O Processo Ritual - Victor Turner

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O PROCESSO RITUAL

COLEQAO

ANTROPOLOGA

O PROCESSO RITUAL
Estrutura e Antiestrutura
Vctor W. Turner
Unversldade de Chicago

7
Orientafo de:

ROBERTO AUGUSTO DA MATTA


e

Luiz DE CASTRO PARIA

Tradufo de Nancy Campi de Castro

(Preparada pelo Centro de Catalogago-na-fonte do Sindicato Nacional dos Editores de Limos, GB) Turner, Vctor W. O Prooesso Ritual: estrutura e anti-estrutura; tradugo de Nancy Campi de Castro. Petrpolis, Vozes, 1974. 245p. ilust. 21cm (Antropologa, 7). Do original ingls: The ritual process. 1. Ritos e cerimnias. 2. Ritos e cerimSnias Zambia. 3. Ndembu (tribo africana) Aspectos antropolgicos. 4. Etnologa Zambia. I. Ttulo. II. Serie.
CDD-301.2 301.296894 CDU-39 39(689.4)

FICHA CATALOGRAFICA

T853p

74-0360

PETRPOLIS EDITORA VOZES LTDA. 1974

EMESU

IV

1969 by Vctor W. Turner First published 1969 by Aldine Publishing Company Ttulo do original ingls:

IntroduQo Edigo Brasileira

THE RITUAL PROCESS

1974 da tradugo portuguesa Editora Vozes Ltda. Ra Frei Lus, 100 25.600 Petrpolis, RJ Brasil
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DESDE SUA PUBLICADO EM 1969, O PROCESSO RITUAL TEVE QUATRO reimpresses nos Estados Unidos e foi publicado ou est em vas de ser lanzado em italiano, francs, japons, em ediges britnicas e esta brasileira. Estou lisonjeado pelo fato de o livro vir a pblico em lngua portuguesa devido as substanciis contribuices etnogrficas e teorticas que vm sendo dadas pelos antroplogos brasileiros no estudo dos camponeses e indios deseu pas. Apesar de O Processo Ritual ter sido escrito para antroplogos, parece ter chamado a atengo dos historiadores, psiclogos, crticos literarios, liturgos e historiadores das religies. E" possvel que sua nfase sobre a sociedade como processo vital em que episodios marcados por considerares scio-estruturais foram seguidos de fases caracterizadas por antiestrutura social (liminaridade e "communitas") provou ser mais fcil, a esses especialistas do que a orientaco dada pelas tradicionais escolas de Sociologa que persistem em equiparar o social com o scioestrutural., Liminaridade a passagem entre "status" e estado cultural que foram cognoscitivamente definidos e lgicamente _articulados. Passagens liminares e "liminares" (pessoas em passagem) nao esto aqui nem la, sao um grau intermediario. Tais fases e pessoas podem ser muito criativas em sua libertaco dos controles estruturais, ou podem ser consideradas perigosas do f" to , de vista da manutengo da lei e da ordem. A "communitas um relacionamento no-estruturado que muitas vezes se senvolve entre ''minares. E' um relacionamento entre individuos oncretos, histricos, idiossincrsicos. Esses individuos nao esto Amentados em func.5es e "status" mas encaram-se como seres tn anS **a'S- A dinmica empregada no relacionamento con- v e -da e"tr^nstitutrutura social e antiestrutura social a fonte de ? sec laS J f '5es e problemas culturis. Arte, jogo, esporte, cao e experimentago filosfica e cientfica, medram nos

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interins reflexivos entre as posiges bem definidas e os dominios das estruturas sociais e sistemas culturis. Poder-se-ia dizer que no clculo do socio-cultural, a "communitas" e a liminaridade representan! os zeros e os mnus sem os quais nao possvel a um grupo social computar ou avaliar sua situago atual ou seu porvir num futuro calculvel. A dialtica estrutura / antiestrutura , na minha opinio, um universal cultural que nao deve ser identificado com a relago entre cultura e natureza, ponto importante do pensamento de Claude Lvi-Strauss. Enquanto a "communitas" um relacionamento entre seres humanos plenamente racionis cuja emancipago temporaria de normas scio-estruturais assunto de escolha consciente, a liminaridade muitas vezes, ela prpria, um artefato (ou "mentefato") de ago cultural. O drama da estrutura e antiestrutura termina no palco da cultura. Este fato me animou a passar do estudo das culturas tribais para as que possuam grandes tradiges no campo das letras. As pessoas da floresta, do deserto e da tundra reagem aos mesmos processos como as pessoas das cidades, das cortes e dos mercados. As revoluges e reformas podem ser estudadas empregarido-se a msma terminologa que se usa para o estudo dos produtos (outputs) culturis das grandes e estveis civilizages. O Processo Ritual urna tentativa de compreender algo desse processo social total de interago e interdependencia, bem como das disjunges, as vezes frutuosas, entre acontecimentos ordenados donde se origina o pensamento independente.

Introdugo

VCTOR TURNER
Chicago, malo de 1974

LEWIS HENRY MORGAN FEZ PARTE DA UNIVERSIDADE DE ROCHESTR desde a poca em que foi fundada. Ao morrer, legou Universidade manuscritos, biblioteca e recursos para a instituigo de urna Faculdade para mogas. Exceto urna ala a que foi dado o nome dele, e pertence ao atual edificio da Residencia Feminina, sua figura ficou sem um marco comemorativo na Universidade, at que as Conferencias "Lewis Henry Morgan" tiveram inicio. Estas Preleges devem-se a urna feliz combinago de circunstancias. Em 1961, as familias de Joseph R. e Joseph C. Wilson fizeram urna doago Universidade, para ser utilizada parcialmente na promogo das ciencias sociais. O Professor Bernard S. Cohn, na poca Chefe do Departamento de Antropologa e de Sociologa, sugeriu que a criago das Conferencias seria urna homenagem oportuna a um grande antroplogo, e representara adequado us para parte da doago. Tinha ele o apoio e a assistncia do Diretor (mais tarde, Reitor) McCrea Hazlett, do Diretor Arnold Ravin, e do Diretor Adjunto R. J. Kaufmann. Os detalhes relativos as Conferencias foram elaborados pelo Professor Cohn e demais membros de seu Departamento. As "Conferencias Morgan" foram planejadas, inicialmente, para constiturem tres series anuais, em 1963, 1964 e 1965, a seren continuadas se as circunstancias assim o permitissem. Julgou-se conveniente, no principio, que cada serie tratasse de um aspecto Particularmente significativo da obra de Morgan. Assim sendo, as Conferencias do Professor Meyer Fortes, em 1963, versaram sobre parentesco; o Professor Fred Eggan dedicou atengo ao '"dio americano e o Professor Robert M. Adams examinou urna aceta particular do desenvolvimento da civilizago, concentran-se na sociedade urbana. As Conferencias do Professor Eggan as do Professor Adams foram publicadas em 1966; as do Proes sor Fortes devem ser publicadas em 1969.

As Conferencias do Professor Turner consideraran! reas nao abordadas extensamente por Morgan, e, nesta reviso, levou a explorago alm do que tinha feito primitivamente. Assim procedendo, isto , apresentando ao mesmo tempo a pesquisa acabada e sugestivas investigages, o Professor Turner apreendeu com xito o espirito do modo de enfoque de Morgan, espirito que as "Conferencias Morgan" tm por finalidade perpetuar. Como aconteceu, na verdade. tambm em anos anteriores, a visita do Professor Turner propiciou muitas ocasies para trocas infornrais d idia's com diversos xpoerfts' da 'Cngregago e com estudantes. Todos aqueles que participaran! dlas, lembrarse-o com agrado da contribuigo do Professor Turner para a vida do Departamento, enquanto durou sua estada na Universidade. Suas conferencias originis, em que este livro se baseia, foram pronunciadas na Universidade de Rochester, de 5 a 14 de abril de 1966.

Prefacio

ALFRED HARRIS
Departamento de Antropologa Universidade de Rochester

Os CONFERENCISTAS MORGAN, EM NMERO SEMPRE CRESCENTE, devem, sem dvida, sentr-se entusiasmados, quando se lembrarem dos dias passados na Universidade de Rochester, em que foram regiamente recebidos pelo Professor e pela Senhora Alfred Harris, alm de seus hospitaleiros colegas, mas tambm interpelados e (algumas vezes) defendidos por um grupo de perspicazes estudantes, dotados daquela vivacidade que seria de esperar ver neles em um dia primaveril. Sinto-me profundamente agradecido a ambos, estudantes e professores, por muitas valiosas stigestes, que incorporei a este livro. Inclu tres das quatro "Conferencias Morgan" formando os tres primeiros captulos do livro. Em lugar da outra conferencia, mais adequada a urna monografa sobre o simbolismo do ritual de caga ndembo, que tenho em preparago, acrescentei deis captulos. Referem-se primordialmente as nSfes de "liminaridade" e de "communitas", levantadas no Captulo III deste livro. O livro divide-se em duas partes principis. A primeira trata principalmente da estrutura simblica do ritual ndembo e dos aspectos semnticos daquela estrutura; a segunda, comegando mais ou menos na metade do terceiro captulo, procura explorar algumas das particularidades sociais, mais que as simblicas, da fase liminar do ritual. Foi dada particular atengo a urna modalidade "extra"-estrutural, ou "meta"-estrutural do inter-relacionamento social, que denomino "communitas". Alm disso, exploro associages que foram acentuadas fora da antropologa na j .atura, na filosofa poltica e na prtica de religies complexas, universalistas" entre "communitas", marginalidade estrutural e inf erioridade estrutural. S 2" grato ao falecido Professor Alian Holmberg, ento Chefe do m Apartamento de Antropologa, em Cornell, por ter reduzido "a carga docente enquanto escrevia as "Conferencias Morgan",

e a meu amigo Bernd Lambert por ter-se encarregado de varias de minhas aulas durante esse perodo. A reviso das "Conferencias Morgan" e a redago dos novos captulos foram realizadas quando eu era membro da Sociedade de Humanidades, na Universidade de Cornell. Gostaria de agradecer ao Professor Max Black, Diretor e dirigentes da Sociedade, pela oportunidade a mim concedida, liberando-me do ensino e das tarefas administrativas, a fim de que pudesse desenvolver as linhas de pensamento i n i c i a d a s na ltima "Conferencia Morgan". O estilo de pensamento, brilhante embora sobrio, do Professor Black, sua sutileza, afabilidade e simpata foram ddivas desse ano de trabalho. Em acrscimo, e de maneira muito especial, foi sob es auspicios da Sociedade que pude realizar um seminario interdisciplinar com estudantes de todos os niveis de aprendizagem e professores de diversos departamentos, no qual consideramos muitos dos problemas de "limiares, transiges e limites" no ritual, no mito, na literatura, na poltica, e em idias e prticas utpicas. Algumas das conclusoes do seminario influenciaram os dois ltimos captulos do livro; outras produziro frutos mais tarde. Dirijo meus mais calorosos agradecimentos a todos os membros do seminario, por suas contribuiges crticas e criadoras. Pela dedicada e especializada ajuda de secretaria, durante as varias fases do empreendimento, gostaria de agradecer a Carolyn Pfohl, a Michaeline Culver e a Helen Matt, da administrago do Departamento de Antropologa, e a Olga Vrana e a Betty Tamminen, da Sociedade de Humanidades. Como sempre, o apoio e a assistncia de minha mulher foram decisivos, no papel de redatora e incentivadora.

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Sumario
Introdufo Edifo Brasileira, 5 Introdfo, 7 Prefacio, 9

1. PLANOS DE CLASSIFICACO EM UM RITUAL DA VIDA E DA MORTE, 13 2. Os PARADOXOS DA GEMELARIDADE NO RITUAL NDEMBO, 61


3. LIMINARIDADE E "COMMNITAS", 116

4. A "CoMMUNiTAs". MODELO E PROCESSO, 160 VCTOR W. TURNER


Malo de 1968. 5. HUMAN1DADE E HlERARQUIA. A LIMINARIDADE DA

ELEVAQO E DA REVERSAD DE "STATUS", 201 Bibliografa, 246

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Planos de Classificagao em um Ritual da Vida e da Morte


MORGAN E A RELIGIAO
DIZER EM PRIMEIRO LUGAR QUE PARA MIM, BEM

como para muitos outros, Lewis Henry Morgan foi um dos guias de meus dias de estudante. Tudo aquilo que escreveu trazia a marca de um espirito apaixonado e cristalino. Porm, aceitando o encargo de proferir as "Conferencias Morgan" para o ano de 1966, senti-me imediatamente conscio de urna profunda desvantagem, que poderia parecer mesmo parausante. Morgan, anda que tivesse registrado fielmente mitas cerimnias religiosas, tinha acentuada averso a dar ao estudo da religio a mesma penetrante atenco que devotou ao parentesco e poltica. No entanto, as cren?as e prticas religiosas constituan! o ssnto principal de minhas palestras. Duas cita?6es salientam especialmente a atitude de Morgan. A primeira tirada de sua fecunda obra clssica Acient Soety (1877): "O desenvolvimento das dlas religiosas est cercado por to intrnsecas dificuldades que poder vir nao receber nunca urna explcacao plenamente satisfatria. A religio ocupa-se to extensamente com a natureza imaginativa e emocional, por consegunt cm aqueles elementos certos do conhcimento, que todas as reigioes primitivas sao grotescas e, at cert ponto, "iinteligrveis" (p- 5). A segunda consiste em urna passagern pertencente ao estudo erudito sobre a religio de
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"Handsome Lake", de autora de Merle H. Deardorff (1951). A referencia, feita por Morgan, sobre o evangeIho sincrtico de "Handsome Lake", no livro League of the Ho-de-no-sau-nee or Iroquois, baseou-se em um conjunto de anotacoes feitas pelo jovem Ely Parker (um indio sneca 4 que, mais tarde, tornou-se secretario militar do general Ulysses S. Grant), representando textos e traduco dos relatos do neto de Good Message, de Handsome Lake, em Tonawanda. Segundo palavras de Deardorff, "Morgan seguiu fielmente as anotages de Ely, relatando aquilo que Jimmy Johnson, neto do profeta, disse, mas desviou-se largamente dos comentarios de Ely sobre a narrativa e acompanhamento do cerimonial" (p. 98. Veja-se tambm William Fenton, 1941, p. 151-157). A correspondencia entre Morgan e Parker mostra que se Morgan tivesse mais cuidadosamente dado ouvidos a Ely, poderia ter evitado a crtica geral sobre o seu "League", feita pelo indio sneca, quando o leu: "Nao ha nada realmente errado no que ele diz, mas tambm nao o certo. Na realidade, ele nao entende daquilo sobre o que est falando". Vejamos, ento, o que o indio sneca "na realidade" quer dizer com essas extraordinarias observares, que parecem ser dirigidas ao trabalho de Morgan sobre os aspectos religiosos, mais do que os polticos, da cultura do povo roques. Para mim, os comentarios de sneca referem-se desconfianza de Morgan sobre o "imaginativo e o emocional", sua relutncia em admitir que a religio tem um importante aspecto i racional, e sua cren?a em que tudo quanto aparece como "grotesco" conscincia "evoluda" de um sabio do sculo XIX deve ser, ipso {acto, em grande parte "ininteligveis". Tambm denunciam nele urna relutncia declarada, talvez podendo ser considerada como incapacidade, para fazer aquela explora?o emptica da vida religiosa dos iroqueses, o que seria urna tentativa para apreender e mostrar aquilo que Charles Hockett chamou de "viso interior" de urna cultura alheia. Tal procedi1 Sneca: parte do povo indio roques, habitante da regio a oeste de Nova lorque. Nota do tradutor.

ment teria podido tornar compreensveis muitos dos componentes e i n t e r - r e l a ? 6 e s aparentemente bizarros dessa cultura. Sem dvida, Morgan poderia ter meditado com benfico resultado as palavras de Bachofen (1960), dirigidas a ele numa carta: "Os estudiosos alemaes propem fazer com que a antigidade seja inteligvel, medindo-a de acord com as conceptees populares da poca atual. Eles so vem a si mestnos as criagoes do passado. Penetrar at a estrutura de urna mentalidade diferente da nossa urna tarefa ardua" (p. 136). A respeito desta nota, o Professor Evans-Pritchard (1965b) comentou recentemente que ", fora de dvida, urna tarefa ardua, especialmente quando estamos lidando com assuntos dificis, como a magia,primitiva e a religio, nos quais demasiado fcil, ao traduzir as concepgoes dos povos mais simples para as nossas prprias, transplantar nosso pensamento para o deles" (p. 109). Gostaria de acrescentar, a ttulo de condigno neste ponto, que, em materia de religio, assim como de arte, nao ha povos "mais simples", ha somente povos com tecnologas mais simples do que as nossas. A vida "imaginativa" e "emocional" do homem sempre, e em qualquer parte do mundo, rica e complexa. Faz parte de minha incumbencia exatamente mostrar quanto pode ser rico e complexo o simbolismo dos ritos tribais. Tambm nao inteiramente correto falar da "estrutura de urna mentalidade diferente da nossa". Nao se trata de estruturas cognoscitivas diferentes, mas de urna idntica estrutura cognoscitiva, articulando experiencias culturis muito diversas. Com o desenvolvimento da psicologa profunda clnica, Pr um lado, e do campo de trabalho profissional em antropologa, por outro, m u i t o s produtos daquilo que Morgan chamou "natureza imaginativa e emocional" come ?aram a ser olhados com respeito e atengo, sendo Pesquisados com rigor cientfico. Freud encontrou as antasias dos neurticos, as ambigedades das imagens ni ncas, no humor e no trocadilho, as enigmticas expessoes oris dos psicticos, indicacoes sobre a estrura da psique normal. Lvi-Strauss, em seus estudos
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sobre os mitos e rituais das sociedades pr-letradas, captou, assim afirma ele, na estrutura intelectual subjacente dessas sociedades propriedades similares quelas encontradas nos sistemas de determinados filsofos modernos. Muitos outros estudiosos e dentistas, da mais impecvel estirpe racionalista, desde a poca de Morgan, acharam que valia a pena dedicar dcadas inteiras de sua vida profissional ao estudo da r e 1 i g i o. Basta citar Jfepenas Tylor, Robertson-Smith, Frazer e Herbert Spencer; Durkheim, Mauss, Lvy-Bruhl, Hubert e Herz; van Gennep, Wundt e Max Weber, para confirmar o que digo. Trabalhadores de campo em antropologa, incluindo Boas e Lowie, Malinowski e Radcliffe-Brown, Griaulle e Dieterlen, e um grande nmero de seus coetneos e sucessores, trabalharam intensamente na rea do ritual pr-letrado, fazendo observaces meticulosas e exatas sobre centenas de atos, e registrando com dedicada atenco textos vernculos de mitos e preces, tomados de especialistas em religio. A maioria desses pensadores tomou a si a implcita posigo teolgica de tentar explicar, ou invalidar por meio de explicares, os fenmenos religiosos, considerando-os produto de causas psicolgicas ou sociolgicas dos mais diversos, e at confutantes, tipos, negando-lhes qualquer origem sobre-humana; mas ningum negou a extrema importancia das crencas e prticas religiosas para a manutencao e a transformaso radical das estruturas humanas, tanto sociais quanto psquicas. Talvez o leitor se sinta aliviado eom a declaraco de que nao tenho a inten?o de penetrar na arena teolgica mas me esfor?arei, tanto quanto possvel, em limitar-me a urna pesquisa emprica de aspectos da religio e, de modo particular, em descobrir algumas das propriedades do ritual africano. Mais exatamente, tentare!, com temor e tremor, devidb minha alta estima por sua grande erudieo e reputago em nossa disciplina, opor-^me rao ocasional desafio de Morgan a posteridade, e demonstrar que os modernos antroplogos, trabalhando com os melhores instrumentos conceptuis legados a eles, podem agora tornar
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inteligveis muitos dos enigmticos fenmenos religiosos das sociedades pr-letradas.


ESTUDOS DOS RITOS DA FRICA CENTRAL

Comecemos pelo atento exame de alguns rituais executados pelo povo em cujo meio fiz um trabalho de campo durante dois anos e meio, o povo ndembo, do noroeste de Zmbia. Tal como os iroqueses de Morgan, o povo ridembo rnatnlinear, e combina a agricultura de enxada com a ca?a, qual atribuem alto valor ritual. O povo ndembo pertence a um grande conglomerado de culturas da frica Central e Ocidental, que associam considervel habilidade na escultura em madeira e as artes plsticas a um complicado desenvolvimento do simbolismo ritual. Muitos desses povos tm ritos complexos de iniciaco, com longos perodos de recluso na floresta, para treinamento de novaos em costumes esotricos, freqentemente associado presen?a de dancarinos mascarados, que retratam espirites dos ancestrais ou deidades. Os ndembos, juntamente com seus vizinhos do norte e do oeste, os lundas de Katanga, os luvales, os chokwes e os luchazis, do grande importancia ao ritual; seus vizinhos do leste, os kaondes, os lambas e os Has, embora pratiquem muitos rituais, parecem ter menos variedades distintas de ritos, um simbolismo menos exuberante, e to possuem cerimnias de circunciso dos, meninos. .uas diversas prticas religiosas sao menos estreitamente unidas urnas as outras. Quando iniciei o trabalho de campo entre os ndembos, t'iabalhei dentro da tradico estabelecida por meus preaecessores, na utilizacao do Instituto Rhodes-Livingstone Para Pesquisa Sociolgica, localizado em Lusaka, capital administratva da Rodsja do Norte (atual Zmbia), Este rf- ma's an*'g instituto de pesquisa estabeleeido na a-ica britnica, fundado em 1938, destinado a ser um '^ ' onde problema do estabelecirnento de relaces permanentes e satisfatrias entre nativos e nao-nativos

devia constituir objeto de especial estudo. Sob a dire?ao de Godfrey Wilson e de Max Gluckman, e, mais tarde, de Elizabeth Colson e de Clyde Mitchell, os pesquisadores do Instituto fizeram estudos de campo sobre os sistemas polticos e jurdicos tribais, sobre relances de casamento e de familia, aspectos da urbanizaco e migra^oes de trabalho, estrutura comparada das aldeias e sistemas ecolgicos e econmicos tribais. Realizaram tambm boa quantidade de trabalho no tragado de mapas e classificaram todas as tribos da regio que era, na poca, a Rodsia do Norte em seis grupos, classificac.o feita de acord com seus sistemas de descendencia. Conforme Lucy Mair (1960) indicou, a contribuico do Instituto Rhodes-Livingstone para o delineamento de planos de aco, tal como a de outros Institutos de Pesquisa na frica inglesa, nao se reduz " prescrico da ago apropriada a situares especficas", mas "principalmente anlise de situacoes, realizada de maneira tal que seus autores pudessem ver mais cteramente as forgas com as quais estavam lidando" (p. 89-106). Entre essas "forcas", o ritual tinha urna propriedade muito baixa, no tempo em que comecei o trabalho de campo. Realmente, o interesse pelo ritual nunca foi grande entre os pesquisadores do Instituto Rhodes-Livingstone. O Professor Raymond Apthorpe (1961) assinalou que, das noventa e nove publicages do Instituto, at aquela poca, que tratavam de varios aspectos da vida africana durante os ltimos trinta ou mais anos, so tres tiveram por assunto o ritual (p. IX). Mesmo agora, cinco anos mais tarde, das trinta e urna publicares do Rhodes-Li- vingstone curtas monografas sobre aspectos da vida das tribos da frica Central somente quatro ocupavam-se principalmente com o ritual, sendo duas dlas de nossa autora. Evidentemente, a atitude de Morgan com relago as "religies primitivas" anda persiste em muitas reas. No entanto, o primeiro diretor do Instituto, Godfrey Wilson, demonstrou profundo interesse pelo estudo do ritual africano. Sua mulher Monica Wilson (1954), com quem fez intensas pesquisas de campo sobre a re18

ligio do povo nyakyusa, da Tanzania, e que publicou notveis estudos sobre rituais, escreveu a propsito: "Os rituais revelam os valores no seu nivel mais profundo.. . os homens expressam no ritual aquilo que os toca mais intensamente e, sendo a forma de expresso convencional e obrigatria, os valores do grupo que sao revelados. Vejo no estudo dos ritos a chave para compreender-se a constituico essencial das sociedades humanas" (p. 241). Se o ponto de vista de Wilson correto, como acredito que seja, o estudo dos ritos tribais figurara certamente no espirito da aspirago inicial do Instituto, que era "estudar... o problema do estabelecimento de relacoes permanentes satisfatrias entre nativos e nao-nativos", porque "rlaces satisfatrias" dependem de urna pro funda compreenso mutua. Em contraste, o estudo da religio tem sido importante no trabalho dos Institutos de Pesquisa situados na frica Oriental e Ocidental especialmente no perodo anterior conquista da independencia poltica e logo aps a obtengo desta. as ciencias sociais, em geral, acredito, est-se difundindo o recpnhecimento de que as crengas e prticas religiosas ,so algo mais que "grotescas" ref lexes ou expressoes ,-deJ relacionamentos econmicos, polticos e sociais. Antes, ,estao chegando a ser consideradas como decisivos in\ ;dcios para a compreenso do pensamento e do senti-mento das pessoas sobre aquelas relages, e sobre os ambientes naturais e sociais em que operam.
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O TRABALHO DE CAMPO PRELIMINAR SOBRE O RITUAL NDEMBO

JTenho-me detido nesta "ausencia de musicalidade relifgjosa" (para fazer uso da expresso que Max Weber ,.aplicpu a si mesmo, bastante injustificadamente) dos fpntistas sociais de minha gerago a respeito dos estu||K.S religiosos, principalmente para sublinhar a relutncia 4e sent, no inicio, em coligir dados sobre os ritos. s prirrieiros nove meses de t r a b a l h o de campo,
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acumulei considerveis quantidades de dados sobre parentesco, estrutura da aldeia, casamento e divorcio, orgamentos individuis e familiares, poltica tribal e de aldeia, e sobre o ciclo da agricultura. Preenchi meus cadernos de anotagoes com genealogas; tracei as plantas das chocas da povoagao e coletei material de recenseamento; vagueei pelos arredores para conseguir termos de parentesco raros e descuidados. Sentia-me, no entanto, insatisfeito, como se estivesse sempr do lado de fora lhando para dentro, mesmo quando passei a fazer uso do vernculo sem nenhuma dificuldade. Isto porque percebia constantemente o batuque dos tambores do ritual na vzinhanga do meu acampamento, e as pessoas que conhecia despediam-se freqentemente de mim para passar dias assistindo a ritos de nomenclatura extica, tais como kula, Wubwang'u, e Wubinda. Finalmente, fui forgado a reconhecer que, se de fato pretenda conhecer o que significava at mesmo um mero segmento da cultura ndembo, teria de vencer meus prprios preconceitos contra o ritual e comegar a investig-lo. E' verdade que ja no inicio de minha estada entre os ndembos tinha sido convidado por eles para assistir as freqentes realizares dos ritos de puberdade das mofas (Nkang'a), e tentara descrever o que hvia visto com a exatido possvel. Mas urna coisa observar as pessoas executando gestos estilizados e cantando caneces enigmticas que fazem parte da prtica dos rituais, e outra tentar alcangar a adequada compreensao do_que^ os movimentos e as palavras significam para e/as) Para obter esclarecimientos recorr inicialmente a Agenda Distrital, urna cmpilago de apontamentos feitos ao acaso pelos oficiis da Administrago da Colonia sobre faros costms que Ins parteceram interessantes. La encntrei breves relatos sobre crnga dos ndembos em um Deus Supremo, hi espritus ancestrais e sobre diferentes especies de ritos. Alguns errri relatos de crirrtnias realmente assistidas, mas a maioria deles era bascada em informagoes d embregados do governo local, tais como mensageirbs e funcionarios de origen! ndembo.
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'Ejes, entretanto, difcilmente forneciam explicages satisfatrias sobre os longos e complicados ritos referentes i puberdade que tinha visto, embora me tenham dado agumas informages preliminares relativas a outras especies de ritos que eu anda nao tinha visto. '' Meu prximo passo fi conseguir urna serie de entrevistas com um chefe chamado Ikelenge, excepcionalfinte bem dotado e que possua um slido conhecimento a lngua inglesa. O chefe Ikelenge logo entendeu o que u quera e deu-me um inventario dos nomes mais importantes de rituais ndembos, com um breve relato sobre : |s principis caractersticas de cada um deles. Logo desIfebri que os ndembos nao s ressentiam, absolutamente, eom o interesse de um estrangeiro por seu sistema ritual, e estavam perfeitamente. preparados para admitir a presenga em suas celebragoes de qualquer pessoa que traHsse as crengas deles com o devido respeito. Pouco tempo depois o chefe Ikelenge convidou-me a assistir e'xecugo de um ritual pertencente ao culto dos cagadores eferh armas de fogo, Wuyang'a. Durante essa execugo eliftpreendi que ao menos um conjunto de atividades <@fnmicas, a saber, a caga, dificilmente seria entendido s ||Jn a aquisifao do idioma ritual pertinente caga. A a|umulagao dos smbolos, simultneamente indicativos do ff er ^e ca?ar e da virilidade, deu-me tambm a enten;; d^ varias caractersticas da organizagao social ndembo, fpeeialmente a acentuagao da importancia dos elos con^flIPprnes entre os parentes masculinos nutria sociedade ^trilnear, cuja continuidade estrutural era feita atravs fff mulheres. Nao quero deter-me agora no problema ^|>Mtualizago do papel dos sexos, mas apenas salienf j|! Q'ue certas, regularidades observadas na anlise dos '"pifos numricos,, tais eomo genealogias da aldeia, rei|teamentos e registros sobre a sucessao nos cargos e |ff jeiian?a de.propriedades, so se tornavam plenamente *S^K 'Ve'S a 'uz ^e va'ores encarnado se expressos em "If301?5 as cerimnias rituais. . t3via lmites, contudo, para o auxilio que o chefe ^nge estava capacitado a oferecer-me. Em primeiro > r- sua posigo e os mltiplos papis inerentes a ela

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impediam-no de deixar a aldeia principal por muito tempo e .suas relaces com a misso local, de importancia poltica para ele, eram excessivamente delicadas, numa situaao em que os mexericos espalhavam as novidades com toda a rapidez, nao Ihe permitindo o luxo de assistir a muitas cerimnias pagas. Alm disso, minha prpria pesquisa estava rpidamente se transformando numa investigac.o microssociolgica do processo evolutivo da vida da aldeia. Mudei meu acampamento da capital do 'chefe para um conglomerado de aldeos comuns. Ali, com o passar do tempo, minha familia veio a ser aceita mais ou menos como urna parte da comunidade local, e, com os olhos abertos para a importancia do ritual na vida dos ndembos, minha mulher e eu come?amos a perceber muitos aspectos da cultura ndembo que tinham sido previamente invisveis para nos por causa de nossos antoIhos tericos. Como disse Nadel, olfatos mudam com as teoras, e novos fatos produzem teoras novas. Foi mais ou menos nessa poca que li algumas observares no segundo artigo publicado pelo Instituto Rhodes-Livingstone, The Study of African Society, escrito, por Oodfrey e Monica Wilson (1939), no sentido de que, em muitas sociedades africanas onde o ritual anda um assunto de importancia, ha um certo nmero de especialistas religiosos aptos a interpret-lo. Mais tarde! Monica Wilson (1957) escreveria que "qualquer anlise que nao se baseasse em alguma tradu9o dos smbolos usados pelo povo daquela cultura estara exposta a sus' peitas" (p. 6). Comecei, entao, a procurar especialista: em ritual ndembo, para gravar textos interpretativos for necidos por eles sobre ritos que pude observar. Noss liberdade de acesso as execufes e a exegese foi, sen dvda, ajudada pelo fato de que, tal como acontece cort a maior parte dos antroplogos em trabalho de campo distribuamos remedios, enfaixvamos ferimentos, e, n< caso de minha mulher (que filha de mdico e mai corajosa nestes assuntos do que eu), injetvamos sor<| em pessoas mordidas por cobras. Urna vez que muito| dos cultos rituais dos ndembos sao realizados em favo1
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de doentes, e ja que os remedios europeus sao vistos como possuindo urna eficacia mstica da mesma qualidade que os daquele povo, porm com urna potencia hiaior, os especialistas em curas comefaram a olhar-nos como colegas e a acolher com satisfa?ao nossa presenca as suas atividades. Lembro-me de ter lido. as Missionary Trovis do Dr. Livingstone que ele fazia questao de consultar os curadores locis sobre a condic.o dos pacientes e com isto contribuiu para o bom relacionamento com urna parte influente da populacho da frica Central. Seguimos seu exemplo, e isto pode ter sido urna das razes pelas quais n'os foi permitido assistir as fases esotricas de varios fftos e obter o que o inqurito-cruzado sugera como sendo interpretares razoavelmente dignas de confiaba de muitos dos smbolos empregados nos rituais. Ao dizer "dignas de confianca" quero dar a entender naturalmente que as interpreta^es eram, em conjunto, reciprocamente consistentes. Poder-se-ia de fato dizer que essas interpretaces constituem a hermenutica padronizada da cultura ndembo, e nao de associac.oes livres ou opinioes excntricas de individuos. Tambm recolhemos interpretares de ndembos que nao eram especialistas em rituais, ou, pelo menos, nao eram especialistas no ritual diretamente em exame. A maioria dos ndembos, tanto homens quanto mulheres, eram membros pelo menos de urna associaco d culto e difcilmente se encontrava urna pessoa mais velha que nao fosse um "expert" no conhecimento secreto de mais de um culto. Deste modo, construmos gradualmente um corpo de dados de observado e de comentarios interpretativos que, ao ser submetido an''f6, comecou a mostrar certas regularidades, das quais 01 possvel extrair urna estrutura, expressa num conjunto de padres. Mais adiante consideraremos algumas ,as caractersticas desses padres.' ;,purante todo esse tempo, nunca pedimos que um -1,,ual fosse realizado exclusivamente para nosso proveito tr jetltpolgico; nao somos favorveis a semelhante reprea cao teatral artificial. Mas nao havia carencia de
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representases espontneas. Urna de nossas maiores dificuldades era freqentemente decidir, em determinado da, a qual de duas ou mais execuc.5es assistiramos. A medida que nos tornvamos cada vez mais parte do cenado da aldeia descubrimos que com grande freqncia as decises de executar o ritual estavam relacionados com crises na vida social das aldeias. Escrevi albures, com minucias, sobre a dinmica social das cerimnias rituais, e nao pretendo fazer mais do que urna men?o passageira a elas nestas conferencias. Aqui lembrarei apenas que, entre os ndembos, existe urna conexo estreita entre conflito social e ritual, nos nveis de aldeia e "vizinhanca" (termo que emprego para designar agrupamentos descontinuos de aldeias), e que a multiplicidade de situaces de conflito est correlacionada com urna alta freqneia de execuc.6es rituais. V"
ISOMA

atribuido cuja acepco remonta a alguma palavra primitiva, ou timo, muitas vezes um verbo. Os estudiosos rnostraram que em outras sociedades bantos este freqentemente um processo de estabelecer urna etimologa ficticia, dependente da similaridade do som mais que da derivacao a partir de urna origem comum. Nao obstante, para o prprio povo o processo constitu parte da "explicacao" de m smbolo ritual; e aqui estamos empenhados em descobrir "a viso interior ndembo", o modo cmo os ndembos sentem seu prprio ritual e o que pensam a respeito dele.

Razes para a realizaco do ritual Isoma


O Isoma (ou Tubwiza) pertence a urna classe (muchid) de rituais assim conhecidos pelos ndembos e identificados como "rituais das mulheres", ou "rituais de procria^ao", sendo urna subclasse dos "rituais dos espirites dos ncestrais, ou "sombras", termo que tom emprestado a Monica Wilson. A palavra ndembo usada para designar "ritual" chidika, que tambm significa "um compromisso especial" ou "urna obrigac.o". Isto se relaciona cbm a idia de que o individuo tem a obriga?ao de venerar as sombras dos ncestrais, porque, como dizem s ndembos, "nao foram elas que deram luz ou geraram voces?" Os rituais a> que me retiro sao de fato excutados porque pessoas ou grupos incorporados deixaram de essa obrigaco. Seja por sua prpria culpa ou corno representante de um grupo de parentes, acredita-se 9ue pessoa foi "apanhada" por urna sombra, como ize os ndembos, e atormentada por uma desgrana, izern Wjgada apropriada ao sexo a que pertence e a seu papel -?la'' A infelicidade adequada as mulheres consiste em guma forma de interferencia a capacidade de reproe"?ao da vtima. Em carter ideal, uma mulher que viva Paz cm seus companheiros e se lembre dos parentes rt ,. s dever casar-se e ser me de "crianfas espertas e ncantadoras" (tradu?So de uma expressao ndembo).

Meu principal objetivo neste capitulo explorar a semntica dos smbolos rituais no soma, um ritual dos ndembos, e construir, a partir de dados exegticos e de observado, um modelo da estrutura semntica desse simbolismo. Primeiramente, preciso- prestar multa atenc.o ao modo pelo qual os ndembos explicam seus prprios smbolos. Meu procedimento consistir em comec.ar pelos aspectos particulares e chegar generalizado, dando conhecimento ao leitor de cada passo ao longo do caminho percorrido. Irei agora examinar de perto urna especie de ritual que observe! em tres ocasies e para o qual tenno urna quantidade considervel de material interpretativo. Espero a indulgencia do leitor para o fato de ter que mencionar um grande nmero 'de termos vernaculares ndembos, porque urna importante parte da explicac.o dos smbolos dada pelos ndembos baseia-se nq estudo de etimologas de folk. A significagp de um dado smbolo muitas vezes, embora de modo algum invariavelmente, derivada pelos ndembos do nome a ele

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Mas urna mulher que seja rixenta ou membro de um outra norma igualmente desejada, a de que deveria congrupo dividido por brigas e que, simultneamente "estribuir com filhos para se tornarem simultneamente memqueceu a sombra [da me mora, da av materna ou de hros de sua aldeia matrilinear. qualquer outra ancestral matrilinear mora] no fgado E' interessante noar que sao as sombras de parenes [ou, como diramos nos, no 'corac.o']" corre o perigo fernininos marilineares direos as mes dos individuos de ter seu p o d e r procriaivo (Lusemu) "amarrado" ou avs maernas as sombras encarregadas de afligir (kukasild) pela sombra ofendida. as mulheres com disrbios reproduivos, o que conduz Os ndembos, que praticam a descendencia matrilinear esterilidade emporria. A maior pare dessas vtimas combinada com o casamento virilocal, vivem em aldeias es residindo com os maridos, quando os vaicnios depequeas e movis. O efeio desse arranjo que as cidem que foram apanhadas pela inferilidade ocasionada mulheres, atravs de quem as crianzas herdam a filiaco pelas sombras matrilineares. Elas foram apanhadas, assim primaria de linhagem e residencia, passam muio empo dizem os ndembos, porque "se esqueceram" daquelas somdo seu ciclo reproduivo as aldeias dos maridos e nao bras que nao so sao suas ascendentes diretas, mas amas dos parenes marilineares. Nao ha regra fixa, como bm as progenioras imedialas de seus parentes maternos, exise, por exemplo, enre os habitantes matrilineares das que formam o grupo central de membros das aldeias, ilhas Trobriand, segundo a qual os filhos das mulheres que nao sao as de seus maridos. Os ritos de cura, inque vivem sob essa forma de casamento devem ir residir cluindo o soma, tm como urna de suas funfes sociais as aldeias dos irmos de suas mes e de outros parenes a de "obrig-las a se lembrarem" dessas sombras que sao maernos, ao aingirem a adolescencia. Como conseqnos nodulos estruturais de urna-linhagem marilinear resicia disto cada casameno fecundo se transforma, enre; dene no local. A eserilidade que essas sombras acaros ndembos, em urna arena de lua surda entre o marido retam considerada emporria, podendo ser afasada de urna mulher e os irmos dla, e os irmos da me com a execufo dos ritos apropriados. Quando a mulher da esposa, com relac,ao a filiacjo residencial. Havendo se lembra da sombra que a aflige e, assim, do seu deverambm um estreio lago enre urna mulher e seus filhos, bsico de fidelidade aos seus parenes matrilineares, a iso significa habiualmente que, depois de um perodo nerdifo' sobre' sua ferilidade cessar. Rodera coninuar curio ou longo, a mulher acompanhar os filhos a sua vivendo com o marido, mas com urna vivida conscincia aldeia de filiac.o marilinear. Meus dados numricos a respeio do lugar onde se ,siua a lealdade fundamental sobre o divorcio enre os ndembos indicam que esses dla e dos seus filhos. A crise produzida por esta conndices sao os mais altos dentre todas as sociedades .tr.adicao entre as normas soluciona-se por meio de rituais marilineares da frica Cenral, para as quais exisem da- ricos em simbolismo e feriis em significado. dos quaniativos dignos de confianza, e todas tm altos ndices de divorcio. Ja que com o divorcio as mulheresj voltam aos seus parenes maternos e a foriiori aos A forma processual filhos que residem entre esses parentes num sentidoj real a continuidade da aldeia, aravs das mulheres, de- ritual Isoma participa, juntamene com outros cultos e pende da desconinuidade marial. Mas, enquano urna mulheres, de um mesmo perfil diacrnico ou forma mulher est residindo com o marido e com os filhos pe Prcessual. Em cada um deles, urna mulher sofre de queos, cumprindo assim a norma desejada de que rerturba56ef ginecolgicas. Em tal caso ou o marido ou mulher deve agradar ao marido, ela nao est cumprindo ^ Prente marilinear do sexo masculino procura um i 26 27

adivinho, que qualifica precisamente o tipo de afligo em que a sombra, como dizem os ndembos, "saiu da sepultura para apanh-la". Dependendo do tipo de ailiqao, o marido ou o prente masculino serve-se de um mdico (chimbuk), que "conhece os remedios" e os procedimentos rituais corretos para aplacar a sombra atormentadora, a fim de que atue como mestre de cerimonias no procedimento a ser realizado. Este mdico, ento, convoca outros mdicos para ajud-lo. Eles podem ser mulheres que ja passaram por situacao idntica no mesmo tipo de ritual e assim ganharam acesso ao culto de cura, ou homens ligados de perto por parentesco matrilinear, ou por afinidade a urna paciente anterior. Os pacientes (ayeji) podem ser considerados como "candidatos" qualidade de membros do culto, e os mdicos como seus "peritos". Acredita-se que as sombras atormentadoras (akish) tenham sido antigos peritos. A associac.o ao culto, deste modo, corta transversalmente a aldeia e a linhagem, colocando temporariamente em operagao o que pode ser chamado "urna comunidade de sofrimento", ou melhor, de "antigos sofredores" do mesmo tipo de afli?o que agora atinge a candidata doente. A associaco num culto como o /soma entrecorta at mesmo as fronteiras da tribo, porque membros de tribos cultural e! lingsticamente aparentadas como os luvales, chokwes e luchazis, tm autorizago de comparecer aos ritos Isoma' dos ndembos, na qualidade de peritos e, como tal, de cumprir tarefas rituais., O perito "mais velho" (muku-\ lumpi), ou "maior (weneni) geralmente um homem, mesmo para os cultos de mulheres, como o Isoma. Pois,j como acontece na maioria das sociedades matrilineares, enquanto a colocago social obtida atravs das mu Iheres, a autoridade fica as mos dos homens. Os cultos das mulheres tm a trplice estrutura diacrnica com que o t r a b a l h o de Van Gennep nos; familiarizou. A primeira fase, .chamada Ilembi, separa 3 candidata do mundo profano; a segunda, chamada Kan* kunka (literalmente, "na cabana de capm"), parcialmente; aparta-a da vida secular; enquanto a terceira, chamada)
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Ku-tumbuka, urna dan?a festiva, para celebrar o afastarnento da interdigo da sombra e a volta da, candidata vida normal. No Isoma, isto assinalado 'quando a candidata da luz urna crianza e chega a cri-la at o estgio dos primeiros passos. A exegese nativa dos smbolos O que foi dito o bastante a respeito dos ampios cenrios sociais e culturis do Isoma. Se quisermos penetrar agora na estrutura interna, das idias contidas neste ritual, temos de compreender como os ndembos interpretan! os seus smbolos. Meu mtodo assirn necessariamente o inverso daquele de inmeros estudiosos que comegam por extrair a cosmologa que freqentemente se expressa em termos de ciclos mitolgicos e, ento, passam a explicar rituais especficos como exemplos ou expresses de "modelos estruturais" que encontraram nos mitos. Os ndembos, porm, possuem muito poucos mitos e narrativas cosmolgicas ou cosmognicas. E', conseqentemente, necessrio comegar pela outra extremidade, com os blocos bsicos da cpnstru?ao, as "molculas" do ritual. A estas chamarei "smbolos" e por enquanto evitarei envolver-me no longo debate sobre a diferenga entre os conceitos de smbolo, signo, e sinal. Ja que esta aproximacao preliminar parte de urna perspectiva "de denfro", facamos antes do mais um exame dos costumes dos ndembos. J; No contexto ritual ndembo, quase todo objeto usado, jpdo gesto realizado, todo canto ou prece, toda unidade e espaco e de tempo representa, por convicgo, c , oisa diferente de si mesmo. E' mais do que parece ser > freqentemente, muito mais. Os ndembos tm nofo da UH5ao simblica ou expressiva dos elementos rituais. Um Cemento ritual, ou unidade, , chamado Mjikijilu. LiteralWente esta palavra significa "ponto de referencia", ou marca". Seu timo ku-jikijila, "marcar urna pista", faa urna marca em urna rvore com urna machadinha
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ou quebrando um de seus galbos. Este termo extrado originariamente do vocabulario tcnico da caga, profisso fortemente envolvida por prticas e crengas rituais. Chijikijilu tambm significa urna "baliza", urna destacada caracterstica da paisagem, tal como um formigueiro, que separa as hortas de um homem ou o dominio de um chefe do de outro. O termo tem assim dois significados principis : 1) como marca de calador, representa um elemento de ligago entre um territorio conhecido e outro, desconhecido, pois atravs de urna serie dessas marcas que o calador encentra o caminho de volta da mata estranha para a aldeia que Ihe familiar; 2) tanto como "marca" e quanto como "baliza" transmite a nogo de algo estruturado e ordenado, opondo-se ao nao estruturado e catico. Ja por isso seu uso ritual metafrico: liga o mundo conhecido dos fenmenos sensoriais perceptveis com o reino desconhecido e invisvel das sombras. Torna inteligvel o que misterioso, e, tambm, perigoso. Um chijikijilu tem, alm disso e simultneamente, um componente conhecido e um desconhecido. At certo ponto pode ser explicado, e ha principios de explicago a disposigao dos ndembos. Tem um nome (ijina) e urna aparncia (chimwekeshu), e ambos sao utilizados como pontos de partida para a exegese (chakulumbwishu).

estar relacionado nogao de "esquecimento" das ligagSes niatrilineares de urna pessoa. Discutindo a significago da palavra Isoma, diversos informantes mencionaram o termo [tifwisha, como indicativo da condigo da paciente. Lufwisha um nome abstrato, derivado de ku-fwisha, por sua vez derivado de ku-fwa "morrer". Kufwisha tem ao mesmo tempo um sentido genrico e um especfico. Genricamente, significa "perder parentes por morte", especficamente, "perder filhos". O nome lufwisha significa tanto "dar nascimento a urna crianga mora" quanto "morte constante de criangas". Disse-me um informante: "Se sete criangas morrem, urna depois da outra, isto lufwisha". Isoma , por conseguinte, a manifestago de urna sombra que faz a mulher dar luz urna crianga morta ou leva morte urna serie de criangas.

A mscara "Mvweng'i"
A sombra que emergiu no Isoma manifesta-se tambm de outros modos. Julga-se que aparece nos sonhos da paciente, vestida como um dos seres mascarados que participam dos ritos de circunciso dos meninos (Mukanda). As mulheres acreditam que estes seres mascarados, conhecidos como makishi (no singular, ikishi), sejam sombras de antigos ancestrais. O que conhecido como Mvweng'i usa um saiote de fibra (nkamb) como os novigos durante seu retiro depois da circunciso e urna indumentaria consistindo em muitos cordoes feitos de tecido de casca de rvores. Carrega urna sineta de caga (mpwambu) usada pelos cagadores para se manterem em contato uns com os outros na mata densa ou para chamar Os caes. E' conhecido como "av" (nkak),. aparece dePis que as feridas da circunciso cicatrizaran! e grandemente temido pelas mulheres. Se urna mulher toca no Mvweng'i, acredita-se que abortar. Um canto tradicionalentoado quando este ikishi aparece pela primeira perto da cabana onde os novigos esto reclusos na diz o seguinte:
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O nome "Isoma"
Para comegar, o prprio nome soma tem um valor simblico. Meus informantes derivam-no de ku-somoka, "escorregar do lugar ou fixar". Esta designago tem mltipla referencia. Em primeiro lugar, refere-se condigo especfica que os ritos tem por finalidade dissipar. Urna mulher "apanhada no Isoma" , muito freqentemente, urna mulher que teve urna serie de gestages malogradas ou abortos. Julgam que a crianga nascitura "escorregou", antes que chegasse a sua hora de nascer. Em segundo lugar, ku-somoka significa "abandonar o grupo a que o individuo pertence", talvez tambm com a mesma implicago de prematuridade. Este tema parece
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Kako nkaka eyo nkaka eyo nkaka yetu nenzi, eyo eyo, nkako yetu, mwanta: "Av, av, nosso av chegou, nosso av, o chefe;" mbwemboye mbwemboye yawume-e. "a glande do penis, a glande est seca, mwang'u watulemba mbwemboye yawumi. urna disperso dos espirites tulemba, a glande est seca".

