Adimplemento Substancial Dissertacao Estabilidade 06012017 Formatado
Adimplemento Substancial Dissertacao Estabilidade 06012017 Formatado
Adimplemento Substancial Dissertacao Estabilidade 06012017 Formatado
PORTUGAL / LISBOA
2017
ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL: RAZOABILIDADE DA SUA APLICAÇÃO
NAS RELAÇÕES CONTRATUAIS DO CAPITALISMO MODERNO.
APROVADO:______/________/__________
__________________________________________
Prof. Doutor Armindo Saraiva Matias
Orientador
___________________________________________
Membro da Banca
___________________________________________
Membro da Banca
PORTUGAL / LISBOA
2017
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho a meu filho, Daniel Guerreiro Bonfim Filho, por quem tenho amor
incondicional e teve que ser privado, compulsoriamente, da minha companhia enquanto me
dedicava aos estudos deste mestrado.
AGRADECIMENTOS
BR – Brasil
CC – Código Civil
CDC – Código de Defesa do Consumidor
CF – Constituição Federal
CPC – Código de Processo Civil
MM – Mui Meritíssimo
PT – Portugal
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TJMA – Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão
TJSP – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
UAL – Universidade Autônoma de Lisboa
RESUMO
Study on the application of the theory of substantive due performance in contemporary legal
systems, given the purpose of maintaining the contractual balance prejudiced by events or acts
not foreseen initially. Research on the related legal institutions and their evolution in classical
and modern legal scenario. Approach affects the legal principles to contracts and reflection
about the sobrepesados precepts in the apparent clash in the search for solution to the
jurisdictional cases. Analysis of today's understanding positivado and jurisprudential research.
Keywords: Civil right. Rights obligations. Contracts. Lives. Due performance. Substantial due
performance.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 10
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 97
INTRODUÇÃO
O ser humano carece, desde a sua própria origem, para atendimento de suas
necessidades mínimas – ou mesmo supérfluas, de buscar os itens necessários à sua
sobrevivência, ao seu bem-estar ou à sua satisfação pessoal, visto que ele, sozinho, não é
capaz de produzir ou de deter consigo tudo aquilo que precisa ou lhe convém.
A aquisição do que lhe é preciso pode ser alcançada por meio de seu próprio esforço
ou por intermédio de terceiros, seja pelo trabalho prestado, seja por trocas realizadas. O
escambo, dessa maneira, passou a ocorrer desde o início da civilização e, com ele, a
necessidade de regramento das avenças que iam sendo firmadas.
A organização social, com o transcurso do tempo, tornou-se cada dia mais complexa
e a dinamicidade das operações econômicas trouxe o conhecido instituto do contrato.
Originado na esfera privada entre aqueles que uniram interesses para finalização de
pretensões pessoais, situações em que a parte mais frágil ficou exposta e subserviente àquela
em condições mais favoráveis acabaram por aparecer e, no decorrer da História, a concepção
do contrato passou a ter acepções menos individualistas. No contexto liberal, o ideal de
liberdade tratou de uma igualdade formal – hipotética – para que as contratações se
realizassem livremente entre os interessados, sem qualquer justificativa para que o Estado
interviesse nas relações privadas. Na Revolução Industrial, com a massificação das
negociações existentes, tornou-se inviável atender à demanda advinda da expansão capitalista
que se deflagrava, com a preservação do individualismo a cada novo negócio que se
concretizava. As Guerras Mundiais impuseram, na busca pela recuperação da economia, a
intervenção estatal nos negócios, imiscuindo a autonomia dos indivíduos para contratar.
Problemas contemporâneos advieram do contexto caracterizado pela multiplicidade e
popularização dos negócios havidos, e com as diversas relações de consumo, de trabalho, entre
outras, a História se deparou com acidentes de trabalho, prejuízos, e circunstâncias que
inviabilizavam a consumação das tantas avenças.
A busca do ideal de justiça, apta a restaurar o equilíbrio perdido impunha um trato
mais humano e social em detrimento do interesse puramente individualista da relação
obrigacional tal qual nascida no momento do pacto.
