Cópia de MELLO - Suzy - de - As - Vilas - Do - Ouro

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As vilas do ooro

"Eu vi a cidade s6bria


Medida na eternidade,
Severa se confrontando
A cinza das ampulhetas,
Sem outro ornato apurado
AJem da pedra do chiio.
Eu vi a cidade barroca
Vivendo da luz do ceu. "

A arquitetura nao pode, porem, ser dissociada do es-


pa~o fisico no qual se insere e se organiza - '0 aglomerado ur-
bano, em especial - que the confere peculiares condiciona-
mentos e especificos determinantes que se vinculam a variados
aspectos como a topografia dos locais e a predominancia das
atividades economicas neles exercida, alem de - na epoca do
Brasil Colonia - se prender, ainda, a criterios entao vigentes
para as urbaniza~oes. Entre esses criterios incluiam-se, por
exemplo, a preferencia pelos sitios mais elevados que favore-
ciam, naturalmente, melhores condir;oes defensivas.
Em muitos casos, porem, a preocupa<;ao de defesa era
tambem ampliada com a construr;ao de fortes e fortalezas,
alem de outros elementos militares como baluartes e baterias,
e por muros que nao s6 completavam os esquemas estrategicos
daquele periodo como estabeleciam uma diferencia~3oo mais ciada. Veda-se aos indios residirem alL Os negros devem fica •.
evidente entre a "cidade" eo "campo", t300bem explicada por fora dos muros. Cidade se chama apenas a parte murada.
Nelson Omegna: "A cidade colonial, algumas vezes, come- Alem dos baluartes ficam os bairros, as aldeias, os arraiais".J
~ava por ser urn espa<;o vazio em redor do qual se enrolava a Por outro lado, os principios de urbaniza~3oo classica ado-
muralha ou se cavava 0 valado ou se alteavam os baluartes. Se tados nos periodos quinhentista e seiscentista do desenvolvi-
tinham, num dado e efemero momenta, urn sentido tatico de mento das Americas, em geral, recomendavam a ado~3oo de
defesa e prote~3oo contra investidas inimigas, tiveram por mais tra~ados regulares para as cidades 0 que, alias, era feito pela
tempo os muros uma certa significa~3oo ecologica. A cidade, grande maioria dos colonizadores europeus em todos os seus
sem nada que grifasse 0 seu sentido urbano, precisava ser uma estabelecimentos nas,mais divers as areas do mundo. "A poli-
area diferente do campo".1 tica urbanizadora colonial espanhola seria mesmo codificada,
E obvio que a concep~3oo da defesa urbana por muros era com ampla minucia, nas 'Leyes de India' constituindo-se
da Europa medieval e nem sempre podia ser bem executada numa das fontes mais perfeitas de informa<;ao e orienta~3oo
nas distantes colonias da America onde, inclusive, escassea- sobre 0 urbanismo formal".4
yam tanto a m3oo-de-obra especializada quanto maiores preo- Entretanto, ainda que procurassem manter esquemas de
cupa~oes com a solidez das constru~oes apesar dos ataques de certa regularidade nas suas implanta~oes, as cidades funda-
piratas aos portos - bastante constantes e perigosos - bem das no Brasil pelos portugueses tampouco se apegam a disci-
como as incursoes dos indios, igualmente indesejaveis. Assim, plina das suas congeneres na America Espanhola. E 0 que
e muito compreensivel que, no Brasil, os muros defensivos observa corretamente Silva Telles ao analisar a planta de Sal-
assumissem outras fun~oes e se investissem de novos signifi- vador, a primeira capital do Brasil:
cados. "Salvador, no entanto, e a maioria das vilas e cidades que
"Ha que se dar imporHlncia a esse contorno com 0 qual a se fizeram no Brasil, nos seculos XVI e XVII, a despeito de se
cidade defende sobretudo as proprias convic~oes da sua fun- localizarem a fei~3oOdas cidades portuguesas de origem me-
<;300e fei~3oourbanas. A cren~a no papel estrategico dos mu- dieval, em sitios elevados, a beira-mar, ou a margem de rios
ros, os portugueses integrados na obra da coloniza~3oo ja n300a navegaveis, adotaram pIanos regulares, influenciados pelas
tinham. 0 desleixo com que edificavam os baluartes deu mo- tra~as propostas pelos arquitetos renascentistas. N300chega-
tivo a critic as que mereceram de Afonso de Albuquerque a ram essas cidades a obedecer a tramas rigidas, como ocorria
sabia resposta: "Estes muros assim como 0 vedes, se os guarda- com as hispano-americanas, que seguiram monotonamente as
rem com verdade e Justi~a S300t300fortes que sobej3oo; mas se regras ditadas pelas 'Leyes de los Reynos de las Indias'; antes,
nestas terras se n300guardar verdade e humanidade, a soberba adaptaram-se ao relevo e as condi<;oes locais, embora ado-
nos derrubara quantos muros tivermos, por mais fortes que tando regularidades nas pra~as e nos tra~ados das ruas. As-
sejam." (. .. ) "0 sentido tatico dos muros, se houve, teria sido sim, Salvador foi localizada no alto de uma escarpa abrupta
em fase muito transitoria. ( ... ) 0 muro importava mais como sobre uma fimbria litoranea, on de ficavam 0 porto e 0 co-
marca urbanistica." 2 mercio.
Apesar de tudo, porem, existiram muros nas principais No entanto, como pode ser visto na planta inserida no
cidades brasileiras dos seculos XVI e XVII e "a area que 0 'Livro que da Raz300 ao Estado do Brasil', de 1612, 0 tra~ado
murp define e giza se reserva as pessoas mais categorizadas. de seus logradouros, ruas e pra~as, tanto os da area mais an-
As classes de mais prestigio moram na parte defendida e poli- tiga - provavelmente do plano de Luiz Dias -, como os da

(3) Omegna, Nelson. Op. cit., p. 18.