A cantiga representa para os ndembos urna concentraco do poder masculino, porque nkaka tambm significa "um possuidor de escravos", e um "chefe" possui muitos escravos. A secagem de glande um smbolo da aquisigo . de um auspicioso "status" masculino de adulto e urna das finalidades dos ritos de circunciso Mukanda, porque a glande de um menino nao circuncidado considerada mida e podre e portante de mau agouro, dentro do prepucio. Os espirites tulemba, exorcizados e aplacados em outro tipo de ritual, fazem as crianzas adoecerem e definharem. Mvweng'i expulsa-os dos meninos. Acredita-se que as cordas do seu traje sirvam para "amarrar" (kukasila) a fertilidade feminina. Em resumo, ele o smbolo da masculinidade amadurecida na sua mais pura expressao e seus atributos de cac.a acentuam mais isto e, como tal, perigoso para as mulheres no seu papel mais feminino, o de me. Ora, na figura de Mvweng'i que a sombra aparece vtima. Mas aqui ha certa ambigidade de exegese. Alguns informantes dizem que a sombra se identifica com o Mvweng'i, outros, que a sombra (mukishi) e o mascarado (ikishi) operam em conjunto. Os ltimos dizem que a sombra desperta o Mvweng'i e atrai seu auxilio para afligir a vtima. E' interessante notar que a sombra sempre o espirito de urna prenla morta, enquanto o Mvweng'i como a masculinidade personificada. sse motivo que estabelece a ligaso do disturbio reprodutivo com a identifica?o de urna mulher a um tipo de masculinidade, encontrado em outros pontos do ritual ndembo. Ele foi mencionado por mim em conexao com os ritos de cura de perturba?5es menstruais, em The Forest of Symbols (1967): "Por que, ento, a paciente identificada com derramadores

e sangue, do sexo masculino? O campo (social) desses objetos simblicos e os elementos do comportamento sugerem que os ndembos se,ntem que a mulher, perdndo o sangue menstrual e nao podendo gerar enancas, est ativamente renunciando ao papel que dla se espera como mulher casada e madura. Ela est se comportando como uni assassino masculino (ou seja, um cacador, ou homicida) e nao como urna nutridora feminina" (p. 42. Para una anlise mais completa dos ritos curativos Nkala, veja-se Turner, 1968, p. 54-87). A situagao no Isoma nao diferente. Deve-se notar que nesses cultos a vtima freqlentemente identificada em varios episodios e simbolismos, com a sombra que a atormenta, podendo-se, legtimamente afirmar que est sendo perseguida por urna parte ou aspecto de si mesma, projetada na sombra. Assim, segundo o pensamento ndembo, urna vtima curada no Isoma tornar-se- ela prpria urna sombra atormentadora depois da morte, e como tal se identificar com o poder masculino Mvweng'i, ou ficar estreitamente reunida a ele. , Mas seria, todava; errneo considerar as crencas do Isoma apenas como expresso do "protesto masculino". Esta atitude inconsciente pode bem ser mais importante nos ritos Nkula, do que no Isoma. A tenso estrutural entre descendencia matrilinear e o casamento virilocal parece dominar o idioma ritual do Isoma. E' porque a mulher se aproximou demasiadamente do "lado masculino" do casamento que suas parentas maternas mortas Ihe enfraqueceram a fertilidade. A correta, rela^ao que deve"a existir entre descendencia a afinidade foi perturbada; 9 casamento veio a sobrepujar a mtrilinhagem. A mulher fi chamuscada pelos pingosos fogos da sacralidade mas?ulina. Uso esta metfora porque os prprios ndembos a empregam: se as mulheres vem as chamas da cabana de ^clusao dos meninos quando esta queimada depois do ntual da circunciso, crenca que elas ficaro jistradas como se fossem atingidas pelas chamas ou tomarao a fParncia da zebra (ng'ala), pdero apanhar lepra ou, n utros casos, enouquecero ou tornar-se-o.abQbalhadas.
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As finalidades do Isoma
Entre as finalidades implcitas do Isoma incluem-se a restaurado da correta relaco entre matrilinearidade e casamento, a reconstrufo das relages "conjugis entre mulher e marido e finalmente a fertilidade da mulher, por conseguinte do casamento e da linhagem. Conforme os ndembos explicam, a finalidade explcita dos ritos est em dissipar os efeitos daquilo que chamam chisaku. Em sentido lato, chisaku indica "infortunio ou doenca, devidos ao descontentamento das sombras ancestrais ou a quebra de um tab". Mais especficamente, indica tambm urna maldico proferida por urna pessoa viva para 39ular urna sombra, podendo incluir remedios especialmente feitos para causar danos a um inimigo. No caso do Isoma, o chisaku de qualidade especial. Acredita-se que um prente matrilinear da vtima tenha ido at a nascente (kasulu) de um riacho situado na vizinhanca da aldeia de seus parentes maternos, e la tenha rogado urna praga (kumushing'ana) contra ela. O efeito desta praga "despertar" (ku-tonisha) urna sombra que tenha sido outrora membro do culto Isoma. Como disse um informante (e traduzo literalmente): "No Isoma eles degolam um galo vermelho. Isto representa o chisaku, ou a desgra9a em virtude da qual as pessoas morrem e deve, ent, desaparecer (chisaku chafwang'a anta, chifumi). O chisaku morte, que nao deve acontecer paciente; doenc.a (musong'u), que nao deve vir para ela; sofrimento (ku-kabakana), e este sofrmente vem do rancor (chtela) de um feiticeiro (muloji). Urna pessoa que amald9oa outra com a morte tem um chisaku. O chisaku proferido junto fonte de um rio. Se urna pessoa passa por la e pisa nela (ku-dyata) ou cruza por sobre ela (ku-badyika), a m sorte (malwa) ou o insucesso (kuhalwa) a acompanharo em qualquer lugar para onde for. Adquirida naquele lugar, na fonte do riacho, e deve ser tratada (ku-uka) la. A sombra do Isoma surgiu como resultado desta praga, e vem sob a forma do Mvweng'i".
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Como o leitor pode notar, ha em tudo isto um forte colorido de fei^aria. Diferentemente de outros tipos de rnulheres, o Isoma nao executado apenas para aplacar urna nica sombra, mas tambm desina-se a exorcizar influencias msticas malignas que emanam nao so dos vivos como dos morios. Existe aqu urna terrvel combina9o de feit9o, sombra e Ikishi Mvweng'i, que se deve enfrentar. Os ritos abrangem referencias simblicas a todas essas influencias. E' significativo que um prente matrilinear seja considerado a causa precipitadora da doen9a, o estimulador dessas duas series de seres ancestrais, um prximo, outro remoto, o Mvweng'i e a sombra feminna. E' tambm significativo que os ritos sejam realizados, sempre que possvel, perto da aldeia habitada pelos parentes matrilineares da vtima. Alm disso, ela fica parcialmente reclusa depois nesta aldeia por um tempo considervel, e o marido deve residir com ela em carter uxorilocal durante aquele perodo. Parece haver alguma ambigidade nos relatos dos meus informantes sobre a interpreta9o da praga desencadeadora. Acreditase que esta cheir'a a feit9aria e, em conseqncia, "m", mas ao mesmo tempo a maldi9o pode ser parcialmente justificada pelo esquecimento por parte da vtima das suas Iiga9es matrilineares tanto passadas como presentes. Os ritos em parte tm a finalidade de efetuar urna reconcilio entre as partes em jogo, visveis e invisveis, embora tambm contenham episodios. de exorcismo. A PREPARACAO DO LOCAL SAGRADO Julgamos suficiente o que foi dito sobre as estruturas sociais e as cren9as principis subjacentes ao Isoma. Passemos agora aos ritos propriamente ditos e consideremos as interpreta9oes dos smbolos na ordem em que correm. Estas interpreta9es ampliaro nossa imagem da e strutura da cren9a, pois os ndembos que, como ja disse, trn notavelmente poucos ritos compensara esta escassez Pela riqueza de urna detalhada exegese. Nao ha atalhos,

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atravs do mito e da cosmologa, para se chegar estrutura no .sentido de Lvi-Strauss da religio ndembo. Temos de proceder esmiucadamente e pouco a pouco, de "marca" a "marca", de "baliza" a "baliza", se quisermos seguir adequadamente o modo nativo de pensar, rnente quando o caminho simblico do desconhecido para o conhecido estiver completo que poderemos olhar para tras e compreender sua forma final. Gomo acontece com todos os ritos dos ndembos, o modelo de procedimento em cada caso especfico estabelecido pelo adivinho originariamente consultado sobre a molestia da vtima. E' ele quem declara que a mulher perdeu urna serie de filhos por aborto ou morte na infancia, infortunios resumidos no termo lufwisha.. E' ele quem decreta que os ritos devem come?ar no buraco ou na toca de um rato gigante (chitaba) ou de um tamandu (m/u/'i). Por que faz ele esta prescri9o um tanto estranha? Os ndembos explicam-na da seguinte maneira: ambos esses animis tapam suas tocas depois de escav-las. Cada um deles um smbolo (chijikijilu) para a manifestado da sombra do /soma, que escondeu a fertilidade (lusetnu) da mulher. Os peritos do mdico devem abrir a entrada bloqueada da toca e assim devolver-lhe, simblicamente, a fertilidade e tambm torn-la capacitada a criar bem os seus filhos. O adivinho decide em cada caso qual dessas especies animis escondeu a fertilidade. A toca deve ficar prxima fonte do riacho onde foi rogada a praga. O pronunciamento de urna maldigo comumente acompanhado pelo enterro de "remedios", em geral comprimidos (ku-panda), dentro de um pequeo chifre de antlope. Baseado em conhecimento de outros ritos dos ndembos, suspeito fortemente que esses remedios sao escondidos perto da nascente do rio. A toca do animal estabelece o ponto reerencial de orientago para a estrutura espacial do lugar sagrado. Os ritos aqu discutidos sao os "ritos de separa?o" conhecidos como ka-lembeka ou iletnbi, termo ndembo materialmente correlacionado com os modos de utilizac.o dos remedios ou com os recipientes destes, de emprego des36

tacado em algumas especies de cultos de mulheres, e etimolgicamente com ku-lemba, "suplicar, pedir perdo, ou ficar arrependido". A noc.o de propciac.o muito importante neles, porque os mdicos estao em parte implorando, em favor da paciente junto as sombras e as outras entidades preter-humanas, a devolu9o da maternidade. Em todos os ritos ilembis, um dos primeiros passos compete aos peritos do mdico praticar, guiados pelo mais velho, ou "mestre de cerimnias", consiste em ir floresta para recolher os remedios que servirlo mais tarde no tratamento da paciente. Este episodio conhecido como ku-lang'ala ou ka-hukula yitumbit. No soma, antes de ser dado este passo, o marido da paciente, se for casada, constri para uso dla urna pequea choc.a redonda de capim, para o perodo de recluso subseqente, fora do anel formado pela dzia ou pouco mais de cabanas que constituem urna aldeia ndembo. Tal cabana (nkunka) feita tambm para mocas submetidas recluso depois dos ritos da puberdade, e a choca do Isoma explcitamente comparada a essa. A paciente como urna novic.a. Da mesma forma como urna novica na puberdade "cresce" at tornar-se mulher, de acord com o modo de pensar dos ndembos, assm tambm a canddata do Isoma dever crescer de novo para tornar-se urna mulher frtil. Tudo aquilo que foi destruido pela praga tem de ser outra vez refeito, embora nao exatamente do mesmo modo, pois as crises da vida sao irreversveis. Existe analoga, mas nao rplica. Um galo vermelho fornecido pelo marido e urna franga branca fornecida pelos parentes matrilineares da paciente sao, ento, recolhidos pelos peritos, que se dirigem para determinada fonte do riacho onde a adivinhac.ao previaroente tenha indicado que a maldifo foi feita. Examinara cuidadosamente o terreno, procura de sinais da toca de Ur n rato gigante ou da toca de um tamandu. Quando a encontram, o perito mais velho dirige-se ao animal da Se guinte maneira: "Rato gigante (ou tamandu), se v c que mata crianzas, devolva agora a fertilidade
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mulher para que ela possa criar bem os flhos". Neste ponto o animal parece representar toda a "troika" 2 das torgas atormentadoras o feiticeiro, a sombra, e o ikishi. A tarefa seguinte consiste em amarrar dois molhos de capim, um sobre a entrada vedada da toca, o outro mais ou menos a um metro e vinte centmetros sobre o tnel feito pelo animal. A trra abaixo deles removida com urna enxada e o perito mais velho e seu principal assistente masculino comegam a cavar ali buracos profundos, conhecidos como makela (no singular ikela), termo reservado para cavidades que servem a finalidades mgicoreligiosas. Depois, duas fogueiras sao acesas a urna distancia de cerca de tres metros dos buracos, mais prximas do segundo que do primeiro. Diz-se que urna fogueira est situada "do lado direito" (isto , olhandose da toca do animal para a cavidade nova) e reservada para o uso dos peritos do sexo masculino; o outr, situado "do lado esquerdo", para as mulheres. O especialista mais velho coloca ento um pedago de cabala quebrada perto da primeira cavidade na entrada da toca, e os peritos do sexo feminino, guiados pela me da paciente, caso seja ela prpria conhecedora, colocam na cabaca algumas porches de razes comestveis, trazidas de suas rocas, inclusive rizomas de mandioca e tubrculos de batata-doce. No idioma ritual, representan! "o corpo" (mujimba) da paciente. E' significativo que sejam fornecidas por mulheres, principalmente por mulheres da matrilinhagem da paciente. Depois que o perito mais velho e seu mais importante assistente masculino iniciaran! a escavago, passam as enxadas para outros conhecedores masculinos, que continuara a escavar os buracos, at que atinjam a profundidade de um metro e vinte a um metro e oitenta centmetros. A entrada da toca conhecida como "o buraco do rato gigante" (ou "tamandu"), a outra, como "o buraco novo". O animal conhecido como "feiticeiro" (muloji)
2 Troika: palavra russa, significando: 1. veculo russo puxado por tres cvalos emparelhados; 2. grupo de tres pessoas, ou de tres coisas, intU mmente relacionadas. Nota do tradutor.

e diz-se que a entrada da toca "quente" (-tata). .O outro buraco chamado Ju-fomwisha, ou ku-fomona, pajavras que significan!, respectivamente, "acalmar" e "domesticar". Quando atingem a profundidade apropriada,. os peritos comecam a cavar um em directo ao outro, at se encontraren! a meio caminho, tendo completado um tnel (ikela dakiihanuka). Este deve ser bastante largo para que urna pessoa possa passar por ele. Outros peritos quebram ou curvam galhos de rvores, formando um grande crculo ao redor do cenrio inteiro da atividade do ritual para criar un espago sagrado, que rpidamente completa a estrutura. Cingir algo numa forma circular um tema persistente do ritual ndembo. E' geralmente acompanhado pelo processo de fazer urna clareira (mukombeld) com enxada. Deste modo, um pequeo reino de ordem criado no meio disforme da floresta. O crculo conhecido como chipang'u, termo que tambm usado para a cerca construida ao redor da residencia do chefe e de sua choca dos remedios.
A COLETA DOS REMEDIOS

Enquanto os conhecedores mais mogos preparan! o local sagrado, o perito mais velho e seu assistente principal vo floresta vizinha procura de remedios. Estes sao recolhidos de diferentes especies de rvores, cada urna das quais tem um valor simblico derivado dos atributos e finalidades do Isotna, Na maioria dos rituais dos ndembos ha considervel coerncia nos grupos de remedios usados' as diferentes execugoes da mesma especie de ritual, mas nos ritos Isoma a que assisti havia grande variag de urna realizago a outra. A primeira rvore da qual sao tiradas algumas partes para remedio (yitumbu) sempre chamada ishikenu, e junto dla que e faz a invocago, seja sombra atormentadora, seja prpria especie de rvore, cujo poder (ng'ovu) diz-se e "acordado" (ku-tona) pelas palavras a ele dirigEm urna execugo a que assisti, o perito mais velho
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foi at urna rvore kapwipu (Swartzia madagascariensis), utilizada pela resistencia da madeira. A resistencia representa a sade e o vigor (wukolu) desejados para a paciente. O individuo competente mais velho limpou a base da rvore das ervas daninhas com a enxada do ritual, colocou em seguida os peda?os dos tubrculos comestveis, representando o corpo da paciente, no espa?o limpo (mukombela) e falou o seguinte: "Quando esta mulher esteve grvida antes, seus labios, olhos, palmas das maos e solas dos ps ficaram amarelos [um sinal de anemia]. Agora ela est grvida de novo. Desta vez, fac.a com que ela fique forte, a fim de que possa dar a luz urna crianza viva, que crespa saudvel". O mdico, em seguida, cortou com sua machadinha clnica pedamos da casca de urna outra rvore da mesma especie, e os colocou em sua caba?a quebrada. Depois disto, prosseguiu cortando pedamos de cascas de dezesseis especies de rvores.' Urna discusso do significado de cada urna dessas rvores tomara muito tempo. E suficiente dizer que muitos ndembos podem atribuir a elas nao sement urna nica significado mas, em alguns casos (como musoli, museng'u e mukombukombu), varias conota?5es a urna so especie. Algumas destas sao usadas em muitos e diversos tipos de rituais e na prtica do herbolario (onde, contudo, diferentes tipos de liga?es associativas sao utilizadas, desde as empregadas no ritual, na dependencia mais do gosto ou do cheiro do que das propriedades naturais e da etimologa). Algumas (por exemplo, kapwipu, mubang'a) sao usadas porque tm madeira rija (de onde, "fortalecimento"), outras (por exemplo, mucha, musafwa, mufung'u, museng'u, musoli e mubulu), porque sao rvores frutferas, representando a intenc.o do ritual de fazer com que a paciente seja frtil ainda urna vez. Mas todas partilham da importante propriedade ritual de que dlas nao se pode tirar cordes de casca, por isto "amarraria" a
8 Mubang'a (Afrormosia angolensis), mulumbulumbu, mucha (Parinarl mobola), muses! wehata (Erythrophloeum africanum), muses! wezenzela (Burkea africana), mosafwa, mufung'u (Anissophyllea fruticulosa ou boehmli), katwubwang'u, musoli (Vangueriopsis lanciflora), kayiza (Strychnos stuhlmannii), wunjimbi museng'u (Ochna pulchra), wupembi, muleng'u (Uapaca spesies), mukombukombu (tricalysia angolensis), e mubulu.

fertilidade da paciente. Neste sentido, devem ser todas consideradas como remedios contra-Afviveng'/, pois, como recordar o leitor, a indumentaria dele feita de cordes de casca, o que fatal para a procriac.o as mulheres. Nao posso abster-me, contudo, de mencionar com mais detalhes um conjunto menor de remedios soma referentes a outra cerimonia, porque a interpretac.o que os nativos Ihe dao lan?a luz sobre muirs das idias subjacentes a esse ritual. No presente caso os mdicos foram em primeiro lugar a urna rvore chikang'anjamba ou chikoli (Strychnos spinosa). Eles a descrevem como o mukulumpi, "o mais velho" ou "o mais antigo" dos remedios. Depois de invocar seus poderes, tomam urna por?o de urna das razes e algumas folhas. Chikang'anjamba significa "o elefante fracassa" (em arranc-la) por causa de sua resistencia e dureza. O outro nome, chikoli, derivam-no de kukola, "ser forte, saudvel ou firme", designago que est de acord com sua extrema resistencia e durabilidade. Esta mesma rvore fornece remedio para os ritos de circunciso, acreditando-se conferir aos novic.os excepcional virilidade. No soma, seu uso acenta a conexo entre estes ritos e os Mukanda, os ritos de circuncisao, embora seja tambm um remedio especfico contra a fraqueza e em muitos casos a anemia da paciente. A comparacjo dos remedios predominantes nessas duas intervenc.oes mostra que o mesmo principio, ou idia, pode ser expresso em diferentes smbolos. O remedio predominante da primeira intervenc.o, kapwipu, tambm urna rvore robusta, da qual freqentemente tirado o ramo bipartido que forma o elemento central dos santuarios erigidos as sombras dos caladores, considerados como "homens viris e rijos". Estas rvores dos santuarios, quando se Ihes tiram as cascas, sao excepcionalmente resistentes a^o dos trmites e de outros insetos. O cozimento das folhas e da casca da kapwipu tambm usado como afrodisaco. O segundo remedio colhido nesta operago revela ouro tema do ritual ndembo, o de representar o estado naoauspicioso da paciente. E' a rvore mulendi que tem urna
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Superficie muito escorregada, fazendo os trepadores escorregarem com facilidade (ka-selumuka) e cair. Do mesmo modo, os filhos da paciente tiveram a tendencia a "escorregar" prematuramente. Mas o "polimento" (ksenena) dessa rvore tambm tem valor teraputico e este lado de sua significado importante em outros ritos e tratamentos, porque seu uso faz com que a-"doenga" (musong'u] escorregue da paciente.4 E', de fato, comum que os smbolos dos ndembos, em todos os nveis de simbolismo, expressem simultneamente um estado auspicioso e outro nao-auspicioso. Por exemplo, o prprio nome Isoma, significando "escorregar", representa ao mesmo tempo estado indesejvel da paciente e o ritual para cur-lo. Aqu encontramos outro principio ritual, expresso pelo termo ndembo ku-solola, "fazer aparecer, ou revelar". Aquilo que se torna sensorialmente perceptvel na forma :de um smbolo (chijikilu) pass a ser, desse modo^ aessvel aco propositada da sociedade, operando atravs de seus especialistas religiosos. E' o "oculto" (chamusweka) que "perigoso" ou "nocivo" (chafwana). Assim, dizer o nome de um estado nao-auspicioso ja meiocaminho para remov-la. Corporificar a aco invisvel de feiticeiros e sombras em um smbolo visvel ou tangvel um grande passo no sentido de remedi-la. Isto nao est muito longe da prtica do moderno psicanalista. Quando algo apreendido pelo espirito, quando se torna um objeto capaz de ser pensado, pode- ser enfrentado e dominado. E' ineressante notar que o prprio principio da revelacao est corporificado num smbolo medicinal ndembo, usado no Isoma. E' a rvore musoli (cujo nome deriva, segundo os informantes, de ku-solola), da qual sao tiradas tambm as folhas e pedafos da casca. Ela largamente usada no ritual ndembo, estando seu nome ligado as suas propriedades naturais. Produz grande quantidade de pequeos frutos, que caem no chao e atraem para fora do esconderijo varias especies de animis comestveis que podem, entao, ser morios pelo
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cacador. Ela, literalmente, "faz com que eles aparecem". Nos cultos de cac.a, seu emprego como remedio destinase a fazer os animis aparecerem (ku-solola anyama) ao, at ento,, infeliz calador. Nos cultos relativos as mulheres, usada para "fazer as crianzas aparecerem" (ku-solola anyana) a urna mulher estril. Como em tantos outros casos, ha na semntica deste smbolo a unio da ecologa e do intelecto, cujo resultado a materializacjo de urna idia. Voltemos coleta de remedios. Os mdicos em seguida coletam razes e folhas de tima rvore chikwata (Zizyphus mucronata), especie em cujo significado teraputico a etimologa ainda urna vez se combina com as caractersticas naturais. A chikwata tem "fortes espinhos" que "pegam" (ku-k\vata) ou agarram quem passa junto dla. Diz-se que representa tanto o "vigor" quanto, por seus espinhos, capaz de "cortar a enfermidade". Eu poderia, se o.tempo permitisse, estender-me sobre o tema ritual de "pegar" ou "agarrar", expresso em muitos smbolos. Invade a linguagem do simbolismo da ca?a, como era de esperar, mas tambm exemplificado na frase "pegar urna crianza" (ku-kwata mwana), que significa "dar nscimento". Mas passarei especie medicinal seguinte, da qual sao tiradas porches, a musong'a-song' 'a (Ximenia caffra), tambm urna rvore de madeira dura, proporcionando, assim, sade e fortaleciment, igualmente derivada por etimologa popular de ku-song'a, "vir a dar fruto, ou criar frutos", termo metafricamente aplicado a dar nscimento a criancas, tal como acontece com a ku-song1'anyana. A rvore muchotuhotu (Canthium venosum) usada como remedio "por causa de seu nome". Os ndembos derivam-no de ku-hotomoka, "cair de rePente", como um -ramo ou fruto. O estado nao-auspicioso, espera-se, eessar repentinamente aps a aplca?o dla. A seguir, o remedio tirado da rvore matando, nome derivado de- ku-tunda, significando "ser mais alta do que as que estao em volta". No Isoma, ela representa o bom crescimento de um embrio no tero e o desenvolvimento exuberante e continuo da crianza da em diante. Mupa43

Veja-se tambm Turner, 1967, p. 325-326.


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pala (Anthodeista species) o nome da especie medicinal seguinte e urna vez mais temos a representado do estado nao-auspicioso da paciente. Os ndembos derivam seu nome de kupapang'ila, que significa "perambular confusamente", em que a pessoa saiba onde est. Um informante explica-o do seguinte modo: "Urna mulher vai, de um lado para outro, sem ter filhos. Nao deve fazer isto. E' por esta razo que talhamos o remedio mupapala". Por tras dessa idia e da idia de "escorregar" >' est a nogo de que bom e apropriado que as coisas se fixem no lugar adequado e as pessoas fac.am o que Ihes conveniente fazer na sua fase da vida e segundo sua posico na sociedade. Em outra representa?o do soma, o remedio principal, ou smbolo dominante, nao foi urna rvore de especie particular, mas qualquer rvore cujas razes estivessem totalmente expostas a vista. Tal rvore chamada wuvumbu, derivada do verbo ku-vuntbuka, significando "estar desenterrado e sair do esconderijo", como, por exemplo, um animal cacado. Assim, um informante esbocou o significado dla dizendo o seguinte: "Usamos a rvore wuvumbu para trazer qualquer coisa superficie. Do mesmo modo, tudo no soma deve ser claro" (-lumbuluka). Trata-se de outra variante do tema da "revelado". Os remedios fros ou quentes Abertura da Morte e da Vida As vezes, urna porc.o de madeira retirada de urna rvore podre cada. Esta, mais urna vez, representa musong'u da paciente ou seu estado de doenga, de tormento. Equipados com esse arsenal de remedios revigorantes, fecundadores, reveladores, clarificantes, doadores de sade e fixadores, alguns dos quais, alm disso, representam a especie de padecimento da paciente, os peritos voltam ao lugar sagrado, onde o tratamento ser feito, Completam agora os preparativos qu cftierem
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qele espago consagrado sua estrutura visvel. As oIhas e os fragmentos de casca medicinis sao triturados por urna especialista do sexo 'fmininb num almofariz destinado ao preparo de refeic.es. Sao, ern seguida, moIhados com agua e o remedio liquefeito dividido em duas porcoes. Urna dlas colocada num grande e grosso pedaco de csea (ifurivu), o dentro de um caco de lou?a de barro (chizand), sendo ento aquerida no fogo aceso exatamente do lado de fora do buraco cavado atravs da entrada da toca da ratazana gigante ou do tamandu. A outra p o r c o derramada 'fra dentro de um izawu, termo que se refere tanto a um vaso de barro quanto a urna gamela para remedio, ou dentro de urna cabaca quebrada, sendo esta colocada perto da "nova cavidade" (veja-se a Figura 1). Segundo um informante, as cavidades representan! "sepulturas" (iulung'a) e poder procriativo (lusemu), em outras palavras, tmulo e tero. O mesmo informante continua: "A ikela (cavidade) do calor a ikela da morte. A ikela ira vida. A ikela. da ratazana a ikela da desgraca ou rancor (chisaku). A,ikela nova a ikela do, fazer bem (kuhandish) ou da cura. Urna ikela localiza-se |na nascente de um riacho ou perto, dla; representa 'jisemu, a capacidade de p r o c r i a r. A nova ikela deve soprar para longe da paciente ,(muyeji). Desta maneira as coisas ruins a abandonarao. O crculo de rvores quebradas um chipang'u, [Este um termo com mltiplos significados que representa (1) um cercado; (2) um cercado ritual; (3) um patio cercado, ao redor da morada do chefe e da cabana dos remedios; (4) um crculo ao redor da la]. A mulher com lufwisha [isto , que perdeu tres ou quatro crianzas natimortas ou por mortalidade infantil] 'deve entrar no buraco da vida e passar atravs do tnel para o buraco da morte. O mdico mais importante asperge-a com o remedio fri, enguanto seu assistente borrifa-a com o remedi quete".

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Representadlo Esquemtica do Simbolismo Espacial do Ritual soma

<><^> Mscente <^*<^> do rio


Remedio fri

Kuhandisha Peritos do sexo feminino

IKELA DA VIDA OU DA SADE

Peritos do sexo masculino

Fogueira das mulheres

Tnel

X
Fogueira dos homens
IKELA DA MORTE OU DA FEITIQARIA Galo vermelho

Chisaku

FIGURA 1. Isoma: a cena do ritual. O casal a ser tratado sentase na cavidade "quente" de um tnel, representando a passagem da morte para a vida. Um mdico cuida do fogo medicinal situado atrs do casal. Urna cabaca de remedios frios est colocada em frente da cavidade "fria", podendo-se ver a entrada do tnel. Os mdicos esperara ai os pacientes surgirem.

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Toca do animal (obstruida) Cerca

Remedio quente do outro lado do fogo

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Comegams agora a ver o desenvolvimeftto de Urna serie inteira de classifica^oes, simbolizadas em orienta9es espaciis e em diferentes tipos de objetos. Els sao organizadas em um Conjunto que Lvi-Strauss bem poderia chamar "discriminacoes binarias". Mas, antes de analisarmos o padro, mais algumas variveis devem ser introduzidas no sistema. as sessoes a que assisti, o marido da paciente entrava na ikela "fra" com ela, permanecendo no "lado direito", mais prximo da fogueira dos homens, enquanto ela ficava a esquerda. Ento, depois de ter sido aspergida com remedio fri e quente, ela era a primeira a entrar no tnel de conexo, seguida pelo marido. Numa variante, o perito mais velho (ou "grande mdico") borrifava ambos, mulher e marido, com remedio fri e quente. Em seguida, seu assistente assumia a direcao durante algum tempo e proceda da mesma maneira. Aves brancas e vermelhas Quando a paciente entra pela primeira vez na ikela fria, do-lhe a franga branca para segurar. Durante os ritos ela a estreita contra o peito esquerdo, no mesmo lugar onde urna crianza carregada (veja-se a Figura 2). Alias os dois, marido e mulher, estao us, usando apenas estreitas tiras de pao na cintura. Dizem que isto representa o fato de que eles sao, ao mesmo tempo, como bebs e cadveres. Os oficiantes, em contraste, esto vestidos. O galo vermelho adulto deitado, atado pelos ps, a direita da ikela quente, do lado dos homens, pronto a ser sacrificado por degola, no fim do ritual. Seu sangue e suas penas sao derramados dentro da ikela, como ato final de rito, representando a anttese da recepsao da franga branca pela paciente, com que se inicia o ritual. Acredita-se que a franga branca representa ku-koleka, "boa sorte ou vigor", e ku-tooka, "brancura, pureza, ou bons augurios". Mas o galo vermelho, como vimos, representa o chisaku, ou desgraca mstica, o "sofrimento" da mulher. A franga branca, de
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acord com um informante, tambm simboliza lusetnu, a capacidade de procriar. "E' por isto que dada a niulher", disse ele, "porque ela que fica grvida e da nascimento aos filhos. Um homem um homem, e nao pode ficar grvido. Mas o homem da poder as mulheres para terem filhos, que podem ser vistos, que sao visveis. O galo vermelho representa o homem, talvez o rancor esteja la" [isto , contra ele]. "Se a mulher continua a nao ter filhos depois do ritual, o rancor estara com a mulher" [isto , nao se relacionaria com sua situafo marital, mas teria origem em outros grupos de parentes. Por fim, provavelmente significativo, ainda, embora isto nao seja declarado, que o galo vermelho permaneca amarrado e imobilizado durante o ritual enquanto a galinha branca acompanha a mulher, me-

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2. soma: a paciente segura a franga branca de encono ao seio esquerdo, representando o lado da amamentago.

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dida que ela se movimenta atravs do tnel da "vida" para a "morte" e, de volta, para a "vida" outra vez. Em outros contextos do ritual ndembo, o movimento representa a vida e a imobilidade a morte: o galo destinado a ser abatido.
O PROCESSO CURATIVO

Na makela os ritos seguem um padro processual. A primeira fase consiste na passagem da ikela fria para a quente, indo a mulher na frente e o homem atrs. Na Ikela quente os mdicos mesclam os borrifos de remedio com exortac.es a quaisquer feiticeiros ou imprecadores, a fim de serem eliminadas suas influencias adversas. Depois, o casal, na mesma ordem, retorna ikela fria onde outra vez aspergido com remedio (veja-se a Figura 3). Cruzam ento urna vez mais na direcjo da ikela quente. Segue-se um temporario perodo de calma, durante o qual o marido escoltado para fora da ikela, indo

buscar um pequeo pedazo de pao para enxugar o remedio do rosto do casal e do corpo da franga. Volta ikela fria e, depois de nova medicaco, ha um prolongado intervalo, durante o qual trazida cerveja, que bebida pelos assistentes e pelo marido. Quanto paciente, est proibida de beber. Aps a cerveja, iniciando-se outra vez na ikela fria, a asperso recomer. Desta vez o marido quem toma a dianteira para a ikela quente (veja-se a Figura 4). Voltam para a ikela fria na mesma ordem. Depois da asperso, ha outro intervalo para a cerveja. Ento a seqncia frio-quentefrio prossegue, a mulher frente. Finalmente, ha urna seqncia idntica, ao fim da qual o galo vermelho degolado e seu sangue derramado dentro da ikela quente (veja-se a Figura 5). O casal ento borrifado mais urna vez com ambos os tipos de remedio, e agua fria derramada sobre os dois (veja-se a Figura 6). No todo, o casal aspergido vinte vezes, treze das quais na ikela fria, sete na quente, urna proporcao aproximadamente de dois para um. Enquanto a asperso continua, os peritos do sexo masculino, direita, e as mulheres adultas esquerda,

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FIGURA 3. Isotna: o mdico, ao lado da cabaga, borrifa os pacientes com remedio, enquanto os homens ficam de pe, do lado direito do eixo longitudinal do tnel, cantando a canfo "ondulante", kupunjila.

RA 4. Isoma: o marido prepara-se para seguir a mulher atravs do tnel.

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FIGURA 5. soma: o galo degolado sobre o fogo, sendo o sangue espalhado na cavidade "quente".

entoam cantos pertencentes aos rituais da grande crise da vida e dos ritos de iniciaco dos ndembos: dos Mukanda, circunciso dos meninos; Mung'ong'i, ritos de iniciaco funeraria; Kayong'u, iniciaco adivinhacao; Nkula, culto tradicional de mulheres; e Wuyangfa, iniciaco a cultos de cacadores. Peridicamente, cantam o canto Isoma "mwanami yaya punjila", acompanhada por urna dan?a ondulante, chamada kupunjila, que representa o estilo de danca dos Mvweng'i ikishi, e, ademis, imita as contraces do trabalho abortivo.
ESTRUTURA CLASSIFICATRIA: AS TRADES

Temos agora dados bastantes para tentar analisar a estrutura dos ritos. Primeiramente, ha tres series de trades. Existe a trade invisvel feiticeiro, sombra e Mvweng'i qual se ope a trade visvel mdico, paciente e marido da paciente. Na primeira trade, o feiticeiro o mediador entre os mortos e os vivos, numa hostil e letal conexo; na segunda, o mdico o mediador entre os vivos e os mortos, numa
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FIGURA 6. Isoma: agua fria derramada sobre o casal.

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lif^l^il

FIGURA 7. soma: tnulher e marido acocoram-se na cabana de recluso recentemente construida, onde a franga branca tambm ser mantida at a postura do primeiro ovo. A cabana construida fora da aldeia. O mdico segura na mo direita a faca com a qual degolou o galo.

p r meiro par aflige o segundo com a infelicidade. O terceiro parceiro, Mvweng'i, representa o modo dessa desgraca e o outro terceiro parceiro, o mdico, representa o modo de suprimir o infortunio. A terceira trade representada pela proporco 2:1 entre as abluces fras e quentes, que, alm disso, pojem ser consideradas um smbolo da vitria final da vida sobre a morte. Est contida aqui urna dialtica que passa da vida, atravs da morte, para urna vida renovada. Talvez, no nivel da "estrutura profunda", fosse possvel at mesmo relacionar o movimento da paciente no tnel com seu movimento real, pelo casamento, de urna aldeia para outra, dos parentes maternos para os do marido e, novamente, de volta em caso de morte ou divorcio daquele esposo.
ESTRUTURA CLASSIFICATRIA: AS DADES

conciliatoria e doadora de vida. Na primeira, a sombra feminina e o ikishi, masculino, enquanto o feiticeiro pode ser de qualquer sexo; na segunda a paciente do sexo feminino e o marido, do sexo masculino. O mdico serve de intermediario entre os sexos, ja que trata de ambos. O mdico ndembo, na verdade, tem muitos atributos considerados na cultura ndembo como femininos. Pode moer remedios num almofariz utilizado no preparo de refeices, tarefa normalmente cumprida por mulheres e trata com as mulheres e conversa com elas sobre assuntos particulares, de urna maneira que nao seria permitido aos homens em fun?oes profanas. O termo usado para designar o "mdico", chimbara, relaciona-se, segundo os ndembos, com o termo mambanda, que representa "mulher". Em ambas as trades ha estreitos la?os de relajees entre dois parceiros. Na primeira, acredita-se que a sombra e o feiticeiro sejam parentes matrilineares; na segunda, marido e mulher sao ligados por afinidade. O
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Os outros aspectos estruturais dos ritos podem ser organizados em termos de oposices binarias cruzadas. Em primeiro lugar, existe a oposicao principal entre o lugar do rito e a floresta selvagem, aproximadamente semelhante estabelecida por Eliade, entre "cosmo" e "caos". As outras oposices sao melhor agrupadas em tres series, em forma de coluna, da seguinte maneira:
Longitudinal Latitudinal Altitudinal

Toca/nova ca vidade Sepultura/ { ertilidade te/vida


es

Fogueira da esquerda/fogueira da direita Mulheres/homens Paciente/marido da paciente razes cultivadas/ remedios do mato Franga branca/ galo vermelho

superficie inferior/ superficie superior Candidatos/peritos Animis/seres humanos us/vestidos Razes medicinis/ folhas medicinis Sombras/seres vivos Franga branca/galo vermelho

Mor

gra?a

quente/ pnmdo fri o/ausencia


f

gO

an

vermelho/ 8a branca

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Estas series de pares de valores opostos situam-se em diferentes planos no espago do ritual. A primeira serie longitudinal, sendo polarizada pela "ikela da vida" e pela "ikela da morte". A segunda serie latitudinal, especialmente limitada pela fogueira masculina, direita, e pela fogueira feminina, esquerda. A terceira serie altitudinal, sendo espacialmente circunscrita pela superficie do solo e pelo chao conjunto da makela e do tnel de conexao. Tais oposigoes sao feitas pelos prprios ndembos na exegese, na prtica ou em ambas. Em termos de orientago espacial as oposges mais importantes sao: b u r a c o feito pelo animal/buraco feito pelo homem; esquerda/direita; abai- ; xo/acima. Corresponden! exatamente aos valores empa-i relhados: morte/yida; feminino/masculino; candidatos/1 peritos. Mas urna vez que esses conjuntos de valores se entrecruzem, nao devem ser considerados equivalentes. No /soma, os ndembos nao esto afirmando, na linguagem nao-verbal dos smbolos rituais, que a morte e a feminilidade, assim como a vida e a masculinidade sao equivalentes; nem esto dizendp que os candidatos representan! um papel feminino em relago aos peritos (anda que estejam, indubtavelmente, num papel passivo). As equivalencias devem ser procuradas dentro de cada seri (ou coluna), nao entre elas. Assim, a entrada bloqueada da toca do animal considerada semeIhante as sepulturas repletas de trra dos seres humanos e morte, que bloqueia a vida; desgraga mstica, que da em resultado a morte dos filhos; ao "calor", eufemismo para designar a feitigaria e os rancores qu1 "queimam"; ao galo vermelho, cuja cor representa "| sangu da feitigaria" (mashi awuloji) no soma (a fe'f tigaria ndembo necrfaga, e nos ritos contra os feitl gos o vermelho representa o sangu derramado em tai!? festins (veja-se Turner, 1967, p. 70), e ao "sangu como smbolo geral de agresso, perigo, e, em cer*"8 . circunstancias, impureza ritual. A nova cavidade, feita na dirego da nascente ro, simbolizando a fonte da fecunddade, ' f ~"
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por outro lado, ter afinidades com a fecundidade, a [.vida, os procedimentos de cura, frescura ou frialdade sinnimo de libertagao dos ataques das feiticeiras jou das sombras e, conseqentemente, de "sade" (wu[kolu); com a ausencia do "fogo" = nesse contexto f smbolo do poder devastador e perigoso da feiti?aria; i com a f ranga branca que neste ritual representa e late mesmo corporifica a fertilidade da paciente e por sua cor simboliza (como demonstrei em outro lugar por exemplo: 1967, p. 69-70) qualidades desejveis, tais como "bondade, sade, vigor, pureza, boa sorte, fecundidade, alimentac.o, etc"; e, finalmente, com a agua que tem a mesma gama de significados que "brancura", embdra em termos de processo mais do que de estado. Tais qualidades positivas e negativas tem urna que supera a distingo dos sexos e, creio, seria erro igual-las muito estreitamente com as diferengas sexuais. As ltimas estao ligadas muito mais de perto oposico lado esquerdo/lado direito. Nesta serie, difcilmente se pode dizer que a paciente, a f ranga branca e as razes cultivadas fornecidas pelas mulheres tem a sgtiificaclo agourenta encontrada no simbolismo sepultura Anorte/calor, da primeira serie. Menciono isto, porque |outros autores, como Herz Needham, Rigby e Beidelnan, analisando outras culturas, tendem a enumerar, bomo membro da mesma serie, pares como esquerda/ iireita, feminino/masculino, desfavorvel/favorvel, impuro/puro, etc., considerando assim a ligago entre feJniinilidade e nao-prprio como um elemento freqente quase que como elemento humano-universal - de iplassifcelo. Nem a dicotoma abixo/acima deveria per correlacionada na cultura ndembo com a divisao dos |exos. A serie de termos reunidos sob esses ttulos , pepito, independente do sexo, ja que, por exemplo, entre pacientes situadas abaixo e os mdicos, cima, encorn ram-se membros de ambos os sexos.

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SITUACAO E CLASSIFICACAO

Em outros tipos de contextos rituais, outras elassifica?6es sao aplicveis. Assim, em ritos de circunciso masculina, as mulheres e os atributos femininos podem ser considerados desfavorveis e maculadores. A situa930 porm se inverte nos ritos de puberdade das mocas. O que realmente necessrio para a cultura ndembo e, na vrdade para qualquer outra, urna tipologa das situares culturalmente reconhecidas e estereotipadas, na qual os smbolos utilizados sejam classificadps de acord com a estrutura visada da situacao particular, Nao existe urna nica hierarquia de classificacao que possa ser considerada capaz de abranger todos os tipos de sltaces. Pelo contrario, ha diferentes planos de classificago, que se entrecruzam uns com os outros, nos quais os pares binarios constitutivos (ou rubricas tridicas) acham-se l i g a d o s so temporariamente. Por exemplo, em determinada situago a distinc.p vermelho/ branco pode ser homologa a masculino/feminino, em outra, a feminino/masculino, e, ainda m, outra a carne/ frinha, sem conotacao sexual.

smbolos, isto , ao fato de possurem simultneamente .guitas significa?oes. Urna razSo disto pode ser encontrada na sua funco "nodal", com referencia as series Entrecruzadas d classificacoes. A oposigo binaria galo vermelho/franga branca significativa em pelo menos tres series de classificacSes no /soma. Se considerarmos separadamente cada um desses smbolos, isolando-os uns dos outros no campo simblico (de acord com a exegese nativa ou o contexto simblico), a multivocidade a caracterstica mais saliente. Se, por outro lado, os como r considerarmos do ponto de vista da totalidade classifica?oes que estruturam a semntica do rito inteiro o qual esses smbolos ocorrem, ento cada um dos . significados a eles atribuidos aparece corno a exemplifi?o de um; so principio. Na oposigo binaria, em cada ; plano, cada smbolo se torna unvoco.
epNHECIMENf O E EXISTENCIA NO SIMBOLISMO RITUAL

Planos d classificaco
Smbolos nicos podem, sem dvida, representar os pontos de interconexo entre planos' separados de classificaco. Deve ter sido notado que, no Isom, a posigo galo vermelho/franga branca aparece em todas as tres colunas. No plano vida/morte, a franga branca igualase vida e fertilidade, em oposic.o ao galo vermelho, que se iguala morte e feitigaria; no plano direita/ esquerda, o galo masculino e a franga, feminiro; e no plano acima/abaixo, o galo est cima, pois ser usado como "remedio" (yitambu), derramado d cima para baixo, enquanto a franga est abixo, urna vez que se liga de perto com a paciente que est sendo medicada, como a crianga me. Isto conduz ao pro- \ blema da "polissemia", ou multivocidade de muitoSi

fConcluo este captulo relacionando os resultados dele com o ponto de vista de Lvi-Strauss, no The Savage Mind. Lvi-Strauss, est certo quando acenta que la ~f>ense sauvage tem propriedades tais como homologas, oposices, correlafes e transformaces, as quais sao tambm caractersticas do pensamento requintado. No Caso dos ndembos, contudo, os smbolos utilizados indiqu tais propriedades esto envolvidas por revestimaterial, forjado na sua experiencia da vida. A o nao aparece como tal, mas como um confron? de o b j e t o s sensivelmente perceptveis, assim, por ^ernplo, urna franga e um galo de diferentes idades . cores, em variveis rela?5es espaciis e com destinos gerentes. ,Embora Lvi-Strauss dedique algurha atenl?ao ao papel dos smbolos msticos, como instigadores e sentimento e desejo, nao desenvolve esta linha de Salsamento de maneira to completa como o faz em eu trabalho sobre os smbolos como fatores no conhe59

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cimento. (Abordei o assnto em outra parte, com.algumas minucias por exemplo, 1967, p. 28-30, 54-55). Como sao encontrados no Isoma, os smbolos e suas relances nao sao somente um conjunto de classificac.5es cognoscitivas para estabelecer a o r d e m no universo ndembo. Sao tambm, e talvez de modo igualmente importante, um conjunto de dispositivos evocadores para despertar, canalizar e domesticar emoc.5es poderosas tais como odio, temor, afeic.o e tristeza. Esto tambm imbuidos de motivac.5o e tm um aspecto "volutivo". Numa palavra, a totalidade da pessoa e nao so o "espirito" dos ndembos, acha-se existencialmente implicada as questes da vida e da morte a que se refere o Isoma. Finalmente, o Isoma nao "grotesco", no sentido de que seu simbolismo seja caricato ou incongruente. Cada elemento simblico relaciona-se com algum elemento emprico de experiencia conforme claramente revelam as interpretac.5es indgenas dos remedios vegetis. Do ponto de vista da ciencia do sculo XX podemos achar estranho que os ndembos julguem que, colocando certos objetos dentro de um crculo de espac.0 sagrado, tragam com eles os poderes e virtudes que parecem empricamente possuir, e que, ao manipul-los da maneira prescrita, podem a r r u m a r e concentrar tais poderes, quase como se fossem feixes lser, para destruir forjas malignas. Mas, dado o limitado conhecimento da idia de causalidade natural transmitido na cultura ndembo, qum duvidar que em circunstancias favorveis o uso desses medicamentos pode produzir considervel beneficio psicolgico? A expresso simblica do interesse de grupo pelo bem-estar de urna mulher infeliz, reunido mobilizago de um conjunto de coisas "boas" em favor dla, bem como a associac.o do destino individual corn smbolos dos processos csmicos da vida e da morte isto tudo, na realidade, se apresentar para nos como algo meramente "ininteligvel"?

Os Paradoxos da Gemelaridade no Ritual Ndembo


! A GEMELARIDADE NO PARENTESCO E NA VIDA. ALGUNS EXEMPLOS AFRICANOS
NO PRIMEIRO CAPTULO UM TIPO DE RITUAL

ANALISEI

ndembo, realizado para corrigir urna deficiencia, por exemplo, a incapacidade temporaria de urna mulher gerar e criar, f ilhos com vida. Pretendo, agora, considerar outro ritual ndembo, cuja raison d'tre urna desordem de natureza diferente. E' o ritual Wubwang'u, realizado para fortalecer a mulher que espera ter, ou ja teve, f ilhos gemeos (ampamba). Neste caso, a difieuldade consiste em um excesso, e nao em um defeito, uma super-realizago, mais do que urna sub-realizac.'o. Para os ndembos, o nascimento de gemeos constitu o chamaramos de paradoxo, isto , algo que entra |m confuto com nogoes preconcebidas a respeito do que g razovel ou possvel. Para os ndembos ha diversos contra-sensos no fato fisiolgico da gemelaridade. Em !Primeiro lugar, como vimos, um alto premio cultural fertilidade (lusemu); contudo, temos aqui urna Exuberancia de fertilidade de que resultam dificuldades P'siolgicas e econmicas. Numa sociedade desprovida p gado e da nocao de que ovelhas e cabras podem ser - r denhadas para consumo humano, torna-se difcil para me prover filhos gemeos com urna alimentac.ao pela amamentafao. A sobrevivencia deles, em

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geral, depender do fato de que outra mulher que baja perdido recentemente um filho tenha suficiente leite e deseje amamentar um dos gmeos. E mesmo que os gmeos sobrevivan! at o desmame, pode ser difcil que os pas sozinhos Ihes assegurem a sobrevivencia. Por esta razo, eles sao simblicamente representados nos ritos como um onus para a comunidade. Urna maneira pela qual isto se expressa numa dan?a cerimonial onde a me dos gmeos, vestida apenas com urna tira de tecido de fibra com urna aba frontal de couro ou de fazenda e carregando urna cesta de joeirar redonda e achatada (Iwalu), da a volta a todas as aldeias na vizinhan?a. A medida que danca, levanta a cobertura anterior para mostrar a todos a fonte de sua excessiva fecundidade e pede ofertas de alimentos, roupas e dinheiro, fazendo circular a cesta entre os expectadores. Esta dan?a exibe diversos motivos caractersticos de Wubwang'u. Um deles a suspenso das regras de recato que sao rigorosamente obrigatrias para as mulheres ndembos; outro o poder ritual da vulnerabilidade ou da fraqueza, um motivo a que nos dedicaremos mais no captulo 3. Aqu chamare! a aten?o somente para o fato de que a gemelaridade simultneamente olhada, como urna bn?ao e urna desgraca, ambas interessando a comunidade mais ampia no bem-estar da pessoa que objeto do ritual. Mas o Wubwang'u revela um outro paradoxo na ordem social. O professor Schapera (e outros estudiosos) chamaram atenso para o fato de que em toda parte onde o parentesco tem importancia estrutural e fornece urna moldura para os relacionamentos coletivos e para o "status" social, o nascimento de gmeos fonte de dificuldades de classifica^o. Isto porque na frica e em outras partes largamente difundida a idia de que as crianzas nascidas de um nico parto sao misticamente idnticas. Mas de acord com as regras de atribuido ligadas aos sistemas de parentesco, ha somente urna posico na estrutura da familia ou no grupo conjunto de parentes que elas podem ocupar. Existe a
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suposicao classificatria de que os seres humanos do luz somente urna crianca de cada vez, havendo nicamente um lugar a ser ocupado nos varios grupos articulados por parentesco, nos quais essa crian9a ingressa pelo nascimento. A ordem no grupo de irmos outro fator importante pois os irmos mais velhos exercem direitos sobre os mais jovens, e podem, em alguns casos, suceder a cargos polticos antes deles. A gemelaridade contudo apresenta os paradoxos de que urna realidade fsicamente dupla estruturalmente nica, e aquilo'que msticamente uno ser empricamente duplo. As sociedades africanas resolvem este dilema de variadas maneiras. Urna solujao para a contradicho estrutural produzida pela gemelaridade matar os gmeos. Esta prtica seguida pelos boximanes do Kalahari, sobre os quais escreveu Baumann: "L'infanticide est frqent par suite des conditions conomiques difficiles, mais le rneurtre1- des jumeaux ou de l'un d'entre eux est du la croyance qu's portent malheur" * (Baumann e Westermann, 1962, p. 100-101). O paradoxo aqu resolvido pelo exterminio de um dos gmeos ou de ambos, por se acreditar que trazem desgraca (mstica). Outras sociedades nao eliminam os gmeos, mas os afastam do sistema de parentesco ao qual pertencem por nascimento e Ihes conferem urna situaco especial, freqentemente com atributos sagrados. Assim, entre os ashantis, segundo Rattray (1923), "os gmeos, se sao ambos do mesmo sexo, pertencem por direto ao chefe, e quando meninas se tornam suas esposas em potencial; se sao meninos tornam-se chicoteadores de cauda de elefantes, na corte. Devem ser mostrados ao chefe o mais cedo possvel depois do nascimento, sendo levados ao "palacio" em urna baca de lata. Os gmeos, e m cerimnias oficiis, vestem-se de branco, um igual ao outro" (p. 99).
O infanticidio tregente como conseqncia das condiwes econmicas difceis, mas o assassinio de gmeos, ou de <u deles, devido crenga de que trazem infelicidade,

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A cor branca entre os ashantis smbolo, nter alia, da divindade e dos fluidos "espirituais" e fertilizantes, a agua, o semen e a saliva. O elefante tambm se relaciona com a fertilidade exuberante, como fica claro no ritual de puberdade das mogas, durante o qual a noviga "toca em tres pedagos de orelha assada de elefante, enquanto as seguintes palavras sao dirigidas a ela: Possa a elefanta dar-te um tero em que consigas conceber dez futios'" (1925, p. 73). Os chefes ashantis tm muitos dos atributos dos "reis divinos" e cr-se que esto cima das divises entre grupos seccionis em seus dominios, e que o bem-estar e a fertilidade desses grupos esto msticamente identificados eom os dos chefes. Assim, os gmeos sao elevados cima da estrutura secular e simbolizan! a sacralidade e a fertilidade do chefe. Os gmeos nascidos na familia real porm sao mortos, pois tal acontecimento considerado "detestvel" para o "Banco Dourado", insignia suprema e expresso da realeza ashanti (1925, p. 66). Presumivelmente isso acontece porque o nascimento de gmeos introduziria urna contradigo na estrutura da matrilinhagem real, dando origem a' problemas de sucesso e precedencia. Segundo Evans-Pritchard (1956) os neres do Sudo niltico afirmam ,que os gmeos sao urna so pessoa e sao pssaros: "Sua personalidade social nica algo que se sita cima da dualidade fsica, dualidade evidente aos sentidos e indicada pela forma plural que se usa ao falar de gmeos, e pelo modo como sao tratados em todas as ocasies da vida social comum, como dois individuos inteiramente distintos. Somente em determinadas situares rituais e simblicamente que a unidade dos gmeos expressa, particularmente em cerimnias ligadas ao casamento e a morte, as quais a personalidade sofre urna mudanga" (p. 128-129). Nesta sociedade os gmeos nao sao retirados da estrutura social mas, ainda assim, adquirem um valor ritual e simblico. Sao simblicamente identificados com pssaros, nao apenas pela semelhanga entre "a mltipla in64

cubaco dos ovos e o nascimento dual de pssaros" (p. 130) mas tambm porque os gmeos, como os pssaros, sao classificados pelos neres como "gente do alto" e "ilhos de Deus". "Os pssaros sao filhos de Deus porque ficam no ar, e os gmeos pertencem ao ar porque sao filhos de Deus pelo modo de sua concepgo e nascimento" (p. 131). Os neres, desse modo, resolvem o paradoxo da gemelaridade, relacionando a personalidade nica dos gmeos com a ordem sagrada, e sua dualidade fsica com a ordem secular. Cada aspecto opera em um nivel cultural distinto, e o conceito de gemelaridade serve de mediador entre os nveis. Em muitas sociedades os gmeos tm esta fungo mediadora entre animalidade e divindade. Sao ao mesmo tempo mais do que humanos e menos que humanos. Em quase todas as sociedades tribais difcil encaix-los no | modelo ideal da estrutura social, mas um dos paradoxos da gemelaridade que algumas vezes associada aos rituais que revelam os principios dessa estrutura. A gemelaridade assume assim um carter de contraste anlogo relago fundo-forma' na psicologa da Gestalt. De fato, freqente, as culturas humanas, descobrirse que contradigSes, assimetrias e anomalias estruturais. sao recobertas por carnadas de mito, ritual e smbolo, o que salienta o valor axiomtico dos principios estruturais bsicos, em relago quelas mesmas situages onde parecem ser mais inoperantes. Entre muitos povos de lngua banto, incluindo-se os ndembos, os gmeos nem sao mortos, nem Ihes dada urna situago especial permanente, como entre os ashantis. Mas, as .crises de vida de seu nascimento, casamento e morte, sao realizados rituas especiis e sempre , tm um carter sagrado latente, que se torna visvel em .*dos os ritos ligados a nascimentos de gmeos. Alm disso, os pas de gmeos e alguns dos seus irmaos, es2 Pecialmente aquele que se segu a eles pela ordem de n ascimento, ficam dentro da penumbra dessa sacralie. Corno exemplo, diz Monica Wilson (1957):
| Proccsso... Ec) 2877 3

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"O nascimento de gmeos um acontecimento temvel para os nyakyusas. Os pais de gmeos e eles prprios sao abipasya, os temveis, considerados muito perigosos para os parentes e vizinhos mais prximos e para o gado, causando-lhe diarria, purgaco e pernas indiadas, se houver algum contato. Os pais por conseguinte sao segregados sendo realizado um complexo ritual do qual participa um largo crculo de parentes masculinos, vizinhos e gado domstico. As criancas sao segregadas junto com a me, mas acentua-se mais o perigo oriundo dos pais do que o proveniente dos gmeos. Ilipasa comumente usado para significar "gmeos", "nascimento gemelar", mas urna tradugo mais precisa "nascimento anormal", pois usado no caso do nascimento de urna crianca em que os ps saem primeiro (unsolola) bem como nos nascimentos mltiplos, e o mesmo ritual realizado, qualquer que seja o tipo de ilipasa (p. 152).

