Adn Da Frelimo Power and Money 2
Adn Da Frelimo Power and Money 2
Adn Da Frelimo Power and Money 2
JOÃO MOSCA
JOÃO MOSCA
Natural da Beira, com infância e parte da juventude passada na Gorongosa, liceu (escola
secundária) na Beira passando a viver em Lourenço Marques, depois Maputo. Esteve 20 anos
no exterior em formação de doutoramento e posterior exercício profissional em universidades
e centros de pesquisa.
Entre 1976 e 1987 exerceu funções de direcção e técnicas em organismos centrais e locais
do Ministério da Agricultura moçambicano e em empresas estatais. É docente e investigador
desde 1987 nas áreas da sua formação.
Possui perto de 200 trabalhos publicados em Moçambique, Espanha, Portugal, França, Brasil,
Alemanha, Itália e Angola, entre livros, artigos em revistas científicas, capítulos de livros,
revistas e jornais de opinião. Possui 32 livros publicados a “solo”, como coordenador de
edição ou como co-autor.
Actualmente apenas faz pesquisa, sendo Director Executivo do Observatório do Meio Rural.
ÍNDICE
CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................8
CAPÍTULO 2
ENQUADRAMENTO DE FACTOS E EPISÓDIOS HISTÓRICOS...................................................................11
2. PERÍODO PÓS-INDEPENDÊNCIA......................................................................................................................22
2.1 Do Governo de Transição (20 de Setembro de 1974) ao III Congresso (Fevereiro de 1977)...............................22
CAPÍTULO 3
IDEOLOGIAS, RACISMO, TRIBALISMO E RELAÇÕES EXTERNAS.........................................................60
2. RACISMO E TRIBALISMO...................................................................................................................................64
CAPÍTULO 4
MÉTODOS REPRESSIVOS VIOLENTOS...........................................................................................................74
1. INTRODUÇÃO.......................................................................................................................................................74
2. ASSASSINATOS E DESAPARECIMENTOS........................................................................................................75
3. FUZILAMENTOS...................................................................................................................................................89
4. LEI DA CHICOTADA............................................................................................................................................91
5. RAPTOS..................................................................................................................................................................92
6. RESUMO.................................................................................................................................................................93
CAPÍTULO 5
CENTROS/CAMPOS DE REEDUCAÇÃO............................................................................................................96
1. O DISCURSO OFICIAL.........................................................................................................................................96
2. A PRÁTICA DE IMPLEMENTAÇÃO....................................................................................................................97
4. RESUMO...............................................................................................................................................................101
CAPÍTULO 6
RESUMO..................................................................................................................................................................103
PREFÁCIO
Edson Cortez
“Até que os leões tenham seus próprios historiadores, a história da caça sempre glorificará
o caçador.”
Proverbio africano
O livro que o leitor tem em mãos, constitui uma oportunidade para que possa compreender
que todas as histórias podem ter diferentes versões, dependendo da perspectiva dos actores,
o conhecimento mais ou menos profundo sobre determinados factos narrados ou escritos, a
familiaridade com os assuntos narrados, tudo isso pode influenciar a compreensão e o rumo
da história que se pretende contar.
Os vencedores, tendencialmente tem uma versão da história que procura sempre vanglorizar
os seus feitos, mostrar a sua heroícidade perante os factos narrados e omitir deliberadamente
ou por conveniência factos menos abonatórios.
Ao ler este livro, parafraseando o provérbio acima mencionado, o leitor terá a oportunidade
de conhecer a outra versão, a dos “leões”, que nunca puderam contar o que viram, sabem ou
viveram, durante o período coberto pela análise deste livro.
O “ADN da Frelimo: Dinheiro e Poder”, procura apresentar uma outra face da história desde
os tempos da Frente de Libertação Nacional até os dias da actualidade em que se tornou
partido dominante, num sistema multipartidário frágil e cheio de resquicios do período de
monopartidarismo.
O leitor esta convidado a mergulhar numa viagem que irá apresenta-lo uma versão que
convenientemente não interessa que seja do dominío público, tanto para os actuais, como
também para os antigos detentores do poder. Não interessa, porque este livro documenta a
face menos atraente da Frelimo, sistematizando acontecimentos, factos e evidências que são
do conhecimento dos moçambicanos e que fazem parte da nossa história.
O livro apresenta ao longo dos seus capitulos e de forma sucinta, a génese da Frelimo, as lutas
etnico-tribais pelo controlo do movimento, as disputas para escolha da ideologia dominante
dentro do movimento e como essas tensões e a necessidade de impor a força as ideologias das
elites vencedoras dentro do partido, em determinados momentos resvalaram para situações
de intolerância, através do uso de meios repressivos tais como os fuzilamentos públicos,
assassinatos ou desaparecimento fisico de figuras políticas incomodas as elites de então.
O autor mostra que a génese da Frelimo contribui para moldar a forma de actuação no pós-
independência, e o rumo que o país tomou, nada mais é do que, o reflexo da intolerância e
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aversão à critica, que já era a nota dominante no período da luta armada. E muita das práticas
de repressão que caracterizaram este movimento no período da luta de libertação nacional,
continuam a ser reproduzidas na actualidade, sempre que as elites sentem os seus interesses
ameaçados.
Os argumentos apresentados neste livro demonstram que a Frelimo é uma organização política
sem ideologia, extremamente habilidosa no discurso e que os seus membros procuram a todo
custo controlar o partido, de modo a controlar o Estado e possibilitar acumulação de capital
que de outra forma não seria possível.
Boa leitura
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CAPÍTULO 1
INTRODUÇÃO
Moçambique enquadra-se nos casos dos países referenciados no parágrafo anterior. O estudo
pretende compreender as continuidades e descontinuidades de opções políticas e económicas
da Frelimo, as formas de conquista e defesa do poder, a captura das instituições do Estado
de Direito, tornando-as plataformas de negócio das elites, de distribuição de recursos e
privilégios, instrumento de defesa e reprodução do poder. Pretende-se estudar a formação
da Frelimo e as principais mudanças e conflitos internos, os desafios ao longo de 60 anos,
as grandes opções, sucessivamente com discursos nacionalistas, socializante e reformistas
a caminho da liberalização e democracia que se tornou em capitalismo selvagem com
predomínio do saque. Abordam-se as razões do envolvimento de Moçambique nas lutas no
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Zimbabué e na África do Sul, a guerra civil, os conflitos pós-eleitorais e a guerra de Cabo
Delgado. As transições económicas do colonialismo para a fase da narrativa socialista e para
a economia de mercado e Estado aparentemente liberal. Os métodos de conquista e defesa do
poder com autoritarismo, repressão e violência, a supressão do individuo em nome do suposto
colectivo (de minorias), os campos de “reeducação”, os fuzilamentos, desaparecimentos e
espancamentos de opositores, a mentira como método de gestão política e governativa e
de propaganda, a corrupção e a captura do Estado por interesses de indivíduos e grupos de
famílias e de burocratas. É importante conhecer os mecanismos e artifícios de mobilização
e de propaganda política em contexto do populismo político e Estado autoritário, incluindo
a mentira, o desaparecimento de pessoas e pactos de silêncio e de compromissos materiais.1
Considerando os objectivos, este trabalho possui um enfoque crítico e refere-se aos casos,
a opções políticas e ideológicas e a formas de direcção e gestão do poder e das burocracias
que fundamentam a hipótese do trabalho. Isso significa que o autor, mesmo que tendo tido
uma participação activa no pós-independência, enquanto dirigente de empresas estatais e do
Aparelho de Estado, entre 1976 e 1986/87 (deixando então de ser militante do partido), assume
essa fase como de voluntariosa, de boa vontade e idealista acreditando, ingenuamente, nos
discursos e ideologia propagandeada. Da experiência e vivência e, posteriormente, enquanto
académico, tomou consciência fundamentada e sistematizada sobre a Frelimo, as ideologias,
suas formas e métodos de actuação, os poderes e contradições internas, as fundamentações
das opções políticas e económicas na governação e acerca das relações externas.
Este trabalho tem como objectivo final, analisar aspectos evolutivos que caracterizam a
Frelimo e os seus fundamentos políticos e ideológicos e respectivas consequências para o
país e para os moçambicanos. O título ADN Frelimo: Power and Money, sintetizam as bases
que sustentam e reforçam as características de continuidade desde a fundação da Frente de
Libertação de Moçambique.
Além da introdução, o livro possui seis capítulos. No segundo, faz-se uma retrospectiva
analítica/descritiva (desde a formação de Frelimo em 1962 até 2021) dos aspectos essenciais
que fundamentam as hipóteses de trabalho. Os capítulos seguintes aprofundam três
aspectos fundamentais: as questões ideológicas da Frelimo e da governação com o título
Ideologias, racismo, tribalismo e relações externas; o capítulo 4 tem o título de métodos
repressivos violentos, onde se apresentam factos e episódios relacionados com assassinatos e
desaparecimentos de pessoas, fuzilamentos, lei da chicotada e raptos; No capitulo 5 dedica-
se aos campos/”centros” de reeducação. Finalmente, faz-se um resumo onde se ressaltam
as características principais da Frelimo enquanto frente de libertação e partido político
1 O padre Filipe Couto, um antigo militante da Frelimo, afirmou que a história de Moçambique ensinada nas escolas
está cheia de mentiras. Entrevista ao jornal Canal de Moçambique de 21 de Julho de 2021 e afirma: “A história da
Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e dos país (aquela que nos é imposta nos manuais de ensino) está mal
contada, com muitas mentiras à mistura, já não é novidade, já não surpreende ninguém”.
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único e dominante, e enquanto responsável pelas opções fundamentais da governação e,
posteriormente, em contexto de regime multipartidário.
O autor está ciente que muitos procurarão, com argumentos diversos, descredibilizar o
conteúdo ou partes dele. Pela natureza sensível de muitos dos assuntos referidos no texto,
o autor procurou, sempre que possível, colocar diferentes versões e percepções de pessoas
directamente ou indirectamente relacionados com os factos fazendo o mesmo quando a base
documental utilizado também não é consensual.
Existem alguns factos que são referidos de forma semelhante em mais que uma ocasião ao
longo do texto. Essa constatação, deve-se à necessidade de enquadramento/fundamentação
de alguns episódios apresentados mais que uma vez, mesmo que em diferentes contextos e
abordagens.
O autor sabe e conhece militantes que merecem o maior dos respeitos e admiração, não
somente pelos contributos às causas do país e dos moçambicanos, como pelas suas posturas
de seriedade, honestidade, ética e coerência. Mas não são muitos casos, infelizmente!
Finalmente, o autor pretende contribuir para uma análise serena da evolução da história
recente do país, para que, cada vez mais, textos não escritos pelos vencedores contribuam para
a formação das novas gerações. As expectativas não incluem, infelizmente, a possibilidade da
Frelimo, como instituição partidária com fortes responsabilidades. possa, um dia, pedir perdão
aos moçambicanos e ao país, particularmente àqueles que tombaram pela pátria, acusados
liminarmente de exploradores, traidores, reaccionários e agentes do inimigo. Àqueles a quem
a mentira e a manipulação da propaganda, suportou opções marcantes para todas as suas
vidas. Ao povo em geral que vive na pobreza, que poderia ser minimizada se não houvesse
tanta corrupção, roubo e mordomias autoatribuídas. Finalmente, o país imerso em conflitos
violentos e sociais, onde o tribalismo e o racismo são fomentados na prática, a imagem de
um país dos mais pobres do mundo, em estado de incumprimento das dívidas, de financiador
do terrorismo mundial. E uma comunidade internacional que por detrás dos discursos e da
cooperação e ajuda humanitária, impõe políticas económicas e públicas, exige condições
extraordinárias na mobilidade do capital externo e de operação das multinacionais, facilitando
o saque dos recursos naturais.
Pedir perdão não é uma traição ou vergonha. É, sim, um acto de valentia, humildade e de honra.
Será contra a natureza da Frelimo? O padre Filipe Couto1, diz: “um país como Moçambique
tem dignidade, se todos aquileus que morreram na calúnia, embora trabalharam, também
forem reabilitados (…) muita mentira, muita corrupção, muita injustiça, terá que ser aberta”.
1 Idem, Ibidem.
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CAPÍTULO 2
ENQUADRAMENTO DE FACTOS E EPISÓDIOS HISTÓRICOS
Em função dos objectivos do trabalho, foi definida a seguinte periodização: O ponto 1 inclui
os períodos entre 1962 e 1975, onde se inclui a formação da Frelimo, os primeiros anos da
Frelimo até ao II Congresso (1968) e, entre 1968 e a independência. No ponto 2, entre a
independência e finais do século XX, analisam-se os seguintes aspectos/subperíodos: o III
Congresso e a reestruturação da economia no que o autor designa por “experiência socialista”,
as relações com as igrejas e as autoridades locais/”tradicionais”, a guerra civil e as reformas
económicas e a crise política, económica e social. Finalmente, no ponto 3. Analisam-se o
período a partir de princípios do século XXI.
A relação entre os períodos e os factos e episódios não é rígida. Existem realidades (factos/
episódios) que aconteceram ao longo de mais de um período; nestes casos, procurou-se colocar
a escrita no período de maior incidência/importância dos factos e conforme os objectivos do
trabalho. Periodização.
1 https://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2011/10/sobre-a-funda%C3%A7%C3%A3o-da-Frelimo-em-ac-
cra-ghana2.html.
2 Teve a sua origem na Rodésia do Sul e era apoiado por Joshua Nkomo, Presidente da ZAPU - Zimbabwe African
People’s Union.
3 Manu (União Nacional Africana de Moçambique, criada em 1961, na Tanzânia). Existia ainda, como um dos três
movimentos de libertação antes da Frelimo, a Unami (União Nacional Africana de Moçambique Independente),
também surgida em 1961, no Malawi, por Baltasar Chagonga.
11
Feliciano Gundana, um dos fundadores da Frelimo e que esteve em Acra (juntamente com
Marcelino do Santos e Pascoal Mocumbi), refere numa entrevista ao jornal “O País”1: “A
Frelimo não foi constituída em Acra. A Frelimo foi constituída em Dar-es-Salaam, entretanto,
antes do 25 de Junho de 1962, teve lugar em Acra uma conferência dos combatentes da
liberdade, e os membros da Udenamo foram convidados, Frelimo nomeadamente, Adelino
Guambe. Nessa altura, já decorria o trabalho de preparação da própria conferência constituinte
da Frelimo, e, por outro lado, aqueles que foram para a Acra já tinham participado nessas
reuniões, portanto, a conferência constituinte teve lugar após o regresso desses membros.
Estas afirmações omitem a assinatura de uma declaração de constituição da Frelimo, em
Acra, assinada pela Udenamo e a Manu. Membros da futura ala vencedora no I Congresso
FRELIMO (nomeadamente Marcelino dos Santos e Feliciano Gundana) estiveram presentes
no encontro.
O entrevistador insiste: “Mas foi em Acra onde se criou o nome Frelimo.”, e Gundana
responde: “A ideia foi criada em Dar-es-Salaam, porque é onde havia a maioria dos membros;
onde as discussões da unificação dos movimentos tiveram lugar. Quando foram a Acra não
era para criarem a Frelimo, era para participarem na conferência dos combatentes. Por isso, a
Frelimo é criada no dia 25 de Junho de 1962, numa conferência constituinte...”. Por diferentes
razões, seria muito difícil que Gundana referisse Acra como eventual local de constituição da
Frelimo, nomeadamente porque se pretendia que a Tanzânia, fosse o local de acolhimento da
Frelimo (veja mais adiante).
Porém, outra versão é referida num comentário de Jaime Khamba2: “Por favor moçambicanos,
o dia 25 de Junho não foi o dia em que a Frelimo foi fundada. O dia 25 de Junho de 1962 foi
o dia de eleições da Frelimo e não da fundação da Frelimo. Surpreenderemos os senhores que
insistem naquela data como a data da fundação da Frelimo um dia quando vos apresentaremos
os documentos originais e as assinaturas das pessoas que os assinaram em Acra, Gana, no dia
2 de Fevereiro de 1962. Mais uma vez: notem que o 25 de Junho de 1962 foi o dia da eleição
na Frelimo”.
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O discurso em que Mondlane é apresentado como o “arquitecto da unidade” não é totalmente
certo. A escolha de Mondlane nunca teve o consenso. Foi nomeado por ser, até então,
“externo” às disputas entre vários membros dos três movimentos de libertação e considerando
a sua formação. O facto de ser casado com uma branca, era um factor de desconfiança.
Este primeiro aspecto de Unidade e “desunidade” vem a confirmar-se nas votações do II
Congresso, onde Uria Simango, também candidato, perdeu por 3 votos para Mondlane. Outros
acontecimentos descritos ao longo do texto revelam as mesmas dúvidas quanto ao papel de
Mondlane enquanto o “arquitecto da unidade”. O discurso oficial apresenta os dissidentes
ou militantes que questionavam Mondlane como “inimigos internos infiltrados” (agentes do
inimigo), ambiciosos.
As diferenças de datas e locais estendem-se ao início da luta de libertação (“o primeiro tiro”):
“Apesar de em 1983, o Sistema Nacional da Educação (SNE) instruir os professores de que
a data de 25 de Setembro marcou o início da luta armada em Cabo Delgado e Niassa”, ou
mesmo constar que na “mesma data, outro grupo da Frelimo atacou um barco militar no
lago Niassa” (Costa & Sitoe, 1995, p. 62), as menções referentes ao Niassa acabam por ser
solapadas pela narrativa na qual Chai (ou Mueda), figura como o lugar do início da luta
armada em Moçambique. Decerto ficou autorizado que constasse que “em 25 de Setembro de
1964 teve início a Luta Armada de Libertação Nacional, na região de Chai, na Província de
Cabo Delgado, no norte de Moçambique” (Costa & Sitoe, 1995, p. 60).1
O General Bonifácio Gruveta, igualmente afirmou: ““Não acredito mesmo onde quer que
seja, que a luta de libertação nacional tenha iniciado em Cabo Delgado” - disse o General, para
depois soltar um riso e sustentar esta sua afirmação alegando que “para o vosso conhecimento,
a guerra teve início no dia 24 de Setembro e nada disso que vocês andam a ouvir”.2
1 Em Milton Marcial Meque Correia (2019). História e textualização: a historiografia da frente do Niassa (moçambi-
que)1964-1974. https://www.scielo.br/pdf/rh/n178/2316-9141-rh-178-a09417.pdf.
2 https://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2010/09/general-gruveta-confessa-e-duvida-chipande.html
3 http://psimg.jstor.org/fsi/img/pdf/t0/10.5555/al.sff.document.chilco159.pdf
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O resultado foi a expulsão do Comité Central do Secretário-Geral, tendo finalmente que sair
de Tanganyika, acompanhado de um punhado de elementos dissidentes, seus aliados e amigos,
tais como o Paulo Gumane e Joao Munguambe, o último dos quais, mais tarde, foi persuadido
a regressar. Face a essa situação triste, o Presidente da Frelimo foi forçado a, prematuramente,
terminar o seu contrato com a universidade onde ensinava e voltar para a Africa Oriental, para
participar na solução dos problemas que tinham surgido.
Mais tarde, estes e alguns outros seus amigos, desapareceram da Frelimo, tendo-se integrado
completamente na vida do país em que nasceram e cresceram. Preocupados pela impressão
de divisão que a saída do Secretário-Geral da Frelimo e dos demais membros do Comité
Central dava ao mundo, o Comité Central decidiu enviar o Presidente da organização ao
Cairo, onde, alguns deles, se encontravam refugiados, para tentar persuadi-los a regressar para
o seio do partido.2 O Presidente foi ao Cairo e, depois de vários esforços para os convencer da
necessidade de reconciliação, conseguiu obter uma promessa de que eles todos regressariam a
Dar-es-Salaam logo que se conseguisse uma permissão especial do governo tanganhicano, que
os tinha expulsado. Também se comprometeram em não estabelecer uma outra organização
política, enquanto se negociasse a reconciliação entre eles e o Comité Central da Frelimo.
Em menos de dez dias do último encontro com os líderes do grupo, o Mabunda e os seus
companheiros anunciaram à imprensa mundial que tinham feito reviver a Udenamo, uma
das três organizações políticas das quais originara a Frente de Libertação de Moçambique
e acusaram o resto dos líderes da Frelimo de todo o tipo de crimes que puderam imaginar.
Mais tarde, os mesmos indivíduos, aproveitando-se das divisões constantes entre países
independentes da Africa e de outros continentes, aboliram a Udenamo e formaram a
Funipamo, depois de um ano, os mesmos indivíduos aboliram esta e formaram a Coremo
(Comité Revolucionário de Moçambique), depois de se terem fundido com um outro grupo
chamado Moreco que se tinha formado no ano anterior.
Mais tarde, ainda os mesmos vagabundos, formaram uma outra organização chamada Unar
(União Nacional Africana da Rumbezia, pondo a Sumane, vice-presidente do Coremo como
presidente), com o propósito de desarmar o Exército da Frelimo para depois, alega um dos seus
panfletos, pacificamente negociar a independência da parte de Moçambique que se encontra
entre os rios Rovuma e Zambeze. Entretanto os primeiros líderes destes grupos divisionistas
cansaram-se das brincadeiras e decidiram safar-se por algum tempo deste tipo de política. Foi
o caso do Adelino Guambe, que por muito tempo foi o inventor de novos nomes para o mesmo
tipo de organizações”.
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“O inimigo, de vez em quando, tenta criar confusão entre as massas e países independentes,
lançando nomes de organizações dirigidas por fantoches sem escrúpulos, que não representam
nada mais do que as suas próprias barrigas. Cada ano, nas reuniões do Comité de Libertação e
dos Chefes de Estado da OUA, o inimigo tenta lançar nomes de novas organizações políticas
moçambicanas, insistindo que sejam reconhecidos e dados auxílio também. Mesmo agora que
o Comité de Libertação se reúne em Argel, estou convencido que, o inimigo mandou para lá
alguns dos seus fantoches para tentar multiplicar o número de movimentos que a OUA deve
suportar em Moçambique, com o propósito de diluir o valor material e moral do auxílio dos
países independentes da África”.
Foi neste período (entre os dois primeiros congressos), em que Nkavandame reivindicava a
independência parcial de Cabo Delgado e que Filipe Samuel Magaia é morto em circunstâncias
estranhas em Niassa pelo “camarada” Lourenço Matola quando regressavam à Tanzânia depois
de uma missão em Niassa.1 Entre os dois congressos iniciou-se a luta de libertação nacional,
onde militantes foram treinados em vários países, nomeadamente Argélia, Marrocos, URSS
e China. O primeiro grupo de guerrilheiros foi treinado na Argélia e integravam esse grupo
Filipe Samuel Magaia, Samora Machel, Zeca Caliate, entre outros futuros dirigentes. Foi
nesse período que se iniciou a luta armada em Cabo Delgado e Niassa. Teve ainda início a
“frente” da Zambézia, mas foi suspensa/adiada/cancelada, principalmente por duas razões:
(1) fraco apoio ou não apoio do Governo do Malawi como país de trânsito dos guerrilheiros;
e, (2) resistência da população zambeziana (sobretudo na fronteira com o Malawi). Entre
os dois congressos, constituiu-se o Instituto Moçambicano, espaço de debates e onde se
reflectiam importantes pontos de vista diferentes entre os militantes dirigentes da Frelimo
(veja na secção racismo). Organizaram-se os campos de treino miliar especialmente os de
Nachingwea, Kongwa e Bagamoyo.
Como consequência, a economia, durante a década dos anos 70, cresceu, em média, cerca de
7% por ano.
1 “Relatórios da Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) apontam-no como a pessoa que atirou contra
Filipe Magaia obedecendo a uma “ordem não especificada numa altura em que a liderança de Mondlane era posta em
causa”, o que é corroborado com o relatório da polícia Tanzaniana (não vou entrar em detalhes), que o encarcerou na
prisão durante 5 anos sem julgamento, findos os quais recebeu ordem de expulsão e refugiou-se no Quénia onde veio
a morrer atropelado em 1989”. Em https://ambicanos.blogspot.com/2017/07/lourenco-matola-o-homem-que-atirou.
html.
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1.3 O II Congresso da Frelimo
O II Congresso é considerado pela Frelimo, como o Congresso da vitória. Segundo Filipe Nyusi,
o “II Congresso da Frelimo deve constituir-se como um compromisso agregador de diferentes
gerações e aglutinador de um ideal de unidade nacional ao serviço do desenvolvimento da
pátria, (…) os ideais defendidos há 50 anos pelos jovens que lutaram pela independência de
Moçambique permanecem actuais e devem nortear as novas gerações na busca de soluções
para os desafios actuais do país, (…) Frelimo manifesta a sua confiança na mentalidade
de prosseguir na materialização dos ideais defendidos há 50 anos nesse importante evento
político”, acrescentou o chefe de Estado moçambicano, observando que o congresso serviu
para eliminar contradições internas da frente de libertação”.3
1 Palavra oriunda do inglês chairman que significava aqueles que dirigiam as reuniões, faziam a mobilização do povo
e difundiam a linha política da Frelimo nas zonas libertadas e nas frentes de combate. Estes, na sua maioria, não eram
guerrilheiros. Nascem assim algumas contradições entre os “políticos” e os “militares” que o discurso oficial não
aceita. Esta contradição assume relevância na designada crise no Instituto Moçambicano da Frelimo, na Tanzânia.As
contradições “macherman”/militares tem ainda como razão, o facto dos primeiros serem os anciãos conhecidos nos
locais, pessoas influentes junto da população, os mobilizadores (políticos/”comissários políticos”) da Frelimo e ges-
tores das primeiras “machambas do povo” e da “Frelimo” e das lojas do movimento de libertação. Embora o discurso
oficial se refira quase que exclusivamente aos macherman como os “novos exploradores” e ambiciosos políticos e
económicos”, militantes, que conhecem esse período, não confirmam ser esta a razão das conflitualidades no poder.
O conflito militares/político reflectiu-se ainda no Instituto Moçambicano da Frelimo em Dar-es-Salaam (veja mais
adiante) e depois mais adiante com alguns posicionamentos de militares face a diferentes acontecimentos/realidades.
2 Machedje, localiza-se a escassas centenas de metros da fronteira com a Zâmbia.
3 https://www.dn.pt/lusa/pr-mocambicano-diz-que-ideais-do-ii-congresso-da-Frelimo-devem-orientar-novas-gera-
coes-9637355.html.
4 https://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2013/05/segundo-congresso-da-frelimo.html. Leia mais na edi-
ção impressa o “Suplemento Especial- 50 anos- Frelimo “do «Jornal O País» (2012).
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Foi no II Congresso que a chamada “linha correcta” da Frelimo triunfou.1 Pretendia-se a
independência total e completa de Moçambique e não independências parciais como era o
objectivo de Nkavandame ou da Coremo com a independência da Rumbezia (entre o Rovuma
e o rio Zambeze), e definiu-se a guerra até à vitória “completa e total” sobre o colonialismo.
O II Congresso representou a derrota de alguns membros, como Uria Simango que concorreu
à presidência da Frelimo e foi derrotado por dois votos (esta é uma das razões por que os
vitoriosos do Congresso acusaram Simango de ser “ambicioso”).
Fizeram-se opções quanto à gestão política e económica das zonas libertadas, sobretudo em
Cabo Delgado, criando as “machambas” da Frelimo2 onde a população deveria trabalhar
“colectivamente” durante dois a três dias por semana, sendo a produção destinada à alimentação
dos guerrilheiros, às lojas do povo para a comercialização da produção das machambas dos
camponeses e venda de bens de primeira necessidade, sendo evidente, nestes casos, o embrião
do “trabalho colectivo” e cooperatização do meio rural, das empresas estatais agrárias, das
lojas do povo adoptados depois da independência, e as aldeias como ponto de partida de
experiências para as aldeias comunais, também inspiradas nas ujahamas da Tanzânia e nas
comunas chinesas.
As relações com a Zâmbia foram variáveis no tempo. O Malawi não apoiava abertamente
a Frelimo devido às relações de Kamuzu Banda com Portugal, por via de Jorge Jardim, e
a necessidade dos corredores da Beira (principalmente) para as importações e exportações
deste país, além das reivindicações fronteiriças no lago Niassa. Por exemplo, não permitia a
instalação de bases de treino, embora conhecesse o trânsito de militares e material de guerra
da Frelimo e o apoio aos escritórios da Frelimo em Lilongwe, capital do país.3 Após o II
congresso, e já no início da década dos anos setenta, existiu maior abertura do governo do
Malawi, o que permitiu a abertura da frente de Tete, em 1972.
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que, entre os movimentos de libertação, havia uma pretensa separação entre os libertadores
“puros” e os “não puros”, os primeiros mais próximos da URSS e os segundos da China.
