Um romance urbano –
O Gororoba: cenas da vida
proletária do Brasil
Roberto José da Silva
Mestre em Teoria e História Literária – UNICAMP;
Professor do Ensino Público do Estado
de São Paulo.
São Paulo – SP [Brasil]
[email protected] Neste trabalho, temos como finalidade mostrar que o romance O
Gororoba: cenas da vida proletária do Brasil é uma obra es-
sencialmente urbana e inovadora entre aquelas que integraram
o chamado romance social de 1930, pois foi uma das primeiras a
enfocar o operário na literatura brasileira. Nesse romance, Lauro
Palhano conseguiu retratar, ainda que superficialmente, a vida e
o drama dos proletários da borracha e da indústria no início do
século XX.
Palavras-chave: Literatura brasileira. Proletário.
Regionalismo. Romance urbano.
Dialogia, São Paulo, v. 6, p. 65-75, 2007. Artigos
65
1 Introdução extração do látex. Já na segunda parte é retratada
a incipiente industrialização na cidade do Rio de
Foi a partir da década de 1930 que os escri- Janeiro, e a degradação do operário no ambiente
tores brasileiros passaram a dar maior atenção industrial urbano.
às massas. Pode-se afirmar que, nesse período, a
pobreza passou a ser considerada, de fato, tema im-
portante e, conseqüentemente, o pobre foi retratado 2 O romance urbano: O Gororoba
com dignidade, a ponto de tornar-se protagonista
de romances. Nesse contexto, os escritores daquela No início da primeira parte, o sertanejo
época caracterizavam-se pelo empenho em desmas- Cazuza Amaro, após deixar o sertão e partir para
carar e denunciar o atraso e dependência de nosso a região Norte, espanta-se com o “progresso” de
país (CANDIDO, 1995). Os romances de tal período Belém, considerada a “Liverpool brasileira”. Não
passaram a focalizar nossa realidade e isso ficou foi muito difícil para Cazuza, arranjar emprego
bem nítido na literatura regionalista de 1930, em em uma oficina como auxiliar de ferreiro. Em
perfeita consonância com os movimentos econômi- pouco tempo, o rapaz recebeu o apelido de
cos, sociais e históricos ocorriam no Brasil, tais como Gororoba, em razão de seus movimentos lentos,
a crise do café, as constantes secas do Nordeste, a in- ou seja, apesar de sadio, seus colegas de trabalho
cipiente industrialização, a extração da borracha no notavam que sempre estava encostando ou sen-
Amazonas, que contribuía para o desenvolvimento tando em algum lugar. Belém, naquele período,
da região Norte, e as lutas operárias em diversos crescia e inchava rapidamente com o fluxo de
lugares do país. imigrantes do sertão e comerciantes da Europa.
É nesse momento que surgiu em 1931, o Com o crescimento da cidade, iam surgindo si-
romance O Gororoba: cenas da vida proletária, multaneamente os subúrbios onde a miséria
do engenheiro de máquinas Lauro Palhano. Esse imperava. O nordestino não conseguia adaptar-
romance foi um dos primeiros a retratar o modo se àquela vida, por isso sentia muito as mazelas
de vida e as mazelas de trabalhadores do Brasil no da vida urbana.
início do século XX. O romance, dividido em duas O progresso de Belém seduzia a população de
partes bem distintas, narra a saga de um sertane- todo o país e a de outros lugares do mundo. Os imi-
jo, Cazuza Amaro, que foge da seca do Nordeste grantes nacionais, fortes, iam para os seringais; os
e arrisca a sorte na região Norte, trabalhando na europeus se atiravam no comércio e na indústria e
extração do látex, e dali vai para o Rio de Janeiro, os inválidos roubavam e esmolavam. A indústria e
onde passa a viver da exploração da indústria in- as oficinas navais impulsionavam o crescimento da
cipiente que surgia no país. Na primeira parte, cidade e, fazendo surgir a enorme classe operária e
tem-se o registro da seca do Nordeste e das péssi- os bairros miseráveis:
mas condições de vida para os sertanejos da região
de Caiacó, Ceará. Nessa parte, observa-se também Seis horas. Apita. A motora, na langui-
o florescimento das cidades de Belém e de Manaus dez da partida, espreguiça-se. Gemem,
que se desenvolveram rapidamente em razão da estalam transmissões, correias aderen-
Dialogia, São Paulo, v. 6, p. 65-75, 2007.