10
Ora, com o surgimento do próprio homem, sempre houve a busca intrínseca pela
preservação da igualdade e do justo, valores cujas acepções sofreram mudanças desde a sua
origem. O pensamento aristotélico já entendia o tratamento igualitário como um reflexo da
ideia de justiça. No Direito Romano, em que já se tratava de distinguir, pela finalidade, a
esfera privada da pública, feições formalistas e solenes foram atribuídas às negociações
praticadas, e somente quando observadas as exigências da época impunha-se a força de
vínculo obrigatório. Na concepção liberal, a intangibilidade do contrato era sinônimo de
respeito ao indivíduo e à sua autonomia. Nisto, a História prova que a ideia de justiça remete
sempre a um ideal de igualdade, impondo equilíbrio entre a vontade dos sujeitos envolvidos.
Certamente, o Direito retrata as súplicas sociais, e os institutos jurídicos que precisam
ser sobrepesados quando invocada a tutela jurisdicional, no trato do instrumento do contrato,
são objeto do presente estudo.
Inicialmente, o capítulo dois trata do conteúdo do contrato, versando sobre os
princípios que regem a questão e os quais orientam, na solução dos conflitos havidos nas
ligações contratuais, os sujeitos envolvidos e os seus julgadores na busca pelo entendimento
de sua natureza jurídica, desde a sua feição estritamente individual até a sua atual acepção de
cunho social. Em seguida, fez-se necessário tecer noções contratuais próprias do instituto,
considerando que, ao se firmar um contrato, se pretende a conclusão do negócio, entretanto,
outras situações podem surgir implicando o não cumprimento da obrigação, ou o cumprimento
de forma parcial ou defeituoso, o que pode denotar prejuízos para um lado em desfavor da
vantagem do outro. Ainda, tratam-se dos efeitos jurídicos decorrentes dessas situações
anômalas, imprevisíveis, as quais carecem de correção, impondo-se a restauração do status
quo ante. Num terceiro momento, são apresentados os aspectos históricos e conceituais
propriamente vinculados ao surgimento da Teoria do Adimplemento Substancial. Por fim, em
observância aos princípios abordados, confronta-se o objeto do presente trabalho, com a
análise da matéria no que tange à manutenção do vínculo contratual, pelo atingimento de seus
fins, em contraposição com o interesse de uma das partes pelo desfazimento obrigacional em
que pese o adimplemento retardatário, imperfeito ou parcial dos deveres assumidos pelo
sujeito passivo da relação.
O cenário mostra que atos ou fatos podem prejudicar o equilíbrio em que o contrato
foi celebrado e, que, por um lado, tem-se um credor que busca o cumprimento integral e
11
perfeito do negócio jurídico enquanto, por outro, há um devedor que carece que as prestações
adimplidas sejam consideradas, embora existam deveres que podem não ter sido observados.
São os efeitos jurídicos desse estremecimento contratual que passam a ser
examinados, o que ainda não possui um entendimento pacífico frente aos estudiosos do
Direito, os quais têm apreciado a questão sob a ótica dos valores individuais e sociais que
devam ser preservados.
As situações carecidas de solução jurisdicional envolvem questões que, embora
possam ser previsíveis, não decorreram de um comportamento propositado e irresponsável do
proponente e, por outro viés, não eram aguardadas pelo interessado.
A ruptura do liame contratual e, via consequência, da relação de equilíbrio entre as
cláusulas do instrumento estabelecidas, carece, nesse panorama, de ser restaurada mediante a
busca de uma justa equação entre os deveres adimplidos, as perdas havidas e a expectativa de
cumprimento integral do contrato.
Assim, “o aplicador do Direito, ao zelar pela equivalência originária do contrato, ou
procurar a razoável resolução da obrigação – quando não for possível restaurar o seu equilíbrio
– com apuração dos prejuízos está, em verdade, à procura do justo como critério”1.
É nessa conjuntura que se apresenta o Adimplemento Substancial e as questões
jurídicas atuais que são cerne de discussão mundial na perquisição por uma compreensão
única e pacífica, de modo a garantir a segurança jurídica dos institutos vigentes.
1
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 24.
2
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 10.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2015, p.
12
1 O CONTRATO E SEU CONTEÚDO: CONCEITO E EVOLUÇÃO HISTÓRICA
O instituto do contrato, popularmente, traz ao ser social a ideia de um acordo em que
os contraentes formalizam as suas pretensões, avençando, cada qual, as prestações que são
obrigados a desempenhar.