Pertenciam aos “puros”, por exemplo, a Frelimo, ANC sul-africano, Mpla de Angola, a Zanu
do Zimbabué e a União Nacional Africana do Tanganica (Tanganyika African National Union
– Tanu, em inglês). Os “não puros”, entre outros, eram os outros movimentos de Moçambique,
a Unita e a Fnla de Angola, a Zapu do Zimbabué. Interessante verificar como estas “divisões”
persistem (ou se repercutem) ao longo do período deste estudo, nomeadamente nas fases pós-
independência e nos conflitos internos aos movimentos de libertação, entre estes e após as
independências.
Os países nórdicos e Holanda e nas forças progressistas de alguns países capitalistas (como
por exemplo, a Fundação Eduardo Mondlane na Holanda, partidos políticos e organizações
da sociedade civil) davam apoio não letal. Porém, existe um largo historial das relações da
Frelimo e de elementos da Frelimo com a União Soviética e depois Rússia e com a China.
No dia 3 de Fevereiro de 1969, Eduardo Mondlane é assassinado por uma bomba. O discurso
oficial refere ter sido nos escritórios da Frelimo em Dar-es-Salaam, o que não é verdadeiro;
foi em casa da então secretária de Mondlane, Betty King (também americana, tal como a sua
esposa Janeth Mondlane) numa das praias perto da capital tanzaniana. Tudo indica que o
livro-bomba tenha sido preparado pela PIDE (Polícia Internacional e de Defesa do Estado de
Portugal), em Lourenço Marques. Não se entende porque foi Mondlane quem abriu a carta e
em casa de Bety King.
Depois da morte de Mondlane, a Frelimo foi dirigida por um triunvirato constituído por
Samora Machel, Uria Simango (que saiu, tendo desertado, em 1970, refugiando-se no
Cairo, após múltiplas acusações de estar envolvido na morte de Mondlane) e Marcelino dos
Santos, permanecendo Machel como presidente e Dos Santos como Vice-Presidente até ao III
Congresso (1977).
No dia 1 de Agosto de 1974, quando já existiam contactos a diferentes níveis entre o exército
português e a Frelimo em diferentes zonas e as negociações conducentes ao acordo de paz
a 7 de Setembro de 1974, a Frelimo ataca a base militar junto da fronteira com a Tanzânia,
no posto administrativo de Omar (Namatili), onde 137 soldados portugueses se rendem sem
qualquer disparo.1 Este ataque pode ser analisado como um golpe de teatro”, como forma de
pressionar as negociações com Portugal, demonstrar força militar, fazer prisioneiros e revelar
clemência do movimento de libertação. Em contrapartida, a Frelimo solicitava a devolução
dos seus combatentes capturados e feitos prisioneiros.
Os acordos de LusaKa de 7 de Setembro, foram o culminar da guerra.2 Porém, existiam em
1 Depois do 25 de Abril de 1974, o exército colonial ficou praticamente desmobilizado aguardando pela assinatura
dos acordos de paz e, entretanto, vários cessares-fogos aconteceram localmente por acordo entre os comandantes da
Frelimo e do exército português.
2 Esta data é feriado nacional e comemorado como o “dia da vitória”.
18
Portugal, na linha do Presidente António de Spínola (que foi comandante militar na Guiné),
após golpe militar a 25 de Abril, tentativas de criar um país federado, com independências
parciais das colónicas. As forças progressistas do exército e organizações partidárias de
esquerda e o povo português, em geral, recusavam esta opção, o que foi conseguido. Os
militares que realizaram o golpe militar estavam cansados das guerras nas colónias e sabiam
da inevitabilidade da derrota.
Nas negociações, a parte portuguesa tentou impor a realização de um referendo, dando origem
à célebre frase de Samora, em como “não se pergunta a um escravo se quer ser livre, e mais
quando ele já se revoltou”. Tentaram eleições democráticas envolvendo os partidos existentes
e os que estavam em formação. A Frelimo exigiu ser um único interlocutor nas negociações e
assim aconteceu. Uma vez mais se afirmava ser a única força que lutara pela independência e,
por isso, reivindicava-se como o “único e legítimo representante do povo”.
Surge aqui um dos primeiros sinais de uma independência da Frelimo que reivindicava o
monopólio dos méritos da libertação e a luta armada como a única força que obrigou Portugal
a aceitar a independência. As lutas dos outros movimentos de libertação nas outras colónias,
o contexto e as pressões anti-coloniais internacionais, os processos de independência de
outros países africanos, o movimento dos capitães de Abril, as forças progressistas em vários
países e em particular em Portugal, não constituíam, para a Frelimo, factores de mudança e
contribuintes para a independência.
1 Destaca-se de entre os excluídos da Frelimo por serem considerados de “reaccionários”, a constituição do “Partido
da Coligação Nacional” (PCN), na esperança de disputar eleições com a Frelimo. Ao PCN aderiram várias outras
figuras proeminentes do movimento de libertação e dos dissidentes da Frelimo: Paulo Gumane e Adelino Guambe
(também membro fundador da Frelimo), o Padre Mateus Gwengere e Joana Simeão. A Frelimo recusou eleições mul-
tipartidárias. No dia 7 de Setembro de 1974 houve manifestações de portugueses radicais do partido FICO, constituí-
do depois do 25 de Abril em Maputo, não favoráveis à independência e à Frelimo. A esta acção designaram de MML
(Movimento de Moçambique Livre). Assaltaram o Rádio Clube de Moçambique, de onde difundiram a intenção de
não permitir a tomada de poder pela Frelimo (Governo de Transição tomou posse no dia 20 de Setembro de 1974).
O movimento alastrou-se, embora em menores proporções, para outras cidades, particularmente Beira e Nampula. O
movimento estancou pela retomada do Rádio Clube em Maputo por militantes da Frelimo na clandestinidade (Grupo
Galo da Mafalala) e por outros grupos e pessoas individualmente com apoio de militares portugueses (Comité da
Revolução). “A delicada decisão de invadir a rádio estava nas mãos do Coronel Melo Egídio, Chefe do EstadoMaior
do Comando Territorial Sul e do Comando Operacional de Lourenço Marques”. “Melo Egídio apontou Le Bon para
dirigir a operação e ordenou que lhe dessem um fardamento de alferes. A ideia era que Le Bon seguisse para o Rádio
Clube acompanhado por uma brigada de paraquedistas e, assim que fosse tomada a rádio, assumisse os microfones”
…. “A entrada de Le Bon no Rádio Clube foi muito facilitada pela sua camuflagem, como militar português, que lhe
garantiu as necessárias credenciais”, em Galo amanheceu em Benedito Machava, (2015). Lourenço Marques: O 7
de Setembro e o verso da descolonização de Moçambique. Revista Crítica de Ciências Sociais, 106.“Estes motins,
na verdade, exprimiram o desespero da pequena burguesia branca e mestiça luso-colonial de ver recusada toda a
representatividade na formação de um governo provisório formado por Portugal e por uma Frelimo já virtualmente
partido único; contudo, só podiam ser interpretados pela maioria da população africana como uma tentativa de lhe
roubar o seu direito à independência”, AFRICANA STUDIA, N.º 15, 2010, Edição do Centro de Estudos Africanos
da Universidade do Porto. Moçambique: o “fim da história” única. Trajectórias dos anticolonialismos em Moçambi-
que”. Michel Cahen.
19
As fotografias dos “comprometidos” foram afixadas nas entradas dos serviços públicos,
não podiam ser membros da Frelimo e estavam excluídos de cargos de responsabilidade no
Estado.1 Eram considerados agentes infiltrados do inimigo.2 Além disso, houve uma grande
reunião na actual escola secundária Josina Machel em Maputo com os ex-presos políticos,
muitos deles também acusados de colaboracionismo e alguns de traição (os que se diziam
terem revelado segredos e denunciado outros militantes). Muitos destes foram enviados para
trabalhos no meio rural, como forma de purificação das ideias do colonialismo, gesto de
reconciliação e futuro envolvimento na “revolução”. Alguns nomes de grande projecção
nacional e internacional foram abrangidos neste processo. Este processo possui a mesma
natureza política que o tratamento havido durante a guerra em relação aos traidores, embora
com métodos repressivos menos violentos. Era a afirmação de uma Frelimo autoritária,
monopolizadora, única representante do povo.3 Era a submissão de moçambicanos ao poder
da Frelimo num suposto processo de clemência e reconciliação.
Depois dos acordos de Lusaka, a AAM procurou ajustar-se ao novo contexto e foi, como
anteriormente, em prol da independência com posicionamento de esquerda. A Direcção da
AAM solicitou “orientações do Reitor da Universidade que nada dizia, aguardando orientações
do Comité Central que jamais chegaram. Todas as funções e relações da Frelimo e da reitoria
eram canalizadas para os grupos dinamizadores da ULM e faculdades.4
Em Lourenço Marques, surgiu o Movimento dos Democratas de Moçambique, constituído
sobretudo pela elite da sociedade colonial e com orientação de esquerda, sendo alguns então
ex-membros ou membros do Partido Comunista Português, incluindo moçambicanos que
estiveram próximos da Juventude Comunista em Portugal. Muitos dos democratas assumiram
elevadas responsabilidade no Governo de Transição e no primeiro governo de Moçambique;
outros foram destacadas personalidades políticas em Portugal. O movimento, assim como a
AAM e pelas mesmas razões, deixou de existir antes da independência.
1 Palavra designada para identificar politicamente aqueles que, de algum modo, tinha colaborado com o regime
colonial, como membros da OPVDC (Organização Provincial de Voluntários e Defesa Civil) -uma espécie de milí-
cias), os que tinham servido a PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado), no exército colonial, em especial
nas forças especiais de moçambicanos negros chefiados por soldados portugueses ou moçambicanos brancos (GEP
Grupos Especiais Paraquedistas e GE, Grupos Especiais), entre outras formas “colaboracionistas do regime. Os GE e
GEP eram treinados em Sofala, nos arredores da cidade da Beira e conotados com Jorge Jardim.
2 A propósito destes elementos “comprometidos” com o regime colonial, apelava-se à “vigilância popular”. É só
com a vigilância e com a participação activa da população, de todos nós, que sentiremos essa responsabilidade, e
saberemos que isso representa um perigo imediato e a longo termo: a presença de elementos que serviram fielmente
a política fascista, a política socialista, aqueles que impediram um processo revolucionário no nosso país”
3 “Não foi necessário decretar o monopartidarismo porque havia um consenso popular em relação ao papel de van-
guarda da Frelimo. A bandeira da Frelimo cobria todos os moçambicanos e eu próprio não precisava de guarda-costas
para abrir alas, a bandeira da Frelimo abria alas”, frisou Chissano, em https://macua.blogs.com/moambique_para_to-
dos/2015/12/os-campos-de-reeduca%C3%A7%C3%A3o-tinham-um-objectivo-nobre-joaquim-chissano.html, e ST-
V-Noite Informativa 05.12.2015 “Consenso” sem algum debate e votação/referendo e com muitos dissidentes,” não
precisava de guarda-costas”, mas rodeados por muitos.
4 Muitos estudantes universitários viram que a Frelimo adoptou a estratégia de “secar” uma organização estudantil,
dentro da concepção de um movimento/partido único, totalitário, sem admissão de qualquer forma de organização
não-partidária dos cidadãos. Sobre este processo, veja História da AAM (Associação Académica de Moçambique
(1964-1975), de Carlos Lopes Pereira e Luíz Gonzalez (2016), Calendário de Letras.
20
A Frelimo auto declara-se, uma vez mais, como o único e legítimo representante do povo
moçambicano e, por isso, nada justificaria eleições ou a partilha do poder.
Muitos dos assassinatos e outros actos de repressão violenta, ficaram sem apuramento dos
agentes criminosos, tanto executantes, como mandantes. Igualmente, existem discursos
não verdadeiros sobre os locais dos acontecimentos, por exemplo, fundação da Frelimo em
Dar-es-Salaam ou em Acra; primeiro tiro em Chai ou Niassa ou Zambézia; assassinato de
Mondlane nos escritórios da Frelimo ou em casa1 da secretária de Mondlane na praia de Dar-
es-Salaam. Isto é, a camuflagem dos factos, o diversionismo e os pactos de silêncio de grupos
de lutas de poder na Frelimo, fazem parte de um modo de actuação muitas vezes suportado
pela mentira, calúnia e intriga2.
Em algumas ocasiões, formaram-se partidos independentistas que terminaram por não ter
expressão militar e política porque lutavam entre si. Motivaram a criação desses partidos,
por um lado, dissidências na Frelimo e insatisfação com a orientação política e militar da
Frelimo e, por outro lado, devido a Frente de Libertação sempre se auto denominou como
único representante do povo, seja internamente, como em consequência do reconhecimento
de organizações internacionais, sobretudo africanas e das ex-colónias portuguesas. Isto é,
a Frelimo sempre se apresentou como um movimento de libertação que lutou de diversas
formas, e reivindicou o monopólio do poder, não se escusando, para o efeito, de utilizar
métodos violentos, autoritarismo e o não respeito pelos direitos humanos.
A Frente de Libertação de Moçambique, desde cedo, revelou habilidades no estabelecimento
de relações externas com países, organizações políticas e da sociedade civil, e individualidades,
com as quais poderia obter benefícios, muitas vezes independentemente da orientação política
desses parceiros.
21
militar (e militarista), concentradora e centralizadora do poder dominado por grupos e
alianças de um número reduzido de pessoas, de forte disciplina interna e com métodos de
sancionamento violentos e não respeitadora dos direitos humanos, e onde as decisões eram
tomadas por grupos restritos de militantes com alianças de duração variável e de diferentes
naturezas (política e ideológica, de opções estratégicas e tácticas militares, étnicas e raciais).
2. PERÍODO PÓS-INDEPENDÊNCIA
O “povo” regozijou-se com sentido de afirmação e com o final dos “500 anos de colonialismo”
2
.O discurso oficial ressaltou o xibalo, as deportações, as culturas obrigatórias e o trabalho
forçado. O homem negro era agora igual ao branco que tinha derrotado.
O discurso de investidura do Governo de Transição, a 20 de Setembro de 1974, referia em
determinado momento:
“Quem governava? Eram governantes aqueles que serviam interesses de um punhado de
grandes exploradores.
22
O que caracterizava o governo dos exploradores eram os privilégios, a arrogância despótica,
o favoritismo, o nepotismo, o arbitrário. Para utilizar uma expressão corrente, os problemas
eram resolvidos pelo sistema das «cunhas», os próprios direitos mais elementares como o
direito ao trabalho apareciam como um favor dos governantes. Até a dignidade da mulher era
moeda de troca para a obtenção do emprego”.1
23
e o discurso de corte populista desenvolvido nas zonas libertadas seguindo o ditado maoista
de que o povo está para o guerrilheiro como a água para o peixe, encarna a metodologia de
mobilização popular para “as tarefas da revolução” e o princípio de “contar com as próprias
forças”. A 7ª Sessão do Comité Central da Frelimo, realizada em Fevereiro de 1975, dias
antes da independência e aquando da viagem do “Rovuma ao Maputo” de Samora Machel,
refere: “Esta reunião tinha por objectivo a definição das orientações básicas do Estado e assim
define a natureza e fins do poder de Estado, do poder da aliança operário-camponesa, para
edificar a nova sociedade. Define a fase revolucionária, fase da democracia popular. Define
a força dirigente do Estado e da sociedade que é a Frelimo. Define as estruturas do poder de
Estado, estruturas democráticas do poder de classes. Define os aliados e os inimigos de classe
no plano nacional e internacional”.1 Nessa reunião foi aprovada a primeira Constituição da
República.2
O extracto do discurso apresentado revela claramente: (1) uma linguagem marxista com
elementos de populismo e de institucionalismo (importância central do poder em torno à
burocracia/estruturas da Frelimo); (2) a Frelimo como “força dirigente do Estado e da
sociedade”, isto é, plenos poderes de definição de estratégias e consequente subalternidade
do Governo da República. Estes elementos são coerentes com os princípios, contradições
e opções constitutivas da Frelimo, que foram motivo de lutas internas e das decisões do II
Congresso como marco da “vitória” da linha revolucionária e derrota dos “reaccionários”.
24
Portugal na medida em que as burocracias públicas não tinham mais qualquer função. Os
regressados (funcionários públicos, empresários, etc.) foram designados de retornados e,
muitos (sobretudo os funcionários públicos), receberam apoios diversos de reintegração na
sociedade portuguesa.
Com isto, surgem os primeiros sinais de crise económica depois da década dos anos sessenta,
até 1974. Entre 1974 e 1976, a produção de colheitas para exportação diminuiu em 40%,
o milho cultivado pelos camponeses em 20%, a mandioca em 61% e a produção agrícola
dos colonos (produtos hortícolas e alimentares para abastecimento das cidades) em 50%.
No mesmo período, a produção industrial baixou em 36%’ (Newit, 1997: 473; Wuyts, 1985:
186).2 Segundo Mosca (2005: 259 e 260): “Não existem dados entre 1975 e 1980. Pelo método
de relacionamento dos agregados macroeconómicos básicos (consumo, investimentos,
gastos públicos, exportações e importações) é possível confirmar a percepção da realidade:
a expansão nos gastos correntes do Estado, dos investimentos públicos e o crescimento do
défice da balança comercial a ritmos superiores ao do crescimento económico, implicaram,
necessariamente, uma retracção do consumo privado, por um lado, e o financiamento
público com emissão de moeda (Wuyts, 1989 e 1991); a nível micro, a contenção salarial,
a manutenção dos níveis de emprego e os resultados financeiros negativos das empresas
estatais, provocaram excesso de procura (ou défice de oferta). Estes factores contribuíram
para que surgisse a economia informal e o mercado paralelo com inflação, como resposta ao
controlo administrativo dos preços e aos desequilíbrios entre a oferta e a procura.
Não obstante, pode-se deduzir que, no período de transição (1974-1976), tivesse acontecido
o contrário, isto é, uma elevação do consumo privado. Admitindo que a inflação oficial
tem correspondência com a realidade (o que é admissível porque todos os preços ficaram
controlados e nos primeiros anos o mercado informal não era relevante), e que existiram
subidas salariais “descontroladas”, o poder aquisitivo dos assalariados melhorou a curto
prazo. Se a estes dados for acrescentado que as acessibilidades aos serviços aumentaram,
como consequência das nacionalizações, e que o sentimento de liberdade existiu para a
1 Jovens que estudavam no exterior, geralmente em cursos superiores.
2 Teresa Maria da Cruz e Silva. Moçambique: Um perfil. https://www.ces.uc.pt/emancipa/gen/mozambique.html
25
maioria dos cidadãos, é possível admitir que o nível de vida melhorou, sobretudo para os
citadinos; principalmente para estes, devido à concentração do emprego e dos serviços nos
centros urbanos. Estas conclusões não contrariam a percepção da realidade vivida e encontra
coerência com a política de novas alianças sociais.
Depois da independência e antes do III Congresso, foi o período da estruturação das instituições
da Frelimo e a abolição das estruturas coloniais e saída dos seus agentes (funcionários do
Estado português) que, naturalmente, regressaram ao país de origem. A frase “escangalhar
o aparelho de Estado colonial” ficou célebre; consistia em instalar o Aparelho do Estado da
Frelimo pois o colonial era agora estrangeiro, opressor, discriminador. Estruturar um Estado
que servisse o povo, representante da aliança operário camponesa.1
Uma das questões centrais são as relações de poder entre o partido e o Governo e demais
órgãos de soberania. A Frelimo “dirige o Estado e a sociedade”, o que se reflecte em vários
aspectos, como por exemplo: (1) definição dos objectivos, controle da governação e das
empresas públicas e, se necessário, intervenção partidária directa; (2) na nomeação das
cúpulas do sistema judiciário e dos reitores das universidades públicas que, entretanto, diz-
se ter autonomia científica e administrativa;2 (3) controle da informação e particularmente
dos órgãos de comunicação públicos; (4) intervenção da Frelimo no aparelho de Estado e
demais órgãos de soberania, e nas empresas públicas, através das células do partido. Esta
realidade é conhecida como a “partidarização” do aparelho de Estado3. As questões de defesa
e segurança, em muitas ocasiões, confunde-se se actuação das forças de defesa e segurança
são comandadas ou em defesa do partido ou do Estado e dos cidadãos (como são os casos
decorrentes, por exemplo, durante as eleições)
26
funções: protecção de instalações, sobretudo das empresas estatais no meio rural; participar
ou assegurar comboios militares para o escoamento da produção e de insumos; participar
nos controles de circulação rodoviária ao longo das estradas; entre outras. As milícias eram
recrutadas nas aldeias e nas empresas, tinham um curto treino militar, possuíam uma estrutura
de comando que era supervisionada pelo director da empresa ou comandante militar da zona.
As milícias, inspiradas nas zonas libertadas durante a luta de libertação nacional, eram uma das
componentes da dita “revolução popular democrática”, supria a necessidade de um exército
de grandes efectivos que se deveriam concentrar em outras funções de defesa e segurança.
No dia 8 de Março de 1977, um mês depois do III Congresso, o presidente Samora Machel,
no pavilhão do Maxaquene, cheio de jovens estudantes das escolas secundárias anunciou
(fez o “chamamento”) para que a juventude assumisse responsabilidades na construção da
nova nação. Estudantes universitários interromperam os seus estudos e tiveram diversas
“afectações”, como, por exemplo: estudar fora do país em cursos em diferentes áreas, ingressar
em cursos militares e em formações técnicas (principalmente nas áreas de defesa e educação).
Foi o Estado, através do Ministério da Educação, que indicou, através de listas afixadas em
vitrines, qual o destino de cada um, independentemente dos desejos e vocação individual.
Uma vez mais, a decisão do Partido Frelimo, em nome do povo e do país e da revolução, toma
decisões colocando os interesses “colectivos” definidos por uma minoria, contra a liberdade
do individuo.1
Muitos jovens moçambicanos foram formados em diferentes áreas, em Cuba (na Ilha da
Juventude). Chegaram a Moçambique médicos e técnicos em várias actividades económicas
e sociais, sem que, aparentemente, houvesse alguma contrapartida de interesses económicos
por parte de Cuba.2 Pode especular-se numa divisão do trabalho do “mundo socialista”,
que, no caso de Moçambique, pode-se admitir a divisão entre a URSS (apoio militar com
contrapartidas económicas), Cuba com apoio técnico (incluindo nas áreas de segurança) e
a República Democrática Alemã (RDA), com apoio na segurança e interesses económicos,
entre outros países. Os moçambicanos “enviados” para a ex-RDA iam principalmente para
cursos práticos e a maioria trabalhava em fábricas como operários, Depois de anos, muito
regressaram e outros permanecem na Alemanha. Os que permaneceram, constituíram as suas
vidas naquele país e não desejam regressar; dos que voltaram, reclamam junto do Governo
e do Ministério do Trabalho, por pagamentos de salários não recebidos naquele país e que
constituíam remessas dos trabalhadores moçambicanos enquanto permaneceiam na RDA.
Durante anos, estes regressados fizeram manifestações e marchas nas ruas de Maputo, mas
sem resultado. Existe em Maputo, uma zona conhecida como o mercado dos “madgermanes”.
1 “Não é aquilo que eu quero, não é aquilo que tu queres, é aquilo que nós queremos, aquilo que o povo quer”, pala-
vras de Samora, no dia 7 de Março, https://www.jornalnoticias.co.mz
2 Estas acções eram designadas s como de acções de “solidariedade internacionalista”.
27
coordenado pelos respectivos serviços secretos, que possuía, como um dos suportes,
os portugueses que saíram (fugiram) ou foram expulsos de Moçambique por diferentes
razões; (2) reacção do regime de Ian Smith à Frelimo que prestava apoio aos movimentos
zimbabweanos. Neste quadro, destaca-se: (1) campos de treino militar em território nacional
(principalmente nas províncias de Tete e Manica); (2) incursão no interior da Rodésia do Sul
de militares moçambicanos disfarçados ou incorporados nas forças da Zanu-PF (Zimbabwe
African National Union – Patriot Front, em inglês), sendo conhecido o ataque aos depósitos
de combustível na capital rodesiana;1 (3) ataques aos caminhos de ferro do Zimbabwe e suas
ligações com a África do Sul.
Ian Smith procurava impedir que o movimento de libertação de Robert Mugabe (de origem
Shona, com origem no império Monomotapa), a quem a Frelimo privilegiava as relações,
comparativamente com o partido de Joshua Nkomo3 (de etnia Ndebele, a sul do Zimbabwe
e com maiores ligações com o apartheid sul-africano), que havia, anteriormente, apoiado
independentistas moçambicanos que se separaram ou saíram da Frelimo após a constituição
desta.
O discurso dos governos da África do Sul e da Rodésia do Sul referiam a natureza comunista
da Frelimo e os apoios prestados aos movimentos de libertação, especialmente ANC e a
1 É conhecido o ataque aos depósitos de combustível em Salsbury (hoje Harare, capital do Zimbabwe). Existem
várias versões sobre o facto: a primeira, refere que foram militares moçambicanos, juntamente com guerrilheiros
da Zanu, que realizaram o ataque; a segunda afirma que militares moçambicanos estavam “coincidentemente em
Salsbury, o que seria pouco provável, pois o regime de Ian Smith dificilmente aceitaria militares moçambicanos na
Rodésia; uma terceira, que parece ser a mais credível (a julgar pela fonte), o incêndio resultou de uma acção de sa-
botagem, tendo em consideração a defesa intransponível dentro de um determinado perímetro à volta dos depósitos.
Em qualquer das três possibilidades, existe uma presença moçambicana.
Diz-se ainda que o ataque foi incentivado por Samora Machel com o intuito de dificultar o funcionamento da econo-
mia rodesiana, que resistia às sanções económicas das Nações Unidas.
2 As mais mediatizadas, foram o ataque aos depósitos de combustíveis na cidade da Beira (posterior ao ataque idên-
tico realizado em Salsbury (hoje Harare) e, portanto, muito provavelmente de retaliação) e os ataques aos campos
de refugiados zimbabueanos (principalmente na província de Manica, destacando-se ao campo de Inhazónia, com
participação dos primeiros homens armados da Renamo (então MRN), entre os quais constava André Matsangaiça,
e o ataque à ponte sobre o rio Pungué, perto da Beira (cerca de 50 quilómetros), entre Tica e Dondo, na Estrada
Nacional Nº 6.
Um participante no ataque aos depósitos de combustíveis da Beira, um membro das forças rodesianas, afirma numa
conversa pessoal, que o grupo de militares foram transportadas por um submarino até às imediações da Beira, segui-
ram de barcos, e, depois do acto consumado, saíram de novo pelos mesmo barcos e foram recolhidos por helicópteros
rodesianos próximo da foz do rio Pungué.
Posteriormente, a segurança e as autoridades moçambicanas, procuraram investigar sobre os “inimigos internos” e
pessoas do Aeroclube da Beira, foram acusados de estarem envolvidos. Um dos seus membros, estava para ser fuzi-
lado num estádio de futebol e, à última da hora, com os preparativos finalizados para o acto, Samora Machel mandou
um mensageiro para que tal não se concretizasse.
3 Nkomo fundou e liderou a União Popular Africana do Zimbábue (Zapu).
4 O autor deste livro, então jovem estudante internado no colégio dos Maristas na Beira (a 200 metros da praia do
bairro Palmeiras), via aviões da força aérea britânica em patrulhamento na costa beirense.
28
ZAPU. Por parte da Frelimo, o discurso apelava para o fim do colonialismo e do racismo
na zona Austral de África como “zona libertada da humanidade” (libertada não só desses
dois elementos, como ainda do capitalismo expresso no hino nacional onde se referia que
Moçambique seria “o túmulo do capitalismo”). 1 Henry Kissinger, então secretário de Estado
dos Estado Unidos, referiu-se à pinça comunista da África Austral, sendo Moçambique e
Angola os braços da pinça e a África do Sul a “presa”.2
Além destas acções na África Austral, Moçambique teve alguma participação na guerra
entre a Tanzânia e o Uganda (1978/79)3 em consequência de Idi Amin tentar anexar a região
de Kagera. A participação foi de militares moçambicanos em operar com equipamento de
artilharia pesada (nomeadamente os chamados “órgãos Estaline” de 40 canos), do exército
tanzaniano.