66
tes às polias e tudo vibra no movimen- e de trabalho dos operários das indústrias têxteis
to que há de levar a vida aos molossos de São Paulo e de outras capitais brasileiras das
inertes. O operário cérebro da máquina primeiras décadas do século XX.
dirigia. O ferro em obra reage: - embota A política trabalhista brasileira surgiu
as ferramentas, agride o homem, ora em apenas em 1930, quando Getúlio Vargas centra-
estilhaços, em fagulhas, ora desprenden- lizou o poder e criou o Ministério do Trabalho,
do-se bruscamente, partindo-se ferindo, Indústria e Comércio. Na constituição de 1934
matando. E enquanto o autômato Vargas, estabeleceu o salário mínimo. Segundo
executa a sua tarefa, na monotonia dos Boris Fausto (1995), a partir dessa data, surgiram
movimentos ritmados, o artífice volta, leis de proteção ao trabalhador, sindicalização
em pensamento, aos idílios da noiva, aos das classes operárias e patronais. No entanto, os
carinhos da esposa, aos beijos do filho, sindicatos tornaram-se dependentes do Ministério
às alegrias e vicissitudes de seu lar, in-
do Trabalho.
diferente à obra, à máquina, e a tudo
Segundo Antônio Paulo Rezende (1989),
(PALHANO, 1931, p. 37-38).
antes de 1930 quase não existiam leis de prote-
ção ao trabalhador e as poucas que haviam não
A longa citação revela as condições de vida
eram rigorosamente cumpridas pelos patrões, em
dos operários de Belém. No decorrer do romance,
razão disso, crianças e mulheres, por exemplo,
no entanto, não encontramos cenas do serin-
trabalhavam em horário noturno, sem qualquer
gueiro trabalhando na coleta do látex, mas o
garantia ou proteção. Segundo Warren Dean
ascendente fluxo migratório e monetário serviu
(1971, p. 164)
de matéria para o escritor retratar as péssimas
condições de vida do operário urbano da cidade
[...] em 1917, o governo publicou um
em questão.
decreto proibindo o trabalho noturno
Outros comentários sobre a citação acima
a mulheres e menores de catorze anos.
devem ser feitos. O primeiro diz respeito à mo-
dernidade e à industrialização que dava seus Além disso, os acidentes se amiudavam,
primeiros passos, no fim do século XIX e início do pois os trabalhadores, embora cansados,
XX. O segundo revela a exploração e as péssimas às vezes trabalhavam além do horário,
condições de trabalho a que era submetido o ope- sem aumento de salário ou trabalhavam
rário urbano, que, sem qualquer proteção da lei aos domingos.
lançava-se entre as engrenagens das máquinas
sofrendo acidentes e não sendo indenizado. Todas Em regra, nada impedia a demissão imedia-
essas condições insalubres e de degradação física ta dos trabalhadores após longos anos de serviços.
impostas aos trabalhadores já foram bem pesqui- De acordo com Boris Fausto (1976, p. 105), “[...]
sadas por muitos historiadores, como Francisco os operários que eram acidentados não eram in-
Foot Hardman, Antônio Paulo Rezende, Warren denizados. Inexistia a previdência social, nem a
Dean, e outros que estudaram as condições de vida aposentadoria se desenhava como expectativa.”