A finalidade dos ritos dos nyakyusas livrar os gmeos e seus pais do perigoso contagio de sua condicao. Os pais devem ser tratados com remedios e ritual, a fim de que, da por diante, gerem urna so crianza em cada nascimento, nao podendo mais afetar os vizinhos com a doenca mstica. Entre os nyakyusas e outras sociedades bantos, tais como os sukus, do Congo, sobre cujos ritos de gemelaridade Van Qennep (1960) escreveu, e os sogas, de Uganda (Roscoe, 1924, p. 123), os ritos de gemelaridade abrangem a comunidade local inteira. Van Gennep chama a aten?ao para o fato de que, nos ritos de reintegra?o dos sukus, em seguida um longo perodo "liminar" durante o qual os gmeos sao solados do= contato com a vida pblica por seis anos, existe "urna travessia ritual do territorio pertencente sociedade como um todo e urna (total) repartido de alimentos" feita pelos aldees (p. 47). Ja fiz menc.ao do modo pelo qual os ndembos consideram os gmeos urna carga para a comunidade inteira. Isto pode ser visto como outro exemplo de urna tendencia social amplamente predominante, seja para tornar aquilo que sai fora da norma um assunto de interesse para o grupo mais amplamente reconhecido seja para, destruir o ie. nmeno excepcional. No primeiro caso, o anmalo pode ser sacralizado e considerado sagrado. Assim, na Europa
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oriental, os idiomas costumam ser vistos como santuarios vivos, repositorios de urna santidade que Ihes destruiu a natural capacidade intelectual. Eles tinham o direito de receber comida e roupa de todos. Aqui, a anomala, a "pedra que os construtores rejeitam", removida da ordem estruturada da sociedade e levada a representar a simples unidade da prpria sociedade, conceitualizada como homognea e nao como um sistema de posifes sociais heterogneas. Entre os ndembos, tambm, a inteira biologa dos gmeos sacralizada e transformada num assunto que interessa a todos e nao so aos parentes prximos da me. O padecimento da me com o excesso de urna coisa boa torna-se urna responsabilidade para a comunidade. Transforma-se tambm numa ocasio em que a comunidade pode celebrar e exaltar alguns de seus essenciais valores e principios de organizacao. O paradoxo de que o que bom (em teora) man (na prtica) vem a ser o ponto mobilizador de um ritual que intensifica a total unidade do grupo, superando suas contradifes. Repetindo, diremos que ha duas coisas que podem ser feitas em relaco gemelaridade, numa sociedade bascada no parentesco. Pode-se dizer, como o menino que viu urna girafa pela primeira vez, "nao acredito no que estou vendo", e negar a existencia social do fato biolgico; ou ento, tendo sido aceito o fato, pode-se tentar control-lo. Neste ltimo caso, devemos faz-lo, se pudermos, parecer coerente com o resto da cultura. Pode-se, por exemplo, em algumas situacoes, focalizar 3 atenco sobre a dualidade dos gmeos e, em outras, sobre a unidade deles. Ou pode-se refletir sobre os processos naturais e sociais em virtude dos quais o que era O nginalmente dos elementos separados, ou mesmo oposts, funde-se para formar algo novo e nico. Pode-se Caminar o processo pelo qual dois se tornara um. Ou Caminar o inverso disto, o processo pelo qual um se torna dois, o processo de bifurca^o. E anda, pode-se c nsiderar o nmero Dois como sendo representativo de to das as formas de pluralidade, oposta unidade. O
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numero dois representa Multos, por posic.o ao l)m, derivando dele ou fundindo-se outra vez com ele. Alm disso, quando se presta atenfo ao Dois, desprezando momentneamente o Um, pode-se consider-lo ou um par de similares, um par dioscural como Castor e Pollux, ou um par de opostos, como masculino e femi'nino, ou vida e morte, conforme se da no ritual do Isoma. Os ndembos, no idioma simblico do ritual de gemelaridade, preferiram acentuar o aspecto de oposi9o e de complementariedade. Anda que os gmeos, na natureza, sejam freqentemente do mesmo sexo, e de fato os gmeos idnticos sao sempre do mesmo sexo, os ndembos ressaltam no Wubwang'u o aspecto igual, mas aposto, da dualidade. Desenvolvendo mais amplamente este ponto de vista, quando expem o processo de unio dos componentes da diada, representam-no como urna coincidencia de opostos e nao como urna duplica?o de similares. O simbolismo sexual utilizado para retratar esse processo, mas tentarei mostrar que tem por finalidade muito mais do que as relances sexuais. O idioma da sexualidade usado para representar os processos pelos quais as forjas sociais, aproximadamente iguais em poder e opostas em qualidade, aparecem trabalhando em harmona. Neste captulo, estarei especialmente preocupado com os referentes sociais dos smbolos que tambm representan! aspectos da sexualidade. A fuso de urna pluralidade de referentes socioculturais com urna pluralidade de referentes orgnicos (inclusive os de c a r t e r sexual) numa nica representado visvel, revestida pelos crentes de um extraordinario poder e possuindo nova qualidade de comunicagao humana, urna importante caracterstica dos smbolos religiosos. Dizer que um dos dois grupos de referentes, os culturis ou os orgnicos, "bsico" ou "primario", sendo o outro redutvel ao primeiro, deixar de ver a diferen?a qualitativa de um e de outro grupo, representada pelo padro de sua interdependencia.

O ENRED DO RITUAL NDEMBO DOS GMEOS


A unificaco de um par de opostos, predominantemente expressa nos smbolos da diferenc.a masculino-feminino, oposifo e unio, constitu o que pode ser chamado "enredo" ritual do Wubwang'u. Proponho selecionar dois importantes episodios no ritual e examinar cada um por sua vez, com referencia ao simbolismo nele contido. Como a maior parte dos cultos de calamidade dos ndembos, a associac.o cultural do Wubwang'u formada de pessoas que foram submetidas como pacientes ao tratamento ritual caracterstico do Wubwang'u. Acredita-se que o espirito termentador tenha sido um membro, ja falecido, do culto. Os peritos ou os mdicos coletam remedios vegetis para a paciente, adornam-se de maneira especial, e ento lavam a paciente com folhas medicinis esmagadas, dando-lhe para beber um remedio misturado com agua. Um sacrrio construido perto da porta de sua cabana, e os membros do culto executam um certo nmero de ritos em conexo com ele. Ambos, homens e mulheres, tm a permisso de agir como mdicos, pois os homens que foram membros de um par de gmeos, que foram filhos ou pas de gmeos, ou cujas esposas, maes ou irms tenham sido tratadas com sucesso .pelo procedimento Wubwang'u, tm o direito de aprender os remedios e as tcnicas do Wubwang'u. Segundo minhas anotagoes, o espirito atormentador sempre o de urna mulher e, na maioria dos casos, acredita-se que seja a prpria av materna da paciente. O Wubwang'u pode ser executado em favor de urna mulher que acaba de ter gmeos ou de una mulher que espera ter gmeos. Supe-se, por exemplo, que urna mulher cuja tne, ou cuja av materna, ou ambas te nham dado nascimento a gmeos ou que a mesma faca ' Parte de um par de gmeos, tambm ter gmeos. Se ^a' mulher sofre qualquer tipo de perturbaco obsttrica ; Curante a gravidez, o Wubwang'u pode ser executado | e rn favor dla, muitas vezes sem precisar consultar um |adivnho. Outras mulheres, sem qualquer conexo com
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a gemelaridade, podem vir a tornar-se pacientes do Wubwang'u, se tiverem sofrido de perturbares dos rgos reprodutores. Isto freqente porque parentes da mulher enfermica consultaran] um adivinho, que consultou seus objetos simblicos, e decidiu que um espirito "de forma Wubwang'u" pegou-a. Todos os rituais dos ndembos referentes reprodugo feminina tm, duplamente, um aspecto especfico e outro geral, relacionado de modo explcito com um disturbio particular culturalmente definido, tendo porm a capacidade de curar outros tipos de perturbaces. Assim, o Nkula empregado adequadamente para problemas menstruais, mas tambm para o aborto, a frigidez e a esterilidade, enquanto o soma usado para o aborto e nos casos de criancas natimortas, mas tambm se emprega em perturbares menstruais. Do mesmo modo, acredita-se que o Wubwang'u, como ritual curativo genrico, beneficia as muIheres que sofrem de varias perturbares dos rgos reprodutores. Mas sua principal importancia simblica refere-se ao nascimento de gmeos, assim como a do Nkula relaciona-se com a menorragia, e a do soma com os abortos. Sao dois os episodios (dos quais o segundo dividido em duas fases) para os quais gostaria de chamar a atengao: 1) os Ritos da Nascente do Rio; e 2) a construc.ao do sacrrio dos gmeos, com a Prolfica Competico dos Sexos. No primeiro, a unidade dos sexos no casamento representada como um misterio; no segundo, os sexos sao. representados em sua divisao e oposigo. As Propriedades dos Smbolos Rituais Cada um dos episodios carregado de simbolismo." Os smbolos possuem as propriedades de condensando, unificaco de referentes dispares, e polarizado de signifi0 Veja-se Turner, 1967, para o estudo do que considero ser os tipos de dados dos quais os raais importantes componentes semnticos e propriedadss dos smbolos religiosos podem ser inferidos; nao repetir! aqui a argumenta3o completa.

cado. Um nico smbolo, de fato, representa multas coisas ao mesmo temp'o, multvoco e nao unvoco. Seus referentes nao sao todos da mesma ordem lgica, e sim tirados de muitos campos da experiencia social e de avaliaco tica. Finalmente, os referentes tendem a aglutinar-se em torno de polos semnticos opostos. Num polo, as referentes sao feitas a fatos sociais e moris, no outro, a fatos fisiolgicos. Assim, a rvore mudyi (Diplorrhyncus condylocarpor), smbolo central do rito de puberdade das mocas, significa simultneamente leite do seio e lnhagem materna, enquanto a rvore mukula (Pterocarpus angolensis) jepresenta"\ o sangue da circunciso e a comunidade moral dos homens adultos de urna tribo. Tais smbolos, portante, unem a ordem orgnica com a sociomoral, proclamando a unidade religiosa suprema de ambos, cima dos conflitos entre essas ordens e no interior dlas. No processo ritual poderosas energas e emoces ligadas fisiologa humana, em especial da reproduco, sao despojadas da qualidade anti-social e agregadas aos componentes da ordem normativa, fortalecendo esta ltima com urna vitalidade tomada de emprstimo, e deste modo tornando desejvel o "obrigatrio" de Durkheim. Os smbolos sao tanto os resultados qttanto os instigadores desse processo, e englobam sua propriedade. OS RITOS DA NASCENTE DO RIO: A COLETA DE REMEDIOS Os Ritos da Nascente do Rio, no Wubwang'u, exemplificam a maioria dessas propriedades. Formam parte de urna seqiincia de atividades rituais que constituem a primeira fase deste ritual de gemelaridade. Como no Isosma, e na verdade em outros rituais de calamidade dos ndembos, a coleta de remedios (ku-hakula yiturrbu literalmente "apoderar-se de remedios ou roub-los" ou ku-lang'ula yitambu) a primeira atividade na seqncia. Os especialistas do mdico no Wubwang'u,
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que a desempenham, levam para a floresta urna certa quantidade de alimentos dentro da cesta de joeirar (Iwalu) do mais velho profissional. Entre esses alimentos contam-se urna raiz de mandioca, feijo, amendoim, um torro de sal, graos de milho, porches de carne de animis domsticos e de porco selvagem, e outros comestveis. Trazem cerveja branca feita de milho ou de sementes de junco; sua cor torna-se urna libac.5o adequada as sombras, que sao simblicamente seres "brancos" (a-tooka). Levam, tambm, argila branca numa caba?a em forma de falo (veja-se a Figura 8) e argila vermelha em p na concha de um molusco aqutico (nkalakala) (veja-se a Figura 17, p. 94). Segundo os informantes "os alimentos sao trazidos para fortalecer os corpos da mae e dos filhos", enquanto a argila branca serve para "fazer as criacoes fortes, puras e afortunadas". Varios informantes asseguraram que a argila vermelha significa "m sorte (ku-yindam), falta de vigor (kubula kukoleka) e ausencia de sucesso (ku-halwa)". Porm, como veremos adiante, a pgina 90, esta mesma argila vermelha, nos Ritos da Nascente do Rio, representa "o sangue da mae". Este , ainda, outro exemplo do modo pelo qual os mesmos smbolos tm variadas significares em diferentes contextos. A^oposic.o binaria branco/vermelho nos diferentes episodios do Wubwang'u representa robustez/fraqueza, boa sorte/m sorte, sade /doen?a, pureza de corac.o/rancor que causar feitic.aria, smen/sangue materno, masculinidade/feminilidade. O grupo de conhecedores chefiado por um profissional mais idoso, do sexo masculino ou do sexo feminino. Estes peritos sao acompanhados por seus filhos. De fato, o Wubwang'u o nico tipo de ritual ndembo em que as crian?as sao mandadas a participar, recolhendo "remedios" (yitumbu), empregando um termo tradicional, mas nao inteiramente apropriado para designar as substancias vegetis. Cada crianca carrega um ramo com folhas, tirado de toda rvore de "remedio" ou mato visitado. Durante a coleta de remedios sao cantadas canc.5es obscenas "para tornar a paciente" forte, sendo tocado
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FIGURA 8. Cerimnia dos gmeos: urna especialista carrega a cesta de joeirar do ritual, contendo urna cabaga de cerveja branca e urna cabaga em forma de falo cheia de argila branca. Ela est recebendo um ramo de remedio.

um sino duplo de cafa (mpwambu) pelo principal mdico. A finalidade disto "abrir os ouvidos das crianzas que ainda nao nasceram, a fim de que possam saber que sao gmeos". O canto e o soar do sino servem tambm para "despertar as sombras" (ku-tonisha akishi), pois cada perito do mdico tem urna sombra guardia, que foi outrora um membro do culto Wubwang'u. Alm disso, sao encarregados de "despertar" as rvores medicinis,' as especies com as quais serao preparadas as pocoes e as loces de remedio Wubwang'u. Sem esses sons estimulantes, acredita-se que as rvores continuariam a ser meramente rvores; com eles, e mais o acompanhamento
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dos ritos de sacraliza?So, tornam-se poderes mgicamente eficazes, semelhantes as "virtudes" possudas pelas ervas medicinis na teraputica ocidental. Em um texto sobre a coleta de remedios, que cito integralmente as pginas 108-110, ha urna passagem que diz: "Deve haver renovaco (ou urna causa de levantamento) e dispersao daquelas palavras priniitivas (ou tradicionais) e um corte (de remedios)". Estas "palavras" sao as cancoes e as preces do Wubwang'u e afetam msticamente o corte das plantas medicinis. Encontra-se um exemplo de prece quando o remedio simblico dominante dos ritos consagrado, isto , a rvore kata wubkang'u. Primeramente, o profissional mais velho danga em torno dla em crculo, porque "deseja agradecer sombra", pois ela a grande rvore da sombra Wubwang'u "grande" no mbito do ritual, porque todas as rvores que vi tratadas dessa maneira eram espcimes jovens e delgados. Ento ele cava um buraco em cima da raiz principal da rvore e deposita nele os aumentos, enquanto profere a seguinte prece:
Eyi mufu wami kanang'a wading'i na Wubwang'u Tu, minha morta (prente materna) que tiveste Wubwang'u, neyi manta wanamwidyikili dchi muWnbwang'u saste para encontrar algum hoje no Wubwang'u, ifuku dalelu muktvashi chachiwahi neste mesrno dia deves ajud-la bem, ashakami chachiwahi nawanyana. para que eia possa ser adequada aos filhos".

cortado e dado a um perito do sexo feminino para carregar. Segundo um conhecedor, "ela volta-se para o leste, porque tudo vem do leste (kabeta kamusela], onde o sol nasce; quando algum morre, o rosto virado na direc,ao do leste, significando que ele nascer outra vez, mas urna pessoa estril (nsama) ou urna feiticeira (muloji) enterrada com a face para o oeste, a fim de que morra para sempre". Em resumo, o leste a dirego auspiciosa e doadora de vida.

Urna libaco de cerveja entao derramada na cavidade sobre os alimentos, a fin de que "as sombras possam vir comer e beber ali". Em seguida, o mdico enche de agua, ou de cerveja, e de argila branca pulverizada (mpemba ou tnpeza) e sopra isto sobre os risonhos assistentes dispersos, o que eito em sinal de bnc.ao. Depois, a paciente posta de pe, encostada rvore, com o rosto voltado para o leste, enquanto pedacos de casca sao cortados da rvore e postos na cesta (vejam-se as Figuras 9 e 10), e um ramo frondoso
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FIGURA 9. Cerimnia dos gmeos: a paciente fica de pe, encostada rvore medicinal, com o rosto voltado para o leste, a direco do renascimento. O mdico corta porges de casca, com a machadinha do ritual e langa-as na cesta.

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Iheres fazem jardins no solo rico e preto de aluvio ao lado dos riachos, e ensopam as razes de mandioca em poc.as formadas ali por perto. No Wubwang'u, ha urna rvore "mais velha" separada para o mato, e outra para o riacho. Kata wubwang'u a rvore "mais velha" para o mato. O fruto desta rvore dividido em duas porcSes simtricas, que os ndembos comparam explicitamente aos gmeos (ampamba ou ampasa). Urna quantidade de outras rvores da mata seca sao a seguir visitadas procura de pedacos de casca e de galhos frondosos. Passo a citar, abaixo, urna lista contendo os nomes de cada especie, acompanhada de urna abreviada explicafo nativa sobre a razo por que a rvore utilizada.
ESPECIE

Explicaco Ndembo

Termo Ndembo 1. Kata Wubwang'u 2. Museng'u

Denominafo Botnica "Duplos f r u t o s gmeos" "Urna f l o r produz muitos frutos pequeos os gmeos sao c o m o urna so pessoa" "Produz f r u t o s , e assim d a r me muitos filhos" Idntica de n 3 Idntica de n' 3 Idntica de n' 3 "tem f r u t o s finos, como folhas; sao azedos (batuka), usados como condimento" "De ku-solola 'tornar visvel' fazer com que urna mulher que nao tenha filhos possa ger-los". "Sua resina vermelha chamada 'sangue' para dar mu-

Ochna pulchra

FIGURA 10. Cerimnia dos gmeos: esta figura ilustra a identitificago ritual dos gmeos, neste caso de sexos opostos. O homem de branco gmeo da paciente que est de costas para a trepadeira fnolu-wawubwang'u da qual esto sendo cortadas folhas medicinis. Ele deve ficar perto dla, em cada ato de cortar medicinal.

3. Mung'indu 4. Mucha 5. Mufung'u 6. Kapepi

Swartzia madagascariensis Parman mobola ? Arisophyllea boehmii Hymenocardia acida

A rvore kata wubwang'u, como no soma, conhecida como "a mais velha", ou "o lugar de saudaco", sendo um smbolo multvoco (isto , que tem multas acepces). Tal smbolo considerado o lugar crtico de transico dos modos de comportamento seculares para os sagrados. No Wubwang'u faz-se clara diferenciago entre os remedios colhidos na floresta seca (yitumbu ya mwisang'a) e os apanhados no mato a beira d'gua (yitumbu yetu). O mato liga-se regularmente ao mesmo tempo ca9a e virilidade, enquanto as moitas beira d'gua esto relacionadas com a feminilidade. As mu76

- Musoli

Vangueriopsis lanciflora

Pterocarpus angolensis

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9. Mudumbila 10. Muhotuhotu Canthium venosum

11. Mudeng'ula 12. Mwanalala Paropsia brazzeana

Iher bastante sangue, por ocasio do nascimento" "Tem frutos, da fertilidade mulher" "De ku-h oto moka, 'cair sbitamente' para que a enfermidade da mulher deslize para f o r a do corpo dla" "Tem frutos" (vejase n 3) "De ku-mwang'a, 'dispersar', significa dispersar a doenca"

ou amarelo, sabe-se que de alguma forma houve bruxaria na anomala; a prpria me pode ser urna feiticeira, ou outra pessoa estar enfeiti?ando-a. O remedio ntolu devolye ao leite a cor normal (veja-se tambm Turner, 1967, p. 347). Os ndembos crem que as coisas brancas representam virtudes e valores tais como bondade, pureza, boa sade, sorte, fertilidade, franqueza, comunho social e varias outras auspiciosas qualidades. Assim, molu, o smbolo dominante dentre os remedios da beira d'gua, representa maternidade, lactaco, os seios, e fertilidade. Como Mudyi, molu representa os aspectos nutricionais da maternidade. Os outros remedios da beira d'gua sao, ento, coIhidos. Ei-los segundo a ordem da colheita:
ESPECIE

A este conjunto de remedios vegetis acrescenta-se urna porco de casas de marimbondos. "Talvez por causa de seu grande nmero de crias", foi a supos9o de um informante. Fica, assim, completa a lista de remedios da mata. Em seguida, varios remedios sao obtidos na mata beira d'gua, que forma urna verdadeira galera. A rvore "mais velha" beira do riacho urna trepadeira chamada molu wa Wubwang'u "a trepadeira do Wubwang'u". Os ndembos dizem: "Mola waWubwang'u cresce dando muitos ramos diferentes e espalha-se para formar seu prprio lugar, bem espadse. Da mesma mneira, urna mulher deveria ter tantos filhos quantos sao os ramos da trepadeira". Sua utilizarlo ulterior, no Wubwang'u, ,, dupla: primeiro, ela entrelazada entre os ramos de remedio das enancas, que foram colocados em pe junto da cabana da paciente, para formar um pequeo cercado duplo, semelhante letra m, que servir como santuario para a sombra atormentadora; ern segundo lugar, ela pendurada sobre os ombros da paciente e ao redor do busto. Este uso relembra seu papel de remedio que dever fazer com que o leite do peito de urna mulher fique branco, caso se torne amare' lo ou avermelhado. O leite de cor alterada chamado de nshidi ("pecado"). Se leite estiver avermelhado
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Expllcaco Ndembo

Termo Ndembo 1. Molu waWubwang'u

DenominafSo Botnica Possivelmente urna especie das Convolvulaciae "Cresce dando muitos e diferentes ramcs, e forma seu prprio lugar, b e m espafoso; ela se espalha, assim urna mulher deveria t e r t a n t o s filhos quantos sao os ramos da trepadeira". "Tem muitos frutos, far frtil a mulher". Veja-se o n 10 da lista de remedios da floresta (p. 78). "Porque usado no Nkang'a, os ritos de puberdade d a s mogas, para fazer com que urna mulher seja frtil e amadurecida". "Katuna tem s e i v a vermelha. Assim como urna crianga n a s c e acompanhada de san-

2. Muso'jlsoji 3. Muhotuhotu i ' 4. Mudyi Canthium venosum Diplorrhyncus condylocarpon

5. Katuna

(Uvariastrom hexalobodies) Harungana madagascarienss

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6. Mutung'ul gue, assim tambero a me deve ter muito sangue". "T e m muitas razes espalhadas u m a mulher deve ter muitos filhos. Ku-tung'ula significa 'falar de urna p e s s o a pelas costas", talvez o odio (chtela) venha disto".

Comentario A grande maioria dessas especies representa a fertililidade desejada pela mulher. Algumas relacionam-se com a idia do sangue materno. Um entendido concedeu-me a informacao de que urna enanca que ainda nao nasceu "alimenta-se atravs do sangue da me", indicando desse modo algum conhecimento sobre a fisiologa da reproduco. De grande interesse a conexo de remedios como muhotuhotu e mutung'ulu com dificuldade, maledicencia e rancores. Estas condices sao como um fio vermelho que corre atravs da estrutura ideolgica do Wubwang'u, e, de fato, associam-se ao simbolismo do vermelho. Assim, as criancas que acompanham o mdico de seus pais na mata decoram os restos com a argila vermelha pulverizada e trazida pelo profissional mais idoso (veja-se a Figura 11). As que sao gmeas desenham um crculo vermelho em volta do olho esquerdo, e, com argila branca em p, um crculo branco em volta do olho direito. Estes sao feitos "para as sombras dos gmeos, ou para as mes deles", disseram-me os informantes. De acord com o que disse um deles, o crculo vermelho "representa o sangue", enquanto o branco representa o "vigor" ou a "sorte". Porm outro disse explicitamente que o crculo vermelho representa "o rancor" (chtela), e. ja que foi feito em torno do olho esquerdo, ou olho "feminino", "talvez a causa do ressentimento venha deste lado". Perguntado sobre o que pretenda dizer com isto, ele prosseguiu
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FIGURA 11. Cerimnia dos gmeos: as criangas sao marcadas com crculos brancos e vermelhos em torno dos olhos, distinguindo-os assim em categoras de gmeos e no-gmeos.

afirmando que talvez houvesse hostilidade entre a paciente e sua av, quando esta ltima, agora urna sombra Wubwang'u atormentadora, era viva. Por outro lado, continuou ele, a sombra pode ter ficado enraivecida por brigas dentro do grupo ligado por parentesco matrilinear (akwamama, "aqueles que esto do lado da me") e entao resolveu punir um dos seus membros. De qualquer maneira, disse ele, o odio encontra-se mais freqentemente na matrilinhagem (ivumu, ou "tero")
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do que entre os parentes paternos, que sao benevolentes uns com os outros. Esta era urna tentativa consciente de correlacionar as oposites binarias masculino/feminino, patrilateralidade/matrilinearidade, benevolncia/rancor, branco/vermelho, de maneira inteiramente coerente. Nessa interpretacao acha-se implcito tambm o prprio paradoxo da gemelaridade. Os gmeos constituem ao mesmo tempo sorte e fecundidade razovel e quanto a isto tm afinidade com relaco ideal que deveria ligar os parentes do lado paterno e m sorte e excessiva fecundidade. Diga-se, de passagem, que os ndembos consideram os gmeos de sexos opostos como sendo mais auspiciosos do que os gmeos do mesmo sexo ponto de vista largamente difundido as sociedades africanas possivelmente pelo fato de os gmeos do mesmo sexo ocuparem idntica posicao como irmos, na estrutura poltica e de parentesco. Exceto o simbolismo gmeos-fruto do kata wubwang'u e o simbolismo dos muitos-em-um do museng'u os remedios como tais nao fazem explcita referencia gemelaridade. Ao contrario representan!, cumulativamente, fecundidade exuberante. Mas a incisiva distinco feita nos ritos entre remedios da selva e remedios do mato com passagens, distinco relacionada pelos informantes com a existente entre masculinidade e feminilidade, associa-se ao principal tema dualista do Wubwangu.
OS RITOS DA NASCENTE DO RIO: O RIACHO E O ARCO

de mudyi e outra de muhotuhotu. Sao levadas para junto da nascente de um riacho (veja-se a Figura 12). As varas sao plantadas em cada margem do crrego, opostas urna a outra, com as ponas encurvadas para formar um arco, e bem amarradas. A vara de muhotuhou fica por cima da vara de mudyi. O arco completo c h a m a d o mpanza ou kuhimpa, substantivo verbal que significa "troca". A rvore muhotuhotu usada em varios contextos rituais. Seu significado tende a ser associado pelos ndembos, com algumas de suas propriedades naturais, e tambm com dois verbos dos quais certos "peritos" em ritual derivam alguns dos seus referentes. O hbito de utilizaco da etimologa, conforme mencionei no Captulo I, muito caracterstico da exegese da frica Central. Nao tm importancia saber se a explicacao etimolgica dos nomes dos objetos e acoes do ritual verdadeira ou falsa. Os ndembos esto apenas fazendo uso de um dos processos que enriquecem o contedo semntico de todas as lnguas, a homonimia, que se pode definir como um tipo de trocadilho serio. Se duas palavras de derivaco diferente, mas que soam de mo-

A rvore mudyi (a "rvore de leite"), smbolo central dos ritos de puberdade das mofas, aparece tambm no ritual dos gmeos. De maneira caracterstica, aparece em um episodio que retrata a unidade mstica dos opostos. Aps a coleta dos remedios na cesta, o profissional mais velho do sexo masculino corta urna flexvel vara
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FIGURA 12. Genmnia dos gmeos: os participantes do ritual cnegam a nascente do rio, "onde a capacidade procriativa comega", carregando ramos de rvores medicinis.

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lelhante, podem emprestar urna a outra alguns de ignificados, efetua-se ento o enriquecimento seo. A homonmia excepcionalmente til no ritual, segundo ja disse, relativamente poucos smbolos representar urna multiplicidade de fenmenos. otuhotu algumas vezes derivado do verbo kuina, que significa "cair repentinamente". Diz-se final da estaco da seca as folhas desta rvore im a cair simultneamente, deixando os ramos repente. Do mesmo modo, quando a muhotuhotu a como remedio, as doencas, as desgrasas e os da feiticaria e da bruxaria "cairo" da paciente com ela. Todas as vezes que os ndembos usam issoura medicinal para varrer o corpo com folhas tedio trituradas, a muhotuhotu forma um de seus mponentes. Esta vassoura utilizada mais tipicano ritual contra a feitigaria. m o radical hotu - tem outro derivado, que i influencia o significado de muhotuhotu. E' o ku-hotomoka, cujo sentido me foi dado atravs ormulaco perifrstica: "urna rvore que se aloja sutra rvore e cai sbitamente quando o vento a queda chamada ku-hotomoka. Algumas vezes a urna rvore que cresce sobre o corpo de outra Urna doenca est sobre o corpo de urna pessoa, idico deseja que ela se va embora". particular situaco encontrada no Wubwang'tt, >, afirma-se que muhotuhotu representa "o homem" , enquanto a vara de mudyi representa "a mulher" inda). Todos os conhecedores a quem perguntei am que assim, ressaltando que a muhotuhotu. ! ocada sobre a mudyi. Alm disso, dizetn que o amarrar as varas representa a unio sexual nd). As vezes, urna vara de madeira da kai (especie Pseudolachnostys) usada em lugar wtuhotu. Um galho em forquilha desta madeira entemente usado como santuario no culto dos es. E' urna madeira rija, resistente as trmites, :omparada no ritual de circuncisao dos meninos
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um falo ereto. No ritual ern questo usado como medicamento para produzr a potencia masculina. Neste caso a conexo com a virilidade transparece claramente. Outro grupo de referentes dos objetos rituas relaciona-se com a forma do arco sobre o riacho. Sua denominafo mpanza significa "a forquilha" ou a bifurcaco do corpo humano. Eis o que disse um informante: "Mpanza o lugar onde as pernas se juntam. E' o lugar dos rgos da reproduco, no.s homens e as mulheres". O mesmo smbolo aparece no rito de puberdade das mocas, onde um pequenino arco de madeira mudyi (kawuta) colocado na pona da cabana de recluso da novica, exatamente onde urna vara de madeira mudyi atada a outra vara da madeira vermelha mukula. O arco ornado de contas brancas que simbolizam filhos representa a desejada fecundidade da novica. O ponto de junco das varas tambm chamado mpanza. Esta bifurcafo, bsica para a continuidade biolgica e social, reaparece no simbolismo dualista da gemelaridade. O termo mpanza empregado, na circuncisao dos meninos, para designar um tnel formado pelas pernas dos oficiantes e dos circuncisores mais idosos, sob o qual os guardies mais jovens que cuidam dos novi?os durante o retiro sao obrigados a passar. O tnel ao mesmo tempo urna entrada para a situaco da circuncisao e tambm um modo m g i c o de fortalecer os rgos genitais dos jovens guardies. O simbolismo do tnel neste ritual relembra aquele ja encontrado no soma. O motivo mpanza torna a aparecer no prprio rito do Wubwang'u. Durante os ritos exeeutados mais tarde no santuario da aldeia, os mdicos do sexo masculino passam por baixo das pernas entreabertas, uns dos outros (veja-se Figura 19, p. 98). Mesmo a paciente tem de passar por baixo das pernas dos mdicos. Chama-se a isto kuhanwisha muyeji mwipanza. O tnel do I soma, o leitor deve estar lembrado, designava-se ikela daa

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kuhanuka ou de kuhanuka tem a mesma raiz que ku-hanwisha. At agora, pois, o arco representa a fecundidade, resultante da masculinidade e da feminilidade combinadas. A localizaco do mpnza junto da nascente do riacho tambm significativa. Tal fonte (ntu ou sulu) tida pelos ndembos'como o lugar "onde a capacidade de procriar (lusemu). comeca". A agua classificada pelos especialistas em ritual na categora dos smbolos "brancos". Como tal, tem os significados genricos de "bondade", "pureza", "sorte" e "vigor", de que participa juntamente com outros smbolos desta classe, (Urna ' das funges desse rito , segundo os informantes me disseram, a de "afastar" as doencas lavando-as" (nyisong'u.) Os ps dos mdicos sao lavados "a fim de se purificarem" (nakuyitookesha), ppis existe um elemento de impureza no Wubwang'u, na sua linguagem indecente e agressividade. Porm a agua tem outras significacoes correspondentes a suas propriedades peculiares. ssim, o fato de a agua ser "fria" (atufa) ou "fresca" (atontla) representa "estar vivo" (ku-handa), por oposigo ao candente calor do ,fogo, que, como 'a febre, significa " m o r t e " (ku-fwila), especialmente a morte resultante de feitigaria. Alm disso a agua, na forma de chuva ou de ros, representa "aumento" ou "multiplicaco" (ku-senguka), fertilidade em geral. O simbolismo do mpanza nos ritos de gemelaridade da a entender que a fertilidade humana corrlaciona-se com a fertilidade da natureza. O motivo da "frialdade" tambm exemplif icado quando a profissional mais idosa tira um pedaco de solo preto de aluvio (malow) do riacho, exatamente abaixo do arco. O pedago colocado na cesta de medicamentos e depois forma um dos componentes do santuario da aldeia para o espirito Wubwang'u. Os informantes afirmam que o uso de malow aqu ssemelha-se ao emprego do mesmo pedago de sol nos ritos de puberdde das mogas. Nestes, malow representa feltcidade conjugal (wuluwi), termo relacionado

' - com tuwi, significando "perdao" ou "bondade". Em niuitos outros contextos julga-se que usado porque "fri" devido ao contato com a agua. Sendo "fri", enfraquece as doencas, que, no ritual I soma, sao in:, terpretados como "quentes". Mas est tambm relacio[. nada, segundo os informantes; com a fecundidade, ja que as colheitas crescem exuberantemente nesse tipo de solo. Depois da noite nupcial que se segu ao rito de puberdde das mogas, a instrutora das novigas (nkon^u) coloca um pouco de trra malow em contato com a noiva e com o nivo, espalhando em seguida fragmentos * dla na soleira de cada cabana da aldeia que seja habitada por um casal. Os ndembos dizem que isto significa que "o casal agora se ama convenientemente e a instrutora deseja unir todos os casis da aldeia com amor idntico". A nogo de que o casamento deveria ser, de maneira ideal, fecundo e pacfico, est xpressa de maneira bastante c l a r a pelas mulheres ndembos. Afirmam que o tipo de marido que preferem um ho:mem bem disposto, trablhador e de f ala tranquila. Um homem assim, dizem elas, ser "pai de dez filhos". Este tipo ideal, como visto pelas mulheres, representa exatamente, o oposto do tipo de personalidade masculina exaltado nos cultos dos cagadores, a especie de homem que, como diz um canto ritual dos cagadores, "dorme com dez mulheres num so dia, e um grande ladro". De lato, recomenda-se as mulheres, em tais contextos, que dem os corages a esses brutais, rixentos e sensuais homens da floresta. Os dois ideis antitticos coexistem na sociedade ndembo, -como na nossa, conforme reconhecer qualquer leitor de o Vento (Levou. Este romance, diga-se de passagem, tambm se baseia num tema dualista, o do Norte contra o Sul, o do capitalismo contra os grandes proprietrios de trra. Alm disso, nao so a unio fecunda, mas tambm o combate dos sexos mostrado em varios episodios do ritual dos gmeos. Assim, o arco mpanza representa o amor fecundo e legtimo entre o homem e a mulher. Os principios
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masculino e feminino estabelecem urna "troca" de qua~ lidades; as margens opostas do riacho sao reunidas pelo arco. A agua da vida flu por baixo dele, sendo a frialdade e a sade os modos predominantes. Depois que o mpanza feito, a paciente fica de pe sobre urna tora de madeira no meio da agua (veja-se a Figura 13). Os peritos do sexo feminino e suas filhas alinham-se sobre o tronco atrs dla, por ordem de idade. O mais idoso profissional do sexo masculino traz a cabala pequea (ichimpa), francamente comparada pelos informantes a um falo (ilomu), sendo do tipo usado para treinar as novicas na tcnica sexual, no rito de puberdade das mocas, e retira da cabaa a argila branca (mpemba) em . p. Os mdicos do sexo masculino previamente acrescentaram determinados ingredientes argila branca, pequeas porces de mpelu ou pedamos de materia animal ou orgnica, usados como ingredientes da magia de contagio. No Wubwang'u sao classificados como smbolos "brancos", contando-se entre eles porces brancas, pulverizadas, do besouro gigante, tambm usado como talism nos cultos de cac.a; alguns fios de cbelo de um albino (mwab), considerado como um ser auspicioso; penas brancas de papagaio pardo (kalong'u); e penas de pombo branco (kapompa). Todos e s s e s elementos correlacionam-se com a caga e a masculinidade, bem como com a brancura. A prpria argila branca refere-se explicitamente ao semen (matekela), que, por sua vez, diz-se que o "sangue purificado pela agua". O profissional mais velho defronta-se com a paciente, pe-lhe o p branco na boca e sopra-o sobre o rosto e o peito. Em seguida, a profissional feminina mais idosa, de pe logo atrs da paciente, toma um pouco de argila vermelha (mukundu) em p da concha de um grande caracol aqutico chamado nkalakala, pe-no na boca e sopra-o sobre o rosto e o peito da paciente. O ato de soprar (ku-pumina ou ku-pumb) representa ao mesmo tempo o orgasmo e a bnco com as boas coisas da vida (ku-kiswila nkisu). Proporciona
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FIGURA 13. Cerimnia dos 'eiram-se sobre urna troca Pfeparam-se para soprar dentro da
a s

gmeos: paciente e entendidos enfide madeira, no riacho, e os mdicos argila branca e vermelha em p orelha da paciente.

jnda, outro exemplo da bipolaridade semntica dos 'rnbolos rituais. O sopro com a argila branca e depois c om a vermelha dramatiza a teora ndembo da procria?ao. Meu melhor informante, Machona, interpretou o rito
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da seguinte maneira: "A argila branca representa o semen e a argila vermelha o sangue materno. O pai primeiro da sangue a me, que o guarda no corpo e o faz crescer. O semen este sangue, misturado e embranquecido com a agua. Origina-se do poder do pai. Permanece na me como urna sement de vida" (kabubu kawumi). Muchona, e alguns outros, defendem o ponto de vista de que ambas, a argila branca e a vermelha, deveriam ficar dentro da concha do caracol, para representar a unio dos dois parceiros, o masculino e o feminino, na concepfao de um filho. Todava, em todas as execuc.6es do Wubwang'u a que presencie!, a argila branca e a vermelha eram guardadas em recipientes separados. O que ha de interessante no ponto de vista de Muchona que ele acenta o aspecto unificador do rito.
A CONSTRUYO DO SAGRARIO DOS GMEOS NA ALDEIA

O dualismo prevalece no rito pblico que se realiza em seguida na aldeia da paciente. Isto significativamente representado tanto pela estrutura binaria do sacrrio dos gmeos, como pela explcita oposic.o dos sexos na mmica, na danc.a e nos cantos. Os mdicos retornam do rio carregando galhos cheios de folhas, como numa procissao de domingo de Ramos, embora constituida principalmente de mulheres e criabas (veja-se a Figura 14). Lvi-Strauss considerara talvez a presenca de crianzas na coleta de medicamentos, muito anmala no ritual ndembo, como sinal de que as crianzas sao "mediadores" entre os homens e as mulheres, porm os ndembos julgam-nas smbolos (yinjikijilu) de gemelaridade (Wubwang'u) e de fecundidade (lusemu). Querern tambm que "se fortalegam, pois tudo o que ca no mbito do Wubwang'u por nascimento, ou relacjo, cr-s que se tenha enfraquecido e necessite de revigoramento mstico.

i ,

FIGURA 14. Cerimnia dos gmeos: os participantes do ritual voltam do rio carregando ramos, como urna procissao de domingos de Ramos.

O sacrrio da gemelaridade na aldeia construido acerca de cinco metros em frente da cabana da paciente. E' feito com os galhos frondosos recolhidos na mata, um de cada especie medicinal, em forma de semicrculo, tendo mais ou menos quarenta e cinco centmetros de dimetro. Faz-se no centro urna separado ds ramos, dividindo-o em dois compartimentos. Cada u m deles finalmente preenchido com grupos de objetos r 'tuais. Mas, em diferentes execuces a que assisti, os Viciantes mais idosos tinham diferentes opinioes sobre I modo como os compartimentos deveriam ser consi^rados, e isto influenciava a escolha dos objetos. Urna s cola de pensamento afirmava que o compartimento
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chamado do "lado esquerdo" devena conter: 1) urna base de lama preta do rio (malowa) tirada do lugar situado debaixo dos ps da paciente, nos Ritos da Nascente do Rio; "para enfraquecer as sombras causadoras da condico de Wubwangu; 2) um pote de argila preta (izawu), salpicado de argila branca e vermelha, tirada de dentro da cabaca em forma de falo e da concha do molusco aqutico (veja-se a Figura 15); e 3) no vaso, devena haver agua fria misturada a lascas da casca das rvores medicinis (vejam-se as Figuras 16 e 17). Em contraste, o compartimento do lado direito deveria conter urna pequea cabaa com cerveja sagrada feita

FIGURA 16. Cerimnia dos gmeos: as mos de todos os peritos coletivamente despejam agua dentro do vaso de medicamentos, cada um deles acrescentando sua prpria "forca".

FIGURA 15. Cerimnia dos gmeos: construgo do sacrrio dos gmeos. O vaso de remedios decorado com pequeas pinceladas brancas e vermelhas. Na cesta ha urna roliga raiz de mandioca, que o alimento mencionado p. 59.

de mel (kasolu), normalmente urna bebida de homens e de catadores, usada como beberagem sagrada nos cultos de cacadores. E' muito mais inebriante do que qualquer outra das cervejas dos ndembos, e sua qualidade "de subir cabeca" considerada apropriada brincadeira sexual que caracteriza os ritos. O mel, tambm, um smbolo do prazer das relacoes sexuais (veja-se, por exemplo, a canco p. 101). Nessa variante, o compartimento do lado esquerdo considerado feminino, e 0 do lado direito, masculino. Cada compartimento chafado chipang'u, o que significa "cercado" ou "sebe", e m geral circundando um espaco sagrado, como o lugar ^a habitado e a cabana de medicamentos de um chefe.
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FIGURA 17. Cerimnia dos gmeos: o sacrrip dos gmeos esta pronto. E' evidentemente um sacrrio binario, com dois^ compartimentos, envolvidos pela trepadeira molu waWubwang'u. No compartimento da esquerda fica o vaso preto de medicamentos, sob o qual se pode ver a lama preta. No da direita est a cabaga contendo cerveja sagrada feita de mel; a cabaga besuntada com argila vermelha e branca.

A paciente salpicada com remedio do vaso, enquanto os peritos, homens e mulheres, bebem cerveja juntos. Nesta forma do ritual, o principal dualismo o do sexo. Porm, em outra variante descrita p. 108 o compartimento da esquerda de proporcoes menores do que o outro. Aqu a oposico entre fecundidade e esterilidade. O compartimento da direita do chipang'u representa a fecundidade e as sombras feriis e benficas; o compartimento da esquerda considerado como o das pessoas esteris (nsama) e das sombras de pessoas esteris e malficas (ayikodjikodji). Um grande vaso de barro decorado com argila branca e vermelha, como na fritos, colocado no compartimento o como a "av" (nkaka
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honda), e representa a sombra atormentadora que outrora foi tambm me de gmeos. O outro compartimento que tem interesse para a pesquisa antropolgica. Ha urna frase enigmtica na narrativa dos ritos reais (veja-se adiante, p. 109), nyisoka yachifwifwu chansama, que literalmente significa "rebentos de um feixe de folhas de urna pessoa estril". O termo nsama representa um homnimo, na realidade um sinistro jogo de palavras. Um dos sentidos da palavra "um feixe de folhas, ou de capim". Quando um cacador deseja obter mel, sobe a urna rvore at a colmeia (mwoma) e puxa atrs dele numa corda um feixe de capim ou de folhas. Joga a corda sobre um galho, pe fogo no feixe nsama, e suspende-o at ficar sob a colmeia. Comeca a fumegar intensamente e a fumaca expulsa as abelhas. Os restos enegrecidos do feixe sao t a m b m chamados nsama. Nsama significa anda "urna pessoa estril ou infecunda", talvez no mesmo sentido em que dizemos "um caso sem esperanzas". O preto , com freqncia, mas nem sempre, a cor da esterilidade no ritual ndembo. No Wubwang'u, quando os habis conhecedores retornam da floresta com ramos frondosos, o profissiona! mais velho arranea algumas folhas desses galhos e amarra-as formando um feixe, conhecido como nsama yawayikodjikodji abulanga kusema anyana, "o feixe das sombras malvolas que nao deixam parir filhos" ou, abreviadamente, nsama. Ento, esse chimbuki (mdico) toma urna cabaca (chikashi ou lupanda) de cerveja de milho ou de urna especie de sorgo e despeja-a no nsama corno urna libacao, dizendo: "Vos todas, sombras sem filhos, aqui est a vossa cerveja. Nao podis beber a cerveja que ja est despejada dentro deste vaso grande" (no compartimento do lado direito). "Aquela a cerveja Para as sombras que tiveram filhos". Coloca ento a Porc,ao de lama preta do rio no chipang'u e pe o feixe em cima da lama. Acredita-se que a argila preta sirva para "enfraquecer as sombras causadoras doenfas".
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Bibliotecas

Outra diferenca entre as duas formas de cercado chi~ pang'u que naquela que acenta o dualismo sexual se insere urna flecha atrs do vaso situado, no compartimento da esquerda, com a ponta para baixo (vejase a Figura 18). A seta representa o marido da paciente. As setas com esse significado aparecem em varios rituais dos ndembos, e o nome para a quantia paga pelo marido para obter a noiva nsewu, "flecha". Nos ritos que acentuara a dicotoma entre fecundidade e esterilidade a flecha nao empregada. Nos ltimos parece haver urna igualdade entre esterilidade e gemelaridade, pois os gmeos freqentemente morrem; o excesso a mesma coisa que a deficiencia. Em ambos os tipos, nao obstante, a trepadeira fluvial, molu waWubwang'u entrelazada lateralmente atravs dos ramos verticais, cheios de folhas, do sacrrio. Faz-se a paciente sentar-se numa esteira diante do sacrrio, e os ombros dla sao envolvidos em ramos da trepadeira molu waWubwang'u, para Ihe dar fecundidade e, em especial, um bom suprimento de leite (veja-se a Figura 19). Ela , entao, constantemente aspergida com remedios enquanto aquilo que chamo "ritos da peleja de fecundidade entre os sexos" estrondeia alegremente no lugar das danfas, entre o sacrrio e a cabana da paciente. Considera-se conveniente se pedamos de folhas de remedios aderem pele da paciente. Sao os yijikijilu, ou "smbolos" da manifestado Wubwang'u das sombras. Fazem com que a sombra se torne visvel para todos nesta forma de gemelaridade embora transubstanciada em folhas.
RELEJA DE FECUNDIDADE ENTRE OS SEXOS

O aspecto seguinte do Wubwang'u para o qual gostaria de chamar a atengo a brincadeira sexual entre dois sexos, que marca duas fases daquele rito. Temos aqu urna expresso do paradoxo dos gmeos, apresentada como brincadeira, ou, conforme dizem os ndembos, co-

'GURA 18. Cenmnia dos gmeos: urna flecha inserida no '^partimento esquerdo do sacrrio dos gmeos. A cesta foi colocada sobre o vaso de medicamentos.

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Pf

ocesso... Ec) 2877 4

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FIGURA 19. Cerimnia dos gmeos: os ombros da paciente sao cobertos com a trepadeira ,molu waWubwang'u, para Ihe dar fecundidade e urna boa quantidade de leite. V-se um mdico do sexo masculino arrastando-se por baixo das pernas de outro mdico, a fim de dar vigor sexual (vejam-se p. 85 e 113).

mo "urna relaco jocosa" (wusensi). A referencia especfica dos ritos dirige-se divisao da humanidade ern homens e mulheres e ao despertar do desejo sexual pela acentuaco da diferenca entre eles, em forma de comportamento antagnico. As sombras dos mortos, de certa maneira, nao tm sexo, ja que se acredita que do seu nome e caractersticas pessoais as crianzas de ambos os sexos, e, num determinado sentido, que nasc.am & novo nelas. E' a sua humanidade genrica que se salienta, ou talvez, sua bissexualidade. Mas os seres vivo8 sao diferenciados pelo sexo, e as diferencas sexuais sao, como escreve Oluckman (1955), "exageradas pelos cos-

turnes" (p. 61). No Wubwang'u, os ndembos estao obcecados pela alegre contradicho de que quanto mais os sexos acentuam as diferencas entre eles e a agresso mutua, mais desejam o encontr sexual. Cantam cancoes obscenas e rabelaisianas, durante a coleta dos remedios na floresta e no final da danca pblica, quando a paciente borrifada com esses remedios, sendo que algujnas cancoes pem em relevo o confuto sexual e outras sao ditirambos em louvor da unio sexual, freqentemente especificada como adlteras. Cr-se que essas canc.5es "revigorem" (ku-kolesha) tanto os medicamentos quanto a paciente. Acredita-se tambm que fac.am os assistentes ficarem fortes sexual e corporalmente. A principio, antes de cantar as cancoes obscenas, os ndembos entoam urna frmula especial, "kaikaya wd, kakwawu weleli" ("aqu outra coisa feita"), que tm o efeito de tornar legtima a menco de assuntos que, de outro modo, seriam o que chamam de "urna coisa secreta, de vergonha ou de pudor" (chuma chakujinda chansonyi). Idntica frmula repetida nos casos legis concernentes a assuntos como adulterio e quebras de exogamia, quando as irms e as filhas, ou contraparentes (aku), dos queixosos e dos defensores esto presentes. Os ndembos tm urna frase costumeira, que explica as canfSes Wubwang'u. Este canto liberado da vergonha, porque o despudor (urna caracterstica) do tratamento c u r a t i v o do Wubwang'u (kamina kakadi nsonyi mulong'a kaWubwang'u kakuuka nachu nsonyl kwosi). Em resumo, o Wubwang'u urna ocasio de desrespeito autorizado e de impudicia prescrita. Mas nenhuma promiscuidade sexual posta em prtica no comportamento real deles; a indecencia expressa sbente por palavras e por gestos. Os cnticos, em ambas as fases, decorrem segundo Urna serie ordenada. Primeiramente, os membros de casexo depreciam os rgos sexuais e as facanhas dos do sexo oposto, exaltando os seus prprios. mulheres, por zombaria, asseguram a seus maridos tm amantes secretos e os homens replicam que
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tudo o que cnsguem das muiheres sao doenc.as venreas, conseqncia do adulterio. Posteriormente, ambos os sexos louvam, em termos lricos, os prazeres da relafo sexual. A atmosfera alegre e agressivamente jovial, homens e muiheres empenhando-se em apuparemse uns aos outros (veja-se a Figura 20). Julga-se que o canto agrade poderosa e alegre manifestafo das sombras no Wubwang'u.

II

Kakweji nafu namweki., A la, que se tinha ido, aparece, Namoni iyala hakumwemweta. Eu vi o homem para quem sorrir. Eye iyayi eye! Me! Twaya sunda kushiya nyisong'a, Venha e copule para deixar as doenc.as, Lea tala mwitaku mwazowa Hoje olhe para urna vulva mida Nyelomu eyeye, nyelomu! Me do penis! Me do penis! Ye yuwamuzang'istia Aquilo dar a voc muito prazer. Nashinkaku. Nashinki dehi. Eu nao fecho. Eu ja fechei. Wasemang'a yami wayisema, Voc est dando nascimento, eu sou a que da nascimento Nimbuyi yami. Sou o mais velho dos gmeos. Mwitaku mweneni daloma kanyanya, Urna vulva grande, um penis pequeo, Tala mwitaku neyi tmvihama dachimbu, Olhe, urna vulva como a testa de um leo, Nafumahu ami ng'ang'a yanyisunda. Vou-me embora, eu, um verdadeiro mgico da cpula. Kamushindi ilomu, Esfregarei o seu penis Yowu iyayi, yowu iyayi!
Me, Me!

FIGURA 20. Cerimnia dos gmeos: homens e muiheres jovialmente insultam-se uns aos outros, simbolizando verbalmente a competigo de fecundidade entre os sexos. Nafuma mwifundi kumwemweta "Vou embora para ensinar a ela como sorrir, lyayi lela iyayi kumwemweta. A sua me, hoje, sua me como sorrir.

Mpang'a yeyi yobolong'a chalala. Seu escroto intumescido estimula a vulva, sem dvida. Mwitaku wakola nilomu dakola, Urna vulva forte e um penis forte, Komana yowana neyi matahtt, wuchi wawutowala sunji yakila. Como comicha feito grama! A cpula como o doce mel. Ilomu yatwahandang'a O penis est fazendo com que eu fique forte, Eyi welili neyi wayobolang'a, iwu mutong'a winzeshimu. Voc fez algo quando brincou com a minha vulva, aqui est a cesta, encha-a".