Em resumo, pode-se afirmar que o período de transição e até ao III Congresso, A Frelimo teve
como estratégias/objectivos os seguintes: (1) eliminar qualquer possibilidade de surgimento
de grupos políticos em eventual contexto democrático, ou outros, com ou sem ligações com
forças das sociedades sul-africanas e de Portugal, e reafirmar o monopólio do poder da
Frelimo, ainda não constituída como partido, incluindo a prisão, os campos de reeducação, o
desaparecimento e fuzilamento de opositores e de “sabotadores económicos”; (2) estruturar
o poder e o Estado de Moçambique que, no discurso, seria um “Estado de operários e
camponeses”, passando pelo escangalhamento do poder de Estado colonial; (3) eliminar
alguma possibilidade de continuidade/reprodução do sector privado (capitalista e colonial) de
sectores estruturantes da economia (transportes, banca e seguros, comércio externo e grandes
indústrias) e da sociedade (principalmente habitação, educação e saúde), através das empresas
nacionalizadas ou intervencionadas, criando as empresas estatais (sector empresarial estatal),
1 Parte do hino de Moçambique, entre 1975 e 2002: “Unido ao mundo inteiro - Lutando contra a burguesia - Nossa
Pátria será túmulo - Do capitalismo e exploração - O Povo Moçambicano - De operários e de camponeses - Engajado
no trabalho - A riqueza sempre brotará”.
2 Tomé Miranda Maloa (2016). História da Economia Socialista de Moçambicana, Universidade de São Paulo.
Dissertação de Mestrado.
3 Existem duas versões sobre esta participação moçambicana: foram os tanques moçambicanos que entraram em
Kampala para o golpe final ao regime ou, a segunda, os tanques do exército tanzaniano foram pilotados por militares
moçambicanos.
29
acompanhado de discursos políticos e ideológicos radicais no conteúdo e inflamados na forma,
de modo a que os empresários receassem continuar a actividade em Moçambique; (4) alargar a
base social de apoio popular a todo o país através de discursos públicos de conteúdo populista,
com aproveitamento do carisma de Samora Machel, das reuniões populares (“banjas, como
eram conhecidas)1 e da mobilização de pessoas para certas actividades (como, por exemplo,
os grupos dinamizadores e os grupos de vigilância); a derrota colonial e a independência
nacional, conferiram um amplo apoio popular à Frelimo. Isto é, os objectivos deste período
foram os de eliminar politicamente a continuidade/ressurreição política, ideológica e do poder
económico colonial, eliminando os possíveis agentes e grupos económicos ou políticos. Por
outro lado, lançar as bases do poder da Frelimo e iniciar a estruturação das burocracias do
“poder popular” e da “economia socialista”; (5) iniciar actividades de apoio à libertação da
África do Sul do regime da Rodésia, continuando o ambiente de tensão política e confronto
militar na região.
Por outro lado, foi no período imediatamente antes do Governo de Transição e da independência,
quando se lançaram as bases de futuros contextos que dificultaram ou impediram, a prazo, o
alcance dos objectivos da narrativa da Frelimo, principalmente: (1) a instauração de um regime
monopartidário de corte autoritário; (2) os alicerces/condições que facilitaram/permitiram o
início e a duração de uma guerra civil de 16 anos2, e de posteriores conflitos intermitentes por
razões internas; (3) o colapso da opção socialista; (4) a natureza da solidariedade internacional,
sobretudo na região austral de África e da conflitualidade na zona. Uma natureza discursiva
de solidariedade, mas que mais adiante, na secção das relações externas no capítulo 3, será
analisada nos seus aspectos instrumental, circunstancial e de diplomacia ajustada a interesses
do país e das elites nacionais.
A independência de um país é sempre razão de regozijo por parte de todo o povo. Foi um
período de festa, de afirmação de identidade, do nascer de uma pátria e de um país, e o
início dos ideais da construção de uma nação próspera e desenvolvida em benefício de todos
os cidadãos. Multiplicaram-se manifestações de jubilo e realizações culturais, discursos de
vitória sobre o colonialismo e apresentando-se como uma potência e apoiada pelas grandes
forças políticas, económicas e militares do mundo. Era o virar de uma página que se dizia, e
diz, de 500 anos de opressão, escravatura, trabalho forçado, discriminação, desigualdades, etc.
Independentemente dos caminhos e críticas aos movimentos de libertação, as independências
constituem, certamente, em qualquer país, a data mais simbólica das nações.
É também neste período que acontecem os discursos mais empolgantes dos méritos da
libertação e da Frelimo, com a história contada pelos vencedores que, posteriormente, se foi
descobrindo sobre as veracidades e também acerca das inquinações, parcialidades, silêncios
e mentiras.
1 “Banjas” eram reuniões realizadas por responsáveis da Frelimo com a população, trabalhadores de empresas e
moradores de bairros, com o objectivo de “difundir a linha política da Frelimo”. Na prática, eram obrigatórias. Em
Montepuez, perante a ausência de alguns cidadãos comerciantes da cidade não terem acudido a uma banja e por
ordem de um “chefe” da Frelimo, foram retirados das suas casas e levados deitados nas camas para assistir à banja
também deitados.
2 Nos discursos oficiais referem-se a uma “guerra dos 16 anos” ou “guerra de desestabilização”, como forma de
desviar à atenção da natureza que o conflito assumiu, a partir de princípios dos anos oitenta.
30
a) O III Congresso da Frelimo e a reestruturação da economia. O Plano
Prospectivo Indicativo
Grande parte da economia não informal foi integrada nos Planos Estatais Centrais (PEC) com
a duração de um ano, onde a quase totalidade dos recursos financeiros, dos factores de capital,
da distribuição de bens de capital e de consumo, e dos recursos humanos (quadros superiores e
licenciados) eram afectados pelos PECs e executados por empresas de distribuição de factores
de produção, pela banca estatal (estatizada - o Banco Popular de Desenvolvimento - BPD),
por empresas de comercialização da produção final, pelas empresas estatais de exportação e
de importação. Houve um forte extremismo (como no discurso político), nacionalizando-se
ou intervencionando e constituídas empresas para a gestão de barbearias, comércio rural (foi
criada a empresa Lojas do Povo que pretendia gerir todas as lojas do meio rural, em todo o
país), mercearias e lojas nas cidades (criadas as cooperativas de consumo, como organização
dos cidadãos, por bairro, criaram-se os Gabinetes de Apoio à Produção (GAPOs) para a gestão
de todas as pequenas e médias empresas agropecuárias. As empresas intervencionadas ou
nacionalizadas de média e grande dimensão, que produziam bens considerados estratégicos,
eram geridas por uma empresa estatal assim constituída à luz da legislação de então.2
As cooperativas de consumo nas cidades abasteciam os cidadãos com base em um cartão onde
indicava a quantidade de alimentos em função do tamanho do agregado familiar. Existiu uma
estrutura, a nível municipal, que programava o abastecimento. As quantidades eram limitadas
e não suficientes para a alimentação das famílias. Formavam-se grandes filas diante das
1 A partir de então e até meados da década seguinte, “o ambiente tornou-se altamente influenciado pela estética
soviética, com pirâmides, estrelas, uniformes militares e hierarquias rígidas: o líder no topo, seguido do bureau polí-
tico, do comité central, das estruturas do partido até o nível local, e, finalmente, da sociedade em geral. O tempo foi
também severamente disciplinado, com planos quinquenais, um Plano Prospectivo Indicativo, concebido para acabar
com o subdesenvolvimento em dez anos, ou mesmo um plano para reassentar em aldeias comunais toda a população
rural do país num prazo de dez anos. Mais uma vez, isto serve de metáfora clara da vitória do urbano sobre o rural”,
em https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0034-83092019000100327&script=sci_arttext.
Havia uma forte disciplina interna (na Frelimo e no Estado), burocracias hierarquizadas, controle ideológico, dis-
cussão “dentro das estruturas” no quadro do princípio “unidade – crítica - unidade” (de uma plataforma inicial de
“unidade” – ou unidade em torno das decisões dos comandos, discutiam-se os pontos de vista e opiniões divergentes
“dentro das estruturas” – para depois, existir um segundo nível de unidade com as ideias discutidas e, se necessário,
com depuração de fileiras, o “inimigo interno”).
2 Apontam-se apenas, como exemplo, a ENACOMO E.E. para importação de bens diversos (sobretudo factores de
produção), a EMOCHÁ para a produção de todo o chá de Moçambique; a ROMOS, ROMOC e ROMON, para trans-
porte de passageiros nas zonas Sul, Centro e Norte, respectivamente, os Caminhos de Ferro do Sul, Centro e Norte, a
MECANAGRO E.E. que prestava serviços de mecanização em todo o país, empresas industriais, entre muitas outras.
31
cooperativas, desde madrugada. A maioria das cooperativas encerraram após a reabilitação
económica e outras transformaram-se em empresas geridas por privados.
Paralelamente, criou-se uma empresa designada por FNAC (com base na empresa portuguesa
do mesmo nome e pertencente, nessa altura, ao Partido Comunista Português). Esta empresa,
com natureza fundamentalmente de um supermercado tinha por objectivo retirar moeda externa
do mercado (emigrantes moçambicanos da África do Sul, estrangeiros, etc.). Era ainda nesta
empresa que as elites do partido Frelimo e do Estado adquiriam bens inexistentes no mercado
e que obtinham, durante os primeiros anos após a independência, nas viagens ao exterior
(pocket money). Paralelamente, foram criadas (em Maputo) as “lojas dos responsáveis” de
dois níveis, conforme a hierarquia dos dirigentes.
Este parágrafo revela que, embora o discurso referia para um regime de igualdade social, com
base no padrão de acumulação centralizado no Estado de “todo o povo” que asseguraria, no
processo de distribuição, a tal desigualdade social. Porém, por via da distribuição dos bens e
serviços. essa redistribuição possuía elementos de diferenciação social.
As empresas estatais funcionavam com financiamento assegurado pela banca estatal (BPD),
independentemente dos resultados financeiros ou reembolso dos financiamentos. Tinham,
numa primeira fase, dois objectivos principais: (1) manter a produção e, portanto, a oferta,
seja para o mercado interno como para exportação; e, (2) assegurar o emprego.
32
em 1989); ano em que as empresas estatais consumiam cerca de 52,8% do crédito agrário e
as empresas privadas 45,6%. O restante, menos de 2%, destinou-se ao sector cooperativo e,
eventualmente, a alguns produtores de pequena escala (Mosca, 2005).1
O PPI é aprovado entre o III Congresso e 1980 na Assembleia Popular5 e possuía uma
perspectiva de uma década.
O PPI indicava a ambição de uma socialização total do meio rural (através de empresas
1 Mosca, João (2005). A economia de Moçambique, Século XX. Editora Instituto Piaget. Lisboa.
2 Casal, Adolfo Yánez (1991): “Discurso socialista e camponeses africanos: Legitimação político-ideológica da
socialização rural em Moçambique (Frelimo, 1965-1984). Revista Internacional de Estudos Africanos, N.os 14 e 15,
pp. 35-75.
3 CPP, correspondia ao que se designa por Bureau Político (nos partidos comunistas) e às comissões políticas dos
partidos, como órgão supremo que funciona nos intervalos entre congressos, responsável pela implementação das
directivas partidárias.
4 A origem das ACs, surge, aparentemente, de Samora Machel que, ao voar de Nampula para Lichinga, durante a
viagem do Rovuma ao Maputo, perguntou a um dos quadros, que posteriormente viria a ser o Primeiro-Ministro da
Agricultura: como poderia haver educação, saúde, água canalizada, energia, etc., para a população dispersa. Porém,
documentos e discursos da Frelimo referem o conceito/estratégias das ACs para as aldeias nas zonas libertadas, as
aldeias na Tanzânia (ujahamas) e as comunas chinesas. Na verdade, conforme se depreende deste livro, as ACs não
foram uma opção pragmática, mas, sim, uma opção ideológica de desenvolvimento no quadro da socialização do
meio rural.
O Primeiro-Ministro da Agricultura, depois de um parecer técnico acerca das cautelas na implementação das ACs, foi
fortemente criticado numa sessão do Comité Central do Partido Frelimo, tendo sido expulso como membro do partido
e demitido de Ministro. Foi considerado um democrata social (contra a linha política e as directivas da Frelimo) além
e outras adjectivações.
Houve várias velocidades na construção e aglomeração da população nas aldeias: as existentes nas zonas libertadas;
as que tiveram origem em zonas de confronto militar onde a população foi aldeada pelo governo colonial (aldeamen-
tos; nos vales dos rios após inundações e no resto do país; e o aldeamento pelo Partido Frelimo em redor de grandes
empresas agrícolas; nas zonas mais abrangidas pela guerra civil; e, em outras zonas do país.
Em geral, pode-se afirmar que a concentração da população em aldeias, não foi compulsiva.
5 Aprovado em 1980, na VIII Secção da então Assembleia Popular (AP), durante a primeira república (República
Popular de Moçambique), de 1975 a 1 de Dezembro de 1990. A AP passou a designar-se de Assembleia da República
e a República Popular de Moçambique passou a designar-se por República de Moçambique.
33
estatais, das cooperativas), com unidades de produção tecnificadas, de alta produtividade e
onde a população possuía os serviços básicos assegurados pelo Estado. A população dispersa
deveria ser agrupada em aldeias comunais, a base social e de vida dos operários da empresas
estatais e dos cooperativistas de base produtiva colectiva (“trabalho colectivo”, “em grupo”
com designações militares - brigada, pelotão, etc.), meios de produção do Estado (terra) e de
meios de produção de todas os cooperativistas, sendo os resultados igualmente distribuídos,
independentemente do trabalho de cada um. Existem versões em como as ACs, além de serem
parte de uma opção política de desenvolvimento, eram também uma estratégia de controle da
população, sobretudo em contexto de guerra civil e da importância de retirar o possível apoio
da população à Renamo, tal como aconteceu durante a luta de libertação, nas zonas libertadas.1
Um estudo de Geffray e Pederson (1985)2 afirma que “as aldeias comunais criaram conflitos
entre a população e entre os ´notáveis´ das comunidades”, e que as estruturas sociais das
comunidades foram replicadas aquando da integração nesses assentamentos urbanos, porém,
entrando em conflito com as estruturas do Partido Frelimo (os Grupos Dinamizadores) que
representavam o novo poder.
Com a intenção de dificultar a exploração mineira sul-africana (um dos sectores mais
importantes da economia do país vizinho), a emigração de moçambicanos3 foi desincentivada.
A importância da emigração possuía várias dimensões (económicas, sociais e culturais). Era
a fonte de aumento do rendimento familiar e de investimentos na pecuária (sobretudo de
bovinos), em arados para trabalhar a terra com tracção animal, para o pagamento do lobolo
e o jovem era considerado adulto após o período de um contrato nas minas sul-africanas. A
presença de mão-de-obra moçambicana nas minas da África do Sul, chegou de representar
entre 14 e 24% na população activa do Sul de Moçambique e perto de 20% do total de
trabalhadores das minas.4 A proibição de funcionamento/recrutamento de moçambicanos
pela empresa Wenela reduziu drasticamente a emigração com consequência importantes
económicas e sociais.
1 Existe um “slogan” ou princípio de guerrilha maoista, que afirma que o povo está para o guerrilheiro assim como
a água está para o peixe. Sem o apoio e participação popular, a guerra de guerrilha não sobrevive e o guerrilheiro
(“peixe”), “morre”.
2 Geffray, Christian e Pedersen, Mogens (1985): Transformação da Organização Social e do Sistema Agrário do
Campesinato no Distrito de Erati: Processo de Socialização do Campo e Diferenciação Social. Maputo, Universidade
Eduardo Mondlane e Ministério d Agricultura. Mimeografado.
3 “Em 1922, foi revogada a Convenção de 1909 celebrada uma outra em 1928 definiu os limites de 12 e 18 meses
por contrato e o número máximo de 80.000 Moçambicanos do Sul do paralelo 22º a trabalhar nas minas e o mínimo
de 65.000. Em contrapartida, a África do Sul comprometeu-se a fazer transitar pelo porto de Lourenço Marques uma
percentagem de não menos de 47,5% das mercadorias importadas por via marítima relativas à zona de competência.
Comprometeu-se ainda a pagar directamente ao governo moçambicano em ouro, ao câmbio de 42,22 dólares/onça,
50% dos salários do tempo superior a 9 meses de trabalho dos emigrantes, que estes recebam nas suas zonas de ori-
gem em escudos, quando regressavam. Além disso, o Governo de Moçambique recebia 44 xelins e seis dinheiros pelo
número médio de emigrantes a trabalhara nas minas”. em Mosca, João (2005). A economia de Moçambique, Século
XX. Editora Instituto Piaget. Lisboa.
4 Mosca (2005), obra citada. Veja ainda Centro de Estudos Africanos (1978): O mineiro moçambicano. Maputo,
Centro de Estudos Africanos.
34
O PPI pressupunha uma expectativa de crescimento e transformação económica e social
profundos e muito rápidos.1 A modernização da economia e da sociedade era o objectivo
dessas transformações, no quadro de uma revolução popular e democrática e, em alguns outros
discursos, uma revolução socialista popular ou somente socialista. Esta perspectiva, supunha
o apoio económico massivo dos países socialistas, sobretudo da Europa e em particular da
URSS. Foram projectados grandes projectos, como o dos 400.000 hectares em Cabo Delgado
e Niassa, o dos 120.000 hectares em Niassa, projecto do ferro e aço, o desenvolvimento
integrado dos vales do Zambeze e do Limpopo, entre outros. A agricultura foi, durante os
primeiros anos após o III Congresso, a prioridade de desenvolvimento.
A crise económica dos anos oitenta foi grave. A pobreza generalizou-se, secas e cheias
sucessivas provocaram mais de um milhão de pessoas com fome acudidas por programas de
apoio humanitário (estima-se que entre quatro a seis milhões de cidadãos refugiaram-se em
países vizinhos), empresas estatais somavam elevados défices financeiros e encontaram-se
impedidas de produzir devido à guerra, inflação elevada, défice externo (sem dinheiro para
pagar a importação de combustível)2, as cooperativas foram dispersadas ou paralisaram a
actividade ainda incipiente, a comercialização agrícola ficou desarticulada, poucos emigrantes
na África do Sul, com consequências sobre as receitas em divisas, e aumento da população
desempregada nas cidades, baixo funcionamento dos caminho-de-ferro e dos portos, etc.
Em resumo, os suportes da economia colonial ficaram desestruturados sem que houvesse
capacidade de substituição da produção, do emprego e do rendimento das famílias, tendo-
se assistido ao colapso da estrutura produtiva (socialista – empresas estatais, cooperativas e
padrão de acumulação centrado no Estado), devido ao conflito armado e à redução ou fraco
apoio económico externo.
35
ideológica socialista, muito próxima à URSS e países socialistas da Europa. Sem que houvesse
uma diplomacia exclusivista em relação aos países socialistas asiáticos, especialmente da
China, esta adoptou uma posição de ponderação. Houve assim a continuidade das relações
com a URSS e de menor dimensão com a China. Recorde-se que era o período do chamado
conflito político sino-soviético, existindo também, entre os movimentos de libertação
africanos os que se inclinavam para um ou outro país.1 A cooperação com o ocidente era
muito reduzida, excepto com alguns países do Norte da Europa. Ao longo dos anos oitenta, o
colapso socialista, o aumento da agressividade do conflito regional e o afastamento e bloqueio
económico não declarado de alguns países socialistas, tornaram difícil (ou impossível) um
comportamento positivo da economia fortemente e tradicionalmente muito dependente.
A Frelimo assumiu decisões críticas no que se refere às relações entre o poder colonial e as
religiões, em particular com a igreja católica. Na realidade, conforme a hipótese principal
deste livro, a questão central é o poder de influência e de doutrinação das igrejas junto
1 Veja atrás os autodesignados movimentos de libertação “puros” e “não puros”.
2 Intervenção de Sérgio Vieira no IV Congresso.
3 Intervenção de Joao Ferreira no IV Congresso.
4 Intervenção de Hama Thai no IV Congresso.
5 Não existe uma designação consensual para se definir as pessoas que constituem as hierarquias sociais locais de
raiz históricas e culturais. Essas hierarquias representam poderes de pessoas/famílias e clãs/etnias que por razões
históricas de longa duração se diferenciaram social (principalmente) e económica e que se reproduziram com base em
sistemas de produção e económicos da acumulação ampliada. A quantidade, qualidade e localização de terra, o tama-
nho da família (esposa e filhos), as migrações e assalariamento e o acesso ao mercado, foram factores que se reforça,
mutuamente e aceleram a diferenciação social. Algumas das origens de formação de hierarquias podem remontar às
chefias nos exércitos constituídas nas lutas e disputas interétnicas e de resistência à colonização. No período colonial
foram designados d régulos e fumos (hierarquicamente abaixo do régulo e cobrindo um território menos). Após a
independência passaram a designar-se de líderes comunitários”.
36
dos cidadãos. A capacidade de mobilização e de transmissão dos problemas vividos pela
população. Estes aspectos contrariavam os princípios auto-proclamados pela Frelimo, como
o único e legítimo representante do povo, a única força que “mobiliza e organiza o povo”. A
questão era o controlo político da população.
As funções não religiosas que as missões realizavam foram-lhes interditas e transferidas para
o Estado no âmbito das nacionalizações destes sectores no dia 24 de Julho de 1975, um mês
depois da independência, tais como actividades na educação, saúde.
As igrejas, para além do ensino normal, eram acusadas de ensinar nas “escolas rudimentares”
(destinadas aos negros), pois os filhos dos colonos frequentavam as “escolas oficiais”,
como eram designadas. Muitos dirigentes do movimento de libertação frequentaram ou
foram professores nas “escolas rudimentares”. As igrejas formavam também em profissões
importantes, como de mecânicos, serralheiros, electricistas (nas chamadas escolas de “artes e
ofícios”), geralmente em edifício nos recintos das igrejas. Com a nacionalização da educação,
essas escolas cessaram. As escolas rudimentares foram integradas no sistema de educação e,
as de arte e ofícios foram, na maioria, encerradas e, com isso, o fim, ou quase fim, durante
muitos anos, do ensino técnico a nível “básico” e “médio”.
Outro exemplo das relações difíceis entre o Estado (Frelimo) e as igrejas, foram os campos de
reeducação (principalmente em Milange, província da Zambézia, distrito de fronteira com o
Malawi), para onde foram enviados os cidadãos que professavam na igreja “Testemunhas de
Jeová”1 imediatamente após a independência. Justificam essa decisão, a rejeição em prestarem
serviço militar e recusarem fazer continência à bandeira nacional.
Em 1983 o campo de reeducação dos jeovás foi atacado pela Renamo. Os reeducandos
fugiram, na sua maioria, para o Malawi e Zâmbia.
As ligações das igrejas aos poderes, antes e depois da independência, fundamentam, numa
certa medida e perspectiva, o discurso de Samora. Porém, o processo de nacionalização foi
extremado (conforme já referido), a liberdade dos jeovás não foi respeitada e os discursos
foram radicalizados. Por outro lado, não foi reconhecido o papel das igrejas na libertação de
Moçambique (e de outros países), nomeadamente na formação de quadros e dirigentes da
Frelimo, antes e depois da independência, na consciencialização das pessoas. Foram os padres
que denunciaram o massacre de Wiryamu (16 de Dezembro de 1972). 2 Os padres brancos de
1 Somente em Fevereiro de 1991, foram reconhecidos como “organização religiosa”. Data não confirmada, mas
certamente que em princípios da década de noventa do século XX.
2 A chamada “Operação Marosca foi instigada pela PIDE, e guiada pelo agente Chico Kachavi, que foi assassi-
nado mais tarde, enquanto o massacre era investigado. Os soldados foram instruídos por Kachavi que “a ordem é
para matar todos”, sem se importar se havia civis, mulheres ou crianças”. Em https://pt.wikipedia.org/wiki/Massa-
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Burgos em Tete e Beira foram expulsos de Moçambique1 e o contributo para a consciência
nacionalista dos bispos da Beira e de Nampula, respectivamente Dom Soares de Resende e
Dom Vieira Pinto, para além de muitos padres “anónimos” não foi reconhecido.
Porém, existiram também bispos e padres cujas atitudes corresponderam com a essência do
que Samora afirmava. “Missionários católicos e protestantes, procurando inculcar a ética do
trabalho entre os recém-convertidos, reiteravam esta mensagem dos seus púlpitos e nas salas
de aula. Na verdade, muitos não viam contradição de espécie alguma entre evangelização e
forçar os estudantes e os seus professores a trabalharem nos campos de algodão pertencentes
à igreja”, Isaacman (1991: 205).2
Quando a guerra civil aumentou de intensidade e se alastrou por grande parte do país,
surgiram as primeiras aproximações entre o Governo (Partido Frelimo) e as igrejas. O
objectivo era a mobilização, o envolvimento e alianças de diversas forças contra a guerra
civil. Os princípios de “único representante do povo” e de “mobilização popular” tiveram que
ter alguma “flexibilização”. O IV Congresso foi um marco na estratégia reformista da Frelimo
e da governação (veja mais adiante). Alguns altos responsáveis emigraram de comunistas
(portanto, em princípio, ateus) para fervorosos membros de diversas igrejas.
Em resumo, as relações entre a Frelimo e seu governo com as igrejas variaram entre quase
extremos, dependendo dos sistemas de alianças em defesa do poder e na afirmação do
monopartidarismo.
As relações com os régulos (antes e depois da independência – durante a guerra civil) foram
diversas e variavam em função das relações destes com o poder colonial e com a Renamo.3
Aqueles que eram considerados aliados do inimigo eram mortos. Os outros, instrumentalizados
como mobilizadores da população em favor da Frelimo. Em meados da guerra civil e
coincidentemente com a “reconciliação” com as igrejas, existiu também um processo de
aproximação aos ainda “régulos” e designados de líderes locais. Começaram a receber
um salário do Estado e fardas demarcadoras de autoridade local, passaram a ter assento
cre_de_Wiriyamu.
Foram criadas versões diferentes dos acontecimentos, uma delas relatada por Laurean Rugambwa, Arcebispo de
Dar-es-Salaam, que afirma que as alegadas mortes foram da responsabilidade de soldados da Frelimo, e não pelas
forças portuguesas.[5] Noutra versão dos acontecimentos, os alegados massacres não passaram de uma forma de
propaganda cujo objectivo era destruir a reputação do Estado português no estrangeiro.
1 “Em Maio de 1971, 48 padres brancos da Beira e Tete deixaram Moçambique para não serem “cúmplices de um
apoio oficial que até os bispos… parecem dar a um regime que astutamente usa a Igreja para consolidar e perpetuar
na África uma situação anacrônica”. Protestos e choques com o governo português levaram à violência repressiva, e
deportações de 100 missionários, incluindo o já citado bispo de Nampula”.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Igreja_Cat%C3%B3lica_em_Mo%C3%A7ambique.
2 ISAACMAN, Allen (1991): “Camponeses, trabalho e processo de trabalho. O cultivo forçado de algodão em
Moçambique colonial (1938-1961)”. Em Moçambique, 16 anos de Historiografia. Maputo, colecção Painel Moçam-
bicano, pp.195-237.
3 “No decurso da guerra, a elite da Frelimo acabou por reconhecer a relevância estratégica das chefias tradicionais
(sem, contudo, confiar nelas), tendo criado para estas autoridades o cargo de «chefes de produção» (Geffray,1991:
136). No entanto, a este respeito, o partido e o exército posicionavam-se de forma diferente (Honwana, 2003a: 179),
teimando o partido em negar a sua relevância. Pelo contrário, vários autores sublinharam a importância dos poderes
religiosos de algumas autoridades tradicionais durante a guerra, respeitados e temidos por ambos os exércitos (e.g.
Geffray, 1991: 88; Seibert, 2003: 273-275), e mesmo capazes de abrir autênticas «clareiras de paz» onde muitos
buscavam refúgio (Wilson, 1991: 3-7). O monopólio da «guerra dos espíritos» detido pela Renamo e a sua auto-atri-
buída superioridade mágica (Roesch, 1993) foi finalmente desafiada com a criação dos Naparamas (Wilson, 1991:
3). A suposta invencibilidade deste grupo independente de agricultores – que lutava apenas com armas brancas, como
catanas – resultava de um ritual de vacinação que os protegia contra as balas (cf. Seibert, 2003: 275. Em file:///C:/
Users/Joao%20Mosca/Downloads/POBREZA%20E%20BEM-ESTAR%20EM%20MOCAMBIQUE_%20TER-
CEIRA%20AVALIACAO%20NACIONAL.pdf
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nas primeiras filas das reuniões de membros do governo e da Frelimo com a população,
são consultados para a discussão e encontro de soluções para os problemas que afectam as
comunidades e desempenham algumas funções do Estado a nível local, como, por exemplo,
na atribuição ou consultas para a atribuição de Direitos de Uso e Aproveitamento da Terra
(DUAT). Em resumo, assiste-se a uma captura das autoridades locais por via económica
(salários), de meios de simbolismo de autoridade (fardas e assentos em reuniões) e passaram
a ser funcionais com o Estado. Em situação de conflito, como, por exemplo quanto à ocupação
da terra, as autoridades gentílicas terminam por ser “ensanduichadas” entre os interesses e a
representatividade da população, por um lado, e o poder de Estado que impõe, muitas vezes,
decisões centrais e sem auscultação das comunidades e o aliciamento corruptos por parte de
algumas empresas e multinacionais.
c) Guerra civil
Estes “conceitos”/definições não são somente semânticos. Bandido armado significa que o
então Movimento Nacional de Resistência (MRN) era um grupo de bandoleiros, ao serviço
dos interesses portugueses que saíram do país (fugiram, na linguagem oficial) que, em
ligação com o exército e a segurança rodesianas, pretendiam dificultar a independência e
o desenvolvimento. O exército rodesiano apoiou em treino militar, logística e incursões em
Moçambique (directas ou em cobertura de acções do MRN) e com propaganda (Rádio África
Livre). Ian Smith temia a intensificação da guerra contra o seu regime de independência
unilateral e branca em relação à Inglaterra, o que era justificado pelos discursos e primeiras
medidas da Frelimo após o Governo de Transição (de 20 de Setembro de 1974 a 25 de Junho
de 1975). Este temor era suportado pelo apoio imediato à tomada de posse do Governo de
Transição que a Frelimo prestou aos guerrilheiros da ZANU, com campos de treino, sobretudo
nas províncias de fronteira (Tete e Manica) e depois com acções de militares moçambicanos
dentro do Zimbabué (descrito no ponto 2.1).