Dialogia, São Paulo, v. 6, p. 65-75, 2007. Artigos
67
É importante lembrar ainda que, nesse Da capital do Amazonas um detalhe
momento, os escritores estavam divididos em duas impressionou Cazuza. Naquele recanto
vertentes ao escrever um romance: o sociologis- de mundo não havia miséria. Dinheiro
mo e a imaginação. Pendiam ou para uma, ou não fazia falta a ninguém porque todos
para outra, mas a maioria aderia ao sociologismo, o ganhavam facilmente. Era de fato a
recorrendo à fotografia e ao registro, explorando Terra da Promissão; a Fome não a des-
pouco a criatividade. O ideal teria sido conser- cobrira ainda.
var-se fiel à realidade e servir-se da imaginação Entre a população operária que Cazuza viu
na medida necessária. Como bem apontou F. M. nas oficinas e nas ruas, predominava o ele-
Rodrigues Alves Filho (1938), o romance brasilei- mento português. Pela primeira vez viu o
ro daquele momento estava em pleno equilíbrio operário típico: blusa de zuarte sobre calça
entre essas duas balizas. Bom exemplo disso en- do mesmo pano, gorro ou boné, sóbrio de
roupas e avesso aos esbanjamentos, amea-
contra-se em Angústia, de Graciliano Ramos. O
lhando para ir à terra ...
sociologismo, segundo Alves Filho, foi decorrência
Pelos hotéis, teatros e cafés, os seringueiros
natural daquele momento, pois “[...] o romance
ridiculamente vestidos, fartamente endi-
brasileiro estava muito voltado para a realidade
nheirados, gastavam com mulheres detes-
objetiva, obedecendo a uma lógica de sentido de
tavelmente velhas, feias e pintadas; mu-
uma nova ordem, que se integrava muito mais
lheres detestavelmente bonitas e imorais,
ao campo da observação.”(ALVES FILHO, 1938,
atirando-se a todo mundo para sugar di-
p. 74). Nesse sentido, o homem do povo de diver-
nheiro fosse seringueiro [...] (PALHANO,
sas classes passou a ter importância na literatura,
1931, p. 176).
sendo objetos de denúncia, sua miséria e a sua ex-
ploração. E é nesse “romance social”, de registro e
Veja que essa passagem descreve o operário
sociologismo que alguns romancistas passaram a
europeu bem trajado e, provavelmente, consciente
apresentar e a descrever a vida dos proletários. de sua classe, assim como aconteceu, de fato, em
O Gororoba é um típico romance da vida nossa história, pois os europeus que vieram para o
urbana da primeira metade do século XX, em que Brasil eram bem articulados e foram muito impor-
se aborda o seringueiro no meio citadino e cuja di- tantes na formação dos sindicatos, além de serem
ficuldade de sobrevivência é, às vezes, brevemente responsáveis pelas primeiras greves, em razão da ex-
retratada. Em outras ocasiões, também é enfocado periência adquirida. Do outro lado, vemos o oposto
esse trabalhador que, apesar das dificuldades das disso: os trabalhadores dos seringais, que eram uma
primeiras décadas do século XX, estava fazendo espécie de desterrados mal trajados e que nada co-
fortuna em Belém e Manaus. Exemplo disso está em nheciam de luta de classes e gastavam o dinheiro
um episódio em que Cazuza, ao chegar a Manaus, com coisas fúteis.
espanta-se com o torvelinho da cidade, gerado pelos Com a baixa do valor da borracha, a situa-
operários urbanos e pelos seringueiros que ganha- ção piorou para os seringueiros. Enquanto muitos
vam muito dinheiro, mas gastavam esnobemente: tiveram de retornar para o sertão, outros foram
Dialogia, São Paulo, v. 6, p. 65-75, 2007.
68
para o Sudeste. Aqueles que, no entanto, decidiram dos seringais do Pará, e com ela vai morar em um
permanecer sofreram as agruras da desvalorização quarto alugado num “casarão” velho na rua São
desse tipo de produto. Em razão do novo quadro, Cristóvão, onde enfrentaram muitas dificuldades
a cidade da promissão tornou-se miserável, as de convivência.