p.16. (4) Goulart Reis Filho, Nestor. EvolUl;iio Urbana do Brasil. Sao Paulo. Pin·
(2) Omegna, Nelson. Op. cit., p. 16-7. neira; Ed. da Universidade de Sao Paulo, 1968, p. 128.
area do seu primeiro desenvolvimento, obedecia a certa orde- mais, se resolve em urbaniza~5es consideraveis, polarizadas
na~ao, com ruas cruzando-se em ortogonal. A regularidade pelo comercio que canaliza para si 0 ouro que milhares de
nao era perfeita, certamente pela necessidade que houve, de a faiscado!"es apuram cada dia. Em toda a historia a cidade
cidade se adaptar a
configura~ao topografica da cumeada da sempre foi 0 centro, a mola, a dinamica do progresso, em
eleva~ao." 5 oposi~ao ao campo, estatico e arcaizante. Nas Minas instala-
Ainda que diversos outros aspectos ligados aos primor- se uma civiliza~ao eminentemente urbana, bastante diferen-
dios da urbaniza~ao no Brasil e que se repetiram, com algu- ciada daquela agraria, que se estendia pelo litoral brasileiro". 7
mas varia~5es, praticamente em toda a area colonizada, pu- Essa urbaniza~ao de impacto, praticamente inedita ate
dessem ser aqui indicados como constantes relativas do esta- entao no Brasil, pode ser avaliada pelas indica~5es tambem
belecimento das primeiras aglomera~5es definitivas, 0 quadro coletadas por Sylvio de Vasconcellos: "Nenhuma regiao da co-
esbo~ado ja e mais que suficiente para indicar a especifici- lonia beneficiou-se tanto de tamanha e tao rapida povoa~ao
dade da implanta~ao das vilas no territorio mineiro, no qual, quanto as Minas. Basta notar que de 1500 a 1822 for am cria-
alem dos condicionamentos basicos enumerados anterior- das, em to do 0 Brasil, 210 vilas, das quais so na regiao auri-
mente, tambem ocorrem caracterlsticas muito proprias quan- fera 159. Setenta por cento das povoa~5es em cerca de 40% do
a
to sua tipologia urbana. tempo considerado. Enquanto,_por volta de 1800, Sao Paulo
dispunha de pouco mais de 100.000 habitantes, as Minas se
apresentavam com cerca de 500.000. ( ... ) .por volta de 1750 .
~todo 0 territorio portugues povoava-se de 2.900.000 habitan-
A urbaniza~ao das vilas do ouro tes, 200.000 residindo em Lisboa. Pela mesma epoca mais ou
menos, Yila Rica acolhia perto de 100.000, metade da popu-
la~ao da capital do Reino, eo dobro da sede do Vice-Reinado
Diogo de Vasconcellos escreveu que "as Minas, porem, ~stabefecido no Rio,:.8
nao tiveram infancia. Nasceram como a deusa de Atenas, ja A prevalencia das concentra~5es de carater urbano nas
feitas e armadas".6 Se essa afirmativa e valida para 0 povoa- Minas Geraise; portanto, urn fenomeno resultante da fun~ao
mento, que trouxe para a regiao gente de todos os tipos e de explorativa que domina, desde 0 inicio, a ocupa~ao da regiao.
todas as origens em curto periodo de tempo, tambem e perfei- Se as primeiras cidades brasileiras visam a fixa~ao de "urn
tamente adequada para caracterizar 0 aspecto particular- ponto estrategico no mapa da conquista'" e sao as chamadas
mente urbano das aglomera~5es que marcam 0 ciclo do ouro "cidades de ocupa~ao", a elas vao se seguir os nucleos de po-
desde os seus primordios. lariza~ao das "popula~5es dispersas dos agricultores e dar-
Pois, alem das vantagens politic as e fiscais que resulta- lhes os servi~os de policia, justi~a, religiao e mercado, concen-
yam da nipida cria~ao das vilas, permitindo aos portugueses trados na area urbana" e que se constituem em "vilas agri-
mais facil controle dos habitantes e maiores facilidades na ar- colas ou domestic as" . 9
recada~ao dos impostos, e evidente que for am as minera~5es No territorio mineiro, pelo contrario, "toda uma rede ur-
que promoveram "0 adensamento demografico da regiao e, bana foi sendo formada, ao longo dos caminhos e estradas,
conseqiientemente, da colonia, adensamento que, alem do nas encruzilhadas ou nas travessias de cursos d'agua, a
mar-
gem dos locais onde 0 aura e 0 diamante eram encontrados". 10