Inicialmente, o conceito de contrato, na concepção romanista, “retratava a situação de
pessoas que contraía uma obrigação, primeiro através das palavras solenes e dos gestos rituais
que caracterizavam os actos jurídicos mais importantes (como o nexum e a stipulatio), mais
tarde mediante a entrega simbólica de determinadas coisas, a marcar o momento culminante
da perfeição do acto”2.
Na acepção secular, percebe-se que o direito romano entende apenas dos contratos
com contornos patrimonialistas e solenes.
O contrato, como instituto jurídico, assumiu noções jurídicas diversas, influenciadas
pelos fatos históricos por quais passavam a humanidade. Três correntes de pensamento, no
entender de alguns autores, contribuíram decisivamente para a formação do novo conceito do
contrato, tal como entendido nos ordenamentos jurídicos modernos. A esse respeito, discorre
João de Matos Antunes Varela que:
“Destaca-se, em primeiro lugar, o ensinamento dos canonistas, que pregaram o dever
moral de fidelidade à palavra dada, condenando o perjúrio como pecado e realçando
o valor dos nuda pacta, independentemente de qualquer formalismo ou solenidade
negocial. Foram os canonistas quem, a partir do século XVI, mais decididamente
combateu o culto fetichista da forma (a emissão da declaração perante certas
testemunhas ou em determinado local; o respeito de fórmulas sacramentais; a
observância de ritos solenes, como o aperto de mão a selar a conclusão do contrato
ou a prática de certos actos litúrgicos v.g., a troca de alianças nos esponsais) como a
verdadeira fonte da força vinculativa da promessa feita.
A velha máxima pact sunt servanda aparece já defendida pelos antigos canonistas,
embora tendo especialmente em vista as relações entre Estados.
Refere-se, em segundo lugar, a contribuição doutrinária da escola jusracionalista do
Direito natural e do iluminismo setencista, que colocaram a liberdade individual no
centro ideológico de todo o sistema jurídico, afirmando a supremacia da vontade
esclarecida do homem entre as forças criadoras do Direito (solus consensus obligat).
Foi o jusnaturalismo que mais contribuiu para espiritualizar o contrato, libertando-o
da carga ritual, simbólica, materialista ou formalista que, durante séculos, cobriu a
pureza ou a essência do fenômeno jurídico.
E aponta-se, em terceiro lugar, o voluntarismo jurídico, estimulado pelas
necessidades da burguesia triunfante, interessada em desembaraçar o comércio
jurídico das peias sociais, muitas delas de origem feudal, que desnecessariamente
entorpeciam o seu desenvolvimento.
2
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 10.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2015, p.
214.
13
À acção conjugada desses três factores – um, de natureza predominantemente ético-
religiosa; outro, de índole política; e o último, de caráter social – se deve a nova
fisionomia jurídico do contrato”3.
3
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 2015, p. 215.
4
NADER, Paulo - Curso de direito civil. 4.ª ed. Vol. 3. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 10
5
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 218.
6
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 2014, p. 219.
7
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 2014, p. 220.
8
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 2015, p. 212
14
sempre uma proposta e sua aceitação, das quais deve resultar o mútuo consenso
sobre todas as cláusulas sobre as quais uma das partes julgue necessário o acordo.”9
Caio Mário da Silva Pereira assinala que contrato “é um negócio jurídico bilateral, e,
por conseguinte, exige o consentimento; de outro lado, a conformidade com a ordem legal,
sem o que não teria o condão de criar direitos para o agente; e, sendo ato negocial, tem por
escopo aqueles objetivos específicos” 14 , isto é, em suma, “um acordo de vontades, na
9
LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes - Direito das Obrigações. 12.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2015,
p. 168-169.
10
TELLES, Inocêncio Galvão - Manual dos Contratos em Geral. 4.ª ed. Wolters Kluwer Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, p. 58.
11
COELHO, Fábio Ulhoa - Curso de deireito civil. 4. ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 34.
12
LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes - Direito das Obrigações. 2015, p. 167.
13
TARTUCE, Flávio - Teoria geral dos contratos e contratos em espécie. São Paulo: Método, 2011, p. 34.