39
ao prestado pela Rodésia, e, tal como com Ian Smith, começaram a existir incursões militares
do exército sul-africano.1 Igualmente, Moçambique, após a independência do Zimbabué,
aumentou o apoio ao ANC, seja diplomaticamente, refúgio de dirigentes do ANC e treino
militar.
Estes resultados manifestam o apoio de uma elevada percentagem dos cidadãos aos
moçambicanos que atravessavam grandes dificuldades. Para além do descontentamento
(sobretudo no meio rural), em consequência dos campos de reeducação, das aldeias comunais
da pobreza, da ruptura da rede comercial, a conflitualidade e inversão das hierarquias sociais
e de expectativas goradas no pós-independência (por exemplo, acesso à terra), a Renamo
implantou-se em grande parte do território.
A partir de meados dos anos oitenta do século XX, a economia de Moçambique estava em
profunda crise. Os países socialistas da Europa colapsavam e retiraram, gradualmente, o
apoio a Moçambique, principalmente ao ver seus compatriotas a sofrer, como foram os casos
do ataque entre Lichinga e Unango, onde estiveram cooperantes da República Democrática
da Alemanha (RDA), e o ataque às minas de Murrupula, onde existia cooperação soviética no
sector mineiro.4
-%C3%A9poca-do-acordo-de-nkomati-.html
1 As incursões mais conhecidas foram o ataque a casas de membros do ANC na cidade da Matola e o avião espia
teleguiado abatido em Maputo/Matola.
2 A partir do Estado Novo em Portugal (finais da década de quarenta do século XX) e no contexto do nacionalismo
económico de Salazar, começou a emergir em Moçambique, e nas outras colónias portuguesas, uma classe capita-
lista de colonos de uma ou várias gerações em Moçambique, com acumulação local e investimentos nos diferentes
sectores de actividade, tanto nas cidades, como em zonas rurais de maior potencial agrário e comercial. Este capital
começou a opor-se às medidas económicas de Lisboa que estrangulavam o crescimento do capital emergente de natu-
reza endógena e sentido de independência (em muitos casos à imagem da Rodésia). Sobre este assunto, veja MOSCA,
João (2007): “Salazar e a Política Económica do Estado Novo”. Lusíada. História, Série II, Número 4, pp. 339-364.
3 Informações informais referem que Samora Machel haveria solicitado equipamento militar à União Soviética com
o objectivo de fazer incursões relâmpago com impacto na economia sul-africana e o efeito psicológico nos sul-afri-
canos brancos, o que poderia implicar uma saída massiva destes sul-africanos.
4 Em alguns casos, cidadãos de países socialistas foram atacados nos locais de residência e de trabalho ou em via-
gens. Por exemplo, em Niassa, no âmbito do projecto dos 120 mil hectares, um ataque a 6 de Dezembro de 1984, na
província nortenha do Niassa, a 20 km de Lichinga, na estrada entre a capital provincial e Unango, houve um ataque
40
O corredor da Beira foi defendido/patrulhado por militares zimbabueanos. Ao longo da guerra
civil as tropas zimbabueanas tiveram uma presença constante na zona Centro e participaram
em operações militares de grande vulto, como foi a tomada da base principal da Renamo
(“Casa Banana”), na Gorongosa, a 28 de Agosto de 1985.1 Samora esteve no local após a
tomada onde se referiu ao sucesso da operação com a frase ”partimos e espinha dorsal da
cobra”.
Existiram também atrocidades praticadas por ambas as forças. Ressaltam-se dois casos: o
conhecido massacre de Homoíne, em Inhambane, primeiro no ataque à vila sede do distrito
e, depois pela artilharia pesada do exército moçambicano na recuperação daquela; o ataque e
ocupação da vila de Marromeu, importante centro de produção de açúcar, tendo sofrido danos
com a ocupação da Renamo e com a recuperação pelo exército moçambicano, que incluiu
bombardeamentos da força aérea.
A guerra estendeu-se por uma grande parte do país. Até então (princípios os anos oitenta),
as acções concentravam-se na zona Centro, não só devido às origens etnolinguísticas do
MRN, à proximidade da Rodésia do Sul e às condições do conflito Moçambique-Rodésia já
descritas (corredor da Beira, sanções de bloqueio à economia). As províncias de Tete (com
maior abertura do Malawi no apoio ao trânsito de guerrilheiros da Frelimo), da Zambézia,
de Nampula e Inhambane foram palco de ataques e ocupação do território por parte da
Renamo, assim como vastas zonas de Gaza. Os ataques aconteceram nas periferias da cidade
de Maputo ou mesmo no que se designa pela zona metropolitana de Maputo (bairro dos
Pescadores, Matola-Rio, bairro da Liberdade, Catembe, etc.). Dlhakama teria afirmado ter-se
arrependido em não atacar a cidade capital. As principais estradas de Moçambique eram quase
que intransitáveis, circulando-se somente com colunas militares frequentemente atacadas.
Nesses ataques, incendiavam-se viaturas, queimavam-se moçambicanos dentro dos carros, e,
entre outras, raptavam-se pessoas.
41
Renamo. Posteriormente, segundo a mesma fonte, foram armados pela Frelimo constituindo-
se num grupo à margem do exército governamental, mas operando coordenado pelas
hierarquias militares da província. Outra versão refere que se constituíram autonomamente,
como movimento local, a partir dos régulos e curandeiros que não aceitavam a guerra em
seus territórios. 1 Nessa perspectiva, os Naparamos lutavam contra a Frelimo e a Renamo,
em defesa da paz em seus territórios. Eram cuidados por curandeiros que, segundo a lenda,
conferia poderes anti bala nos combates. O seu comandante tinha como nome Manuel António,
morto em combate.2
Estima-se que cerca de um milhão de pessoas terá perdido a vida devido à guerra e a situações
de fome, entre cinco e seis milhões deslocados das suas zonas de origem e refugiados em
países vizinhos. Na primeira avaliação em 1996/1997, a pobreza de consumo cobria 69,4%
da população.
Várias foram as reacções ao Acordo de N´Komati. “No seio da Frelimo, o acordo de Nkomati
gerou alguma divisão entre a linha mais dura … que viam o entendimento como a capitulação
em relação ao regime do apartheid e a ala mais moderada com pessoas (…). Segundo Chester
Crocker, durante os primeiros contactos com Moçambique, o objectivo primário dos EUA
era «mudar Moçambique da sua confrontação autodestrutiva com Pretória para fortalecer
1 Argumenta-se que os Naparamas têm como origem a zonas da Maganja da Costa, território onde se afirma haver
uma consciência de poder em território historicamente habitado pelos maganjas, com sentido de Estado, o que se
encontra abordado no livro A República Militar da Maganja da Costa (1862-1898), de José Capela. Arquivo Histórico
de Moçambique.
2 Manuel António vacinava os seus seguidores fazendo-os ingerir poções baseadas em plantas medicinais e marcan-
do-os com incisões simbólicas que os imunizariam das balas inimigas. Os guerreiros de Manuel António estavam
convencidos que eram imunes às balas. Actuavam, inicialmente com meios de combate artesanais (zagaias, lanças,
etc.), e chegaram de ter uma presença territorial (toda a costa da Zambézia e na província de Nampula) e um número
de “guerreiros elevado (fala-se de mais de 10.000 homens). https://pt.wikipedia.org/wiki/Naparamas e uma conversa
com um responsável militar da província da Zambézia durante um certo período da guerra civil.
3 “Patrioticamente” designado de Programa de Reabilitação Económica (PRE). Em outros países dominou a desig-
nação atribuída pelas IBW de Structural Adjustment Programmes (SAPs). O período do PRE encontra-se desenvol-
vido numa secção adiante.
4 Sobre as movimentações da diplomacia moçambicana iniciadas em meados de 1982 junto dos Estados Unidos da
América (administração Reagen), para um entendimento da África do Sul, veja Rufino Carlos Gujamo (2016), obra
citada.
“O artigo 3 ocupa cerca de um terço do Acordo e estabelece no seu primeiro parágrafo que ´as altas partes contratan-
tes não irão permitir que os respectivos territórios, águas territoriais ou espaços aéreos sejam utilizados como bases,
pontos de passagem ou de qualquer outra forma, por outro Estado, Governo, forças militares estrangeiras, organiza-
ções ou indivíduos que planeiam ou se preparam para levar a cabo actos de violência, terrorismo ou agressão, ou que
possam ameaçar a segurança dos seus habitantes´´.
Para tal, as duas partes comprometiam-se a ´eliminar dos respectivos territórios bases, centros de treino, locais de
guarida, alojamento e trânsito para os elementos que pretendam realizar as acções referidas no número 1 deste artigo´.
Comprometiam-se igualmente a ´eliminar dos respectivos territórios centros ou depósitos de armamento de qualquer
tipo” e “postos ou locais de comando, direcção e coordenação de pessoas que queiram praticar actos de violência
contra o outro país´ …”. Em https://www.jornalnoticias.co.mz/index.php/politica/96325-ha-36-anos-acordo-de-nko-
mati-evitou-agressao-directa-sul-africana, de 16 de Março de 2020.
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um novo pensamento sobre as políticas domésticas ruinosas e explorar a sua maturidade
para abandonar o seu alinhamento próximo da URSS e Cuba e, comportar-se como um país
independente e não-alinhado (…). A nível externo, o acordo de Nkomati foi criticado por
alguns países da Africa austral, considerando que se tratava-se da capitulação de Moçambique
perante Pretória. Entretanto, outros países consideraram que a pressão debaixo da qual
Moçambique estava fazia da decisão moçambicana compreensível. Os países vizinhos e o
movimento dos não-alinhados mostraram-se compreensivos, porém, não satisfeitos com o
acordo. O Ministro dos Negócios Estrangeiros do Botswana, Archie Mogwe reconheceu que
Moçambique foi forçado a assinar o acordo, sublinhando que o pacto seria fútil e de pouca
duração porque não tratava as questões fundamentais do apartheid. O Comité executivo do
ANC dizia que o acordo iria perpetuar o governo ilegítimo de minoria branca na África do
Sul. Embora tenha manifestado a compreensão em relação à assinatura do acordo de Nkomati
por Moçambique, o ANC não deixou de expressar a sua insatisfação com a posição de Maputo
na medida em que a partir de Moçambique era possível realizar operações contra a África do
Sul.
Com os dois acordos, criaram-se condições, internas e externas, para a assinatura do Acordo
Geral de Paz (AGP), no dia 4 de Outubro de 1992, em Roma, na Comunidade de Santo Egídio.
A guerra civil teve como estratégias internas, enfraquecer a economia, atacar os programas
do governo relacionados com a “socialização”, sobretudo no meio rural (empresas estatais
e aldeias comunais), retirar apoio das populações ao governo. Os factores externos foram
importantes na guerra, tanto no princípio como durante, e na assinatura do AGP. Em qualquer
caso, existiam condições internas de propagação e alargamento espacial da guerra. Na
última fase da guerra civil, a Renamo tinha alcançado os seus objectivos iniciais e os que foi
formulando ao longo dos anos, nomeadamente: evitar a opção socialista; forçar a opção por
um regime multipartidário (o que a Renamo designa de “democracia”); e, reivindicar mais
equilíbrio étnico no poder (não consta nos discursos).
Por outro aldo, a Frelimo tinha a certeza que a guerra, da “banca rota” da economia, do
colapso do mundo socialista e que a única opção de sobrevivência da própria Frelimo e do
poder que detinha, eram as negociações de paz (a implementação do AGP é apresentada
adiante). Existiam já fortes indícios de parte da elite da Frelimo quere fazer negócios o que,
de algum modo, era restringido por uma parte dos militantes.
Em síntese, a guerra foi militarmente ganha pela Renamo e os seus objectivos principais
alcançados. A paz veio a acontecer depois de prolongadas negociações e de tentativas de
incluir assuntos rejeitados, incluindo pelos negociadores da África dos Sul, por exemplo, a
questão de assuntos relacionados com os emigrantes moçambicanos na RAS.
d) Educação1
No texto referido (pé de página anterior) a linha política da Frelimo reflecte-se na escola
“Educar o homem para vencer a guerra, construir uma sociedade nova e desenvolver a
Pátria”.3 A preparação do Homem Novo, revolucionário, para tomar o poder e desenvolver o
país eram alguns dos objectivos da educação.
o fim dos monopólios estatais, a criação de um ordenamento jurídico que facilitasse as privatizações e posições de
privilégio na região para os interesses sul-africanos na era pós-apartheid.
HERMELE, Kenneth (1988): “Guerra e Estabilização. Uma Análise e Médio Prazo do Programa de Recuperação
Económica de Moçambique. Revista Internacional de Estudos Africanos, N.os 8 e 9, pp. 247-293.
1 Neste texto desenvolve-se com maior ênfase o ensino superior.
2 Veja no ponto 1.2 deste capítulo. Uma brochura da Frelimo (1979) assinada por Samora Machel, com o título Fazer
da escola uma base para o povo tomar o poder.
3 Palavra de ordem emanada da II Conferência do DEC (Departamento de Educação e Cultura) da Frelimo.
4 “Com a assinatura da Concordata e do Estatuto Missionário, o Estado português transferiu para a igreja a sua
responsabilidade sobre o ensino rudimentar, comprometendo-se a dar um apoio financeiro às missões e às escolas
católicas”. http://ead.mined.gov.mz.
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massificação do ensino; (3) generalizar as experiências das zonas libertadas (criar o Homem
Novo e preparar quadros para dirigir e desenvolver o país ao serviço do povo).
Logo após o Governo de Transição, existiram mudanças nos curricula de algumas faculdades,
com a introdução de disciplinas sobre o marxismo, o método dialéctico, a história de África,
entre outras.
Muitos estudantes universitários saíram do país acompanhando seus pais. Outros ficaram
e, na sua maioria, eram descendentes de colonos que permaneceram no país ou que, eles
próprios, decidiram ficar em Moçambique não acompanhando os seus familiares. Apesar
de serem uma minoria, existia, ao contrário dos discursos políticos, um número elevado de
estudantes negros. Estes desempenharam, depois da independência e até meados/finais dos
anos 80, funções importantes no aparelho de Estado e em empresas estatais; poucos destes
pertenceram às burocracias partidárias ou de defesa. No entanto, alguns moçambicanos
brancos desempenharam funções importantes no SNASP (Serviço Nacional de Segurança do
Popular) que, coincidentemente ou não, o Ministro era então branco.
A estrutura dos subsistemas de ensino está desequilibrada. Por exemplo, há mais estudantes
do ensino superior que do ensino médio e profissional, Em resumo, o ensino é considerado
como uma das áreas que teve grandes progressos quantitativos depois da independência.
Houve uma massificação do ensino a todos os níveis, acompanhado de baixa qualidade.
Os rácios do ensino superior e o desempenho de estudantes das escolas primárias, pode ser
considerado de insuficiente. O orçamento do Estado aloca poucos recursos às universidades
públicas e aos demais subsistemas da educação, reflectindo-se na escassez de infra-estruturas
pedagógicas de ensino e aprendizagem e no facto dos docentes procurarem outras fontes
de rendimento, com reflexos na qualidade do ensino. A investigação científica não é uma
prática presente na maioria das instituições de ensino superior. As universidades públicas
estão partidarizadas e as privadas regem-se principalmente por critérios empresariais e não
como projectos pedagógicos e científicos.
Porém, é certo que existem cada vez mais quadros técnicos formados a diferentes níveis
e, muitos destes, com qualidade. A ausência de condições de ensino e aprendizagem, os
incentivos e condicionalidades das carreiras profissionais, a baixa mobilidade, as dificuldades
de formações contínuas e a pouca pesquisa, têm dificultado a credibilização do ensino
(sobretudo do superior), reflectida por publicações em revistas indexadas, participação em
projectos de investigação internacionalizados e em conferências internacionais de prestígio.
1 Em 2003, existiam 17.225 estudantes universitários. Em 2015, o número passou para 174.802 discentes matricu-
lados.
2 Constata-se que: (1) o número de docentes cresceu entre 2003 e 2015, cerca de 5,2 vezes; (2) existem, cada vez
menos, bacharéis como docentes; (3) a docência no ensino superior está assente em licenciados; (4) o número e a per-
centagem de mestres têm aumentado; (4) apesar do crescimento do número de doutorados, a percentagem deste grau
não aumentou entre 2003 e 2015; (5) grande parte dos docentes com maior qualificação lecciona no ensino público.
3 Os licenciados que prosseguem os seus estudos de pós-graduação no exterior, em universidades de renome, têm,
em geral, no primeiro ano, fortes dificuldades de adaptação pedagógica (resultados nos exames, ritmos de trabalho,
exigência do ensino, língua, etc.), assim como de adaptação ao meio social.
4 Considerando um salário médio de docentes de cerca de 40 a 50 mil meticais por mês, significa que os valores
apresentados são despendidos, na quase totalidade, apenas para o pagamento de salários.
46
e) Calamidades naturais
Para além das dificuldades com efeitos conjugados (nas esferas política, económica, social
e militar) que o país atravessou imediatamente depois da independência, aconteceram
sucessivos choques naturais, principalmente: cheias nos vales dos rios Limpopo, Búzi, Pungué
e Zambeze; ciclones no litoral alcançando a costa das províncias de Inhambane até à de Cabo
Delgado, com incidência para Inhambane, Sofala e Zambézia; secas, sobretudo no Sul do país
e em algumas zonas no Norte da província de Manica e Sul de Tete.
Alguns dos eventos climáticos têm sido de grande impacto económico e social, o que significa:
(1) muita população abrangida e reassentada, temporária ou definitivamente, com implicações
de falta de alimentos, saúde pública, assentamento sem condições de acomodação e, em alguns
casos, pequenos conflitos entre os reassentados e os residentes das zonas de acolhimento; (2)
destruição de infra-estruturas (estradas e pontes, matas, dunas, etc.); e, (3) perda de culturas
aumentando a insegurança alimentar.
Após os choques, pouco se faz para aumentar a resiliência contra os fenómenos climáticos.
Repetem-se as destruições, os alagamentos, os reassentamentos, etc. Os planos económicos e
sociais, assim como as actividades produtivas, privadas e públicas, não incluem medidas para
aumentar a resiliência a fenómenos cada vez mais frequentes e intensos.
Conforme o foco e objectivos deste texto, pode afirmar-se que se governa à vista, as
instituições são débeis, a mentalidade da dependência e do “tô pidir” persiste como forma de
governação e o défice de credibilidade do governo está presente nas respostas das organizações
internacionais, dos países cooperantes e da sociedade.
47
f) As reformas económicas e a crise
As causas, natureza e caracterização da crise económica foram expostas nas páginas anteriores.
Neste ponto, detalham-se as reformas económicas, que foram oficialmente assumidas com
os acordos com o Fundo Monetário Internacional e o início do Programa de Reabilitação
Económica (PRE), a partir de Janeiro de 1987.
Os documentos não coincidentes da Frelimo podem reflectir (ou reflectem) pontos de vista
diferentes dentro do poder e, sobretudo, porque se atravessava um período de transição na era
pós-Samora Machel, que, juntamente com a ala da esquerda/comunista da Frelimo, eram o
suporte das opções havidas para a construção do “socialismo” com raízes em decisões durante
a última fase da libertação nacional (sobretudo depois do II Congresso).
Embora com mudanças semânticas importantes (o radicalismo e a agressividade desaparecem
e a palavra socialismo raramente surge), o documento Construamos o Futuro com as Nossas
Mãos1, procura transmitir a ideia de que as causas da crise são os factores externos e erros de
implementação (já não se fala da infiltração da pequena burguesia no aparelho de Estado),
o que tem por objectivo legitimar a política da Frelimo e transmitir a ideia da persistência
nos objectivos principais da revolução. Existia neste documento, um claro discurso
simultaneamente “justificador” e “mobilizador” das “massas”, e, sobretudo, para os militantes.
Ao nível do poder, existiam várias interpretações sobre o PRE; os documentos revelavam
alguma crença num período de “transição” para uma eventual retoma da revolução; outros
possuíam perspectivas da liberalização da economia, um novo reajustamento das alianças
dentro da Frelimo e a abertura política para se reiniciarem processo de acumulação privada
servindo-se do poder. A tecnocracia do Estado possuía, na maior parte dos casos, consciência
do rumo da economia e das alterações profundas que se operariam ao nível político e da
Frelimo.
1 Frelimo (1987). Construamos o futuro com as nossas mãos. Maputo. Frelimo. Eta é um documento da Frelimo que
pretendeu, imediatamente após o inicio do Programa de reabilitação económica, transmitir a ideia que o PRE não era
imposto ou “sugeridos” externamente.
2 Carrilho, João et al (1990): Estratégia Alternativa de Desenvolvimento Agrário. Maputo, Ministério da Agricultura
e International Rural Development Center.
3 Este documento revela posicionamentos diversos dos professados pelos dirigentes do Estado. Os discursos “para
dentro” e os compromissos assumidos com as instituições financeiras internacionais (IFI) eram coisas distintas.
48
de acordo à posição de cada um perante a planificação estatal e as leis do mercado, sendo
também definidos os principais produtos consumidos fundamentalmente nos centros urbanos,
os de exportação e para abastecimento à indústria nacional. … A longo prazo, a transformação
estrutural do sector produtivo deve ser a base para a concretização do projecto político e
económico de socialização do campo e a nível global da estrutura da economia nacional, sendo
a gradual transformação do sector familiar em formas organizativas de produção e serviços,
cada vez mais desenvolvidas, a mudança fundamental para a socialização da economia
rural. Ao sector estatal, competirão papéis específicos a curto e longo prazo, caracterizados
fundamentalmente pela função de dinamização da produção de outros sectores de produção
(através de mecanismos económicos) e, de acordo com as possibilidades económicas,
aumentar progressivamente a participação no valor bruto da produção agrária. … Esta opção,
determina que o aumento da produção deve basear-se fundamentalmente no incremento da
intensidade do trabalho”, MA (1989: Parte II, 1 e 2).
O PRE introduziu alterações importantes nas alianças políticas: foi evidente a paulatina saída
do governo de elementos considerados ideologicamente mais radicais, mantendo-se alguns
no aparelho partidário; outros, iniciaram actividades privadas combinadas com trabalhos
prestados a ONG ou em organizações internacionais. Muitos quadros formados, “ex-militantes
da experiência “socialista”, começaram a trabalhar em ONG, em empresas de consultoria, ou
iniciaram actividades privadas e em empresas estrangeiras;1 destes, muitos pertenciam ao
grupo de quadros incorporados na Frelimo e no governo após a independência e formados
nas universidades. O mesmo aconteceu a muitos dirigentes e quadros não-negros, sobretudo
do aparelho de Estado e das empresas estatais.2 Os equilíbrios das representatividades étnicas
ganharam maior importância dentro do sistema do poder.
49
Não é evidente que, na realidade, o PRE represente uma ruptura relativamente ao período
socialista e a sinais já existentes durante a luta de libertação. Esta questão é suportada porque
as opções de esquerda na Frelimo eram determinadas por um número muito limitado de
militantes nos escalões superiores da frente e depois do partido e, por isso, sem base social,
mesmo na cúpula da hierarquia. A aliança funcional é mutuamente utilitária entre estes e os
membros da direcção de corte ideológico populista terão permitido as narrativas de esquerda
de corte comunista e populista.
As mudanças só foram possíveis perante o risco da perda da guerra e de uma crise económica
com possibilidades de insatisfações populares. A pressão externa política e económica teve um
papel decisivo no discurso e na prática do período de implementação do PRE. As diferenças
internas fizeram-se sentir, não só através de documentos, como na implantação de algumas
medidas, como foi o caso da privatização do caju.3
1 Como é o caso de Gilles Cistac (veja no Capítulo 4). Um outro “caso paradigmático terá provavelmente sido o do
deputado e membro do Conselho de Estado, Jeremias Pondeca, barbaramente assassinado em Novembro de 2016,
na zona da Costa do Sol, quando praticava o seu habitual “jogging” matinal. O corpo daquele dirigente só viria a ser
identificado no dia seguinte, já na morgue do HCM (onde deu entrada como “desconhecido”) com a ajuda de familia-
res.”. https://www.cartamz.com/index.php/politica/item/5032-o-regresso-dos-esquadroes-da-morte.
2 O empresário e filantropo indiano Rizwan Adatia, que esteve raptado durante 21 dias, abandonou Moçambique de-
pois de continuar a receber ameaças de extorsão e de ser novamente raptado. Existe o que se chama do “imposto de
liberdade”. Os raptos económicos afectam os empresários e suas famílias e envolvem avultados valores de resgate
(caso de centenas de milhões de dólares).
3 “O Presidente moçambicano, Filipe Nyusi, considerou hoje assustadores os casos de corrupção no país, asseguran-
do um combate ´firme´ contra este tipo de delitos. ….. O Chefe do Estado avançou que o número de processos-crime
por corrupção aumentou de 911, em 2019, para 1.280, em 2020, uma subida de 40,5%. … Falando no Parlamento,
em Abril, a Procuradora-Geral da República, … disse que mais de 556 milhões de meticais (mais de 79 milhões de
euros) foram desviados dos cofres do Estado. … numa avaliação baseada em processos instaurados, é de cerca de
556.294.979 meticais …” em Carta do Dia, Número 618, de 14 de Maio de 2021.
4 Segundo Yasfir Ibraimo (2017). “The macroeconomic effects of public debt: an empirical analysis of Mozambi-
que”. Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa. Instituto Superior de Economia e Gestão) o investimento
directo teve um efeito positivo a curto prazo, em termos de balança de pagamentos, crescimento económico, emprego
e exportações. Porém, com o tempo, esses efeitos reduzem-se e somente a chegada de novos grandes investimentos e
o aumento da cooperação permitiu o efeito dominó sobre as variáveis referidas, entre outras.
5 As “oportunidades” empresariais foram, geralmente, a participação em sociedades com o chamado “conhecimento
local” (isto é, o lobby- tráfico de influências-, traduzidos em facilidades políticas e administrativas), obtenção/uso da
terra com DUAT (Direito de Uso e Aproveitamento da Terra) apenas concedido a moçambicanos, participação nas
sociedades sem realização do capital correspondente, participação como PCAs de grandes empresas, entre outras for-
mas não tangíveis em termos de capital. Nasce assim, entre outras formas, as chamadas “boladas”/”golpadas” de ne-
gócios de curto prazo, com dinheiro vivo e sem retorno de trabalho ou outras formas de participação e investimento.
52
Existem cada vez mais evidências e provas de que o território moçambicano é usado em circuitos
internacionais de droga, o que não é possível (ou é difícil) sem que existam ramificações e
agentes locais beneficiários. É pelos portos de Pemba e de Nacala e o transporte terrestre entre
a zona Norte e a África do Sul e ainda o Congo e Tanzânia (principalmente Zanzibar e ilhas
do Índico) que circulam os diferentes tipos de tráfico. O referido acerca de manifestações
externas de riqueza sem correspondência com as fontes de rendimento de algumas pessoas
e julgamentos já efectuados (embora ainda de “peixe miúdo”), permite ter dúvidas sobre
envolvimentos locais.1 “O Gabinete de Informação Financeira de Moçambique (GIFIM) diz
ser elevado o risco de branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo no país.