noitadas e bordéis acabaram, as avenidas e ruas
ficaram desertas, e os cafés, sem fregueses, passan- Era na rua São Cristóvão,velho solar
do a reinar o silêncio. As mulheres migraram para dentro de uns restos de parque, pintal-
outros lugares, pois não havia mais dinheiro ali. gado dos vestígios da nobreza que o ha-
Os navios atracaram nos portos, os marujos e esti- bitara: estatuetas aleijadas, fragmentos
vadores ficaram de braços cruzados e angustiados de brasões de armas, em gesso, ruínas
com o desemprego. de camachões. Dentro de uma mancha
Como os ingleses desenvolveram um método que fora lago, cheia de folhas secas, dois
eficiente de plantação e extração da borracha na cisnes de pescoços entrelaçados, já sem as
Ásia, deixaram de dar atenção à produção brasilei- cabeças, quebradas as azas (sic), jaziam
ra. Nesse contexto, restava ao caboclo e ao nativo na imobilidade da louça. [...] O antigo
a sobrevivência apenas pelo extrativismo primitivo gramado era agora coradouro amplo, e
pouco lucrativo; além disso, esse trabalhador con- o velho chafariz de pedra, um golfinho
corria diretamente com a produção asiática. jorrando água, quando havia, era o lava-
Naquele momento, surgiam os sindicatos de douro onde as mulheres tosavam a pele
classes, mas, comprometidos com o governo; por isso alheia, sujando-a, enquanto lavavam
poucos conseguiam lutar pelos direitos dos operá- roupas. [...] O velho prédio, abundante
rios. Além do mais, o fortalecimento dos sindicatos, em estuques internos, abobados e volutas,
nesse período, foi mais presente na região Sudeste tinha notável acústica. De fachada
do que nas demais áreas. Isso ocasionou uma luta austera, fidalga, dava a impressão de um
menos articulada contra os donos dos seringais; em miserável nobre e orgulhoso, de pé, es-
decorrência, a vida foi-se tornando cada vez mais molando na via pública [...] (PALHANO,
difícil para quem trabalhava ali. 1931, p. 259-260).
A bordo do Tocantins, um velho navio do
senhor Müller, Cazuza, como maquinista, seguiu O velho casarão, aqui configurado como
para o Rio de Janeiro, onde planejava encontrar antiga mansão de um nobre barão, tornou-se um
emprego. Lá chegando, foi procurar um lugar para cortiço habitado por operários miseráveis. Sua
ficar provisoriamente. Ao caminhar entre as ruas condição de conservação denunciava os possíveis
da capital do Brasil, encontrou Correia, um velho habitantes daquele lugar. Ironicamente, o autor
amigo da escola de pilotagem e máquinas do Pará. satirizava as mulheres que queimavam a pele no
O ambiente alegre e festivo encantou o jovem, chafariz, em um trabalho árduo, lavando roupa e
mas as dificuldades da cidade grande vieram de sujando a água daquele que fora o lugar de em-
modo avassalador para o nordestino. Tempos belezar o jardim. Os pequenos animais de gesso,
mais tarde Cazuza encontra Abgail, ex-operária todos mutilados, refletiam a degradação daquele
Dialogia, São Paulo, v. 6, p. 65-75, 2007. Artigos
69
espaço abandonado por um proprietário que pouco a olores de ar confinado, superlotado de
se interessava em fazer manutenção ou recons- estômagos e intestinos mal educados.
truí-lo para ali voltar a morar. E assim, o casarão [...] Pelas manhãs, saiam os vadios
tornou-se um grande cortiço onde se instalaram para o trabalho, para o vício, ou para a
aqueles que ainda não eram mendigos, os que, ex- covação da vida. As crianças, iam umas
plorados no trabalho, recebiam uma ninharia. E para as escolas, a maior parte para os
dali, “orgulhosos de sua moradia” insalubre, os monturos catar lenha para o fogareiro
operários iriam vender, a preço baixo, a sua força do quarto e ferro velho, pregos, resídu-
de trabalho. os de metais para venderem. Os velhos,
Mais adiante, no romance, temos uma descri- para a mendicância e para as portas dos
ção do ambiente imundo do casarão, onde mulheres, trapiches, apanhar milho, feijão, café,
homens e crianças se misturavam formando um peneirando-os dentre as dejeções dos
único ambiente naturalista, característico dos am- animais, no meio-fio. Mocinhas, nesse
bientes repugnantes da obra de Zola: mister, sujas, esmolambadas, vicia-
vam a moral entre carroceiros e vadios,
Moravam ali cerca de 50 casais, com filhos, pedindo níqueis e esburacando as sacas
parentes e aderentes. Salas, salões e outras para melhor colheita
dependências, foram divididos e desdobra- As lavadeiras agrupavam-se em torno da
dos em cômodos menores, por meios tabi- velha bica contando os sonhos, escolhen-
ques, dando em planta a impressão de um do palpites para o bicho, comentando os
gigantesco cortiço. Operários do Arsenal de fatos da véspera [...] (PALHANO, 1931, p.