14
PEREIRA, Caio Mário da Silva - Instituições de Direito Civil. 19.ª ed. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense,
2015, p. 7
15
conformidade da lei, e com a finalidade de adquirir, resguardar, transferir, conservar,
modificar ou extinguir direitos”15.
Deve-se, reputar, por fim, que, o contrato quando não tem cunho patrimonial é
conceituado por alguns doutrinadores e em alguns ordenamentos jurídicos, como o francês,
como simples convenção, quando trata de direitos reais, familiares ou sucessórios, ou, ainda,
quando extingue ou modifica obrigações16.
Concludentemente, o contrato, por essência, é um acordo entre duas ou mais partes
que possuem interesses opostos, todavia, harmonizáveis entre si, para a concretização,
consensualmente, de um resultado comum, podendo ter cunho patrimonial ou
extrapatrimonial, se assim entendido no ordenamento jurídico sob análise.
15
PEREIRA, Caio Mário da Silva - Instituições de Direito Civil. 2015, p. 7.
16
MESSINEO, Francesco - Doctrina general del contrato. Vol. T.I. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-
América, 1952.
17
TELLES, Inocêncio Galvão - Manual dos Contratos em Geral. 2010, p. 09.
18
LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes - Direito das Obrigações. 12.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2015,
p. 11.
16
sócio, que responda por ela; entre a vitimado atropelamento e o condutor responsável
pelo acidente.
O termo obrigação abrange a relação no seu conjunto e não apenas, como sucede na
linguagem comum, o seu lado passivo: compreende, portanto, o dever de prestar,
que recai sobre uma das partes bem como o poder de exigir a prestação conferido à
outra.”19.
19
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 10.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2015, p. 63.
20
VENOSA, Sílvio de Salvo - Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 7.ª ed.
São Paulo: Atlas, 2007, p. 5.
21
MONTEIRO, Washington de Barros - Curso de Direito Civil. 30.ª ed. Vol. 4. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 8.
22
TELLES, Inocêncio Galvão - Manual dos Contratos em Geral. 4.ª ed. Wolters Kluwer Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, p.11.
17
outrem, quer por virtude do exercício de certas atividades que envolvem riscos, cada
vez mais graves, nas sociedades tecnicamente mais evoluídas (acidentes de viação e
de trabalho).23”
23
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 10.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2015, p.
22-23.
24
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 10.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2015, p.
17.
25
VENOSA- Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 2.ª ed. Vol. 2. São Paulo:
Atlas, 2002, p. 53.
26
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 10.ª ed. Salvador:
JusPodivm, 2016, p. 38.
27
GOMES, Orlando - Obrigações. 16.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. (GOMES, Orlando. Obrigações. 16.
ed., Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 21.
18
João de Matos Antunes Varela ministra que “é o dever de prestar, a que uma pessoa
fica adstrita, no interesse de outra, que distingue a relação obrigacional de outros tipos
próximos de relações”28.
Ora, sendo o dever jurídico um comando ditado pelas normas estatais o qual deve ser
observado por uma determinada pessoa, os deveres de prestação são aqueles vinculados às
obrigações. Portanto, infere-se que “o dever correspondente às obrigações em sentido técnico
tem de característico ainda o facto de ser imposto no interesse de determinada pessoa e de seu
objeto consistir numa prestação”.29
Frisa-se, outrossim, que os deveres de prestação podem ser de trato principal ou
acessório. Tal distinção é abordada por Jorge Cesa Ferreira da Silva que define deveres
principais como “deveres de proteção do patrimônio do devedor ou do credor”30, enquanto os
acessórios, secundários ou laterais implicam na realização dos interesses do credor de forma
mais adequada e satisfatória31.
Nesse diapasão, as circunstâncias, o modo e a forma que as prestações, principais e
acessórias, serão desenvolvidas pelas partes são formalizadas por um instrumento de contrato,
entendido, nesse panorama, como criador de obrigações, as quais podem assentar
patrimonialidade ou não.