(5) Silva Telles, Augusto Carlos da. "A Ocupa9ao do Territ6rio e a Trama (7) Vasconcellos, Sylvio de. Op. cit., p. 28.
Urbana". Revista Barroco, Belo Horizonte (10), 1978/9, p. 43 e ss. (8) Vasconcellos, Sylvio de. Op. cit., p. 34-5.
(6) Vasconcellos, Diogo de. Historia Antiga das Minas Gerais. Rio de Ja- (9) Omegna, Nelson. Op. cit., p. 65-7.
neiro, Imprensa Nacional, 1948, 2? v., p. 188. (10) Silva Telles, Augusto Carlos da. Op. cit., p. 46.
o ciclo do aura e, portanto, urbano por excelencia e, a "E os primeiros povoados chamam-se 'arraiais' - nome
fun~ao explorativa vai logo se sobrepor a comercial e, em se- que em Portugal se da ao acampamento, a reuniao festiva do
quencia, ados transportes, que a complementa naturalmen- povo, por ocasHio das romarias." 14 Esses arraiais, nao muito
te," tanto no caso de escoamento da produ~ao extrativa quan- distantes entre si, porem entao separados por dens as matas,
to no recebimento de generos e mercadorias indispensaveis a situavam-se nas areas da explora~ao aurlfera e tinham tam-
vida humana, mesmo nos ambientes de maior rusticidade bern, como ponto comum, a proximidade indispensavel do ca-
como eram os das primeiras decadas do seculo XVIII nas minho ou da "estrada". Esse foi 0 elemento chave das fixal;oes
Minas. iniciais, seguin do meias encostas ou lanl;ando-se de cumeada
E, assim, importante notar que existiu aqui praticamente ja que 0 terreno era sempre marcado pela acidentada topo-
urn equilibrio de for~as que, a par de determinar uma ime- grafia das areas ricas em dep6sitos aurlferos.
diata urbaniza~ao, tambem estabeleceu uma outra interes- Esse intimo relacionamento com os caminhos, alem de
sante tipicidade diretamente vinculada a situa~ao dos primei- acentuar a conformal;ao longilinea das povoa~oes, dava-Ihes
ros nucleos estaveis, implantados nos "aforamentos", ou se- outra caracteristica: "suas ruas sao sempre antigas estradas.
ja, terrenos cedidos por concessao mediante 0 pagamento de Por isso mesmo, foram a principio cham ad as de rua da Pra-
imposto anual, e que se refere tanto a sua proximidade das l;a, da Matriz, da Camara, etc. Nao porque nelas se localizas-
catas e das lavras quanto a sua mais direta liga~ao com os sem est as edifical;oes, mas porque a elas conduziam. Por isso
precarios caminhos do comercio e dos transportes. mesmo ainda hoje os habitantes da zona rural tratam a cidade
Por tais motivos, Sylvio de Vasconcellos resume exem- como 'a rua', no singular, como uma reminiscencia do trecho
plarmente estas caracteristicas das povoa~oes mineiras ao es- unico da estrada on de se construiam estabelecimentos comer-
crever que "sao elas determinadas espontaneamente pela mi- ciais. 'Vou a rua fazer compras', dizem. E, realmente, a rua
nera~ao; consolidam-se pelo comercio e desenvolvem-se pelo quase s6 vao com essa finalidade. A cidade e 0 entreposto, 0
artesanato" .12 local de suprimento e das trocas comerciais. E ainda por isso
Essa precisa observa~ao, porem, inclui urn outro dado de que, ao contrario das povoal;oes litoraneas, onde as igrejas
grande significa~ao no quadro urbano das Minas e que e, jus- colocam-se no interior das quadras, tangenciando os logra-
tamente, mais urn de seus importantes e peculiares aspectos: douros publicos, em Minas os templos sao erguidos no centro
a forma~ao espontanea dos aglomerados nas regioes. Efetiva- de largos, circundados por pra~as ou ruas e independentes das
mente, em regra geral que e confirmada por duas unicas ex- quadras urbanas deles vizinhas. Em muitos casos inserem-se
ce~oes, as vilas do aura nunca obedecem aos tra~ados regula- em terra~os definidos por bifurca~ao de estradas ou em outei-
dores que, mesmo de forma pouco rigida, norteavam 0 esta- ros a cavaleiro delas. Essa solul;ao, de certo modo, valoriza
belecimento dos demais nucleos coloniais no Brasil. Pelo con- bastante os edificios religiosos, acrescentando as povoal;oes
trario, vao os primeiros arraiais, que surgem "como amparo urn incipiente paisagismo e bons efeitos de perspectiva, nor-
direto ao trabalho das lavras" /3 se definir como extensoes dos malmente ausentes das cidades litoraneas. Por sua vez, a con-
caminhos e tomar, quase sempre, uma configura~ao linear em figura~ao espontanea e longilinea da as povoal;oes uma confi-
total oposi~ao as organiza~oes urbanas radiais ou nucleares gural;ao mais organica, uma adaptal;ao maior as condil;oes do
que 0 gosto e a tradi~ao portugueses repetiriam no Brasil co- terreno e urn agenciamento natural bastante diverso do racio-
lonial. nal partido preconizado pelas 'Leis das Indias'. 0 tral;ado fica
mais dinamico e, frequentemente, permite arranjos plasti-
(11) Boltshauser, Joao. Nop3es de Evo/ur;iio Urbana nas Americas. Belo Horj- cos, que funcionam como cenarios, em perfeita harmonia com
zonte, Edifi:oesEscola de Arquitetura da UFMG, 1959, I? v., p. 13.
(12) Vasconcellos, Sylviode. Gp. cit., p. 84.
(13) Latif, Miran de Barros. As Minas Gerais. Rio de Janeiro, Agir, 1960,
p.109.
a paisagem circundante. 0 povoado cresce como the convem, veitar ao maXImo. Fazem-se minimas as testadas, compri-
espicha e encolhe conforme seu estagio de desenvolvimento, mindo as frentes rueiras das moradias". 16
ameniza os aclives com tra.;ados coleantes, absorve os terrenos Entao, e facil verificar que essa rua - prolongamento da
mais favoniveis e rejeita os improprios, participando da vida estrada - acaba por ter tambem urn outro senti do que Sylvio
de seus habitantes como uma entidade tambem viva e livre das de Vasconcellos igualmente captou e que e muito interessante:
conten.;oes determinadas por regras fixas ou tentativas de ra- as vilas do ouro nao resultam de interrup.;oes do transito -
cionaliza.;ao divorciadas da realidade" .15 como e 0 caso dos portos, maritimos ou fluviais, por exemplo
Ainda de acordo com essa interpreta.;ao do caminho ou - mas, antes, de sua continuidade. E por isso que as vilas
estrada como eixo fundamental e elemento demarcador basico mineiras podem ser mesmo confundidas com "a propria es-
dos povoados mineradores decorre uma indica.;ao que, em- trada, conduzem-na, facilitam-na, deixam-se por ela penetrar
bora usual nos tempos coloniais, em Minas adquire maior sig- livremente, apenas emoldurando-as. 0 dificil e deixar de per-
nifica.;ao e que e a denomina.;ao de "Rua Direita" a uma via corre-Ias por inteiro, pois sao a continuidade natural das es-
que, freqiientemente, se lan.;a em sinuoso desenvolvimento. E tradas que as atingem. So contornos distantes as podem evitar
que, entao, nao se trata de urn tta.;ado reto mas, antes, da pois que, alem do mais, plantadas em relevos dificeis, seus
liga.;ao mais direta entre pontos ou areas de importancia na acessos sao aqueles unicos que a experiencia encontrou. Nao
aglomera.;ao. A correta acep.;ao da palavra e, por corruptela, traduzem, assim, solu.;oes de continuidade de trafego; antes,
alterada dando uma no.;ao diversa daquela que, efetivamertte, sua propria e dinamica continuidade". 17 -

lhe corresponde, fato que a muitos passa despercebido. A insistencia na acentua.;ao desse ponto se justifica de
forma especial por dele decorrer urn outro aspecto, tambem
Tambem, nos acidentados terrenos das vilas do ouro, dis-
muito peculiar a urbaniza.;ao mineira setecentista embora
punham-se os arruamentos da forma mais logica, procurando
atualmente ocorra nao so no Brasil como em to do 0 mundo: as
seguir de modo muito natural as curvas de nivel que fadlita-
vilas do ouro, resultantes da interliga.;ao dos arraiais e de sua
yam 0 acesso das mulas e escravos e cansavam menos seus
espontanea ~mexa.;ao com 0 decorrer do tempo, configuram
donos, mas 0 que nem sempre era conseguido.
exatamente uma situa.;ao urbana que hoje e conhecida como
Por outro lado, a par de tantas solu.;oes peculiares, per- "conurba.;ao", ou seja, uma cidade formada pela liga.;ao de
maneceu nas Minas uma grande semelhan.;a com urn aspecto diversos nucleos proximos.
comum tanto a Portugal quanto as demais regioes do Brasil Assim, fica claro que "a vila do ouro antecipava 0 feno-
colonial - 0 gregarismo - embora aqui fossem diferentes as me no que so viria a ser verificado com freqiiencia apos as
motiva.;oes como explica Sylvio de Vasconcellos: "Nas urbani- grandes concentra.;oes industriais. Ficava marcado nos pri-
za.;oes lusitanas e brasileiras junto ao mar, as constru.;oes se mordios do seculo XVIII, em Minas Gerais, portanto, 0 exem-
apertam umas as outras, em consequencia da exigiiidade das plo e a experiencia definitiva da aglomera.;ao urbana intima-
areas que lhes sao reservadas no interior das fortifica.;oes ou mente integrada a atividade basica exercida no chao sobre 0
de delimita.;oes favoraveis a defesa. Nas mineiras tambem as qual se assenta. 0 dualismo campo-cidade reduzia-se a ex-
constru.;oes se amontoam, se interpenetram, multiplicam-se pressao unica da atividade extrativa, tendo a cata e a grupiara
para 0 alto e para os fundos, escoram-se mutuamente, mas como seu suporte fisico e economico. ( ... ) Em vez de ligar-se
por outras razoes: so ha uma rua disponivel que importa apro- ao chao-agricola e afirmar-se como nucleo prestador de servi-
.;os, as vilas mineiras ligaram-se inicialmente ao chao-de-ouro