Guerra, dos estaleiros e serrarias vizinhas, 260-261, grifo nosso).
marítimos, viviam agora sob o teto que viu
os esplendores de mais de meio século de O casarão possuía um ambiente próprio
existência aristocrática. do naturalismo, ali residiam loucos, mendigos e
À noite o velho casarão tinha ressonâncias mocinhas, que viciavam os ambientes; enfim, o
do outro mundo, tonitruantes, sibilantes; casarão era um verdadeiro antro. Provavelmente
palestras de sonâmbulos, gritos, gemidos antes do romance, até mesmo, teve a obra de
de pesadelos. Zola como base para a construção dessas cenas.
Um catraieiro, velho português que fora O trecho aí exposto demonstra escancaradamen-
marinheiro de mar a vela, tinha sonhos te os vícios e a degeneração dos personagens que
tempestuosos: – manobrava “joanetes” e ali moravam. De um lado, havia as crianças,
“para-figos”, em voz trovejante, prague- que logo cedo saiam para vasculhar objetos com
jando como um bom marujo. o intuito de transformá-los em alguma renda, e
Ranger de leitos, respirações ofegantes, as moças que corrompiam o ambiente por meio
choros de crianças, davam ao solar-par- da sexualidade. De outro, as lavadeiras de roupas
dieiro a impressão de um recinto estra- iludidas em sonhos, que, certamente, jamais se re-
nho, povoado de fantasmas, tresandando alizariam; além disso, ainda apostavam a sorte no
Dialogia, São Paulo, v. 6, p. 65-75, 2007.
70
jogo de bicho, na esperança de conseguir algum cerca de cem mil proletários, perto do
dinheiro fácil. centro de suas atividades, ao centro do
Com isso, podemos dizer que o casarão não rio industrial, em melhores condições
passava de um ambiente no qual a sordidez impe- de higiene.
rava e, gradativamente, corrompia as personagens, Subiu à favela. Achou um dos melhores
o que motivou Cazuza a sair dali rapidamente. panoramas da cidade. Extasiou-se ante
Com medo de que Abgail fosse levada ao vício por o horizonte cheio de deslumbrantes pers-
algum outro morador, o jovem operário tratou rapi- pectivas. Nas fraldas, grudadas à pedra es-
damente de arranjar outro lugar para morar. Com caldante e nua, furnas cobertas de folhas
um pouco de sorte conseguiu alugar uma casa em de Flandres, ex-latas de querosene como
Jacarepaguá, num vilarejo operário. Assim como tetos, como paredes. À noite, vendo os
essa vila, muitos bairros também eram degradantes morros vizinhos luzirem d´entre as trevas,
e a maior parte ficava nos subúrbios e morros, con- teve pilhas incandescentes, agachados, es-
trastando com a paisagem da cidade maravilhosa
perando o momento oportuno para caírem
dos belos e grandes bairros:
sobre o vale em festa, premidos pelas ne-
cessidades do vier [...] (PALHANO, 1931, p.
Um contrate pareceu-lhe flagrantemen-
251-252).
te brusco: – a opulência nos vales, a
pobreza nos morros, salvo nos morros
Essa citação registra claramente a vida rude
chique, onde a miséria escorregava-se
daqueles operários do Rio de Janeiro. Do alto do
para as encostas.
morro, Cazuza tinha uma visão panorâmica dos
Noutros, dentro da mesma pobreza, os
barracos. Dali, o operário via estagnado “os bar-
mais “folgados” ocupando as ruas, os mais
racos” que, no seu conjunto, tinham a forma de
pobres nas escarpas, por veredas como de
colméia, onde viviam pobres miseráveis e maltra-
pacas, de acesso difícil, em contorções de
funâmbulos, nas noites escuras, nos dias
pilhos, cuja força de trabalho era explorada pelos
chuvosos, em pleno coração da cidade! proprietários.