A maior parte da doutrina jurista concebe a obrigação como vínculo jurídico que
confere a uma parte - credor - o direito de exigir de outrem - devedor - o cumprimento de
determinada prestação, correspondente a uma relação creditícia, isto é, consistente numa
prestação economicamente aferível.32
A patrimonialidade da obrigação não é questão incontroversa no mundo jurídico,
sendo admitida, a obrigação per si, em determinadas relações jurídicas, por outros
28
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 10.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2015, p.
16.
29
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 10.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2015, p.
62-63.
30
SILVA, Jorge Cesa Ferreira da - Boa-fé e violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.
140-141.
31
SILVA, Jorge Cesa Ferreira da - Boa-fé e violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
32
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014.
19
doutrinadores, como sem revestimento econômico, entretanto, na maior parte das vezes, o
objeto da obrigação, a prestação, assume um valor pecuniário33.
Luís Manuel Teles de Menezes Leitão leciona, sobre essa discussão, que:
“A doutrina mais antida entendia que a obrigação não se poderia constituir se não
fosse susceptível de avaliação pecuniária. Como argumentos em defesa desta tese
invoca-se o facto de a execução apenas se poder exercer sobre o patrimônio do
devedor e, como esta execução pressupõe sempre a liquidação do crédito numa soma
pecuniária, daí resultaria a necessidade de a prestação ter valor pecuniário. Para além
disso, estaria em princípio excluída a ressarcibilidade dos danos morais causados
pelo incumprimento das obrigações. Daqui resultaria para a tese clássica a
insusceptibilidade de se constituírem obrigações sem natureza patrimonial.34”
Salienta-se que, em que pese tal ressalva, o tema não tem muito interesse prático, de
tal sorte que vez ou outra apenas a obrigação é destituída de sua – quase intrínseca - natureza
patrimonial.
Deve-se pontuar, por fim, e para interesse do presente estudo, que a relação contratual
– com conteúdo obrigacional e patrimonial – apresenta, dentro desse conceito, de um lado um
credor e, de outro, um devedor. O primeiro tem interesse que a prestação seja cumprida, o
segundo, “é a pessoa que deve praticar certa conduta, determinada atividade, em prol do
credor, ou de quem este determinar. Trata-se, enfim, da pessoa sobre a qual recai o dever de
efetuar a prestação”35.
Importa dizer, que a obrigação vincula às partes pelo seu conteúdo: o dever jurídico
de prestar ao outro envolvido determinada ação ou mesmo omissão - seja de dar, de fazer, ou
de não fazer,
33
TELLES, Inocêncio Galvão - Manual dos Contratos em Geral. 4.ª ed. Wolters Kluwer Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010.
34
LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes - Direito das Obrigações. 12.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2015,
p. 83.
35
VENOSA, Silvio de Salvo - Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 2.ª ed.
Vol. 2. São Paulo: Atlas, 2002, p. 36.
36
BUENO, Francisco da Silveira - Minidicionário da lígua portuguesa. São Paulo: FTD, 2000, p. 264
20
Nesse mesmo sentido, Celso Antônio de Mello conceitua princípio como:
“(...) mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição
fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e
servindo de critério para sua exata compreensão e Inteligência, exatamente por
definir a lógica e racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e
lhe dá sentido harmônico.37”
Vezio Crisafulli define o termo princípio de forma bem pontual, denotando a sua
função dentro de um ordenamento jurídico, de tal forma que:
“Princípio é, com efeito, toda norma jurídica, enquanto considerada como
determinante de uma ou de uma ou de muitas outras subordinadas, que a
pressupõem, desenvolvendo e especificando ulteriormente o preceito em direções
mais particulares (menos gerais), das quais determinam, e portanto resumem,
potencialmente, o conteúdo: sejam, pois, estas efetivamente postas, sejam, ao
contrário, apenas dedutíveis do respectivo princípio geral que as contém.38”
37
MELLO, Celso Antonio Bandeira de - Curso de direito administrativo. 9.ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p.
450-451.
38
CRISAFULLI, Vezio - La constituzione e le sue dispozioni di principio. Em Curso de direito constitucional,
por Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 257.
39
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 42.
21
sua concepção aberta, como um ordenamento normativo com dimensão fática e
valorativa e por isso comporta a existência de lacunas e antinomias.40”
40
DINIZ, Maria HelenavAs lacunas do direito. 8.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 25-27.
41
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 40.