(15) Vasconcellos, Sylvio de. Formal,:ao das Povoal,:oes de Minas Gerais in (16) Vasconcellos, Sylvio de. Mineiridade. Belo Horizonte, Imprensa Oficial,
Arquitetura no Brasil- Pintura Mineira e Outros Temas, Belo Horizonte, Edil,:Oes
1968, p. 89.
Escola de Arquitetura da UFMG, 1959, p. 5-6. (17) Vasconcellos, Sylviode. Op. cit., p. 87-8.
e sobre ele se edificaram. Os 'arruados' acompanharam as
'grupiaras', pel as encostas dos montes, ou se plantaram as
margens dos ribeiros, pelos vales. 0 'crescimento em vizi-
nhan~a' garantiria continuidades urbanas que modernamente
se denominam 'areas sucessivas' e se explicam pelo fenomeno
da conurba~ao. A li~ao esta registrada nos 'autos de ere~ao'
das primeiras vilas, quando se justificava a localiza~ao pela
maior 'conveniencia do comercio' reunindo povoados pr6-
ximos" .18
Dentro desses parametros, mesmo uma resumida analise
das primeiras vilas mineiras indica suas especificas condi~oes I
de formal;ao atraves da integra~ao espontanea dos arraiais
primitivos, podendo ser citados inumeros exemplos, entre os QArro;o;.
Velhos
quais Sabara, que resulta de uma serie de nuc1eos, como "os
dois Arraiais Velhos - antigo Arraial do Borba - de Sant'
Ana e de Santo Antonio da Mouraria - que tiveram, ha mui-
tissimos anos, uma ponte a liga-los, cada 'um com sua Igreja e
Paroco" alem de varios outros como os arraiais da Ro~a Gran-
de, do Caquende, do Largo do Rosario, do "morro da barra",
da Igreja Nova e da Igreja Velha e 0 "arraial de Tapanhua-
canga, onde se construiu em 1717 a Igreja de N. Senhora
doQ".19
Estes arraiais situavam-se principalmente entre os rios
Sabara e das Velhas e seu caminho de liga~ao foi trans for-
mado na rua Direita (atual Pedro II) que, efetivamente, cor-
responde ao trajeto mais reduzido entre esses aglomerados.
Em se tratando de Sao Joao del Rei, repetiu-se a situa~ao
dos nuc1eos subseqiientes, integrados tambem pela via mais
direta, apenas nesse caso saD estes mais distanciados entre si,
localizando-se principalmente "nas en costas das serras hoje
denominadas Senhor do Monte e Merces", 20 na margem es-
querda do c6rrego do Lenheiro, com exce~ao de urn outro pri-
mitivo povoado, erguido no chamado Morro da Forca, do lado
oposto ao c6rrego e on de os paulistas construiram a primeira

(18) Albino de Souza, Washington Peluso. As Lifoes das Vilas e Cidades de


Minas Gerais in IV Seminario de Estudos Mineiros. Belo Horizonte, Universidade
Federal de Minas Gerais, 1977, p. 99-100.
(19) Passos, Zoroastro Vianna. Em torno da Hist6ria do Sabara. Rio de Ja-
neiro, Ministerio da Educa~ao e Saude-SPHAN, 1940, p. 2-3.
(20) Viegas, Augusto. Notlcia de sao loao del Rei. Belo Horizonte, Imprensa
Oficial, 1942, p. 12.
capela da povoa~ao. 0 caminho de interliga~ao foi a rua de Mas e ainda valido lembrar urn outro aspecto que, ocor-
Santo Antonio que depois se denominou Direita (hoje Mal. rendo com freqiiencia em outras regioes brasileiras, nao se re-
Deodoro e Av. Rui Barbosa) e continuou seguin do para 0 alto pete no territorio mineiro: aqui nao se implantam as aglome-
do Senhor do Monte (ou de Matozinhos), na dire~ao de Tira- a
ra~oes margem dos cursos d'agua que sao vias naturais de
dentes. Desse primeiro arraial do Rio das Mortes, como era circula~ao e pontos de desembarque dos colonizadores como,
conhecido, surgiu a Vila de Nossa Senhora do Pilar de Sao alias, ocorrera em toda a America. Os ribeiroes ou corregos
Joao del Rei. proximos aos primeiros povoamentos explorativos eram, jus-
Em ,Santa Luzia, "0 rio corre na baixada. 0 povoado tamente, depositos auriferos e, por isso, atrairam logo os aven-
sobe 0 morro. E uma rua so, espichada, ligan do 0 vale Ma- a tureiros que nao se preocuparam com as redes fluviais de
triz alcantilada" .21 Retoma-se, portanto, 0 esquema fisico que maiar porte. Assim, "nas Minas nenhum rio navegavel con-
vai ser igualmente seguido em Santa Barbara, Catas Altas do diciona 0 povoamento. Raras sao as concentra~oes humanas
Mato Dentro, Brumal, Santa Rita Durao (0 antigo Arraial do de beira d'agua, como Mariana ou Sabara. Mesmo estas,
Inficionado) e em Caete, a Vila Nova da Rainha do seculo como tambem Santa tuzia ou Santa Barbara, cedo se afastam
XVIII. dos cursos fluviais, em estranha tendencia pelas cumeadas
Ja 0 caso de Tiradentes - denominada anteriormente que lhes fieam proximas. E que 0 ouro se esconde na monta-
Vila de Sao Jose do Rio das Mortes e depois Sao Jose del Rei ' e e a mon t an ha que f'lxa 0 homem " . 23
n ha,
- apresenta uma ligeira varia~ao da solu~ao mais espontanea Finalmente, e oportuno acentuar que a urbaniza~ao nas
e comum pois "0 conjunto urbano figura cenario, a proposito Minas se fez tao rapidamente que, pouco depois de uma de-
construido para encantar. E concentrado e diminuto como urn cada da chegada dos bandeirantes pioneiros da descoberta do
trecho escolhido da historia. Nao se estende em linha como as ouro, ja eram oficialmente criadas as primeiras vilas por Afon-
demais povoa~oes mineiras; enrodilha-se. E quase uma rua so de Albuquerque, em 1711, e que foram Ouro Preto, Ma-
so, formando urn quadrado".22 Com seu primeiro arraial- 0 riana e Sabara, dentro da ja mencionada politic a portuguesa
de Santo Antonio da Ponta do Morro - datando de 1702 e de pacifica~ao dos aventureiros e organiza~ao geral do territo-
sendo conhecido tambem como Arraial Velho do Rio das rio da minera~ao. A estas seguiram-se, em 1713 e dentro do
Mortes, talvez tenha alterado sua organiza~ao basica pela mesmo espirito, Sao Joao del Rei, Caete, Pitangui e 0 Serro e,
proximidade da imponente Serra de Sao Jose que constitui urn em 1718, Tiradentes.(Ver Anexo 2.),
serio obstaculo. Ainda assim, porem, foi mantida a rua Di- Ficaria, assim, praticamente balizada para a Coroa Por-
reita (agora formada pelas ruas Getulio Vargas e Resende tuguesa, a area mais rica em aura na sua colonia american a e
Costa), que direciona as said as de maior importancia, para a qual se agregaria, pouco depois, 0 Distrito Diamantino,
Sao Joao del Rei e Prados. completando 0 grande e complexo quadro da estabiliza~ao
As primeiras vilas do aura resolvem-se, portanto, dentro definitiva das Minas Gerais.
do mesmo partido, logico e espontaneo, e a principal del as -
Ouro Preto, denominada entao Vila Rica - e 0 exemplo mais
classico, que sera analisado mais detalhadamente a seguir,
bem como Mariana e Diamantina que, com tra~ados mais re-
gulares, seriam exce~oes no contexto da urbaniza~ao longili-
nea predominante nas Minas setecentistas. Vila Rica de Albuquerque, como foi denominada inicial-
mente a Ouro Preto de hoje, constitui 0 mais completo exem-

