isso se evidencia pela conhecida
passagem em que o Laércio fere o único olho do filho de Poseidon e este clama ao pai por
vingança, dizendo:

[...] impede que Odisseu Laércio, arrasa-pólis,


retorne à moradia em Ítaca. Se acaso
20 a moira dele for rever os seus e por
os pés no paço bem-construído em solo pátrio,
que tarde sua chegada desastrosa, só,
em nave de outrem, que ele encontre horror no lar!
(Od. IX, 530-5, trad. Trajano Vieira, destaque nosso)

É aqui que se insere a segunda figura feminina que contribuirá para esse pano de
fundo a ser construído. O deus atende às preces do filho (manda uma pedra rumo ao barco de
Odisseu), ou seja, busca fazer com que o herói seja privado do retorno (ou o tenha muito
dificultado). A noção que tentaremos defender aqui é a de que, ao lutar contra o “Destino de
morte” (moira) – traçado quando dos fatos que desencadearam a ira de Poseidon –, Odisseu o
faz, e assim, realiza seu percurso heroico, através e com o auxílio de figuras femininas. Para
realizá-lo, o protagonista exerce também sua areté – ligada à potência intelectual,
estabelecendo ademais sua relação com a invenção e com a mentira para sair das situações de

7
Segundo o índice de nomes de Donaldo Localzo: “Violência: figura mítica. – XI, 597 retorna a rocha de
Sísifo” (apud HOMERO, 2014, p. 768).
8
Nesse contexto, podemos ressaltar a etimologia do nome do protagonista, proveniente do verbo odussomai, que
significa “odiar” (na voz ativa), escolhido por seu avô, Autólico (porque ele próprio muito despertara ódio),
conforme percebemos através do seguinte verso: “Ora Odisseu lhe chamai, ‘que tem ódio’” (Od. XIX, 409, trad.
Carlos Alberto Nunes). Mas, ainda, considerando a voz passiva na tradução (‘aquele que é odiado’), é pertinente
aludirmos também para uma possível conexão entre a etimologia do nome “Odisseu” e o fato de que ele é odiado
por Poseidon, uma importante característica na trajetória da personagem – “Vai-te! Tua volta demonstra a que
ponto és por eles [os deuses] odiado” (Od. X, 75, trad. Carlos A. Nunes).

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risco – especificamente relacionada à astúcia, métis, que é uma virtude personificada por uma
deusa, a mãe de Atena (o que já diz muito sobre si e sua protetora).
Neste momento, façamos um parêntese para melhor explicitar as possíveis traduções e
outras especificações sobre as figuras que personificam tal conceito, as Moiras:

Também chamadas de Destino ou Parcas, personificam o destino individual.


Na época de Homero é considerada como uma única Moira que nem os
deuses podem desobedecer, mas vão gradualmente se transformando em três
mulheres que tecem o fio do destino. São chamadas de Átropo (Inflexível),
Cloto (Fiandeira) e Laquesis (Sorteadora) e regulavam o tamanho da vida do
homem. (NUNES apud HOMERO, 2002. p. 423)

Assim, a palavra μοῖρα (moira) é geralmente traduzida como “Destino” ou “Destino


de morte”, preservando essa ideia de que elas guiam o fio da vida até a morte. Moira quer
dizer “parte em oposição ao todo”, no sentido de sorte ou destino, porque destino é uma parte
da vida, porção ou medida, principalmente de má sorte, mas pode também se referir à boa
sorte (às vezes pode ser traduzida pela noção de “fortuna”, justamente por esse caráter
ambíguo). Ainda em Homero é vista como deusa da morte (LIDDELL-SCOTT, 1883, p.
38 974): thanatos kai moira. Segundo James Duffy (2007, p. 3), a palavra moira poderia ter uma
gama ampla de significados, podendo ser sujeito ou objeto, conotação de parte ou partilha.
Para nós, herdeiros longínquos da tradição homérica, os dados mitológicos e culturais
da Odisseia talvez precisem de constantes apontamentos e explanações; porém, é interessante
apontar que na obra há todo um imaginário em que certos aspectos do sobrenatural ou do
consenso não precisam ser explicitados e submetidos a explicações, pois já permeiam a mente
dos ouvintes durante a declamação. Esse é o caso da Moira.
Essas figuras oferecem um pano de fundo para a construção da narrativa, voltado para
figuras femininas: uma como referencial de memória e possibilitadora de que a história
aconteça, e outra como condutora da história, pois é uma tecelã habilidosa que urde e trama o
fio do destino. Assim, a personagem principal precisa lidar com a figura do destino o tempo
todo, exercendo sua excelência e sendo auxiliada por outras figuras, a maioria delas
femininas.
Louden (1999) analisa a Odisseia segundo macroestruturas que se repetem ao longo
do poema, e a partir disso descobre um padrão narrativo que se relaciona muito com o nosso
tema. Através desse “padrão narrativo estendido”, como o chama a autora, há uma
análise mais ampla da poesia, que, de acordo com Sais (2016, p. 19), ultrapassa a
análise dos versos em si e sua reincidência. E a partir disso a autora destaca que há

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sempre o mesmo modelo a ser enfrentado pelo herói, em que ele tem de enfrentar um desafio
representado ou personificado por uma figura feminina. Segundo Sais (2016), essa estrutura
se mantém, repetindo-se por três ocasiões e apenas tendo pequenas alterações no decorrer da
epopeia, com “Nausíca/Arete, Circe e Penélope”. A autora complementa:

1. Odisseu, conforme havia sido profetizado em algum momento anterior,


chega a uma ilha, desorientado e sem saber exatamente onde está. 2. Aparece
uma divindade que o auxilia, aconselhando-o sobre como abordar da melhor
forma a figura feminina cujo poder controla o acesso de Odisseu à próxima
fase de seu retorno à Ítaca, e pontuando dificuldades potenciais em relação a
um grupo de homens jovens. 3. Mantendo sua identidade em segredo, uma
vez que a abordagem da figura feminina em questão simboliza um perigo,
Odisseu chega até ela e encontra alguém que é inicialmente suspeita, distante
ou até mesmo hostil em relação a ele. 4. A figura feminina impõe um teste a
Odisseu, no qual o herói se sai bem e, por isso, conquista a sua simpatia e
auxílio, obtendo, assim, ajuda para a próxima etapa de seu retorno. O
entendimento entre Odisseu e a figura feminina é selado através de um
símbolo de hospitalidade: a oferta, por parte dela, de um banho para o herói.
Além disso, há a menção a uma possível união sexual/matrimonial entre
Odisseu e a figura feminina. 5. Contudo, surge um conflito entre Odisseu e
um grupo de jovens varões. O grupo ofende/ameaça/abusa Odisseu de
alguma forma (e o líder de cada grupo tem o nome iniciado pelo radical
Eury-). 6. A morte/punição do grupo, já profetizada anteriormente, é
22 requisitada por uma divindade colérica. A extensão da morte/destruição dos
ofensores é limitada por uma consulta divina. (SAIS, 2016, pp. 19-20)

E assim como certos elementos podem passar despercebidos, seja no passado seja no
presente, as figuras femininas são abundantes na Odisseia. Segundo o índice de personagens
levantado por Donato Loscalzo (apud HOMERO, 2014, p. 737), há 58 menções a figuras
femininas. Porém, algumas se sobressaem, seja por estarem diretamente relacionadas a
Odisseu, seja porque se destacam por méritos próprios, como Penélope, Calipso, Circe e
Atena.

4 PENÉLOPE: FIADORA DO OÎKOS E SENHORA ASTUTA

Em sua tese, intitulada Mulheres de Homero: o caso das esposas da Odisseia, Lilian
Amadei Sais (2016) nos abre os olhos para o que diz ser um tópico escasso nos trabalhos
sobre o tema do feminino no contexto histórico da Grécia Antiga (SAIS, 2016, p. 16). Pois, ao
lermos o poema, o que encontramos não é, total e precisamente, o que se passava
na esfera cotidiana das mulheres naquele tempo, mas – e é necessário tê-lo em

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mente – essas mulheres eram vistas aos olhos masculinos e ditas por suas bocas: poetas e
aedos homens, dado que não temos notícias de mulheres-aedo.9 Assim, um fato que chama a
atenção dos estudiosos sobre gênero no período e nas obras clássicas é (LESSA, 2011, p.
154): por um lado, o modo como se dá a representação das mulheres helênicas no cotidiano,
por vezes apagada; e, por outro, sua representação nos poemas, nos mitos, nas leis e nos
costumes, sendo as mulheres sempre requisitadas e ativas.10
Ocorre que, para diferentes cidades, havia diferentes leis a respeito das mulheres, não
sendo seu estatuto um quadro geral (pois, para além do gênero, essas mulheres possuíam uma
existência social), e ainda assim isso diferia da realidade e do modo como as coisas
aconteciam efetivamente. Dessa maneira, o que se mantém em meio a tantas divergências ao
se pintar esse retrato é a relação da mulher com a comunidade, e consequentemente com o
oîkos. “Não apenas isso: elas também preservam o passado ao serem responsáveis pelos
cuidados com os mortos (lamentação, tratamento do cadáver, preservação de sua memória), e
o futuro, em sua condição de mães” (SAIS, 2016, p. 17).
Dos quatro conceitos aqui trabalhados, o que se pode conectar com o âmbito do
feminino de forma mais imediata é o oîkos. Enquanto as tarefas masculinas se ligavam ao
38 domínio público11 – nos combates, no exercício da política e na regência da cidade, por
exemplo, nos quais era possível tomar conhecimento acerca dos feitos do indivíduo mais
facilmente (possibilitando maior fama) – o papel da mulher era bastante reservado, talvez
como uma forma de controle (RAGUSA, 2005, p. 58), justamente por esse caráter
depreciativo do olhar masculino para o que lhe é desconhecido, já que as funções femininas
da época eram mais ligadas à esfera privada. E percebemos essa reclusão mesmo em figuras
que não são esposas, por exemplo Calypso (cujo nome significa “esconder”), Circe, Caribde e
as Sirenas.
Lilian Sais (2016) identifica uma semelhança entre o que se passava na vida cotidiana
e nos textos homéricos. E faz tal identificação através de Stanford (1965), que fala da forma
bastante realista com que o poema é construído no que se refere ao trato com as mulheres,

9
Segundo Sais (2016), mesmo quando há um recorte mais preciso de tempo e de espaço, como o da Atenas
Clássica, há variações quanto aos dados historiográficos, além de um afastamento entre a esfera das leis e a
esfera do cotidiano dessas mulheres.
10
Com relação a essa questão, Marta Mega de Andrade (2001, p. 14) pontua que essas próprias e abundantes
evidências textuais de mulheres (ficcionais) que atuam ativamente são indícios contra os ‘fantasmas’ da
passividade, improdutividade e afastamento das helênicas do corpo social.
11
Katz (1981, pp. 19-20) afirma, porém, que essas esferas nem sempre funcionam dessa forma, e que os papéis
desempenhados por homens e mulheres não se dão sempre de forma tão rígida.