42
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 40
43
LARENZ, Karl - Metodologia da ciência do direito. 4.ª ed. Tradução: José Lamego. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2005 p. 674-675.
22
O professor Noberto Bobbio explicita que princípios são “as normas generalíssimas,
formuladas pelo intérprete, que busca colher, comparando normas aparentemente diversas
entre si, aquilo a que comumente se chama o espírito do sistema”44.
No que tange ao tema estudado, contrato, deve haver aplicação harmônica dos
princípios basilares do ordenamento jurídico aos “processos sociais de cooperação e troca, de
acordo com parâmetros e valores da juricidade” 45 . Isso porque, ao jurista, “idealmente,
compete-lhe realizar, em simultâneo, o livre, o útil e o justo”46.
Ora, o contrato, enquanto norma inter pars, deve ser regido por princípios, os quais
podem ser gerais em abstrato ou específicos do direito contratual, “especializando-se de sorte
a facilitar concretização da equidade, por meios de parâmetros objetivos, visíveis e, por isso
mesmo, mais seguros”47.
De forma conclusiva e pontual, os princípios assim têm por finalidade:
“Mudam os fatos, mudam os homens, muda a realidade social, altera-se, por força da
consequência, a arquitetura jurídica subjacente. Mas o contrato é sempre o contrato,
afinal. Sob o paradigma simplesmente individualista da burguesia revolucionária
francesa, ou sob o paradigma de consagração dos princípios contratuais como
princípios próprios da ordem natural, ou sob o paradigma meramente dogmático de
conformação do direito como a lei, o contrato muda de feição e atende aos interesses
jurídicos dos contratantes de cada época. Até que se mostre, a cada época. Até que
se mostre, a cada época, como insustentável ou deficiente, quando então ele se
remoldura e busca sua readequação, para prosseguir como o que sempre
fundamentalmente foi: um instrumento essencial à organização social.48”
Em face desse contexto, em que, na resolução dos contratos, podem surgir as lacunas
e as antinomias, certo é que os princípios são os segmentos norteadores para que se encontre a
devida solução, sendo esta aquela que melhor atende ao que a sociedade proclama como justo.
44
BOBBIO, Noberto - Teoria do ordenamento jurídico. 9.ª ed. Tradução: Maria Celeste C.J. Santos. Brasília:
UnB, 1997 p. 159.
45
RIBEIRO, Joaquim de Sousa - O problema do contrato: as cláusulas contratuais gerais e o princípio da
liberdade contratual. Coimbra: Almedina, 1999, p. 637.
46
RIBEIRO, Joaquim de Sousa - O problema do contrato: as cláusulas contratuais gerais e o princípio da
liberdade contratual. Coimbra: Almedina, 1999 p. 637.
47
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012 p. 51.
48
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes - Contrato: estrutura milenar de fundação do direito privado.
Revista dos Advogados de São Paulo, nº 2 Ano 12 (dezembro 2002), p. 80.
23
1.2.1. Princípios contratuais propriamente ditos.
Como já dito, o contrato, em sua acepção menos elaborada, surge regido por
características rígidas e associadas à preservação da vontade única do indivíduo. Aos poucos,
em virtude dos fenômenos econômico-sociais, outra feição lhe foi atribuída, afastando-o de
seu aspecto estritamente pessoal para aproximar-se de uma existência simultânea como parte
de um todo social, sem violação da garantia da vontade privada.
Nesse contexto mutável, como forma de dirimir conflitos, princípios contratuais,
como mandamentos de base, foram extraídos dos ideais da Codificação francesa, sejam eles, o
princípio da autonomia privada, da obrigatoriedade das convenções, do consensualismo e da
relatividade dos efeitos das obrigações perante terceiros.
Posteriormente, novos paradigmas foram inseridos pela dinâmica social do século
XX, com influência direta do Código Civil Alemão, conhecido, na doutrina como BGB
(Bürgeliches Gesetzbuch), com a vinculação da liberdade contratual à liberdade social, a
concepção principiológica e fundamental da boa-fé objetiva e do equilíbrio das prestações
contratuais.