Em conferência subordinada ao tema “O Branqueamento de Capitais e a Desdolarização da
Economia”, … recorrendo aos dados do Índice de Basileia recentemente publicado, que dum
total de 125 países avaliados, Moçambique ocupa o primeiro lugar como o país de maior risco
de branqueamento de capitais e financiamento ao terrorismo”.2
As primeiras vozes de alguns cidadãos referem que não havia bases produtivas e de criação de
emprego e rendimento e equilíbrios macroeconómicos que justificassem o aparente “boom”
da economia (veja mais adiante). O então Presidente Guebuza apelidava os seus críticos como
1 O caso de “Fuminho” (Gilberto Aparecido dos Santos), “braço-direito do líder do gangue Primeiro Comando da
Capital era procurado desde 1999. Foi preso num hotel de Maputo numa operação que envolveu a Polícia Federal do
Brasil e a DEA norte-americana, quando estava acompanhado por dois nigerianos, possuindo passaporte falso. Con-
siderado um grande traficante de heroína. Fuminho era tido como “o maior fornecedor de cocaína a uma facção com
atuação em todo Brasil, além de ser responsável pelo envio de toneladas da droga para diversos países do mundo”,
afirmou a Polícia Federal (PF) do Brasil”, Diário de Notícias, Lisboa de 14 de Abril. Fuminho era “adido”/funcioná-
rio do consulado moçambicano em belo Horizonte.
2 “Moçambique tornou-se um corredor de grandes volumes de drogas, principalmente heroína, revelou o repre-
sentante do Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC) em Maputo (…). Após melhoria das
capacidades de aplicação da lei marítima pela vizinha Tanzânia e no Quénia, apreensões recentes sugerem que um
grande volume de produtos ilícitos está a ser agora traficado por Moçambique”, disse César Guedes, que manifestou
a sua preocupação com o tráfico de substâncias ilícitas no país. A revelação do representante do UNODC foi feita no
Seminário sobre formulação de um plano estratégico contra o crime organizado transnacional, droga e terrorismo,
que decorre em Moçambique. Dados do Gabinete Central de Prevenção e Combate à Droga indicam que de 2012 a
2016 foram apreendidas, pouco mais de 27 mil quilos de “cannabis sativa”, vulgo soruma, seis toneladas de haxixe,
mais de 1000 kg de efedrina, 553 kg de heroína e 100 kg perto”.
Em https://www.voaportugues.com/a/mo%C3%A7ambique-%C3%A9-um-grande-corredor-de-hero%C3%AD-
na/5077453.html.
3 Os grandes benefícios fiscais estão estudados, principalmente pelo Centro de Integridade Pública.
4 Os admiradores/fãs da governação de Guebuza lançam a ideia (à maneira dos reis?) de apelidar o ex-Presidente
de “o construtor”.
5 Dava-se a ideia de competição entre ministérios, bancos, tribunais e outros serviços públicos na construção dos
edifícios na construção de grandes e sumptuosos novos edifícios.
53
os “apóstolos da desgraça”, assim como os seus defensores de propaganda política.1 Casos
de corrupção de alto nível começam a ser conhecidos. Os raptos e assassinatos sucedem-
se em todo o país, particularmente em Maputo. Vozes discordantes ou somente críticas
(académicos, intelectuais, jornalistas, sociedade civil, membros de partidos da oposição) no
uso das liberdades democráticas, são ameaçadas, raptadas, espancadas e assassinadas. As
manifestações são coercivas e ameaçadoramente desincentivadas.
Os sucessivos resultados eleitorais são contestados pelo maior partido da oposição (Renamo),
sendo aprovados, no fim, pela Comissão Nacional de Eleições (órgão partidarizado conforme
a sua constituição) e pelo Conselho Constitucional. A comunidade internacional afirma, regra
geral, haver situações não transparentes e irregularidades nos actos eleitorais, mas que não
assumiam proporções que justificassem a perda das eleições pela Frelimo.
Porém, as afirmações são pouco fundamentadas, pois nunca se analisou a dimensão da
fraude.2 Os partidos da oposição reclamam por fraudes com factos comprovados: é conhecido
o desaparecimento e trocas de caixas com votos, actuações policiais em defesa da Frelimo,
entre outros factos. Um dos casos mais gritantes, foi o número de votos da província de Gaza,
que correspondia a uma população de 300 mil habitantes a mais dos realmente constantes no
Censo da População de 2017.3 Destaca-se o já mencionado resultado tangencial de Chissano
assumiu a presidência da Frelimo e, por inerência, de Presidente da Frelimo, confirmado
depois nas primeiras eleições multipartidárias.4
Seguem-se conflitos armados, sobretudo depois das eleições de 2004.5 A guerra concentra-
se na zona Centro do país com consequências sobre os fluxos de transportes de pessoas e
bens. Os períodos eleitorais, regra geral, são conhecidos por alguma instabilidade em algumas
zonas.
A Frelimo, tem referido, como uma das causas dos conflitos pós Acordo Geral de Paz, o
não cumprimento do acordado em Roma. A Voz da América,6 entrevistou Joaquim Chissano,
chefe da delegação da Frelimo nas negociações e à pergunta, “O que falhou naquele acordo?
Joaquim Chissano respondeu: “Essa pergunta me têm sido feita várias vezes, mas não sei o
1 Foi constituído um grupo de defensores do regime, em particular da imagem de Guebuza, constituído por 40 ele-
mentos (por isso, a designação do grupo como G40), sociedade civil e de personalidades. Neste “trabalho”, houve as
mais variadas formas de ataques aos críticos, incluindo o da “legitimação” de actos violentos para com os críticos,
ataques de carácter, etc..
2 Nos países dos membros de acompanhamento das eleições e de organizações regionais (como a União Europeia),
triam as mesmas opiniões, caso os mesmos factos acontecessem nos seus países?
3 Gerou-se uma discussão em redor deste facto e o Director do Instituto Nacional de Estatística, que manteve os
números do Censo, foi despedido.
4 A escassa margem da vitória de Chissano em relação a Dhlakama, assim como a existência de evidentes episódios
de fraude antes e depois das eleições, assim como o evoluir do anúncio das contagens intermédias dos resultados,
levantam fortes suspeitas de manipulação de “última hora”.
5 “Em 2012, depois do 21° aniversário da paz em Moçambique, o clima entre a Renamo e o Governo do Partido
Frelimo deteriorou-se. O líder da Renamo, Afonso Dhlakama, regressou no dia 17 de Outubro à antiga base do parti-
do, a Casa Banana, em Satunjira na zona da Gorongosa (província de Sofala no centro do país). Houve divergências
em relação à composição da Comissão Nacional de Eleições (CNE). A Frelimo quis uma representação igual para os
dois partidos (excluindo terceiros, como o novo partido MDM). Em Abril de 2013 houve vários ataques da Frelimo
na zona Centro do país que causaram, pelo menos, seis mortos entre polícias e civis. No dia 21 de Outubro de 2013,
forças governamentais tomaram a base da Renamo na Gorongosa. A seguir, a Renamo, anunciou o fim do Acordo de
Paz de 1992. Depois de 21 anos de paz, Moçambique voltou à guerra civil.
No dia 5 de Agosto de 2014, é assinado mais um acordo de paz entre a Renamo e o governo do país. Mas depois das
eleições de 16 de Outubro de 2014, começa uma nova fase de confrontos violentos. A Frelimo contesta os resultados
oficiais que deram vitória à Frelimo e pretende governar as seis províncias do centro e norte de Moçambique, que ela
[a Renamo] alega ter ganho, “a bem ou a mal”. E, por esse mesmo tema, o constitucionalista Gilles Cistac defendeu
que era permissível que o partido Renamo governasse as referidas 6 províncias à luz da lei Moçambicana”. https://
pt.wikipedia.org/wiki/Conflito_pol%C3%ADtico_e_militar_em_Mo%C3%A7ambique.
6https://www.voaportugues.com/a/joaquim-chissano-desconhece-o-que-falhou-depois-do-acordo-de-ro-
ma/5606641.html
54
que falhou. A Renamo diz que foi incumprimento dos acordos de Roma por parte do Governo,
mas, não me conseguem mostrar em quê” disse o antigo estadista e signatário do acordo.
O conflito de Cabo Delgado ganha proporções de guerra intensa a partir de 2017. Pelo menos,
desde 2012 que existiam sinais de instabilidade e preparação do conflito, se for considerado:
a formação religiosa de moçambicanos em países conhecidos por difundirem e apoiarem
movimentos islâmicos radicais e do Estado Islâmico; e, o regresso desses moçambicanos e
actuações contestatárias face às hierarquias religiosas islâmicas locais. Num discurso, Filipe
Nyusi afirmou conhecer os factos desde 2012, mas, na verdade, não foi desenvividas acções
preventivas pelo governo.
Nesta guerra, o discurso oficial começou por designar os elementos do conflito de “bandos
armados”, “terroristas” e depois de “insurgentes” e, finalmente, outra vez “bandidos armados”,
sendo conhecidos no terreno por alshabaabes (ou chababes). Uma vez mais, o discurso
oficial apresenta os factores externos como os determinantes ou, mesmo, os únicos factores
motivadores da guerra, dizendo-se ser uma guerra sem rosto e, por isso, não se saber com
quem negociar a paz; as razões internas como a pobreza, desigualdades, diferenças religiosas
e étnicas no acesso a recursos, etc., são negligenciadas nos discursos oficiais; razões históricas
como o califado de Zanzibar, a penetração árabe anterior à portuguesa, a língua comum (suaíli)
na costa do Índico abrangendo o Norte de Cabo Delgado, também não são mencionados.
A “guerra da informação” assumiu proporções elevadas, como por exemplo: grupos pró-
governamentais realizam propaganda e encobrem factos utilizando as redes sociais e organizam
programas televisivos inquinados; aumentam as ameaças e o desaparecimento de jornalistas;
proibição ou impedimento de realização de pesquisas no terreno; entre utros aspectos. O bispo
de Pemba foi perseguido e ameaçado de morte, sendo necessária a intervenção do Papa para
1 https://www.opais.co.mz/tag/acordo-de-roma/.
2 Junta Miliar da Renamo, chefiada por Mariano Nhongo, o homem de confiança de Afonso Dhlakama.
3 Existe a seguinte expressão em alguns círculos da Renamo, desde o Acordo Geral de Paz: “os homens podem
entregar-se, mas não os “brinquedos” (armas).”
55
o convencer a sair de Moçambique (veja no capítulo 4). Por outro lado, os “insurgentes”
divulgam vídeos através das redes sociais; o Estado Islâmico reivindica as acções e veicula
informações através de canais de televisão internacionais.
A partir de meados da segunda década, por diferentes razões, alguns aspectos alteraram-se
de forma importante. As principais razões são as seguintes: (1) o conhecimento público das
“dívidas ocultas”; (2) a guerra em Cabo Delgado; (3) a pandemia da COVID-19; (4) o conflito
no Centro do país; (5) sucessivos choques ambientais extremos.
A prisão de Manuel Chang na África do Sul, por mandado de captura internacional emitido
pelo tribunal de Nova Iorque, é um dos momentos que confirmam a trama das dívidas ocultas.
Seguiram-se complexos processos judiciais e políticos, que pretendiam evitar que a decisão de
captura internacional fosse concretizada e Chang entregue às autoridades judiciais dos Estados
Unidos. Internamente, foram realizadas prisões de alguns moçambicanos, supostamente por
envolvimento, de diferentes formas, no processo de endividamento ilegal e que se tentou
ocultar. Manuel Chang foi detido na Árica do Sul no dia 29 de Dezembro de 2018 e ainda não
existe qualquer perspectiva para o desenlace do processo.
O caso das dívidas ocultas (mas sobretudo ilegais)4 não é o único caso de alta corrupção. A
aquisição ao Brasil de aviões Embraer pelas Linhas Aéreas de Moçambique, foi julgado e
aplicadas sanções.
56
conhecido pelas graves consequências sociais, económicas e ambientais. 1 As actuações da
governação são, geralmente, resultantes da existência de conflitos e denúncia nos órgãos de
informação, tanto por jornalistas, como por organizações da sociedade civil. Em alguns casos,
forças militares do governo protegem empresas privadas da acção de garimpeiros ilegais.
Conhecem-se elementos da elite política e económica relacionados com extracção ilegal de
recursos naturais. Estes são casos que evidenciam acções predadoras e de roubo de recursos
naturais, envolvendo elites e um Estado cúmplice e até protector de ilegalidades.
Além dos indicadores económicos, é sobretudo a partir da segunda década que se assiste
a conflitos locais em consequência de ocupações de terras por empreendimentos agrícolas,
mineiros e turísticos. Multiplicaram-se os reassentamentos forçados, sem o cumprimento
da Lei e das promessas efectuadas. Aumentam os processos de auscultação inquinados ou
não realizados, destacando-se os verificados em Tete nos investimentos de carvão; em Cabo
Delgado e Inhambane na implantação dos projectos de gás; na extracção de areias pesada em
Chibuto e em Moma; em instâncias turísticas ao longo da costa, sobretudo nas províncias
de Inhambane e Cabo Delgado; nas comunidades costeiras devido a actividades pesqueiras;
e, em alguns empreendimentos agrários, como, por exemplo, na plantações florestais em
Manica, Zambézia e Niassa.
57
desproporcionada a manifestações. Estas e outras formas de actuação revelam a fragilidade
do Estado1, a defesa de interesses do capital e das elites, a cobertura e protecção da corrupção
de alto nível, as dificuldades do Estado em defender o país, os cidadãos, e à deterioração da
imagem e credibilidade daquele.
Em resumo, depois do início deste século, a realidade do país teve várias evoluções/
acontecimentos, nomeadamente: (1) aumento, sobretudo depois da metade do século II,
abertura ao capital externo e investimento em diferentes sectores (energia, minas, turismo,
agricultura, infra-estruturas, gás, etc.), com uma forte campanha de propaganda de agentes
internos (principalmente governo e banca) e externos (organizações internacionais IBW e
países sobretudo os que possuem interesses económicos das suas multinacionais – Brasil,
China, Holanda, Estados Unidos, Índia e Portugal), com a transmissão da imagem de um
país estável, rico em recursos naturais, com importantes benefícios e facilidades para o
investidor. Gerou-se a percepção de um país de oportunidades e fabricou-se a percepção de
um novo país rico e em período de boom económico; (2) Alargamento de oportunidades
de negócio de empresários nacionais, maioritariamente com fortes ligações ao Partido
Frelimo e aprofundamento do envolvimento das elites políticas em negócios, com crimes de
corrupção, abuso de poder e peculato; (3) aumento da natureza subdesenvolvida da economia,
aprofundamento da estrutura produtiva colonial e da dependência externa e agravamento dos
desequilíbrios macroeconómicos; (4) configuração de um Estado capturado por interesses
económicos internos em aliança com o capital externo, transformando-o numa plataforma
de distribuição de recursos2 e poder, envolvendo-se em crimes políticos (assassinatos e
desaparecimento de cidadãos) e corrupção; (5) fragilização selectiva do Estado, por um lado,
no desempenho das suas funções económicas, sociais e de defesa do país e, por outro lado, no
reforço da repressão e alargamento das agressões aos direitos humanos; (6) formação de uma
cultura de oportunismo económico apoiada e reforçada por politicas e políticos-empresários
que articulam política e negócios, reforçando-se mutuamente, numa lógica de maximização
do saque (a cultura da “bolada”); (7) mais pobres, migrações forçadas, com mais pobreza e
desamparo do Estado e das empresas envolvidas no reassentamentos populacionais.
Perante este cenário torna-se difícil referir aspectos positivos que signifiquem melhorias para
o país e para os moçambicanos, mesmo considerando a persistência de um desenvolvimento
1 No caso de Cabo Delgado, pode-se considerar ser um território de um Estado falhado que se pode considerar, em
resumo, como aquele incapaz de assegurar a soberania do país, manter a ordem interna, desenvolver o país, prestar
os serviços básicos e a segurança dos cidadãos, entre outros aspectos..
2 Tem interesse pontual, frisar que surgiram várias “Fundações”, geralmente associadas ou com o nome de altos
dirigentes, actuais ou históricos, que se beneficiam do orçamento do Estado, não prestam contas nem são auditadas, e
as verbas são utilizadas, muitas vezes, para pagamento de salários desse dirigente ou de seus descendentes, viagens,
entre outras despesas. Em outros casos, as fundações são um mecanismo de fuga ao fisco por parte de organizações
privadas de prestação de alguns serviços de natureza “pública”.
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não inclusivo, com aprofundamento das desigualdades sociais e territoriais, sem redução do
número de pobres e cada vez mais exposto aos choques das mudanças climáticas. No entanto,
pode-se enumerar a construção de infraestruturas de transportes (estradas e pontes, mesmo
que com grandes dificuldades de manutenção), maior acesso às comunicações (internet),
mais órgãos de comunicação (alguns dos quais com relativa independência), a formação
de técnicos, mesmo que aquém das necessidades e do espectável, a afirmação das culturas
dos povos e suas identidades, o surgimento da nacionalidade, um novo país da comunidade
internacional, os contributos para as independências do Zimbabué e do apartheid.
59
CAPÍTULO 3
Este texto faz uma muito breve retrospectiva da evolução das opções ideológicas, políticas e
económicas da Frelimo, desde a sua fundação, e que foram reflectidas nos discursos oficiais.
Com elementos ideológicos sempre presentes, estiveram os debates que têm como substracto
o racismo, o tribalismo, a natureza e a instrumentalização das opções nas relações externas.
· Nacionalismo é entendido, neste caso, por discursos e práticas que visam alcançar,
através de diversas formas de luta (política, diplomática e militar), a independência
de um território, com alguma(s) identidade(s) que permitem convergir a sociedade,
ou a maioria dela, para se alcançar esse objectivo, neste caso a independência de
uma nação. Independência, africanidade.
· Populismo é interpretado neste texto, por discursos atractivos (que respondem
às preocupações e anseios dos cidadãos), com ou sem correspondência com as
práticas, que procuram os mobilizar para envolvimento e/ou apoio a determinados
objectivos do poder.
· Marxismo/Socialismo, teorias/ideologias diversas (marxismo, marxismo-
leninismo, maoismo, trotskismo, etc.) que suportam um sistema económico
baseado no poder de “operários e camponeses” (ditadura do proletariado), numa
economia de planificação central, estatizada e colectivizada, com um padrão de
acumulação centrado no Estado, prosseguindo políticas sociais de redistribuição
com vista à igualação dos níveis de vida dos cidadãos.
· Capitalismo de Estado, onde a propriedade estatal predomina nos sectores
produtivos estruturantes e impulsionadores da economia (energia, indústria
da construção, infra-estruturas e comércio externo) e dos serviços aos cidadãos
(educação, saúde, água e assistência social). Nestas condições, as elites políticas
utilizam o Estado para obtenção de benefícios económicos, participação nas
empresas, obtenção de comissões e corrupção.
· Liberalismo económico, sistema económico baseado no mercado livre, na
concorrência, iniciativa privada, na não-intervenção nos mercados e no livre
comércio internacional. Existe o primado da eficiência económica, concentração
da riqueza e eventual agravamento das desigualdades sociais.
· Sem ideologia, isto é, os discursos que não transparecem uma ideologia e sim
vários aspectos difusos, contraditórios, sem elementos unificadores, associados a
práticas de economia de renda, não cumprimento de leis, impunidade, corrupção
com Estado frágil.
1 A primeira secção deste capítulo tem como suporte o texto FLICKS FLACKS ideológicos como estratégia de
poder, publicado no jornal Savana do dia 15/07/2020.
60
Na primeira coluna do quadro abaixo são definidos os períodos; a segunda coluna, refere qual
a ideologia dominante do respectivo período; na terceira coluna, indicam-se as principais
características dessas ideologias, considerando os contextos em que foram adoptadas.
A periodicidade pode ser questionada, assim como a(s) característica(s) ideológica(s)
dominante(s) em cada fase.
Quadro 1
Características políticas e económicas da Frelimo
61
P e r í o - Teoria / Características principais
do sistema
político e
económico
1987 - Liberalismo · Reformas económicas: privatizações beneficiando elites
2010 ideológico e políticas, mercado livre mas não em relação aos bens produzidos
economia de pelos monopólios estatais, preços subsidiados como defesa do
mercado consumidor (mais propriamente contra riscos de conflitualidades
sociais nos meios urbanos);
· Ditadura parlamentar através de um partido dominante;
· Autoritarismo reduzido em relação ao período anterior;
· Início da fragilização e da captura do Estado pelos interesses
emergentes totalmente filiados ao partido no poder;
· Abertura ao capital externo e multinacionais, relações políticas
e diplomáticas com países ocidentais;
· Os termos socialismo, igualdade, poder popular, desapareceram
da maioria dos discursos oficiais;
· Muitos dirigentes tornaram-se devotos religiosos de várias
igrejas.
62
de renda de forma mais ou menos não transparente/corrupta. Também se pode afirmar como
transparente, na medida em que quase tudo se sabe ou se termina por saber, seja pelo silêncio
dos envolvidos e seus entornos, seja, e principalmente, pela impunidade resultante da captura
do sistema judicial.
Internamente, desde o início da Frelimo, sempre houve ideologias muito diferenciadas que foram
sendo solucionadas/adiadas ou adormecidas, desde que as ideologias e interesses económicos
das minorias detentoras do poder real dentro da Frelimo não ficassem comprometidas. Caso
afirmativo, o assassinato, a deportação, a “reeducação” e a fuga (deserção/abandono) desses
“inimigos internos”, eram as soluções para os conflitos internos.
Populismo e marxismo constituíram as bases das alianças do poder, sobretudo entre 1968 (II
Congresso) e finais da década de noventa do século XX. Com a opção política de marxismo,
pretendia-se como uma tentativa de imposição de uma ideologia identitária e utilitária para
a obtenção de apoios externos e como necessidade de identificar o(s) “inimigo(s)” que não
apenas o colonialismo. O populismo como necessidade de apoio das populações (do povo)
na guerra de guerrilha e, também, como elemento de debate e de “selecção” das lideranças,
servindo de motivo para as lutas intestinas.
O que não mudou, foi o despotismo e, em última instância, o desrespeito pela vida de pessoas.
É demasiado dizer que há assassinos à solta? E tudo isso justificado pela designada “violência
revolucionária”, “com o poder não se brinca”, e uma “revolução tem de se saber defender”.
Em resumo, os flicks flacks ideológicos foram somente estratégias de curto prazo, tendo
sempre presente assegurar a reprodução do monopólio do poder e, em momento oportuno, o
saque de recursos e a captura de renda, mesmo que com formas diversas de corrupção como
característica sistémica.
63
3.2 Racismo e tribalismo
Racismo
O racismo e o tribalismo merecem destaque, pois foram elementos sempre presentes nas
escolhas de militantes e cidadãos para funções de responsabilidade e, posteriormente, como
vínculo de aliança de interesses económicos e políticos. Mais importante é o tribalismo pela
dimensão e quantidade de casos de concorrência política e económica, raízes históricas que
remontam a períodos pré-coloniais e, ainda, porque os não-negros não possuem bases sociais
suficientes para alguma acção política ou económica, pelo contrário, os não-negros, ao longo
da história da Frelimo, foram utilizados/instrumentalizados pelas partes em confronto, em
diferentes sentidos e objectivos.
A raça (neste caso a raça branca) foi utilizada como diferenciador das condições de trabalho,
vida, emprego, acesso e defesa por parte dos centros de poder, facilidade de abrir negócios.
“Há uma grande diferença entre o branco e o preto. O primeiro, só porque é branco (mulungo
em changana), emprega-se facilmente, ganha bem e pode sustentar a família e custear
todas as suas despesas, inclusive a educação dos filhos. Por seu turno, o negro, dificilmente
arranja emprego e, se o consegue, ganha uma miséria que não satisfaz o mínimo das suas
necessidades.”1
“E uma semana depois desse acontecimento, houve um comício onde nós os moçambicanos
começámos a ver o branco a ser insultado e convidado a ir embora para a sua terra e deixar a
terra dos negros para ser por estes governada. E começámos a entender que afinal o branco
também pode ser insultado e ainda por cima por homens negros. E isso fez-nos começar a
pensar na nossa terra, Moçambique”.2
64
Frelimo que culminou no II Congresso da Frelimo e após a morte de Eduardo Mondlane,
os militantes brancos tiveram que sair da Tanzânia por algum tempo (com raras excepções
devido às funções que exerciam, como por exemplo, médicos), pois, como se afirma, estes
eram perseguidos pela ala racista/reaccionária dentro da Frelimo. Na entrevista de Padro Filipe
Couto ao jornal Canal de Moçambique de 21 de Junho de 2021, afirmou; “Quando cheguei à
luta de libertação, todos olhavam para mim como um cão de raça estranha”.1 Os brancos não
eram afectos a unidades de guerrilha dentro de Moçambique porque, como se dizia, o povo
ficaria confundido, sobre quem era o inimigo?2 Já não seria o branco escravizador, explorador
das plantações, do trabalho obrigatório, o violador, o “deportador”, o Homem da palmatória.
Por que razão, Marcelino dos Santos que sempre foi o segundo dirigente na hierarquia
depois da morte de Mondlane, nunca foi presidente ao longo das três sucessões havidas (sem
considerar a última)?
Tribalismo
65
pertencemos à nossa família linguística Banto, caracterizada pela mesma forma gramatical,
mesma origem das palavras, mesma estrutura de frases e períodos. Antigamente, todos nós
pertencíamos ao mesmo grupo étnico ou tribal. Mas através dos séculos nossos antepassados
emigraram de uma parte de África à outra, resultando em comunidades com formas e
expressões diferentes, mas com muitos elementos comuns” (Frelimo, 1975, p. 35)”, em Silva.1
O parágrafo anterior pretende sublinhar que o povo moçambicano não detém as mesmas
origens e característico/identidades históricas e culturais e que as divisões, guerras de
impérios e reinos, foram provocadas pelo colonialismo segundo o princípio de “dividir para
reinar”. Sem deixar de ser verdadeiro, também é certo que esses conflitos têm origens pré-
coloniais e que, durante a colonização (ocupação), chefes e reinos se aliaram à colonização
com o objectivo de reforçar o poder e a supremacia interétnica. É conhecida a aliança dos
macondes e ajauas/yhaus para que os primeiros abrissem/permitissem corredores nas rotas
de tráfico de escravos nhyanjas (“caçados” pelos ajauas -yahos) para os portos da costa norte
de Moçambique, ou, na Zambézia, os “caça-escravos” contratados pelos “prazeiros” para
“caçar” escravos para o trabalho forçado nas plantações das companhias majestáticas.
O tribalismo, como o racismo, mas com maior significado devido às diferentes bases sociais
e aspirações políticas, constituiu, e constitui, um aspecto sempre presente na gestão dos
“recursos humanos“ da Frelimo, isto é, dos equilíbrios políticos, de poder e económicos.
“As rivalidades étnicas e a luta pelo poder passaram a ser habituais e o facto de Mondlane ter
regressado por meio ano aos EUA, para concluir os trabalhos e compromissos com a ONU,
também contribuiu para aumentar essa rivalidade. Em Janeiro de 1963 surgiram os primeiros
desentendimentos graves no seio da Frelimo, devido ao quase linchamento do Secretário de
Publicidade (Leo Millas) e a expulsão dos demais membros pertencentes ao movimento. Nesta
sequência, os membros que provocaram estas divergências foram excluídos pelas autoridades
do Tanganica, e, em Kampala, foi emitido um comunicado que desvinculava a Udenamo da
Frelimo. Seguidamente, em Maio de 1963, foram verificadas novas divergências, desta vez
entre Baltazar Costa da Unami e Mondlane. Costa prescindia do treino militar, apenas queria
uma formação intelectual para os seus militantes, o que levou Costa a abandonar a Frelimo em
1963. Nesse contexto, acabaram por surgir no seio da Frente duas novas correntes políticas.
Uma delas preconizava “a independência tradicional, nacionalista africana” (Garcia, 2003),
e era tribalista e regionalista, na qual o seu inimigo era o branco (estabelecimento de uma
classe dirigente no contexto neocolonial). A outra corrente, instaurada por figuras como
Mondlane, Marcelino dos Santos e Chissano, defendia a necessidade de uma revolução social,
como meio de alcançar a independência nacional. Porém, a estrutura política da Frelimo
devia estar assente num novo regime de poder popular anticolonial, que englobasse todos os
moçambicanos no geral.
Em 1966, a Frelimo enfrenta um quadro caracterizado por uma grande rivalidade e desunião
graças às ligações tribais que caracterizavam os seus membros constituintes. A parte mais
“pró-chinesa” da Frelimo acusava Mondlane de escolher os seus dirigentes tendo em conta
as ligações tribais. Por outro lado, estavam os macondes de Lazaro Nkavandame, que sempre
defenderam um movimento separatista da Frelimo, que pretendiam uma resistência mais
activa por parte da Frente. Nkavandame, um chefe étnico/clânico e homem de “negócios” com
base no trabalho obrigatório nas cooperativas de algodão, possuía amplas relações comerciais
com a Tanzânia, também pretendia a independência de Cabo Delgado.2 É de destacar que o
1 SILVA, Nilce. Eduardo Chivambo Mondlane no século XXI. Revista ACOALFAplp: Acolhendo a Alfabetização
nos Países de Língua portuguesa, São Paulo, ano 3, n. 6, 2009. Disponível em: <http://www.acoalfaplp.net>. Publi-
cado em: Março 2009.