A série de cerros, leste-oeste, da concei- Nessa cidade, os espaços destinados à moradia
ção, Saúde, favela e Pinto, parece-lhe e à circulação dos operários eram as áreas menos
o mais flagrante cartel de desafios aos valorizadas, que apresentavam pouca ou quase
direitos do operário, quanto ao confor- nenhuma condição de saneamento básico. Os tra-
to da vida moderna. Em baixo, bondes, balhadores eram arremessados e segregados em
luz em profusão, asfalto, arborizações subúrbios nos morros.
cuidadas automóveis velozes, palácios e Esse retrato é típico de um país em desenvolvi-
vivendas, o tráfego intenso dos bondes. mento, em que a dissolução das estruturas agrárias
Em cima capim, barro, pedra lascada, empurra para as cidades, camponeses sem posses,
numa extensão de quase quatro quilô- arruinados, ávidos de mudança, e os subúrbios os
metros, onde poderiam ser abrigados acolhem desempenhando papel de mediador (insu-
Dialogia, São Paulo, v. 6, p. 65-75, 2007. Artigos
71
ficiente) entre o campo e a cidade, entre a produção a garantia de um seguro. Por fim, o operário torna-
agrícola e a industrial. se descrente de tudo.
Nesse romance, o autor enfoca a ascensão da É sabido que, com a modernização progressi-
indústria nacional daquela época, mas não deixa va da cidade, houve para os centros urbanos, onde a
de relatar que os operários não desfrutavam desse criação de atividades e empregos era mais dinâmi-
viés. Apesar da grande oferta de emprego, viviam ca. As atividades capitalistas da cidade, notadamente
em total miséria e eram explorados por patrões e as indústrias, necessitavam de trabalhadores que
prestamistas. Além da má remuneração, enfrenta- dispusessem apenas de sua força de trabalho. Eles
vam a disputa com os trabalhadores estrangeiros, formavam enorme exército de fornecedores de mão-
mais experientes e com melhor instrução profis- de-obra, do qual se extraía o valor excedente, fonte
sional. As cenas de alguns ambientes industriais de acumulação de capital.
retratam cruamente a vida desses operários, muitos Neste contexto, O Gororoba é um romance
da região, e outros oriundos do sertão: tipicamente urbano. Suas cenas focalizam as
personagens no espaço citadino, desde Belém,
Era o mesmo operário do Norte: - mal passando por Manaus, ambas apresentando um
instruído, mal dormido, mal alimentado, crescimento impulsionado pela extração do látex,
mal remunerado, de rendimento quase até chegar ao Rio de Janeiro, com crescimen-
nulo, lutando com o concorrente estran- to tímido da indústria nacional, motivado pela
geiro, mais bem defendido com mais ex- cultura do algodão, da indústria naval e pela
periência, melhor instrução profissional e Primeira Guerra Mundial.
literária, melhor compleição física e maior As péssimas condições de vida e de trabalho
solidariedade entre si, patriotismo maior impostas aos operários estão presentes ao longo
[...] (PALHANO, 1931, p. 251). do romance, sempre denunciando a degradação
que sofriam e o desejo de luta por melhores con-
E assim era a vida dura de Cazuza e Abgail. dições:
Como se não bastasse, o casal teve dois filhos, au-
mentando ainda mais a despesa, dificultando, e [...] – Coitado do João começou o tornei-
muito, a manutenção da família, pois só Cazuza ro, ninguém pode avaliar como sua morte
injetava dinheiro. E assim continuou enfrentando abateu-me. Não pelo fato em si – ninguém
as mazelas da vida urbana e das péssimas condi- fica pra sempre – e sim pela miséria em
ções de trabalho que lhe eram impostas. Sua vida que viveu, trabalhando; pela miséria em
continuou sendo explorada pela industrialização que deixa a família, mendigando; pela
que a capital do Brasil passava. Foram muitos os miséria de justiça em que vivemos, nos
empecilhos: o salário baixo, insuficiente para sua matando.
subsistência; os acidentes corriqueiros que o muti- Você assistiu-lhe o enterro hoje, à custa
lavam; e tantos outros itens que, aos poucos, iam de subscrição nossa, mas não sabe que
minando sua saúde, levando-o a ficar acamado, sob durante os últimos seis meses se manteve,
Dialogia, São Paulo, v. 6, p. 65-75, 2007.