(21) Lefevre, Renee & Vasconcellos, Sylvio de. Minas: cidades barrocas. Silo
Paulo, Cia. Ed. Nacional; Ed. Universidade de Silo Paulo, 1968, p. 23. (23) Vasconcellos, Sylvio de. Mineiridade. Belo Horizonte, Imprensa Oficial,
(22) Lefevre, Renee & Vasconcellos, Sylvio de. Op. cit , p. 9. 1968, p. 20.
plo de urbaniza~ao das vilas do ouro nao so por se localizar em
area de topografia particularmente acidentada - tipica, alias,
dos grandes depositos auriferos - como por ter sido resul-
tante da integra~ao de diversos arraiais que, dispostos linear-
mente, foram se agrupando de forma espontanea para se con-
solidar no povoado que, em 1711, foi elevado categoria dea
vila e, em 1720, tornou-se a capital da Capitania das Minas
Gerais.
Seu desenvolvimento seguiu, a principio, 0 direciona-
mento das areas de aura facil e farto, mais proximas dos vales
de corregos como 0 do Tripui no qual, segundo consta, foram
encontradas as primeiras pepitas. Depois pesquisas mais pe-
nosas se impuseram, exigindo a explora~ao dos abruptos mor-
ros que dominavam a paisagem. Esta, por sua vez, e marcada
por duas serras - a de Ouro Preto e a do Itacolomi - que
constituiam dificeis obstaculos.
Assim e que Vila Rica vai ter seu povoamento esparso,
come~ando em urn ponto alto conhecido como "Cabecas"
para dai descer ate 0 Pilar, subindo novamente pelo morro de
Santa Quiteria (onde hoje se situa a Pra~a Tiradentes) e vol-
tando a descer para Antonio Dias, de onde "subia vertiginosa-
mente ate Santa Efigenia, para tornar a descer rumo ao Padre
Faria. Dai tomava a estrada de Mariana, bem no Vira-Saia.
Expressao que deve ser, como muitos sugerem, corruptela de
vira e sai" .24 Como tambem, alias, seria 0 inicio das fixa~oes
chamado de ca-aquem e resultar em Caquende, designa~ao
bastante comum na regiao.
Esses aglomerados eram, na epoca, relativamente distan-
ciados e, a par das dificuldades topograficas, do sobe-e-desce
cansativo e continuo, tinham densas matas entre si. Interliga-
varn-se, porern, por varios caminhos, sendo que "urn e mais
irnportante, rnais transitado, por assirn dizer, a estrada-tron-
co. Entra na vila e vai direto a
Matriz do Pilar, de on de se
endireita para a Matriz de Antonio Dias, saindo por Santa
Efigenia" .25
Entre esses sucessivos povoados iniciais incluiam-se os ar-
raiais do Padre Faria, de Antonio Dias, dos Paulistas, de San-