Segundo João de Matos Antunes Varela
“Os princípios fundamentais em que assenta toda a disciplina legislativa dos
contratos são os seguintes: a) o princípio da autonomia privada, que atribui aos
contraentes o poder de fixarem, em termos vinculativos, a disciplina que mais
convêm à sua relação jurídica; b) o princípio da confiança, assente no stare pactis,
segundo o qual cada contraente deve responder pelas expectativas que
justificadamente cria, com a sua declaração, no espírito da contraparte; c) o princípio
da justiça comutativa ou da equivalência objectiva, de acordo com o qual, nos
contratos a título oneroso (que são, de longe, os mais frequentes no comércio
jurídico), à prestação de cada um dos contraentes deve corresponder uma prestação
de valor objetivo (ou subjectivo) sensivelmente equivalente da parte do outro
contraente.49”
49
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 10.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2015, p.
226.
24
jurídicos vigentes; estando o contrato regido por tais princípios, eis que deixa seu aspecto
privado e o insere em uma acepção social e mais humana no decorrer do tempo.
Nesse diapasão, desenvolve Andrea Cristina Zanetti:
“A estrutura básica do contrato mantém-se, ou seja, continua sendo um negócio
jurídico bilateral ou plurilateral, que normalmente apresenta em seu bojo interesses
contrapostos, mas harmonizáveis, e pauta-se pela autorregulamentação, em geral.
Contudo, já não é possível sustentar uma liberdade absoluta e uma igualdade formal
que justifiquem o cumprimento do contrato em qualquer circunstância, sendo
intangível mesmo diante de abusos e situações adversas, imprevisíveis e
extraordinárias.50”
50
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 36.
51
MESSINEO, Francesco - Doctrina general del contrato. Vol. T.I. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-
América, 1952, p. 20-22.
52
PEREIRA, Caio Mário da Silva - Instituições de Direito Civil. 19.ª ed. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense,
2015, p. 7.
25
em sociedade”. Para a consecução destes fins, as pessoas podem vincular-se
juridicamente, expressando sua vontade de diferentes maneiras, sendo a via
contratual a forma mais comum.53”
Certo deste contexto, o contrato surge numa relação particularizada e, por isso, nasce
da vontade das partes em contratar aquilo que lhes convêm, da liberdade individual inerente à
condição de ser humano e intrínseca à noção original do contrato.
Daí, não há como o contrato ser dissociado, em seu nascimento, do valor da
liberdade, derivado da Revolução Francesa e do Iluminismo54 e definido por Dalmo de Abreu
Dallari da seguinte forma:
“A possibilidade de escolha seria insuficiente, se não fosse orientada para os valores
fundamentais da pessoa humana, revelados e definidos através dos séculos. Um
desses valores é a liberdade, sem dúvida alguma. Entretanto, é indispensável que haja
coerência na concepção de liberdade. Com efeito, as doutrinas individualistas
exaltaram a liberdade individual, mas concebendo cada indivíduo isoladamente. Ora,
se todos reconhecem que o homem é por natureza um ser social, o homem situado,
que não existe isolado na sociedade. A liberdade humana, portanto, é uma liberdade
social, liberdade situada que deve ser concebida tendo em conta o relacionamento de
cada indivíduo com todos os demais, o que implica deveres e responsabilidades.55”
53
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 54.
54
CAENEGEM, Raoul Charlas Van - Uma introdução ao direito privado. 2.ª Tradução: Carlos Eduardo Lima
Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
55
DALLARI, Dalmo de Abreu - Elementos da teoria geral do estado. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 258-
259
56
TELLES, Inocêncio Galvão - Manual dos Contratos em Geral. 4.ª ed. Wolters Kluwer Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, p. 62.
26
e ilimitada e, aos poucos, cedeu para uma noção mais restrita, tolhida pelo limite estatal, em
respeito a um bem maior de ordem social e pública, decorrente da necessidade de ingerência
estatal em face da desigualdade formal entre os particulares no contexto complexo
contemporâneo.