2 “Em Maio, uma multidão de macondes invadiu os escritórios do movimento e assassinou um dos membros do Co-
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problema em causa era o facto de Mondlane não ser maconde, mas oriundo dos povos do Sul
e, além disso, o facto de ser casado com uma norte-americana branca.
Ao longo da vida da Frelimo, são muitos os casos de expulsão, acusações e intrigas, agitando-
se o racismo e o tribalismo. Será coincidência que os dirigentes do centro do país nunca
ocuparam de forma continuada lugares de destaque na Frelimo?1 Depois da independência,
são evidentes as tentativas de equilíbrios étnicos nas nomeações para as burocracias do Estado.
Porém, não existe equilíbrio nas nomeações dos três ministros da defesa após a independência
(sempre macondes em 45 anos de independência) e no Ministério do Interior (sobretudo com
a formação de forças policiais/militares), em perfeita contradição entre as funções da polícia
(ordem interna) e do exército (defesa nacional contra ameaças do exterior.
A presidência da Frelimo República foi ocupada por três pessoas de Gaza, Mondlane, Samora
e Chissano, todos machanganas, cujas origens distam de zonas com um raio inferior a 200
quilómetros, e o quarto, um maconde, sem história e feitos na Frelimo, merecedores desse
cargo. Foi, por insistência dos “grandes chefes” macondes que, por não possuírem perfis
para o cargo, se nomeou Filipe Jacinto Nyusi. Na sucessão deste, vozes internas referem que
chegou a hora para uma representação do centro do país no mais alto cargo da Nação.
mité Central, Mateus Sansão Muthemba – exigiam a independência imediata de Cabo Delgado”, https://pt.wikipedia.
org/wiki/Eduardo_Mondlane.
1 Existe, historicamente e na memória colectiva, por razões de disputas de impérios, de reinos e de migrações,
formas de colonização e acesso ao poder na Frelimo e após a independência, relações e sentimentos interétnicos que
sintetizam essas rivalidades em adjectivos. Para a população do Sul, todos os cidadãos do Centro (principalmente)
e Norte são designados de “chingondos”; contrariamente, os do Sul são considerados de “bazarutos”. Para as gentes
do Sul, os do Centro (especialmente os ndaus) são considerados de “confusos” (com o significado de complicados/
conflituosos, violentos, justiceiros).
2 O conflito militar de Cabo Delgado é complexo sob diversos pontos de vista (factores internos e externos, econó-
micos, militares, sociais e políticos, de pobreza e diferenciação social, étnica e religiosa, entre outras).. Neste texto
apenas se questiona acerca de possíveis razões (ou manipulações) do factor étnico.
3 Grande parte dos macuas do litoral professa, historicamente, a religião islâmica.
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Delgado concentra-se na zona macua e mwani, onde existe base social assente no islamismo
radical, principalmente no seio dos jovens descontentes pela elevada pobreza, pela falta de
oportunidades e perspectivas de vida, e desavindos em relação às hierarquias religiosas e
do poder administrativo local. Na zona tradicionalmente conhecida como o planalto dos
macondes, não existem, ou existem muitos poucas, situações de conflito violento (armado).
68
3.3 Ideologias e alianças externas
Como referido anteriormente, as ideologias na Frelimo quase sempre foram razões de debate
e exclusão. Inicialmente, nos primeiros anos após a constituição da Frente de Libertação de
Moçambique, eram evidentes as tendências diversas: liberais e pro-capitalismo; socialismo,
com diferenças entre as vertentes soviética e chinesa; africanismo (proto pan-africanismo,
nacionalista de bases étnicas); “socialismo africano” versus “socialismo científico”.
Eduardo Mondlane era considerado por alguns analistas como um pró-americano, nacionalista
culturalista1 (eventualmente próximo das vertentes de Léopold Senghor/Kwame Nkrumah).2
É conhecido que Mondlane e Marcelino dos Santos possuíam divergências ideológicas, sendo
dos Santos, a figura mais visível de uma opção de esquerda comunista próxima da URSS
(União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), com formação na Europa, onde foi activista
político, entre outros futuros líderes de movimentos de libertação das colónias portuguesas,
como Agostinho Neto, Amílcar Cabral, na casa dos Estudantes do Império, em Lisboa.
Nkavandame, que era ou foi considerado um chefe tribal e ambicioso económico (“capitalista”)
– sintetizado na palavra “reaccionário”3, foi acusado de organizar as machambas da Frelimo
e da população das zonas libertadas da administração colonial em Cabo Delgado e o
comércio destas zonas para a Tanzânia em seu próprio proveito o que, acrescentado às suas
reivindicações/esforços para uma independência apenas de Cabo Delgado, terminou por
entregar-se às autoridades coloniais em 1969, pouco depois da morte de Mondlane.
1 De notar que Mondlane era antropólogo o que fica expresso no seu livro Lutar por Moçambique. Lisboa: Sá da
Costa Editora, 1975.
2 Uma das vertentes da história e motivo de agitações internas da Frente até à liderança de Samora Machel, dizia
que a Frelimo tinha origem na reunião entre a Udenamo e a Manu (em 2 de Junho de 1962) em Acra (Gana). A outra
vertente afirma que foi durante a All Freedom Fighters Conference (convocada por intermédio de Nkrumah) que os
elementos desses dois agrupamentos políticos selaram o acordo de união entre eles. Na conferência destacaram-se as
seguintes personalidades como delegados da Udenamo, Adelino Gwambe, Fanuel Mahluza, Marcelino dos Santos
e Calvino Mahlayeye. Entretanto, do lado da Manu, os delegados foram Mateus Mhole, Daúde Atupale e Samuli
Diankali.
3 “Reaccionário” era a designação atribuída aos membros da Frelimo que possuíam opiniões diferentes ou questiona-
vam pontos de vista diversos aos da “linha política da Frelimo” quanto a estratégias e tácticas militares, relações entre
a Frelimo e o “povo”, opções ideológicas (não capitalista versus opções de esquerda (socialista/comunista), relações
internacionais, a emancipação da mulher, racismo, tribalismo, regionalismo, entre outros aspectos.
69
As relações com o Malawi e Zâmbia foram, inicialmente, pouco intensas e até de dúvidas
mútuas. O Malawi tinha relações com Moçambique colonial, sobretudo por via de Jorge
Jardim que foi cônsul daquele país em Moçambique e ainda devido à necessidade de garantir
as exportaçõeso e importações através do porto da Beira e da linha de Sena. Malawi não
permitia a existência de bases da Frelimo e, muitas vezes, dificultou o trânsito dos militares da
Frelimo para entrada em Tete e Niassa. Por isso, a frente de Tete só começou a operar em 1972.
Banda, então presidente do Malawi, dava preferência às negociações entre a Frelimo e Lisboa,
assim como apoiava Nkomo para conversar com Ian Smith. As relações com a Zâmbia foram
menos dificeis, mas não de total apoio, sobretudo o militar. Estes factos terão certamente
relação com o facto de a Tanzânia e a Zâmbia terem sido os países cujos embaixadores foram
os primeiros a entregar as credenciais em Maputo.
Nkrumah possuía uma perspectiva negocial para se alcançar a independência e tinha maior
proximidade à China, comparativamente com a então URSS. Guambe, um dos fundadores
da Frelimo e dirigente da então Udenamo, estava mais próximo de Nkrumah e da opção
negocial e da aproximação à China. A opção de Marcelino dos Santos a Nyerere e à URSS
tiveram ascendente nas relações externas da Frelimo antes e depois da independência até ao
desmoronar do bloco socialista da Europa. Esta opção, além de ideológica, é funcional devido
à vizinhança da Tanzânia e sua importância como retaguarda da guerra e de campos de treino
próximos das zonas da luta armada. Além disso, a URSS possuía maior capacidade para o
apoio militar.
Ao longo dos anos a China cooperou com treino militar, armamento e existia ainda a pressão
política para que a Frelimo se posicionasse no conflito sino-soviético (com raízes ideológicas
e de estratégias de concepção e de construção do socialismo a partir dos anos 60 da década do
século XX), devido também às disputas fronteiriças com a ilha no rio Ussuri, em 19691, tendo-
se agravado pela revolução cultural chinesa. A Frelimo não tomou posição nesse conflito e
colocou-se como membro dos países Não Alinhados aquando da invasão soviética a Praga.
É interessante a afirmação utilitária em como “foi possível manter o apoio dos dois países”.
Existe a teoria que as revoluções, logo após alcançarem os seus objectivos primeiros, neste
caso a independência, necessitam de inimigos, internos e externos, reais ou “construídos”,
para reforço dos poderes internos e implementação de regimes autoritários. Estas estratégias
são utilizadas pela informação e propaganda partidária como modo de criar o sentido de
pátria e de nacionalismo, a unidade interna em torno do movimento de libertação vitorioso,
o sentido do sacrifício/voluntarismo na construção do país e a noção de existência apenas
de um movimento ou partido político unificador. É ainda importante para a manutenção da
preponderância das hierarquias militares nos partidos e nas governações, sendo frequente as
disputas entre os militares e os civis (no caso da Frelimo, os “intelectuais”).
Depois da independência, Moçambique adoptou políticas externas com base nos discursos de
solidariedade, libertação dos povos colonizados e sob regimes de apartheid, apresentando-se
como zona libertada da humanidade. Assim foram as relações com a ZAPU de Mugabe (e
não com a ZANU de Nkomo), com o ANC da África do Sul, com a guerra entre a Tanzânia
1 “A Frelimo observou equidistância e cooperou com os dois (China e URSS) e agimos de tal forma que foi possível
manter o apoio dos dois países até depois da proclamação da independência nacional”, disse Chissano, em entrevista
à Lusa, publicado no dia 5 de Abril de 2011. Prosseguiu na mesma entrevista: “Quando nós levámos armas da URSS
para os campos de formação onde o treino era administrado pelos chineses, eles diziam: ‘Cuidado! Essas armas vêm
dos revisionistas, são capazes de explodir….… Mas nós obrigámos os chineses a treinarem-nos com armas soviéti-
cas”. Curiosa a expressão “nós obrigámos”.
70
e o Uganda, as relações com o MPLA (e não com a UNITA ou a FNLA).1 Recorda-se a
designação em bastidores (“intriga política”), classificando os movimentos de libertação em
“puros” e “não-puros”.
A partir de então, os novos “aliados naturais”, passaram a ser os até então inimigos externos. As
instituições financeiras internacionais, Estados Unidos, África do Sul, Portugal e Alemanha,
entre outros, assumiram novas posições nas relações políticas e económicas. O investimento
externo aumentou rapidamente, sobretudo depois de finais do século XX, os sectores
preferidos eram similares às preferências dos países socialistas. Por exemplo: (1) a produção
destina-se sobretudo para exportação – função extractivista; (2) o país iniciou uma nova
senda de endividamento externo; (3) o pedido de “socorro” às organizações internacionais do
sistema das Nações Unidas permaneceu em função das crises humanitárias devido a choques
1 Estes aspectos foram referidos no capítulo 1.
2 Tabaqueiro em alusão à sua origem como agricultor e ao facto da Rodésia ser então um dos grandes produtores de
tabaco do mundo.
3 Publicado por David G. Mailu, no jornal sul-africano The Sunday Times, de 18 de Agosto de 1985.
71
climáticos e conflitos militares.
O modo de actuação das empresas capitalistas é bastante diferente: (1) o investimento directo
intervém com as suas organizações empresariais, enquanto anteriormente, era principalmente
através das empresas estatais; (2) os investidores externos procuram ser influentes ou
dominarem as cadeias produtivas desde a produção à exportação e antes existia especialização
de funções entre as empresas estatais (as importadoras, produtoras e exportadoras).
Não é perceptível que exista um balanço positivo dos resultados da cooperação. A situação
económica do país não tem melhorado. O número de pobres, de analfabetos e as condições
de saúde pública pioraram considerando o aumento demográfico (indicadores por habitante);
a fragilização do Estado e a corrupção tornaram-se característica do sistema político e da
governação; a resiliência aos fenómenos naturais é cada vez menor, não só devido às mudanças
climáticas, como em consequência do mau uso dos recursos naturais (garimpo e mineração
industrial, desmatação, erosão dos solos, assentamento urbanos sem planeamento territorial,
etc.); as situações de conflitos e de instabilidade social (ocupações de terras, reassentamento,
extracção de madeira) são permanentes; os conflitos armados (guerras) de grande intensidade
e violência aconteceram em cerca de 20 anos dos 46 anos de independência.
72
A evolução não positiva do país em muitas áreas é da responsabilidade dos centros de decisão
política e económica nacionais. A fraqueza negocial devido à situação económica e às opções
de políticas públicas, o desconhecimento de algumas realidades (legislação, mercados
internacionais e geoestratégias à escala mundial), por um lado, e, por outro lado, o ímpeto do
enriquecimento fácil e rápido das elites, a necessidade de propaganda política e criação e de
expectativas positivas e de imagem do país, têm como consequência decisões erradas para o
país e “acertadas” para as elites.
As componentes político-ideológicas das relações externas, de certo modo até às reformas
económicas, deixaram de constar no discurso político (mesmo que disfarçadamente como
encobrimentos dos reais interesses económicos e comerciais). As relações externas são
marcadas de interesses e de influência política, de maximização de ganhos, muitas vezes em
contextos de mercado selvagem, e, quando necessário, com intervenções militares abertas ou
encobertas.
73
CAPÍTULO 4
MÉTODOS REPRESSIVOS VIOLENTOS
1. INTRODUÇÃO
Como anteriormente referido os fuzilamentos, assassinatos, chicotadas e raptos eram práticas
conscientes e institucionalizadas na Frelimo. Mariano Matsinhe, Ministro da Segurança,
numa entrevista1, referiu, expressamente, que “na Frelimo era normal fuzilar”. Na mesma
entrevista, disse: “na tomada de decisões, que os campos de reeducação não foram um erro
e que, volvidos quase 45 anos após o início da luta, não se arrepende de nada. Nem dos
fuzilamentos, apesar de reconhecer alguns excessos do SNASP que “torturou gente sem
mandato e inclusive matou pessoas”, e adiantou: “os que morreram, pediram para morrer”.
Estas expressões não necessitam de qualquer comentário. São, só por si, reveladoras.
Nos contextos da guerra civil, dos conflitos armados pós-eleitorais e al-shababes em Cabo
Delgado, estas situações agravaram-se, tornando-se incontroladas. São praticadas pelas forças
em confronto e as instituições de justiça tornam-se mais inoperantes e inexistentes no terreno.
74
Este capítulo tem como objectivo apresentar casos de assassinatos, fuzilamentos e aplicação
da chicotada e raptos, para, a partir desses exemplos, retirar características comuns
relativamente às formas e métodos de decisão, legitimidade, opções ideológicas e sentimentos
de humanidade. O objectivo não é, portanto, como alguém disse quando um familiar procurou
saber dos restos mortais do seu parente directo, “desenterrar os mortos”. Quando muito,
será enterrar as pessoas que, embora mortas, permanecem vivas na memória colectiva e
em particular dos familiares, dos que realizaram os inquéritos, dos que mandaram matar e
dos “matadores”. Essa é uma das primeiras condições para a reconciliação nacional. Uma
oportunidade para a Frelimo pedir perdão aos familiares e ao povo moçambicano.
A escolha dos casos abaixo, teve os seguintes critérios: (1) relevância dos temas e das pessoas
incriminadas/reprimidas; (2) existência de documentação (fontes) e de pessoas que conhecem
pessoalmente casos específicos; (3) mediatismo e presença na memória colectiva. Isto é,
os casos referidos estão baseados em pesquisa documental, em órgãos de informação e de
pessoas que se dispuseram, de diferentes formas, a contribuir com o conhecimento sobre os
casos concretos descritos. Procurou-se, quanto possível, apresentar os casos segundo uma
sequência de mais antigo para mais recente.
Os exemplos descritos são somente uma parte dos inúmeros casos acontecidos ao longo de
quase 60 anos, depois da constituição da Frelimo (1962).
2. ASSASSINATOS E DESAPARECIMENTOS
Filipe Samuel Magaia
Filipe Samuel Magaia é filho de um cidadão natural de Maputo e de mãe zambeziana, nasceu
em Mocuba em 1937. Cumpriu o serviço militar no exército português em Nampula. Quando
foi para a Tanzânia, era trabalhador dos Caminhos-de-Ferro da Beira. Chegou a Dar-es-Salam
em 1962. Era considerado um dos estrategas da guerra de guerrilha da Frelimo. O seu corpo
encontra-se na Praça dos Heróis em Maputo. Em 22 de Julho de 2017, foi inaugurada por
Filipe Nyusi uma estátua em sua memória, no bairro Chamanculo, em Maputo.
Magaia era chefe do Departamento de Defesa e Segurança da Frelimo quando foi morto no
dia 10 (ou 11) de Outubro de 1966, depois de uma missão no interior do país (província do
Niassa). É conhecido que foi morto por uma rajada de tiros deferidos por um camarada,
na medida em que não havia presença de tropas inimigas. Ao se averiguar o caso no
terreno, verificou-se imediatamente que única arma com o cano quente, que fora descoberta
abandonada depois das rajadas, era a de um colega guerrilheiro de nome Lourenço Matola,
acusado de estar ao serviço dos portugueses. Nenhuma outra arma estava quente. O certo é
que Matola não foi fuzilado (como traidor, como era prática da Frelimo), e, sim, julgado e
condenado a cinco anos de prisão pela justiça tanzaniana por um crime cometido em território
de um outro país. Posteriormente, foi enviado para o Quénia sem qualquer interrogatório
ou medida da Frelimo. Foi morto por atropelamento em Nairobi, Quénia.1 Depois da morte
de Filipe Magaia, o departamento de Defesa e Segurança foi dividido em dois: Defesa e
Segurança chefiados por Samora Machel e Joaquim Chissano,2 respectivamente. Coincidência
1 “A morte por traição de Filipe Samuel Magaia”, por Zeca Caliate, em Moçambique Terra Queimada, 25 de Julho
de 2017. https://ambicanos.blogspot.com/2017/07/a-morte-por-traicao-de-filipe-samuel.html.
2 Revista “E” do Expresso (Portugal), publicou este sábado (19 de Março ano??) “Na publicação o antigo estadista
moçambicano, Joaquim Chissano é citado como um antigo espião da KGB. A fonte indica que o nome de código do
ex-presidente era TZOM”, INFOTECNOGAME, 26 de Abril de 2016, http://infogametec.blogspot.com/2016/04/
ex-presidente-joaquim-chissano-o-espiao.html?m=1.
75
ou não, Josina Muthemba, esposa de Filipe Samuel Magaia, veio a casar com Samora Machel,
depois da morte de Eduardo Mondlane. Em consequência de intrigas no seio da Frelimo
em como Samora arquitectou o assassinato de Mondlane com dois objectivos: assumir o
poder no Departamento de Defesa e casar com Josina Muthemba. Mondlane tinha recusado o
casamento devido às intrigas existentes no seio dos camaradas.
Guebuza disse em Cheringoma: “Isso, meus jovens, tem o seu preço.1 Tem um preço imediato
e o preço imediato é a morte. Houve gente que morreu. Por exemplo, neste processo, Mateus
Sansão Muthemba acabou por perder a vida, por causa destes conflitos”, disse explicando
que ele foi uma das vítimas dos assaltantes perigosos na Frelimo”. Prosseguindo,2 Armando
Guebuza, afirmou que foi neste processo que também ocorreu a morte de Paulo Samuel
Kankhomba, que foi esfaqueado pelas costas.3 Também foi por causa desse processo que
Eduardo Mondlane (primeiro Presidente da Frelimo) acabou por perder a vida”.
Uria Simango
Nasceu na localidade de Maropanhe, em Machanga, província de Sofala (então, província de
Manica e Sofala). Estudou na Missão protestante de Mount Silinda, na Rodésia, juntamente
com a sua esposa e outros moçambicanos, depois de a escola que frequentava, na Beira, ter
sido encerrada por motivos políticos
“Sim, existiu uma ligação e essa ligação foi que eu tive treino militar na União Soviética e um dos assuntos em que eu
fui treinado foi precisamente na inteligência para penetrarmos na zona inimiga. Falo dos portugueses”, afirma o anti-
go chefe de Estado numa entrevista publicada esta sexta-feira no semanário “Savana”, de Maputo. Tal como noticiou
o Expresso (ver temas relacionados no final deste artigo), com base em documentos recentemente desclassificados,
Joaquim Chissano colaborou com os serviços de informação russos, com o nome de código “TZOM”.
“Sim, tinha de dar informação, mas não era tanto como eles falam, de espião. Era com o intuito de beneficiarmos de
apoios por parte da União Soviética”, respondeu quando questionado sobre a natureza da colaboração que manteve
entre 1966 e 1968 com a KGB. O ex-Presidente explicou ainda que essa colaboração era necessária como parte da
criação de condições de apoio à Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) na luta contra o colonialismo portu-
guês pela independência do país.
“Através da KGB, recebíamos dinheiro, não era para mim, era para a Frelimo, para ajudar-nos a realizar o nosso
trabalho de inteligência e contra-inteligência, para a protecção da própria Frelimo e para a busca de informações do
outro lado (português)”, disse Joaquim Chissano, https://expresso.pt/internacional/2016-04-08-Chissano-confirma-
-colaboracao-com-o-KGB.
1 Em referência aos conflitos existente no Instituto Moçambicano, o que, reflectia, em grande medida, divergência
no sio da liderança da Frelimo.
2 Num artigo notoriamente invulgar, o Notícias (escrito por Elias Samo Gudo da AIM), fez a cobertura daquilo que
chamou de ‘Oração de Sapiência” do Chefe do Estado em Cheringoma aos Jovens reunidos, em que Armando E.
Guebuza disseca a sua vida como docente no Instituto Moçambicano”. https://macua.blogs.com/moambique_para_
todos/2008/11/guebuza-confessa-mortes-no-seio-da-frelimo.html, 06/11/2008.
3 A versão oficial está expressa numa entrevista de Alberto Chipande, em que afirma: “De regresso para Mkunya,
quando cheguei à zona de Miyambo, vi o carro de Lázaro Nkavandame a vir. Habitualmente, o carro dele não andava
a alta velocidade, mas, nesse dia, estava muito veloz. Mandámos parar, mas ele não parou. Nós seguimos até Newala.
Em Newala, perguntei ao nosso representante sobre Kamkhomba. Ele respondeu qua havia sido morto por um grupo
de milicianos quando se dirigia à fronteira, no Rovuma. O corpo estava já no hospital de Newala”, em Vida e Obra
dos Heróis da Luta de Libertação Nacional, ARPA – Instituto de Investigação Socio-Cultural, Vol. III. Pág. 2014,
pp. 120.
76
Era pastor da igreja presbiteriana. Foi membro fundador e Vice-Presidente da Frelimo desde
a sua constituição. Depois da morte de Mondlane (3 Fevereiro de 1968), sete meses após o II
Congresso da Frelimo (Julho de 1968), o Comité Central nomeou (em 19 de Abril de 1969) um
triunvirato composto por Samora Machel, Marcelino dos Santos e Uria Simango. Este, esteve
presente e concorreu à presidência da Frelimo no II Congresso, tendo perdido por 3 votos.
Casal Ribeiro, então comissário político da Frelimo, propôs que os votos fossem guardados
como memória institucional, o que foi recusado (qual teria sido o motivo da recusa?). Depois
da morte de Mondlane, as disputas e a clarificação ideológica da Frelimo assumiram lutas
internas de grande vulto e Simango foi suspenso do triunvirato (Novembro de 1969). Em
Maio de 1970 foi expulso da Frelimo. Entretanto, o governo de Tanzânia declara Simango
como “persona non grata”,1 o que facilitou a sua expulsão do Comité Central.2 Perseguido
politicamente, saiu da Tanzânia, em 1970, para o Egipto, onde viveu com a família até 1974.
Juntou-se ao Coremo em Agosto de 1971, a convite de alguns membros dirigentes daquele
movimento, Paulo Gumane e Malhatine Ngome. Desempenhou as funções de Secretário das
Relações Exteriores desse movimento até ao golpe do Estado do 25 de Abril de 1974.
77
Estava no campo de reeducação de Metelela, no Niassa (noroeste de Moçambique), quando,
possivelmente a 25 de Junho de 19771 (segundo aniversário da independência de Moçambique),
lhe foi comunicado que iria ser transportado para a capital2, Maputo, onde o Presidente Samora
Machel discutiria a sua libertação. Seguiam numa coluna de jipes que, a dada altura, parou.
À beira da picada, os soldados tinham aberto com uma escavadora mecânica uma grande vala
e tinham-na enchido parcialmente de lenha. Amarraram os prisioneiros, atiraram-nos para
dentro da vala e regaram-nos com gasolina, ateando-lhes fogo. Os prisioneiros políticos da
Frelimo foram queimados vivos, enquanto os soldados entoavam hinos revolucionários em
redor da vala.3
A sua esposa, Celina Simango, primeira presidente da Liga Feminina da Frelimo (posterior
Organização da Mulher Moçambicana – OMM), também detida, estava num outro centro de
reeducação, também em Niassa. Foi fuzilada em 1980, em Metelela.
Em síntese, o caso de Uria Simango tem motivações, ideológicas, étnicas, mas, sobretudo
de de intriga na perspectiva do controlo do poder pela aliança Sul (machanganas) e Norte
(macondes). A intriga política esteve presente neste assassinato. Mais um caso que revela o
autoritarismo, o militarismo, o não respeito pelos direitos humanos e pela vida humana. Um
caso em que se duvida de qual teria sido o centro de decisão.
Samora Machel
Estudou numa missão da igreja católica e depois foi para Lourenço Marques, onde cursou e
exerceu enfermagem no Hospital Central. Em 1963 foi para a Tanzânia e daí foi enviado para
a Argélia, para treino militar (primeiro grupo de militantes treinados naquele país).
Samora Machel, o “pai da Nação”, sempre foi dirigente na Frelimo, tendo assumido o
triunvirato directivo em 1968, após a morte de Eduardo Mondlane. Depois foi designado
Presidente da Frelimo, após uma conturbada crise política de sucessão com Uria Simango e
Lázaro Kavandame e de clarificação ideológica da Frelimo.
“Em 1986, decorridos 12 anos de governação cheia de escolhos, o “Tupolev 134A” em que
o Presidente regressava de uma reunião na Zâmbia, caiu na região sul-africana de Mbuzini,
junto à fronteira, tendo perecido Samora Machel e quase toda a delegação moçambicana”2.
Antes do desastre e depois do ataque dos sul-africanos à Matola, Machel teria solicitado
equipamento a Moscovo, para uma guerra quente e rápida, para ataques dentro da RAS. Disse
o fuzilamento, ao que Samora não concordou e evitou a concretização do acto.
1 Para uma leitura sobre as origens de Samora veja “Samora Machel: um relâmpago no céu”, por Fernando Ganhão,
em Samora, Homem do Povo (2001).
2 https://sites.google.com/site/pequenashistorietas/personalidades/samora-machel.
79
que, como em Cuito Cuanavale em Angola, morrendo 300 brancos, a África do Sul iria recuar
no seu apoio à Renamo e deixaria de fazer incursões em Moçambique. Mas Brejnev (então
dirigente máximo da URSS) não se mostrou interessado em apoiar uma guerra desse tipo.1
A África do Sul, Estados Unidos da América e a URSS não pretendiam, inicialmente, participar
na Comissão de Inquérito (existiram correspondências entre a RAS e os EUA – este último
país nunca entrou em qualquer inquérito, embora tenha “sugerido” um técnico – ex-astronauta
-, para analisar a caixa negra do avião e que trabalhou para ou na Comissão de Inquérito da
África do Sul). Finalmente, a RAS criou a sua Comissão de Inquérito, como forma de evitar
suspeitas não defendidas (“contraditório”) e como meio de desviar ou justificar eventuais
envolvimentos ou suspeitas de colaboração.