72
entre viver e morrer, da esmola pública, da O raciocínio de mestre Eugênio sintetiza-
esmola de seus amigos. va a situação como a encaravam os em-
Morreu aos sessenta e três anos. Só ali no es- barcadiços e o pensamento d´estes, mas
taleiro trabalhou 30, mais da metade de sua nenhuma das classes se decidia.
vida operária! (PALHANO, 1931, p. 268). Cazuza dispunha de alguma influência no
meio, pela moderação de seus hábitos e de
As lamentações dos sindicatos e das associa- sua língua. Ele e o presidente do Grêmio,
ções são muitas; no entanto, sem a efetivação de André santos, eram dos poucos contra a
uma greve ou de conquista concreta: greve. Os exaltados, porém, queriam-na,
e a fizeram. Os maquinistas dos navios
Nas associações de classe, nos grupos e fundeados no porto desembarcaram. Os
conciliabulos de bordo, pelas esquinas e demais embarcadiços, não.
O fato de terem grevado sós, pareceu a
botequins, discutia-se o mal de tenebrosa
Cazuza que o movimento morreria antes
ameaça; sugeriam-se remédios, discutia-
de nascer ou, pelo menos, de crescer, e,
se, comentava-se.
nesta esperança foi à procura do André
Eugênio achava que a coisa estava ruim
para trocarem idéias [...] (PALHANO, 1931,
porque ninguém levava nada para o
p. 202, grifo nosso).
Amazonas. Aquilo sempre fora lugar de
tirar, “nunca ninguém botou nada”. Todo
mundo chegava montado nos pés com
3 Considerações finais
os calcanhá na garupa e saia arrotando
contos e reis; portando tinha mesmo de se
Como já foi dito, os sindicatos de classe,
acabar. Entretanto, continuava, precisamos
naquele momento, não existiam, e os grêmios
reagir roubem o dinheiro, levem-no, mas
eram inexpressivos, de modo que não havia meios
paguem-nos as soldadas, que é dinheiro
de obter qualquer conquista para os trabalhadores.
sagrado e paguem-nas de acordo com as Uma greve não era a saída mais segura, pois havia
necessidades cada vez maiores da vida. O muita mão-de-obra ociosa. Assim, apenas alguns
lugar de peixe é na água, o de marinheiro é operários entraram em greve, sem a adesão dos
a bordo. Desarmar, para o marujo significa demais companheiros.
matá-lo. Ademais, dê ou não dê, a borra- Desse modo, os operários encontraram no
cha é armardiçoada! Que é que dela fica? Rio de Janeiro a liberdade e, ao mesmo tempo, a
O inglês a compra, deixa a libra outra vez. negação dela, porque não podiam dispor de si
Quando não a leva toda, o turco do regatão mesmo como força de trabalho. A capital do Brasil
leva o resto, ou os comandantes e patrões – esgotada a capacidade de absorção – passou a
vão gastá-la no estrangeiro. E ainda querem concentrar uma força de reserva, além dos limites
reduzir à metade o sernamby que fica para seguros e controláveis pelo sistema capitalista e pela
as bestas? ... Não, só a greve! própria estrutura urbana.
Dialogia, São Paulo, v. 6, p. 65-75, 2007. Artigos
73
Paralelamente ao desenvolvimento das nunca deveria ter saído, viver sob o flagelo da seca
indústrias, as cidades iam crescendo e a popu- era menos pior do que ter o sangue sugado pelas
lação inchava significativamente. As cidades indústrias nas cidades. O sonho de obter uma vida
ao concentrarem certas atividades econômicas, melhor tornou-se um pesadelo. A urbe só reservou
criaram uma base de serviços necessários à cir- para esse matuto as ciladas da ilusão de que a vida
culação e distribuição de mercadorias. Assim, ali era melhor.