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A BRINCADEIRA ENTRE OS SEXOS E ENTRE OS PRIMOS CRUZADOS

O que notvel a perfeita igualdade entre os sexos nesta mutua e gracejadora "flyting" (disputa)", usando um termo tomado de emprstimo aos poetas escoceses chaucerianos, empregado para designar urna competido de versos satricos. Nao ha indicios de que este seja um "ritual de rebelio", no s e n t i d o de Gluckman (1954). O que representado no Wubwang'u parece associar-se mais ao confuto entre virilocalidade, que interliga os parentes e expulsa as parentas de suas aldeias nativas, e matrilinearidade, que assegura a supremaca estrutural fundamental da descendencia atravs das muIheres. Esses principios acham-se muito uniformemente equilibrados na vida secular, como suger em Schism and Continuity in an African Society (1957). Os ndembos explcitamente relacionan! as brincadeiras do Wubwang'u com as costumeiras brincadeiras entre primos cruzados. As duas especies sao chamadas wusensi, e implicam um elemento de rplica sexual. A importancia da rela?3o entre primos cruzados (wusonyi) na sociedade ndembo deriva, em grande parte, da oposic.o entre virilocalidade e matrilinhagem. Isto porque as aldeias tendem a conter quase a metade, do total de crianzas, igual ao nmero de filhos de irms de homens da gerao mais idosa do .parentesco matrilinear (Turner, 1957, Quadro 10, p. 71). Estes sao agrupados em conjunto, como membros de urna nica gerac.o genealgica em oposic.o a geraco adjacente mais velha. Mas os primos cruzados esto tambm separados uns dos outros: os filhos de homens da aldeia entram em competidlo com seus primos cruzados pelos favores e atenaces dos pais. A virilocalidade, numa sociedade de descendencia matrilinear, tambm da ao individuo duas aldeias, as quais ter fortes direitos legtimos de residir, aquelas, respectivamente, dos pa0 Flyting: gerundio do dlaleto ingls (fl'yte); urna disputa ou troca de insulto pessoal, em forma de versos. Aoa do tradutor.

rentes do pai e dos parentes da me. Na prtica, muitos homens acham-se dilacerados entre lealdades rivais a uns ou a outros, ao lado paterno ou ao lado materno. Contudo, como filho de seu pai e de sua me, cada homem representa a unio de ambos. Julgo que a igualdade aproximada de vnculos existentes entre os lados masculino e feminino da sociedade ndembo, sem que nnhum dos dois grupos seja considerado axiomticamente dominante, est simbolizada no Wubwang'u pela oposifao ritual entre homens e mulheres. A relaco entre primos lafo de parentesco que mais plenamente expressa a fecunda tenso entre esses principios, pois exprime a unidade residencial de parentes ligados por matrilinearidade e patrilinearidade. Os primos cruzados de sexos opostos sao encorajados a se casarem, e, antes do casamento, podem entregar-se a divertimentos amorosos e a brincadeiras obscenas uns com os outros. Pois o casamento produz urna unidade temporaria dos sexos, cujas diferencas, estereotipadas e exageradas pelo costume, foram associadas a principios iguais e opostos da organizaco social. Conseqentemente, nao contrario com o modo ndembo de ver as coisas que comparem as relances sexuais jocosas com as brincadeiras entre primos cruzados. O Wubwang'u, tambm, apesar de toda a sua impudicicia, exalta a instituifo do casamento no simbolismo do arco mpanza e no da flecha que representa o marido, introduzida no sacrrio chipang'u. A flecha representa o marido da paciente. No ritual de puberdade das moc.as, urna flecha colocada na rvore mudyi simboliza a figura do noivo, e , na verdade, o termo usado para designar o principal Pagamento de nupcias nsewu, que significa "flecha". O impulso de procriar fica domesticado a servido da sociedade atravs da instituicao do casamento. E' isto , que o simbolismo sugere. E o casamento entre primos I Buzados, quer matrilineares quer patrilineares, a fora preferida.
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A CONTENDA PELA FILIACAO RESIDENCIAL ENTRE MATRILINHAGEM E VIRILOCALIDADE

Repetindo, diremos que a sociedade ndembo regula-se por dois principios residenciis, de poder quase igual: a descendencia matrilinear e a virilocalidade-patrilocalidade. Esses principios tendem a entrar em confuto e nao a se ajustar, como afirmei em Schism and Coninuiy (1957), o que se deve, em parte, a razes ecolgicas. Os ndembos cultivam urna especie vegetal de consumo geral, a mandioca, que se desenvolve em muitos tipos de solo, e cacam animis das florestas, largamente distribuidos por todo o territorio. Nao criam gado, e os homens atribuem alto valor cac.a, que pode ser exercida em todo o pas ndembo. A agua encontra-se por toda parte. Nada ha que obrigue as populares a se fixarem em zonas limitadas do territorio. Dada a existencia de dois principis modos de filiago, nao existe peso ecolgico a favor. de qualquer dos dois principios. So quando urna comunidade africana est fixada a reas limitadas de trra frtil, ou quando pode explorar apenas urna nica especie de, recursos movis (como grandes rebanhos de gado), que se pode encontrar a supremaca em diversos campos de atividade de um nico principio de organizado do parentesco, a patrilinearidade e a matrilinearidade. as cond95es ecolgicas dos ndembos a filiac.o residencial atravs dos lagos masculinos (marido ou pai) entra em livre competico com a matrilinearidade. Em certo momento, urna determinada aldeia pode mostrar, em sua composic.o residencial, a predominancia de um modo, e, ern outro momento, a de outro modo. Acredito que essa competic.o estrutural entre os mais importantes principios da filiac.o residencial um fator decisivo para explicar (1) a maneira como os ndembos tratam os gmeos, e (2) seu conceito da dualidade, nao em termos de um par de semelhantes, mas de um par de opostos. A unidade de tal par a mesma de urna unidade tensa, ou Gestalt, cuja tenso se constitu
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de forc. ol fealidade inextirpveis, implacavelmente opostas,. e cuja natureza, enquanto unidade, constituida e limitada pelas prprias forjas que lutam no Seu ntimo. Se essas forjas irreprimveis e mutuamente implicadas sao ambas partes de um ser humano ou de um grupo social, podem tambm constituir poderosas unidades, anda mais se ambos os principios ou protagonistas em confuto sao conscientemente reconhecidos e aceites. Sao unidades naturais por si mesmas devendo ser distinguidas das unidades planas arbitrarias, que podem ser reduplicadas externamente. Pprm nao sao exatamente iguais aos pares dialticos de opostos de Hegel ou de Marx, urna de cujas partes, depois de dominar a outra, da origem a novas contradices no seu prprio interior Levada em conta a persistencia da ecologa ndembo, as partes dessa unidade tensa sao da mesma classe e, na sua mesma oposigo, passam a model-la, a constitu-la. Urna nao aniquila a outra; de certo modo, estimulam-se mutuamente, como fazem em forma simblica os sexos que escarnecem um do outro no Wubwang'u. Somente a mudan?a socio-econmica pode romper este tipo de Gestalt social. Em^,Sehism 'and Continuity tentei analisar varios aspectos desse tipo de unidade, a da matrilinearidade por oposic.ao virilocalidade; individuo ambicioso por oposi?o ao ncadeamento mais ampio da 'familia matrilinear; a familia elementar em face do grupo de irmaos uterinos, oposi?o que pode tambm ser considerada como tenso entre os principios patrifiliais e matrilineares; a audacia da juventude contra a tirana da gerago mais velha; a busca de urna posicjo social diante da responsabilidade; a feitic.aria isto , os sentimentos hostis, rancores e intrigas contra o amistoso respeito pelos outros, etc. Todas essas forjas e principios podem estar c o n t i d o s dentro da unidade ndembo, pertencem a ela, dao-lhe colorido, constituem essa prpria unidade. O que nao pode estar incluido nela sao as pressoes modernas e o enriquecimento. Que acontece, portante, no decurso do ritual WubOs principios opostos nao esto permanentemen105

te concillados ou combinados. Como podem estar, se s ndembos per.manecem no nivel da tecnologa e com a particular ecologa que descrevi? Mas, ao invs de ficarem uns contra os outros no antagonismo ceg do interesse material, "nao vendo nada alm de si megmps", por assim dizer, eles se reorganizan! uns com o.s_o_ij.trSs na unidade transcendente, consciente, reconhecida jda sociedade ndembo, da qual constituem os princpjos.._JE assim, em determinado sentido, por certo tempo, ejes realmente se tornam um jogo de forcas 7 e_m viz"~de~ urna batalha implacvel. Os efeitos de tal "jogo" logcT desaparecen!, mas o ferro venenoso temporariamente* arrancado de certas relances perturbadas.
A GEMELARIDADE COMO MISTERIO E ABSURDIDADE

tada conquista da fecundidade sob varias especies, no entanto a niae de gmeos recebe demasiada quantidade dla de urna so vez. O que ha de interessante a respeito tanto do misterio qu.anto do absurdo da gemelaridade que os ndembos, no ritual do Wubwang'u, decidiram exibir os principis conjuntos de. dades complementares e antitticas recoj Triieejdos__ern sua cultura. Contudo, quanto ao aspecto | de -misterio, hStambm o evidente aparecimento do sagrado tringulo de cores, branco-vermelho-preto (veja-se Turiier, 1967, p. 69-81). Estas cores constituem, para o"s ndembos, rubricas, classificatrias que agrupam e orderiam -toda-.urna hierarquia de objetos, pessoas, atividades, episodios, gestos, acontecimentos, idias e valores rituais. Na fdnte ,do rio, os dois tipos de argila, a branca e a vermelha, renem-se com a fria lama preta do rio, sendo o conjunto interpretado como significando a uniao i "Idos sexos em um casamento pacfico e fecundo. Mas, evidentemente, o tringulo, conforme se pode deduzir de ! seu aparecimento .em outros rituais, mais complexos e fundamentis, principalmente os referentes crise da vida, tm um significado mais profundo do que esta especificado de situago dentro de sua total riqueza semntica. O tringulo representa a ordem social e csmica in-teira reconhecida pelos ndembos, n^ sua harmona e equilibrio, onde todas as contradices empricas se resolvem msticamente. A perturbagao ocasionada pela manifestafo das sombras no Wubwang'u aqu ritualmente neutralizada por u m a representado de ordem quinta-essencial, representadlo, que, acredita-se, tm eficacia, e nao urna mera reuniao de sinais cognoscitivos. O ' Wubwang'u um ritual que vai, com regularidade, da xpresso de desordem jocosa de ordem csmica, voltando desordem, para finalmente ser resolvido pela remocao da paciente, parcialmente segregada da.-.'vida- secular at que tenha sido retirada dla arcmdieo de perigo. Esta oscilacao , at certo ponto, homologa estrutura processual do /soma. Porm a
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Os episodios rituais que aprsente!, embora superficialmente os Ritos da Nascente do Rio, e do Duplo* Sacrrio com a Luta de Fecundidade entre os Sexos relacionam-se com dois aspectos do paradoxo da gemelaridade. O primeiro encontra-se no fato da nogao 2 = 1 poder ser encarada como, um misterio. D fato, os ndembos caracterizara o primeiro episodio' por um termo que exprime amplamente este sentido. E' mpang'u, que se aplica ao episodio central e mais esotrico de um rito. A mesma palavra tambm significa "urna expresso secreta ou senha", tal como usada pelos novicos e seus guardies na cabana da circunciso. Os ritos na nascente do riacho representara un misterio religioso, como os antigos gregos e romanos, ou os dos cristos modernos, porquanto dizem respeito a assuntos ocultos inexplicveis, alm da razo humana. O segundo aspecto a impresso que os ndembos tm de que,2=,l constitu um absurdo, urna enorme e quase brutal brih-j cadera. Embora grande parte de seus ritos seja devq-j i 7
Minha cunhada, a Sra. Helen Bernard, da Universidade de Welllngtofl. Nova Zelandia, chamou-me a atencSo para a semelhanc.a deste ponto de vista com a nogao hind de um lila.

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'8LOTECA

CENTRAL

UFES

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dor diferenca entre esses ritos a constante acenico no Wubwang'u da opos9o entre os sexos e s principios sociais de filiado, derivados dos pas sexo oposto. No Isoma, a diada sexual ficava surdinada anttese vida/morte. No Wiibwangu a losico social o principal tema.

WA CONCEPTO NDEMBO SOBRE O WUBWANG'U 2ceio que at aqui nao tenha permitido aos ndembos larem suficientemente sobre o significado do Wubang'u. Para apresentar a "concepco interior" que eles m, e oferecer ao leitor a oportunidade de comparar a terpretaco deles com a minha, traduzirei comentarios le gravei, feitos por peritos do Wubwang'u quer duinte as reais execuces dos ritos quer logo depois, em bates informis. Comecarei por um relato sucinto do processo inteiro, .1 como foi contado por um experiente mdico do sexo asculino: Neyi nkaka yindi wavwalili ampamba, "Se a av dla (da paciente) deu luz gmeos, neyi nkaka yindi nafwi dehi e se a av dla ja morreu, chakuyawu nakuhong'a kutiya mukwakuhong'a quando eles vo adivinhar o adivinho responde nindi nkaka yeyi diyi wudi naWubwang"u e diz: Sua av a que tem Wubwang'u, diyi wunakukwati nakutwai, ela a que apanhou voc, ktilusemu IwaWubwang'u que trouxe voc para o estado reprodutivo do Wubwang'u dichu chochina hikukena walwa e assim, por conseguinte, ela deseja- cerveja nakumwimbila ng'oma yaWubwang'u para o toque dos tambores (ou danga) do Wubwang'u. Neyi wudinevumu akumujilika hakuvwala chachiwahi Se voc tem um tero (isto , se est grvida), ela probe-a e dar luz de maneira satisfatria. Neyi eyi navwali dehi chachiwahi Se voc ja deu luz de maneira satisfatri,

kunyamuna maza amakulu deve (haver) urna renovaco e disperso daquelas palavras primitivas hikuyimwang'a hikutela acheng'i e um corte (de remedios) (isto , os ritos devem ser curnpridos outra vez) nakuwelishamu mwana mukeki. a fim de que o beb possa ser lavado (neles). Neyi nawa aha mumbanda navwali apipamba. Algumas vezes quando urna mulher teve gmeos akuya ninyana mwisang'a eles iro com as criancas ao mato nakumukunjika kunyitondu yakumutwala kumeji e pem-na de pe ao lado das rvores e lvm-na at a agua nakusenda nyolu e carregam ramos (da trepadeira mola waWubwang'u) yakupakata nakukosa mama yawu para enfeit-la (por cima e por baixo dos bracos) e lavam a me ninyana hamu hikutwala anyana ka mltala e as criangas exatamente da mesma maneira e transportara as criancas para a aldeia. Kushila kuna ku mukala Quando chegam la na aldeia, hikutung'a chipang'u kunona yitumbu eles constroem um (pequeo) cercado (para um sacrrio) e apanham remedios hikusha mu mazawu izawu dimu danyanya dakusha e colocam-nos em gamelas de medicamentos (ou potes de argila) urna pequea gamela (ou pote) nyisoka yachifwifu chansama para rebentos verdes de um feixe de folhas para urna pessoa estril. Hlkwinka muchipang'u china chanyanya eles pem naquele pequeo cercado, hikunona isawu hikwinka mu chipang'u cheneni. eles pegam (outra) gamela de medicamentos e pem-na no cercado grande. Akwawu anading'i nakuhang'ana nanyoli outros esto danzando com trepadeiras, asabolang'a nyoli naktenteka mu chipang'u, eles s despojan! das trepadeiras e guardam-nas no cercado. Kushala yemweni imbe-e hakuwelisha anyana hamu Eles ficm la cantando e lavara as criancas (com remedio) . nakuhitisha munyendu; e passam-nas sob (suas) pernas; . . chikukwila metele hikuyihang'; .isto. f e i t o -noitin-haj quando eles os pers'eguem;

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mwakukama nawufuku kunamani. quando dormem noite tudo est terminado. Mafuku ejifna anyana china kuyiwesha mu m Todos os das devem lavar as criangas (com remedio) as gamelas, , hefuku hefuku diku kukula kwawanyana ampamoa. dia aps dia at que os gmeos cresgam.

Comentario
Este relato traduz o Wubwang'u em poucas palavras. Mas, como natural, omite muitos dos detalhes fascinantes que, para os antroplogos, constituem as principis indica?5es do universo privado de urna cultura. Torna claro que a sombra atormentadora no Wubwang'u tpicamente urna me de gmeos, ja falecida (nyampasa). Ela prpria era membro do culto, pois no modo de pensar ritual dos ndembos, conforme observei, somente um membro do culto, depois da morte, pode afligir os vivos no modo de manifestaco tratada por aquele culto. Mais ainda, o texto torna claro que a atribulaco est na linha de descendencia matrilinear. Todava, comentarios, fornecidos por outros informantes insistem em afirmar que urna sombra do sexo masculino pode "aparecer no Wubwang'u" se foi pai de gmeos (sampasa) ou, ele mesmo, um gmeo.. No entanto, nunca encontr! um nico caso desses. O Wubwang'u nao considerado um espirito independente, mas representa o modo pelo qual urna sombra de ancestrais demonstra seu desenvolvimento para com o conhecido vivo. Segundo outros informantes, sao "as mulheres que explicam aos homens os remedios e as tcnicas curativas do Wubwang'u. A irm de um mdico ensinou a ele; ela era urna nyampasa, urna me de gmeos. Ento ele disse que ambos os gmeos morreram e, de fato, fnito comum que um deles morra, ou ambos, pois os ndembos afirmam que a me ou favorecer um, corn leite e alimentaso suplementar, negligenciando o outro, ou tentar alimentar ambos igualmente com urna quan110

ldade que suficiente para un apenas. Os gmeos slo conheeidos por meio de termos especiis: o mais velho mbuya, o mais jovem, kapa. A crianza que se segu a eles em ordem de nascimento chamada chikomba, e tem por tarefa tocar os tambores rituais na execufo do Wubwang'u. Freqentemente os ritos sao realizados em favor do chikomba e de sua me, quando a crianca ainda est dando os primeiros passos, para "faz-la ficar forte". Um chikomba pode, tambm, tornar-se um mdico Wubwang'u. Apesar de os homens aprenderem os remedios com as mulheres conhecedoras do culto, tornam-se os principis mdicos e chefes de cerimnias. Um sinal de sua posico social a dupla sineta de caca (mpwambu), que mais urna vez representa a dualidade dos gmeos.
O SALTO COM A FLECHA

A parte final dos ritos ressalta ainda mais a diviso sexual. Ao p6r-do-sol, o profissional mais idoso pega a cesta de poeirar, que foi colocada sobre o pote no compartimento "feminino", coloca-a sobre a cabeca da paciente, em seguida levanta-a e abaixa-a varias vezes. Ento, poe na cesta o equipamento ritual que sobrou e mantm o conjunto todo no alto. Em seguida, toma a flecha e coloca-a entre o dedo grande do pe e o segundo dedo, convidando1 a paciente 'a segurar-lhe na cintura. O par sai, ento, pulando na perna direita em direco cabana da paciente. Duas horas mais tarde, a paciente levada para fora e lavada com a sobra do remedio que ficou no pote de argila ou gamela de medicamentos. Encerr esta descrico dos ritos do Duplo Sacrrio com um texto que descreve de maneira completa o episodio do saltitar com a flecha.

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)mu mumuchidika. "Isto p que est no ritual. v Neyi chidika chaWubwang'u chiamani deh nameleh Quando o ritual do Wubwang'u ja est terminado .noitinh chimbaki wukunora nsewu o mdico pega a flecha wukwinka mumpasakanyi janyinu yakufnwendu wachimunswa e coloca-a na diviso dos-dedos do pe esquerdo. Muyeji wukwinza wukamukwata nakumakwata mumaya. A paciente chega e segura-o pela cintura. Chimbuki neyi wukweti mfumwindi Se o doutor pegar o marido dla mumbanda wukumukwata mfumwindi mumaya a mulher segurar seu marido pela cintura hiyakuya kanzonkwela invtala e eles vo pulando at entrar na cabana nakuhanuka munyendu yawakwawa adi muchisu. e passaro por baixo das pernas das outras pessoas que esto porta. lyala ninodindi akusenda wuta ninsewu mwitala dawu. . O homem e sua mulher carregaro um arco e urna flecha para dentro da cabana. Chimbando wayihoshang'a O mdico diz a eles: nindi mulimbamumba Entrenv no curral (como um homem diz a suas ovelhas e cabras), ingilenu mwitala denu ingilenu /nwitala entrem na sua cabana, entrem na sua cabana! Chakwingilawu anta ejima hiyakudiyila kwawu kunyikala yawu. Quando eles vo para dentro, todas as pessoasv vo embora para suas prprias aldeias. Tunamanishi. ""-.., Nos terminamos".

flecha, juntos, simbolizam o c a s a m e n t o . "Saltitar" (kzonkweld) representa o ato sexual, e tem este significado nos ritos de circunciso dos meninos, quando Os novi?os sao obrigados a pular mima perna so, como parte da disciplina durante a recluso. No Wubwang'u o mdico e a paciente pulam com a perna direita, porqu a direita o lado da forc.a. A frase "mulimbamulimba" gritada para os animis domsticos, quando sao tocados para os- curris, noite. Expressa o aspecto bestial da gemelaridade, que, como modo de nascimento mltiplo, considerado mais apropriado a animis do que a homens. O tnel de pernas feito pelos entendidos, sob qual o pai e a me de gemeos devem passar, assemelhase ao dos ritos de circunciso, pelo qual os jovens guardies dos novaos devem passar. Esse tnel, como vimos, feito pelos homens mais velhos no Mukanda, e significa 1.) vigor sexual para os jovens guardies que passam sob ele, e 2) o rito de passagem da juventude para a idade madura. No Wubwang'u, o tnel parece significar, por homologa, a incorporaco dos pais de gemeos na associa?o do culto do Wubwang'u, na qual nasceram provjndo dos corpos dos conhecedores profundos. Conclusao 1. As Formas de Dualidade O ritual de gemelaridade entre os ndembos poe em relevo muitos tipos de dualidade reconhecidos por eles prprios. A separado entre hornens e mulheres, a oposico entre o rancor mesquinho e privado e o sentimento social, e entre esterilidade e fecundidade, sao comuns ao, Wubwang'u e ao soma. Porm o Wubwang'u tem certos aspectos especiis, prprios dele. Mostra plenamente a animalidade e a humanidade do sexo, as formas de excessiva proliferac.o, justaposta ao misterio do casamento, que une os dissemelhantes e reprime o excesso. O casal ao mesmo tempo elogiado por sua
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Comentario Vale a pena chamar a atencjo para o fato de que o termo usado para dizer "entre os dedos", mumpasakanyi, relaciona-se etimolgicamente com o termo mpasa, a palavra ritual para designar "gemeos". No ritual ndembo de modo geral a flecha representa o homem ou o marido,' sendo segurada na mo direita, enquanto o arco representa a mulher, e mantido na mo esquerda. Arco e
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excepcional contribui?ao a sociedade, e amaldic.oado pelo excesso em faz-lo. Simultneamente, a profunda contradic.ao entre descendencia matrilinear e patrilateralidade emerge na turbulenta relac.o jocosa entre os sexos, explcitamente comparada relag jocosa entre primoscruzados. Existe alm do mais urna forte disposico ao igualitarismo nos ritos. Os sexos sao retratados como iguais, embora opostos. Esta igualdade manifesta algo profundo na natureza de todos os sistemas sociais, idia que desenvolvo mais extensamente no Captulo 3. Um acontecimento. como o nascimento de gmeos, que se sita fora das classificaces ortodoxas da sociedade, torna-se paradoxalmente a ocasio ritual para urna exibigo de valores que se relacionam com a comunidade em totalidade como urna unidade homognea e no-estruturada, transcendendo as diferenciac.oes e contradices. O tema do dualismo entre "estrutura" e "communitas", e sua resolu?o final na "societas", vista como processo e nao como entidade eterna, domina os tres captulos seguintes deste livro. 2. .4 Obscenidade Prescrita Julgo oportuno mencionar aqu um importante artigo, injustamente esquecido, escrito pelo professor EvansPritchard, "Some Collective Expressions bf Obscenity in frica", recentemente publicado pela segunda vez na sua colelo de ensaios The Position of Women in Primitive Society (1965a). O artigo estabelece os seguintes pontos:
1) Ha certos tipos de comportamento obsceno (na sociedade africana) cuja expresso sempre coletiva. Sao habitualmente proibidos, mas permitidos ou p r e s c r i t o s em determinadas ocasies; 2) estas ocasies sao, todas elas, de importancia social e enquadram-se, a p r o x i m a d a m e n t e , em duas categoras, Cerimnias Religiosas e Empreendimentos Econmicos Coletivos (p. 101);
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O autor explica a obscenidade da seguinte maneira:


1) O cancelamento, pela sociedade, de suas proibices normis acenta de modo especial o valor social da atividade; 2) tambm canaliza a emogo humana para os cais prescritos de expresso, nos perodos de crise humana (p. 101).

O Wubwang'u inclui-se claramente na categora de ritos de obscenidade prescrita e estereotipada, embora contenha episodios decisivos que exaltam o casamento, cuja rede de relafes caractersticamente inibidora de expressoes de obscenidade. Nos ritos de gemelaridade defrontamo7nos com o fato da domesticafao dos impulsos selvagens, s e x u a i s e agressivos, os quais os ndembos acreditan! sejam comuns aos homens e aos animis. As energas brutas, liberadas nos patentes simbolismos de sexualidade e de hostilidade entre os sexos, sao canalizadas para os smbolos superiores, representativos de ordem estrutural, e para valores e virtudes de que depende essa ordem. Cada oposico superada ou transcendida em urna unidade restabelecida, unidade que, alm disso, ' reforjada pelas prprias potencias que a ameacam. Estes ritos revelam um aspecto do ritual que um meio de colocar a servido da ordem social as prprias forcas da desordem, inerentes constituifo do homem como mamfero. A biologa e a estrutura sao colocadas numa correta relaco pela ativafo de urna ordenada sucessao de smbolos, que tm as funces gemelares de comunicacao e eficacia.

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Liminaridade e "Communitas'
FORMA E ATRIBUTOS OJOS RITOS DE PASSAGEM

jeito ritual (o "transitante") sao ambiguas; passa atra-' vs de um dominio cultural que tem poucs, ou quase nenhum, dos atributos do passado ou do estado futuro. Na terceira fase (reagregaco ou reincorporac.o), consuma-se a passagem. O sujeito ritual, seja ele individual ou coletiyo, permanece num estado relativamente estvel mais iima vez, e em virtude disto tem direitos e pbrigafes perante os outros de tipo claramente definido le "estrutural", esperando-se que se comporte de acord com certas normas costumeiras e padrees ticos, que Jvinelam "Os incumbidos de urna posifo social, num 'sistema de tais posices.

Liminaridade
Os atributos de liminaridade, ou de personae (pessoas) liminares sao hecessariamente ambiguos, urna vez que esta condico e estas pessoas furtam-se ou escapam rede de classificacoes que normalmente determinam a localizarlo de estados e posicoes num espaco cultural. As entidades liminares nao se situam aqui nem la; esto no meio e entre as posicoes atribuidas e ordenadas pela Bei, pelos costums, convencoes e cerimonial. Seus atrip'uta ambiguos e indeterminados exprimem-se por. urna Ijca vaciedade d smbolos, naquelas varias sociedades ||ue rituaizam as transieses sociais e culturis. Assim, Utoin-aridadfe-freqirentemene comparada morte, ao !star no tero, invisibilidade, escurido, bissexuaidade, as regioes selvagens e a um eclipse do sol u da la. As entidades liminares, como os nefitos nos ritos e iniciaco ou de puberdade, podem ser representadas l*>mo se nada possussem. Podem estar disfamadas de ft nonstrs, usar apenas urna tira de pao como vesinnta ou aparecer simplesmente nuas, para demonstrar |er como seres liminares, nao possuem "status", pro"Tiedade, insignias, roup mundana indicativa de classe irj papel, social psi9 em um sistema de parentesco,
Li

NESTE CAPTULO RETOMO UM TEMA QUE JA DISCUT resumidamente em outra -ocasio (Turner, 1967, p. 93111); observo algumas de suas variares, e passo a considerar-lhe as ulteriores implicares para o estudo da cultura e da ;sociedade. Este tema , em primeiro lugar, representado pela natureza e caractersticas do que Arnold van Oennep (1960) chamou "fase liminar" dos rites de passage. O prpriq Van Gennep definiu os rites de passage como "ritos que acompanham toda mudanza de lugar, estado, posicaq social de'idade". Para indicar o contraste entre "estado" e "transico", emprego "estado", incluindo todos os seus outros termos, E' 'um conceito mais ampio, do que "status" ou-^func.S refere-se a qualquer tipo de condico estvel ou recorrente, culturalmente reconhecida. Van Gennep mostrou que todos os ritos de passagem ou de "transigi" caracterizam-se por tres fases: separaco, margem (ou "limen", significando "limiar" em latim) e agregarlo. A primeira fase (de separaco) abrange o comportamento simblico que significa o afastamento do individuo " de um grupo, quer de um ponto fixo anterior na estrutura social, quer de um conjunto deHj^ncfijjcfes culturis (um "estado"), ou anda de ambos.J^urante, o perodo "limiar" intermedio, as caractersticas do su-

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em suma, nada que as possa distinguir de seus colegas nefitos ou em processo de iniciacao. Seu comportament normalmente passivo e humilde. Devem, impli, citamente, obedecer aos instrutores e aceitar punieres arbitrarias, sem queixa. E' como se fossem reduzidas ou oprimidas at a urna condico uniforme, para serem modeladas de novo e dotadas de outros poderes, para se capacitaren! a enfrentar sua nova situado de vida. Os nefitos tendem a criar entre si urna' intensa camaradagem e igualitarismo. As distin?5es seculares de classe e pos9o desaparecen!, ou sao homogeneizadas. A condico da paciente e de seu marido no' I soma tinha' alguns desses atributos passividade, humildade, nudez quase completa num ambiente simblico que representava ao mesmo tempo urna sepultura e um tero. as inicia?5es com longo perodo de recluso, tais como os ritos de circunciso de muitas sociedades tribais ou a entrada em sociedades secretas, ha freqentemente urna rica proliferaco de smbolos liminares.

"Communitas"
O que existe de interessante com relago aos fenmenos liminares no que diz respeito aos nossos objetivos atuais ; que eles oferecem urna mistura de submisso e santidade, de homogeneidade e camaradagem. Assistimos, em tais ritos, a um "momento situado dentro e fora> do tempo", dentro e fora da estrtura social profana^ que revela, embora efemeramente, certo reconhecimento (no smbolo, quando nao mesmo na linguagem) de vnculo social' generalizado que deixu de existir, e contudo simultneamente tem de ser fragmentado urna multiplicidade de lacs estruturais. Sao os Jacos1 organizados em termos ou de casta, classe ou orden5! hierrquicas, ou de oposigoes segmentares, as soei des onde nao existe o Estado, tao e s t i m a d a pe'05! antroplogos polticos. E' como se houvesse neste cas<l| dois "modelos" principis de correlacionamento huma

no, justapostos e alternantes. O primeiro o da sociedade tomada como um sistema estruturado, diferenciado e freqentemente hierrquico de^ posicoes' poltico-jurdico-econmicas, com muitos tipos de avaliacao, separando os homens de acord com as noyes de "mais" ou de "menos". O s e g u n d o , que surge de maneira evidente no perodo liminar, o da sociedade considerada como um "comitatus" no-estruturado, ou rudimentarmente estruturado e relativamente indiferenciado, urna comunidade, ou mesmo comunho, de individuos guais que se submetem em conjunto autoridade geral dos andaos rituais. Prefiro a palavra latina communitas comunidade, para qu se possa distinguir esta modalidade de rela?o social de urna "rea de vida em comum". A distinco entre estrtura e "communitas" nao apenas a distin?o familiar entre "mundano" e "sagrado", ou a existente por exemplo entre poltica e religiao. Certos cargos fixos as sociedades tribais tm muitos atributos sagrados; na realidade toda posi?ao social tem algumas caractersticas sagradas. Porm este componente "sagrado" a d q u i r i d o pelos beneficiarios das posicoes durante os "rites de passage", gra?as aos quais mudam de posico. Algo 'da sacralidade da transitoria humildade e ausencia de modelo toma a dianteira e modera o orgulho do individuo incumbido de urna posico o cargo mais^ alto. Como Fortes (1962, p. 86) demonstrou de maneira convincente, nao se trata simplesment de dar un cnho geral de legitimidade as posicoes estruturais de urna sociedade. E' antes urna questo de reconhecer um laco humano essencial e genrico, sem o qual nao poderia haver sociedade. A liminaridade implica que o alto nao poderia ser alto sem que o baixo existisse, e quem est no alto deve experimentar o que significa estar em baixo. Sem dvida um pensamento deste tipo esteve na base da deciso do prncipe Phillip, alguns anos atrs, de mandar o filho, o herdeiro presuntivo do trono britnico, para

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Ulti escola o tho da floresta na Australia, por determinado tempo, a fim de que pudesse aprender a "levar urna vida dura".

A Dialtica do Ciclo de Desenvolvimento


De tudo isso, concluo que, para os individuos ou para os grupos, a vida .social um tipo de processo dialtico que abrange a experiencia sucessiva do alto e do b.aixo, de communitas e estrutura, homogeneidade e diferencia9o, igualdade e desigualdade. A passagem de urna situado mais baixa para outra mais alta feita atravs de um limbo de ausencia de "status". Em tal processo, os opostos por assim dizer constituem-se uns aos outros e sao mutuamente indispensveis. Anda mais, como qualquer sociedade tribal composta de mltiplas pessoas, grupos e categoras, cada urna das quais tem seu prprio ciclo de deseftvolvimento, num determinado momento coexistem muitos encargos correspondentes a posices fixas, havendo muitas passagens entre as pos9oes. Em outras palavras, a experiencia da vida de cada individuo o faz estar exposto alternadamente a estrutura e communitas, a estados -e a trahsifes. A LIMINARIDADE DE UM RITO DE INVESTIDURA

munidade total, enquanto unidade nao-estruturada. E' tambm, simblicamente, o prprio territorio tribal e todos os seus recursos. A fecundidade e a cndilo de nao sofrer seca, fome, doen?a e pragas de insetos estao ligadas ao seu cargo e a seu estado fsico e moral. Entre os ndembos os poderes rituais do chefe mais antigo eram limitados, combinando-se com eles, pelos poderes possuidos pelo chefe mais velho de tribo do povo autctone mbwela, que so foi submetido depois de longa luta com os conquistadores lundas, conduzida pelo primeiro Kanongesha. O c h e f e chamado Kafwama, dos humbos, um ramo dos ndembos, foi investido de um importante direito. Era o direito de conferir,, impregnando-o peridicamente de substancias medicinis, o smbolo supremo da posifo de chefia entre as tribos de origem lunda, o bracelete lukanu, feito com os rgaos genitais e tendees humanos embebidos no sangue sacrifical de escravos e escravas, em cada investidura. O ttulo ritual do Kafwama era Chivwikankanu, "aquele que se veste ou se cobre com o lukanu". Possua tambm o ttulo de Mama yakanongesha> "me de Kanongesha", porque simblicamente dava nascimento a cada novo ocupante daquele cargo. Dizia-se que o Kafwana ensinava a cada novo Kanongesha os remedios da feiti^aria, que o faziam ser temido por seus rivais e subordinados, talvez um indicio de fraca centralizado poltica.

I Um exemplo sumario de um rite de passage dos ndembos do Zmbia ser citado com utilidade aqui, porque se refere mais alta posico social naquela tribo, a do chefe mais velho Kanongesha. Tambm servir para desenvolver nossos conhecimentos sobre o modo como os ndembos se utilizam de seus smbolos rituais e os explicara. A posic.o de chefe mais velho ou supremo entre os ndembos, como em muitas outras sociedades africanas, paradoxal, pois ele representa ao mesmo tempo o pice da hierarquia poltico-legal estruturada e a co-

O lukanu, primitivamente conferido pelo chefe de todos os lundas, o Mwantiyanvwa, que governava em Katanga, muitas milhas ao norte, era ritualmente tra.tado pelo Kafwana e oculto por ele durante os interregnos. O poder mstico do lukanu, e portante da condico de K a n o n g e s h a , vinha conjuntamente do Mwantiyanvwa, o chefe de quem emanava _o poder poltico, e do Kafwana, a fonte ritual. O emprego dele em beneficio da trra e do povo estava as mos de urna I sucessao de individuos incumbidos da chefia. A origem f n o Mwantiyanvwa simbolizava a unidade histrica do *'"" ndembo e sua diferenciXo poltica em^subehefias,

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dominadas pelo Kanongesha. A medicado peridica do lukanu pelo Kafwana simbolizava a trra da qual o Kafwana era o "prOprietrio" original e a comunidade inteira que viva nela. As invoca?5es diarias feitas a ele pelo Kanongesha, ao nascer e ao pr-dosol, visavam a f ertilidade, sade e vigor permanentes da trra, dos animis e recursos vegetis, do povo em resumo, ao bem pblico. Mas o lukanu tinha um aspecto negativo, o de poder ser usado pelo Kanongesha para amaldisoar. Se o Kanongesha tocava a trra com ele e proferia urna certa frmula, acreditava-se que a pessoa ou o grupo amaldigoado se tornava estril, sua trra perda a fertilidade e sua cac.a desapareca. No lukanu, finalmente, os rundas e os mbwelas se uniam no conceito coletivo da trra e da gente ndembo. Na rela^o entre os undas e os mbwelas, e entre o Kanongesha e o Kafwana, encontramos urna distinco comum ria frica entre o povo poltica1 ou militarmente forte e o povo autctone subjugado, entretanto ritualmente potente. lowan Lewis (1963) definiu esses inferiores estrturais como tendo "o poder ou os poderes do fraco" (p. 111). Um exemplo bastante conhecido na literatura encontra-se no relato de Meyer Fortes sobre os tallensis do norte de Gana, onde a chegada dos amos trouxe a chefia e um culto ancestral altamente desenvolvido para os autctones tales, que, por sua vez, julga-se terem importantes poderes rituais relativos trra e as cavernas. No grande festival Golib, realizado anualmente, a uniao dos poderes de chefia e de sacerdocio simbolizada pelo casamento mstico entre o chefe de Tongo, lder dos amos, e o sumo-sacerdote da trra, o Golibdaana, dos tales, retratados, respectivamente, como "marido" e "mulher.". Entre os ndembos, Kafwana tambm considerado, como vimos, simblicamente feminino em relaeo ao Kanongesha. Pedera multiplicar os exemplos deste tipo de dicotoma, retirados apenas de fontes africanas, e seu mbito abrang^ o mundo inteiro. O ponto que gestara de acentuar aquj a existencia de certa homologa entre a "fraqueza"
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e a "passividade" da liminaridade as transieses diacrnicas entre urna posigo^ social e outr, e a inferioridade "estrutural" ou sincrnica de certas pessoas, grupos e categoras sociais nos sistemas polticos, legis e econmicos; As cpndices "liminares" e "inferiores" esto freqerttmente associadas aos poderes rituais e comunidade, inteira, considerada como indiferenciada. V oiremos aos ritos de investidura do Kanongesha dos ndembos. O componente liminar de tais ritos comec.a com a construyo de um pequeo abrigo de folhas, distante mais ou menos um quilmetro e meio da aldeia principal. Esta cabana conhecida por ka\w ou kafwi, termo ndembo derivado de ku-fwa, "morrer", porque ai que o chefe eleito morre para o seu estado de homem comum. As imagens da mpr-te proliferam na liminaridade dos ndembos. Por exemplo, o lugar secreto e sagrado onde os novicos sao circuncisados, conhecido como ifwilu ou ' chifwilu, termo tambm derivado de ku-fwa. O chefe eleito, vestido apenas com um pao esfarrapado na cintura e urna esposa ritual, que ou sua esposa mais idosa (mwadyi) ou urna mulher escrava especial, conhecida como lukanu (em conformidade com o bracelete real), nessa ocasio, vestida da mesma maneira, sao convocados pelo Kafwana a entrar no abrigo kafu, logo depois do pr-do-sol. Diga-se de passagem que o prprio chefe tambm conhecido como mwadyi ou lukanu, nesses ritos. O casal conduzido para a cabana cmo se fossem invlidos. La, o homem e a mulher se sentam agachados numa postura indicativa de vergonha (nsonyi) ou de recato, enquanto sao lavados com remedios misturados com agua trazida do Katukang'onyi, o local do rio onde os chefes ancestrais da dispora lunda meridional h a b i t a r a m .durante algum tempo, , na viagem iniciada na capital Mwantiyanvwa, ; antes de se separarem para conquistar reinos para si. ;A madeira para o fogo nao deve ser cortada com um ; Cachado, mas deve ser encontrada cada no solo. Isto [significa que produto da trra e nao artefato. Urna

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vez mais vemos a conexo do carter ancestral de pertencer aos lundas com os poderes ctnicos. Em seguida cometa o rito de Kumukindyita, que quer dizer literalmente "falar palavras ms ou insultantes contra ele". Podemos denominar este rito "O Insulto ao Chefe Eleito". Cometa quand o Kafwana faz um corte no lado inferior do bra?o esquerdo do chefe no qual o bracelete lukanu ser colocado no dia seguinte - espreme um remedio na inciso, e aperta urna esteira sobre a parte superior do bra?o. O chefe e sua mulher sao, ento, forjados rudemente a se sentarem na esteira. A mulher nao deve estar grvida, pois os ritos que se seguem sao considerados destruidores^ da fecundidade. Alm do mais, o par soberano deve ter-se abstido de relances sexuais por varios dias antes dos ritos. O Kafwana cometa a fazer urna homilia, transcrita a seguir:
"Silencio! Tu es um tolo egosta e desprezvel, alm de ter mau genio! Nao amas teus companheiros, so te zangas com eles! Baixeza e ladroeira tudo o que tens! No entanto, chamamos-te aqui e te dizemos que deves ser o sucessor na chefia. Pe de lado a mesquinhez, pe de lado a clera, renuncia as relages adlteras, renuncia a elas mediatamente! Nos te outorgamos a chefia. Deves comer junto com teus companheiros, deves viver bem com eles. Nao prepares remedios de feiticaria a fim de poderes destruir teus companheiros as cabanas deles isto proibido! Desejamos que tu e so tu sejas nosso chefe. Que tua mulher prepare alimento para as pessoas que vffl aqui, a aldeia principal. Nao sejas. egosta, nao conserves a chefia somente para ti! Deves rir junto com .o povo, deves abster-te de praticar feiticaria, se porventura ja a realizaste! Nao devers matar gente! Nao deves deixar de ser generoso para com o povo! Mas tu, Chefe Kanongesha, Chifwanakenu ['filho que se parece com o pai'] de Mwanyanvwa, danzaste para obter a chefia porque teu predecessor morreu [isto , porque tu mataste]. Mas hoje tu nasceste como um novo chefe. Deves conhecer o povo, Chifwanakenu. Se eras mesquinho, e costumavas comer teu piro de mandioca, ou tua carne sozinho, hoje ests na chefia. Deves abandonar tuas maneiras egostas, devfi8 saudar amavelmente a todos, es o chefe! Deves deixar de se* adltero e briguento. Nao deves fazer julgamentos parciais oftl nenhum caso legal que envolva teu povo, especialmente se

prprios filhos estiverem implicados. Deves dizer: 'Se algum dormiu com minha mulher, ou me fez algum mal, no dia de hoje nao devo julgar seu caso injustamente. Nao devo guardar ressentimento no corago'".

Depois de toda esta arenga, qualquer pessoa que julgue ter sido prejudicada pelo chefe eleito, no passado, est autorizada a insult-lo e a exprssar plenamente seu ressentimento, entrando em detalhes conforme desejar. O chefe eleito, durante tudo isso, deve ficar sentado silenciosamente, com a cabera inclinada, "o modelo de paciencia" e da humildade. Entrementes, o Kafwana borrifa o chefe eom remedio, de vez em quand batendo com o traseiro contra ele (kumubayish) de modo insultuoso. Muitos informantes me disseram que "um chefe como um escravo (ndung'u) na noite antes de subir ao trono". Fica proibido de dormir, em parte como ordlio, env parte porque se acredita que se ele cochilar ter maus sonhos com as sombras dos chefes morios, "quem dir que nao tem razo em suceder a eles, pois ele nao os matou?" O Kafwana, seus assistentes, e outros homens importantes, como os chefes da aldeia, maltratam o chefe e sua mulher que igualmente insultada e Ihes ordenam que apanhem lenha e realizem outras tarefas servs. O chefe nao pode ofender-se com isto ou reter a lembranga do que Ihe fizeram e us-la no futuro contra os que pra;ticaram tais ac.6es.
OS ATRIBUTOS DAS ENTIDADES LUMINARES

A~fasL_de, reagregacao. neste caso, compreende a investidura ~pubTlca~o* Kanongesha, com toda a pompa e cerimnia. Apesar deste ato ter o mximo interesse para o estudo da chefia dos ndembos e para urna importante tendencia da antropologa social britnica da atualidade, nao nos ocuparemos aqui do assunto. Nossa atengo prende-se agora a questo da Hminaridade e dos po. deres rituais dos fracos. Estes aparecem sob dois as[ pecios. Primeiramente, o Kafwana e as outras pessoas
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comuns do povo ndembo revelam-se privilegiados, ao exercer autoridade sobre a figura da suprema figura da tribo. Na liminaridade o subordinado torna-se o predominante. Em segundo lugar, a suprema autoridade poltica retratada "como um escravo", lembrando o aspecto da coroa?o do papa na cristandade ocidental em que ele chamado "servus servorum Dei". Sem dvida, urna parte do rito tem aquilo que Monica Wilson (1957, p. 46-57) chamou "urna fungo profiltica". O chefe precisa exercer o autocontrole nos ritos para ser capaz de autodominio depois, diante das tentacoes do poder. Mas o papel de chefe humilhado somente um exemplo extremo de um tema repetido das situacoes liminares. Este tema consiste no despojamento dos atributos pr-liminares e ps-liminares. Vejamos os principis ingredientes dos ritos Kumukindyila. O chefe e sua mulher vestem-se da mesma maneira, com urna tira de pao esfarrapada na cintura, e partilham do mesmo nome, mwadyi. O termo tambm aplicado a: meninos submetidos iniciaco e primeira esposa de m homem, na ordem cronolgica do casamento. E' um sinal do estado annimo do "iniciando". Esses atributos de ausencia de sexualidade e de anonimia sao inteiramente caractersticos da liminaridade. Em muitas especies de iniciaco, as quais os nefitos sao de ambos os sexos, homens e muiheres veslem-se do mesmo modo e sao denominados pelo mesmo termo. E' o que acontece por exemplo em muitas cerimnias batismais as seitas cristas, ou sincrticas da frica, assim as do culto Bwiti no Oabo (James Fernandez, comunicaco pessoal). Tambm verdade na iniciaco para a entrada na associacao funeraria dos ndembos de Chiwila. Simblicamente, todos os atributos que distinguem categoras e grupos na ordem social estruturada ficam aqui temporariamente suspensos. Os nefitos sao meramente entidades em transic.3o, nao tendo anda lugar ou posi?o. Outras caractersticas sao a submisso e o silencio. Nao somente o chefe, nos ritos agora examinados, mas tambm os nefitos, em muitos rites de passage, deveifl

submeter-se a uma autoridade que nada mais senao a da comunidade total. Esta comunidade a depositara da gama completa dos valores da cultura, normas, atitudes, sentimentos e relaces. Seus representantes nos diversos ritos e podem variar, de ritual a ritual representara a autoridade genrica da tradico. as sociedades tribais, tambm, a fala nao apenas comunicaco, mas poder e sabedoria. A sabedoria transmitida na liminaridade sagrada nao consiste somente num aglomerado de palavras e de sentencas; tem valor ontolgico, remodela o ser do nefito. E' por isto que, nos ritos Chisungu, dos bembas, tao bem descrito por Audrey Richards (1956), as muiheres mais velhas dizem que a 111053 reclusa "cresceu e se tornou mulher", cresceu em virtude das instrucoes verbais e no-verbais que recebeu medante os preceitos e os smbolos, especialmente pela revelafo, que Ihe feita, dos sacra tribais em forma de imagens de barro. O nefito na liminaridade deve ser uma tabula rasa, urna lousa em branco, na qual se inscreve o conhecimento e a sabedoria do grupo, nos aspectos pertinentes ao novo "status". Os ordlios e humilhaces, com freqnca de, carter grosseiramente fisiolgico, a que os nefitos sao submetidos, representan! em parte a destruicot de uma condicao anterior e, em parte, a tempera da essncia deles, a f i m , de prepar-los para enfrentar as novas responsabilidades e refre-los de antemo, para nao abusarem de seus novos privilegios. E' preciso mostrar-lhes que, por si mesmos, sao barro ou p, simples materia, cuja forma Ihes ' impressa pela sociedade. Outro tema liminar, exemplificado nos ritos de investidura dos ndembos, a continencia sexual. E' um tema difundido no ritual ndembo. De fato, o reatamento das rela9es sexuais usualmente uma marca cerimonial de retorno sociedade como estrutura de posices. Embora este seja um traco de certos tipos de comportamento religioso em quase todas as sociedades, na sociedade pr-industrial, com sua forte acen-

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tuao do parentesco como" base de muitos tipos de filiao ao grupo, a continncia sexual tem alm disso fora religiosa. Tal acontece porque o parentesco, ou as relaes configuradas pela linguagem do parentesco, constitui um dos principais f a t o r e s da diferenciao estrutural. O carter indif erencrado da liminaridade reflete-se na descontinuidade das relaes sexuais e na ausncia de uma marcada polaridade sexual. E' instrutiva a anlise do sermo do Kafwana, para se procurar apreender o significado de liminaridade. O leitor certamente se lembrar de que ele repreendeu o chefe eleito por seu egosmo, mesquinharia, roubo, clera, feitiaria e avareza. Todos esses vcios representam o desejo, de possuir para si mesmo aquilo que deveria ser repartido para o bem comum. Uma pessoa incumbida de um alto cargo fica especialmente tentada a usar a autoridade de que foi revestida pela sociedade para satisfazer desejos particulares e exclusivos. Mas deveria , encarar seus privilgios como ddivas da Comunidade inteira, que em ltima anlise tem um direito supremo sobre todas as suas aes. A estrutura e os altos cargos providos pela estrutura so assim considerados como meios para o bem-estar pblico, e no como recursos de engrandecimento pessoal. O chefe no deve "conservar a chefia s para si". Deve rir junto com o povo, e o riso (ku-seha) pra os ndembos uma qualidade "branca", participando da definio da "brancura" ou das "coisas brancas". A brancura representa a teia inconstil de conexo, que dever idealmente incluir ao J mesmo tempo os vivos e os mortos. E' a relao certa entre as pessoas, apenas enquanto seres humanos, e seus frutos so a sade, vigor, e os outros bens. O riso "branco", por exemplo, que visivelmente manifestado pelo brilho dos dentes, representa camaradagem e companhia agradvel. E" o reverso do orgulho (winyi), da inveja, da cobia, e dos rancores secretos- que do em resultado comportamentos de feitiria (wulojfy, roubo (wukombi), a d u l t r i o (kushmbana), baixeza (chifwa) e homicdio .(wtbahji). Mesmo quando um
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homem se tenha tornado chefe, continua sendo ainda inembro da comunidade inteira das pessoas (antu), e demonstra isto "rindo junto com elas", respeitando-lhes os direitos, "saudando amavelmente a todos", e partilhando do alimento com elas. A funo purificadora exercida pela liminaridade no est confinada a esse tipo de iniciao, mas forma um componente de muitos outros tipos, em vrias culturas. Um exemplo bastante conhecido o da viglia medieval, feita pelo cavaleiro, durante a noite que precede a sua investidura, quando promete empenhar-se em servir aos fracos e aflitos e a meditar em sua prpria indignidade. Acredita-se que o poder subseqente que possui deriva parcialmente desta profunda imerso na humildade. A pedagogia da liminaridade, portanto, representa a condenao de duas espcies de separao do vnculo comum da "communitas". A primeira espcie consiste em agir somente de acordo com os direitos conferidos ao indivduo pelo exerccio do cargo na estrutura social. A segunda consiste em seguir os impulsos psicolgicos do indivduo, custa de seus companheiros. Atribui-se um carter mstico ao sentimento de bondade humana em muitos tipos de liminaridade, e em vrias culturas este estgio de transio relaciona-se estreitamente com as crenas nos poderes protetores e punitivos de seres e potncias divinas ou sobrenaturais. Por exemplo, quando o chefe eleito ndembo sai da recluso, um dos subchefes cjue desempenha um papel sacerdotal nos ritos de investidura constri uma cerca ritual em redor da nova morada do chefe, e reza da seguinte maneira, dirigindo-se s sombras dos antigos chefes, diante do povo que se reuniu para assistir posse no cargo:
"Ouvi, vs, todo o povo. O Kanongesha nasceu para a chefia hoje. Esta argila branca (mpemba), com a qual o chefe, os sacrrios dos ancestrais e os oficiantes sero ungidos, significa Para vs todos os antigos Kanongeshas, reunidos aqui. [Neste Ponto os antigos chefes so mencionados pelo nome.] Portanto, todos vs que morrestes, olhai para vosso amigo que vos sucedeu [no banco da chefia], para que ele possa ser forte. Ele deve continuar a orar a vs. Deve tomar conta das crianas,
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cuidar de todo o povo, homens e mulheres, para que sejam fortes e para que ele prprio seja vigoroso. Eis aqui a argila branca. Eu vos entronizei, chefe. Que o povo lance sons de louvor. Surgiu a chefia".