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nem as romantizando, nem as demonizando, e por vezes as colocando como superiores em


certas áreas, do mesmo modo que, em outros momentos, inferiores.
De toda maneira, a figura feminina parece estar subjugada à masculina (SAIS, 2016, p.
39), porque há momentos em que, mesmo no oîkos, a figura masculina exerce mais poder do
que a feminina: por exemplo, na passagem em que Penélope pede ao aedo que pare de cantar,
e Telêmaco lhe ordena que se retire e volte às suas tarefas (Od. I, 325-364). Isso acontece
várias vezes durante o poema, pois é evidência do crescimento de Telêmaco – que se tornará,
no lugar do pai ausente, o κύριος da casa. A mãe que cuidou de tudo até a maioridade do
filho, como pediu Odisseu antes de partir, passa a obedecer às ordens do filho:

Não sei se um deus me ampara ou morro nas lonjuras


de Troia. Cuida aqui de tudo. De meus pais
deve lembrar-te em casa como agora, ou ainda
mais, pois que eu estarei ausente. Assim que aflore
a barba no garoto, esposas quem bem queiras,
abandonando o teu solar.
(Od. XVIII, 266-270, trad. Trajano Vieira)

Penélope tem o aval do marido para se casar com quem quiser depois que o filho
24
atinja a idade viril, mas não o faz. Ela cuida do oîkos até esse momento, mas permanece em
seu estatuto (νυμφή), sem tornar-se esposa (γυνή) novamente.
A administração do oîkos é de extrema importância para a garantia do kléos, tanto o
masculino quanto o feminino. Quando o homem parte para a guerra, cabe à mulher gerenciar
os bens e o seio familiar, o que não acontece, por exemplo, com Clitemnestra e Agamemnon,
acarretando má fama para ambos. O marido não verá o eco de seu nome depois de tudo o que
enfrentou em Troia, pois não concluiu bem o nóstos, sendo assassinado ao chegar à terra
pátria, sem ao menos ver o filho. A mulher terá má fama porque não cumpriu seu papel no
oîkos, casando-se com outro homem e tramando a morte do marido, como narra Agamemnon
– e, vinculando-a a todas as outras, diz que tal fama traiçoeira recairá sobre as mulheres
posteriores.
Sais fala sobre como as mulheres são vistas como um conjunto, em lugar de como
indivíduos, o que não acontece no campo masculino. Os homens, por sua vez, são vistos
como indivíduos, conquistam suas famas através de seus próprios atos. Egisto teve tanta culpa
quando Clitemnestra, mas seus atos não acarretam vergonha nem culpa aos demais
homens. As mulheres são sempre vistas com desconfiança, e, mesmo que

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Agamemnon distinga Penélope, ele ainda aconselha Odisseu a nada revelar e a não confiar na
esposa.
A participação feminina no oîkos (mesmo que as mulheres não tenham a autoridade de
estar à frente da casa) é bastante ampla e consiste principalmente na realização de tarefas
domésticas, como fiar, tecer e cozinhar (SAIS, 2016, p. 17). Temos exemplos disso em
diversas passagens: Helena, que fia na roca de ouro (Od. IV, 131); Arete, que reconhece a
peça usada por Odisseu, a qual ela mesma produziu; e Penélope, na célebre passagem em que
tece a mortalha de Laertes de dia, destecendo-a durante a noite, além de reconhecer a roupa
descrita por Odisseu mendigo, quando ele descreve a si mesmo.
Nesse sentido, parte importante do papel que desempenham está ligada ao
acolhimento e tratamento dos estrangeiros, porque parte disso está relacionado a sua virtude
como pessoas. Elas são responsáveis por providenciar comida e banho e, a exemplo de Arete
e Helena, por providenciar presentes para a volta do hóspede para casa (enquanto aos homens
cabe presentear com armas), além de competir a elas o trato dessas pessoas em geral. É por
isso que Penélope se mostra tão preocupada com a maneira como os pretendentes tratam
Odisseu, pois isso está diretamente ligado ao seu kléos:
38

Como afirmarás que sou bem mais


razoável e sensata que as demais mulheres,
se, imundo, comes no palácio, nesses trapos?
(Od. XIX, 325-327, trad. Trajano Vieira)

O tratamento ao estrangeiro é importantíssimo em Homero e está ligado a Zeus, o deus


dos mendigos e estrangeiros, sendo forma de prestar respeito ou de desrespeitá-lo. Na Ilíada
há a traição do acolhimento, como aponta Sais, e por isso houve o desencadeamento da
famosa guerra. Desse modo, na Odisseia, vemos que o acolhimento e as boas hospedagens
são imprescindíveis para que Odisseu possa retornar, tendo ele passado por diversas moradias.
Nesse contexto, não fosse o tratamento dos Feácios ao cuidar dele e enviá-lo de volta, o
retorno não seria possível, em contraposição aos ciclopes, que não hospedaram como
mandavam os costumes, e por isso são vistos com maus olhos. Eles, por sua vez, não se
achavam inferiores aos deuses, e esse mau tratamento resultou por fim na morte de vários
sócios, dificultando-se ainda mais o retorno. Assim, Penélope relaciona o cuidado com os
estrangeiros à nobreza e à fama:

Mas, quem se mostra benigno e só sabe espalhar benefícios,

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os estrangeiros a fama excelente por longe lhe exaltam entre os mortais,


sendo muitos os homens que nobre lhe chamam.
(Od. XIX, 332-334, trad. Carlos A. Nunes)

Odisseu revela então, ainda sob a forma do mendigo, tamanha virtude de Penélope,
que desempenhou sua função brilhantemente, e a compara a um rei:

Nobre mulher, nenhum homem te pode lançar qualquer pecha,


em toda a terra, por ter atingido tua glória [kléos] o céu vasto,
como se fora de rei sem defeitos e aos deuses temente,
que sobre muitos e fortes vassalos domínio tivesse
e distribuísse a justiça. O chão negro produz-lhe abundante
trigo e cevada, vergadas de frutos as árvores grandes;
constantemente, lhe dá peixe o mar, as ovelhas dão cria,
pelo governo excelente, feliz encontrando-se o povo.
(Od. XIX, 107-114, trad. Carlos A. Nunes, destaques e inserção nossos)12