(24) Teixeira de Salles, Fritz. Vila Rica do Pilar. Belo Horizonte, Itatiaia,
1965, p. 20.
(25) Vasconcellos, Sylvio de. Vila Rica. Sao Paulo, Perspectiva, 1977, p. 71.
tana, do Taquaral, do Born Sucesso, de Sao Joao e do Ouro outras, incluiria as atuais ruas Alvarenga Peixoto, Bernardo
Podre, entre outros. Porem todos se interligavam por cami- Guimaraes, Getulio Vargas, S. Jose, Tiradentes, Parana,
nhos, ficando os principais diretamente a margem da "es- Conde de Bobadela, Claudio Manoel da Costa, Bernardo de
trada-tronco", quase sempre. Vasconcelos, Santa Efigenia e Padre Faria.29
"A Vila tern, assim, uma configura<,;ao linear apegada a Portanto, Vila Rica enquadra-se no esquema de forma-
.estrada tronco que, aos poucos, se corrige em trechos de me- <,;aocentripeta, com os dois nucleos principais - Pilar e An-
lhor tra<,;ado, em geral mais ao alto que os primitivos, ata- tonio Dias - que contem, igualmente, as duas matrizes da
lhando-os e ao mesmo tempo acompanhando a marcha das vila sendo unidos pelo desenvolvimento dos arraiais interme-
minera<,;oes que, a principio apegadas aos vales profundos, fo- diarios. E 0 que explica Sylvio de Vasconcellos ao indicar,
ram depois galgando a serra. " 26 como centro do povoamento inicial, 0 eixo longitudinal em
as trechos refeitos com melhores condi<,;oes eram chama- cujos pontos extremos estavam, de urn lado, 0 Rosario e Pilar
dos de "caminhos novos" e a "estrada- tronco" , adaptada aqui e, do outro, Santa Efigenia e 0 Padre Faria. No centro desse
e ali para favorecer os trajetos transformou-se na via mais di- eixo, seria cruzado urn outro - transversal - que incluiria 0
reta - ou Rua Direita - entre os pontos urbanos de maior morro de Santa Quiteria, onde se ergueriam as constru<,;oes
importancia. E "todas as igrejas e edificios principais da Vila oficiais portuguesas.
balizam esta rua-tronco com poucas excecoes".27 "Neste movimento centripeto, com a constru<,;ao da an-
E interessante notar, ainda, que "as ruas em que, poste- tiga Casa de Camara e Cadeia e depois do Palacio dos Gover-
riormente, se transform a, subdividindo-se, a estrada princi- nadores (por volta de 1740), unem-se as duas freguesias e,
pal, tomam com 0 correr do tempo, designa<,;oes varias, a prin- com a delimita<,;ao do centro administrativo, estabelece-se 0
cipio apenas explicativas, como a 'rua que segue da ponte seca nucleo principal da povoa<,;ao. Este nucleo, configurado pela
ate a ponte do Ouro Preto', a que 'vai da igreja do bairro do Pra<,;ado Palacio, ampliada em 1797 para desafogar a Casa de
Ouro Preto para 0 arraial dos paulistas, direta da Vila. Depois Camara e Cadeia, e, aqui, uma conseqiiencia do povoamento ja
tomam 0 nome dos seus mais importantes moradores: Rua do existente e nao origem dele, correspondendo mais aos limites
Vigario, dos paulistas, dos caldeireiros, etc., ou das constru- de duas povoa<,;oesvizinhas que centro de irradia<,;ao delas." 30
<,;oesmais valiosas que nela se erguem: Rua da Ponte, da Ca- Ainda que, posteriormente, novas ruas fossem abertas e
deia, do Palacio, etc., etc.".28 Esse procedimento, alias, e ge- outras se desenvolvessem. paralelamente as mais antigas, in-
neralizado no Brasil colonial, repetindo-se nas Minas de forma cluindo becos e vielas que indicavam tanto maior progresso
muito natural. quanto uma tendencia centrifuga, Vila Rica manteria sempre
No caso de Vila Rica, devido a sua forma<,;ao acentuada- sua configura<,;ao linear tao propria das vilas do ouro, que
mente linear, a "estrada-tronco", que iria gerar a Rua Direita "tendem a centripetar 0 agrupamento humano e nao a difun~
em seu setor mais central e importante, e subdividida, basica- di-Io",31 como urn marco definitivo ·da urbaniza<,;ao esponta-
mente em tres principais segmentos: 0 primeiro vai das "Ca- nea das Minas setecentistas.
be<,;as" ate 0 atual Largo do Rosario; 0 segundo vai do Rosario
ao Pilar, continuando ate a Pra<,;a e descendo ate Antonio
Dias; dai seguindo 0 terceiro, que se subdivide em duas ladei-
ras, a do Vira-Saia e a do Padre Faria. Em termos da atual
Ouro Preto, seria urn longo e acidentado percurso que, entre

(29) Vasconcellos, Sylvio de. Op. cit., p. 75-6.


(26) Vasconcellos, Sylvio de. Op. cit., p. 76. (30) Vasconcellos, Sylvio de. Op. cit., p. 77.
(27) Vasconcellos, Sylvio de. Op. cit., p. 77. (31) Vasconcellos, Sylvio de. Mineiridade. Belo Horizonte, Imprensa Ofi inl,
(28) Vasconcellos, Sylvio de. Op. cit., p. 75. 1968, p. 84.
Foi em torno dessa epoca que sua area central sofreu a
interven~ao do Brigadeiro Jose Fernandes Pinto Alpoim, en-
genheiro militar portugues que executara diversas obras de
Se no territorio mineiro nao se ergueram muros de defesa importancia no Rio de Janeiro, entre as quais 0 Pa~o dos Vice-
urbana nem houve necessidade de se construirem fortes e for- Reis. Vindo a Minas por comissionamento do Governador
talezas e, ainda, se desenvolveram as vilas de forma livre - Gomes Freire de Andrade, por volta de 1736, foi 0 autor de
linear e espontaneamente - urn exemplo deve ser destacado diversos projetos de relevancia, inclusive 0 do Palacio dos Go-
por se constituir em exce~ao: 0 de Mariana que teve, no final vernadores, em Vila Rica. Gomes Freire de Andrade foi urn
da primeira metade do seculo XVIII, seu centro reformulado dos mais brilhantes e dinamicos administradores da Capitania
por urn tra~ado regulador que the conferiu caraeteristicas di- das Minas Gerais nao sendo, portanto, fato estranhavel ter
ferentes das usualmente encontradas nas vilas do ouro. promovido a elabora~ao de nova planta para a area central de
Mariana, a antiga Vila de Nossa Senhora do Ribeirao do Mariana, visando sua reformula~ao, pelo menos parcial, den-
Carmo, tern como data basica 0 dia 16 dejulho de 1696, quan- tro das concep~oes classic as de urn tra~ado regular mais ao
do 0 Coronel Salvador Fernandes Furtado encontrou DurO gosto portugues. Tampouco seria urn plano desse tipo viavel
abundante nas aguas de urn ribeirao proximo ao morro de para Vila Rica, pela sua topografia dificil, pelo que sua im-
Santo Antonio que era quase como urn seguimento do morro planta~ao em Mariana parece mais logica.
da Queimada de Vila Rica. "Formou-se 0 primeiro arraial, Assim, como bem observou Silva Telles, "constitui uma
composto entao dos nucleos de Mata-Cavalos ou Carmo (de- exce~ao entre as cidades do ciclo da minera~ao, a de Mariana,
pois Rosario) e de Sao Gon~alo. Foi ai 0 ber~o da Vila de Al- antiga Vila de N. Senhora do Carmo, que, ao ser elevada a
buquerque, parte essa hoje decadente. (. .. ) Depois dessa pri- a
cidade em 1745, para servir de sede primeira diocese criada
meira funda~ao, estendeu-se 0 povoado para os Monsus, hoje no interior brasileiro, foi reorganizada a partir do plano ur-
' em deca denC1a.,,32
tam bem
A •
bano elaborado pelo Brigadeiro Jose Fernandes Pinto Alpoim,
A partir dai, com 0 desenvolvimento das atividades ex- com ruas e pra~as em trama ortogonal que se articularam com
trativas, surgiram outros arraiais - como 0 do Rosario e 0 os primitivos logradouros, conforme se pode observar em
chamado Arraial de Cima - este ultimo 0 efetivo nucleo do planta setecentista existente na mapoteca do Servi~o Geogra-
povoado que, em constante crescimento, recebeu 0 titulo de fico do Exercito".33
Vila de Nossa Senhora do Ribeirao do Carmo, em 1711, do Mas Sylvio de Vasconcellos iria observar, tamMm, que
Governador Antonio de Albuquerque. Posteriormente a Vila "por outro lado, Mariana e Diamantina, que a administra~ao
foi oficialmente denominada "de Nossa Senhora do Carmo" procurou enquadrar em esquemas reticulares, afinal nao se
e, depois, Mariana, em homenagem a
D. Maria Ana da Aus- divorciaram de todo da tradi~ao local, nem dos caminhos que
tria, esposa de D. Joao Ve rainha de Portugal. as penetram. A primeira conservando seu eixo primitivo, li-
Embora com topografia mais suave que Vila Rica, ainda near, que, vindo de Vila Rica, passa pelo Alto de Sao Pedro,
que contasse com algumas colinas, so depois de sua escolha desce e atravessa 0 vale do Ribeirao do Carmo , e34sobe para as
como sede do bispado nas Minas, em 1745, Mariana se impo- alturas da Capela de Nossa Senhora do Rosario".
ria como a primeira cidade mineira por nao ser, enta~, admi- Em Mariana, igualmente, a rua Direita (hoje Claudio
tida a residencia de bispos em vilas, como ja anteriormente Manoel) estabelece urn eixo transversal que liga a Se (igrcja de
mencionado. Nossa Senhora da Assun~ao) a uma das saidas para Vila Rica,