Os poderes que modelam os nefitos na liminaridade para a entrada em uma nova "condio", nos ritos em todas as partes do mundo, so considerados poderes sobre-humanos, embora sejam invocados e canalizados pelos representantes da comunidade. A LIMINARIDADE CONFRONTADA COM O SISTEMA DE POSIES SOCIAIS Expressemos, agora, maneira de Lvi-Strauss, a diferena entre as propriedades da liminaridade e as do sistema de posies sociais, em termos de uma srie de oposies, ou discriminaes binrias. Estas podem ser ordenadas do modo seguinte:
Transio/estado Totalidade/parcialidade Homogeneidade/heterogeneidade "Communitas" /estrutura Igualdade/desigualdade Anonmia/sistemas de nomenclatura Ausncia de propriedade/propriedade Ausncia de "status"/"status" Nudez ou ^uniformidade de vesturio/variedade de vesturio Continncia sexual/sexualidade Subestimao das distines sexuais/Alta importncia das distines sexuais Ausncia de classe/distines de classe Humildade/justo orgulho da posio Descuido com a aparncia pessoal/cuidado com a aparncia pessoal Nenhuma distino de riqueza/distines de riqueza Altrusmo/egosmo Obedincia total/obedincia apenas classe superior Sacralidade/secularidade Silncio/fala Suspenso dos direitos e obrigaes de parentesco/obrigaes e direitos de parentesco

.Referncia contnua aos poderes msticos/referncia intermitente aos poderes msticos Insensatez/sagacidade Simplicidade/complexidade Aceitao de dores e sofrimentos/evitao de dores e sofrimentos Heteronomia/graus de autonomia
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Esta lista poderia ser consideravelmente aumentada se amplissemos a extenso das situaes liminares consideradas. Ainda, os smbolos em que essas propriedades se manifestam e corporificam so vrios e mltiplos, e freqentemente se relacionam com os processos fisiolgicos de morte e de nascimento, de anabolismo e de catabolismo. O leitor ter notado, de imediato, que muitas dessas propriedades constituem aquilo que julgamos serem caractersticas da vida religiosa na tradio crist. Indubitavelmente, tambm os muulmanos, os budistas, os hindus e os judeus enumerariam muitas delas entre as suas caractersticas religiosas. O que parece ter acontecido que, com o incremento da especializao da sociedade e da cultura, com a progressiva complexidade na diviso social do trabalho, aquilo que era na sociedade tribal principalmente um conjunto de qualidades transitrias "entre" e s t a d o s definidos da cultura e da sociedade, transformou-se num estado institucionalizado. Mas traos da qualidade de passage da vida religiosa permanecem em vrias formulaes, tais como: "O cristo um estranho no mundo, um peregrino, um viajante, sem nenhum lugar para descansar a cabea". A transio tornou-se, neste caso, numa condio .permanente. Em parte alguma esta institucionalizao da liminaridade foi mais claramente marcada e definida do que nos estados monstico e mendicante, nas grandes religies mundiais. Por exemplo, a regra crist ocidental de So Bento "prove a subsistncia de homens que desejam viver em comunidade e devotar-se inteiramente ao servio de Deus pela autodisciplina, a orao e o trabalho. Devem formar essencialmente famlias, sob os cuidados e o controle absoluto de um pai (o abade); individualmente, so
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obrigados pobreza pessoal, abstenido fio casamento e obediencia aos superiores, bem como pelos votos de estabilidade e converso de conduta [sendo originariamente sinnimo de "vida em comum", "a vida monstica" distinguia-se da vida secular]; um grau moderado de austeridade imposto pelo oficio noturno, o jejum, pela abstinencia de carne e restrico na conversa" (Attwater, 1961, p. 51 grifos meus). Acentu! os traeos que denotam urna notvel semelhanc.a com a condi?o do chefe eleito durante a transiso para os ritos pblicos de tomada de posse, quando inicia seu reinado. Os ritos de circunciso dos ndembos (Mukanda) -apresentam novos paralelos entre os nefitos e os monges beneditinos. Erving Ooffman (Asylums, 1962) estuda aquilo que chama "caractersticas de instituic,oes totais". Entre essas i n c l u os mosteiros, devotando grande aten?ao "aos processos de despojamento e de nivelamento que ... diretamente atravessam as varias distin?5es sociais com que os recrutas chegam". Em seguida, cita um conselho de Sao Bento ao abade: "Que ele nao faca distinti de pessoas no mosteiro. Que urna nao seja mais amada que outra, a menos que se distinga em boas obras e em obediencia. Que o individuo de origem nobre nao seja elevado cima do que era antes um escravo, exceto se intervier alguma outra causa justa" (p. 119). Neste ponto, os paralelos com o Mukanda sao surpreendentes. Os novicos sao "despojados" das roupas seculares quandp passam atravs de um porto simblico; sao "nivelados" pelo fato de abandonaren! seus antigos nomes, dando-se a todos a designado comurn de mwadyi, ou "novico", e tratados da mesma maneira. Um dos cantos entoados pelos circuncisores dirigindo-se as maes dos novi?os na noite antes da circunciso contm a seguinte frase: "Mesmo que seu filho seja o filho de um chefe, amanh ele ser igual a um escravo", exatamente como um chefe eleito tratado como escravo antes da sua -investidura. Alm do mais, na cabana de reclusao o instrutor mais idoso escolhido

em parte por ser pai de varios meninos submetidos aos ritos, e porque se torna um pai para o grupo inteiro, urna especie de "abade", embora seu titulo Mfumwa ubwiku signifique literalmente "marido dos novicos", para acentuar o papel passivo destes ltimos.
O PERICO MSTICO E OS PODERES DOS FRACOS

Pode-se perguntar por que em quase toda parte se atribuem as situacoes e papis liminares propriedades mgico-religiosas, ou por que to freqentemente estas sao consideradas perigosas, de mau agouro, ou contaminadoras para pessoas, objetos, acontecimentos e relajees que nao foram ritualmente incorporados ao contexto liminar. Minha opinio, em resumo, que na perspectiva daqueles aos quais incumbe a manutenco da "estrutura", todas as manifestares continuadas da "communitas" devem aparecer como perigosas e anrquicas, e precisam ser rodeadas por prescribes, proibices e condices. EL como afirmou recentemente Mary Douglas^ (1966), aquilo que nao pode, com clareza, ser classificado segundo os criterios tradicionais de classificac.o, ou se situ entre fronteiras classificadoras quase em toda parte considerado "contaminador" e "perigoso" (passim). Repito o que disse anteriormente: a liminaridade nao a nica manifestago cultural da "communitas". Na maioria das sociedades ha outras reas de manifesta9ao, fcilmente reconhecidas pelos smbolos que se agrupam em torno dlas e pelas crencas a elas vinculadas, tais como "os poderes dos fracos", ou, em outras palavras, os atributos permanente ou transitoriamente sagrados, relativos a um "status" ou posicao baixa. Nos sistemas estruturais estveis ha muitas dimensoes de organizacao. Ja mencionamos que os poderes msticos e moris sao mantidos pelos autctones subjugados sobre o total bem-estar de sociedades cuja estrutura poltica constituida pela linhagem ou pela organizado territorial de
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conquistadores invasores. Em outras sociedades a ndembo e a lamba, de Zmbia, por exemplo podemos indicar associages de culto, cujos membros, devido a um infortunio comum ou circunstancias debilitantes, conseguiram acesso a poderes teraputicos relativos a certos bens gerais da humanidade, como a sade, a fecundidade e o clima. Essas associa?5es seccionan! importantes componentes do sistema poltico secular, como linhagens, aldeias, subchefias e chefias. Pederamos tambm mencionar o papel de na?5es estruturalmente pequeas e politicamente insignificantes dentro de sistemas de nac.5es como sustentculos de valores religiosos e moris, tais como os hebreus no antigo Oriente Prximo, os irlandeses na primitiva cristandade medieval e os SUC.QS na Europa moderna. Muitos escritores chamaram a atenc.o para o papel do bobo da corte. Max Gluckman (1965), por exemplo, escreve: "O bobo da corte operava como arbitro privilegiado dos costumes, dada a permisso que tinha de zombar de res e cortesos, ou do senhor do solar". Os bobos da corte eram "comumente homens da classe baixa algumas vezes no Continente europeu eram sacerdotes que claramente saam do seu estado habitual ... Em um sistema onde era difcil para outros censurar o chefe de urna unidade poltica, podamos ter aqu um trocista institucionalizado, atuando no ponto rilis alto da unidade... um galhofeiro capaz de expressar os sentimentos da moralidade ofendida". Menciona anda que os bobos da corte ligados a muitos monarcas africanos eram "freqentemente anes e outros individuos estranhos". Semelhantes a esses pela func.o eram os tamborileiros da barcaga real dos barotses, na qual o rei e sua corte se deslocavam de urna capital na planicie aluvial do rio Zambezi para urna das margens, durante as cheias anuais. Eles tinham o privilegio de atirar na agua qualquer dos grandes nobres "que tivesse ofendido a eles e a seu sentido de Justina durante o ano anterior" (p. 102-104). Estas figuras, representando os pobres e os deformados, simbolizam os valores
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moris da "communitas" contrapondo-se ao poder coercitivo dos dirigentes polticos supremos. A literatura popular rica em figuras simblicas, como os "mendigos santos", "terceiro filho", "pequeos alfaiates" e "simplrios", que arrancara as pretenses dos detentores de categoras e cargos elevados e reduzem-nos ao nivel da humanidade e dos morais comuns. Anda, nos tradicionais filmes de "faroeste", vemos o misterioso "estranho" sem lar, sem riqueza ou nome, e que restaura o equilibrio legal e tico num grupo local de relacoes p'olticas de poder, eliminando os "chefqes" profanos injustos que oprimem os pequeos proprietrios. Os membros de grupos tnicos e culturis desprezados ou proscritos desempenham importantes papis nos mitos e nos contos populares, como representantes ou expressoes de valores humanos univefsais. Sao famosos entre estes o Bom Samaritano, o violinista judeu Rothschild, no c o n t de Tchekhov "O Violino de Rothschild", o escravo negro fugitivo Jim, em Huckleberry Finn, de Mark Twain, e Sonya, a prostituta que redime o imaginario "super-homem" nietzscheano Raskolnikov, em Crime e Castigo de Dostoievski. Todos esses tipos msticos sao estruturalmente inferiores ou "marginis", nao obstante representen! o que Henri Bergson chamaria de "moralidade aberta", opondo-se "moralidade fechada", sendo a ltima essencialmente o sistema normativo de g r u p o s limitados, estruturados, particularistas. Bergson fala do modo como um grupo fechado preserva sua identidade contra os membros de grupos abertos, protege-se contra as ameaC.as ao seu modo de vida, e renova o desejo de manter as normas de que depende o comportamento rotineiro necessrio sua vida social. as sociedades fechadas ou estruturadas, a pessoa marginal ou "inferior", ou o "estranho" que freqentemente chega a simbolizar o que David Hume chamou "o sentimento com relac.o humanidade", o qual por sua vez se liga ao modelo que denominamos "communitas".

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OS MOV1MENTOS MILENARISTAS

Entre as mais extraordinarias manifestares da "communitas" encontram-se os movimentos religiosos, chamados milenaristas, que surgem na meio das massas que Norman Cohn (1961) denominou "massas desarraigadas e desesperadas, na cidade e no campo... vivendo a margem da sociedade" (p. 31-32) (isto , da sociedade estruturada), ou onde sociedades anteriormente tribais sao postas sob o dominio estranho e absoluto de sociedades complexas e industriis. Os atributos de tais movimentos devem ser bastante conhecidos dos leitores. Somente lembrarei aqui algumas das propriedades da liminaridade nos rituais tribais que mencionei antes. Muitos desses corresponden! bem de perto aos dos movimentos milenaristas: Jipmogeneidade, igualdade, anonmia, ausencia de propriedade (muitos movimentps__ realmente ordenam aos seus membros a destruicjp^ de qualquer propriedade que possuam, a fin de_ tqrnarem mais prximos o advento do estado perfeito de harmona e comunho que desejam, pois os direitos djQpropriedade estao ligados a distingoes estruturais, tanto verticais quanto horizntais); redugo de todos ao mesmo nivel de "condi^o social"; uso de vestuario uniforme (as vezes para ambos os sexos); continencia sexual (ou a anttese desta, a comunidade sexual, pois tanto a continencia quanto a comunidade sexual liquidam com o casamento e com a familia, que legitiman! o estado da estrutura); redu9o ao mnimo das distinces de sexo (todos sao "iguais vista de Deus" ou dos ancestrais); aboligo de categoras, humildade, descuido pela aparncia pessoal, altruismo, obediencia total ao profeta ou lder, instru?ao sagrada; levar ao mximo as atitudes e o cornportamento religioso, por oposic.o ao secular; suspenso dos direitos e obrigac.5es de parentesco (todos sao irmos ou camaradas uns dos outros, quaisquer que tenham sido os lagos mundanos anteriores) ; simplicidade de fala e de maneiras, loucura sagrada, aceitado da dor e do sof rmente (at o ponto, de se submeter ao martirio), e assim por diante.
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E' digno de nota que muitos desses movmentos permeiam, seccionando-as, as divises tribais e nacionais durante o impulso inicial. A "communitas", ou "sociedade aberta", difere neste ponto da estrutura ou da sociedade fechada, pelo fato de ser potencial ou idealmente extensiva aos limites da humanidade. Na prtica, naturalmente, o mpeto logo se exaure, e o prprio "movimento" se torna urna instituido entre outras instituicoes, freqentemente mais fantico e militante que os restantes, por julgar-se o nico possuidor das verdades humanas universais. Muitas vezes, tais movimentos oco'rrem durante fases da historia que sob varios aspectos sao "homologas" a perodos liminares de importantes rituais em sociedades estveis e rotineiras, quando os mais importantes grupos ou categoras sociais naquels sociedades estao passando de um estado cul- tural para outro. Sao essencialmente fenmenos de transi?ao. Talvez seja esta a razo pela qual em tantos desses movimentos muito da mitologa e do simbolismo que possuem tomado de emprstimo dos mitos e smbolos de tradicionais rites de passage, quer as culturas em que se originam, quer as culturas com as quais estao em contato dramtico.
OS "HIPPIES", A "COMMUNITAS" E OS PODERES DOS FRACOS

Na moderna sociedade ocidental, os valores da "communitas" estao surpreendentemente presentes na litera tura e no cornportamento do fenmeno que veio a ser conhecido como a "gera?o 'beat'", a que se sucederam os "hippies", os quais, por sua vez, tm urna jovem diviso conhecida como o "teeny-boppers". Sao os membros "audaciosos" das c a t e g o r a s de adolescentes e jovens adultos que nao tm as vantagens dos rites de passage nacionais que "optaram" fugir da ordem social ligada ao "status" e adquirirn! os estigmas dos mais humildes, vestindo-se como "vagabundos", ambu-

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lantes m seus hbitos, "populares" no gosto musical e subalternos em qualquer ocupago casual de que se incumbam. Valorizan! mais as relances pessoais do que as obrigagoes sociais, e consideram a sexualidade instrumento polimrfico da "communitas" imediata, ao invs de tom-la por base para um vnculo social estruturado e duradouro. O poeta Alien Ginsberg , em particular, eloqente sobre a fun?o da liberdade sexual. Tambm as propriedades "sagradas", com freqncia atribuidas "communitas", nao esto ausentes aqui. Comprova-se isto pelo uso habitual de termos religiosos, como "santo" e "anjo", para definir seus congneres, e pelo interesse no zembudismo. A frmula zen "tudo um, um nada, nada tudo" expressa bem o carter nao estruturado e global primitivamente aplicado "communitas". A acentuac.o dada pelos "hippies" espontaneidade, ao imediatismo e "existencia" poe em relevo um dos sentidos em que "communitas" contrasta com a estrutura. A "communitas" pertence ao momento atual; a estrutura ' est enraigada no passado e se estende para o futuro pela linguagem, a le e os costumes. Embora nosso interesse se centralize aqui as sociedades pr-industriais tradicionais, torna-se claro que as dimenses coletivas, a "communitas" e a estrutura, devem encontrarse com todos os estadios e nveis da cultura e da sociedade.
A ESTRUTURA E A "COMMUNITAS" AS SOCIEDADES BASEADAS NO PARENTESCO

ou segmentariamente e como totalidade homognea. Em muitas sociedades, feita a distincao terminolgica entre parentes do lado materno e os do lado paterno, sendo os ltimos vistos como pessoas de especie completamente diferente. E' o que acontece especialmente com relaco ao irmo do pai e ao da me. Onde existe descendencia unilinear, a propriedade e a posico social passam ou de pai para filho ou do irmo da .me para o filho da irm. Em certas sociedades, ambas as linhas de descendencia sao usadas para fins de heranca. Mas mesmo neste caso os tipos de propriedade e posico social que passam em cada linha sao muito diferentes. Consideremos de inicio urna sociedade na qual existe descendencia unilinear s o m e n t e na linha paterna. O exemplo tirado mais urna vez do povo talensi, de Gana, do qual temos grande quantidade de informafes. Nosso problema consiste em descubrir se, numa discriminacjo binaria em um nivel estrutural do tipo "superioridade estrutural-inferioridade estrutural", podemos encontrar algo que se aproxime do "poder do fraco", no ritual, que, por sua vez, demonstra-se estar relacionado com o modelo "communitas". Fortes (1949) escreve:
"A linha dominante de descendencia confere os atributos claramente significativos da personalidade social, o estado jurdico, os direitos de heranga e de sucesso quanto propriedade e ao cargo a fidelidade poltica, privilegios obrigages rituais. A linha subjacente [constituida por matrifiliaco; eu preferira dizer o "lado subjacente" ja que o vnculo pessoal 'entre o individuo e sua me, e atravs desta chega tanto aos parentes patrilineares dla quanto aos seus cognatos] confere certas caractersticas espirituais. Entre os talensis fcil observar-se que isso um reflexo do fato de o elo da descendencia uterina ser mantido como vnculo puramente pessoal. Nao favorece os interesses comuns de especie material, jurdica ou ritual; une os individuos apenas por lagos de " interesses e preocupafdes mutuos, semelhantes aos que prevalecen! entre parentes colaterais prximos, em nossa cultura. Embora constitua um dos fatores que contrabalangam a exclusividade da linha agnatcia, nao cra grupos associados, em competigp com a linhagem

1. Os Talensis Ha algumas outras manifestares desta distin9o encontradas as sociedades mais simples. Sero consideradas por mim nao como passagens entre estados, mas antes como estados binarios opostos, que, sob certos aspectos, expressam a distincao entre a sociedade considerada como estrutura de partes opostas hierrquica
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agnatcia e com o ca. Transportando apenas utn atributo espiritual, o lago uterino nao pode enfraquecer a solidariedade jurdica e poltico-ritual da linhagem patrilinear" (p. 32 os grifos sao meus).

Temos aqu a oposic.o patrilinear/matrilinear, que tem func.oes de dominante/subjacente. O la?o patrilinear relaciona-se com a propriedade, o cargo, a fidelidade poltica, a exclusividade, podendo ainda dizer-se incluidos os interesses setoriais e particulares. E' o vnculo "estrutural" por excelencia. O lago uterino refere-se as caractersticas espirituais, i n t e r e s s e s e preocupages mutuos, e colatpralidade. Contrap5e-se exclusividades o que presumivelmente significa que contribu para a inclusividade, e nao est a servido de interesses materiais. Em resumo, a matrilateralidade representa, na dimenso do parentesco, a nogo d "communitas". Um exemplo, tomado dos talensis, do carter "espiritual" e "comunitario" da matrilateralidade encontra-se nos ritos de consagrado do chamado bakologo, ou do sacrrio do adivinho. Por definigo, este sacrrio, quem o diz Fortes (1949), "feminino":
"Isto , os ancestrais relacionados com ele derivam, por definigo, de urna linhagem matrilinear do adivinho, e a figura dominante entre eles geralmente urna mulher, "urna me". O bakologo... a autntica encarnago do aspecto vingativo e invejoso dos ancestrais. Persegue o homem em cuja vida intervm inexoravelmente, at que o homem afinal se submeta e o "aceite, isto , se encarregue de montar um sacrrio para os espritos [matrilaterais] bokologo em sua prpria casa, a fim de poder oferecer-lhes sacrificios com regularidade. Todo homem., e nao apenas aqueles que sofrenan infortunios excepcionais, levado pelo sistema religioso dos talensis a projetar seus mais ntimos sentimentos de culpa e de inseguranga amplamente sobre a imagem da me, corporificada no complexo bakologo. Em geral, tambm, um homem nao se sujeita, mediatamente, as exigencias dos ancestrais bakologo. Contemporiza, foge, resiste, as .vezes durante anos, at ,ser por fim foreado a submeter-se e a aceitar o bakologo. Nove de cada grup de dez homens cima de quarenta anos tm sacrrios bakologo, mas nem todo homem tem talento para ser adivinho, e por isso a maioria dos homens simplesmente possuem sacrrio mas nao o usam para a adivinhago" (p. 325 grifos sao meus).

Transcrevi mais tongamente o relato de Fortes, por achar que demonstra claramente nao so a oposic.o e a tenso entre os vnculos de parentesco matrilinear e patrilinear, mas tambm a tenso produzida no psiquismo dos individuos, medida que alcangam a idade madura, entre o modo estrutural e o comunitario de considerar a sociedade talensi. Devemos lembrar-nos de que o d o g m a da patrilinearidade, que Homans e Schneider chamariam de linha de descendencia "rigorosa" atravs da qual sao transmitidos os direitos sobre a propriedade e a posi?ao social, dominante e da colorido aos valores dos talensis em muitos nveis da sociedade e da cultura. Do ponto de vista e da perspectiva des pessoas ocupantes de posic.5es de autoridade na estrutura patrilinear os vnculos sociais estabelecidos atravs das mulheres, simbolizando a comunidade tale mais ampia, onde secciona os estreitos lac.os grupais de descendencia e localidade, parecem necessariamente ter um aspecto destruidor. E' por isso que, segundo minha opinio, (os talensis tm a "imagem da me" bakologo, que "persegue" o homem maduro e "intervm" na vida dele, at que a "aceite". Porque, medida que os homens se desenvolvem e passam a influenciar uns aos outros em crculos mais e mais ampios de relac.6es sociais, tornam-se cada vez mais conscientes de que sua patrilinhagqm meramente parte da totalidade dos talensis. Para eles, de maneira rigorosamente literal, a comunidade maior intervm, destruindo a auto-suficincia e a relativa autonoma da linhagem setorial e dos assuntos do ca. Os sentimentos globais, anualmente acentuados nos grandes festivais de integrago, como o do Golib, onde, conforme mencionei, se realiza urna especie de casamento mstico entre representantes dos invasores amos e dos tales autctones, tornam-se cada vez mais significativos para os "homens cima dos quarenta anos" que participam das festas como chefes de familia e de sublinhagens, e nao mais como menores, sob a autridade paterna. As normas e os valores "prve141

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nientes de fora" rompem o exclusivismo da lealdade linhagem. E' perfeitamente adequado que a "communitas" seja aqu simbolizada pelos ancestrais matrilaterais, em especial pelas imagens da me, ja que nesta sociedade patrilinear e virilical as mulheres penetram de fora nos patrissegmentos da linhagem, e, como o demonstrou Fortes, os paren tes matrilaterais, na maioria, habitam fora do "campo do ca" de um homem. E' compreensvel tambm que tais espirites ^sejam considerados "vingativos" e "invejosos": sao as "mes" (as instituidoras das tetas, ou matrissegmentos) que introduzem divisoes na unidade ideal da patrilinhagem. Resumindo, diremos que em determinadas crises da vida, a adolescencia, a chegada da velhice e a morte, variando em significaso de cultura para cultura, a passagem de urna condico estrutural para outra pode ser acompanhada por um forte sentimento de "bondade humana", um sentido do laco social genrico entre todos os membros da sociedade em alguns casos transcendendo do mesmo as fronteiras tribais ou nacionais independentemente das afiliaces subgrupais ou da ocupago de posices estruturais. Em casos extremos, como a aceitaco da vocaco para xam entre os saoras, da India Central (Elwin, 1955), isto pode dar em resultado a transformagao do que essencialmente urna fase liminar ou extra-estrutural em urna condi?o permanente de "estrangeirice" sagrada. O xam, ou profeta, assume urna condigo sem "status", exterior estrutura social secular, que Ihe da o direito de criticar todas as pessoas ligadas estrutura segundo urna ordem moral que envolve a todos, e tambm de servir de intermediario entre todos os segmentos ou componentes do sistema estruturdo. as sociedades em que o parentesco constitu o que Fortes chama um "principio irredutvel" de organizado social "e onde a patrilinearidade a base da estrutura social, a ligago de um individuo aos outros membros da sociedade atravs da me e, conseqentemente, por extenso e abstracao, atravs das "mulheres" e da "fe142

minilidade", t e n d e a simbolizar a comunidade mas ampia e seu sistema tico, que abrange e invade o sistema poltico-legal. Pode-se mostrar a existencia de fascinantes correlagoes em varias sociedades entre esta converso perspectiva da "communitas" e a afirmago da individualidade por oposico ao desempenho de urna posico social. Por exemplo, Fortes (1949) demonstronos as funces individualizantes do vnculo entre o filho da irma e o irmo da me entre os talerisis. Isto, diz ele, " urna importante brecha na cerca genealgica que circunda a linhagem agnatcia; urna das aberturas mais importantes para as relaces sociais de um individuo com os membros de outros cas que nao o seu" (p. 31). Pela matrilateralidade, o individuo, em seu carter integral, fica emancipado dos encargos da posico segmentar, determinados pela patrilinhagem, entrando na vida mais ampia de urna comunidade que se estende alm dos talensis, propriamente ditos, alcan9ando grupos tribais de cultura religiosa semelhante. Vejamos agora um exemplo concreto do modo pelo qual a consagraco de um sacrrio bakologo torna visvel e explcita a comunidade talensi mais ampia, atravs dos lagos matrilaterais. Todos os rituais tm esse carter exemplar, modelar. Em certo sentido, pode dizerse que "criam" a sociedade, mais ou menos da mesma maneira pela qual Osear Wilde considerou a vida "urna imitaco da, arte". No caso citado (Fortes, 1949), um homem chamado Nabdiya "aceitou" como seus ancestrais bakologo o pai de sua me, a me do pai de sua me, e a me da me do pai de sua me. Foram os membros do ca destes ltimos que vieram instalar o sacrrio para o seu "neto por classificaco, Nabdiya. Mas para chegar a eles, Nabdiya primeiramente teve de ir ao povo do irmo de sua me; este o escoltou at a linhagem do irmo da me de sua me, vinte quilmetros distante do seu prprio povoado. Em cada localidade, ele devia sacrificar urna galinha e urna gaUnha-d'angola isto , urna ave domesticada e urna nao-domesticada ao "bogar" da linhagem, ou ao sacrrio do ancestral fundador.
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ilnhgem do ancestral dominante, ou mais freqentemente urna ancestral do complexo bakologo, quase sempre urna ancestral matrilateral, tem a responsabilidade de instalar o sacrrio para a pessoa aflita. O chefe da linhagem sacrifica as duas aves trazidas pelo paciente no sacrrio de sua linhagem, explicando aos ancestrais a natureza da ocasio que trouxe o filho de sua irm ou neto matrilateral a fazer-lhes splicas. Pede-lhes que abenc.oem o estabelecimento de um novo sacrrio, que ajudem o candidato a tornar-se um adivinho bem sucedido, e que Ihe conc^dam prosperidade, filhos e sade isto , as coisas boas em geral. Em seguida, a p a n h a alguns sedimentos que f icaram no fundo do pote, que o mais importante componente de um sacrrio bogar, e coloca-os num pequenino pote que o candidato deve levar para casa e acrescent-lo ao seu novo sacrrio. "Deste modo", diz Fortes, a "continuidade direta do novo .sacrrio bakologo com o bogar da linhagem matrilateral fica tangivelmente simbolizada" (p. 326). Assim, dois sacrrios separados por mais de trinta quilmetros e p r e c i s o lembrar que a prpria Talelndia "quase nao tem trinta quilmetros de extensao" e diversos outros sacrrios intermediarios sao direta e "tangivelmente" ligados pelos ritos. O fato de ser quase impossvel o contato fsico continuo' entre as linhagens em questo, nao ideolgicamente importante no caso, porque os sacrrios bakologo sao smbolos e expresoes da comunidade tale. "Nove entre dez" dos homens maduros tem urna quantidade de ancestrais bakologo cada um. Todos esses homens esto ritualmente interligados atravs deles a urna pluralidade de povoados, inversamente, cada bogar- de l i n h a g e m tem ligado a si um certo nmero de sacrrios bakologo, mediante conexes sororais ou de irms. Tais encadeamentos, nos seus conjuntos e secc.oes transversas, sa mais do que vnculos meramente pessoais ou espirituais! representan! os lac.os da "communitas" opondo-se s divisoes da estrutura. Sao, alm de tudo, vnculos cria144

dos partir do lado "subjacente" do parentesco, o lado jurdicamente mais fraco ou inferior. Mais urna vez pudetnos manifestar a ntima conexo existente entre "communitas" e os poderes dos fracos. 2. Os Neres E' a tensa oposito permanente entre "communitas" e estrutura que, para mim, est situada por detrs dos aspectos sagrados e "afetivos" da relago irmo da me/filho da irm, em muitas sociedades patrilineares. Nessas sociedades, como n u m e r o s o s estudiosos do assunto o demonstraran!, o irmo da me, que tem fraca autoridade jurdica sobre o sobrinho, pode ter contudo um estreito vnculo pessoal de amizade com ele, pode dar-lhe refugio contra a rispidez paterna, e muito freqentemente tem poderes msticos de aben^olo e amaldic.o-lo. Neste caso a fraca autoridade legal no mbito de ,um grupo unido sofre a oposic.ao de fortes influencias pessoais e msticas. Entre os neres do Sudo o papel de "sacerdote de pele de leopardo" une, de maneira bastante interessante, o valor simblico do irmo da me na sociedade patrilinear com alguns dos qutros atributos de figuras liminares, marginis e politicamente iracas, que ja examinamos. Segundo Evans-Pritchard (1956) "em certos mitos das tribos jikany [dos neres] a pele do leopardo [insignia da fungo sacerdotal] foi concedida pelos ancestrais das linhagens [agnatcias], dominantes [territorialfflente], a seus tos maternos, a fim de que estes pudessem desempenhar o papel de sacerdotes tribais. As linhagens do ca, estruturalmente opostas, estavam ento na relago comum dos filhos das irms com a linha dos sacerdotes, que deste modo possua urna posic.o mediadora entre elas" (p. 293 os grifos sao meus). Tanto quanto absolutos irmos da me para os setores polticos, os sacerdotes com pele de leopardo acham-se "na categora de ral, estrangeiros, e nao na
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de diet, membrs do ca que possuem os territorios tribais... Nao possuem territorios tribais prprios, mas vivem formando familias e p e q u e a s linhagens, na maioria dos territorios possudos por outros cas, ou em quase todos. Sao como membrs da tribo de Levi, divididas na de Jaco e dispersos em Israel" (p. 292). (Algo desse carter sacerdotal se encontra as linhagens dispersas dos circuncisadores e dos fazedores de chuva entre os gisus, de Uganda.) Os sacerdotes neres revestidos de pele de leopardo tm "urna rela?o mstica... com a trra, em virtude da qual se julga que suas maldi?5es possuem urna potencia especial, pois... pode afetar nao so as colheitas de um homem, mas o seu bem-estar em geral, ja que todas as atividades humanas se realizem na trra" (p. 291). O principal papel do sacerdote est em conexo com o homicidio, pois da abrigo ao assassino, negocia um acord, realiza sacrificios para que as relances sociais sejam retomadas e reabilita o assassino. Esse tipo generalizado de irmo da me possui assim muitos dos atributos de "communitas" com os quais nos estamos familiarizando: ele um estrangeiro, um mediador, age em favor da comunidade inteira, tem urna relac.ao mstica com a totalidade da trra em que habita, representa a paz contra a discordia e nao est vinculado em nenhum segmento poltico especfico.

3. Os Ashantis
Para que nao se julgue que a estrutura est umversalmente associada patrilinearidade e masculinidade, e que a "communitas" est associada matrilateralidade e feminilidade as sociedades articuladas segundo o principio da descendencia unilinear, vale a pena examinar-se brevemente urna sociedade matrilinear bastante conhecida, a dos ashantis, de Gana. Os ashantis pertencem a um grupo de sociedades da frica Ocidental, que possuem sistemas polticos e religiosos muito desenvolvidos. Todava, o parentesco unilinear ainda tem <. 146

Iconsidervel importancia estrutural. A matrilinhagem localizada, estabelecendo a descendencia a partir de urna ancestral comum conhecida, durante um perodo de dez |a doze gerafoes, a unidade fundamental para as finallidades polticas, rituais e legis. Fortes (1950) descre|veu assim o carter segmentar da linhagem: "cada I segmento definido em rela9o aos outros da mesma lordem pela referencia a ancestrais (femininas) comuns |e discriminadoras" (p. 255). A sucesso nos cargos e a |heran9a da propriedade sao matrilineares, e os bairros Idas divises das aldeias dos ashantis sao, cada um deles, habitados por urna matrilinhagem central, envollyida por urna franja de cognatos e de afins. O nome para designar a matrilinhagem abusua, que, tsegundo Rattray (1923), "sinnimo de mogya, sangue" (p. 35), como se verifica no proverbio abusua bako mogya bako, "um ca, um sangue". Discute-se as vezes se o parentesco ashanti nao deveria ser classificado como um sistema de "dupla descendencia". Este ponto de vista deriva das referencias de Rattray (1923, p. 4546) a um modo de categorizaco social conhecido pelos ashantis como ntoro (literalmente "semen"), que aquele lautor considerava urna diviso exgama, baseada na jjtransmisso pelos homens, exclusivamente. Fortes (1950, Jp. 266) pos em relevo a significaco mnima desse lelemente patrilinear para o sistema de parentesco e Ipara a ordem poltico-legal. Refere-se ao ntoro como "divises especificadas semi-rituais", porm estas nao sao |nem exgamas nem g r u p o s organizados, em qualquer | sentido. Entretanto, do ponto de vista do presente arftigo, as divises ntoro sao da maior importancia. Urna f das razes para o olvido da dimenso da "communitas" | na sociedade, com suas profundas implicacoes para a fcotnpreenso de muitos fenmenos e processos rituais ticos, estticos e, na verdade, polticos e legis, tem Pido a propenso a igualar o "social" com o "scio|estrutural". Sigamos, ent, o indici do ntoro em muis rcantos obscuros da cultura ashanti.

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Em primeiro lugar, o vnculo pai-filho, base da diviso ntoro, o vnculo estruturalment inferior. No entanto, os smbolos com os qais se associa delineiam um quadro de enorme valor para compreenso da "communitas". De a c o r d com Rattray (1923) os ashantis acreditam que o "ntoro ou o semen, transmitido pelo homem, misturado ao sangue [um smbolo de matrilinhagem] na mulher, que explica os misterios fisiolgicos da concepco... ntoro... . . . empregado as vezes como sinnimo de sunsum, o elemento espiritual, no homem ou na mulher, do qual depende... a for?a, o magnetismo pessol, o carter, personalidade, poder, alma, chamem-no como quiserem, de que dependem a sade, a riqueza, o poder da palavra, o sucesso em qualquer empreendimento, enfim, tudo aquilo que faz valer a pena viver" (p. 46). Mais urna vez, ' deparamo-nos com as particulares correlces entre personalidade e valores universais, de um lado, e "espirito" ou "alma", de outro, que parecem ser os sinais caractersticos da "communitas". Rattray (1923) enumerou .nove divises ntoro, embora afirme poder haver mais. Essas divises, naturalmente, permeiam o conjunto dos membros das matrilinhagens segmentares abusaa. Um dos ntoro considerado tradicionalmente, como "o primeiro ntoro ja outorgado aos homens, o ntoro Bosommuru" (p. 48). O mito correlacionado_ com o estabelecimento dele, segundo o modo de ver de Rattray, esclarece o modo de pensar dos ashantis sobre o ntoro em geral: i
Ha muito tempo atrs, um homem e urna mulher descerarn do cu, e urna mulher subiu da trra. Do Deus do Cu (Onyame), tambm veio urna serpente (onini), que fez sua casa no rio chamado Bosammuru. No principio, esses homens e essas mulheres nao tiverafli filhos, nao sentiam desejo, e a concepco e o nascimento nao eram conhecidos naquele tempo. Um dia, a serpente perguntou-lhes se nao tinham filhos, e sendo-lhe dito que nao, ela disse que faria com que a mulher pudsse coriceber. Mandou que os casis se defrontassem, &~ pois mergulhou no ri e, a emergir, borrifbu-lhes de agua s

ventres, com as palavras kus kus (usadas na maioria das cerirtinias em conexo com ntoro e Onyame), e ento ordenouIhes que voltassem para casa e se deitassem juntos. As mulheres conceberam e deram luz as primeiras enancas no mundo, qu tomaram o Bosommuru como seu ntoro, passando cada homem adiante este ntoro a seus filhos. Se um homem ntoro Bosommuru, ou mulher, v urna serpente morta (nunca matam urna serpente) espalha argila branca sobre ela e a enterra (p. 48-49).

Esse mito simblicamente relaciona o ntoro, ao mesmo tempo semen e divisao social, com o Deus do Cu (que tambm m deus da chuva e da agua) com a agua, um rio e a fecundado das mulheres. Outras divises ' ntoro como o Bosomtwe, grande lago na parte central dos ashantis, e o Bosompra, rio que nasce.no territorio dos ashantis, associam-se com corpos de agua. Os principis deuses ashantis sao divindades masculinas, filhos de Onyame, o supremo Deus masculino. Alm disso, todos se relacionam com a agua, o smbolo dominante da fecundidade, e, por extensao, de todas as coisas boas que os ashantis possuem em comum, independentemente das filiales subgrupais. Rattray (1923) cita os ashantis, que dizem: "Onyame decidiu mandar os seus prprios filhos trra, a fim de que pudessem receber beneficios da humanidade e tambm conferi-ls a ela. Todos esses filhos traziarh os nmes do que sao agora rios e lagos... ou todo outro rio ou agua d alguma importancia. Os tributarios desses sao tambm seus filhos" (p. 145146). Acrescenta.: "O que foi dito at aqui suficiente para demonstrar que as aguas para os ashantis... so consideradas possuidoras do poder ou do espirito do diyino Criador, sendo poftanto urna grande for?a doadora de vida. Assim como urna mulher, da nascimento a urna crianca, do mesmo modo possa a agua fazer nascer um deus, diss-me certa vez um sacerdote" (p. 146). Outros lquidos corpreos ligam-se simblicamente com "o elemenfo ntoro no homem", diz Rattray (1923, P. 54), por exemplo, a saliva; e a agua borrifada pela boca do rei ashanti durante os ritos relativos ao rio

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Bosommuru, acompanhados pelas seguintes palavras: "Vida para mim, e que esta naco prospere". O simbolismo branco no mito Bosommuru reaparece em muitos contextos rituais, onde os deuses aquticos sao venerados, enquanto os sacerdotes do supremo Deus e de outras divindades regularmente usam vestimentas brancas. Ja examinei o simbolismo branco e suas conotacCes de semen, saliva, sade, vigor e bom augurio em muitas sociedades africanas e outras, em varios trabalhos publicados (Turner, 1961; 1962; 1967). O simbolismo branco dos ashantis nao difere, em sua semntica, do simbolismo branco dos ndembos. Facamos o resumo de nossas descobertas sobre os ashantis at agora. Parecera haver um nexo entre a ligaco pai-filho, ntoro (como semen, espirito e diviso social com um conjunto de membros grandemente dispersos), a masculinidade (representada pela imagem do pai, Onyame, seus filhos e a serpente mtica, smbolo masculino, a saliva, a agua, a bngo com a agua borrifada, os lagos, os rios, o mar, o simbolismo branco e o sacerdocio. Alem disso, os chefes, especialmente o re, esto claramente associados, no Adae e em outras cerimonias, com o Deus do Cu e com os rios, especialmente o Tao, conforme sugerem as mensagens do tambor de comunicaco tocado nos ritos Adae (Rattray, 1923, p. 101). [O principio feminin e o abusua esto relacionados, como vimos, com o sangue e, por meio deste, a urna rica variedade de smbolos vermelhos. Em quase toda parte o sangue e o vermelho tm significados ao mesmo tempo auspiciosos e inauspiciosos. Para os ashantis, o vermelho est associado a guerra (Rattray> 1927, p. 134), feiticaria (p. 29, 30, 32, 34), aos espritos vingadores das vtimas (p. 22), e aos funerais (p. 150). Em alguns casos, ha direta oposifo entre o simbolismo branco (masculino) e o simbolismo vermelho (feminin). Por exemplo, deus do rio Tao ou Ta kora, segundo Rattray (1923) "parece ser particularmente indiferente, e at hostil, as mulheres. Sao criaturas ingratas (bonniye), declara ele. Nenhurna
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?tmilher tem permisso para tocar no seu santuario e tno tem akomfo (sacerdotes) do sexo feminin. As 'tnulheres na poca da menstruaco sao um de seus ! tabus" (p. 183). Deve ser lembrado que o rio Tao desempenha importante papel nos ritos Adae do asanttehene, supremo chefe da naco. A feit9aria e o simibolismo vermelho do ritual funerario tm relaco com a |qualidade de membros do abusua, ja que sao os prenles matrilineares que se acusam uns aos outros de feiti|caria, sendo muitas mortes atribuidas feiticaria. Existe |utro significado sinistro escondido aqui na no?o do vnculo do sangue. O simbolismo vermelho liga-se tamfbm ao culto da trra, Asase Ya, julgada "divindade Ifeminina" (Rattray, 1929). De acord com Rattray, "ela nao tornou tab a menstruacao (kyiri bara); ela gosta |de sangue humano" (p. 342). Poderia fazer numeras cita?5es retiradas dos magInficos e minuciosos dados de Rattray (1927) sobre o simbolismo vermelho, com a finalidade de demonstrar a Irela9b que os ashantis estabelecem entre feminilidade, tmorte, assassinato, feiticaria, mau agouro, polufo mensJtrual e o sacrificio de homens e animis. Por exemplo, los ashantis possuem um "vermelho" suman, ou "fetiche", Ique "tem a natureza de m bode expiatorio, ou algo que toma sobre si os males e pecados do mundo" (p. 13). E' embebido em tinta esono vermelha (feita de asea pulverizada da rvore adwino, provavelmente urna especie de Pterocarpus), que "um substituto do sangue humano", utilizado no culto da trra. O esono tambm |representa sangue menstrual. Esse fetiche, chamado kunkuma, ainda "colorido com sangue coagulado de carneiros e de aves que foram sacrificados sobre ele", nele se "esconde um pedaco de fibra (baa) que enha sido usada por urna mulher na menstruaco" (p. 13). Vejamos aqui o sangue sacrifical e a menstruaco Postos em relaco com rupturas das ordens natural e cial "males e pecados". Um exemplo final, talvez mais interessante de todos, ser suficiente. Urna vez Por ano ha urna violaco ritual do sacrrio ntoro origi-

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nal, o ntoro Bosommuru anteriormente mencionado. Este ntoro freqentemente o do prprio Asantehene. N0 da dos ritos "o rei lambuzado com a tinta esono vermelha" (p. 136). Oeste modo, a brancura do ntoro e do rio Bosommuru violada. Quando, mais tarde, 0 santuario purificado, a agua de determinado nmero de rios sagrados misturada argila branca em urna tigela, sendo o sacrrio borrifado com ela. Em muitas sociedades patrilineares, especialmente as que cultivam a vendeta, a descendencia atravs dos homens que se associa ao simbolismo ambivalente do sangue. Mas, entre os ashantis, onde a matrilinhagem o principio organizador dominante, o vnculo de descendencia de homem para homem considerado quase inteiramente auspicioso e correlacionado com o Deus do Cu e com os grandes deuses dos rios, que decidem sobre a fertilidade, a sade, o vigor e todos os valores da vida compartilhados por todos. Mais urna vez, encontrarnos os seres estruturalmente inferiores considerados moral e ritualmente superiores, e a fraqueza mundana, como poder sagrado. A LIMINARIDADE, A BAIXA CONDICAO SOCIAL, E A "COMMUNITAS" Chegou o momento de fazermos o cuidadoso exame de urna hiptese que procura explicar os atributos de fenmenos aparentemente diversos, tais como os nefitos na fase liminar do ritual, os autctones subjugados, as nagoes pequeas, os bufes da corte, os mendigo8 santos, os bons samaritanos, os movimentos quilisticos, os "vagabundos darma", a matrilateralidade nos sistemas patrilineares, a patrilateralidade nos sistemas matrilineares e as ordens monsticas. Trata-se sem dvida de um feixe de fenmenos sociais que nao combina111 bem! No. entanto, todos tm a seguinte caracterstic3 comum: sao pessoas ou principios que (1) se sitan1 nos intersticios da estrutura social, (2) esto

dla, ou (3) ocupam os degraus mais baixos. Isto lvanos de volta ao problema da definifo da estrutura social. Urna fonte autorizada de defini?o A Dictionary of the Social Sciences (Gould e Kolb, 1964) no qual A. W. Eister examina algumas das principis formulaf6es dessa concepto. Spencer e muitos socilogos modernos consideram a estrutura social como "a combinafo mais ou menos distintiva (da qual pode haver mais de um tipo) de instiiuices especializadas e mutuamente dependentes [a acentua9o de Eister] e as organizafes institucionais de posi^es e de atores que implicam, todas originadas no curso natural dos acontecimentos, medida que os grupos de seres humanos com determinadas necessidades e capacidades atuaram uns sobre os outros (em varios tipos ou modos de interac.o) e procuraram enfrentar o meio ambiente" (p. 668-669). concepto de Raymond Firth (1951), mais analtica, exprime-se da seguinte maneira: "Nos tipos de sociedades comumente estudadas pelos antroplogos, a estrutura social pode incluir relac.es crticas ou fundamentis provenientes de modo semelhante de um sistema de classes bascado as relac.5es com o solo. Outros aspectos da estrutura social surgem mediante a participaco em outros tipos de grupos persistentes, os cas, castas, grupos etrios ou sociedades secretas. Outras relac.5es bsicas devem-se tambm pos9o no sistema de parentesco" (p. 32). A maioria das definieres contm a 'nocao de urna cornbinac.o de posi?5es ou de situafes sociais. Muitas implicam a institucionalizagao e a persistencia de grupos e de rela?5es. A mecnica clssica, a morfologa e a fisiologa dos animis e das plantas, e, mais recentemente, com Lvi-Strauss, a lingstica estrutural, foram exploradas pelos dentistas sociais procura de conceitos, modelos e formas homologas. Todos tm, em comum, a no9o de urna combinado superorgnica de Partes ou de posi?5es, a qual persiste, com modificac.5es r^ais ou menos gradativas, atravs do tempo. O conceito de "confuto" passou a relacionar-se com o conceito

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de "estrutura social", desde que a diferenciaco das p ar j tes se torna oposico entre as partes, e a situa^o ins ficiente se torna objeto de lutas entre pessoas e grup0si que pretendem alguma cois. A outra dimenso de "sociedade" pela qual me n, teressei menos fcil de definir. O. A. Hillery (1955) examinou noventa e quatro definicoes do termo "comu, nidade" e chegou a concluso de que "alm do conceito de que as pessoas esto incluidas na comunidade, nao ha completo acord quanto natureza da comunidade" (p. 119). O campo parecera, pois, estar anda aberto a novas tentativas! Procurei fugir noco de que a "communitas" tem urna localizaco territorial especfica, geralmente de carter limitado, que permeia multas defini^oes. Para mim, a "communitas" surge onde nao existe estrutura social. Talvez o melhor modo de traduzir em palavrs este difcil conceito seja o de Martin Buber, embora julgue que ele deveria ser considerado mais um talentoso informante nativo do que um cientista sociall Buber (1961) usa t termo "comunidade" para designar "communitas": "A comunidade consiste em urna multidao de pessoas que nao esto mais lado a lado (e, acrescente-se, cima e abaixo), mas urnas com as outras. E esta multidao, embora se movimente na dirego de um objetivo, experimenta no entanto por toda parte urna virada para os outros, o enfrentamento dinmico com os outros, urna fluencia do Eu para o Tu. A comunidade existe onde a comunidade acontece" (p. 51). Buber_chama_a_atenco para a^ajureza espontnea, * Contudo, a "communitas" so torna evidente ou acessvel, por assim dizer, por sua justaposico a aspectos da estrutura social ou pela h1' bridizafo com estes. A s s i m como na psicologa da Qestalt a figura e o fundo sao mutuamente determinan' tes ou como certos elementos raros nunca sao encontra' dos na natureza em estado de pureza mas apenas quanto componentes de compostos qumicos, do

modo a "communitas" nicamente pode ser apreendida por alguma de suas relacoes com a estrutura. Se o comIponente constituido p e l a "communitas" impreciso, difcil de fixar, isto nao quer dizer que seja sem imIportncia. Aqu a historia da roda do carro de Lao-ts [pode vir a propsito. Os raios da roda e o cubo (isto |, o bloco central da roda que segura o eixo e os raios) |ao qual esto presos nao teriam utilidade se nao fosse buraco, a abertura, o vazio do centro. A "communitas", com seu carter nao estruturado, representando o "nIgulo" do correlacinamelo humano, aquilo que Buber Ichamou das Zwischenmenschliche, pode bem ser reprefsentada pelo "vazio do centro", que entretanto indisIpensvel ao funcionamento da estrutura da roda. Nao por acaso nem por falta de preciso cientfica Ique, juntamente com outros que estudaram o conceito Ide "communitas", sinto-me forcado a recorrer met|fora e analoga.. Porque a "communitas" tem urna qualjdade existencia!, abrange a totalidade do homem,, em sua relaco com outros homens inteiros. A estrutura, |por seu lado, tem q u a 1 i d a d e cognoscitiva conforme observou Lvi-Strauss, a estrutura consiste essencialmen,te num conjunto de classificaces, num modelo para Ipensar a respeito da cultura e da natureza, e para brSdenar a vida pblica de algum. A "communitas" tem ftambm' um aspecto de potencialidade; est freqenteIniente no modo subjuntivo. As relacoes entre os seres Jtotais sao geradoras de smbolos de metforas, de comiparacoes. A arte e a religio sao produtos dlas, mais |do que estruturas legis e polticas. Bergson viu as palavrs e nos escritos dos profetas e dos grandes arpistas a cria?o de ma "moral aberta", expresso ela 3 rpria do que chamou lan vital ou "for?a vital" evoPtiva. Os profetas e os artistas tendem a ser pessoas minares ou marginis, "fronteiri^os" que se esfor?am c orn veemente sinceridade por libertar-se dos clichs ligados as incumbencias da posi?o social e represeno de papis,,^ e entrar em relacoes vitis com os Putros homens, de fato ou na imaginafo. Em suas pro155

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dugoes podemos vislumbrar por momentos o extraordi nrio potencial evolutivo do gnero humano, anda nao exteriorizado e fixado na estrutura. A "communitas" irrompe nos intersticios da estrutura, na liminaridade; as bordas da estrutura, na marginalidade; e por baixo da estrutura, na inferioridade. Em quase toda parte a "communitas" considerada sagrada ou "santificada", possivelmente p o r q u e transgride ou anula as normas que governam as relances estruturadas e institucionalizadas, sendo companhada por experiencia de um podero seni precedentes. Os processos de "nivelamento" e de "despojamento" para os quais Goffman chamou nossa atengo, freqentemente parecem inundar de sentimento os que esto sujeitos a eles. Esses processos libertam seguramente energas instintivas, porm estou agora inclinado a pensar que a "communitas" nao apenas produto de impulsos biolgicamente herdados, liberados das coages culturis. Sao antes produtos de faculdades peculiarmente humanas, incluindo a racionalidade, a voligo e a memoria, desenvolvidas pela experiencia da vida em sociedade, do mesmo modo como, entre os talensis, sao so os homens maduros que sofrem as experiencias que os induzem a receber os sacrrios bokologo. A nogao de haver um vnculo genrico entre os homens, e o correlato sentimento de "bondade humana", nao sao epifenmenos de certa especie de instinto gregario, mas produtos de "homens inteiramente dedicados em sua totalidade".^A liminaridadei--a--mar.Efinalidade _ _ _ ente^^se^, geram os mjtos,=smbolos~,r,ituais, sistemas, porcionam , aQs^ho.mens^um conjunto de padres ou modelos que constituem, em determinado nivel, jgcl sif icagoes peridicas da reaHdade^e 4jo_jreladonameii^ doHomem com a socieda(e,"~a natureza~e~lTcifltura. Todava, sao mais que classificages, visto incitarem s homens ago, tanto quanto ao pensamento. Cada um a dessas produces tem carter multvoco, possui varia5
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significagoes, sendo capaz de mover os homens simultneamente em muitos nveis psicobiolgicos. Existe, aqu, uma dialtica, pois a imediatidade da "communitas" abre caminho para a mediagao da estrutura, enquanto nos rifes de passage os homens sao libertados_da estrutura e entram na "communitas" apenas para retornar estrutura, revitalizdos pela experiencia "da "communitas". Certo que nenhuma sociedade pode funcionar adequadamente sem esta dialtica. O exagero da estrutura pode levar a manifestares patolgicas da "communitas", fora da "lei" ou contra ela. O exagero [da "communitas", em alguns movimentos polticos ou | religiosos do tipo nivelador, pode rpidamente ser seguido pelo despotismo, o excesso de burocratizago ou outros modos de enrijecimento estrutural. Pois, tal como os nefitos, na frica, na cabana da circunciso ou os monges beneditinos, os membros de movimentos milenaristas, aqueles que vivem em comunidade parecem exigir, mais cedo ou mais tarde, uma autoridade absoluta, seja sob a forma de um mandamento religioso, de um lder inspirado pela divindade ou de um ditador. A "communitas" nao pode ficar solada, se as necessidades materiais e de organizagao dos seres humanos tm de ser adequadamente satisfcitas. A maxjmizago da "communitas" provoca a maximizago da estrutura, a qual por sua vez produz esforc.cs revolucionarios pela renovagao da "communitas". A historia de toda grande sociedade fornece provas dessa oscilacjo no nivel poltico. O prximo captulo trata de dois importantes exemplos. Ja fiz mengao da ntima conexo existente entre estrutura e propriedade, quer esta seja possuda, herdada ou administrada de maneira privada ou coletiva. Assim, muitos movimentos milenaristas procuram abolir a proPriedade ou possuir todas as coisas em comum. Geralmente isto so possvel por um pequeo perodo de tempo at a data fixada para o advento do milenio ou s cargas ancestrais. Quando a profeca falha, a proPriedade e a estrutura retornan! e o movimento se torna institucionalizado ou se desintegra, dissolvendo-se setis

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rnembros na ordem estruturada circunstante. Suspeito que Lewis Henry Morgan (1877) terina desejado ardntemente o advento da "communitas" para o mundo inteiro. Por exemplo, nos ltimos e sonoros pargrafos de Ancient Society diz o seguinte: "Um modo de vida bascado meramente na propriedade nao o destino final da humanidade, se o progresso tem de ser a lei do fu, turo como foi a do passado... a dissoluc.o da sociedade promete vir a ser o trmino de um modo de vida do qual a propriedade o fim e o objetivo; porque essa existencia contm os elementos de sua prpria destruico. A democracia no governo, a fraternidade na sociedade, a igualdade de direitos e privilegios e a educaco universal pressagiam o prximo plano mais elevado da sociedade, para o qual tendem continuamente a experiencia, a inteligencia e o conhecimento" (p. 552). Que significa este "plano mais elevado"? Neste ponto Morgan aparentemente sucumbe ao erro cometido por : pensadores como Rousseau e Marx: a confusao entre "communitas", que urna dimenso de todas as sociedades passadas e presentes e a sociedade .arcaica ou primitiva. "Ser o renascimento", continua ele, "numa forma superior, da liberdade, igualdade e fraternidade das antigs gentes". No entanto, como a maioria dos antroplogos confirmara agora, as normas consuetudinarias e as diferencas de "situaco" e de prestigio as sociedades pr-letradas so permitem pequeo alcance para a liberdade e a escolha individuis. individualista freqentemente considerado um feiticeiro. So permitem pequea extens para a verdadeira igualdade entre homens e mulheres, por exemplo, entre velhos e mogos, entre chefes e subordinados, nquanto a fraternidade muitas vezes sucumbe a urna aguda distin? de situaces sociais entre irmos mais velhos e nias mocos. O fato de pertencerem a segmentos rivais de sociedades tais como a> dos talensis, neres e Uves n permite nem mesmo a fraternidade tribal. A condico de membro de um grupo submete o individuo estrutura e aos conflitos inseparveis da diferenciasao estrU'

tural. Contudo, m e s m o as sociedades mais simples existe a distinco entre estrutura e "communitas", encontrando expresso simblica nos atributos culturis de liminaridade, marginalidade e inferioridade. Em diferentes sociedades, e em perodos diferentes em cada sociedade, um ou outro desses "antagonistas imortais" (fazendo uso de termos que Freud empregou em sentido diverso) assume a supremaca. Mas, juntos, constitueni a "condico humana", no que diz respeito as relacoes do homem com seus semelhantes.