É um elogio ao governo de Penélope, tanto do oîkos quanto do povo, pois, na ausência


do marido, a cidade se encontra sem um rei, e ela acaba ficando responsável também pela
cidade. Assim sendo, podemos perceber que a fama das mulheres está intrinsecamente ligada
à administração do oîkos. É preciso ter em mente que, mesmo nesse espaço, sua autoridade é
26 limitada, e é necessária a volta de Odisseu para exercer certos papéis que mesmo no oîkos
cabem à esfera masculina, como ordenar com extrema autoridade, expulsar os pretendentes
que põem em risco os bens familiares, dispor as naus para o retorno dos estrangeiros e zelar
pela manutenção do kléos de Penélope, que de certa forma está conectado ao seu:

Hóspede, tantas vantagens, a forma do corpo e a beleza,


mas desfizeram os deuses no instante em que os homens Aquivos
como meu esposo Odisseu para Troia, em navio, partiram.
Mas, se ele viesse de novo e pudesse amparar-me, cuidadoso
muito melhor seria e mais fama [kléos], também, me coubera.
(Od. XIX, 124-129, trad. Carlos A. Nunes, destaque e inserção do termo
nossos)

É preciso ter em mente que essa boa administração, ao longo de vinte anos –
obrigação da qual o próprio marido a livrou anteriormente, assim que Telêmaco atingisse
idade viril –, só foi possível graças a outro atributo de Penélope (e das esposas na narrativa): a
astúcia. “Exigem núpcias. Os enganos com dolo.” (Od. XIX, 137, trad. Trajano Vieira)
É propício falar de areté em relação às figuras femininas na Odisseia, justamente

12
Os termos não foram inseridos de maneira arbitrária, mas retirados devidamente do original grego (Cf.
HOMERO, 2014, edição bilíngue).

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porque, apesar de seu sentido primitivo, muito ligado à força física dos heróis, o termo teve
seu sentido ampliado. Como diz Katz:

Nos poemas homéricos, por contraste, a dicotomização de papéis, atributos,


e esferas de atividade é muito menos rígida [...]. Em lugar disso, nós
encontramos na Ilíada e na Odisseia uma certa plasticidade na concepção de
papéis sexuais masculinos e femininos. (KATZ, 1981, pp. 19-20)

Na própria Odisseia temos a força física do protagonista em segundo plano, dando


lugar à astúcia, à perspicácia e à prudência (JAEGER, 2001, p. 27). Veremos também que
algumas mulheres possuem tais virtudes tanto quanto o protagonista e mesmo outras figuras
masculinas. Do mesmo modo que uma excelência, e evidentemente um oîkos, também se
pode e se pretende falar em um kléos voltado a elas. Desse modo, a figura feminina vista e
representada por Homero, com ênfase nas esposas, como muito bem mostra Sais (2016), é por
vezes representada como mais astuta que os homens, seus maridos.13
Ante a isso, podemos perceber que Helena mostra-se mais astuta que o esposo
Menelau nas seguintes passagens: descobre, ao entrar na sala, que Telêmaco é o filho de
Odisseu (Od. IV, 143); em outra passagem da Ilíada, imita as vozes das esposas para que os
38
homens saiam do cavalo de madeira, o que não acontece graças apenas a Odisseu, visto que
ele também é dono de incrível astúcia (Od. IV, 278); e ainda, sendo mais rápida em raciocínio
do que Menelau, consegue interpretar perfeitamente bem o presságio das aves, dizendo tratar-
se, acertadamente, do retorno de Odisseu a Ítaca: “E Menelau filobelaz buscava no pensar
resposta fiel à moira, mas antes sua mulher de longo peplo nota [...]” (Od. XV, 169-173, trad.
Trajano Vieira).
De mesmo modo é retratada Clitemnestra em comparação com Agamemnon. Ela
arquiteta sua morte, e depois, por meio do relato do próprio morto, somos surpreendidos e
descobrimos que ela também o executa, “[...] do porte do ato inominável que ela armou
assassinando seu legítimo consorte” (Od. XI, 429, 430, trad. Trajano Vieira), pondo a perder
parte do brilhantismo do kléos dele, já que não foi propriamente concluída a volta. Arete e
Alcínoo também possuem uma passagem semelhante. Nessa passagem, Arete descobre que as

13
Sais ainda se questiona pelo teor desse tipo de caracterização, ou seja, sua caracterização como “rápidas,
perspicazes e inteligentes é elogioso ou aponta para um lado mais nocivo” (SAIS, 2016, p. 18)? Em outras
palavras, são elas representadas com ameaça?

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roupas que o estrangeiro usa foram na verdade confeccionadas por ela, implicando falhas na
história que ele conta a respeito de sua chegada (SAIS, 2016, p, 18).14
Mesmo tendo em vista o marido excepcionalmente astuto e perspicaz, tendo sua areté
voltada precisamente para isso e não para a força física, como os demais companheiros,
Penélope também se mostra incrivelmente astuta. Podemos citar a tessitura da mortalha de
Laertes (Od. II, 93), feita durante o dia, desfeita durante a noite, atrasando o inevitável
casamento e mantendo seu status, com vistas a ganhar tempo para que o marido conclua sua
viagem – observando-se aqui que tal tempo foi imprescindível para que se efetivasse o
retorno.
Além disso, vemos também a realização do desafio do arco (Od. XXI, 73-434),
extremamente difícil, requisitando força extrema mesmo para dobrá-lo a fim de passar a
corda. Vale ressaltar que tal força não comum; é um indício da areté conquistada pelos
aristos, mas não por qualquer um deles, dado que, segundo Jaeger: “O nome de aristoi
convém a um grupo numeroso; mas, no seio deste grupo, que se ergue acima da massa, há luta
pelo prêmio da arete” (JAEGER, 2001, p. 29). E, além disso, é necessária também uma mira
inacreditável, sendo apenas capaz de realizá-lo o marido e provavelmente o filho. Ou seja, se
28 nenhum dos pretendentes conseguisse, o que de fato acontece, ela ainda ganharia mais tempo,
mantendo a ilusão de que realizou uma prova justa, ao nível dos aristoi, visando ao
casamento.
Aqui também podemos mencionar a pequena prova, feita de imediato, contra o próprio
marido, para verificar se era mesmo quem dizia ser, qual seja, a do leito do casal. É central
que destaquemos aqui que ela consegue ser maior em astúcia que o marido e mesmo o filho,
visto que ambos pensavam que ela estava apática ante ao regresso, até ter certeza de que ele
era quem dizia. Odisseu diz:

Demônio de mulher,
os venturosos te dotaram de uma têmpera
mais dura do que as demais senhoras frágeis.
Quem mais teria o coração tão forte a ponto
de suportar ficar assim longe do esposo,
duas décadas sofrendo nos confins, de volta
ao lar e a ela? Ama, faze a minha cama,
14
Isso ocorre porque na verdade Odisseu foi recepcionado muito antes pela filha do casal, Nausicaa. Ela, além
de aconselhar o estrangeiro sobre a melhor estratégia que ele deveria seguir para que conseguisse ter o retorno
facilitado pelos monarcas, também lhe concede as roupas que ele usará mais tarde no encontro com Arete. A
rainha, por sua vez, reconhece as roupas porque essas foram fabricadas por ela mesma – possivelmente em
conjunto com outras mulheres do palácio, já que a tecelagem possui variados e numerosos processos, que
demandam coletividade em sua execução e na produção das vestes (BARBER, 1992, p. 108) – deixando sua
marca na veste que comunicará, posteriormente, a sua procedência e autoria.

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pois bate no seu peito um coração de ferro.


(Od. XXIII, 165-172, trad. Trajano Vieira)

Diante da fala de Odisseu, Penélope, com uma rapidez de raciocínio impressionante,


arquiteta imediatamente um teste, íntimo e preciso o suficiente para que só o marido pudesse
efetuá-lo propriamente:

Demônio de homem, não sou desprezadora, megaltiva,


estou atônita; sei muito bem como eras
quando embarcaste em nau de longo remo a Ílion.
Pois bem: arruma, aia, o leito dele fora
do quarto bem composto, que suas mãos construíram.
Põe fora o leito sólido!
(Od. XXIII, 173- 9, trad. Trajano Vieira)

A grande chave da questão está no fato de que o leito do casal, que o próprio Odisseu
construiu, foi feito a partir do tronco de uma oliveira. Assim, não se tratava de um leito
comum; este possuía um detalhe preciso e desconhecido a qualquer outro, tendo em vista a
intimidade que constitui o leito do casal: era fixo no chão. Só então, ao dizê-lo, o marido

38 consegue convencê-la de tudo e ela pode abraçá-lo e desfazer o papel que desempenhava no
ardil.
Nesse sentido, Penélope é por vezes chamada de nobre e virtuosa. Destacamos a
seguir precisamente uma fala bastante ambígua a respeito das mulheres de Agamemnon a
Anfimedonte:

Multi-astucioso Odisseu Laércio, venturoso,


conquistaste uma esposa hipervirtuosa;
que pensamentos magnos tem tua consorte,
filha de Icário, nobre. Do esposo Odisseu
não se esqueceu. O kleos, que é o eco do renome,
perdurará. À percuciência de Penélope,
hão de compor os numes aprazível canto aos homens ctônios.
(Od. XXIV, 191-199, trad. Trajano Vieira, destaques nossos)

Penélope não é apenas virtuosa, mas hipervirtuosa (μεγάλῃ ἀρετῇ, megále areté) ou
grandemente virtuosa. E tamanhos foram seus feitos, que seu renome ecoará através dos
tempos vindouros. Dessa maneira, a virtude e o renome de Penélope estão ligados, como antes
mencionado, diretamente à preservação do oîkos. Nesse ponto, todos os conceitos
se conectam na figura de Penélope.

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Ela será lembrada hipervirtuosa, pois através da astúcia conseguiu comandar o oîkos,
manter seu estatuto de nem esposa nem viúva, mas, no meio disso, de uma νύμφη (nymphê),
mantendo os pretendentes interessados, ao mesmo tempo que tentava restituir parte dos bens
que lhes foram tomados:

[...] era diverso o modo como agia em tempos


idos quem desejasse cortejar a dama
e disputar a filha de homem rico: bois
e ovelhas pingues ofertavam aos parentes
da moça pela invitação; brilhavam dons.
Haveres de terceiros não comiam impunes.
Falou assim e se alegrou o herói paciente,
pois que ela sugeria querer os seus presentes
e os encantava com palavras-mel. Sua mente
pensava diferentemente.
(Od. XVIII, 275-284, trad. Trajano Vieira)

Garantindo ao mesmo tempo seu kléos e auxiliando o do marido, a jornada de


Penélope se fez no campo do oîkos, um campo privado, mas ela conseguiu fazer seu nome
ecoar, devido a sua sagacidade e estratagemas, mesmo no Hades (através dos pretendentes), e
30 através dos tempos que viriam.