As suspeitas eram centradas nos seguintes elementos: (1) em relação à África do Sul, foram
levantadas dúvidas na rota do voo guiado pela presença invulgar de um VOR na zona, e no
socorro tardio do governo sul-africano no local do acidente; (2) ainda em relação à África do
Sul, os ataques de um comando a Moçambique e as ameaças pessoais de Malan a Samora; (3)
sobre a URSS, tudo faria para evitar a responsabilização sobre eventuais falhas do avião e dos
pilotos, existindo murmúrios de terem bebido álcool durante a estadia na Zâmbia. Perguntas
sobre as razões dos pilotos não complementaram as indicações do VOR com o conhecimento
que possuíam da zona, e, ainda, como não reagiram aos comandos que necessariamente
alertaram a aproximação do solo, e em zona sem ou com muito pouca luz. Existe a hipótese
de que os factos da hora do acidente e da aterragem levariam os pilotos a pensar que Maputo
estaria sem energia devido a cortes, então relativamente frequentes; porém dificilmente os
cortes abrangiam simultaneamente as cidades de Maputo e da Matola; (4) vários dirigentes
moçambicanos relacionados com a segurança do Estado levantaram suspeitas que nunca
tiveram resposta, como, por exemplo: a entrada no avião durante a estadia na Zâmbia de
um mecânico russo, que teria sabotado os aparelhos de navegação, o que foi negado pelo
comandante do avião, único sobrevivente da tripulação; a especulação de que a RAS
inicialmente não queria participar na Comissão moçambicana ou constituir uma Comissão
1 José Milhazes (2010). Samora Machel. Atentado ou acidente. Alétheia Editores. Lisboa.
2 Very High Frequency Omnidirectional Range, é um equipamento eletrónico usado na navegação aérea, que dão
informações ao piloto da radial em que se encontra a voar.
3 Marcelo Mosse no livro SAMORA, homem do povo (2001), revela possíveis envolvimentos de moçambicanos,
nomeadamente de dois generais, de que Samora fora informado por Casadei (um italiano que viveu em Moçambique
e conhecido por ligações a agências de informação). Esta informação teria sido obtida entre Casadei e sul-africanos.
80
própria, como sinal da sua participação no crime; (5) qual o papel e que declarações prestou
o responsável da torre de controle do aeroporto de Maputo.
Depois da viagem a Mbala, na Zâmbia, Samora realizaria uma reunião com os altos comandos
militares, estando previstas profundas reformas nas hierarquias do exército.
Supondo que o acidente não foi casual ou resultante de condições do voo, as perguntas que
não têm resposta são as seguintes, na opinião do autor: porquê abater Samora?
81
· A eventual (mesmo que remota) possibilidade de ressuscitação de um regime
socialista não interessaria às estratégias das grandes potências, sobretudo do Estado
Unidos da América, o que levou Henry Kissinger a referir a estratégia da “pinça
comunista” da África Austral, referindo-se aos dois lados a pinça como sendo Angola
e Moçambique.
· A desconfiança da URSS em relação às diligências para a paz (visita de Samora
aos EUA e Acordo de Nkomati) e a crise interna do bloco socialista europeu.
Milhazes (2010),1 refere, em diferentes momentos, a preferência de Moscovo por
Joaquim Chissano em relação a Samora, baseando-se em termos de discurso, no
perfil de personalidade dos dois dirigentes da Frelimo (ou seria por Chissano ser,
supostamente, agente/informador do kGB).2
Graça Machel afirmou3: “A morte de Samora Machel foi planeada por alguns altos dirigentes
da Frelimo em Maputo, e não somente pelo chamado regime do apartheid. Os conspiradores
ainda estão em Maputo e sabem do que fizeram”. Graça Machel teria afirmado, na Comissão
da Verdade e Reconciliação, haver dois generais moçambicanos envolvidos no assassinato de
Samora, mas que não tinha provas.4 Graça Machel parece ter uma ideia sobre quem matou
o seu marido. E a pergunta será: se Graça Machel afirma existirem cúmplices em Maputo
(significa da Frelimo), porque a sua família não exige com mais insistência e força, uma
averiguação, fornecendo as pistas que afirma conhecer ou desconfiar?
O coronel João Honwana, que fora comandante da Força Aérea, afirmou na Comissão da
Verdade e Reconciliação da África do Sul (TRC), que “havia rumores de que Guebuza estava
a preparar uma força especial com o objectivo de derrubar o Presidente Machel. Em face
desta situação”. Guebuza deixou de ser ministro do Interior passando a deter um cargo que,
basicamente, não tinha nenhum significado. Uma fonte entrevistada, afirmou que, João
Honwana, fora questionado, por elementos presumíveis de um golpe, sobre a sua posição face
a um golpe militar.
Segundo Carlos Cardoso, em SAMORA, homem do povo (2001: 189), o Presidente sabia que
se estava atentando contra a sua vida e que na “sexta-feira, antes de embarcar para a Zâmbia,
jantou com meia dúzia de pessoas, que durante o jantar falou muito da região, e que, lá para
o fim da refeição, insinuou que estava próximo do seu fim, tendo então, por despedida, estas
palavras: “Tenho pena dos que vão ficar vivos”.
1 Idem, Ibidem.
2 Chissano, numa entrevista ao semanário português Expresso (8 de Abril de 2016), respondeu, quando questionado
sobre a natureza da colaboração que manteve entre 1966 e 1968 com o KGB: “Sim, tinha de dar informação, mas não
era tanto como eles falam, de espião. Era com o intuito de beneficiarmos de apoios por parte da União Soviética”.
O ex-Presidente explicou ainda que essa colaboração era necessária como parte da criação de condições de apoio à
Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) na luta contra o colonialismo português pela independência do país.
“Através da KGB, recebíamos dinheiro, não era para mim, era para a Frelimo, para ajudar-nos a realizar o nosso
trabalho de inteligência e contra-inteligência, para a protecção da própria Frelimo e para a busca de informações do
outro lado (português)”, disse Joaquim Chissano.
https://expresso.pt/internacional/2016-04-08-Chissano-confirma-colaboracao-com-o-KGB.
3 https://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2012/08/gra%C3%A7a-machel-sobre-amorte-de-samora-ma-
chelvideo2.html.
4 Marcelo Mosse “Os últimos dias de Samora”, em SAMORA, homem do povo (2001: 183).
82
Em resumo, este é mais um dos muitos casos que ficará guardado nos segredos da história da
Frelimo, assim como os assassinatos de Eduardo Mondlane e de tantos outros.
Existem, pelo menos, três ou uma combinação das seguintes possibilidades que não têm
resposta para a análise do acidente. São os seguintes: (1) erro dos pilotos; (2) eventual
sabotagem nos comandos do avião; (3) assassinato programado pela RAS em coligação com
alguns elementos moçambicanos. Pode-se constatar que existe coerência destes factores com
a hipótese de um crime. Assassinato ou acidente?
Era natural de Manica, oriundo de uma família da “aristocracia” da zona fronteiriça com o
Zimbabué, cujo pai, Luís Baptista, já lutara na clandestinidade contra o regime colonial e foi
através dele que guerrilheiros da Frelimo visitaram, por diversas ocasiões, a cidade Chimoio.
Fez formação militar numa das academias da ex-URSS, onde teve notas excepcionais. Em
Moçambique, nas Forças Armadas, chegou a cargos de chefia do Departamento de Engenharia
e Reconhecimento do Estado Maior General e dizia-se ser membro dos serviços de segurança
moçambicanos (SNASP). Quando regressou da URSS, foi recebido por Samora Machel.
Chegou a Tenente-Coronel e, por razões de intrigas internas, não foi patenteado como General.
Num convívio entre oficiais superiores do Estado Maior General das FPLM, teria concluído,
em jeito de comentário, que a guerra contra a Renamo não seria ganha por via militar, mas,
sim, por via do diálogo! Essa conversa foi reportada ao Presidente Machel, tendo classificado
Baptista como um reaccionário infiltrado no seio da Frelimo!”.
Fernandes Baptista, como era conhecido, foi preso acusado de ser agente de serviços secretos
estrangeiros. Foi preso em Março de 1981, aquando das prisões em massa (incluindo de oficiais
do exército), após os ataques sul-africanos à Matola. Foi para um campo de reeducação em Cabo
Delgado e depois transferido para a fortaleza da Ilha de Moçambique. Em consequência das
torturas ficou cego e com o corpo completamente deformado. Foi assassinado pela segurança
do Estado. Não houve algum julgamento judicial apesar de, nessa altera, existir, em todo o
território nacional, a procuradoria e os tribunais. Dias depois do assassinato, correu a notícia
“fabricada” da fuga da prisão de dois criminosos perigosos em Nampula e, inclusivamente,
foi publicado a esse respeito, um comunicado do Serviço Nacional de Segurança (SNASP).
Em vida, com os pés e mãos amarradas, foi metido num saco de ráfia com pedras, levado de
barco por um grupo de militares num pequeno barco da Marinha e atirado ao mar ao largo da
Ilha de Moçambique.
O assassinato foi realizado dias antes da visita do então Presidente da República Portuguesa,
83
General Ramalho Eanes, que iria ser recebido na fortaleza. Por essa altura, todos os demais
presos políticos existentes na Ilha de Moçambique, foram transferidos para outros centros
prisionais.
Depois do seu desaparecimento, familiares próximos, procuraram saber, junto das hierarquias
de defesa e segurança, o que teria acontecido, as razões do seu desaparecimento e com quem
haviam ficado os seus bens. Esse familiar próximo endereçou uma carta ao Presidente Samora
Machel, sendo a mesma também enviada ao então ministro da Defesa Nacional, e ao ministro-
comissário das FPLM. Nunca houve alguma resposta e, o próprio familiar demandante foi
preso e torturado. O pai foi ameaçado e despedido das minas de Manica, onde era gerente,
sem qualquer pré-aviso nem indeminização depois 38 anos de serviço ao Estado.
Este caso revela a crueldade e um profundo desrespeito pelo indivíduo, atitudes de carrasco
impiedoso, de manipulação da informação pré e pós assassinato.
Siba-Siba Macuácua
“A investigação da gestão ruinosa do Banco Austral nunca foi preocupação de primeira hora
por parte das autoridades e só começaram depois da pressão dos doadores e da sociedade
civil, tendo culminado com a realização de uma auditoria forense, por uma firma estrangeira.
A realização da auditoria, enquadrou-se, como se sabe, no contexto dessa recapitalização
que teve como pano de fundo a cobertura dos prejuízos acumulados do Banco Austral - na
ordem dos 400 milhões de USD (…). A auditoria forense encontrou sinais evidentes de gestão
danosa”.2 O certo é que, em 2021, continuam a não existir resultados concretos e a família
continua em busca dos esclarecimentos e reclamando por justiça.
Américo Sebastião
Américo Sebastião era um empresário português que detinha interesses na província de Sofala,
vivia no distrito de Maringué. Foi raptado numa estação de abastecimento de combustíveis na
manhã de 29 de Julho de 2016, em Nhamapadza.3
Diz-se que o negócio tinha como sócio um elemento local das forças armadas moçambicanas
e que este reportava a um alto dirigente em Maputo, também relacionado com as forças de
defesa e segurança e com o sector agrário.
-mo%C3%A7ambique/a-19464282,“Before his death, he published a list of the bank’s debtors, and tracked down and
cancelled bogus contracts. His murder to this day remains unresolved”. Leia-se igualmente em https://wikileaks.org/
wiki/Ant%C3%B3nio_Siba-Siba_Macu%C3%A1cua.
1 A imprensa reportou igualmente que o Ministério Público reconheceu que houve prática de actos de gestão danosa
por aquelas figuras, mas que a Lei não podia ser aplicada retroactivamente. Nota de Imprensa do Centro de Integri-
dade Pública (CIP), de 5 de Maio de 2010.
2 Idem, Ibedem.
3 https://24.sapo.pt/atualidade/artigos/americo-sebastiao-empresario-portugues-desapareceu-ha-quatro-anos-em-
-mocambique-familia-continua-a-espera-de-que-o-presidente-e-o-governo-de-mocambique-digam-o-que-se-passou.
85
Depois da sua morte, os raptores (ou a organização do assassinato) usaram os cartões de
débito e crédito para levantarem cerca de “4.000 euros”, não conseguindo mais porque as
contas foram bloqueadas logo que foi constatado o desaparecimento de Américo Sebastião1.
Isso significa que os raptores e/ou seus mandantes, conheciam os códigos dos cartões, o
que pressupõe serem de relação muito próxima (certamente ao nível da gestão da empresa),
ou que Américo tenha sido forçado a dizer os códigos em situação de tortura, actos estes
confirmados.
Testemunhas presentes no local da captura, afirmam que Américo Sebastião estava a abastecer
a sua viatura de combustível, quando chegou um grupo de homens armados, com fardamento
das forças governamentais, em dois jeeps de marca usualmente utilizadas pelas forças
governamentais (exército e polícia). Depois de uns telefonemas entre um dos elementos do
grupo com alguém, Américo Sebastião foi almejado e levado numa das duas viaturas. O carro
nunca mais foi “oficialmente” visto. Pessoas que investigaram o assunto afirmam que sabem
onde o corpo morto foi deixado (na berma de uma estrada, depois de um cruzamento) e que
depois desapareceu desse local. O relatório dessa investigação foi entregue a uma embaixada
em Maputo.
O assunto arrasta-se e até 2021 (momento em que o autor escreve o livro) não existe qualquer
resultado.
Sobre o assunto, “O Presidente da República de Moçambique, Filipe Nyusi, disse esta quarta-
feira (finais de Junho de 2016), em Lisboa, que “Queria que os portugueses percebessem
que esse não é um assunto de Estado, pelo menos pela parte de Moçambique. Coisas como
essas em Moçambique, durante os 16 anos que tivemos de conflitos, acontecem muito. Tenho
muitos moçambicanos desaparecidos, tenho muitos estrangeiros desaparecidos, de todo o tipo
de pessoas, incluindo alguns portugueses (…) Não pode acontecer”. O Presidente adiantou
que o Governo de Moçambique através dos seus serviços de justiça e segurança tudo fez para
que esse caso fosse esclarecido, até ao momento sem sucesso”.4
1https://www.cmjornal.pt/mundo/africa/detalhe/portugalmocambique-desaparecimento-de-americo-sebastiao-
-nao-e-assunto-de-estado---nyusi?ref=Mais%20Sobre_BlocoMaisSobre
2 A Assembleia da República de Portugal aprovou por unanimidade na sexta-feira um voto “de preocupação pela
inexistência de conclusões relativamente ao desaparecimento do empresário Américo Sebastião, em Moçambique”.
Na nota publicada no ‘site’ do Palácio de Belém, sublinha-se que “desde 2016 que, ininterruptamente, o Presidente
da República tem, em contacto directo com as autoridades moçambicanas, a começar no Chefe de Estado, bem como
em público, procedido a todas as diligências destinadas ao apuramento da situação do nosso compatriota Américo
Sebastião em Moçambique”. (…) “A isso mesmo se referiu em diversos momentos neste sítio da Presidência da
República. Recorda, ainda, que o assunto foi expressamente tratado aquando da Visita de Estado do Presidente Filipe
Nyusi a Portugal, quer na Presidência da República, quer no Parlamento, sobre ele se tendo pronunciado publica-
mente o Presidente de Moçambique”, lê-se na mensagem” (…) https://www.noticiasaominuto.com/pais/1370413/
marcelo-assinala-posicao-da-ar-sobre-desaparecimento-de-americo-sebastiao.
3 https://www.dw.com/pt-002/raptos-em-mo%C3%A7ambique-recusa-de-coopera%C3%A7%C3% A3o-%-
C3%A9- um-mist%C3%A9rio/a-55421247.
4https://www.cmjornal.pt/mundo/africa/detalhe/portugalmocambique-desaparecimento-de-americo-sebastiao-
-nao-e-assunto-de-estado---nyusi?ref=Mais%20Sobre_BlocoMaisSobre.
86
Giles Cistac
“Em 1993 trabalhou como conselheiro civil na embaixada francesa em Maputo e, entre
outros, trabalhou com a Universidade Eduardo Mondlane. Após um breve regresso a França,
mudou-se em 1995 para Maputo. Desde aí, trabalhou como docente universitário de direito
na universidade pública Eduardo Mondlane. Até à sua morte, exerceu o cargo de Director-
adjunto para Investigação e Extensão na Faculdade de Direito. Em 2008, promoveu uma
unidade universitária que se preocupava da investigação sobre a harmonização do direito na
SADC, o Centro de Estudos sobre a Integração Regional (CEDIR)”.1
“Em 2009 recebeu a ordem de mérito Ordre des Palmes Académiques pelo seu trabalho de
decentralização de Moçambique, sendo esta a distinção francesa mais importante na área das
ciências. Em 2010 adoptou a nacionalidade moçambicana”. 2
Na manhã do dia 3 de Março de 2015, Cistac, depois de tomar um café onde normalmente
passava pelas manhãs, no bairro de Polana, foi atingido por três tiros vindos de um carro que
passava. Poucas horas depois faleceu no Hospital Central de Maputo. Este assassinato foi
recebido com consternação na sociedade, tendo havido uma manifestação e uma marcha entre
o café onde foi assassinato e a faculdade de direito.
No velório, o Reitor da UEM afirmou que Gilles Cistac iria marcar uma geração de juristas,
mesmo aqueles que não tiveram a sorte de tê-lo como docente. “O Encarregado de Negócios
da Embaixada da França frisou que a comunidade francesa em Moçambique tinha uma
grande estima por Gilles Cistac, era um dos franceses com mais antiga presença no território
moçambicano (…). Ele era um traço de união entre a França e Moçambique”4, https://www.
uem.mz/index.php/noticias-recentes/461-uem-exalta-feitos-do-professor-gilles-cistac-em-
velorio.
Existiram de imediato reacções de suspeita do acto ter sido praticado pelos “esquadrões
da morte”5 e a ordem para matar com origem no poder. Seguiu-se inquérito no Tribunal da
Relação de Maputo. Um dos inquiridos, depois de referir o ambiente negativo gerado pelo
1 https://pt.wikipedia.org/wiki/Gilles_Cistac.
2 Idem, ibidem.
3 Jornal Notícias. 19 de Fevereiro de 2015.
4 https://www.uem.mz/index.php/noticias-recentes/461-uem-exalta-feitos-do-professor-gilles-cistac-em-velorio.
5 A suspeita de existência de um grupo de pessoas, militares ou militarizados, sob comando directo de altos res-
ponsáveis dos centros de decisão política e de segurança, que tinha (tem) como missão, matar ou raptar e espancar
cidadãos que se notabilizaram (e se notabilizam) por posicionamentos críticos em relação ao poder e sobre os quais
se encontrou dificuldades de os silenciar. São muitos os casos de assassinatos e espancamentos de académicos, jorna-
listas, membros da oposição que sofreram este tipo de acções e cujos mandantes e autores morais e materiais jamais
foram descobertos, muito embora a polícia criminal sempre refira que têm pistas até ao esquecimento nas memórias
colectivas. São os designados Esquadrões da Morte (veja no capítulo 2).
87
destacado membro do Secretariado do Comité Central da Frelimo, referiu o caso de uma
página no Facebook com o nick name de “kalashnikov”, onde ameaçava/insinuava nomes a
abater (todos brancos moçambicanos), entre os quais Gilles Cistac. Ao se ler a acta do Tribunal
da relação, essa passagem foi suprimida, o que mereceu reacção do inquirido. Perguntado se
desejava que constasse na acta, este afirmou positivamente, tendo-se verificado uma reacção
de incómodo por parte dos inquiridores. A redacção final contou com esse depoimento.
A UEM ergueu um memorial no pátio da faculdade de direito e atribuiu o nome de Gilles Cistac
à biblioteca. Sensivelmente três meses depois, o memorial foi arrancado e retirado o nome à
biblioteca. O Director da Faculdade, a 15 de Março de 2016, alegou erros de procedimentos
regulamentares para a atribuição do nome e para a colocação do memorial. Entretanto,
nenhuma iniciativa existiu para a reposição do nome do memorial. Foram certamente “ordens
superiores”!
O caso Cistac permanece, como tantos outros, engavetado junto dos segredos do poder e
selado com pactos de silêncio. Como outros, houve uma combinação de intriga, criação de
ambiente político propício, desrespeito pela vida humana, encobrimento dos mandantes e
autores materiais, disfarce de averiguações e esquecimento para a maioria da sociedade.
1 https://cartamz.com/index.php/politica/item/1189-o-assassinato-de-gilles-cistac-e-o-absoluto-silencio-das-autori-
dades.
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3. FUZILAMENTOS
Ordem de Acção Nº 5/80
Transcreve-se parte da Ordem de Acção Nº 5/80, assinado no dia 29/7/1980, pelo então
Ministro da Segurança: “No espírito dos costumes, usos e tradições da luta armada de
libertação nacional, o Comité Político Permanente da Frelimo julgou e condenou à morte por
fuzilamento, os seguintes desertores e traidores do povo e da causa nacional, que foram já
executados: Uria Simango, Lázaro Nkavandame, Júlio Razão Nihia, Mateus Ngwegere, Joana
Simeão e Paulo Gumane.”
Este texto, do órgão máximo da Frelimo entre congressos, revela claramente: (1) ser um
despacho após os fuzilamentos terem sido executados; (2) o Ministro da Segurança assinar
uma decisão do Partido Frelimo, revelando uma total ausência dos limites de competências
entre o partido no poder e o Estado (o que se pode designar por um regime dirigido por um
Partido-Estado); (3) uma profunda crueldade.
O Tribunal Militar Revolucionário (TMR) foi uma estrutura provisória criada a 29 de Março
de 1979 pelo Decreto-Lei 3/79 da Comissão Permanente da Assembleia Popular. A 1 de Abril
de 1979, o Ministério da Defesa anunciou a nomeação de Joaquim João Munhepe como juiz-
presidente e de Pedro Juma, José António Cauma, Ismael Lúcio Mangueira e Lucas Langa
- todos oficiais militares superiores - como juízes. Novos painéis de juízes foram nomeados
pelo menos duas vezes, em Março de 1981 e Setembro de 1982. A principal função do TMR
era julgar casos de crimes contra a segurança do Estado e tinha o poder de decretar a pena
de morte. Essas sentenças foram frequentemente relatadas como tendo sido executadas por
pelotões de fuzilamento dentro de cinco dias após terem sido proferidas.
Durante dez anos, o TMR foi o principal instrumento jurídico do Estado moçambicano e da
Frelimo na luta contra a rebelião armada da Renamo. Os combatentes da Renamo capturados
eram regularmente condenados à morte ou a longas penas de prisão. Muitas ou algumas das
sentenças e sua execução foram amplamente divulgadas na imprensa local, presumivelmente
para desencorajar os outros (efeito persuasão).
No dia 16 de Março de 1989, após quase dez anos de actividade, foi anunciada a dissolução
do TMR, e os processos começaram a ser transferidos para os tribunais populares provinciais.
Esses tribunais começaram a funcionar plenamente no final de 1988. A mudança também
significou que, pela primeira vez, os acusados tinham acesso a um processo de apelação” 1.
1 http://www.mozambiquehistory.net/tmr.php.
89
Goolam Nabi
O TMR condenou à morte ou à reeducação para integração na sociedade vários réus acusados
de crimes. Conforme o jornal Noticias de 18 de Junho de 1982, pág. 7, o TMR reuniu-se
nos dias 3, 4 e 5 de Junho de 1982, na Cidade de Maputo, a fim de julgar réus acusados
em processo-crime contra a Segurança do Povo e do Estado Popular. Nessa reunião, foram
decididas várias condenações à morte por fuzilamento. Nos dois pés de página abaixo,
apresenta-se um caso de condenação por fuzilamento e outro de reintegração na sociedade.
Goolam Nabi foi condenado à pena de morte por fuzilamento. O acto de fuzilamento foi
consumado no bairro de Hulene, nas periferias de Maputo, presidido pelo então presidente do
Conselho Executivo da cidade capital, contando com a presença de dirigentes da cidade, do
partido Frelimo, deputados e público residente em Maputo. Foi um acto “popular”.
1 Para mais detalhes dos processos de decisão, consulte o jornal Noticias, do dia 18 de Junho d e1982, na página 7.
Decisão sobre os réus Hussene Sucá; Gilberto Lopes Goncalves; Rogério João da Glória (aspirante a Oficial das
Forças Armadas de Moçambique); e Benjamim Moisés Gulela:
“Assim, considerando:
1º A sua pouca idade;
2º A menoridade de alguns deles e sua imaturidade;
3º A perfídia do inimigo, que manipula jovens de 18 a 21 anos, para os tornar instrumentos da sua acção subversiva;
Nestes:
O Tribunal decidiu não aplicar as penas que seriam aplicáveis aos actos por eles praticados. Mais decidiu o Tribunal
recomendar ao Ministério do Interior, à Secretaria de Estado do Trabalho e à OJM, que procedam ao seu enquadra-
mento, com vista à sua normal reintegração na sociedade”.
Caso de Matias Clifford Tenda, pode-se ler no comunicado publicado no mesmo jornal Noticias: Foi membro da Fre-
limo, onde ingressou em 1963, tendo tirado o curso de socorrista. Chegou a ser secretário administrativo do Hospital
da Frelimo em Mbeya. Em 1967 foge para um país vizinho, onde se junta à Coremo. Aí começa a sua trajectória
da traição. Depois da Independência de Moçambique, torna-se membro fundador da África Livre, no Malawi. É
designado, dada a alta confiança nele depositada, responsável provincial de Mobilização para â Zambézia, da “África
Livre’. Participa em diversas reuniões da organização em casa do Amós Maurício Sumane, dirigente da África Livre’.
Em Novembro de 1979, o réu, juntamente com outros contra revolucionários, penetra no território moçambicano
com o objectivo de recrutar mais elementos para a referida organização, altura em que é detido. Perante estes factos,
o Tribunal considerou o réu Matias Clifford Tenda como autor dos crimes de alta traição; de pertença e colaboração
com organização clandestina, na qualidade de dirigente; e crime de rebelião. Nestes termos, o Tribunal condenou o
réu na pena de morte por fuzilamento.
90
4. LEI DA CHICOTADA
A Lei da chicotada foi publicada pela Lei nº 5/83 de Março pela Comissão Permanente da
Assembleia Popular (veja abaixo parte do enunciado na Lei).1
Conforme a lei, a chicotada foi aplicada a vários níveis, com e sem julgamento prévio, em
público, sobretudo nos locais onde a infracção/crime tivera sido cometido.
A chicotada foi muito aplicada, muitas vezes sem julgamento, regra geral com assistência
popular.
1 Artigo 1. A pena de chicotada será aplicada aos autores, cúmplices e encobridores dos seguintes crimes consuma-
dos, frustrados ou tentados:
a) Crimes contra a Segurança do Povo e do Estado Popular;
b) Candonga em todas as suas formas, nomeadamente, especulação e açambarcamento, crime contra o abasteci-
mento público, tráfico ilegal de divisas e contrabando;
c) Assalto à mão armada, pertença a organização, quadrilha ou bando de malfeitores;
d) Roubo;
e) Estupro e violação de menores
Artigo 2. Quanto à particular gravidade política, económica e social do delito, os antecedentes criminais ou a per-
sonalidade do delinquente o exija, os Tribunais poderão decidir aplicar a pena de chicotada aos autores, cúmplices e
encobridores dos seguintes crimes:
a) Furto;
b) Homicídio voluntário;
c) Violação;
d) Aliciamento, incitamento e utilização de menores na prática de delitos;
e) Tráfico de estupefacientes;
f) Cobrança de preços manifestamente desproporcionados ao tipo e natureza do serviço prestado.
Artigo 3. – 1. A pena referida nos artigos anteriores será aplicada cumulativamente com as penas fixadas nas leis
penais em vigor e não pode ser suspensa na sua execução ou substituída por prisão ou multa.
2. Se o crime for de pequena gravidade, o Tribunal poderá decidir aplicar autonomamente a pena de chicotada.
Artigo 3. Não se aplicará a pena de chicotada quando o criminoso tiver sido condenado à pena de morte.
Artigo 4. A pena de chicotada será de três a trinta chicotadas por série, podendo aplicar-se até ao limite de três séries
espaçadas por períodos não inferiores a oito dias. A pena será graduada de acordo com a gravidade social dos delitos.
Artigo 5. A pena de chicotada será aplicada pelos Tribunais Populares em todos os escalões e pelo Tribunal Militar
Revolucionário, de acordo com as respectivas competências definidas na lei.
Artigo 6. A pena de chicotada será executada em lugar público com leitura prévia da sentença.
Artigo 7.- 1. Atendendo à natureza e circunstâncias do crime, os antecedentes criminais ou a personalidade do crimi-
noso, os Tribunais poderão decidir a aplicação da pena de interdição de residência como pena acessória das demais
penas que lhe forem aplicadas”.
Retirado de https://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2012/03/lei-n%C2%BA-583-de-31-de-mar%-
C3%A7o-chicotadas-e-pena-de-morte.html.