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A "Communitas" Modelo e Processo


MODALIDADES DA "COMMUNITAS"

ESTE CAPTULO RESULTA MUITO NATURALMENTE DE UM


seminario realizado na Universidade de Cornell com um grupo interdisciplinar de estudantes e do corpo docente, sobre varios pontos daquilo que se pode chamar aspectos meta-estruturais das relaces sociais. Fui educado na tradicao social:estruturalista ortodoxa da antropologa britnica, a qual para expressar um raciocinio complexo com crua simplicidade considera urna "sociedade" como um sistema de posic,5es sociais. Tal sistema pode ter urna estrutura segmentaria ou hierrquica, ou ambas. O que desejo acentuar aqui que as unidades da estrutura social sao retacees existentes entre "posi5es", fun^es e cargos. (Naturalmente nao estou empregando, neste caso, o termo "estrutura" no sentido preconizado por Lvi-Strauss.) A utilizado de modelos scio-estruturais tem sido extremamente til para trazer clareza a muitas reas obscuras da cultura e da: sociedade, mas, conforme acontece com outras principis maneras de compreender, o ponto de vista estrutural tefflse transformado, com o correr do tempo, num grilho e num fetiche. As experiencias de campo e as leitura5 gerais sobre artes e humanidades levaram-me convic?o de que o "social" nao se identifica com o "socio' estrutural". Existem o u t r a s modalidades de rela8eS sociais.
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Alm do estrutural encontra-se nao apenas o conceito de Hobbes de "guerra de todos contra todos", ma's tambm a "communitas", modo de relacionamento ja recnhecido como tal pelo nosso seminario. Essencialmerite, a "communitas" consiste em urna rela?o entre individuos concretos, histricos, idiossincrsicos. Estes individuos nao esto segmentados em fungao e posioes sociais, porm defrontam-se uns com os outros mais propriamente maneira do "Eu e Tu", de Martin Buber. Juntamente com este confronto direto, mediato e total de identidades humanas, existe a tendencia a ocorrer um modelo de sociedade como urna "communitas" homognea e nao estruturada, cujas fronteiras coincidem idealmente com as da especie humana. A "communitas", sob este aspecto, acentuadamente diferente da "solidariedade" de Durkheim, cuja for?a depende do contraste entre "interior ao grupo" e "exterior ao grupo". At certo ponto a "communitas" est para a solidariedade como a "moral aberta" de Henri Bergson est para sua "moral fechada". No entanto, a espontaneidade e a imediatidade da "communitas", opondo-se ao carter jurdico e poltico da estrutura, podem raramente ser mantidas por muito tempo. A "communitas" em pouco tempo se transforma em estrutura, na qual as livres relac.es entre os individuos convertem-se em relances, governadas por normas, entre pessoas sociais. Assim, necessrio que se distinga: 1) a "communitas" existencia! ou espontnea .aproximadamente aquilo que os "hippies" hoje chamariam "happening", e que William Blake chamou "o fugaz momento que passa", ou, posteriormente, "perdo mutuo dos defeitos de cada um"; 2) "communitas" normativa, na qual, sob a influencia do tempo, da necessidade de mobilizar e organizar recursos e da exigencia de controle social entre os membros do grupo na consecueao dessas finalidades, a "communitas" existencial passa a organizar-se em um sistema social duradouro; 3) a "communitas" ideolgica, rtulo que se pode aplicar a urna multiplicidade de modelos utpicos de sociedades, bascados na "communitas" existencial.
O Processo... Ec) 2877 6

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"communitas" ideolgica consiste simultneamente numa tentativa de descric,3o de efeitos externos e visveis a forma exterior, poder-se-ia dizer de urna experiencia interior da "communitas" existencia!, e numa tentativa de enunciar claramente as condi?5es sociais timas as quaip seria lcito esperar que essas experiencias florescam e se multipliquen!. A "communitas" ideolgica e a normativa ja se situam ambas dentro do dominio da estrutura. E' o destino de toda "communitas" espontanea na historia sofrer aquilo que muitas pessoas consideram um "declno e queda" na estrutura e na lei. Nos movimentos religiosos do tipo da "communitas" nao apenas o carisma dos lderes que se "rotiniza", mas tambm a "communitas" de seus primeiros discpulos e seguidores. Tenho a intenc.o de trabar um ampio esbo?o deste processo largamente difundido, fazendo referencia a dois exemplos histricos muito conhecidos: os primitivos franciscanos da Europa medieval e os Sahajlys dos sculos XV e XVI, na india. Anda mais, a estrutura tende a ser pragmtica e mundana, enquanto a "communitas" com freqncia especulativa e geradora de imagens e idias filosficas. Um exemplo desse contraste, ao qual nosso seminario dedicou muita aten?o, a especie de "communitas" normativa que caracteriza a fase liminr dos ritos tribais de iniciac.o. Existe aqui em geral urna grande simplifica?3o da estrutura social, no sentido antropolgico britnico, acompanhada por urna rica proliferac.ao de estrutura ideolgica, sob a forma de mitos e de sacra, na acepc.3o de Lvi-Strauss. As regras que abolem as minucias de diferencia?^ estrtural, por exemplo nos dominios do parentesco, da economa e da estrutura poltica, liberam a propenso humana para a estrutura dando-lhe livr predominio no campo cultural do mito, do ritual e do smbolo. Nao inicia9o tribal, no entanto, mas a gnese dos movimentos religiosos que nos interessa neste momento, embora possa dizer-se de ambas que revelam um carter "liminr" no fato de surg' rem em pocas d radical trans?o social, quando a pr-

pria sociedade parece estar passando de um estado fixo para outro, quer se julgue que o terminas ad quem esteja na trra quer no cu. Em nosso seminario, tambm, freqentemente deparamo-nos com casos, na religio e na literatura, nos quais a "communitas" ideolgica e a normativa sao simbolizadas por categoras, grupos, tipos ou individuos estruturalment inferiores, estendendo-se do irmo da me as sociedades patrilineares at os povos autctones conquistados, os camponeses de Tolstoi, os harijans de Gandhi e os "pobres santos" ou os "pobres de Deus" da Europa medieval. Por exemplo, os "hippies" de hoje, como os franciscanos de ontem, assumem os atributos dos individuos estruturalment inferiores, a fim de alcanc.ar a "communitas".
A "COMMUNITAS" IDEOLGICA E A ESPONTANEA

Os indicios que encontramos, as sociedades pr-Ietrads e pr-industriais, da existencia em suas culturas, principalmente na liminaridade e na inferioridade estrtural, do modelo igualitario a que chamamos "communitas" normativa, tornam-se em sociedades complexas e letradas, antigs e modernas, urna torrente positiva de conceptees explicitamente formuladas sobre o modo pelo qual os homens podem viver mellior, juntos, em harmona e camaradagem. Estas concep$5es podem ser chamadas, conforme acabamos de mencionar, "communitas" ideolgica. A fim de exprimir a ampia generalidade dessas formulares do dominio ideal no-estruturado, gostaria de acrescentar, quase ao acaso, testemunhos provenientes de fontes muito afastadas unas das outras no espado e no tempo. Nestas fontes, tanto religiosas quanto seculares, mantm-se urna conexo bastante regular entre limnaridade, inferioridade estrtural, a mais baixa posigao social e estrangeirice estrtural, de um lado, e, de outro, valores humanos universais, como paz, harmona entre todos os homens, fecundidade,
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sade do espirito e do corpo, Justina universal, camaradagem e fraternidade entre todos os homens, igualdade diante de Deus, da lei, ou a forc,a da vida de homens e mulheres, jovens e velhos, e de pessoas de todas as rafas e grupos tnicos. Em todas essas fprmulac.oes utpicas tem especial importancia a permanente conexao entre igualdade e ausencia de propriedade. Tomemos, por exemplo, a repblica ideal de Gonzalo, na Tempestade de Shakespeare (ato II, cena I, linhas 141163), em que Gonzalo se dirige aos infames Antonio e Sebastio da seguinte maneira: (Reproduzimos aqu a verso brasileira do trecho citado e tomada da traduc.o do teatro completo de Shakespeare por Carlos Alberto Nunes, Clssicos de Bolso, vol. I, p. 68-69. Nota do tradutor).
Gonzalo: Na repblica Paria tudo peles sus contrarios, Pois nao admitira especie alguma de comercio; de magistrado, nada, netn mesmo o nome; o estudo ficaria ignorado de todo; suprimira, de vez, ricos e pobres e os servigos; Contratos, sucesses, questSes de trra, demarcages, cuidados da lavoura, plantago de vinhedos, nada, nada. Nenhum uso tambm de leo e de vinho, Trigo e metal. Ocupago nenhuma. Todos os homens ociosos, todos. E as mulheres tambm mas inocentes e puras. Faltara, de igual modo, sobrariam... Sebastio:
Mas o rei era ele.

pela natura. Espadas, espingardas, facas, chugos, traiges, felonas, eu nao admitira. A natureza produziria tudo por si mesma, so para alimentar meu povo ingenuo. Sebastio: E casamento, haveria entre eles? Antonio: Nao, meu caro senhor, vadios todos; viles e prostitutas. Gonzalo :
Governaria de tal modo que deitara sombra prpria idade de ouro.

Antonio: Da repblica o fim esquece o inicio. Gonzalo: Todas as coisas em comum seriam Sem suor nem esforgo produzidas /

A repblica de Gonzalo tem muitos atributos da "communitas". A sociedade considerada como um todo inconstil e sem entranhas, rejeitando ao mesmo tempo a posic.o social e o contrato os polos evolucionrios de todo o sistema de desenvolvimento social de Sir Henry Maine evitando a propriedade privada, com suas fontes e suas demarcares de trra, lavouras e vinhedos, entregando generosidade da natureza o suprimento de todas as necessidades. Aqui, ele est sem dvida falsamente adaptado situado do Caribe; em circunstancias mai.s espartanas, os homens seriam obrigados a trabalhar, ao menos para se conservaren! aquecidos. Ele evita assim a dificuldade crucial de todas as utopias a de que os homens teriam de prover as necessidades da vida mediante o trabalho, ou, no jargao dos economistas, deveriam mobizar recursos. Mobilizar recursos significa tambm mobilizar pessoas. Isto implica urna organizado social, com seus "fins" e "meios" e a necessria "demora das recompensas", tudo isto acarretando o estabelecimento, mesmo transitorio, de relacoes estruturais ordenadas entre os homens. Desde que, nessas condigoes, alguns devem ter a iniciativa e comandar, e outros responder e obedecer, um sistema para a producto e a distribuifo de recursos contm em si

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as sementes da segmentado e da herarquia estruturais. Gonzalo contorna este fato embarazoso supondo urna incrvel fertilidade da natureza mostrando com isso o absurdo de todo seu nobre sonho. Shakespeare, tambm, como freqente em suas obras, poe argumentos vlidos na boca de personagens menos dignos, quando, por exemplo, faz Sebastio dizer: "Mas o rei era ele". Podemos descobrir aqu a intuico de que sempre que se supunha urna perfeita igualdade em certa dimenso social, ele provocar urna perfeita desigualdade em outra dimenso. Um valor final da "communitas" acentuado por Gonzalo o da inocencia e pureza daqueles que vivem sem o dominio de um soberano. Encontramos aqui a supos9ao, que ser mais tarde desenvolvida de maneira mais elaborada por Rousseau, da bondade natural dos seres humanos, vivendo num estado de absoluta igualdade, sem propriedades, sem estrutura. De fato Gonzalo sugere que em seu povo inocente nao haveria trai?oes, felonas, espadas, chucas, facas, espingardas, as quais parece igualar a necessidade de alguma mquina, como se a guerra, o conflito e, na verdade, qualquer especie de "atividade poltica" estivessem necessariamente relacionadas com a tecnologa, mesmo do tipo mais rudimentar. A repblica de Gonzalo aproxima-se mais do que qualquer outro tipo de "communitas" ideolgica daquilo que Buber (1959-1961) chamou das Zwischenmenschliche, ou "communitas" espontnea. Quando Buber utiliza o termo "comunidade", nao est se referindo, em primeiro lugar, a grupos sociais duradouros com estruturas institucionalizadas. Acredita, sem dvida, que esses grupos podem ser encontrados em comunidade, e que alguns tipos de grupos, como os kvuzoth ,e os kibbutzim de Israel, sao os que melhor Ihe preservam o espirito. Contudo, para Buber a comunidade essencialmente um modo de relacionamento entre pessoas em totalidade e pessoas concretas, entre o "Eu" e o "Tu". Esta relagao sempre um "happening", algo que surge numa reciprocidade mediata, quando cada pessoa experimenta
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plenamente o ser de outra. Diz Buber (1961): "Somente quando tenho de tratar com outro essencialmente, ou seja, de modo tal que ele nao mais um fenmeno do meu Eu, mas ao invs o meu Tu, que experimento a realidade da fala com o outro na incontestvel autenticidade da reciprocidade" (p. 72). Porm Buber nao restringe a comunidade a relacionamentos didicos. Fala tambm de um "Nos essencial", com o que significa "urna comunidade de varias pessoas independentes, que tm um ego e auto-responsabilidade... O Nos inclui o Tu. So os homens que sao capazes, vefdadeiramente, de dizer Tu a um outro podem verdadeiramente dizer Nos com um outro... Nenhum tipo particular de forma?ao de grupo enquanto tal pode ser mencionado como exemplo do Nos essencial, mas em muiros deles a variedade favorvel ao surgimento do Nos pode ser vista claramente.. . Para impedir o aparecimento do Nos, ou sua conserva?o, basta que seja aceito um nico homem vido de poder, capaz de utilizar-se dos outros como meios para seus prprios fins, ou que almeje ter importancia e fafa exibico de si mesmo" (p. 213-214). Nesta e em outras formulaces semelhantes, Buber deixa claro que o "Nos essencial" um modo transitorio, embora muito poderoso, de relacionamento entre pessoas integris. Para mim, o "Nos essencial" tem carter liminar, pois a duraco implica institucionaliza9o e repetifo, enquanto a comunidade (que, aproximadamente, equivale "communitas" espontnea) sempre completamente nica, e por conseguinte socialmente transitoria. As vezes Buber parece desorientado sobre a possibilidade de converter esta experiencia de reciprocidade em formas estruturais. A "communitas" espontnea nao pode n u n c a ser expressa adequadamente numa forma estrutural, mas pode surgir de modo imprevisvel em qualquer tempo entre os seres humanos que sao institucionalmente contados ou definidos como membros de algum tipo, ou de todos os tipos, de agrupamento social, ou de nenhum. Assim, como na sociedade pr-letrada, os ciclos de desenvolvimento individuis e

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sociais sao entrecortados por instantes mais ou menos prolongados de liminaridade ritualmente guardada e estimulada, cada um com seu ncleo de "communitas" potencial, assim tambm estrutura de fases da vida social as sociedades complexas tambm entrecortada por nmeros instantes de "communitas" espontnea, mas sem motivos provocadores institucionalizados e sem salvaguardas. , as sociedades pr-industriais e as primeiras sociedades industriis com m l t i p l a s relaces sociais, a "communitas" espontnea parece estar freqentemente associada ao poder mstico, sendo considerada como um carisma ou gra?a, enviado pelas divindades ou pelos ancestrais. Nao obstante, por meio de splicas rituais, sao feitas tentativas, na maioria das vezes as fases de recluso liminar, para levar as divindades ou os ancestrais a concederem o carisma da "communitas"- aos homens. Nao ha, porm, forma social especfica que seja mantida para expressar a "communitas" espontnea. Ao contrario, espera-se mais que surja nos intervalos entre os encargos das posicoes e condeces sociais, naquilo que se costuma conhecer como "os intersticios da estrutura social". as sociedades industrializadas complexas, anda encontramos traeos, as liturgias das igrejas e em outras organizares religiosas, de tentativas institucionalizadas de prepara?o para o advento da "communitas" espontnea. Esta modalidade de relacao, no entanto, parece florescer melhor em situac.5es liminares espontneas fases entre estados em que o desempenho do papel scio-estrutural dominante, e em especial entre pessoas iguais quanto a categora social. Foram feitas recentemente algumas tentativas nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, no sentido de criarem-se novamente as condicoes rituais as quais, poder-se-ia afirmar, a "communitas" espontnea viria a ser invocada. Os "beats" e os "hippies", mediante a utilizacao de smbolos eclticos e sincrticos e ages H~ trgicas extradas do repertorio de muitas religies, de drogas empregadas para a "expanso do pensamento")
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da msica "rock" e de luzes falseantes, tentam estabelecer a "total" comunho de uns com os outros. Esperam e acreditam que isto os torne capazes de atingir uns aos outros pelo drglement ordonn de toas les sens, numa reciprocidade terna, silenciosa, cognoscitiva e numa completa concretidade. O tipo de "communitas" desejado pelos homens tribais nos seus ritos e pelos "hippies" nos seus "happenings" nao a camaradagem aprazvel e sem esforco, que pode surgir entre amigos, colaboradores e colegas de profisso, em qualquer tempo. O que buscam urna experiencia transformadora, que vai at as razes do ser de cada pessoa, e encontra nessas razes algo profundamente comunal e compartilhado. A homologa etimolgica freqentemente estabelecida entre as palavras "existencia" e "xtase" tem cabimento neste caso; existir "estar fora", isto , estar fora da totalidade das posicoes estruturais que normalmente una pessoa ocupa num sistema social. Existir estar em xtase. Porm para os "hippies" como tambm para muitos "movimentos mlenaristas e "entusisticos" o xtase da "communitas" espontnea considerado o fin do esforc.o humano. Na religio das sociedades pr-industriais, este estado considerado mais como um meio para o individuo atingir o fim que consiste em tornar-se mais plenamente envolvido na rica multiplicidade do desempenho estrutural de funcoes. Nisto existe, talvez, maior sabedoria, pois os seres humanos sao responsveis uns peirante os outros no provimento das necessidades modestas, tais como alimentaeao, bebida, roupa, cuidadoso ensino das tcnicas materiais e sociais. Essas responsabilidades implicam urna cuidada ordenaco dos relacionamentos h u m a n o s e do conhecimento que o homem tem da natureza. Ha um misterio de distancia mutua, aquilo que o poeta Rilke chamou "a circunspecto do gesto humano", que to humanamente importante, quanto o misterio da intimidade. Mais urna vez volvemos necessidade de visualizar a vida social do homem como um processo, ou antes, como urna multiplicidade de processos, no qual o car-

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ter de um tipo de fase onde suprema a "communitas" difere profundamente, at de modo abissal, do carter de todos os outros. A grande tentago humana, encontrada de maneira preeminente entre os utopistas, est em resistir a renunciar as boas e aprazveis qualidades daquela fase a fim de abrir caminho para aquilo que pode ser os necessrios sofrimentos e perigos da fase seguinte. A "communitas" espontnea ricamente carregada de sentimentos, principalmente os prazerosos. A vida na "estrutura" est cheia de dificuldades objetivas: devem ser tomadas decises, as inclinages precisam ser sacrificadas aos desejos e necessidades do grupo e os obstculos fsicos e sociais so sao superados a custa de esforgos pessoais. A "communitas" espontnea tem algo de "mgico". Subjetivamente, ha nela o sentimento de poder infinito. Mas este poder nao transformado difcilmente pode ser aplicado aos detalhes de organizado da existencia social. Nao sucedneo para o pensamento lcido e para a vontade firme. Por outro lado, a ago estrutural prontamente se torna rida e mecnica se a q u e l e s que nela esto envolvidos nao forem peridicamente imersos no abismo regenerador da "communitas". A sabedoria consiste sempre em achar a relacao adequada entre estrutura e "communitas", as circunstancias dadas de tempo e lugar, em aceitar cada modalidade quando dominante sem rejeitar a outra, e em nao se apegar a urna quando seu mpeto atual est esgotado. A repblica de Gonzalo, como Shakespeare parece irnicamente indicar, urna fantasa ednica. A "communitas" espontnea urna fase, um momento, nao urna condigno permanente. No momento em que um pau de cavar fincado na trra, em que um potro domado, em que se procura proteco contra urna alcatia de lobos ou um inimigo do homem posto em fuga, temos os grmes de urna estrutura social. Esta nao apenas o conjunto de grilhes em que os homens por toda parte estao, mas os prprios meios culturis que preservam a dignidade e a liberdade, bem como a exis170

tncia fsica de cada homem, mulher e crianza. Pode haver numeras imperfeiges nos meios estruturais empregados e nos modos em que sao utilizados, porm, desde os primordios da pr-histria, os fatos indicam que tais meios sao o que torna o homem mais evidentemente homem. Nao queremos afirmar que a "communitas" espontnea seja meramente "natureza". A "communitas" espontnea natureza em dilogo com a estrutura, casada com ela, como urna mulher se liga a um homem. Juntos, criam um fluxo de vida, como um rio, um afluente fornecendo a energa e o outro a fertilidade aluvial. A POBREZA FRANCISCANA E A "COMMUNITAS" Entre a repblica de Gonzalo e os modelos de sistemas estruturais estreitamente integrados situa-se urna grande quantidade de formas socais ideis. As atitudes relativas propriedade distinguen! o conjunto de modelos da "communitas" dos modelos mais empiricamente orientados, os quais combinam, em proporgoes variadas, os componentes do tipo "communitas" com o claro reconhecimento das vantagens da organizago das estruturas institucionalizadas. E' essencial que se distinga entre os modelos ideis de "communitas" apresentados na literatura ou proclamados pelos fundadores de movimentos ou de efetivas comunidades, e o processo social resultante das tentativas entusisticas do fundador e de seus discpulos de viverem de acord com esses modelos. Somente pelo estudo dos campos sociais, de qualquer carter dominante, ao longo do tempo que urna pessoa poder tornar-se conscia das nuangas esclarecedoras do comportamento e da deciso que langam luz sobre a estrutura de desenvolvimento da relagao entre ideal e praxis, entre "communitas" existencia! e "communitas" normativa. Um dos grandes exemplos clssicos desse desenvolvimento pode ser encontrado na historia da ordem dos franciscanos, da Igreja Catlica. M. D. Lambert, em
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seu recente livro Franciscan Poverty (1961) derivado das principis fontes primarias e secundarias da historia e da doutrina franciscanas, faz urna reconstrueo admiravelmente lcida do curso dos acontecimentos que emanaram da tentativa de S. Francisco de viver, e encorajar os outros a viverem, de acord com determinada concepco da pobreza. Examina as vicissitudes, ao longo do tempo, do grupo fundado por S. Francisco, em sua relago com a Igreja estruturada e, implcitamente, com a sociedade secular circunstante. Assim fazendo, revela um paradigma processual do destino da "communitas" espontnea, quando passa a fazer parte da historia social. Os movimentos subseqentes, religiosos e seculares, tendem a seguir, em ritmos variveis, o modelo do franciscanismo em suas relacoes com o mundo.
A "COMMUNITAS" E O PENSAMENTO SIMBLICO

A essncia das cautelosas deduc.oes de Lambert sobre o modo de pensar de S. Francisco e suas idias sobre a pobreza o que tentaremos reproduzir. Em primeiro lugar e neste ponto S. Francisco equipara-se a muitos outros fundadores de grupos do tipo "communitas" "seu pensamento foi sempre mediato, pessoal e concreto. As idias apareciam-lhe como imagens. Urna seqncia de pensamento, para ele, . . . consiste em saltar de urna imagem para o u t r a . . . Quando, por exemplo, deseja explicar seu modo de vida ao papa Inocencio III, transforma seu apelo numa parbola; em outras ocasies, quando deseja que os irmos Ihe compfeendam as intengoes, escolhe fazer isso por meio de smbolos. O fausto da mesa de seu irmo demonstrado por S. Francisco disfarcado em um pobre estrangeiro. A iniqidade de tocar em dinheiro expressa em una parbola representada, imposta a um ofensor por S. Francisco como penitencia" (p. 33). Este modo concreto, pessoal, de pensar por imagens muito caracterstico dos que amam a "communitas" existencial com a rela?o direta entre um
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homem e outro, e entre o homem e a natureza. As abstraces parecem como hostis ao contato vivo. William Blake, por exemplo, um grande expoente literario da "communitas" em Prophetic Books, escreveu que "quem quiser fazer o bem aos outros deve faz-lo em diminutos pormenores; o bem geral o pretexto dos hipcritas e dos velhacos". Porm, como outros videntes de antigs e modernas "communitas", S. Francisco tomou muitas decises essenciais com base no simbolismo dos sonhos. Por exemplo, antes de decidir demitir-se da directo oficial da Ordem em 1220, "sonhou com urna pequea galinha preta que, apesar de tentar o mais possvel, era demasiado pequea para cobrir com as asas toda a ninhada". Pouco mais tarde, suas deficiencias c o m o legislador foram-lhe reveladas em outro sonho, no qual "tentava em vo alimentar seus irmos famintos com migalhas de pao que Ihe escorregavam por entre os dedos" (p. 34). Foi sem dvida o prprio carter concreto de seu pensamento e, se conhecssemos os fatos relativos ao seu ambiente social, a multivocidade do seu simbolismo que fizeram de S. Francisco um mediocre legislador. A criacjo de urna estrutura social, especialmente dentro da moldura protoburocrtica da Igreja Romana, tria exigido urna tendencia abstraco e a generalizarlo, urna capacidade de produco de conceitos unvocos e urna perspicacia generalizadora; e estas se oporiam ao imediatismo, espontaneidade e, sem dvida, direta mundanidade da nogo da "communitas" de S. Francisco. Alm disso, S. Francisco, como outros antes e depois dele, nunca foi capaz de superar as limita^oes numricas que parecem atacar os grupos que levam ao mximo a "communitas" existencial. "S. Francisco foi um chefe espiritual supremo de pequeos grupos. Mas era incapaz de prover a organizado impessoal requerida para a manutenco de urna rdem que se espalhou pelo mundo inteiro" (p. 36). Recentemente, Martin Buber (1966) examinou o problema e afirmou que "urna comunidade orgnica e sement essas comunidades podem reunir-se para for173

mar urna ra?a de homens configurada e bem organizada nunca se construir a partir de individuos, porrn apenas de pequeas e mesmo muito pequeas comunidades; urna naco urna comunidade na medida em que urna comunidade de comunidades" (p. 136). Prop6e, por conseguinte, contornar o problema imposto a S. Francisco, e que foi o de estabelecer previamente urna constituico detalhada, permitindo sua comunidade de comunidades lutar at alcancar progressivamente a coerncia. Isto ter de ser conseguido por um "profundo tato espiritual" dando formas relac.o entre centralismo e descentralizaco, e entre idi'a e realidade, "com a constante e infatigvel pesagem e medicao da exata proporcSo entre elas" (p. 137). Buber, em resumo, deseja preservar o carter concreto da "communitas", mesmo as maiores unidades sociais, num processo que considera anlogo ao crescimento orgnico, ou ao que chamou "a vida do dilogo".
Centralizado, mas apenas tanto quanto seja indispensve! as condices dadas de tempo e lugar. E se as autoridades responsveis pelo tragado e retrasado das linhas de demarcaco mantiverem a conscincia alerta, as relages entre a base e o vrtice da pirmide do poder sero bem diferentes do que eo agora, mesmo em Estados que se chamam communitas, iato , que lutam pela comunidade. E' preciso que haja um sistema de representado, tambm, do tipo de modelo social que tenho em mente. Mas nao ser, como agora, composto de pseudo-rpresentantes de massas amorfas de eleitores, mas de representantes bem experimentados na vida e no trabalho das comunas. Os representados nao estaro, como hoje, ligados a seus representantes por urna vazia abstraco, pela mera fraseologa de um programa de partido, mas concretamente, por meio da acao e da experiencia comuns (p. 137).

O vocabulario de Buber, qu siirpreendentemente relembra o de muitos lderes africanos de Estados de urn so partido, pertence ao discurso perene da "communitas", nao rejeitando a possibilidde da estrutura, mas concbendo-a apenas como urna conseqncia de rela56es diretas e imediatas entre individuos integris.
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Diferentemente de Buber, S. Francisco, como membr da Igreja Catlica, tinha a obrigaco de fazer urna Regra para sua nova fraternidade. E, como disse Sabatier (1905): "Nunca houve um homem menos capaz de fazer urna Regra do que S. Francisco'' (p. 253). Sua Regra nao era, em nenhum sentido, um conjunto de prescrices e prob5es ticas e legis; era, ao contrario, um modelo concreto daquilo que achava deveria ser a total "vita frafrum minorum". Em outra parte (veja-se Turner, 1967, p. 98-99), acentuei a importancia para os liminares palavra com que se pod denominar as pessoas que se submetem a transieses ritualizadas de abrir mo das propriedades, da situaco estrutural, dos privilegios, dos prazeres materiais de varias especies, e at mesmo, freqentemente, do vestuario. S. Francisco, que imaginava seus frades como liminares em urna vida que era meramente a passagem para o imutvel estado do cu, deu grande destaque as implicaces do estar "sem" ou do "nao ter". Isto foi expresso da melhor maneira na sucinta formulac/So de Lambert sobre a posifo de S. Francisco . "desnudamente espiritual". O prprio S. Francisco pensava em termos de pobreza, celebrada por ele, moda dos trovadores, como "Minh Senhora Pobreza". Conforme escreve Lambert: "Podemos aceitar como m axioma que quanto mais radical for a verso de pobreza a nos presentada, mais provavelmente refletir os verdadiros desejos de S. Francisco". Continua dizendo "que a Regra de 1221, tomada em totalidade, da a impressao de que S. Francisco desejava que seus frades cortassem inteiramente as amarras com o sistema comercial do mundo. Insiste, por exemplo, em que a necessidade de aconselhar os postulantes sobre o destino a dar aos seus bens nao deve .envolver os irmos em negocios seculares" (p. 38). No captulo 9 da Regra diz aos irmos que deveriam regozijar-se "quando se encontrassem entre pessoas humildes e desprezadas, entre os pobres, os fracos, os doentes, os leprosos e aqueles que esmolam as ras"
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(Boehmer, 1904, p. .10). S. Francisco, de fat, afirma sistemticamente que a pobreza dos franciscanos deveria ser levada at os limites da necessidade, Um exemplo detalhado deste principio pode ser encontrado na proibiclo do dinheiro aos frades. "E se encontrarmos moedas em qualquer lugar, nao Ibes demos maior atengo do que poeira que pisamos sob nossos ps" (Boehmer, 1904, p. 9). Embora S, Francisco use aqui o termo donaras, urna moeda entao existente para designar "dinheiro", em outra ocasio equipara denarius pecunia, "rudo aquilo que faz o papel de dinheiro". Esta equivalencia implica a radical retirada do mundo, da compra e da venda. Foi mais longe do que "pobreza" recomendada pelas ordens religiosas mais antigs, pois estas anda man.tinh.am suas comunidades,, sob certo aspecto, dentro dos limites do s i s t e m a econmico secular. S. Francisco, pela sua Regra, assegurava que, .corno disse Lambert, "as fontes normis para a manutenfo da vida eram de natureza deliberadamente transitoria e incerta: consistiam em recompensas em especie por trabalho servil fora dos estabelecimentos, supridos com os produtos das expedices de mendicncia". [Surgiro sem dvida no espirito dos modernos leitores americanos paralelos com o comportamento dos "hippies" da comunidade de Haight-Ashbury, em S. Francisco!] "A Regra de 1221 probe aos frades ocuparen! postos de autoridade... Os primeiros discpulos, como o irmo Gil, sempre desempenharam tarefas irregulares, como a de cavar sepulturas, tecer cestos, carregar agua, nenhuma dlas oferecendo seguranca em tempos de escassez. O mtodo prescrito de esmolar, passando de porta ern porta, indiscriminadamente... impossibilitava o abrandamento da instabilidade mediante o recurso a ricos protetores regulares" (p. 41-42).
S. FRANCISCO E A LIMINARIDADE PERMANENTE

margens e nos intersticios da estrutura social de seu tempo, conservando-os permanentemente em um estado liminar, onde, conforme indicada a tese deste livro, existiriam as condi?5es timas para a realizado da "communitas". Mas, de acord com seu hbito de pensar por "imagens primarias- visuais", S. Francisco em nenhuma parte definiu em termos jurdicos destituidos de ambigidade o que entenda por pobreza e o que esta acarretava com relaco propriedade. Para ele, o modelo ideal da pobreza era Cristo. Por exemplo, na Regra de 1221 disse referindo-se aos frades:
"E que eles nao se envergonhem, mas se lembrem de que Ncsso Senhor Jess Cristo, o Filho de Deus vivo onipotente, enrijeceu o rosto como a mais dura pedra, e nao ficou envergonhado de tornar-se um homem pobre e um estranho para nos, vivendo de esmolas, ele prprio e a Santfssima Virgem e seus discpulos" (Boehmer, p. 10-11, linhas 6-10).

Segundo Lambert:
A figura principal no espirito'de S. Francisco... a imagem do Cristo n . . . A nudez era um smbolo de grande importancia para S. Francisco. Usava-o para marcar o comec,o e o fim de sua vida convertida. Quando quis repudiar os bens de seu pai entrar para a religio, ele o fez despindo-se e cando n no palacio do bispo, em Assis. No fim da vida, quando morria em Porcincula, obrigou seus companheiros a despi-lo, a fim de que pudesse enfrentar a morte sem roupas, no chao da cabana .. Quando dorma, era sobre a trra n u a . . . Por duas vezes, preferiu abandonar a mesa dos frades e sentar-se na trra nua para comer sua refeigo, impelido, em cada urna dessas ocasies, pelo pensamento da pobreza de Cristo (p. 61).

Em tudo quanto dissemos, S. Francisco parece deliberadamente ter compelido os frades a habitarem as
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A nudez representava a pobreza, e a pobreza, a ausencia literal da propriedade. S. Francisco declarou que assim como Cristo e os Apostlos tinham renunciado aos bens materiais, com o fim de se entregarem as mos da Providencia e viverem de donativos, o mesmo deveriam fazer os frades. Conforme Lambert indica, "o nico apostlo que nao fez isto, e guardou urna reserva na bolsa, foi o traidor, Judas" (p. 66).
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A pobreza de Cristo, claramente, tinha "imensa significago emocional" para S. Francisco, que considerava a nudez como o principal smbolo da emancipado da sujeigo econmica e estrutural, assim como das coac.es exercidas sobre ele por seu pai terreno, o rico negociante de Assis. Para ele a religiao era a "communitas", entre o homem e Deus e entre os homens uns com os outros, vertical e horizontalmente por assim dizer, e a pobreza e a nudez constituan! ambas smbolos exprssivos da "communitas" e instrumentos para alcanc.-la. Mas sua noc.5o imaginativa da pobreza, como sendo a absoluta pobreza de Cristo, era difcil de ser posta eni prtica por um grupo social forjado pela Igreja a institucionalizar sua organizado, a rotinizar nao apenas o carisma do fundador mas tambm a "communitas" de seu comego espontneo, e a formular em termos legis precisos sua relago coletiva com a pobreza. A propriedade e a estrutura esto indissoluvelmente entrelazadas, e a constitui?o de unidades sociais duradouras incorpora ambas as dimensoes, bem como os valores centris que legitimizam e a forma de ambas. A medida que a Ordem Franciscana perdurava no tempo, desenvolveu-se no sentido de tornar-se um sistema estrutural, e quando isto aconteceu a sincera simplicidade das f o r m u l a c . 5 e s de S. Francisco sobre a propriedade, na Regra original, deram lugar a defini?5es mais legalistas. De fato ele dera apenas duas lacnicas instruyes, na primeira Regra de 1221 e na Regra revista, de 1223. Na primeira, diz indiretamente, em um captulo referente primordialmente ao trabalho manual dos frades e posse de seus estabelecimentos: "Que os irmos sejam cuidadosos, onde quer que estejam, nos eremitrios ou em outras residencias, a fim de que nao se apropriem de um estabelecimento para si mesmos ou o mantenham contra algum" (Boehnier, p. 8-11, linhas 5-7). Em 1223, houve urna ampliafo deste preceito: "Que os irmos nao se apropriem de nada para si mesmos, nem de urna casa, nem de um estabelecimento, nem de qualquer coisa". Poder-se-ia
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pensar que estas expressoes sao absolutamente inequvocas, porm toda estrutura em desenvolvimento gera problemas de organiza?o e valores que provocam a redefinico dos conceitos centris. Freqentemente isto interpretado como contemporiza?o e hipocrisia, ou perda de fe, mas na realidade nada seno a resposta racional a urna alterac.o na escala e na complexidade das relac.oes sociais e, juntamente com aquelas, a urna mudanza na localizafo do grupo no campo social que ocupa, com as concomitantes transformares de suas principis finalidades e dos meios para atingi-las.
OS ESPIRITUAIS CONTRA OS CONVENTUAIS. CONCEITUALIZACAO E ESTRUTURA

Desde o inicio a Ordem dos Franciscanos lanc.ou rebentos, e dentro de algumas dcadas aps a morte do fundador encontramos os irmos em militas partes da Italia, Sicilia, Franga, Espanha e at mesmo empreendendo viagens missionrias Armenia e Palestina. Desde o principio, tambm, a pobreza e a vida errante na realidade, o entusiasmo dos frades levou-os a serem olhados com suspeita pelo clero secular, organizado em divisSes locis, as ss e as parquias. Nestas circunstancias, segundo ressalta Lambert, a idia de S. Francisco sobre a pobreza que, como vimos, associase "communitas" existencia! "to extremada que tena de causar imensas dificuldades logo que devesse ser aplicada nao a um bando de frades errantes, mas a urna ordem em desenvolvimento, com problemas de local para morar, aprendizagem, irmos doentes e outros semelhantes" (p. 68). Mais dificis ainda eram os problemas de continuidade estrutural, concernentes manipula?o de recursos, que punham em agudo relevo a questo da natureza da propriedade. Esta ltima questo tornou-se quase urna obsesso na Ordem, durante o sculo que se seguiu morte de S. Francisco, e teve cmo conseqncia a divisao dlas em dois ramos prin179

"A influncia de sucessivos papas era muito naturalmente dirigida no Sentido de fazer dos franciscanos, tal como da Ordem rival dos dominicanos, um instrumento adequado de seus planos de ao, tanto espiritual quanto poltica. Para esta finalidade, a pobreza extrema tendia a ser, geralmente, um estorvo. Os benfeitores pertencentes ao mundo exterior, que se sentiam atrados pela austeridade da pobreza francisana, tiveram um papel no enfraquecimento desta, ao fazerem donativos difceis de serem recusados. Os prprios frades, os nicos verdadeiros guardies de sua observncia, demasiadas vezes no se interessavam suficientemente por proteger sua pobreza contra 'pessoas do mundo exterior que, movidas por altos propsitos, desejavam aliviar-lhes a carga. De fato, foram sobretudo os membros da ordem, e no quaisquer personagens do mundo exterior por exaltadas que fossem, cs responsveis pela evoluo do idea' franciscano que, nos primeiros vinte anos, levou os irmos com tanta rapidez a um ponto to distante da vida primitiva de S. Francisco e de seus companheiros" (p. 70).

cipais, que se poderia chamar de campos ou faces: os conventuais, que na prtica relaxavam o rigor do ideal de S. Francisco, e os espirituais que, com a doutrina do usus pauper, praticavam a bem dizer uma observncia mais severa do que a do fundador. Antecipando um pouco, significativo que muitos dirigentes dos espirituais tiveram ntimos contatos com o joaquinismo, um movimento milenrista baseado nas obras genunas e esprias de um abade cisterciense do sculo XII, Joaquim de Flora. E' curioso notar-se quo freqentemente na histria as noes de catstrofe e de crise se r e l a c i o n a m com o que poderamos chamar "communitas imediata". Talvez no seja realmente to curioso, pois evidentemente se algum espera o breve advento do fim do mundo, no h razo para estabelecer uma legislao que cria um detalhado sistema de instituies sociais, destinadas a resistir aos embates do tempo. Chega-se a ter a tentao de especular sobre a relao entre os "hippies" e a bomba de hidrognio. Mas a princpio essa diviso na Ordem no se tinha tornado visvel, embora tudo favorecesse um desenvolvimento que se afastava da pobreza original de S. Francisco, conforme escreve Lambert: _j

E' interessante observar que, vrios anos antes de sua morte, S. Francisco tinha abandonado o governo da Ordem e passava grande parte do tempo em companhia de um pequeno grupo de companheiros em eremitrios na mbria e na Toscana. Sendo um homem de relaes diretas e imediatas, a "communitas" para ele deveria ser sempre concreta e espontnea. E' possvel que tenha fiicado desalentado com o sucesso do seu prprio movi>mento, que comeara, j durante a sua vida, a dar sinais jda estruturao e rotinizao que iria sofrer sob a in[fluncia de sucessivos "gerais" e sob a fora configural;dora externa de uma srie de bulas papais. O prprio [primeiro s u c e s s o r de S. Francisco, Elias, foi o que f Lambert chama "figura essencialmente organizadora que, iem tantas sociedades religiosas, traduziu os sublimes [ideais de seus fundadores em termos aceitveis para os {discpulos que vieram depois" (p. 74). E' significativo J dizer que foi Elias a fora propulsora oculta atrs da J construo da grande baslica de Assis, para abrigar o [corpo de S. Francisco, e cujos bons ofcios levaram a [municipalidade de Assis em 1937 a erigir-lhe um moInumento. Segundo Lambert, "ele deu uma contribuio mais duradoura ao desenvolvimento da cidade do que l evoluo do ideal franciscano" (p. 74). Com Elias, a lestrutura, tanto material quanto abstrata, comeou a fsubstituir a "communitas". medida que a nova Ordem crescia em nmero e Ise espalhava pela Europa desenvolveu todo o aparelho [tcnico de votos e de superiores, juntamente com a estrutura semipoltica, caracterstica das ordens religiosas Ida poca, e, na verdade, de tempos posteriores. Assim, fno governo centralizado, os frades tinham um ministro igeral no posto mais alto e abaixo dele um certo nmero Ide provinciais, cada um dos quais era o superior de |uma provncia, isto , a diviso de uma ordem religiosa compreende todas as. casas e os membros num defterminado distrito. Suas fronteiras territoriais coincidiam com freqncia, mas no necessariamente, com as de Estado civil. O provincial era responsvel perante o
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superior geral pela administrao da sua provncia e pela manuteno da religio nela, principalmente p0r meio de visitaes. Ele convocava o captulo provincial e era membro do captulo geral da ordem. Os dois tip0s de captulo tinham funes legislativas, disciplinares e eletivas. Entre os franciscanos, algumas das provncias eram, por exemplo, a Provena, a marca de Ancona, Gnova, Arago, Toscana e Inglaterra. Os antroplogos que estudaram os sistemas polticos centralizados, tanto em sociedade pr-letradas quanto nas feudais, tero pouca dificuldade em compreender as possibilidades de oposio estrutural, inerentes a tal hierarquia. Alm disso os franciscanos eram religiosos isentos, sujeitos apenas a seus superiores, e no aos bispos locais (isto , aos eclesisticos com jurisdio ordinria no foro externo sobre determinado territrio, como os bispos em suas dioceses). Na realidade eram responsveis diretamente, e no indiretamente, ao papado. Tornou-se ento possvel o conflito estrutural entre a Ordem e o clero secular. Existiam tambm rivalidades com outras ordens, e as controvrsias entre franciscanos e dominicanos sobre pontos de teologia e de organizao, assim como a luta pela influncia sobre o papado, foram aspectos proeminentes da histria da Igreja medieval. E, naturalmente, o campo social efetivo da Ordem Franciscana.no estava limitado Igreja, mas continha muitas influncias polticas e profanas. Por exemplo, ao ler-se a narrativa de Lambert, fica-se chocado com a importncia do apoio recebido pela faco espiritual, entre os franciscanos, oriundo de monarcas como Jaime II de Arago e Frederico II da SicHa, bem como da parte de rainhas corno Esclarmunda de Foix e de Sancha, sua filha, que se tornou esposa de Roberto, o Sbio, de Npoles. Em certa poca, quando a faco conventual da ordem teve maior influncia junto do papado e foi encorajada, Pr isto, a perseguir e a aprisionar muitos dos espiritual5' aqueles monarcas deram refgio e proteo aos lidere5 do grupo espiritual.
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"DOMINIUM" E "USUS"
Algum dia os antroplogos daro plena ateno ao domnio, com freqncia esplendidamente documentado, da poltica religiosa medieval, onde podero acompanhar os processos polticos atravs dos tempos com alguns de^ talhes durante sculos. Neste ponto desejaria apenas acentuar que o primitivo grupo de livres companheiros de S. Francisco grupo no qual a "communitas" normativa mal se desvencilhara da "communitas" existencial no poderia ter perdurado se no se organizasse para se manter em um campo poltico complexo. Contudo, a memria da "communitas" original, exemplificada pela vida, vises e palavras de S. Francisco, conservou-se sempre viva na ordem, especialmente pelos espirituais, e de maneira notvel por homens como Joo de Parm, ngelo da Clareno, Olivi e Libertino. Mas, desde que pr sucessivas bulas papais e pelas obras de So Boaventura, a doutrina da pobreza absoluta foi [jurdica e teologicamente definida, os espirituais viramse forados a uma atitude "estrutural" em relao pobreza. Na definio formal, a noo de propriedade tinha t sido separada em dois aspectos: dominium (ou propriel/as) e usus. O dominium significa essencialmente os diireitos sobre a propriedade, o usus, o efetivo manuseio ;e o consumo da propriedade. Ora, o papa Gregrio IX l declarou que os franciscanos deveriam conservar o usus, [mas renunciar ao dominium, de qualquer espcie. A prin cpio os franciscanos pediram a seus benfeitores o [direito de conservar o dominium, mas logo depois com preenderam que seria mais conveniente chegar a um acordo completo, e colocar o dominium sobre todos os seus bens nas mos do papado. Foi a respeito das conseqncias prticas do usus que pela primeira vez o componente ideolgico da ruptura entre conventuais e espirituais se configurou tornando-se finalmente um smbolo diacrtico da oposio entre ambos. Pois os con[ventuais, orientados mais no sentido da estrutura, to183

maram plena conscincia das necessidades da ordem em um ambiente poltico complexo. Assim, para realizar eficientemente o trabalho evanglico e caritativo, sentiram que precisavam construir slidos edifcios, igrejas e habitaes. Para defender a posio religiosa peculiar de S. Francisco, deveriam exercitar os irmos mais intelectuais na filosofia e na teologia, porque tinham de sustentar suas prprias idias nas requintadas arenas de Paris e Florena contra os sutis dominicanos e em face da crescente ameaa da Inquisio. Precisavam portanto de recursos, inclusive de recursos pecunirios, at mesmo moedas, a serem gastos em tijolos e em livros. Entre os conventuais, ficou cada vez mais ao arbtrio do superior local decidir at que ponto os frades poderiam ir no exerccio do usus. Segundo os espirituais e tudo isto veio luz durante a famosa investigao papal sobre os negcios da ordem em 1309, oitenta e trs anos depois da morte do fundador o "uso" dos conventuais tornara-se "abuso". Ubertino, intrprete deles, apresentou muitas provas documentais concernentes prtica do cultivo para lucro, ao uso de adegas e de celeiros para o vinho, o recebimento de legados constitudos por cavalos e armas. Acusa-os mesmo de exercerem dominium:
"Ainda, da mesma maneira, aqueles que podem levam consigo bursar, que so seus servos, e de tal modo gastam por ordem dos irmos, que sob todos os aspectos os irmos parecem ter domnio no s sobre o dinheiro mas tambm sobre os servos que o gastam. E algumas vezes os irmos carregam uma caixa com o dinheiro dentro; e nas ocasies em que esta e carregada pelos meninos, freqentemente eles nada sabem do contedo, sendo irmos que levam as chaves. E contudo s servos podem algumas vezes ser chamados nunt (um nuntiu5 era um oficial, agente dos doadores de esmolas, na primitiva definio papal) daquelas pessoas que deram o dinheiro pa ra os irmos; no entanto, nem os servos nem aqueles que o &' positam sabem que o dinheiro no est sob o domnio Jr ningum, a no ser os irmos..." (Citado por Lambe1" 1961, p. 190).

Mas a atitude dos espirituais com relao ao usus foi melhor expressa na doutrina do usus pauper, que sustentava com efeito que a utilizao dos bens pelos frades deveria de fato restringir-se ao puro mnimo suficiente para o sustento da vida. Na verdade, alguns espirituais morreram por motivo da sua austeridade. Diziam eles que estavam deste modo mantendo-se fiis ao esprito da concepo da pobreza de seu grande fundador. Um aspecto dessa atitude aparentemente admirvel tornou-a, enfim, intolervel para a Igreja estruturada. Foi o relevo, dado pelos espirituais, conscincia do indivduo, como rbitro supremo a respeito do que constitua a pobreza, embora esta conscincia agisse com referncia aos religiosos padres do usus pauper. Alguns espirituais foram ao ponto de admitir que qualquer abrandamento deste rigor opunha-se ao voto professo de pobreza, e sendo portanto um pecado mortal. Se esta posio fosse vlida, poder-se-ia considerar que muitos conventuais vivem em permanente estado de pecado mortal. Eis a as armadilhas do legalismo excessivo! Por outro lado, a doutrina do usus pauper impugnava claramente a concepo da Igreja sobre a autoridade legtima possuda por um superior religioso. Se o chefe de uma casa franciscana, ou mesmo de uma provncia, aplicasse seu critrio individual e permitisse, por motivos estruturais e pragmticos, o uso de quantidades considerveis de bens, os frades espirituais, nos termos de sua i prpria doutrina do usus pauper, poderiam sentir-se desobrigados de obedecer ao superior, colocando assim o voto de pobreza em conflito com o voto de obedincia. De fato, este tcito desafio estrutura hierrquica da Igreja constituiu em um dos principais fatores da extirpao final dos espirituais da Ordem, em virtude das medidas severas do Papa Joo XXII, numa srie de bulas ; apoiadas pelo poder sancionador da Inquisio. Todavia, | seu zelo no foi inteiramente vo, p o r q u e reformas ^posteriores da Ordem Franciscana foram inspiradas pelo esprito de p o b r e z a que eles to obstinadamente defenderam.

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A "COMMUNITAS" APOCALPTICA

Ao considerarmos a histria dos primrdios da Ordem Franciscana, torna-se claro que a estrutura social est intimamente relacionada com a histria, porque este o modo pelo qual um grupo mantm sua forma atravs dos tempos. A "communitas" sem estrutura pode unir e manter as pessoas juntas apenas momentaneamente. Na histria das religies interessante observar quo freqentemente os movimentos do tipo "communitas" do origem a uma mitologia apocalptica, uma teologia ou uma ideologia. Entre os franciscanos espirituais, por exemplo, at mesmo o rido telogo Olivi, designado leitor, em Santa Croce, em Florena, era ferrenho adepto do milenarismo dos joaquimistas. Realmente, Olivi comparou a Babilnia, a grande prostituta, com o papado, que deveria ser destrudo na sexta idade do mundo, enquanto os franciscanos espirituais, em sua absoluta pobreza, constituam a verdadeira igreja fundada por S. Francisco e seus doze companheiros. Se procurarmos a estrutura na "communitas" de crise ou de catstrofe, cremos encontr-la no no nvel de interao social, mas, no sentido de Lvi-Strauss, subjacentes aos sinistros e coloridos produtos da imaginao dos mitos apocalpticos, gerados no ambiente da "communitas" existencial. Encontra-se, tambm, uma polarizao caracterstica em movimentos desse tipo, por um lado, a rigorosa simplicidade e a pobreza do comportamento eleito "o homem nu e privado de tudo" e, por outro lado, uma poesia quase febril, visionria e proftica, que o seu principal gnero de expresso culturalO tempo e a histria introduzem porm a estrutura na vida social daqueles movimentos e o legalismo em sua produo cultural. Com freqncia, aquilo que foi outrora considerado literal e universalmente como eminente catstrofe passa a ser interpretado alegrica ou misti" camente como o drama da alma individual ou corno destino espiritual da verdadeira Igreja na terra, ou e adiado para o mais remido futuro.