5 CALIPSO E CIRCE: PERIGOSAS OU PROTETORAS?

As figuras de Calipso e Circe são paradoxais dentro da Odisseia: se por um lado elas
são aquelas que oferecem hospedagem, segurança, comida e presentes a Odisseu e seus
companheiros, por outro lado são representações de um retardamento no cumprimento do
nóstos; além disso, também colocam em jogo a existência de outras mulheres que não são
esposas e/ou humanas.
Na sociedade grega arcaica, os estatutos das mulheres, sempre relacionados ao
casamento, poderiam ser quatro: parthenoi, nymphê, gyné e aeratai, todos relacionados à
sexualidade e ao casamento de alguma forma. A primeira é aquela que ainda não possui
maturidade para o casamento, mantendo-se virgem em sua juventude característica. As
nymphai, por sua vez, são aquelas aptas a casar e que já possuem, portanto, uma exacerbação
da sexualidade. Na Odisseia, essas que correspondem à “figura da noiva” podem
ser tanto mortais quanto imortais (FERNANDES, 2017, p. 85), e exemplos (dentre
outros) delas na narrativa são as próprias Calipso, Circe, Ino, Toosa, as Nereidas e

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Penélope – na medida em que se encontra cercada de pretendentes ao casamento e sem o


marido. A instabilidade por que elas passam é moldada por seu estatuto incerto entre serem
parthenoi ou gyné; no caso das deusas, elas jamais perdem sua divindade, entretanto podem
passar por essa fase também. As gyné são as esposas, já casadas e com o poder de comandar
seu território e gerir o oîkos – as humanas mortais podem se tornar novamente nymphai com a
morte dos maridos. Já as aeratai são mulheres livres e poetisas, participam dos banquetes e
trabalham para receber seu sustento. O melhor exemplo dessa “classe” é a sacerdotisa
Diotima do diálogo O Banquete, de Platão.
Calypso aparece já no primeiro canto e é descrita como detentora de beleza e de
juventude excepcionais. A deusa-ninfa habita a ilha de Ogígia, na qual, passados sete anos,
ainda encontra-se o herói Odisseu (Od. I, 10-15). É ela também que oferece ao rei de Ítaca um
presente divino: a imortalidade e a juventude eterna; tendo-o este, porém, prontamente
recusado. Sendo assim, segundo Mayã Fernandes (2017, p. 83), Calipso sobressai entre as
demais nymphai na épica homérica por causa de seu envolvimento amoroso com o
protagonista.
Já num primeiro momento, a etimologia do nome da deusa salta aos ouvidos.
38 Proveniente do verbo καλύπτω (kalypto), que tem o sentido de “esconder”, “ocultar”, o étimo
do termo possui um vínculo com os fatos narrados (como ocorre com o nome do
protagonista), tendo em vista que Odisseu está “oculto” na ilha da ninfa e, assim, caso escolha
viver com ela, optando pela imortalidade e juventude, o protagonista estará velado para todas
as demais pessoas.15
A escolha do protagonista coloca em jogo sobretudo (1) a escolha entre a vida do
corpo e (2) a vida de sua memória ou fama. Caso optasse pela imortalidade para viver com a
nymphê (uma escolha que não soaria estranha aos nossos ouvidos contemporâneos),
desfrutaria da vida eterna de um deus, mas calaria o eco de seu nome e de seu estatuto
heroico, já que não completaria o seu retorno, acarretando assim um kléos não plenamente
desenvolvido.
Assim, a recusa da imortalidade por parte de Odisseu, quando Calipso a oferece, dá-se
justamente pelo fato do não reconhecimento de sua vida, de sua memória e de seus feitos
heroicos pelos anos que virão. Isso porque é mais frutífero para ele (e mais fiel culturalmente)
– mesmo ciente dos riscos de morte durante o retorno (nóstos) – ter uma vida limitada

15
Segundo o filósofo Pierre Hadot (2006, p. 29), nesse, por ser uma deusa que oculta, Calipso é a deusa da
morte. O termo, que significa ocultar, faz alusão à noção de sepultamento, e assim à terra que encobre e esconde
o corpo do cadáver ou ao véu tradicionalmente colocado sobre sua testa. E, a partir disso, podemos conectar esse
fato com a “morte” da fama de Odisseu, caso ele escolha ficar.

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temporalmente, mas obter com isso o reconhecimento do valor de seus feitos até então (da
luta com astúcia na guerra e das aventuras do longo retorno), ascendendo socialmente e,
principalmente, obtendo uma imortalidade na mente e na história de seu povo. Nesse sentido,
a busca e a obtenção do kléos pleno implica que ele viva ilimitadamente na memória, ou seja,
que ele seja imortal, mas na mente de todos, crucialmente: não oculto.
Algo de teor semelhante ocorre na importantíssima passagem, causa da revolta de
Poseidon para com Odisseu, na terra dos Ciclopes, quando o herói astucioso se usa mais uma
vez da perspicácia para salvar-se a si e aos sócios, e fura o olho de Polifemo. Mesmo que já o
tenha enganado ao dizer ao ciclope que seu nome é “ninguém”, impedindo que a ajuda viesse
ante aos clamores dele (Od. IX, 366) e, portanto, salvando-se, Odisseu não pode deixar que o
adversário e, consequentemente, todos os demais não tomem conhecimento de quem praticou
tamanho feito, de astúcia desmedida. Por isso, mesmo estando a salvo, Odisseu grita:
“Ciclope, se um dos homens te indagar quem foi o responsável pelo cegamento hórrido, diz
que foi Odisseu Laércio” (Od. IX, 502-504, trad. Trajano Vieira).16
Semelhante a Calipso, Circe também é uma ninfa imortal. Ela é retratada como dona
de tranças bem-feitas, conhecedora de todas as plantas (Od. X, 176) e habitante da ilha de
32 Eéia (Od. X, 135), onde canta, tece e enfeitiça. Odisseu vive em sua companhia pelo período
de um ano (Od. X, 477), junto aos sócios, dos quais metade havia sido metamorfoseada em
porcos pela deusa (sendo tornados humanos novamente mais tarde).
É também essa deusa-ninfa que concede os ensinamentos e os meios pelos quais
Odisseu pode ir ao Hades e (Od. X, 504-540 e 571-772), mais importante, retornar (katábasis)
com vida e segurança, como – em nau ninguém conseguiu (Od. X, 502), e na mitologia –
poucos fizeram.17 Circe o aconselha a falar com o velho adivinho Tirésias, que revela ao herói
duas informações cruciais para o retorno bem-sucedido: 1) a situação dos pretendentes em sua
casa, para que não seja surpreendido e morto, e então privado da conclusão da jornada; e 2) e
o modo pelo qual ele conseguirá se reconciliar com Poseidon, podendo, de fato e
seguramente, retornar.18