91
5. RAPTOS
Os raptos tinham (e têm), regra geral, duas motivações: (1) política, contra cidadãos
considerados “críticos” (jornalistas, académicos, comentadores de televisão e articulistas nos
jornais considerados independentes); (2) económica, de ajuste de contas por incumprimentos
de acordos e negócios, ou simplesmente para exigir elevados valores como condição para a
restituição da liberdade, afectando principalmente empresários e cidadãos considerados de
“ricos”. Vigora também o que se designa por taxa da liberdade, que constitui no pagamento
periódico (geralmente mensal), ou em uma única de prestação, de um valor para evitar o rapto
de quem sofre a taxa.
Em relação aos primeiros (motivações políticas), o rapto foi geralmente antecedido de ameaças
por telefone, “amigos” aconselhando a “não falar muito”, calúnias e ataques pessoais e de
carácter nas redes sociais (principalmente por pessoas do designado G40),1 perseguições com
viaturas, entre outras ameaças. Para não referir muitos casos, o ex-Bispo de Pemba, Dom Luiz
Fernando Lisboa, numa entrevista assim referiu: 2 Pergunta, “Luiz, quem o estava ameaçando.
Os extremistas? Dom Luiz responde: Não. O governo. Recebi primeiro ameaças de expulsão,
depois apreensão de documentos e no final de morte”. Quem “pode” fazer estas ameaças
a um bispo nomeado pelo Papa, muito mais facilmente as fará a cidadãos sem “coberturas
políticas” ou outras.
No caso dos raptos por motivações económicas, foram, regra geral, sem “pré-aviso”:
apanhavam as pessoas em espaços públicos ou nos seus locais de trabalho (lojas), nos arredores
das residências, etc., ao que se seguia um cativeiro para negociação do valor do resgate (em
alguns casos, valores acima de cinco milhões de dólares). Regra geral, os familiares ou seus
representantes negociavam em baixa e chegava-se a um acordo, sendo a pessoa retirada do
cativeiro e abandonada em algum lugar.
A totalidade dos raptos soma mais de 100 casos, sendo muito poucos os casos em que os
1 G40 por ser um grupo de quarenta cidadãos, membros de confiança da Frelimo, constituído por jornalistas e
docentes de ensino superior e técnico, funcionários do Aparelho de Estado, que tinha como função principal, em
momento de muitas críticas à governação do Presidente Guebuza, de defender a imagem da Frelimo, Governo e do
Presidente. Fizeram-no, na maior parte das vezes e pela maioria dos seus membros, contra-atacando os “críticos”.
Por coincidência ou de forma planificada, em alguns casos, esses ataques precederam a assassinatos políticos, como
foi o caso de Gilles Cistac.
2 Entrevista de Raffaella Scudera, publicada por La República, 11.04-2021. Republicado por Carta de Moçambique,
15 de Abril de 20221.
92
assassinos materiais foram presos. Nenhum mandante foi detido. Este facto, é um forte
indício em como os raptos têm comando nos centros do poder (para o caso dos raptos não
“económicos”) e que existem a indústria do crime organizado. Existem relatos em como os
raptados em cativeiro identificavam os raptores com agentes da polícia. Alguns empresários
saíram do país, em consequência da constante perseguição e ameaças para cobrança de valores
avultados.
6. RESUMO
Os casos referidos de assassinatos, fuzilamento, chicotadas e raptos, são somente exemplos
que fundamentam a tese deste texto. Muitos outros casos de assassinatos e desaparecimentos
de personalidades da política (sobretudo políticos, diplomatas e militares, tanto da Frelimo
como da oposição) aconteceram no país e no estrangeiro durante a luta de libertação nacional
e após a independência, ao longo das seis décadas após a constituição da Frelimo. Muitos
destes casos são inconclusivos sobre o ocorrido (por não existirem resoluções judiciais nem
processos criminais encerrados ou mesmo iniciados).
Os métodos utilizados são diversos, como, por exemplo: (1) fuzilamentos “oficiais” a coberto
das decisões do Tribunal Militar Revolucionário; (2) fuzilamentos com e sem alguma decisão
escrita ou à revelia das instâncias superiores da Frelimo; (3) desaparecimentos súbitos das
pessoas (caso de Evo Fernandes em Lisboa/Cascais, Américo em Maringué e outros); (4)
atropelamentos duvidosos de personalidades da política moçambicana no estrangeiro (por
exemplo, Lourenço Matola em Nairobi, Lourenço Mutaca2 em Adis Abeba; Ataíde no
Malawi);3 (5) mortes nas cadeias; (6) chicotadas à luz da lei especifica (ou não), com e sem
julgamento judicial.
1 Lazaro Nkvandame organizou e foi funcionário do Estado colonial na promoção do algodão em Cabo Delgado.
Devido ao seu reconhecimento e prestígio junto da população do planalto de Mueda, a produção teve um grande
aumento.
2 O regressado (dissidente muito activo), Lourenço Mutaca, “apadrinhado” pela Suécia é poupado no julgamento
de Nachingwea. Reintegrado mais cedo no Moçambique Independente como quadro superior. Todavia, misteriosa-
mente, anos mais tarde é assassinado em Adis Abeba (Etiópia) para onde tinha sido destacado por uma Organização
Internacional, autorizado pela Frelimo. Em http://coloquioslusofonia.blogspot.com/2012/04/historia-samora-ma-
chel-contra-execucao.html
3 “No seu livro de memórias, Oliveira volta a citar Wate, assim como o responsável pelas finanças da «D-13», An-
tónio Mula, referiu que a morte de João Ataíde, ex-embaixador moçambicano em Paris, fora da responsabilidade de
agentes do SNASP propositadamente enviados ao Malawi. Na altura do crime, Ataíde regressava do quartel-general
da Renamo na região de Gorongosa. Tratou-se de uma “vingança” do regime da Frelimo pelo facto de Ataíde ter
aderido à Renamo uma vez abandonado o cargo de embaixador, lê-se no livro de Paulo Oliveira. Em relação a Mateus
Lopes, morto na companhia de João Ataíde, Oliveira volta a citar os referidos oficiais da «D-13» como tendo dito
que a vítima era um agente ao serviço do SNASP e que a polícia política da Frelimo decidira liquidá-lo por ser “um
agente gasto, mais que descoberto e denunciado ...um agente “queimado”. Em Canal de Moçambique – 13.07.2006.
93
Em muitos dos casos apresentados, fala-se de um grupo designado pela sociedade como
“esquadrões da morte”, sob comando directo de altas patente militares, relacionado com a
defesa e segurança. As formas de actuação, a eficácia “matadora” e os meios que utilizam
(viaturas, fardamento e armas), fazem concluir ser trabalho de profissionais”.1
1 Numa entrevista publicada no semanário Savana nº 1157 de 2019, um agente da polícia pertencente à Unidade de
Intervenção Rápida (UIR), respondeu à seguinte pergunta: Então, as missões não são só contra os homens armados
da Renamo? da seguinte forma: “em Maputo nunca usamos armas contra militares. Conforme eu disse, dão-nos a
foto e depois só vão ouvir que um desconhecido foi encontrado morto na zona x, como se tivesse sido um assalto.”
Em resposta à pergunta se já tinha realizado alguma missão contra Afonso Dhlakama?, o agente respondeu: “já, só
que aquele também é drogado. Para o líder da Renamo, primeiro lhe tentamos no distrito de Moma, mas o falhamos.
Em Manica agora, só que aquele senhor não morre”. A uma outra pergunta sobre quem emitiu as ordens em que o
agente tinha participado, a resposta foi: “sabe, aqui em Moçambique tem pessoas que nunca são mencionadas, de
quem nunca se fala. Quando há problemas, sempre fala a polícia, os militares, mas há uns que sempre ficam por
detrás disso: SISE (Serviços de Informação e Segurança do Estado). São grandes, têm informação de tudo isto aqui”.
94
essa capacidade não existe, ou não é utilizada para determinados casos, e a questão da soberania
não passa de uma artimanha discursiva. Se a aceitação de investigadores estrangeiros fere a
soberania, o que se dirá à intervenção, em solo moçambicano, de tropas de outros países e da
contratação de mercenários?
A suposta fragilidade das instituições da ordem e da justiça pode ser interpretada como
uma falácia, caso se admita que, em muitos casos, existem mandantes pertencentes às altas
hierarquias do poder (Frelimo, antes e depois da independência) e à subjugação do sistema
de justiça ao poder político e interesses económicos, minando-se um dos suportes básicos do
Estado de Direito.
A quantidade de assassinatos e raptos, sem que exista, ao fim de muitos anos, alguns resultados
das investigações criminais, só se pode entender por uma das razões ou combinação das razões
seguintes: (1) incompetência das instituições de investigação criminal e do sistema judiciário;
(2) crimes cometidos e encobertos por pessoas ou instituições do poder ou a ele relacionado, a
vários níveis, o que se designa por sindicato do crime e/ou captura do Estado por criminosos
e máfias de diferentes natureza.
95
CAPÍTULO 5
CENTROS/CAMPOS DE REEDUCAÇÃO
1. O DISCURSO OFICIAL
“Ainda antes da independência de Moçambique, a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique),
sentia a necessidade de eliminar os comportamentos e costumes associados ao colonialismo
português e ao sistema capitalista, criar uma nova mentalidade e uma sociedade socialista.
Pelo que ainda em 1974, Armando Guebuza, actual chefe de Estado e na época ministro da
Administração Interna do Governo de Transição, anunciou a criação de campos ou centros
de reeducação. Na realidade, conforme se verificará neste capítulo, tratava-se de campos de
concentração.
O discurso oficial designava por centros para se evitarem analogias com campos de reeducação,
de prisioneiros ou mesmo campos de concentração, entre outras designações havidas com o
fascismo de Hitler e o extremismo de Estado de Estaline com comportamentos de tipo fascista
(ditadura do proletariado), entre outros. Vejamos do que se tratava e qual(is) o(s) nome(s)
mais adequados.
96
da Frelimo) e Testemunhas de Jeová (uma confissão religiosa que recusa, entre outros, o
serviço militar obrigatório), foram apanhadas nas ruas das principais cidades, em particular
em Maputo, Beira e Inhambane, segundo relatos em jornais internacionais.1 Em muitos casos,
não ter um documento de identificação era suficiente para a pessoa ser abordada pela polícia
e seguir para o centro de reeducação.2
Apesar de não haver dados oficiais, estima-se que, em 1980, cerca de 10 mil pessoas estariam
concentradas em 12 centros de reeducação. O número viria a crescer nos anos seguintes.3 Em
Novembro de 1975, foi anunciada a detenção de três mil pessoas em rusgas efetuadas nas
cinco principais cidades do país, segundo o jornal tanzaniano Daily News.
2. A PRÁTICA DE IMPLEMENTAÇÃO
As realidades são diferentes dos discursos. As pessoas eram retidas/detidas pelas diversas
razões na rua ou por desvios da linha política da Frelimo (membros do Partido, funcionários,
opositores, críticos), “carregadas” (“atirados”)4 para os centros de reeducação, sem que as
famílias soubessem durante meses e anos acerca do paradeiro da pessoa retida/detida, e depois
transportada para um centro/campo. Os locais não reuniam alguma condição de alojamento e
tudo deveria ser organizado pelos reeducandos.5
97
O governador de Niassa na altura, recebia os enviados de Maputo para os campos de
concentração nas escadas dos aviões, e procurava saber das razões e o que faziam (actividade
profissional, se fosse caso). Entre muitos, seguiu para Niassa um docente universitário sem
qualquer razão aparente (exepto, se fosse, pelo debate acerca do marxismo em Moçambique),
tendo este e outros com profissões e sem razões para serem reeducados, colocados em
actividades diversas na província.
A avalanche de presos para a reeducação era de tanta quantidade, que os então governadores
(por exemplo de Cabo Delgado e de Nissa) reclamavam para que não fossem enviados mais
reeducandos, por não possuírem capacidade de acolhimento e enquadramento. O envio para
Cabo Delgado foi suspenso (será porque o então governador era superior hierárquico no
partido? Mas continuou para Niassa e outros locais. De Nissa foi sugerido ao então Ministro
do Interior, responsável pela “operação”, que o docente universitário voltasse para Maputo,
ao que lhe responderam, se a proposta se deveria ao facto de ser branco.
Chissano elogia o processo reeducativo, como disse numa entrevista, em 2012 (cerca de 30 anos
depois), à DW África: “foi pena que nós não [continuássemos] a ter campos de reeducação.2
Porque não eram campos de tortura, eram realmente de reeducação. A pessoa regenerava-se.
Nós criámos campos para pessoas criminosas, pessoas que tinham roubado ou até tinham
assassinado. E eram reabilitadas. Era um lugar onde as pessoas faziam a sua agricultura,
tinham o seu rendimento, refaziam a sua vida, tinham alfabetização, aprendiam ofícios”. Este
á um dos discursos típicos de encobrimento, da autojustificação do injustificável, da “peneira
a tapar o sol”, em resumo, da mentira, do diversionismo e da recusa de reconhecimento dos
erros.3
para o mato. Disseram-nos: aqui têm de construir cidade, trazer as vossas mulheres para aqui, para tirar as ideias do
tempo colonial, para nos ‘lavar a cabeça’. E ficámos. Era muita gente, toda a raça estava acumulada ali: moçambica-
na, mista, portuguesa, havia uma mistura de pessoas em Sakuze”, recorda.
Desde esse momento, há 38 anos atrás, Félix Bingala rompeu irremediavelmente ligação com o passado: “desde que
estou aqui não tenho possibilidade de contactar com a família. A minha família até pode dizer: ele já morreu; e eu
ainda estou vivo”, admite. Em https://www.dw.com/pt-002/as-feridas-abertas-pelo-processo-de-reeduca%C3%A7%-
C3%A3o-em-mo%C3%A7ambique/a-16948901
1 “Reeducação e legalidade, fabricam o Homem Novo”, é o título de dum artigo no jornal Notícias, de 29/8/81.
Nesse texto, refere-se que Samora Machel, embora enalteça e valorize a reeducação, certifica-se de casos de injustiça
e que foram detidos e enviados para Msawizi por intrigas.
2 Diz “campos”, não “centros” de reeducação
3 Ao longo do livro, podem-se ler depoimentos e referências de autores e textos, que revelam total contradição comas
palavras de Chissano, outos dirigentes e órgãos da Frelimo e do governo, acerca dos campos de reeducação. O filme
Virgem Margarida de Licínio de Azevedo, representa com veracidade o fenómeno dos campões de reeducação.
98
3. A VIDA NOS CENTROS DE REEDUCAÇÃO
Despois da ida para os centros de reeducação em espaços rurais, sem alguma habitação ou
condições de alimentação, água, centro de saúde, escolas, etc., os recém-chegados tinham
que construir as casas com material local, abrir matas para a produção agrícola, buscar água
e demais afazeres da vida nos centros/campos de reducação/concentração. Tinham também
reuniões para a transmissão da propaganda política e ideológica da Frelimo, e a aprendizagem
do marxismo-leninismo. A organização da vida era típica a de um quartel.
Tentativas de fuga raramente tinham sucesso. Ou eram apanhados pelos militares do centro/
campo, ou denunciados pela população das aldeias circunvizinhas, ou devorados por animais
selvagens.1 O então Ministro do Interior, em Abril de 1976, num campo de reeducação em
Niassa, deu instruções ao comandante do campo para executar sumariamente todos quantos
tivessem a ousadia de dali fugir.2 As punições eram severas, como por exemplo: “Até havia
uma cova grande. Se você praticou alguma coisa, você desce com a escada até lá, tira a escada,
fica ali, “caga ali, mija”, de manhã tira, comida vem, recebe e come. Essa era a punição”.
Quanto ao quotidiano, o ex-reeducando lembra: “de dia é trabalho, pegar a enxada para a
machamba, ir à pesca, fazer cestas (quem soubesse), comida para a gente comer. Mas a comida
não chegava para tudo e vinha da província para lá. Houve dificuldades mesmo. Se alguém
saísse um pouco, a população iria amarrar. Nós éramos chamados presos, éramos amarrados,
bem esticados. Tinha que se cortar cabelo “assim”, usar saco, para se saber quem é fugitivo.
“A vida é de ser mandado, de ser batido de qualquer maneira. Quem não obedecia à ordem era
batido. Quando tocava o apito, devia-se correr, se fosse quando se estivesse a comer devia-se
deixar a comida e receber ordem. Se não receber ordem tem porrada, acontecia assim”, diz
André Ernesto Embalato.3
Uma grande mortalidade aconteceu nos centros. Falta de assistência médica e medicamentosa,
condições de vida ou fuzilamento desde que apanhados em fuga ou tentativa de fuga. Segundo
o livro “Uria Simango - Um homem, uma causa” de Barnabé Lucas Ncomo, dos 1.800
prisioneiros que lá entraram, desde 1975, menos de 100 saíram com vida, até 1983.
Segundo a mesma fonte, “em M’telela ou nas imediações, terão morrido, por exemplo, Uria
Simango e Joana Simeão, personalidades ligadas à fundação da Frelimo, que viriam a ser
acusadas de traição” (veja nos capítulos 1 e 4).
99
Um ataque da Renamo na estrada entre Unango e Lichinga, a 6 de Dezembro de 19841, fez
parar um grande projecto agrícola em Unango, com apoio da então República Democrática
da Alemanha. 2
Dizia-se que as pessoas já estavam educadas e que queriam construir uma cidade em Unango.
Diz-se que Unango era o sonho de Samora Machel, para a construção de uma nova cidade
no campo. Porém, “O Presidente Samora prometeu-nos que, antes da construção de novas
infraestruturas em Unango, nós devíamos beneficiar de novas casas”, disse-nos um cidadão
que optou pelo anonimato. E acrescenta: “O Presidente Samora, prometeu que o Estado iria
comprar mobília e tudo. Que íamos tomar conta de tudo isto”, disse um entrevistado, que,
por isso, acabou desabafando que “estamos abandonados. Ninguém cumpriu o que Samora
prometeu e ninguém recebe nem sequer o subsídio social básico”.6
1 Outras fontes indicam a data de 6 de Dezembro do mesmo ano.
2 “Oito cidadãos da RDA, um trabalhador jugoslavo e cinco moçambicanos morreram. Até hoje, não se sabe ao
certo quem levou a cabo o ataque”, https://www.dw.com/pt-002/unango-o-ataque-que-parou-a-ajuda-da-rda-a-mo%-
C3%A7ambique/a-55741707.
3 As organizações de Massas eram e são parte integrante da Frelimo, como por exemplo, a Organização da Mulher
Moçambicana (OMM), a Organização da Juventude Moçambicana (OJM) e os Conselhos de Produção (CP).
4 Esta a constatação foi feita pelos participantes ao ll Seminário dos Serviços de Reeducação, que decorreu em
Maputo, de 15 a 19 de Janeiro de 1980.
5https://www.dw.com/pt-002/as-feridas-abertas-pelo-processo-de-reeduca%C3%A7%C3%A3o-em-mo%-
C3%A7ambique/a-16948901
6 https://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2016/12/infra-estruturas-unango-realiza-sonho-de-samora.html.
A mesma fonte, apresenta mais testemunhos: “Hoje com 63 anos, Manuel já não pensa em regressar a Maputo.
“Quero morrer aqui, também é Moçambique”. Desde que chegou ao Niassa, por opção, nunca se preocupou em criar
família, alegando diferenças culturais muito profundas.
Alberto Nhate, outro cidadão entrevistado pela nossa Reportagem, que vivia em Maputo, diz ter chegado a Unango
em 1976 e pelos mesmos motivos evocados pelo anterior interlocutor prefere viver solteiro. Nhate gostaria de regres-
sar a Maputo, sua terra de origem, contudo diz que está desprovido de meios para empreender a viagem, pelo que
“sei que vou morrer sozinho”. Jaime Tivane vivia na Mafalala. Chegou a Unango em 1975. Também vive sozinho,
alegadamente porque não se adaptou aos hábitos culturais da região.
Ester João Machava tem uma história diferente. Vivia em Maputo. Parou nas bandas de Unango em 1984 acompanha-
da do seu marido que cumpria o serviço militar. “Tenho cinco filhos adultos. Estudam cá. Não querem ir a Maputo.
O meu marido lobolou-me, por isso não posso levar os meus filhos à força, decidi morrer aqui”, ressalva. A grande
felicidade de Ester foi o reencontro, trinta anos depois, com a sua mãe que já estava em Unango, facto que teve lugar
no Centro de Saúde de Malulo, sede do distrito de Sanga. Bernardo Thole Alfanete, 59 anos, vivia na cidade da Beira
quando foi enviado para Unango .“Cheguei aqui em Junho de 1979”, lembra-se. Celina Wilson Nhambe é a rainha do
bairro Armando Guebuza onde vive grande parte da comunidade constituída por aqueles cidadãos. Chegou em 1987
proveniente de Moamba, província de Maputo, ao encontro do seu pai que já tinha sido amnistiado. Porque o pai era
régulo entre membros da comunidade provenientes do Sul do país, acabou designada rainha.
Sithole Hebede Jossias é o secretário do bairro Armando Emílio Guebuza, onde vive o remanescente das famílias.
Disse à nossa Reportagem que desse grupo restam hoje 50 famílias. Sithole, que vivia em Manica, chegou a Unango
em 1983. A sua família seguiu-lhe um ano depois. Tal como alguns membros da comunidade sonha um dia regressar
à terra de origem. Falando sobre a falta de um posto policial e de uma escola primária, sublinhou que o problema já
foi apresentado inúmeras vezes ao chefe do posto administrativo de Unango e até ao próprio administrador do distrito
de Sanga, sem lograr soluções”, https://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2016/12/infra-estruturas-unango-
100
No âmbito dos sonhos de Samora foi construída em Unango uma faculdade de Ciências
Agrárias, posteriormente integrada na Universidade Lúrio.
As pessoas poderiam sair dos centros, mas nada ou pouco o Estado fez para o efeito. Cada um
que resolvesse a vida individualmente ou com ajuda das famílias. Muitos ficaram em diversos
sítios em Niassa, incluindo no Unango. Outros, regressaram desprovidos de meios para as
suas terras de origem.
4. RESUMO
Os centros/campos de concentração tinham como objectivo, segundo os discursos, transformar
os cidadãos com diferentes práticas de marginalidade (pequenos ladrões, prostituas, etc.),
desempregados, opositores políticos, no Homem Novo, cujo perfil nunca foi definido.
Pressupõe-se, em dedução de vários discursos e das práticas dos centros/campos, que seja
um trabalhador consciente da sua condição de classe, defensor da revolução, segundo o
entendimento da Frelimo, patriota, produtor, gerador de rendimento e liberto dos vícios da
cidade, do colonialismo e do capitalismo. Assim, surge o campo como o “purificador” de
vícios, espaço de valores políticos e sociais “à la Frelimo”, local de produção. Os centros
se transformariam em cidades no campo. Por isso, Niassa a maior província em termos de
superfície e a de menor densidade de habitantes. Era necessário habitar o território com
“cidades no campo”.
A prática assentou na captura, em rusgas realizadas nas ruas das cidades, sem qualquer
fundamento jurídico ou legitimidade política ou de outra natureza. Muitos cidadãos foram
detidos sem que tivessem os “maus comportamentos” tipificados nos discursos. As famílias
ficaram sem saber do paradeiro dos seus entes queridos durante anos.
101
acima: “foi pena que nós não [continuássemos] a ter campos de reeducação. Porque não eram
campos de tortura, eram realmente de reeducação. A pessoa regenerava-se”. Certamente que
os mentores dos centros/campos de reeducação é que se deveriam regenerar. Esta entrevista
de Chissano revela que o Homem, como ser humano e como indivíduo, era absolutamente
substituído por mandantes autoritários que conheciam (conhecem) a realidade e as atrocidades
e que possuíam (e possuem) grandes habilidades discursivas do engano, da mentira e da
manipulação conscientes.
102
CAPÍTULO 6
RESUMO
A Frelimo revelou, desde a sua fundação, um forte sentido de monopólio do poder, utilizando
para a sua conquista e defesa, os meios que fossem necessários: crítica interna1, depuração
de fileiras, castigos corporais, expulsões, desaparecimento de pessoas, fuzilamentos e
assassinatos. O discurso/propaganda da trilogia unidade-crítica-unidade (nesta segunda
“unidade” a um nível mais consistente/sólido de coesão), eram elaborados em torno de
princípios/ideias, ideologias e objectivos determinados, quase sempre veiculadas por
minorias muito restritas no seio das diferentes lideranças. A terceira fase, a (o segundo estágio
das “unidades”), depois da crítica, significava a convergência formal ou não, em torno das
lideranças. Esta característica foi, e é, suportada por métodos autoritários, autocráticos, cruéis
e sem respeito pelos direitos humanos e liberdades das pessoas.
Face ao referido, pode duvidar-se das intenções das nacionalizações. Isto é, se não existia, já,
mesmo que para uma maioria (mas dominadora do poder), da elite da Frelimo, a intenção da
recuperação futura dos patrimónios e das oportunidades dos negócios nacionalizados após a
independência. O certo é que, aquando das privatizações, foram, em grande parte, os mentores
e executores das nacionalizações, aqueles que mais se beneficiaram das liberalizações dos
mercados, da venda das empresas estatais e do acesso a recursos financeiros, seja da banca
como do Orçamento do Estado, inclusivamente através de fundos especiais e destinadas para
o efeito. Os então “comunistas”, viraram açambarcadores de rendas por via do governo e do
partido, transformados em plataforma distribuidora de recursos, poder, regalias e protecção
judicial. Os partidos políticos, incluindo a Frelimo, têm a arte da navegação em “águas
profundas” e em objectivos de longo prazo.
103
O nacionalismo/”soberania” é, possivelmente, o único elemento identitário de natureza
ideológica, mesmo que, em muitos contextos, através de discursos não verdadeiros. O
populismo é somente uma opção instrumental de mobilização dos cidadãos em função de
agendas/objectivos de cada fase: primeiro durante a luta pela independência, a pátria e a
nacionalidade, considerando a importância da base social alargada no contexto de uma guerra
de guerrilha e de um “inimigo comum” do povo, o colonialismo e a exploração. Depois da
independência e até meados da década de oitenta, o discurso marxista é uma opção influenciada
por uma minoria muito restrita (quiçá genuína nesse grupo restricto), que, desde o II Congresso
(1968), radicalizou os pronunciamentos políticos com o objectivo de mais apoio dos países
socialistas, numa opção ideológica desprovida de realismo, considerando o desenvolvimento
económico do país, a estrutura social, os contextos regionais e internacionais.
O discurso socialista surge combinado com o nacionalismo e o populismo, com o mesmo
objectivo de reunir os moçambicanos em redor do que, em grande parte, correspondia com
os anseios populares da liberdade, de melhores condições de vida, da eliminação das formas
mais violentas de repressão, da afirmação de uma cidadania, mais direitos sobre os recursos
naturais. Depois das reformas, emerge o que se pode considerar de liberalismo de mercado
selvagem, economia especulativa e de maximização de renda, assente em comportamentos e
alianças do que tipifica o “mundo cão”. O poder e o Estado, transformaram-se em plataformas
hierarquizadas e articuladas de defesa e distribuição de recursos e de oportunidades de negócio.
A Frelimo tem como activo principal ter sido a força decisiva (mas não única) na conquista da
independência e com isso, o surgimento de mais um país soberano. Significa, o nascimento
de uma pátria e o desejo de construção de uma nação, assente na afirmação de culturas e
identidades diversas. Tem o activo de, não obstante os interesses políticos e económicos,
contribuir para a independência do Zimbabué e o fim do apartheid. Apesar dos indicadores por
habitante não terem melhorado, houve evolução quantitativa nas áreas da saúde e educação, da
habitação, de infraestruturas de transportes, nas comunicações, o acesso a novas tecnologias
de informação, no abastecimento de água e energia.
104
· O nacionalismo e o patriotismo veiculados por discursos populistas, muitas vezes
manipulatórios, para obtenção de apoios sociais.
· Ausência de ideologia sustentada e coerente, com ajustamentos de discurso, em
função de objectivos do país e de grupos políticos e económicos no seio do poder.
· Liderança exclusivista (incluindo no seio da Frente e depois do Partido Frelimo),
assegurados, muitas vezes com métodos autoritários e de repressão violenta à
margem da lei.
· Opções económicas de curto prazo, mesmo que com um período “socialista”, cujo
suporte ideológico não representava a maioria das lideranças que, numa primeira
oportunidade, transformaram o Estado numa burocracia fragilizada para facilitar a
obtenção de recursos, negócios e de defesa de interesses por meios não transparentes
e corruptos e, por outro lado, um sistema de repressão violento contra opositores e
críticos.
Como último parágrafo do livro, repete-se a parte final da introdução: O autor sabe e conhece
militantes que merecem o maior dos respeitos e admiração, não somente pelos contributos às
causas do país e dos moçambicanos, como pelas suas posturas de seriedade, honestidade, ética
e coerência. Mas não são muitos casos, infelizmente!
105