As noes da "communitas" no esto sempre asso[ ciadas a vises ou teorias de uma catstrofe universal. [Nas iniciaes tribais, por exemplo, encontramos, pelo [menos implicitamente, a noo da absoluta pobreza colmo sinal de comportamento liminar. Mas no encontrarmos as idias escatolgicas dos movimentos quilisticos. l Todavia, muito freqentemente descobrimos que o conJceito de ameaa ou de perigo para o .grupo e de fato [existe habitualmente um real perigo na faca do circunfcisor ou do cicatrizador, nos muitos ordlios e na disJciplina severa est presente de modo muito relevante. |E este perigo um dos principais ingredientes na profduo da "communitas" existencial, como a possibiliIdade de .uma "viagem m", para a "communitas" das idrogas de determinados habitantes de uma moderna ciidade que tem o nome de S. Francisco. Nas iniciaes jtribais, t a m b m, encontramos mitos e suas sanes Irituais na liminardade, que se relacionam com catstrofes e crises divinas, como a matana ou auto-imolao Ide importantes divindades para o bem da comunidade ihumana, e que localizam a crise no passado vivo ou no jfuturo iminente. Mas, quando a crise tende a ser coloJcada preferentemente antes, e no depois ou dentro da experincia social contempornea, j comeamos a entrar |na ordem da estrutura e a considerar a "communitas" como um momento de transio e no como um modo stabelecido de ser ou um ideal que ser em breve perImanentemente atingido.
O MOVIMENTO SAHAJIYA DE BENGALA

em toda "communitas", porm, uma "communitas" crise. Existe tambm a "communitas" do afastamen[to e do retiro. Algumas vezes esses gneros convergem Jns para os outros e se sobrepem, mas em geral malifestam estilos distintos. A "communitas" do afastaIniento no est to estreitamente ligada crena em irn fim iminente do m u n d o , ao contrrio, implica a
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renncia, total ou parcial, participao nas relaes estruturais do mundo, que , neste caso, concebido como uma espcie de permanente "rea de desgraa". Este tipo de "communitas" tem a tendncia a ser mais exclusivista na constituio de seus membros, mais disciplinado nos hbitos discreto nas prticas do que o gnero apocalptico que acabamos de examinar. Embora possam ser encontrados exemplos na religio crist e em movimentos utpicos seculares que de muitos modos derivam da tradio cultural judaico-crist, talvez seja no hindusmo que se verifiquem os mais claros exemplos de "communitas" de retiro. Limitar-me-ei, uma vez mais, ao estudo de um nico movimento, o dos vaisnavas de Bengala, descrito por Edward C. Dimock, Jr. (1966a, 1966b). Dimock um estudioso bengali, muito competente e de grande acuidade, que publicou elegantes tradues de "contos bengalis" da corte e da aldeia, e seus dados e concluses devem ser olhados com respeito. OS POETAS DA RELIGIO. CAITANYA E S. FRANCISCO O trabalho de Dimock trata de um movimento que foi em certos aspectos complementar, e em outros divergente, do grande movimento religioso bhakti (devocional) que "se estendeu pelo Norte da ndia, dos sculos XIV ao XVII, e dos movimentos bhakti mais antigos do sul" (1966b, p. 41). Como j consideramos um movimento cristo do tipo "communitas" relacionando-o com um notvel fundador, valeria a pena repetir o mesmo mtodo de exame no caso dos vaisnavas de Bengala e comear nossa histria pela p e s s o a de Caitanya (1486-1533), "a mais significativa figura do movimento de Bengala". Assim como no caso anterior comparam08 a doutrina franciscana com a respectiva prtica, consideremos em primeiro lugar os ensinamentos de Caitany2 e em seguida a histria do movimento que ele inspir011' Dimock conta-nos que Caitanya foi quem "reavivou" e.
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no quem criou o Krishna-bhakti (devoo intensa) na ndia Oriental. Os movimentos vaisnavitas eram conhecidos em Bengala desde o sculo XI ou XII de nossa era, isto , pelo menos trs sculos antes da poca de Caitanya. Tal como S. Francisco, Caitanya no era um telogo. Deixou um total de oito versos, durante sua vida, versos de natureza devocional e no teolgica. Ainda aqui, o paralelo com o cntico de S. Francisco ao "Irmo Sol" surpreendente. A devoo de Caitanya, tambm, como a de S. Francisco, alimentava-se de imagens e identificaes; no caso, com os principais atores dos grandes textos sagrados vaisnava, especialmente o Bhgavata. O tema principal desses textos a infncia, a meninice, e a juventude de Krishna, considerado um avatra (encarnao) do deus Vishnu. Por sua vez, Caitanya era julgado por muitos um avatra de Krishna, ou antes, uma encarnao conjunta de Krishna e de sua bem-amada ordenhadora Rdh, sendo a totalidade humana representada em forma bissexual, transcendendo todas as distines culturais e sociais de sexo. O episdio central do incio da carreira de Krishna foi seu amor por um grupo de gopls, as vaqueiras de Vrndvana. Ele prprio foi criado como vaqueiro neste lugar sagrado, e depois de realizar todas as espcies i de travessuras ternas e erticas com as gopls, quando | atingiu a idade adulta, encantou-as com o som de sua flauta na floresta, de tal modo que elas deixavam os lares, os maridos, as famlias e corriam para ele, durante a noite. Em clebre incidente, Krishna dana com todas as gopls de maneira tal que cada uma considera-o como ; seu amante particular. Algumas vezes este fato representado na arte indiana por um anel formado por moas, aparecendo entre cada par delas a forma azul e bela do divino amante. Numa elaborao bengali posterior, Rdh torna-se o objeto particular do amor de Krishna, e em certo sentido ela condensa todo o resto. Caitanya ficou extasiado com a dana de Krishna e com a corte subseqente s gopls. Em suas prdicas ele inspirou um to poderoso renascimento da religio de-

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vocional que "durante sua vida e pouco depois da morte abrangeu a maior parte da ndia Oriental" (Dimock, 1966b, p. 43). Uma das principais prticas entusisticas que acentuou foi uma meditao ardente na qual o adorador se identificava sucessivamente com os vrios parentes, amigos e amantes de Krishna. Por exemplo, seus pais adotivos, que lhe tinham afeio paterna; seu irmo, que o considerava com amor fraterno e lealdade de camarada; e, principalmente, as gopls, das quais Krishna foi amante e amado. Neste caso as relaes sociais eram julgadas naturais pontos de partida para uma devoo considerada de carter sobrenatural. O teor altamente ertico dos textos e das devoes, ao que parece, apresenta aos telogos vaisnavitas posteriores problemas semelhantes aos que os exegetas judeus e cristos do Cntico dos Cnticos de Salomo tiveram de enfrentar. Mas a soluo ritual do Sahajlys, como era chamado o movimento da Caitanya, era bem diferente da adotada pelos msticos cristos, como S. Joo da Cruz e S. Teresa de vila, que julgavam a linguagem ertica dos Cnticos de Salomo puramente metafrica. O rito central do Sahajlys era uma srie complicada e prolongada de aes litrgicas, entremeada com a recitao repetida de mantras, que culminavam no ato de relao sexual entre os devotos plenamente iniciados do culto, um homem e uma mulher, os quais simulavam em seu comportamento a corte amorosa de Krishna e Rdh. No era um ato meramente de prazer sensual, porque tinha de ser precedido por toda espcie de prticas ascticas, meditaes e por ensinamentos feitos por gurus autorizados. Era um ato essencialmente religioso quanto natureza, que tratava a prtica da relao sexual como um tipo de sacramento, "sinal visvel e exterior de uma graa espiritual e interior". O que sociologicamente interessante a respeito deste ritual que, exatamente como as gops, as companheiras dos iniciados do Sahajlys deviam ser casadas com outros homens (veja-se tambm De, 1961, p. 204-205)Este fato no era julgado adultrio mas, conforme de190

monstra D . m o c k, assemelhava-se mais s Cortes de Amor na Europa medieval, nas quais o verdadeiro amor era considerado como "amor separado, (do qual) a extenso loglca o amor parte do casamento, (porque) no casamento h sempre um trao de sensualidade. O descendente do trovador, diz De Rougement, estimula com nobres emoes o amor fora do casamento- pois o casamento implica apenas unio fsica, mas o '(Amor) - o supremo_Eros - o transporte da alma para o alto, ate a unio final com a luz" (1966 p 8) S Francisco cantou a Senhora Pobreza mais ou menos da mesma maneira, diga-se de passagem, como um trovador cantava a sua senhora distante, casada com outro cnjuge mundano. Segundo meu ponto de vista, aquilo que estamos agora tratando, no sculo XVI, em Bengala, e no sculo XII, na Europa, como um amor ao mesmo tempo divino e timidamente ilcito - por oposi o ao amor mantal, licito - um smbolo da "communitas". A commumtas" e o elo entre as gopSr 0 deus azul e ntre cada par de ordenhadoras. A "communitas" tambm a relao do frade com a Minha Senhora Pobreza Em termos da oposio simblica entre amor romntico e casamento, o casamento homlogo propriedade, assim como o amor em separao homlogo pobreza. O casamento, portanto, representa a estrutura nessa linguagem ertico-teolgica. A noo de posse ou de propriedade pessoal tambm antittica espcie de "comj mumtas", o amor resumido na relao entre Krishna e ' as gops. Dimock, por exemplo, cita um texto bengali ulterior que "embeleza uma histria do Bhgavata". Parece que as gopls contaram a Krishna que estavam cheias de amor por ele, e ento comearam a danar. 'Mas, durante a dana, Krishna desapareceu para elas, ! porque no esprito de todas as gopls tinha surgido o pensamento 'ele meu', e no pensamento 'ele meu', o parakly (isto , o verdadeiro amor em separao), l no pode permanecer. Porm, quando o desejo outra vez surgiu no esprito das gopls, Krishna apareceu-lhes [novamente" (1966a, p. 12).

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A doutrina do Sahajly difere da ortodoxia do Vaisnava pelo fato de que esta ltima prescrevia a unio sacramentai entre cnjuges, enquanto que os discpulos de Caitanya, conforme vimos, preceituavam as relaes sexuais rituais entre um devoto e a mulher de outro. O prprio Caitanya tinha uma companheira ritual deste tipo, "a filha de Sathi, cujo pensamento e corpo eram devotados a Caitanya"! Convm observar que os parceiros rituais dos Gosvmins, os primitivos companheiros de Caitanya e os expositores da teologia Sahajy, eram "mulheres de ... grupos sem castas, lavadeiras ou mulheres de outras castas baixas" (1966a, p. 127). De fato, as prprias gopls eram vaqueiras e, por conseguinte, no pertenciam casta mais alta. Esta qualidade da "communitas" de no reconhecer as distines hierrquicas estruturais efetivamente de todo tpica do Sahajly e do Vaisnavismo, como uma totalidade.
A DIVISO ENTRE DEVOCIONAIS E CONSERVADORES

mento devocional estava predestinado a soobrar nos escolhos da formulao doutrinai. Aps a morte de Caitanya, seus adeptos em Bengala dividiram-se em dois ramos. Um ramo seguiu o exemplo do amigo e companheiro ntimo de Caitanya, Nitynanda, conhecido como o "Avadhta sem casta" (os Avadhtas eram ascetas) ; o outro ramo seguiu advaita-crya um dos primeiros e principais devotos de Caitanya, brmane de Santapur. Existem certas afinidades entre Nitynanda e os franciscanos espirituais. No s ele no possua casta, embora "permanecesse entre os sdras" (I966b p. 53), e fosse "apstolo dos bnyas" (ambos, sdras e bnyas! eram hindus de baixa casta), mas permitia tambm a milhares de monges e de freiras budistas entrarem para o redil vaisnava. Um dos bigrafos de Caitanya conta que ele dissera a Nitynanda: "Esta minha promessa, feita com a minha prpria boca, que as pessoas humildes, ignorantes e de baixa casta flutuaro sobre o mar do prema (amor)... podeis libert-los pelo bhakti" (1966, p. 54). Bhakti ou a salvao mediante a devoo pessoal a uma divindade, no se recomendava a Advaitacrya, que voltou ao "caminho do conhecimento" dos monistas ortodoxos, que na ndia sempre tinham aceito mukti, a libertao do ciclo de renascimentos, como sua preocupao fundamental. Advaita, sendo brmane, no esclareceu este fato. Era um fato .coerente com esta filiao de casta que ele devesse voltar doutrina do mukti, porque a libertao do renascimento, no hindusmo ortodoxo, depende muito do cumprimento regular, por parte de uma pessoa, dos deveres de sua casta. Se cumpre esses deveres, poder ter a esperana de renascer numa casta mais elevada; se alm disso vive uma vida santa e de auto-sacrifcio, pode finalmente escapar do sofrimento e do poder da my, ou mundo ilusrio dos fenmenos. Os monistas, como Advaita, acreditavam que a melhor maneira de assegurar a libertao final seria dissipar a iluso, mediante o conhecimento da realidade nica, co0 Processo... Ec) 2877 7

Caitanya, pois, como S. Francisco, era um poeta da religio devocional, humilde e simples, vivendo sua f mais do que pensando a respeito dela. No entanto, seus seis Gosvmins eram telogos e filsofos, que estabeleceram uma rama (escola de instruo religiosa) para vaisnavas, onde a doutrina formal de sua seita poderia ser elegantemente forjada. Trs desses Gosvmins eram membros de uma nica famlia. Esta famlia, embora tivesse a reputao de ser de origem brmane, tinha perdido a casta em virtude das altas posies ocupadas na corte do monarca muulmano de Bengala, na poca. Continuaram, de fato, a manter dilogo com alguns Sfs> grupo de msticos e de poetas muulmanos, que tinham profundas afinidades com os prprios Sahajys. Esse5 seis eruditos escreveram em snscrito e "desempenhava^ o principal papel na codificao da doutrina e do ritu^' da seita" (1966, p. 45). Mas, uma vez mais, um rnv''
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nhecida como "tman-brahman". Em outras palavras, para eles a salvao operava-se pela gnose, no pela devoo, e implicava a aceitao da estrutura social na forma presente, pois todas as formas externas eram igualmente ilusrias e destitudas da realidade ltima. No entanto, Nitynanda no compartilhava desse conservadorismo social passivo. Acreditando que todo homem, independentemente de casta e de crena, poderia obter a salvao pela devoo pessoal a Krishna e a Rdh, acentuava o aspecto missionrio do vaisnavismo. Caitanya e Nitynanda converteram muitos muulmanos e assim hostilizaram o poder muulmano dominante e deliberadamente quebraram um certo nmero de leis religiosas e ortodoxas dos hindus. Por exemplo, "Caitanya regozijou-se quando conseguiu persuadir Vsudeva a comer prosada restos de alimentos ofertados divindade sem ter antes lavado as mos. 'Agora', disse Caitanya, partistes realmente os vnculos1 com vosso corpo" (1966, p. 55). Esta frase lembra-nos muitas das de Jesus, por exemplo, que o sbado foi feito pra o homem e no o homem para o sbado, e que a verdade libertar homem. Para Caitanya e para o ramo Nitynanda de seus discpulos, bhakti emancipava-os das leis e das convenes: "eles danavam em xtase, e cantavam; pareciam loucos" (1966b, p. 65). E' difcil pensar que no h nada em comum entre a "communitas" exttica de Dionsio e a de Krishna. Com efeito, o puer aeternus de Ovidio veio da adusque decolor extremo qua cingitur ndia Oange ("escura fndia cingida pelo longnquo Ganges", Metamorfose, IV, linha 21).
AS HOMOLOGIAS ENTRE SAHAJIYA E O FRANCISCANISMO

Nitynanda e seu rival Advaita representaram, respectivamente, os princpios da "communitas" normativa e da estrutura ao nvel da organizao de grupo; seus -ramos, eram homlogos dos franisanos espirituais e

dos conventuais. Em ambas as circunstncias, tanto na Europa como na ndia, os sucessores do fundador tiveram de enfrentar problemas de continuidade do grupo e de definio teolgica. Os fundadores, S. Francisco e Caitanya, eram poetas da religio, viviam das coloridas fantasias religiosas que povoavam suas meditaes. No caso dos Vaisnava-Sahajys, foi o grupo dos Gosvmiris que tomou a si a tarefa de definir os conceitos centrais da seita. Enquanto os franisanos tinham localizado seu ponto de rquimedes na noo de pobreza, e da partido para a discriminao entre dominium e usas com relao propriedade, sendo finalmente levados ao divisionismo em torno da doutrina do usus pauper, os Sahajlys centralizaram suas c o n t r o v r s i a s sobre outro aspecto da posse, no caso, posse sexual, pois, como vimos, para eles a unio sexual tinha carter sacramentai. Os livros sagrados dos Vaisnavas, o "Bhgavata" e o "Glta Govinda", esto plenos de imagens de paixo; contam o amor das gopls por Krishna. Mas, como o demonstra Dimock, "a idia de encontro amoroso com esposas de outros homens no aceitvel para a maioria da sociedade indiana" (1966b, p. 55), apesar, poder-seia acrescentar, de sua tradicional tolerncia religiosa, mesmo quando esta tolerncia no depende de uma Segunda Regenerao! Assim os exegetas vaisnavas, e especialmente os Sahajlys, tinham muitos problemas. A doutrina Vaisnava tinha sempre feito livremente emprstimos da teoria potica snscrita, e uma das principais distines desta teoria era dividir as mulheres em duas classes: sva/y ou svly, aquela que a prpria de algum, e parakly, aquela que de outro. As mulheres parakly podem ser as que no so casadas e as que so de outro, pelo casamento. No texto do Bhgavata, as vaqueiras eram claramente da segunda espcie. A primeira tentativa exegtica feita por Gosvmin, chamado Jlva, foi negar que isto poderia ter um significado literal. Em primeiro lugar, a teoria potica padro no reconhecia que as mulheres parakly pudessem ter pa195

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pis principais no drama; por conseguinte, as gps, que eram heronas, no poderiam ser realmente parakiy. Alm disso, as gopis, na realidade, nunca consumaram seu casamento. "Pelo poder da maya de Krishna [o poder de fabricar iluses], figuras semelhantes s gopis, mas no as prprias gops, tinham dormido com seus maridos. Mais ainda, as gops so realmente ktis [isto , poderes emanados de uma divindade concebida como uma deusa, por exemplo, a kti do deus Chiva a deusa Kali ou Durga] de Krishna, participam de sua essncia e, sob certo aspecto, so idnticas a ele" (1966b, p. 56). Portanto, p e r t e n c e m classe das svakly, so realmente suas mulheres e s aparentemente parakiy, mulheres de outros. O parente do Gosvmin Jva, Rpa, aceitou a interpretao parakiy, que deturpa menos o sentido original dos textos, ms argumentava que as medidas ticas humanas comuns "dificilmente poderiam ser aplicadas ao dirigente de tudo que deve ser dirigido". Tem-se recorrido a este argumento na exegese judaico-crist, a fim de explicar alguns dos mais estranhos atos e ordens de Jeov, como a ordem dada a Abrao para sacrificar Isaac. No prprio Bhgavata, algum pergunta como Krishna, declarado "sustentculo da devoo", poderia ter-se deixado levar a um jogo amoroso com as mulheres de outros homens; a resposta dada a seguinte: "Para aqueles que esto libertos do egosmo, no existe aqui vantagem pessoal no comportamento correto, nem qualquer desvantagem no oposto". Este ponto de vista est bem de acordo com as atitudes de uma seita que se sentia situada alm dos limites e padres da sociedade comum, estruturada. Uma liberdade semelhante impregna as crenas de muitos outros movimentos e seitas, que acentuam a "communitas" devociona ou entusistica como princpio bsico. Poderamos mencionar os hussitas, de Praga, ou a Comunidade de Oneida, do Estado de Nova Iorque.

RADHA, "MINHA SENHORA POBREZA" E "COMMUNITAS" Mas os exegetas posteriores chegaram a aceitar como ortodoxa a concepo literal de que o amor das gops por Krishna era compatvel com sua condio de parakiy, e que esta condio tornava-o mais puro e real. Pois, como nota Dimock, "svakiy leva a ktra, ao desejo de satisfao da personalidade; s a parakiy tem como conseqncia o prema, o desejo intenso de satisfao do amado, que a caracterstica a ser imitada pelos bhakta [os devotos], do amor das gops. Exatamente porque o amor das gops um amor parakiy revela-se to intenso. A dor da separao, somente possvel na parakiy, e a resultante permanncia constante do esprito das gops em Krishna so a salvao delas" (1966b, p. 56-57). Lembramo-nos ainda uma vez de certas passagens dos Cnticos dos Cnticos e dos versos de S. Joo da Cruz, nos quais a alma anseia pelo amado ausente, no caso, Deus. No entanto, na seita Sahajy, este desejo no eterno; depois da "disciplina dos sessenta e quatro atos devocionais", que compreendem "atividade, repetio dos mantras, disciplina fsica, conhecimento intelectual, ascetismo, meditao" (1966a, p. 195), os Sahajiys afastam-se da ortodoxia Vaisnava, entrando no estgio do rito sexual de vidhibhakti. Neste, os participantes so ambos iniciados, considerados como gurus, mestres ou guias espirituais um do outro, e sendo neste caso expresses sacramentais dos prprios Krishna e Rdh. O casal considerado "de um nico tipo" (1966a, p. 220) e, assim sendo, "pode haver unio" (p. 219); esse tipo o mais elevado de seus respectivos sexos. Evidentemente, os motivos deste ato no so predominantemente sensuais, porquanto uma rica literatura ertica atesta a abundncia das prticas seculares utilizveis pelos sibaritas indianos da poca, sem qualquer necessidade de um longo exerccio preliminar, mediante a ascese.
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Na era da psicologia profunda, devemos naturalmente estar atentos aos sinais do complexo de dipo num amor que se apresenta poderosamente idealizado e tanto mais nobre quanto mais distante. Ademais os adeptos de Jung muito teriam a dizer sobre uma unio com um arqutipo da Grande Me como smbolo da unio entre o componente consciente e inconsciente do esprito humano, precedendo a totalidade da "individualizao". Mas essas "profundezas" podem ser social e culturalmente "superficiais" se nossa ateno se concentra sobre as modalidades de relaes sociais. Parece que os sahajys intentam utilizar vrios meios culturais e biolgicos para atingir um estado sem estrutura de autntica "communitas" social. Mesmo no rito sexual, a finalidade unir simplesmente um macho com uma fmea, mas o macho e a fmea no ntimo 'de cada indivduo. Assim, conforme se afirma que o prprio Caitanya era, cada devoto seria uma encarnao simultnea de Krishna e de Rdh, um ser humano completo. Simbolicamente, pois, o lao do casamento e com ele a famlia, a clula bsica da estrutura social ficava dissolvida pelo amor parakly. Por conseguinte, em sua prpria fonte, numa sociedade em grande parte estruturada por parentesco e por casta, a estrutura tornou-se inoperante, porque os amantes quebraram tambm todas as regras de casta. Os franciscanos recusaram a propriedade, um . dos pilares da estrutura social, e os sahajlys negaram o casamento e a famlia, outro principal pilar. E' significativo que o antroplogo Edmund Leach, que proferiu as influentes "Conferncias Reith", no. Terceiro Programa da BBC, em 1967, tenha tambm voltado a atacar a famlia considerando-a fonte de todas as neuroses e deformidades mentais apenas com a finalidade de louvar as coletividades e as 'comunidades, como as fazendas coletivas de Israel ("kibbutzim"), com suas creches. O Dr. Leach conhece bem as literaturas cingalesa e do sul da ndia.-Talvez haja um eco tntrico em seus ataques. De qualquer forma, ele parece estar assestando um golpe em favor da "communitas"!
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BOB DYLAN E OS BAULES

i Os sucessores de Caitanya malograram porque o grupo de Advaita foi absorvido pelo sistema de castas e o grupo de Nitynanda, exclusivista e cheio de fervor missionrio, foi muito perseguido e gradualmente perdeu o nimo da luta. Historicamente, o fluxo do sahajynismo parece ter lentamente declinado nos sculos XVII e XVIII, apesar do vaisnavismo ser ainda uma fora ativa em Bengala, segundo Dimock. Por exemplo, a seita de msicos conhecidos como baules, que tocam um "instrumento primitivo, mas obsessivo, de uma s corda, chamado 'ek-tara'", e que cantam "canes suaves emocionantes como o vento, que o seu lar", esta seita afirma estar "enlouquecida plo som da flauta de Krishna e, tal uma gopi, no dando nenhuma importncia ao lar nem tendo respeito para com o mundo, segue o som da flauta" (1966a, p. 252). Um fascinante exemplo da convergncia, nas modernas condies de transporte e de comunicao, dos liminares ocidentais e orientais, e dos portadores da "communitas" pode ser encontrado atualmente em muitas lojas de discos. A capa de um recente disco de canes de Bob Dyjan mostra o popular cantor americano, porta-voz dos indivduos estru-. turalmente inferiores, ladeado por baules, esses msicos errantes de Bengala. O violo e o ek-tara se reuniram. E' ainda mais fascinante considerar a freqncia com que as xpreses da "communitas" esto culturalmente ligadas aos instrumentos simples de sopro (flautas e gaitas) e aos instrumentos de corda. Talvez, alm de serem facilmente transportveis, seja a capacidade de traduzir em msica a qualidade da "communitas" humana espontnea, o que justifica o amplo uso de tais instrumentos. Os baules, como S. Francisco, eram "trovadores de Deus". Seria adequado encerrar este captulo com uma de suas canes, que claramente indica como o esprito da "communitas" vaisnava tem persistido no mundo de hoje:

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Hindu, muulmano no existe diferena, Nem h diferenas de casta Kabir, o bhakta (devoto) era, por casta, um Jol, porm, embriagado com o prema-bhak [o verdadeiro amor melhor expresso, conforme vimos, pelo amor extramarital] agarrou-se aos ps da Jia Negra [isto , aos ps de Krishna] Uma nica lua lanterna para este mundo, e de'uma semente brotou a criao inteira (1966a, p. 264).

Eis a autntica voz da "communitas" espontnea.

Humildade e Hierarquia. A Liminaridade de Elevao e de Reverso de Status


OS RITUAIS DE ELEVAO E DE REVERSO DE "STATUS"

i VAN GENNEP, o PAI DA ANLISE PROCESSUAL FORMAL, utilizava-se de dois grupos de termos para descrever as trs fases da passagem de um estudo ou condio, culturalmente definido, para outro. No apenas empregou com referncia primeira ao ritual, os termos em srie separao, margem e reagregao, mas tambm com referncia primeira a transies espaciais, empregou os termos pr-liminar, liminar e ps-liminar. Quando discute o primeiro conjunto de termos e os aplica aos dados, Van Qennep insiste no que eu chamaria de aspectos "estruturais" da passagem. Por outro lado o uso que faz do segundo conjunto indica seu interesse fundamental pelas unidades de espao e de tempo, nas quais o comportamento e o simbolismo se acham momentaneamente libertados das normas e valores que governam a vida pblica dos ocupantes de posies estruturais. Neste ponto a liminaridade torna-se central e ele fez emprego de prefixos unidos ao adjetivo "liminar", para indicar a posio perifrica da estrutura. Quero significar por "estrutura", tal como antes, a "estrutura social", conforme tem sido usada pela maioria dos antroplogos sociais britnicos, isto , como uma disposio mais ou menos caracterstica de instituies especializadas mutua-

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mente dependentes e a organizao institucional de posies e de atores que elas implicam. No me refiro "estrutura" no sentido tornado popular por Lvi-Strauss, ou seja, concernente a categorias lgicas e forma das relaes entre elas. Na realidade, nas fases liminares do ritual costuma-se muitas vezes encontrar a simplificao, at mesmo chegando a ser eliminao, da estrutura social no sentido britnico e a ampHficao da estrutura no sentido de Lvi-Strauss. Encontramos relaes sociais simplificadas, enquanto o mito e o ritual so complexos. A razo disto muito simples de ser compreendida: se a liminaridade considerada como um tempo e um lugar de retiro dos modos normais de ao social, pode ser encarada como sendo potencialmente um perodo de exame dos valores e axiomas centrais da cultura em que ocorre. Neste captulo, focalizaremos principalmente a liminaridade, como fase e como estado. Nas grandes e complexas sociedades a liminaridade, resultando da progressiva diviso do trabalho, tornou-se freqentemente um e s t a d o religioso ou semi-religioso e, em virtude desta cristalizao, mostrou-se propensa a reingressar na estrutura e a receber um inteiro suplemento de papis e posies estruturais. Em lugar da cabana de recluso temos a igreja. Mais que isto, desejo distinguir dois tipos principais de liminaridade embora muitos outros venham a ser sem dvida descobertos primeiro , a liminaridade que caracteriza os ritos de elevao de "status" nos quais o sujeito do ritual, ou o novio, conduzido irreversivelmente de posio mais baixa para outra mais alta, em um sistema institucionalizado de tais posies. Em segundo lugar, a liminaridade encontrada com freqncia .no ritual cclico e ligado ao calendrio, em geral de tipo coletivo, no qual, em determinados pontos culturalmente definidos do ciclo das estaes, grupos ou categorias de pessoas que habitualmente ocupam baixas posies na estrutura social, so positivamente obrigadas a exercer uma autoridade ritual sobre seus superiores, devendo estes, por sua vez,
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aceitar de boa vontade a degradao ritual. Estes ritos podem ser denominados ritos de inverso de "status". So com freqncia acompanhados por vigoroso comportamento verbal e no-verbal, em que os inferiores insultam e at maltratam fisicamente os superiores. Uma variante comum desse tipo de ritual aquela em que os inferiores simulam a posio e o estilo de vida dos superiores, chegando algumas vezes ao ponto de se organizarem numa hierarquia que uma imitao da hierarquia secular dos seus chamados superiores. Resumindo, pode-se contrastar a liminaridade dos fortes (e dos que se esto tornando mais fortes) com a dos permanentemente fracos. A liminaridade dos que sobem em geral implica o rebaixamento ou humilhao do novio como principal componente cultural; ao mesmo tempo, a liminaridade das pessoas permanentemente inferiores na estrutura contm como principal elemento social a elevao simblica, ou fictcia, dos sujeitos ao ritual a posies de autoridade eminente. Os mais fortes tornam-se mais fracos; os fracos agem como se fossem fortes. A liminaridade dos fortes socialmente no estruturada ou estruturada de maneira simples; a dos fracos representa uma fantasia de superioridade estrutural.
OS RITOS DE CRISE DA VIDA E OS RITOS FIXADOS PELO CALENDRIO

Agora que, por assim dizer, pus as cartas na mesa, apresentarei alguns fatos em apoio dessas afirmaes, comeando com a tradicional distino antropolgica entre os ritos de crises da vida e os ritos estacionais ou fixados pelo calendrio. Os ritos de crises da vida so aqueles em que o sujeito, ou os sujeitos rituais marcados por um certo nmero de momentos crticos de transio, que todas as sociedades ritualizam e assinalam publicamente com prticas adequadas para gravar a significao do indivduo e do grupo nos membros vivos da comunidade se movem, como diz Lloyd Warner

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(1959), de "uma localizao placentria fixa dentro do tero da me para a morte e o ponto final fixo de sua pedra tumular e definitivo encerramento na sepultura como organismo morto. So eles os importantes momentos do nascimento, puberdade, casamento e morte" (p. 303). Acrescentaria a esses os ritos que dizem respeito ao ingresso em um "status" perfeito mais alto, quer seja um cargo poltico quer a participao em um clube exclusivista ou numa sociedade secreta. Esses ritos podem ser de natureza individual ou coletiva, porm existe a tendncia para que sejam mais freqentemente cumpridos por indivduos. Os ritos marcados pelo calendrio, por outro lado, quase sempre se referem a grandes grupos e em geral abrangem sociedades inteiras. Com freqncia, tambm, so realizados em momentos bem assinalados dentro do ciclo produtivo anual, e atestam a passagem da escassez para a abundncia (como na poca dos primeiros frutos e nas grandes festas das colheitas) ou da fartura para a escassez (como quando os sofrimentos do inverno c h e g a m antecipadamente, obrigando a precaver-se magicamente contra eles). Poderamos ainda acrescentar a esses todos os "rites de passage", que acompanham qualquer mudana de tipo coletivo de um estado para outro, conforme acontece quando uma tribo inteira entra em guerra ou uma grande comunidade local executa um rito a fim de anular os efeitos da fome, da seca ou de uma praga. Os ritos de crises da vida e os rituais de investidura num cargo so quase sempre ritos de elevao de "status". Os ritos regidos pelo calendrio e os ritos de crise do grupo podem algumas vezes ser ritos de inverso de posio social. Escrevi alhures (1967, p. 93-111)-a respeito dos smbolos de liminaridade que indicam a invisibilidade estrutural dos novios submetidos a rituais de crise de vida assim por exemplo quando so segregados das esferas da vida diria, quando se disfaram com mscaras e corantes ou se tornam mudos pela imposio das regras do silncio. Mostrei, anteriormente, como apli204

cando. os termos de Goffman (1962, p. 14), eles so ! "nivelados" e "despojados" de todas as distines profanas de posio social e de direitos sobre a propriedade. Alm disso so s u b m e t i d o s a julgamentos e ordlios para aprenderem a ser humildes. Um s exemplo de tal tratamento ser suficiente. Nos ritos de circircunciso dos meninos tsongas, descritos por Henry Junod (1962, vol. I, p. 82-85), os meninos so "surrados severamente pelos pastores... ao menor pretexto" (p. 84). Submetidos ao frio, devem dormir nus, de costas, toda a noite, durante os frios meses de junho a agosto; so proibidos de beber uma gota de gua sequer durante toda a iniciao; devem comer alimentos inspidos que "lhes causam nuseas a princpio" a ponto ,de faz-los vomitar; so severamente punidos, sendoIhes introduzidos pedaos de pau separando os dedos de ambas as mos, enquanto um homem forte, tomando as pontas dos paus em suas mos, aperta-os e suspende os pobres meninos, espremendo e quase esmagandolhes os dedos; finalmente, o circuncisado deve estar tambm preparado para morrer, se a ferida no cicatrizar de maneira adequada. Essas provaes no tm por finalidade apenas, como o sups Junod, ensinar resistncia, obedincia e virilidade aos meninos. Numerosos documentos oferecidos por outras sociedades indicam que tm a significao social de rebaix-los a uma espcie de "prima matria" humana, despojada de forma especfica e reduzida a uma condio que, apesar de ainda ser social, no possui nenhuma das formas admitidas de condio social, ou est abaixo de todas elas. A explicao destes ritos que para um indivduo subir ! na escada social, deve descer s posies mais baixas.
A ELEVAO DE "STATUS"

A liminaridade da crise da vida, portanto, humilha e generaliza aquele que aspira a uma posio estrutural mais alta. Os mesmos processos so encontrados, de
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maneira particularmente vivida, em muitos rituais africanos de investidura. O futuro ocupante da chefia ou do comando primeiramente separado da vida comum, devendo em seguida submeter-se a ritos liminares que o rebaixem rudemente antes de, nas cerimnias de readmisso, ser instalado em seu trono na glria final. J tratei dos ritos de investidura dos ndembos (cap. 3), onde o futuro chefe e sua esposa ritual so rebaixados e repreendidos durante uma noite de recluso numa pequena cabana por muitos de seus futuros sditos. Outro exemplo africano do mesmo padro vivamente contado no relato de Du Chaillu (1868) sobre a eleio de "um rei de Gabo". Depois da descrio dos ritos funerrios pelo velho rei, Du Chaillu descreve como os ancios "da aldeia" escolhem secretamente um novo rei, o qual " mantido ignorante de sua boa sorte at o ltimo momento".
"Aconteceu que Njogoni, um bom amigo meu, foi eleito. A escolha recaiu nele em parte porque provinha de boa famlia, mas principalmente porque era o favorito do povo e poderia conseguir a maioria dos votos. No creio que Njogoni tivesse a menor suspeita sobre a sua elevao. Quando andava pela praia, na manh do stimo dia (aps a morte do rei precedente), o povo inteiro caiu sobre ele, de repente, dando incio a uma cerimnia que antecede cproao (e, deve ser considerada liminar no complexo de ritos funerrios totais de investiduras) e que tem a finalidade de dissuadir at o mais ambicioso dos homens a aspirar coroa. Cercaram-no numa densa multido, e ento comearam a cobri-lo com todas as espcies de maus tratos que a pior das plebes possa imaginar. Alguns cuspiamlhe no rosto, davam-lhe socos; outros, ainda, davam-lhe pontaps, lanavam-lhe objetos repugnantes, enquanto os infelizes que estavam a distncia e no podiam alcanar o coitado seno com a ivoz, permanentemente amaldioavam a ele e o pai, a me, as irms e os irmos, e todos os ancestrais dele at a mais remota gerao. Um estranho no daria um Centavo pela vida daquele homem que estava para ser coroado. N meio de todo o barulho e de toda luta, apreendi as palavras qu me derajn a explicao de tudo isto. Com intervalos de poucos .minutos, um indivduo dava-lhe um soco ou um pontap, .gritando: "No s ainda nosso rei; durante alguni tempo faremos o que quisermos contigo. Dentro em breve, ns que teremos de fazer a tua vontade".

Njogcni criiportou-se cf um homem e um rei rii pectiva. Manteve a calma e aceitou todas as injrias com um sorriso nos lbios. Depois de cerca de meia hora, levaraW-no para a casa do antigo rei. L ele se sentou e, durante puco tempo, continuou a ser vtima dos insultos de seu povo. Em seguida, todos ficaram silenciosos e os ancies do Povo levantaram-se e disseram solenemente (com o povo repetindo depois deles): "Agora escolhemcs-te para nosso rei. Cofflprmetemo-nos a ouvir-te e a prestar-te obedincia". Seguiu-se um momento de silncio. Logo depois o chapu de seda, que o emblema da realeza, foi trazido e colocado na cabea de Njogoni. Foi ento vestido com uma toga vermelha, recebendo as maiores p r o v a s de respeito de todos aqueles que, at poucos momentos antes, tinham-no insultado" (p. 43-44).

Esta narrao no s ilustra a humilhao de um candidato em um rito de elevao de "status". Exemplifica tambm o poder dos indivduos estruturalmente inferiores no rito de reverso de "status" num ciclo de rituais polticos. E' um ds rituais complexos que contm aspectos de elevao juntamente com aspectos de rebaixamento de "status". No primeiro aspecto, acentua-se a permanente elevao estrutural do indivduo; no segundo, salienta-se a reverso temporria de "status" de governantes e governandos. O "status" de um indivduo mudado irreversivelmente mas o "status" coletivo de seus sditos p e r m a n e c e imutvel. As provaes nos rituais de elevao de "status" so aspectos de nossa prpria sociedade, conforme atestam os trotes nos calouros.-e as iniciaes nas academias militares. Lembrme pelo menos de um moderno ritual de reverso s "status", No exrcito ingls, no dia de Natal, os soldados rasos so servidos ao jantar pelos oficiais graduados e oficiais subalternos. Depois d e s t e rito, o "status" dos.soldados permanece imutvel. De fato, o sargento-ajudante poder berrar com eles da maneira mais spera, por ter sido, obrigado a correr de um lado para o outro com peru assado, obedecendo s ordens deles. O ritual, na verdade, tem o efeito a longo prazo de salientar de maneira mais decisiva as definies sociais do grupo.
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A REVERSO DE "STATUS". A FUNO DA MSCARA


Na sociedade ocidental persistem traos de ritos de rverso de idade e de papel sexual em alguns costumes como, nos Estados Unidos, a festa de Halloween, quando os poderes dos indivduos estruturalmente inferiores manifestam-se na predominncia liminar de crianas pradolescentes. As monstruosas mscaras que freqentemente usam como disfarces representam principalmente poderes ctnicos ou demonacos terrestres feiticeiras que destroem a fecundidade; cadveres ou esqueletos tirados da terra; povos indgenas, como os ndios; trogloditas, como os anes e os gnomos; vagabundos ou figuras contrrias s autoridades constitudas, como os piratas ou os tradicionais pistoleiros do oeste. Esses minsculos poderes terrestres, se no forem aplacados com festas e guloseimas, pregaro peas fantsticas e caprichosas gerao de chefes de famlia encarregada de manter a autoridade, travessuras semelhantes s que se acreditava outrora serem obra de espritos terrenos, os duendes, os fantasmas, os gnomos, as fadas os anes. Em certo sentido, tambm, essas crianas servem de mediadores entre os mortos e os vivos; no esto muito longe do tero da me, que em muitas culturas equiparado tumba, assim como ambos se associam terra, fonte dos frutos e o receptculo dos resduos. As crianas de Halloween (vspera do dia de Todos os Santos) exemplificam vrios motivos liminares: as mscaras asseguram-lhes o anonimato, pois ningum sabe ao certo de quem so filhas. Mas, como na maioria dos ritos de reverso, o anonimato aqui tem finalidades agressivas, no de humilhao. A mscara da criana como a mscara do salteador de estrada e, com freqncia, as crianas no dia da festa de Halloween usam mscaras representando ladres ou carrascos. O mascaramento confere-lhes poderes de seres selvagens, criminosos, autctones e sobrenaturais.

Relacionado a tudo isto, h algo de carter dos seres terantrpicos dos mitos primitivos, por exemplo, os jaguares macho e fmea dos mitos do "fogo" dos povos de lngua j, da Amaznia, descritos por Lvi-Strauss em L Cru et l Cuit (1964). Terence Turner, da Universidade de Chicago, voltou a analisar recentemente os mitos j s (no prelo). Partindo de anlise precisa e complexa dos mitos dos caiaps sobre a origem do fogo domstico, conclui que a forma do jaguar uma espcie de mscara que ao mesmo tempo revela e esconde um processo de realinhamento estrutural. O processo referese ao movimento de um menino que vai da famlia nuclear para a casa dos homens. As figuras do jaguar representam aqui no apenas o "status" de pai e me, mas tambm as mudanas nas relaes do menino com os pais, mudanas que implicam, alm disso, a possibilidade de penoso conflito social e psquico. Assim, o jaguar macho do mito comea por ser genuinamente terrificante e termina benvolo, ao passo que o jaguar fmea, s e m p r e ambivalente, termina malvolo, sendo morto pelo menino a conselho do jaguar macho. Cada um dos jaguares um smbolo multvoco: enquanto o jaguar macho representa tanto as dores quanto as alegrias de definida paternidade, representa tambm a paternidade em geral. Existe, de fato, entre os caiaps, o papel ritual do "pai substituto", que retira o menino da esfera domstica, mais ou menos na idade de sete anos, para assimil-lo dentro de uma mais vasta comunidade moral masculina. Simbolicamente, isto parece relacionado com a "morte" ou com a extirpao de um importante aspecto da relao me-filho, que corresponde explicao mtica da matana do jaguar fmea pelo, menino, cujo desejo de matar foi fortalecido pelo jaguar macho. Nota-se com clareza que a explicao mtica no se refere a indivduos concretos, mas a pessoas sociais. Contudo, as consideraes estruturais e histricas entrelaam-se de maneira to delicada que a representao direta, sob forma humana, da me e do pai no mito e no ritual poder ser circunstancialmente

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bloqueada por sentimentos poderosos que sempre surgem nas transies sociais decisivas. Pode haver outro aspecto da funo do mascaramento nas festas norte-americanas de Halloween e nos mitos e rituais dos caiaps, assim como em outras manifestaes culturais. Anna Freud teve muitas coisas esclarecedoras a dizer sobre a freqente identificao das crianas, nos jogos, com os animais, ferozes e outros seres ameaadores e monstruosos. O argumento da Srta. Freud cuja fora, reconhecidamente, provm da posio terica de seu famoso pai complexo mas coerente. Na fantasia infantil, o que toma a forma animal o poder agressivo e punitivo dos pais, em particular o pai, especialmente com referncia ameaa paterna, bastante conhecida, de castrao. Ela chama a ateno para o terror quase irracional que as crianas pequenas sentem pelos animais ces, cavalos e porcos, por exemplo - medo normal, explica ela, aumentado pelo medo inconsciente do aspecto ameaador dos pais. Declara ento que um dos mecanismos de defesa mais eficaz utilizado pelo "ego" contra tal temor inconsciente consiste na identificao coni o objeto aterrorizador. Desta maneira, sentese que lhe foi roubado o poder, talvez, at que o poder possa ser retirado dele. Para muitos psiclogos adeptos da psicologia profunda, tambm, a identificao significa substituio. Retirar o poder de um ser forte enfraqec-o. Desse modo, as crianas, com freqncia, brincam fingindo-se de tigres, lees, onas, salteadores, ndios ou monstros. Elas esto assim, segundo Anna Freud, identificando-se inconscientemente com os prprios poderes que as ameaam profundamente e, numa espcie de jiu-jitsu, fortalecendo seus prprios poderes pessoais, por meio do poder que ameaa enfraquec-las. H em tudo isto, naturalmente, uma qualidade traioeira inconscientemente, a pessoa visa a "matar a coisa que ama" e esta precisamente o tipo de comportamento que os pais generalizados devem esperar de crianas 1 generalizadas, dentro dos costumes do Halloween norte-americano. Fa210

zem-se travessuras e a propriedade danificada, ou procura-se dar a aparncia de ter sido danificada. Do mesmo modo, a identificao com a figura do jaguar no mito pode indicar a paternidade em potencial do iniciando e, por conseguinte, sua capacidade de substituir estruturalmente seu prprio pai. E' interessante que esta relao entre entidades e mscaras terantrpicas, de um lado, e aspectos da funo determinada pelo parentesco, de outro lado, surjam tanto nos rituais de elevao de "status" quanto em pontos de mudana culturalmente definidos no ciclo anual. Poder-se-ia conjecturar que a representao feroz dos pais refere-se somente queles aspectos da relao total entre pais e filhos; em sua plena expanso longitudinal, que provoca fortes sentimentos e desejos de carter libidinoso ilcito e particularmente agressivo. E' provvel que tais aspectos sejam estruturalmente determinados; podem estabelecer o desacordo entre a percepo, pela criana, da natureza individual dos pais e o comportamento que deve ter para com eles, e deles esperar, em termos de prescrio cultural. "Meu pai", pensar ela, "no est agindo como um ser humano", quando ele age segundo normas autoritrias, e no segundo aquilo que habitualmente se chama "humanidade". Portanto, de acordo com a apreciao, subliminar das classificaes culturais, podese pensar que esteja agindo como algo situado fora da humanidade, mais freqentemente como um animal. "E se ele exerce poder sobre mim como animal e no como a.pessoa,que conheo, ento posso apropriar-me daquele poder, ou esvazi-lo se eu tambm assumir os atributos, definidos culturalmente, do animal que sinto que ele ". As crises da vida proporcionam os ritos nos quais, ou por meio dos quais so reestruturadas, s vezes drasticamente, as relaes entre posies estruturais e ocupantes de tais posies. Os mais velhos assumem a responsabilidade de realizar efetivamente as mudanas prescritas pelos costumes; eles, pelo menos, tm a satisfao de tomar uma iniciativa. Mas os jovens, com menos compreenso da racionalidade social de tais rnu-

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danas, julgam que sua expectativa com relao ao comportamento dos mais velhos para com eles so falseadas pela realidade, durante as pocas de mudana. Considerada do ponto de vista de sua perspectiva estrutural, por conseguinte, a mudana de comportamento dos pais e de outras pessoas mais idosas parece-lhes ameaadora e mesmo embusteira, revivendo talvez at temores inconscientes de mutilao fsica e outras punies por um comportamento que no est de acordo com a vontade dos pais. Assim, enquanto o comportamento dos mais velhos se situa dentro do poder daquele grupo etrio e, de alguma forma, s mudanas estruturais que promovem so previsveis, para eles os mesmos comportamentos e mudanas esto fora do alcance dos jovens, seja para compreend-los seja para evit-los. Para compensar essas deficincias cognoscitivas, os jovens e os inferiores, nas situaes rituais, podem mobilizar smbolos de grande poder, carregados de sentimentos. Os ritos de reverso de "status", segundo este princpio, mascaram os fracos com a fora e pedem aos fortes que sejam passivos e suportem pacientemente a agresso simblica, ou mesmo real, praticada contra eles pelos estruturalmente inferiores. Entretanto, necessrio voltar aqui distino, anteriormente estabelecida, entre rituais de elevao de "status" e rituais de reverso. Nos primeiros, o comportamento agressivo demonstrado por candidatos a um "status" mais alto, embora se encontre com freqncia, tende a ser abafado e refreado; afinal de contas, o candidato "est se elevando" simbolicamente, e, terminado o ritual, gozar de maiores privilgios e direitos do que at ento. Porm, nos rituais de reverso, o grupo ou a categoria a que se permit6 agir como se fosse estruturalmente, superior e, nesse papel, repreender e mesmo espancar os seus superiores dogmticos est de fato situado perpetuamente eifl um "status" mais baixo. E' claro que ambos os modos de explicao, tanto sociolgico quanto psicolgico, tm cabimento no casoAquilo que estruturalmente "visvel" para um observa'
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dor capacitado em antropologia psicologicamente "inconsciente" para o m e m b r o individual da sociedade observada. Contudo, suas respostas apetitivas s modificaes e regularidades estruturais, multiplicadas pelo nmero de membros expostos a mudanas, de gerao a gerao, devem ser levadas em considerao, do ponto de vista cultural, e principalmente ritual, para que a sociedade sobreviva sem uma tenso de ruptura. Os ritos das crises da vida e os rituais de reverso levam essas respostas em considerao de maneiras diferentes. Os indivduos elevam-se estruturalmente atravs de sucessivas crises de vida e ritos de elevao de "status". Mas os rituais de reverso de "status" tornam visveis, em seus padres simblicos e de comportamento, as categorias e formas de agrupamentos sociais, consideradas axiomticas e imutveis, tanto em essncia quanto na relao de umas com as outras. Do ponto de vista cognoscitivo, nada reala melhor a regularidade que o absurdo ou o paradoxo. Emocionalmente, nada satisfaz tanto como o comportamento extravagante ou ilcito temporariamente permitido. Os rituais de reverso de "status" conciliam ambos os aspectos. Tornando o baixo alto e o alto baixo, reafirmam o princpio hierrquico. Fazendo o inferior imitar o comportamento do superior (chegando at a caricatura)* e restringindo as iniciativas dos orgulhosos, acentuam a racionalidade do comportamento d i r i o , culturalmente previsvel, entre os diversos estamentos da sociedade. A este respeito, adequado que os rituais de reverso de "status" se localizem, freqentemente, ou em pontos fixos no ciclo anual ou em relao com festas mveis, que variam dentro de um perodo limitado de tempo, porque a regularidade estrutural se reflete na ordem temporal. Poder-s-ia argumentar que os rituais de reverso de "status" podem verificar-se com carter contingente, quando uma calamidade ameaa a comunidade inteira. Mas pode-se replicar, convincentemente, que precisamente porque a comunidade inteira est ameaada que se executam tais ritos de compensao. E
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porque se acredita que as irregularidades histricas concretas alteram o equilbrio natural entre as categorias estruturais julgadas permanentes.
A "COMMUNITAS" E A ESTRUTURA, NOS RITUAIS DE REVERSO DE "STATUS"

Voltemos aos rituais de reverso de "status". Eles no apenas reafirmam a ordem da estrutura, como tambm restauram as relaes entre os indivduos histricos reais que ocupam posies em tal estrutura. Todas as sociedades humanas implcita ou explicitamente referem-se a dois modelos sociais contrastantes. \jm deles, como vimos, o da sociedade como uma estrutura de posies, cargos, "status" e funes jurdicas, polticas e econmicas, na qual o indivduo s pode ser ambiguamente apreendido atrs da personalidade social. O outro modelo , o da sociedade enquanto "communits" formada de indivduos concretos e idiossincrsicos que, apesar de diferirem quanto .aos dotes fsicos e mentais, so contudo considerados iguais do ponto de vista da humanidade comum a todos. O primeiro modelo o de um sistema de posies institucionalizadas diferenciado, culturalmente estruturado, segmentado e freqentemente hierrquico. O segundo apresenta a sociedade com uni todo indiferenciado e homogneo, no qual os indivduos se defrontam uns com os outros integralmente, e no como "status" e funes "segmentarizados". No processo da vida social, o comportamento de. acordo com um modelo tende a "afastar-se" do comportamento representado pelo outro modelo. O objetivo final, todavia, consiste em agir em termos de valores da "communits", mesmo quando o que uma pessoa realiza culturalmente, no desempenho de papis estruturais, concebido como um mero instrumento para a aquisio e manuteno da "communits". Desta perspectiva, o ciclo das estaes pode ser considerado como medida do grau de deslocamento da estrutura a partir da

"communits". Isto particularmente verdadeiro nas felaes entre categorias e grupos sociais ordenados em posies muito altas e muito baixas, embora seja vlido para as relaes entre os ocupantes de qualquer classe ou posio social. Os homens usam a autoridade de que seu cargo se reveste para abusar dos ocupante de posies mais inferiores, prejudic-los confundindo a posio com a pessoa dela incumbida. Os rituais de reverso de "status", quer estejam colocados em pontos estratgicos no ciclo anual, quer sejam provocados por calamidades consideradas como o resultado de graves pecados sociais, so tidos como restabelecedores da estrutura social e da "communits", mais uma vez, em sua correta relao mtua.
A CERIMNIA "APO", DOS ASHANTIS ,

Para servir de ilustrao, cito. um exemplo bem conhecido, tirado da l i t e r a t u r a antropolgica, referente cerimnia Apo, dos ashantis do norte de Gana. Esta cerimnia, que Rattray (1923) pde observar entre os povos tekimans, realiza-se durante os oito dias que precedem imediatamente o ano novo dos tekimans, o qual comea a dezoito de abril. Bosman (1705), o, antigo historiador holands da Costa da Quine, descreve o que Rattray chama "indubitavelmente uma mesma cerimnia" (p. 151), nos seguintes termos: h "... uma festa de oito dias, acompanhada de toda espcie de cantos, saltos, danas, jbilo e alegria,; nesta poca permitida uma perfeita liberdade de stira, e o escndalo to altamente exaltado que podem falar livremente de todas as faltas, vilanias e fraudes de seus superiores e dos inferiores, sem que haja punies e mesmo a mnima interrupo" :(Bosman, Carta X). As observaes de Rattray confirmam com abundncia de pormenores a caracterizao de Bosman. Ele deriva o termo Apo de uma raiz que significa "falar rude ou asperamente a algum", e indica que existe um outro
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termo para a cerimnia ahorohorua, possivelmente derivado do verbo horo, que quer dizer "lavar", "limpar". Os ashantis estabelecem uma conexo positiva entre a linguagem franca, rude e a purificao, conforme fica demonstrado pelas palavras do velho sumo sacerdote do deus Ta Kese, ditas em tekiman, a Rattray e literalmente traduzidas por ele:
"Sabeis que cada um de ns tem uma sunsum (alma) que pode ferir-se, ser tratada com violncia ou adoecer, tornando deste modo o corpo doente. Com muita freqncia, apesar de existirem outras causas, por exemplo a feitiaria, a m sade causada pelo mal e pelo dio que outra pessoa tem no pensamento contra vs. Por outro lado, vs tambm podeis ter dio no corao contra outro indivduo, por algo que este lhe tenha feito, e isto tambm faz com que sua sunsum fique atormentada e adoea. Nossos antepassados sabiam que isto o que acontece, e assim estabeleceram uma poca, uma vez por ano, em/que homem e mulher, livre ou escravo, teria liberdade de falar em voz alta tudo o que tivesse na cabea, de dizer aos vizinhos o que pensava deles e de suas aes, e no somente aos vizinhos mas tambm ao rei ou ao chefe. Quando um homem falou assim livremente, sentir a sunsum tranqila e acalmada, e a sunsum da outra pessoa contra quem ele acabou de falar abertamente tambm se sentir acalmada. O rei dos ashantis pode ter morto vossos filhos e por esta razo o odiais. Isto o faz ficar doente e vs tambm. Se vos foi permitido dizer-lhe na cara o que pensais, ambos se sentiro beneficiados" (p. 153).