configurou-se, segundo as razões do capital Dessa forma, concluímos que O Gororoba:
industrial, um mercado de consumo amplo cenas da vida proletária do Brasil é um romance
e organizado, que absorvia a produção da urbano, assim como muitos outros em nossa li-
fábrica, e criando um campo de trabalho livre e teratura, cuja singularidade está na ênfase dada
assalariado, que foi a condição principal para a ao operário brasileiro embora isso ainda se realize
instalação das fábricas modernas como produ- de modo ingênuo. No entanto, o grande mérito
toras capitalistas de bens. Esse mercado, para o obtido, acreditamos que seja fotografar, de modo
historiador Francisco Foot Hardman (1991, p. eficaz, a vida de operários urbanos de Belém,
122), “[...] implicou na existência de um con- Manaus e do Rio de Janeiro num período em que
tingente de proletários possuidores de força de as cidades do Brasil passavam por grande avanço
trabalho, que se tornou mercadoria disponível em conseqüência da extração da borracha, no
para os capitalistas, e esse fator foi intensificado Norte, e dos primeiros passos que a industrializa-
no Brasil a partir de 1930.” ção brasileira dava, notadamente em São Paulo e
Nesse período de ascensão da indústria na- no Rio de Janeiro.
cional e de crescimento das cidades, os conflitos
com a classe operária se acirraram, com a reali-
zação de greves organizadas pelas associações de A urban romance - O Gororoba:
operários contra patrões e o Estado. Além disso,
scenes of proletarian way of
os centros urbanos foram os lugares privilegia-
dos para a liberdade e discussão de várias idéias. Brazilian life
Assim, as cidades tornaram-se centros de concen- The objective in this paper is to show that the
tração de idéias de diversas pessoas que pensavam novel The Gororoba: scenes of proletarian life of
em um mundo mais humano, ou seja com ênfase, Brazil is essentially urban and innovatis among
na revolução do operariado. those that belong to the social novel in 1930.
As cidades configuradas nesse romance estão Palhano’s story was one of the first that focalize
sob o processo de desenvolvimento industrial e se the workman in Brazilian literature. He got to
apresentam como espaço de difícil adaptação para show us in this novel, evenil superficially, the life
o sertanejo, pois ele não consegue ambientar-se and the drama of the proletarians that worked in
rubber extraction and in industry in the begin-
ao ritmo de vida das urbes. Os diversos ambien-
ning of the XX century.
tes citadinos, antagônicos ao do sertão, tornam-se
verdadeiras armadilhas para o sertanejo. Existe Key words: Brazilian literature. Proletarian.
ainda, a tentativa de retornar ao lugar de onde Regionalism. Urban novel.
Dialogia, São Paulo, v. 6, p. 65-75, 2007.
74
Referências DEAN, Warren. A industrialização em São Paulo:
1880 –1945. 1. ed. Tradução Otávio Mendes Cajado. São
ALVES FILHO, F. M. R. Sociologismo e imaginação no Paulo: DIFEL; USP, 1971.
romance brasileiro. 1. ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
1938. HARDMAN, F. F. História da indústria e do trabalho
no Brasil: das origens aos anos 20. 2. ed. São Paulo:
CANDIDO, A. Vários escritos. 3. ed. São Paulo: Duas
Ática, 1991.
Cidades, 1995.
FAUSTO, B. História do Brasil. 2. ed. São Paulo: Edusp, PALHANO, L. O Gororoba: cenas da vida proletária do
1995. Brasil. 1. ed. Rio de Janeiro: Terra de Sol, 1931.
______. Trabalho urbano e conflito social: 1890 REZENDE, A. P. História do movimento operário. 1.
- 1920. 1. ed. São Paulo: DIFEL, 1976. ed. São Paulo: Ática, 1986.
recebido em 11 jul. 2007 / aprovado em 19 nov. 2007
Para referenciar este texto:
SILVA, R. J. da. Um romance urbano – O Gororoba:
cenas da vida proletária do Brasil. Dialogia, São
Paulo, v. 6, p. XX-XX, 2007.
Dialogia, São Paulo, v. 6, p. 65-75, 2007. Artigos
75