(32) Vasconcellos, Salomao de. Breviario Historieo e Turlstico da Cidade de (33) Silva Telles, Augusto Carlos da. Op. eit., p. 47.
Mariana. Belo Horizonte, Biblioteca Mineira de Cultura. vol. XVII, 1947, p. 9. (34) Vasconcellos, Sylvio de. Op. cit., p. 88-9.
tangenciando 0 reHingulo que enquadrava a trama ortogonal
de Alpoim. Enquanto isso, 0 eixo longitudinal, urn pouco in-
c1inado e mais alongado, saia do Alto de Sao Pedro dos Cle-
rigos na direr;ao da igreja do Rosario e do antigo Mata-Ca-
valos, dentro do esquema linear tipico das vilas do ouro.
E, ainda, oportuno lembrar que, em Mariana, a rua Di-
reita "chamava-se, antigamente, ao tempo do arraial do Car-
mo e depois da Vila, 'caminho de cima', e ligava a prar;a da
Conceir;ao ao Rosario e a Sao Gonr;alo". 35
Mariana apresentava-se, portanto, bem diversa da vizi-
nha Vila Rica pelo que a descreveu Sylvio de Vasconcellos
como sendo "mais concentrada, e muitas de suas ruas cortam-
se em perpendiculares. E pouco acidentada e aproveita as fal-
das que descem preguir;osas do Alto de Sao Pedro, por onde
entra 0 caminho de Ouro Preto. 0 cenario urbano e calmo.
Nao 0 agitam tortuosos caminhos e aflitos aglomerados arqui-
tetonicos. Mariana e romantica. De urn romantismo discreto
que flui de sua horizontalidade e de seus espar;os, abertos em
pracas" .36

o Tijuco
A persistencia da integrar;ao dos primitivos arraiais de
mineradores em vilas de urbanizar;ao espontanea e linear nao
se limitou, porem, aos aglomerados mais concentrados nas
areas de Vila Rica, Sabara ou Sao Joao del Rei. Tambem nas
regioes mais ao nordeste, na direcao do Vale do Jequitinhonha
e da Bahia, os primeiros povoados surgiram de uma fusao

!D semelhante das fixar;oes iniciais igualmente resultantes da


grande aventura do ouro.
Como primeiro exemplo, Conceir;ao do Mato Dentro -
cujo proprio nome indica sua localizar;ao em brenhas mais
dens as e de penetrar;ao mais dificil - se organizava ao 10ngo
de uma estrada ou caminho principal que, como rua urbani-
zada posteriormente, tinha marcante presenr;a e era balizada
LA CEN'RAL <om
TRAMA ORTOGONAL
(35) Vasconcellos, Salomao de. Op. cit., p. 55.
(36) Lefevre, Renee & Vasconcellos, Sylviode. Op. cit., p. 33.
pelos mais importantes monumentos locais. Essa longa via se-
guia da Capela de Sant' Ana na direr;ao da Capela do Rosario,
MONTES
CLAROS passando pela Matriz de Nossa Senhora da Conceir;ao e pela
( antiga Casa de Camara e Cadeia. Paralelamente, de urn e ou-
tro lado dessa estrada-tronco, organizou-se a malha urbana
com caminhos que iriam seguir a mesma direr;ao mestra.
Mais ao norte, 0 Serro Frio e considerado "urn trecho de
a
estrada que se dirige Diamantina e Bahia,,37 ou, mais expli-
citamente, "uma estrada a
meia encosta, pouso de longas via-
gens em demanda da regiao diamantifera e da pastoril,,?8
A origem do Serro, porem, prendeu-se ao estabeleci-
mento de dois primitivos arraiais de mineradores que, por sua
localizar;ao, foram simples e objetivamente denominados "de
Baixo" e "de Cima", e situ ados nas proximidades dos corre-
r-
ITABIRA
gos dos Quatro Vintens e do Lucas. A afluencia de outros
aventureiros ao local estimulou 0 crescimento centripeto dos
dois arraiais que acabaram por se fundir em urn so ao longo
da estrada a meia encosta, acima citada, constituindo, assim,
a entao chamada Vila do Principe.
Entretanto, nesse contexto de urbanizar;ao ja conhecido,
Diamantina - 0 antigo Tijuco - surgiu como mais uma inte-
ressante exce.r;ao ainda que sem os mesmos condicionamentos.
de Mariana, pois nao existe documentar;ao que com prove
tanto a existencia de plantas quanto qualquer orientar;ao de
carater administrativo no sentido de ser reticulada sua malha
urbana.39
Por outro lado, e muito interessante constatar que "quan-
to ao processo de desenvolvimento, ocorreu com 0 arraial do
Tijuco 0 inverso do acontecido com Mariana. Enquanto aque-
Ie atraiu, em determinada epoca, os moradores da Vila do
•Principe, absorvendo-a quase e ultrapassando-a em impor-
tancia, Mariana se viu, pela mesma epoca, prejudicada pelo
surpreendente progresso de sua vizinha Vila Rica. Entretanto,
esta aparente contradir;ao de condir;oes se compensa e se es-

(37) Vasconcellos, Sylvia de. Op. cit., p. 87.