16
Observamos que nesse ponto é usada a palavra “outis”, literalmente “não um”, ou seja, “ninguém”, que
aparecerá escrito também como Métis (Od. IX, 405, 406, 410), possuindo o mesmo significado (“ninguém”).
Assim, no original grego há um duplo sentido: de mé tis, ‘ninguém’, e métis, ‘astúcia’. Dessa forma, Odisseu
engana o ciclope com “seu nome (onoma) e sua astúcia (métis)” (VIERA, 2014, p. 781).
17
Para consultar o velho adivinho Tirésias, ao qual, segundo Circe, Perséfone concedeu, e somente a ele, que a
alma conservasse o intelecto depois de morto (Od. X, 494).
18
Desempenhando assim um papel central para a concretização e conclusão do nóstos e do kléos do
protagonista, já que o envia nessa viagem difícil, mas necessária – note-se que Odisseu chora quando ela lhe dá a
notícia (Od. X, 496-499).

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Assim como acontece com Calipso (Od. V, 110-115), também é Hermes o deus que
media o desafio representado pela figura feminina – entregando o ultimato a Calipso e a droga
para enfrentar Circe, a quem avisa antes sobre a chegada de Odisseu – , figura que apavora e
abala. E é precisamente um desafio, pois os objetivos da ninfa, isto é, realizar o ritual de
casamento conhecido como nymphagôgia, ante as considerações de Fernandes (2018, p. 1),
não podem ser conciliados com o universo do herói (que deseja o “kléos imperecível” e
revelado dos/aos mortais).
Como se disse, tanto Calipso quanto Circe são figuras carregadas de ambiguidades,
transitando entre o universo divino e o humano (FERNANDES, 2017, p. 90). Perigosas ou
protetoras? Perigosas e protetoras? Se por um lado, enquanto nymphai, conforme Fernandes
(2017, p. 85; 2018, p. 4), elas podem representar perigo quando se enamoram de um ser
mortal – e, nessa narrativa, atrasar também o retorno do itacense –, por outro lado essas
“noivas” possuem papeis decisivos para a narrativa; salvam, prestam cuidados e presenteiam
o hóspede. São maléficas e essenciais para a jornada do herói (FERNANDES, 2018, p. 2).

38 6 ATENA: A SABEDORIA DIVINA QUE GUIA AS AÇÕES HUMANAS

Segundo Sarah B. Pomeroy (1999, p. 18), Atena é uma deusa complexa, mais do que
as outras deusas. Ela é a padroeira de Atenas, a cidade da qual temos mais registros históricos
do povo, cultura, sociedade etc. e, de acordo com a referida autora, é do nome da deusa que
derivou o nome dessa sociedade políade. A deusa guerreira também é frequentemente
apontada como uma “mulher masculina” (POMEROY. 1999, p. 18); sendo uma mulher, é
hábil nas tarefas femininas como a tecelagem19 e a fertilidade20, mas é também uma deusa
guerreira, e já nasceu portando escudo e elmo, em posição de batalha (HESÍODO, Teogonia).
E mesmo sua sabedoria, nas teorizações de Pomeroy (1999), é tida no período antigo como
uma qualidade masculina.
Sendo filha da própria Métis, ou seja, a Astúcia deificada, e levando em conta seu
estatuto de deusa, é injusto comparar Atena aos mortais. Em decorrência disso, ela supera
muito Odisseu no quesito sabedoria, fato demonstrado na passagem em que o herói tenta
enganá-la e ao som de risos ela se transfigura dizendo quem é e por que o protege.

19
Foi ela a deusa responsável por dotar Pandora, na Teogonia de Hesíodo, com a arte de tecer.
20
De acordo com um mito ateniense, ela teria feito crescer as oliveiras na cidade de Atenas, e assim ganhou a
disputa com o seu tio Poseidon, sendo nomeada a deusa padroeira do local (LESSA, 2004, p. 136).

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Mas no que diz respeito a Poseidon, seu tio, a deusa consegue atingir seus objetivos sem
entrar em conflito direto com ele. Assim sendo, este, que odeia Odisseu (que
etimologicamente, como já dito, significa “odiado”), não consegue frustrar sua volta para casa
por conta de Atena, que, mesmo sentindo temor do deus do Mar, consegue levar seu protegido
de volta através da esperteza de não o desafiar nem despertar seu ódio.
Dado o estatuto de Atena, o de deusa, ela não se enquadra nem é a ela destinado um
kléos, ou a administração de um oîkos, ou a busca pela areté, muito menos um nóstos. Por
isso, aqui a trataremos como uma das personagens que contribuem mais fortemente para o
desenrolar da narrativa e, consequentemente, para a garantia e o funcionamento dos conceitos.
Como dissemos, o kléos é o renome buscado pelos seres humanos como uma tentativa
de reconhecimento dos feitos da vida breve, para a garantia de sua memória nas gerações
futuras. Noutros termos, a fama é uma tentativa de alongamento da vida, de estar presente
sem estar presente fisicamente, mas por meio da memória das obras feitas. Uma deusa vai ser
sempre falada simplesmente por seu status de deusa e, mais relevante, não necessita buscar o
kléos, pois já é imortal (o mais alto nível de imortalidade, mais do que perdurar através da
memória e do canto). Atena está, então, acima de todos esses aspectos.
34 Tendo em vista tais considerações, ela auxilia na superação de obstáculos, dando
orientação e direcionamento. É também ela que reclama, em assembleia divina, a volta e o
não esquecimento de Odisseu, afetando diretamente a garantia do kléos:

Logo que Odisseu chega a Ítaca, ele tem um encontro com Atena, no qual,
em um diálogo de identificação entre deusa protetora e herói protegido, é
explicitado o laço que os une, a saber, o fato de que ela rege o âmbito no
qual ele se destaca mais do que qualquer outro mortal: a μῆτις (astúcia).
(SAIS, 2016, p. 27)

O próprio teor da excelência de Odisseu, voltado mais para o vigor mental que para o
físico – embora tenha força incrível, a exemplo da passagem dos jogos Feácios e do arco, sua
astúcia é maior e é o que o distingue –, diz muito sobre a deusa que o rege. É ela quem
intercede por ele a todo momento, guiando-lhe, provendo-lhe graça e, mesmo no episódio
mágico da transfiguração de Odisseu, permitindo-lhe que a partir de uma figura com menos
status social (mendigo) possa ver de verdade o comportamento dos que se encontram em seu
palácio, sem máscaras, incluindo quem o ajudará na empreitada de vingança, como também

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sua mulher. Não apenas Odisseu é auxiliado pela sabedoria de Atena, mas Telêmaco também.
Sem a participação ativa da deusa, o jovem príncipe jamais poderia evitar que Penélope caísse
na emboscada feita pelos pretendentes.
Além disso, ela é a personagem mais presente na epopeia: nos 24 cantos que compõem
a Odisseia, Atena aparece de maneira determinante em 16 deles, seja na forma divina,
guiando e protegendo as personagens, seja de maneira indireta, disfarçada e intercedendo em
favor dos itacenses. Outro ponto interessante a ser lembrado é que a deusa é a única que
transita constantemente nos planos temporais e nos espaços cosmogônicos: ora ela está nas
reuniões realizadas no Olimpo, ora está ao lado de Odisseu, protegendo-o; ainda está nos
relatos sobre o passado e no momento presente das ações.
Dessa forma, os conceitos de kléos, nóstos, areté e oîkos, embora não estejam
vinculados à figura de Atena, podem ser pensados de forma contingente, no sentido de que
sua presença possibilita que o kléos de Odisseu seja cumprido por uma supervisão divina, que
o caminho do nóstos seja possível, que o oîkos não perca seu estatuto até então estabelecido e
que a areté seja propiciada para fazer/vencer os obstáculos.

38

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não será mais do que a verificação de um fato afirmar que a Odisseia conta
com maior número de leitores do que a Ilíada; direi melhor: de leitoras,
tendo Bentley chegado mesmo a asseverar que a Odisseia fora escrita para
mulheres [...]. (NUNES apud HOMERO, 2002, p. 6)

As figuras femininas permeiam o imaginário grego, nos mitos, nas lendas e na cultura
em geral, e o mesmo ocorre na Odisseia, sendo ela um conjunto desses elementos folclóricos
(NUNES apud HOMERO, 2002, p. 15). Tanto na figura de humanas quanto de deusas, de
seres míticos e de personificações de conceitos (a nós) abstratos, o feminino auxilia o retorno
de Odisseu (a narrativa central), sem deixar de possuir – característica dos poemas homéricos
– sua individualidade, seus próprios traços e singularidades.
A Memória e o Destino, figuras personificadas, estão presentes como pano de fundo,
sendo possibilitadoras da narrativa. O herói é dileto, escolhido por Atena – que por sua vez é
responsável pelo crescimento de Telêmaco (Od. XIII, 420) e guia de Penélope,
elementos importantes para a concretização da jornada do herói: a administração

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do oîkos e a afirmação do kléos – , deusa da sabedoria, filha de Métis, a personificação da


astúcia, a qual corresponde a sua excelência (areté).
Além disso, tais figuras se enquadram e participam dos conceitos aqui tratados, com as
especificidades que possui a esfera feminina; ademais, vimos ao longo do texto que podem
exercer a areté (relacionada à virtude mental), mesmo que no campo do oîkos, de forma
semelhante à do protagonista, pois, como diz Katz, acontece especificamente na Odisseia essa
plasticidade dos papéis femininos e masculinos. Muitos autores (entre eles AUSTIN, 1975)
falam de um conceito de unidade de pensamento e sentimento entre Odisseu e Penélope,
ὁμοφροσύνη (homofrosýne), ou seja, dessa igualdade de ambos, antecipando muitas leituras
feministas (SAIS, 2016, p. 107).
No presente trabalho, tentamos apontar uma chave de leitura da Odisseia em que as
mulheres são importantes em dois sentidos: (I) elas são personagens marcantes dentro da
narrativa como auxiliadoras de Odisseu e necessárias para ele em todos os sentidos em sua
jornada, sem perder ou depender do herói para que (II) possam ser lidas como personagens
que possuem certa independência narrativa e de ação. Partindo de quatro conceitos muito
caros às epopeias homéricas – kléos, nóstos, areté e oîkos –, propomos uma perspectiva em
36 que a Odisseia possa mais uma vez ser lida sob prismas diferentes daqueles que boa parte da
tradição nos legou, primas nos quais vozes silenciadas ou deixadas de lado, mesmo quando
explicitamente presentes, possam, assim como as musas, cantar histórias e feitos e construir e
transmitir memória.

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REFERÊNCIAS

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VERNANT, J.-P. A bela morte e o cadáver ultrajado. In: Discurso, São Paulo, Editora
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