V-se imediatamente, por esta interpretao nativa, que o nivelamento uma das principais funes dos ritos Apo. O superior deve _submeter-se a ser humilhado; os humildes so exaltados graas ao privilgio da linguagem franca. H, porm, muito mais no ritual do que isto. A diferenciao estrutural, tanto vertical quanto horizontal, o fundamento do conflito, do f acciosismo e das lutas nas relaes didicas, entre ocupantes de posies ou rivais que as ambicionam. Nos sistemas religiosos estruturados mais comumente pelas segmentaes intercaladas do ano solar e lunar, e pelos pontos nodais climticos de mudana as brigas e dissenses n so tratadas ad hoc, logo que surgem, mas de maneir3

genrica, abrangendo vrios assuntos, em algum ponto regularmente recorrente no ciclo ritual. A cerimnia Apo realiza-se, como dizem os ashantis, "quando o ciclo do ano deu a volta" ou quando "os limites do ano se encontraram". A cerimnia proporciona com efeito uma descarga de todos os maus sentimentos acumulados nas relaes estruturais durante o ano anterior. Expurgar ou purificar a estrutura mediante a linguagem franca significa reanimar o esprito da "communitas". Aqui a crena largamente difundida no sub-Saara africano, de que os rancores alimentados na cabea e no corao fazem mal fisicamente tanto aos que os conservam quanto queles contra quem so dirigidos, opera no sentido de assegurar que as injustias sejam expostas e os malfeitores se abstenham de tomar represlias contra quem proclamar suas ms aes. Sendo mais provvel que as pessoas da classe alta prejudiquem as de categoria inferior do que o contrrio, no de surpreender que os chefes e os aristocratas sejam considerados como alvos tpicos para as acusaes pblicas. Paradoxalmente, a reduo ritual da estrutura "communitas", mediante o poder purificador da honestidade mtua, tem por efeito regenerar os princpios de classificao e ordenao sobre os quais repousa a estrutura social. No ltimo dia do ritual Apo, por exemplo, pouco antes do comeo do ano novo, os sacrrios de todos os deuses locais dos ashantis, e alguns nacionais, so carregados em procisso de seus templos locais, cada qual com um cortejo de sacerdotes, sacerdotisas e outros funcionrios religiosos, at o rio sagrado Tano. L os santurios e os bancos enegrecidos dos sacerdotes j falecidos so borrifados e purificados com uma mistura de gua e- de argila branca em p. O chefe poltico de Tekiman no est presente em pessoa. A Rainha-Me porm assiste, porque este um assunto de deuses e de sacerdotes, representando os aspectos universais da cultura e da sociedade ashanti, e no da chefia, em seu aspecto mais estreitamente estrutural. Esta qualidade universal exprime-se na prece do porta-voz saerdotal de
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um dos deuses, ao aspergir o sacrrio de Ta Kesi, 0 maior dos deuses locais: "Ns te suplicamos a vidaquando os caadores forem floresta, permite-lhes matar carne; possam as mulheres grvidas ter filhos; vida para Yao Kramo (o chefe), vida para todos os caadores, vida para todos os sacerdotes, tomamos o apo deste ano e o colocamos no rio" (p. 164-166). Asperge-se gua sobre todos os bancos e todos os presentes e, depois da purificao dos santurios, o povo retorna aldeia, enquanto os santurios so recolocados nos templos que constituem seu lar. Essa prtica solene, com que finaliza este rito saturnal, na realidade uma; manifestao muito complexa da cosmologia dos ashantis de Tekiman, pois cada um dos deuses representa uma completa constelao de valores e de idias e est associado a um lugar num ciclo de mitos. Ainda mais, o crculo de cada um deles uma rplica da roda do chefe, e corporif ica o conceito ashanti de hierarquia estrutural. E' como se a estrutura, purgada e purificada pela "communitas", fosse ostentada branca e brilhante outra vez, para iniciar uni novo ciclo de tempo estrutural. E' significativo que o primeiro ritual do novo ano, realizado no dia seguinte, seja oficiado pelo chefe, e que a nenhuma mulher, nem mesmo Rainha-Me, tenha permisso para estar presente. Os ritos so executados no interior do templo de Ta Kesi, o deus local; o chefe faz suas preces a ele sozinho e depois sacrifica uma ovelha. Isto estabelece um acentuado contraste com os ritos do dia anterior, aos quais, membros de ambos os sexos assistem; tais ritos so efetuados ao ar livre, junto s guas do Tano (de importncia para todos os ashantis), no incluem sacrifcio sangrento algum e exig e m - a excluso do chefe. A "communitas" a no'a solene com a qual o ano velho" termina; a estruturai purificada pela "communitas" e nutrida pelo sangue do sacrifcio, renasce no primeiro dia do ano novo. Assin1' aquilo que , sob vrios aspectos, um ritual"de reverso parece ter o efeito no .s de inverter temporariamente a "ordem do poleiro" ms segregar primordialmente

princpio da unidade grupai, a partir dos princpios de f hierarquia e segmentao, e em seguida indicar drama1 ticamente que a unidade de Tekiman e, mais do que a de Tekiman, a do prprio estado dos ashantis consiste numa unidade hierrquica e segmentada.
SAMHAIN, DIA DE FINADOS E DIA DE TODOS OS SANTOS

Como podemos notar, a acentuao dada aos poderes purificativos das pessoas estruturalmente inferiores e a conexo de tais poderes com a fecundidade e outros interesses e valores h u m a n o s universais, precedem a acentuao da estrutura fixa e particular, no caso Apo. De modo semelhante, a festa Halloween na cultura ocidental, com a importncia dada aos poderes das crianas e dos espritos da Terra, precede duas festas crists tradicionais, que representam nveis estruturais da cosmologia crist, isto/, o dia de Todos os Santos e o de Finados. Sobre o dia de Todos os. Santos disse o telogo francs M. Olier (citado em Attwater, 1961): "E', sob certa forma, maior do que a festa da Pscoa ou a da Ascenso, (pois) Cristo completado nesse mistrio, porque, como nossa Cabea, ele somente perfeito e plenamente realizado quando se une a todos os seus membros, os santos (canonizados ou no, conhecidos e desconhecidos)". Deparamos aqui, ainda uma vez, com a noo de uma sntese perfeita da "communitas" e da estrutura hierrquica. No foram apenas Dante.e Toms de Aquino que retrataram o cu como uma estrutura hierrquica, com muitos nveis de santidade e ao mesmo tempo como uma unidade luminosa ou "communitas", na qual nenhum santo menor sente inveja de um maior, nem o maior santo tem orgulho de sua posio. Igualdade e hierarquia so l misteriosamente uma s coisa. O dia de Pinados, que vem a seguir, c o m e m o r a as almas no purgatrio, sublinhando simultaneamente sua posio

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hierrquica mais baixa do que a das almas no cu, e a ativa "communitas" dos vivos, que pede aos santos para intercederem por aqueles que sofrem a provao liminar no purgatrio e pelos mortos j salvos, tanto no cu como no purgatrio. Pareceria que, tal como na "liberdade de satirizar e nas reverses de "status" da cerimnia Apo, o rude poder que d energia tanto hierarquia virtuosa quanto boa "communitas" dos Santos e das almas do ciclo do calendrio deriva de fontes pr-crists e autctones, sendo-lhes dada freqentemente um "status" ao nvel da cristandade popular. Somente aps o sculo VII que o dia primeiro de novembro comeou a ser observado como festa crist, enquanto o Dia de Finados foi introduzido no rito romano s no sculo X. Em regies clticas, alguns aspectos da festa paga de inverno de Samhain (para ns, primeiro de novembro) ligavam-se a essas festas crists. Samhain, que significa "fim do vero" de acordo com J. A. MacCulloch (1948), "naturalmente indica o fato de que os poderes das influncias malficas, simbolizados pelo inverno, comeavam seu reinado. Mas poderia ter sido em parte um festival das colheitas, porquanto tinha conexes com as atividades pastoris, pois a morte e preservao de animais para alimentao durante o inverno estavam associadas festa... Acendiase uma fogueira, que representava o sol, cujo poder estava agora declinando, e o fogo deveria revigor-lo magicamente... Nas casas os fogos eram apagados, prtica ligada talvez expulso estacionai dos infortnios. Ramos lanados fogueira eram levados para as casas a fim de acender novos fogos. Existem certos sinais de que um sacrifcio, possivelmente humano, fosse realizado no Samhain, sendo a vtima carregada cotn os males da comunidade, como o bode expiatrio dos hebreus" (p. 58-59). Nesse ponto, tambm, pareceria que, como na cerimnia Apo, o Samhain representava uma expulso estacionai dos males e uma r e n o v a o de fertilidade, associadas a poderes csmicos e ctnicos. Nas crena8

populares europias, a meia-noite do dia 31 de outubro veio a associar-se com reunies de poderes infernais de teitiana e do demnio, como na Walpurgisnacht e no Halloween quase fatal de Tam o'Shanter [principal figura do poema de Robert Burns]. * Posteriormente, uma estranha aliana formou-se entre os inocentes e os malvados, entre as crianas e as bruxas, que expurgam a comunidade mediante uma piedade fingida e o terror de artimanhas e-regatos, e preparam o caminho para as festas, prprias da "communitas", da torta de abbora com o feitio do sol, pelo menos nos Estados Unidos. De qualquer modo, os dramaturgos e novelistas bem o sabem, um toque de pecado e de maldade parece ser a fasca necessria para a c e n d e r os fogos da "communitas", embora complicados mecanismos rituais tenham de ser postos em prtica para transmutar esses togos dos usos devoradores para os usos domsticos. Existe sempre uma feix culpa no corao de todo sistema religioso que esteja estreitamente ligado aos ciclos humanos estruturais de desenvolvimento. OS SEXOS, A REVERSO DE "STATUS" E A "COMMUNITAS" H outros rituais de reverso de "status" que compreendem a supremacia das mulheres sobre a autoridade e as funes masculinas. Podem ser realizadas alteraes em certos pontos nodais do calendrio como no caso da cerimnia zulu Nornkubuhvana, analisada por Max Gluckman (1954), onde "era atribudo s mulheres um papel dominante e aos homens um papel subordinado nos ritos executados em distritos locais da Zululndia, quando os cereais comeavam a crescer" (p. 4-11). (Em vrias sociedades dos bantos, do centro e do sul, encontram-se ritos semelhantes, nos quais as moas usam roupas de h o m e n s , pastoreiam e ordenham o gado). Mais freqentemente, executam-se rituais desse
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tipo quando uma grande rea territorial de uma sociedade tribal ameaada por alguma calamidade natural, como uma praga de insetos, a fome ou a seca. O Dr. Peter Rigby (1968) publicou recentemente uma descrio detalhada de ritos femininos deste gnero, entre os gogs da Tanznia. Estes ritos foram cuidadosamente discutidos em outros trabalhos por autoridades como Eileen Krige, Gluckman, e Junod. Assim, indicarei apenas que em todas as situaes nas quais se verificam existe a crena de que os homens, alguns dos quais ocupando posies importantes na, estrutura social, de algum modo incorreram no desagrado dos deuses ou dos ancestrais, ou, noutra interpretao, alteraram tanto o equilbrio mstico entre a sociedade e a natureza, que as perturbaes da primeira provocaram anormalidades na ltima. Resumindo, os superiores estruturais, por suas dissenses sobre interesses particulares ou setoriais, trouxeram a desgraa para a comunidade local. Compete ento aos indivduos estruturalmente inferiores (no exemplo zulu, s mulheres jovens, normalmente sob a ptria potestas dos pais ,ou a manas dos maridos), representando a "communitas" ou a comunidade global que transcende todas as divises internas restabelecer as coisas em seu devido lugar. Para tal fim usurpam simbolicamente por um curto perodo de tempo as armas, as vestimentas, os atavios e o estilo de comportamento de superiores estruturais, isto , os homens. Mas uma velha forma tem agora um novo contedo. A autoridade agora exercida pela prpria "communitas", mascarada de estrutura. A forma estrutural despoja-se dos atributos egostas e se purifica pela associao com os valores da "communitas". A. unidade que fora q u e b r a d a pela discrdia egosta e por ocultos maus sentimentos restaurada por aqueles que so normalmente considerados estarem situados abaixo da batalha pelas posies jurdicas e polticas. Mas a palavra "abaixo" tem dois sentidos: no significa somente o que estruturalmente inferior; significa tambm a base comum de toda vida social

a terra e seus frutos. Em outras palavras, o que lei em determinada dimenso social pode ser fundamento em outra. Talvez seja significativo que as jovens solteiras desempenhem com freqncia o papel de principais protagonistas: que elas ainda no se tornaram .mes de filhos,, cujas posies estruturais fornecero, mais uma vez, as bases para a oposio e a competio. No entanto, inevitavelmente, a reverso efmera e transitria ("liminar", se quisermos), pois os dois modos de correlaciohamento social esto neste caso culturalmente polarizados. As moas pastoreando o gado um paradoxo na ordem da classificao, um desses paradoxos que s pode existir na liminaridade do ritual. A "communitas" no pode manejar recursos ou exercer controle social sem alterar sua prpria natureza e deixar de ser "communitas". Mas pode, mediante uma curta manifestao, "queimar" ou "lavar" seja qual for a metfora usada para indicar a purificao os pecados e as ruturas acumuladas da estrutura.

REVERSO DE "STATUS" NA "FESTA DO AMOR" NA ALDEIA INDIANA Resumindo nossas descobertas at agora feitas sobre os rituais de reverso de "status", podemos dizer o seguinte: o mascaramento dos fracos com uni poder agressivo e o concomitante mascaramento dos fortes com humildade e passividade so estratagemas que purificam a sociedade de seus "pecados" produzidos estruturalmente, o que os "hippies" chamariam de "hang-up" [problema ou dificuldade, especialmente de natureza pessoal ou emocional e primeira vista sem soluo].* Fica assim constitudo o palco para uma experincia exttica da "communitas", seguida do sbrio retorno a uma estrutura agora e x p u r g a d a e reanimada. Uma das melhores descries "por dentro" deste processo ritual
Nota do Tradutor.

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encontra-se em um artigo escrito pelo sbrio e desapaixonado analista da sociedade da aldeia indiana, Professor McKim Marriott (1966). Estuda o festival Holi, na aldeia de Kishan Garhi, "localizada do lado oposto do Juman, para quem vem de Mathura e Vrindaban, distante um dia de caminhada da terra lendria de Vraja do jovem Krishna. "Realmente, a divindade que preside os ritos Krishna, e os ritos narrados a Marriott como "festas de amor" eram um festival da primavera, a "maior celebrao religiosa do ano". Como um inexperiente pesquisador de campo, Marriott tinha sido mergulhado nos ritos no ano anterior, fora levado com engodos a beber uma mistura contendo maconha, foi untado com ocre e jovialmente espancado. No ano seguinte, refletiu sobre qual seria a funo social desses turbulentos ritos, maneira de Radcliffe-Brown: "Passei agora um ano inteiro em minhas investigaes, e o Festival do Amor se aproximava outra vez. Mas uma vez eu ficava apreensivo pela minha pessoa fsica, mas estava prevenido com o conhecimento da estrutura social que podia produzir uma melhor compreenso dos acontecimentos que iriam ocorrer. Desta vez, sem a dose de maconha, comecei a ver o pandemnio de Holi encaixando^se numa ordenao social extraordinariamente regular. -Era porm uma ordem exatamente inversa dos princpios rituais e sociais da vida rotineira. Cada ato tumultuoso no Holi implicava alguma regra ou fato positivos e opostos da organizao social diria na aldeia. Quem eram aqueles homens sorridentes, cujas canelas estavam sendo impiedosamente espancadas pelas mulheres? Eram os mais ricos fazendeiros brmanes e jts da aldeia, e as espancadoras eram as ardentes Rdhs locais, as "esposas da aldeia", representando ao mesmo tempo o sistema de parentesco real e o fictcio existente entre as castas. A esposa de um "irmo mais velho" era devidamente a companheira de pilhrias de um homem, enquanto a esposa de um "irmo mais moo" era devidamente apartada dele por regras de extremo respeito, mas ambas estavam amalgamadas aqui com as substitutas da me de um homem, as esposas dos "irmos mais moos de seu pai", numa trama revolucionria de "esposas" que cruzavam todas as linhas e laos menores. As mais intrpidas espancadoras desse batalho disfarado eram muitas vezes de fato as esposas dos lavradores, artesos e criados, de baixa casta, dos fazendeiros as concubinas e as ajudantes da cozinha d*s

vitimas. "V fazer po!", zombava insistentemente um fazendeiro instigando uma atacante. "Voc quer um pouco do meu esperma?", gritava uma vtima lisonjeada, sofrendo a dor das pancadas, mas mantendo-se firme. Seis homens da casta dos brmanes, com mais de cinqenta anos de idade, pilares da sociedade da aldeia, manquejavam apressadamente fugindo arquejantes do porrete brandido por uma jovem possante bhangin, encarregado de limpar-lhes as latrinas. Todas as moas da aldeia mantinham-se parte dessa carnificina sofrida por seus irmos de aldeia, mas estavam prontas a atacar qualquer marido em potencial que pudesse passar, vindo de outra aldeia, onde elas poderiam casar, a fim de atender a um convite para a festa. Quem era aquele "rei do Holi", cavalgando de costas um jumento? Era um rapaz mais velho de alta casta, um valento famoso, posto nessa posio por suas vtimas organizadas (mas parecendo deleitar-se com a notoriedade de sua desgraa). Quem fazia parte daquele coro que cantava to sensualmente na viela do oleiro? No eram os companheiros de casta do morador, mas seis homens que se dedicavam lavagem de roupa, um alfaiate e trs brmanes, que se reuniam somente nesse dia todos os anos, num conjunto musical idealista, imitando a amizade entre os deuses. Quem eram aqueles indivduos transfigurados em "vaqueiros", a jogar lama e p sobre todos os cidados importantes? Eram os carregadores de gua, dois jovens sacerdotes brmanes e o filho de um barbeiro, ansiosos especialistas nas rotinas dirias de purificao. De quem era o templo domstico que foi todo enfeitado com ossos de cabra, por folies desconhecidos? Era o templo da viva brmane, que importunara constantemente os vizinhos e os parentes com aes de demandas. Em frente da casa de quem estava sendo cantada uma pardia de cano fnebre por uma asceta profissional da aldeia? Era a casa de um agiota, cheio de vida, notrio pelas cobranas pontuais e pelas insuficientes beneficncias. Quem era aquele que teve a cabea carinhosamente besuntada no s com punhados dos sublimes ps vermelhos, mas tambm com um galo de leo diesel? Era o proprietrio da aldeia, e foi seu sobrinho e principal rival que o untou, o chefe de .polcia de Kishan Garhi. Quem foi levado a danar nas ruas, tocando flauta como o deus Krishna, com uma guirlanda de sapatos velhos em torno do pescoo? Fui eu, o antroplogo visitante, que tinha feito um nmero demasiado grande de perguntas, e sempre recebera respostas respeitosas. Na verdade, aqui estavam as vrias espcies de amor da aldeia, todas elas confundidas a respeitosa considerao para
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com pais e patres, a afeio idealizada para com irmos, irms, e camaradas, O anelo do homem pela unio com o divino e a grosseira concupiscncia dos parceiros sexuais tudo isto transbordando repentinamente de seus canais estreitos e habituais, por um aumento simultneo de intensidade. O amor ilimitado e unilateral, de todos os. tipos, inundava a comum compartimentao e indiferena entre castas e famlias separadas. A libido insubordinada alagava todas as hierarquias estabelecidas, d idade, sexo, casta riqueza e poder. O significado social da doutrina de Krishna,' em sua verso rural no norte da ndia, no diverso de uma implicao social conservadora do Sermo da Montanha, feito por Jesus. O Sermo adverte severamente da destruio da ordem secular social, mas ao mesmo tempo adia-a para um futuro distante. Krishna no protela o ajuste de contas dos poderosos at o dia do Juzo Final, mas programa-o regularmente em forma de um baile de mscaras, a ser efetuado na lua-cheia d cada ms de maro. O Holi de Krishna no .uma simples doutrina de amor, , antes, o texto de um drama que deve ser representado por todos os devotos, .apaixonada e alegremente. O balano dramtico do Holi a destruio do mundo e a renovao do mundo, a poluio do mundo seguida pela purificao do mundo no ocorre s no nvel abstrato dos princpios estruturais, mas tambm na pessoa de cada participante. Sob a tutela de Krishna, cada pessoa representa e, por um momento, experimenta o papel de seu oposto; a esposa servil atua como o marido dominador, e vice-versa; o raptor passa a representar o papel da raptada; o criado age como patro; o inimigo desempenha o papel de amigo; os jovens censurados agem como os dirigentes da repblica. O antroplogo observador, que indaga e reflete sobre as foras que movimentam os nomens em suas rbitas, v-se compelido a representar o papel de matuto ignorante. Cada ator jocosamente assume o .papel de outros com relao sua prpria personalidade habitual. Cada um pode, assim, aprender a desempenhar de novo seus prprios papis rotineiros, certamente com renovada compreenso, possivelmente com maior benevolncia, talvez, com amor recproco" (p. 210-212).
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mana do outro. A "communitas" no meramente instintiva; inclui a conscincia e a volio. A reverso de "status" no festival Holi liberta o homem (e a mulher) do "status" que ocupa. Em certas condies, isto pode ser uma experincia ."exttica", no sentido etimolgico de o indivduo "estar fora" de seu "status" estrutural. "xtase" = "existncia". Alm disso, eu no derivaria inteiramente o "amor recproco", como foi interpretado por Marriott, do fato de o ator tomar o papel de um outro. Ao contrrio, eu consideraria essa imitao na execuo de um papel meramente como um artifcio para destruir iodos os papis e preparar terreno para a emergncia da "communitas". No entanto, Marriott descreveu bem e apreendeu as caractersticas distintivas de um ritual de reverso de posies: a supremacia ritual dos inferiores estruturais, sua linguagem indelicada e aes rudes; a humildade simblica e a verdadeira humilhao dos indivduos de "status" superior; a maneira pela qual os que esto situados estruturalmente "abaixo" representa uma "communitas" que transborda os limites estruturais, comeando com a fora e terminando com amor; e finalmente a acentuao, no a destruio, do princpio de hierarquia (isto , de organizao escalonada), individualmente purificado embora paradoxalmente pela violao de muitas regras hindus de profanao mediante a reverso, processo graas ao qual permanece sendo a vrtebra estrutural da vida da aldeia.

Tenho um ou dois pequenos reparos a fazer ao relato de Marriott, alis admirvel e emptico. No o impulso biolgico da "libido" que "inunda todas as hierarquias estabelecidas, de idade, sexo, casta, riqueza ou poder", mas a experincia liberada da "communitas", que, como Blake poderia ter dito, "algo intelectual" isto , implica o conhecimento total da totalidade hu-

AS RELIGIES DE HUMILDADE E DE REVERSO DE "STATUS" Examinamos at aqui os ritos liminares em sistemas religiosos pertencentes a sociedades altamente estruturadas, cclicas e caracterizadas pela repetio. Gostaria de prosseguir tentando indicar que possvel encontrar uma distino semelhante que estabelecemos entre a liminaridade dos ritos de elevao de "status" e a limi-

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naridade dos ritos de reverso, pelo menos nos estgios iniciais, em religies de mbito mais vasto do que o tribal, especialmente durante os perodos de rpida e indita mudana social, as quais por si mesmas tm atributos liminares. Em outras palavras, algumas religies assemelham-se liminaridade da e l e v a o de "status": encarecem a humildade, a pacincia e a falta de importncia das distines de situao, propriedade, idade, sexo e outras diferenas naturais e culturais. Alm disso, acentuam a unio mstica, numinosidade e a "communitas" indiferenciada. Tal se d porque muitas delas consideram que esta vida representa uma fase liminar, sendo os ritos funerrios a preparao para o reagrupamento dos iniciantes a um nvel mais .alto, ou a um plano mais elevado de existncia, como o cu ou o nirvana. Outros movimentos religiosos, pelo contrrio, revelam muitos dos atributos dos rituais rsticos e tribais de reverso de "status". A liminaridade da reverso no tem tanto por efeito eliminar quanto sublinhar as distines estruturais, chegando at ao ponto (em geral inconsciente) de caricaturar. Igualmente, essas religies distinguem-se pela acentuao dada diferenciao funcional na esfera religiosa, e a reverso religiosa do "status" secular. A REVERSO DE "STATUS" NO NO SEPARATISMO SUL-AFRICANO Um exemplo bastante claro de uma religio de reverso de "status" pode ser encontrado no estudo de Sundkler sobre o separatismo banto na frica do Sul (1961). Como sabido, existem atualmente acima de mil igrejas e seitas africanas organizadas, mais ou menos pequenas, na frica do Sul, que romperam com as igrejas missionrias dos brancos ou que resultaram do rompimento de umas com as outras. Sundkler, que estudou as igrejas independentes africanas na Zululndia, diz o seguinte sobre "a cor como uma barreira de reverso para o cu":

"Em um pas onde alguns brancos irresponsveis dizem aos africanos que Jesus existe s para os homens brancos, os africanos vingam-se projetando a barreira da cor diretamente para o cu: O complexo da cor-pintou seu cu de preto, e o Cristo negro tem de tratar disto. Shembe [um famoso profeta zulu], s portas do cu, manda embora os brancos, porque eles, como o homem rico, j receberam as coisas boas durante a Vida na terra, e abre as portas apenas a seus fiis seguidores. O destino dos africanos que pertenceram a igrejas missionrias dos brancos lamentvel: "Uma raa no pode entrar pelas portas de outra raa", quando chegam s portas dos brancos, so mandados de volta... O complexo da cor pe a seu servio as parbolas de Jesus. Eis aqui uma qual ouvi referncias em algumas igrejas sionistas: "Havia dez virgens. Cinco dentre elas eram brancas e cinco eram negras. As cinco brancas eram insensatas, mas as cinco negras eram sbias, tinham leo nas lmpadas. As dez chegaram s portas do cu. Mas as cinco virgens brancas receberam a mesma resposta que o homem rico recebeu. E porque os brancos dominam na terra, os negros dominam no cu. Os branccs seguiro implorando mergulhar as pontas dos dedos na gua fria. Mas obtero como resposta: 'Hhayyi (no) ningum pode dominar duas vezes'" (p. 290).

Deve notar-se no presente caso que a reverso de "status" no faz parte de um sistema total de ritos, cujo efeito final seja promover a reconciliao entre os diferentes estratos da hierarquia estrutural. No estamos lidando com um sistema social integrado, no qual a estrutura penetrada pela "communitas". Por isso, vemos apenas acentuado o aspecto da reverso, com a esperana de que esse ser o estado ltimo do homem. No obstante, o exemplo instrutivo pelo fato de indicar que as religies que do importncia hierarquia, direta ou invertida, como atributo g e r a l da vida religiosa, geram-se nas camadas estruturalmente inferiores, num sistema scio-poltico que se baseia tanto na fora como no consenso. Seria conveniente tambm que se salientasse neste ponto que muitas dessas seitas sul-africanas, por pequenas que sejam, elaboraram hierarquias sacerdotais, e que com freqncia as mulheres ocupam importantes papis rituais.

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AS PSEUDO-HIERARQUIAS NO MILENARIANISMO DA MELANSIA Apesar de a literatura sobre os movimentos religiosos e semi-religiosos no apoiar completamente o ponto de vista que venho defendendo, persistindo muitos problemas e dificuldades, h todavia fortes indcios de que as formas religiosas que podem ser claramente atribudas s atividades inventivas de grupos ou categorias estruturalmente inferiores em pouco tempo assumam muitas das caractersticas externas das hierarquias. Tais hierarquias podem simplesmente inverter um escalonamento secular, ou substituir inteiramente o arcabouo secular, quer na estrutura eclesistica do movimento quer em suas crenas escatolgicas. Bom exemplo de um movimento que tentou copiar na forma de sua organizao, a estrutura social europia, pode ser encontrado em Road Belong Cargo (1964), de Peter Lawrence. Eis o que se encontra no programa de Yali, um dos profetas madang da Melansia:
"O povo devia renunciar a viver em vilarejos e reunir-se em grandes 'acampamentos', que teriam as casas construdas ao longo de ruas enfeitadas de flores e de arbustos. Cada 'acampamento' devia ter uma nova 'Casa de Repouso', que j no seria chamada haus kiap, mas haus yali. Seria utilizada por Yali, quando visitasse o povo na qualidade de Oficial de Administrao. Cada 'acampamento' deveria ter latrinas adequadas, e novas estradas seriam abertas, por toda a rea... Os velhos chefes deveriam ficar sob a direo de 'patrezinhos', os quais supervisionariam o trabalho de reconstruo e fiscalizariam a execuo das ordens de Yali. A monogamia seria imposta, as segundas esposas se divorciariam e se casariam com os homens solteiros" (p. 160).

Outros aspectos de limitao da estrutura administrativa e da cultura material e religiosa europia foram introduzidas neste "culto importado como carga". Muitos outros cultos importados tm caractersticas semelhantes de organizao e, em acrscimo, mantm a crena de que os europeus sero expulsos ou destrudos, e seus prprios ancestrais e profetas vivos os go-

vernaro dentro de uma estrutura pseudoburocrtica. No se pode garantir, porm, que a relao liminar religiosa de pseudo-hierarquias seja unicamente conseqncia da inferioridade estrutural. Estou convencido que o fator reverso de "status" sociais se correlaciona com a permanente inferioridade estrutural. Mas pode bem acontecer que hierarquias cerimoniais ou rituais complicadamente escalonadas representem a liminaridade de grupos seculares igualitrios, independentemente da categoria desses grupos na sociedade mais vasta. Podemos citar os maes, os rosa-cruzes, a mfia siciliana e outras espcies de sociedades e irmandades secretas, que possuem um cerimonial e um ritual complicado, geralmente com forte tonalidade religiosa. Os membros desses grupos, com freqncia, provm de comunidades scio-polticas formadas de pessoas de categoria semelhante, com valores igualitrios comuns e o nvel similar de consumo econmico. E' verdade que tambm nesses casos h um aspecto de reverso, pois a igualdade profana entra em contradio com a hierarquia liminar, mas isto no tanto uma reverso de ordem das categorias dentro de um sistema estrutural particular quanto a substituio de um tipo de sistema (um sistema hierrquico) por outro (um sistema igualitrio). Em alguns casos, como acontece com a mfia, a Ku Klux Klan e algumas sociedades secretas chinesas, a hierarquia liminar adquire valores e funes polticas instrumentais, e perde a qualidade fantasista de "representao teatral". Quando isto acontece, o carter dirigido e intencional de ao poltica ou quase militar poder encontrar a forma hierrquica adequada a suas necessidades de organizao. Eis por que se torna to importante, quando estudamos grupos como os maes e os bandos de motociclistas "Anjos do Inferno", da Califrnia, e os comparamos uns com os outros, especificar que fase alcanaram em seu ciclo de desenvolvimento e em que condies de ambiente social eles geralmente existem.

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ALGUNS EXEMPLOS MODERNOS DE REVERSO E DE PSEUDO-HIERARQUIA

Poder-se-ia objetar que nesses movimentos liminares se cria necessariamente a organizao hierrquica, medida que o nmero de membros aumenta. Contudo, vrios exemplos demonstram que esses movimentos possuem uma multiplicidade de funes mas pequeno nmero de membros. Por exemplo, Allan C. Speirs, da Universidade de Cornell (tese indita, 1966), descrevendo a comunidade dos aaronitas de Utah, seita separatista mrmon contando com pouco mais de duzentos membros, mostra como no entanto possuem "uma complicada estrutura hierrquica, um tanto semelhante do mormonismo.. . tendo posies como primeiro sumo sacerdote, segundo surno s a c e r d o t e , presidente, primeiro vice-presidente, segundo vice-presidente, sacerdotes das seces, bispos dos concilies, mestres e diconos" (p. 22). Uma outra espcie diferente de grupo, estudada em vrios artigos publicados e em manuscritos no publicados de autoria de Lincoln Keyser, da Universidade de R o c h e s t e r , so os Vice-Lordes conservadores um bando, "clube" ou "nao" de jovens negros adolescentes, de Chicago. O autor generosamente permitiu-me ter acesso pitoresca autobiografia de "Teddy", um dos lderes dos Vice-Lordes. Estes tm uma grande quantidade de atividades cerimoniais, com a "Cerimnia do Vinho", em lembrana de seus mortos e pelos que esto nas penitencirias. Nessas e noutras ocasies usam capas pretas e vermelhas, como vestimentas cerimoniais. O que particularmente surpreendente nos Vice-Lordes e outros bandos, como os Cobras Egpcias e os Capeles Imperiais, a natureza complexa e hierrquica de sua organizao. Por exemplo, os' Vice-Lordes dividemse em "velhos", "moos" e "pirralhos", dependendo do tempo de incorporao, e em ramos territoriais, cuja soma constitui a "Nao Vice-Lorde". "Teddy" descreve da seguinte maneira a estrutura da organizao do ramo de Santo Toms: "Todos, no grupo de Santo Toms,

quando comearam, tinham um tipo de posio. Os oiiciais eram presidente, vice-presidente, secretrio-tesoureiro, supremo conselheiro da guerra, conselheiro da guerra, e tambm tinham bedis" (p. 17). Em geral, o comportamento dos membros do bando era mais ou menos ocasional e igualitrio, quando no estavam brigando entre si pelo domnio do territrio. Mas sua estrutura nas situaes formais e de cerimnia constitua o oposto da igualitria. Havia uma ordem estrita de censura e os ramos que procuravam tornar-se indepen"ClUbe" r P rontamente Pstos
na

Outro exemplo contemporneo da tendncia, demonstrada, por c a te g o r i a s estruturalmente inferiores para possuir liminaridade hierrquica, dado pelos jovens motociclistas da Califrnia, conhecidos como os "Anjos do Inferno". Hunter S. Thompson (1966) julga que a maioria de seus membros so filhos de pessoas que chegaram Califrnia antes da Segunda Guerra Mundial, montanheses do sul dos Estados Unidos, trabalhadores agrcolas itinerantes de Oklahoma, do Arizona e habitantes das montanhas Appalaches (p. 202). Atualmente, os homens so "estivadores, empregados de armazns, choferes de caminhes, mecnicos, caixeiros e trabalhadores ocasionais em qualquer tipo de trabalho que pague e no requeira dedicao. Talvez um em dez tenha emprego fixo e salrio digno" (p. 73-74). Chamam-se a si mesmos os um-por-cento, "o um-por-eento que no se ajusta e no liga" (p. 13). Referem-se aos membros do mundo "direito" como "cidados", o que implica que eles no so. Eles fizeram a opo de situarse fora do sistema estrutural. No entanto, como os ViceLordes negros, constituem uma organizao formal, com cerimnias complexas de iniciao e graus de confraria simbolizados por e m b l e m a s . Tm um conjunto de estatutos, um comit executivo, formado por presidente, vice-presidente, secretrio, tesoureiro, bedis e reumoes formais, todas as semanas.
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Entre os "Anjos do Inferno", encontramos uma rplica da estrutura da organizao associativa secular, mais do que uma reverso de "status". Entretanto, existem elementos de reverso de "status" em suas cerimnias de iniciao, durante as quais os Anjos novatos devem trazer para o ritual calas e jaquetas novas e limpas, com a nica finalidade de mergulhlas em excrementos, urina e leo. Sua condio de sujos e de maltrapilhos, "amadurecida" at ao ponto da desintegrao, um sinal de "status", que inverte o padro "asseado e limpo" dos "cidados", aprisionados pelo "status" e pela estrutura. Mas, apesar das pseudo-hierarquias, tanto os Vice-Lordes quanto os Anjos sublinham os valores da "communitas". O Vice-Lorde "Teddy", por exemplo, disse a respeito do pblico em geral: "E ento eles logo disseram que tnhamos uma organizao. Mas tudo o que pensamos que somos apenas camaradas" (Keyser, 1966). Thompson tambm insiste com freqncia no carter da "unidade grupai" dos "Anjos do Inferno". Assim, a pseudo-estrutura no parece ser incomparvel com a real "communitas". Esses grupos brincam de estrutura e no se empenham seriamente na estrutura scio-econmica. Sua estrutura principalmente "expressiva", embora tenha aspectos instrumentais, Mas as estruturas expressivas desse tipo podem, em certas circunstncias, converter-se em estruturas pragmticas, como no caso das sociedades secretas chinesas, tal a sociedade Trade estudada no livro The Hung League (1866), de Gustave Schlegel. Igualmente, a estrutura cerimonial da sociedade Povo da Serra Leoa foi utilizada como base de uma organizao politicamente rebelde, na insurreio dos mendes, em 1898 (Little, 1965, passim).
AS RELIGIES DE HUMILDADE FUNDADAS POR PERSONALIDADES COM ALTO "STATUS"

Existem muitos exemplos de religies e de movimentos ideolgicos e ticos que foram fundados por pessoas de
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alto "status" estrutural, ou, quando no, pelo menos solidarnente respeitvel. De maneira bastante significativa, os ensinamentos bsicos desses fundadores esto cheios de referncias ao despojamento das distines mundanas, renncia propriedade, ao "status", etc., e muitos deles acentuam a identidade "espiritual" e "substancial" do homem e da mulher. Nesses e em vrios outros aspectos, a condio religiosa liminar que eles procuram realizar, em virtude da qual seus adeptos so apartados do mundo, tem pronunciadas afinidades com a que encontramos na liminaridade da recluso nos ritos tribais de crises da vida e, na verdade, em outros rituais de a s c e n s o de posio social. A degradao e a humildade no so consideradas a finalidade ltima dessas religies, mas simplesmente atributos da fase liminar pela qual os crentes devem passar na sua caminhada para os estados absolutos e finais do cu, do nirvana ou da utopia. Trata-se de um caso de "recouler pour mliux sautef". Quando as religies desse tipo se tornam populares e abrangem as massas estruturalmente inferiores, acontece freqentemente um significativo desligamento na direo da organizao hierrquica. Em certo sentido, essas hierarquias so "invertidas" pelo menos nos termos do sistema de crenas predominante pois o lder ou lderes so representados, tal o caso do papa, como "servo dos servos de Deus", e no como tiranos ou dspotas: O "status" adquirido mediante o despojamento da autoridade mundana possuda pela pessoa incumbida de um cargo, a qual se reveste de brandura, humildade e desvelo responsvel para com os membros da religio e at mesmo com relao a todos os homens. Entretanto, tal como acontece com as seitas separatistas sul-africanas, os cultos importados da Melansia, a Ordem de Aaro, os bandos de negros adolescentes e os "Anjos do Inferno", a expanso popular de uma religio ou de um grupo cerimonial leva-o com freqncia a tornar-se hierrquico. Em primeiro lugar, h o problema de organizar grande nmero de pessoas. Em segundo lugar e isto pode
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ser visto em pequenas seitas com hierarquias complexas a liminaridade dos pobres e dos fracos assume a exterioridade da estrutura secular e se mascara de poder de parentesco, conforme pudemos notar anteriormente, ao estudar os disfarces animais e monstruosos.

Buda
Como exemplos de fundadores religiosos estruturalmente superiores ou bem estabelecidos, que pregaram os valores da humildade e da "communitas", poder-se-ia citar Buda, So Francisco, Tolstoi e Gandhi. O caso de Jesus menos ntido: enquanto Mateus e Lucas traam a genealogia de seu pai Jos at o rei Davi, embora a importncia e a posio social de um carpinteiro sejam elevadas em muitas sociedades rsticas, Jesus habitualmente tido como "um homem do povo". Conta-se que o pai de Buda era um importante chefe da tribo dos sakiyas, e sua me Maha Maya era filha de um rei vizinho numa regio ao sudeste do Himalaia. De acordo com o relato admitido, Siddhrta, nome pelo qual era o prncipe conhecido, viveu uma vida abrigada durante vinte e nove anos atrs das paredes protetoras do palcio real, espera de suceder ao pai. Em seguida, encontramos a clebre narrativa de suas trs aventuras no mundo alm dos portes do palcio, com o cocheir Channa, durante as quais deparou sucessivamente com um velho consumido pelo trabalho, um leproso e um cadver em decomposio, e viu pela primeira vez a sina dos indivduos estruturalmente inferiores. Aps sua primeira experincia com a morte, quando voltou ao palcio, ouviu o som de msica, celebrando a chegada de seu primognito -e herdeiro, segurana da continuidade estrutural da linhagem. Longe de ficar satisfeito, sentiu-se perturbado por esta nova obrigao no domnio da autoridade e do poder. Juntamente com Channa, ele saiu s escondidas do palcio e vagueou por muitos anos entre o povo comum da ndia, apren-

dendo muito sobre a realidade do sistema de castas. Durante algum tempo tornou-se um severo asceta, com cinco discpulos. Mas esta modalidade de estrutura tambm no o satisfez. Quando comeou sua clebre meditao de quarenta dias sob a rvore Bo, j havia modificado consideravelmente os rigores da vida religiosa. Tendo alcanado a iluminao, passou os ltimos quarenta e cinco anos de vida ensinando aquilo que era realmente uma simples lio de submisso e de humildade, pregada a todas as pessoas, sem distino de raa, classe, sexo ou idade. No pregou sua doutrina para benefcio de uma nica classe ou casta, e mesmo o mais baixo dos prias poderia considerar-se seu discpulo, conforme s vezes aconteceu. Em Buda, temos um caso clssico de um fundador religioso "estruturalmente" bem d o t a d o que sofreu a iniciao na "communitas" mediante o despojamento, e nivelamento, e a aceitao do comportamento dos fraeos e dos pobres. Na prpria ndia, podem ser citados muitos exemplos mais de superiores na ordem da estrutura que renunciaram riqueza e posio e pregaram a pobreza santa, como Caitanya (veja-se o captulo 4), Mahavira, o fundador do jainismo, contemporneo mais velho de Buda, e Nanak, o fundador do siquismo. Gandhi Na poca atual, tivemos o comovente espetculo da vida e do martrio de Mohandas Karamchand Gandhi, que foi tanto um lder religioso quanto um lder poltico. Com os demais j mencionados, Gandhi provinha de um setor respeitvel da hierarquia social. Ele prprio menciona em sua autobiografia (1948): "Os Gandhis... por trs geraes desde meu av... tm sido primeiros ministros em diversos Estados Kathiawad" (p. 11). Seu pai Kaba Gandhi foi, durante algum tempo, primeiro ministro em Rajkot e, em seguida, em Vankaner. Gandhi estudou Direito em Londres e depois foi para a frica
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do Sul exercer a profisso. Mas bem cedo renunciou riqueza e posio para liderar os indianos da frica do Sul na luta pela obteno de mais justia, transformando a doutrina da no-violncia e da "fora da verdade" num poderoso instrumento econmico e poltico, A carreira posterior de Gandhi como principal lder do movimento pela independncia nacional da ndia bem conhecido de todos. Aqui gostaria apenas de citar alguns pensamentos r e t i r a d o s de sua autobiografia (1948) sobre as virtudes do despojamento da propriedade e da deciso do indivduo tornar-se igual a todos. Gandhi foi sempre devotado ao grande guia espiritual do hindusmo, o Bhagavad Gita, e em suas crises espirituais costumava r e c o r r e r a "este dicionrio de conduta", procura de solues para as dificuldades interiores.
"Palavras como aparigraha (ausncia de propriedade) e sambhava (equanimidade) me atormentavam. Como preservar e cultivar a equanimidade, eis a questo. Como se poderia tratar da mesma maneira oficiais insultadores, insolentes e corruptos, colaboradores de ontem promovendo uma oposio sem sentido, e homens que sempre tinham sido bons? Como poderia algum despojar-se de todas as posses? No seria o prprio corpo uma posse suficiente? No seriam posses a esposa e os filhos? Deveria eu destruir todas as estantes de livros que possua? Deveria renunciar a tudo o que possua e segui-FO? Imediata veio a resposta: no poderia segui-FO a no ser que renunciasse a tudo o que eu tinha" (p. 323).

nistrao). Gandhi, fiel sua nova convico, deixou que sua aplice de seguro caducasse, desde o momento em que se certificou de que "Deus, que criou minha mulher e meus fhos, assim como eu prprio, tomaria conta deles" (p. 324).

Os Lderes Cristos
Na tradio crist, tambm houve inumerveis fundadores de ordens e seitas religiosas originrias da metade superior do cone social e no entanto pregavam o estilo de liminaridade das crises da vida como a via de salvao. Numa lista mnima, poder-se-ia citar os santos Bento, Francisco, Domingos, Clara e Teresa de vila, na esfera catlica; os wesleys, com a sua "vida modesta e pensamento elevado", George Fox, fundador dos ququeres, e (para citar um exemplo norte-americano) Alexandre Campbell, lder dos Discpulos de Cristo, que procurou restaurar a primitiva cristandade e, em especial, as primitivas condies da fraternidade crist, na esfera protestante. Esses lderes protestantes procediam de slidas origens de classe mdia; apesar disto, procuraram desenvolver em seus adeptos um estilo de vida simples, despretensiosa, sem distino de posies sociais mundanas. O fato desses movimentos posteriormente terem sucumbido ao "mundo" e na realidade, conforme demonstra Weber, terem nele prosperado de nenhum modo lhes impugna as intenes originais. Efetivamente, segundo vimos, o curso regular de tais movimentos consiste em reduzir a "communitas" de um estado a uma fase entre exerccios de posies, numa estrutura sempre em desenvolvimento. Tolstoi Gandhi foi fortemente influenciado no s por alguns aspectos do hindusmo, mas tambm pelas palavras e pela obra do grande anarquista e romancista cristo
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Finalmente, e em parte devido ao estudo da lei inglesa (principalmente as anlises de Snell sobre as mximas da eqidade), Gandhi chegou a compreender que o ensinamento mais profundo da no-possesso significava que todos quantos desejavam a salvao "deveriam agir como um depositrio de bens, o qual, mesmo dirigindo grandes riquezas, no considera como sua nem a parcela mais nfima delas" (p. 324). Foi assim, embora por um caminho diferente, que Gandhi chegou mesma concluso da Igreja Catlica no exame do problema da pobreza franciscana: foi feita uma distino jurdica entre dominium (posse) e usus (admi238

Leo Tolstoi. "The Kingdon of God is Within You" escreveu Gandhi (1948), "dominou-me, deixando uma impresso duradoura em mim" (p. 172). Tolstoi, que era um nobre rico e um famoso romancista, atravessou uma crise religiosa quando tinha cerca de cinqenta anos. Durante esta crise chegou mesmo a considerar o suicdio uma fuga da falta de sentido e da superficialidade da vida entre a classe alta, os intelectuais e os estetas. Foi levado ento a pensar que "a fim de compreender a vida, preciso compreender no uma vida excepcional como a nossa, que somos parasitas na vida, mas a vida do povo simples e trabalhador aqueles que fazem a vida e o significado que eles lhe atribuem. O povo trabalhador mais simples ao redor de mim era o povo russo, e eu me voltei para ele e para o significado que davam vida. Este significado, se possvel traduzilo em palavras, o seguinte: Todo homem veio a este mundo pela vontade de Deus. E Deus fez o homem de tal maneira que todo homem pode destruir sua alma ou salv-la. A finalidade do homem na vida salvar a alma, e para salvar a alma deve viver 'religiosamente' e para viver 'religiosamente' deve renunciar a todos os prazeres da vida, trabalhar, humilhar-se, sofrer e ser compassivo" (1940, p. 67). Como todos sabem, Tolstoi fez ingentes esforos para reproduzir suas crenas em sua vida, e viveu como um campons at o fim de seus dias. ALGUNS PROBLEMAS DE ELEVAO E DE REVERSO J foi dito o bastante para sublinhar, por um lado, a afinidade existente entre a liminaridade dos rituais de elevao de "status" e os ensinamentos religiosos dos profetas, santos e mestres estruturalmente superiores, e por outro lado a afinidade existente entre a liminaridade dos rituais de reverso de "status", tanto os determinados pelo calendrio quanto os ligados a crises naturais, e as crenas e prticas religiosas de movimentos domi-

nados pelos indivduos estruturalmente inferiores. Sem rebuos, podemos dizer que a liminaridade dos fortes a fraqueza, e a dos fracos a fora. Ou ainda, a liminaridade dos ricos e da nobreza a pobreza e o pauperismo, a da pobreza a ostentao e a pseudohierarquia. Evidentemente h aqui muitos problemas a serem considerados. Por que ser, por exemplo, que por intervalos durante a ocupao de suas posies e situaes scio-econmicas culturalmente definidas, os homens, as mulheres e as crianas devem em alguns casos ser obrigados, e em outros casos escolher, agir e sentir de modo oposto, ou diferente, dos seus comportamentos padronizados? Sofreriam eles todas estas penitncias e reverses a p e n a s por tdio, como uma variegada alterao das rotinas dirias, ou o fazem em resposta a impulsos sexuais reprimidos ou agressivos ressurgentes, ou ainda para satisfazer certas necessidades cognoscitivas de discriminao binaria, ou enfim por algum outro conjunto de razes? Como todos os rituais, os de humildade e os de hierarquia so imensamente complexos e repercutem em muitas dimenses. Contudo, talvez um importante indcio para compreend-los se encontre na distino, anteriormente feita entre as duas modalidades de correlao social, denominadas "communitas" e estrutura. Aqueles que sentem o peso dos cargos, que por nascimento ou por conquista vieram a ocupar posies de mando na estrutura, podem achar que os rituais e as crenas religiosas que insistem no despojamento ou na dissoluo dos laos e obrigaes estruturais constituem o que muitas religies chamam "libertao". Pode acontecer que tal libertao seja contrabalanada por provocaes, penitncias e outros sofrimentos. No entanto, tais nus fsicos podem ser preferveis aos nus mentais de dar e de receber ordens, e de ter de agir sempre sob a mscara de uma funo ou de uma posio social. Por outro lado, essa liminaridade pode tambm, quando aparece nos "rifes de passage", humilhar o nefito exatamente porque ele ser exaltado, na ordem da estrutura,

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ao final dos ritos. As provaes e as penitncias podem portanto servir a f u n e s antitticas, ou punindo o nefito pelo regozijo com a liberdade liminar ou temperando-o para as incumbncias de um cargo ainda mais mais alto, que confere maiores privilgios, mas tambm obrigaes mais severas. Tal ambigidade no deve agora surpreender-nos, porque uma propriedade de todos os processos e instituies predominantemente liminares. Mas, enquanto os indivduos estruturalmente bem dotados buscam a libertao, os inferiores na estrutura podem procurar, em sua liminaridade, um envolvimento mais profundo numa estrutura que, mesmo sendo apenas fantstica e fictcia, lhes possibilita entretanto experimentar, por um breve perodo de tempo legitimada, uma espcie diferente de "libertao" de um diferente tipo de destino. Podem agora passar por senhores, "pavonear-se e encarar os outros de face, alm do mais". Muito freqentemente o alvo de seus golpes e descomposturas so as prprias pessoas a quem devem normalmente deferncia e obedincia. Esses dois tipos de rituais reforam a estrutura. No primeiro caso, o sistema de posies sociais no contestado. Os hiatos entre as posies, os interstcios so necesrios estrutura. Se no houvesse intervalos no existiria estrutura, sendo precisamente os hiatos que se reafirmam nesse tipo de liminaridade. A estrutura da equao inteira depende dos sinais positivos e dos negativos. Assim, a humildade refora um orgulho legtimo da posio, a pobreza afirma a riqueza e a pacincia mantm a virilidade e a sade. Vimos, por outro lado, como a reverso das posies sociais no significa "anomia", mas simplesmente uma nova perspectiva a partir da qual se pode observar a estrutura. A desordem da reverso pode mesmo dar uma cmica vivacidade a este ponto de vista ritual. Se a liminaridade dos ritos de crises da vida pode ser, talvez audaciosamente, comparada tragdia pois ambas encerram situaes de humilhao, despojamento e dor a liminaridade de reverso de posies pode ser comparada comdia,
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porquanto ambas implicam zombaria e inverso, mas no destruio, das regras estruturais dos fervorosos adeptos delas. Alm disso, poderamos considerar a psicopatologia desses tipos rituais, a qual conteria, no primeiro caso, um conjunto masoquista de atitudes para os nefitos, e no segundo um componente sdico. Quanto conexo com a "communitas", existem pessoas que, no exerccio da autoridade diria ou como representante dos principais agrupamentos estruturais, tm poucas oportunidades de lidar com os companheiros como indivduos concretos e como iguais. Talvez na liminaridade das crises da vida e nas mudanas de posio social, encontrem oportunidade de despojar-se de todos os sinais externos e sentimentos internos de distino de situao social e fundir-se com as massas, ou, mesmo ser, pelo menos simbolicamente, considerados como servos das massas. Quanto aos que se encontram normalmente no fundo da organizao social em que a posio determinada pela conscincia da categoria da renda, etc., e que experimentam a camaradagem e a igualdade dos subordinados reunidos, a liminaridade de reverso das posies pode oferecer-lhe uma oportunidade de escaparem da "communitas" da necessidade (que por conseguinte inautntica), entrando numa pseudo-estrutura, onde todas as extravagncias de comportamento so possveis. Contudo, curiosamente esses falsos portadores da "communitas" so capazes, por meio de pilhrias e da zombaria, de infundir a "communitas" na sociedade inteira. Pois tambm aqui no h somente reverso, mas nivelamento, uma vez que o ocupante de cada posio social com excesso de direitos intimidado por outro indivduo com deficincia de direitos. Chega-se a uma espcie de termo mdio social, ou algo como o ponto-morto na caixa de mudana, a partir do qual possvel tomar diferentes direes, em diferentes velocidades, numa .nova partida de movimento.os tipos de ritos que consideramos parecem Ambos estar ligados a sistemas cclicos repetidos de relaes sociais mltiplas. Afigura-se-nos haver aqui uma ntima

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relao entre uma estrutura institucionalizada e com lenta variao e um modo particular de "communitas", que tende a ser localizado nesse tipo determinado de estrutura. Sem dvida, nas grandes e complexas sociedades, com alto grau de especializao e de diviso de trabalho, com muitos elos associativos dos interesses individuais e geral enfraquecimento dos estreitos laos entre grupos, a situao provavelmente ser muito diferente. Num esforo para sentir a "communitas", os indivduos procuraro tornar-se membros de pretensos movimentos ideolgicos universais, cuja divisa bem poderia ser a frase de Tom Paine: "o mundo a minha aldeia". Ou ento iro coincidir com os pequenos grupos de "marginalizados", como as comunidades dos "hippies" ou dos "diggers", de So Francisco e de Nova Iorque, onde "a aldeia [de Greenwich ou que outro nome tenha] o meu mundo". A dificuldade que esses grupos at agora no conseguiram resolver que a "communitas" tribal representa o complemento e o reverso da estrutura tribal, e, ao contrrio dos utopistas do Novo Mundo, dos sculos XVIII e XIX, no criaram ainda uma estrutura capaz de manter a ordem social e econmica por longos perodos de tempo. A flexibilidade e a mobilidade das relaes sociais nas modernas sociedades industriais, entretanto, podero oferecer melhores condies para o surgimento da "communitas" existencial, quanto mais no seja, somente em encontros transitrios e inumerveis, do que qualquer forma anterior de ordem social. E' provvel que seja isto que Walt Whitman quis dizer, quando escreveu:
Eu canto um algum, uma simples pessoa separada, No entanto pronuncio a palavra Democrtico, a palavra EnMasse.

termo to controvertido - uma "necessidade humana de participar de ambas as modalidades As pessoa.^ faminfas de" uma delas em suas atmdades funooa

a penitncias para conquist-la.

Um comentrio final: a sociedade (societas) parece ser mais um processo do que urna coisa, um processo dialtico com sucessivas fases de estrutura e de "communitas". Pareceria haver se lcito empregar um
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