(38) Vasconcellos, Sylvio de. Formar;iio das Povoar;oes de Minas Gerais in
Arquitetura no Brasil - Pintura Mineira e Outros Temas. Belo Horizonte, Edi~Ocs
Escola de Arquitetura da UFMG, 1959, p. 6.
(39) Vasconcellos, Sylvia de. Formar;iio Urbana do Arraial do Tejlleo i" Re·
vista do Patrimonio Historieo e Art/stieo Nacional, Rio de Janeiro, MEC, 1959 (14),
Arraial do Tijuco (Diamantinal - Evoluc;:ao urbana segundo Sylvio de Vascon-
p. 122 e 127.
cellos.
clarece quando se observa que ambas as povoa~oes foram con- as aludidas pra~as" .43 Entretanto, dois amplos espa~os tam-
tidas em seu desenvolvimento. Vma em virtu de da interferen- hem se incluiram na malha urbana do Tijuco: 0 Largo da Ca-
cia da Coroa, outra em conseqiiencia de uma subseqiiente e valhada Velha, mais antigo e situado na dire~ao do caminho
espontanea estagna~ao, causas que contribuiram para preser- do Serro, eo Largo da Cavalhada Nova, ou do Mercado, de
var 0 reticulado que, em dado momenta, ordenou uma e outra urn lado da trama reticulada central, ambos pontos de afluen-
localidade" .40 cia dos tropeiros.
Como ja foi mencionado, os diamantes foram descobertos Porem, nao e fora de prop6sito considerar que as rigidas
em areas de minera~ao aurifera e, portanto, 0 antigo arraial imposi~6es da Coroa Portuguesa quanto ao monop6lio dos
do Tijuco, com terrenos que seguiam as curvas naturais da en- diamantes e a implanta~ao do implacavel "Regimento Dia-
costa, pr6ximos do c6rrego do mesmo nome, polarizou os nu- mantino" nao tenham sido, igualmente, elementos que favo-
cleos isolados que se organizaram as margens dos principais recessem a manuten~ao do tra~ado reticular compacto no Ti-
caminhos que ligavam aquelas remotas paragens aoutros pon- juco ja que facilitavam sobremodo 0 duro controle exercido
tos de importancia na epoca: "0 Arraial de Baixo, na entrada pelas milicias contra 0 contrabando de pedras uma vez que "0
do caminho que vinha do Serro; 0 do Rio Grande, na saida povoamento fora do nucleo central obedeceu as mesmas so-
para Minas Novas; e 0 de Cima, na saida para a Barra do lu~6es adotadas pelas povoa~6es de crescimento espontaneo,
Guaicui" .41 isto e, balisando caminhos naturais em desordenada expan-
A estes tres povoados juntou-se, depois, urn outro - 0 sao. S6 no centro urbano propriamente dito, em virtude da
Arraial dos Forros ou Macau - e a forma triangular inicial do presen~a da administra~ao e das peculiares condi~oes geogra-
aglomerado passou a se configurar como uma area quadran- ficas e topograficas analisadas, e que se manifestou a urbani-
gular determinando, conseqiientemente, arruamentos que se za~ao reticular".44
organizaram em ruas paralelas aos principais caminhos e que Assim, 0 Tijuco teve seu desenvolvimento baseado em urn
foram cortadas por outras vias - ruas ou becos - que "vi- esquema que incluiu tres fases: "a primeira, de 1700 a 1720
riam a constituir 0 reticulado que compoe a parte urbana pro- relativa ao povoamento esparso, em varios arraiais, de limita:
priamente dita da povoa~ao. Este reticulado, como e normal, ~ao indeterminada; a segunda, de £orma~ao polarizada, de
amiuda-se, subdividindo-se, a medida que se aproxima de seu 1720 a 1750, quando se organizou em reticulado sua parte
centro, limitado pelas ruas do Bonfim, Contrato e Direita. urbana propriamente dita; e a terceira, de 1750 em diante,
Nos dois extremos desta area central, localizaram-se as cons- relativa a sua consolida~ao e expansao" .45
tru~6es mais importantes do lugar: de urn lado, a Matriz de Portanto, em Diamantina - 0 antigo Tijuco - "nao ha
Santo Antonio de outro, a Casa do Contrato" .42 propriamente urn nucleo central irradiador, pois que 0 miolo
E import ante ainda observar que 0 Arraial do Tijuco, da povoa~ao e menosprezado, nele se localizando a zona de
"com sua solu~ao quadrangular, concentrada e reticular", as- meretricio em solu~ao das mais singulares: a urbaniza~ao sa-
semelhava-se muito a das povoa~oes do litoral, por estar "mais dia agarrada aos caminhos" .46
de acordo .com os principios urbanisticos recomendados pel a Verifica-se, assim, que mesmo nos poucos exemplos que
administra~ao portuguesa. Deles difere apenas pela ausencia fogem as mais claras configura~6es lineares e espontaneas das
de pra~as, que se pode atribuir a inexistencia, no lugar, da vilas do ouro,estas ainda perduram em constante e peculiar
Casa de Camara e Cadeia, com seu competente pelourinho,
constru~6es que, por sua dignidade, no geral determinavam
(43) Vasconcellos, Sylviode. Op. cit., p. 121.
(44) Vasconcellos, Sylviode. Op. cit., p. 130.
(40) Vasconcellos, Sylviode. Op. cit., p.126-7. (45) Vasconcellos, Sylviode. Op. cit., p. 131-2.
(41) Vasconcellos, Sylviode. Op. cit., p. 127. (46) Vasconcellos, Sylvio de. Milleiridade. Bolo Hori~,on( , Impr IINII or 1.1,
(42) Vasconcellos, Sylviode. Op. cit., p. 129-130. 1968, p. 89.
o casario
"Tudo me chama: aporta, a escada, os muros,
as lajes sobre mortos ainda vivos,
dos seus pr6prios assuntos inseguros.
Assim viveram chefes e cativos,
um dia, neste campo, entrelafados
na mesma dor, quimericos e altivos.
E assim me acenam, por todos os lados.
Porque a voz que tiveram ficou presa
na senten fa dos homens e dosfados. "

A inda que, como geralmente ocorre, a chamada arqui-


tetura monumental, na qual se incluem as constru~oes de
maior porte como igrejas e edificios oficiais, seja mais estu-
dada e valorizada por sua marcante presen~a nos conjuntos
urbanos, 0 casario - que justamente define essas aglomera-
~oes - e de extrema validade e significa~ao por constituir 0
abrigo indispensavel ao homem.
Efetivamente, a casa - que, em uma primeira leitura,
tern como fun~ao basica a do abrigo - extrapola esta condi-
~ao inicial para abranger outros aspectos muito mais amplos e
que se traduzem em costumes, valores pr6prios e todo urn tipo
de vida que, embora tenha algumas vafia~oes, apresenta tam-
bem elementos constantes e comuns a determinados grupos.

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