Nesse pensamento, Dalmo de Abreu Dallari retrata a liberdade individual como
simultaneamente uma liberdade social:
“A possibilidade de escolha seria insuficiente, se não fosse orientada para os valores
fundamentais da pessoa humana, revelados e definidos através dos séculos. Um
desses valores é a liberdade, sem dúvida alguma. Entretanto, é indispensável que haja
coerência na concepção de liberdade. Com efeito, as doutrinas individualistas
exaltaram a liberdade individual, mas concebendo cada indivíduo isoladamente. Ora,
se todos reconhecem que o homem é por natureza um ser social, é evidente que se
deve conceber sua liberdade sua liberdade tendo em vista o homem social, o homem
situado, que não existe isolado na sociedade. A liberdade humana, portanto, é uma
liberdade social, liberdade situada que deve ser concebida tendo em conta o
relacionamento de cada indivíduo com todos os demais, o que implica deveres e
responsabilidades.57”
Isso porque o contratante é “uma pessoa cujas garantias e direitos fundamentais são
assegurados constitucionalmente; e por isso mesmo o valor liberdade que se observa nos atos
praticados por particulares, não deve ser reduzido à liberdade econômica, a liberdade de
perseguir a maior vantagem possível, sem medidas ou limites”58.
Ora, é certo que, nos dias de hoje, bem se sabe que o contratante nem sempre possui
essa liberdade de contratar, de escolher o conteúdo exato daquilo que está sendo contratado, de
ajustar os exatos termos do que pretende contrair, sendo fácil constatar abusos sobre o lado
mais vulnerável nessas situações.
Andrea Cristina Zanetti, destarte, sucintamente tece explicações sobre a evolução do
conceito de autonomia da vontade do indivíduo:
“Originalmente, entendia-se que a liberdade contratual possuía em seus significados:
a) a regra de que uma parte não podia impor unilateralmente a outra o conteúdo do
contrato e que este deveria ser resultado de uma livre expressão de ambas, o que era
presumido pela força da lei; b) a observância das diretrizes da norma jurídica; c) a
faculdade das partes em fixar o conteúdo do contrato, ou seja, “autodeterminação de
cada uma das cláusulas concretas contratuais”; d) a possibilidade dada às partes de
afastar normas, quando não imperativas, ou seja, dispositivas ou supletivas (cuja
incidência se dá em caso de silêncio do contrato) e substituí-las por regas e regime
57
DALLARI, Dalmo de Abreu - Elementos da teoria geral do estado. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 258-
259.
58
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 57.
27
fixados pela vontade das partes; e) a “autodisciplina”, isto é, estipular normas,
surgidas da atuação das próprias partes; e f) a faculdade das partes em concluir
contratos com “finalidades práticas ainda que não previstas em lei (contratos
inominados).
É certo que muitos destes aspectos mantiveram-se na atualidade. Todavia, a visão
deste princípio, hodienarmente, distancia-se daquela que a considerava como um
dogma imutável e impenetrável. A autonomia, antes traduzida como liberalismo
econômico e regras mercantis que se distanciavam de intervenções externas à avença,
vincula-se agora não apenas à liberdade econômica, mas sim à própria pessoa.59”
59
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 55-56.
60
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012.
61
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 10.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2015, p.
226-227.
28
inicialmente qualquer razão para um terceiro ou o poder estatal se imiscuir nessa relação. Dito
isso, originou-se o preceito de intangibilidade do contrato.
Nesse passo, Caio Mário da Silva Pereira trata, recorrendo às discussões quanto ao
fundamento da obrigatoriedade que:
“Para a escola jusnaturalista, assenta no pacto social (Grotius, Puffendorf), com a
hipótese, hoje desacreditada, de que teria havido, primitivamente, uma convenção
tácita em virtude da qual os indivíduos teriam transigido com seus apetites egoístas, e
determinado o respeito pelos compromissos livremente assumidos. A concepção
utilitarista de Jeremy Bentham aponta-lhe como suporte a conveniência de cada um,
que no respeito ao interesse alheio enxerga o resguardo dos seus próprios. Giorgi,
assente nas teses de Vico, Fries, Belime, Tissot, aceita-lhe para sucedâneo a
decorrência da lei natural, que leva o homem a dizer a verdade, como uma imposição
de suas tendências interiores. A Escola Positivista quase faz abstração do problema,
sustentando simplesmente o princípio da obrigatoriedade no mandamento da lei, e
dizendo que o contrato obriga porque assim a lei dispõe, o que não é explicar nem
justificar, pois o de que se cogita é precisamente de retroceder ao porquê, no
momento em que se afirma o princípio. Messine, seguindo o ministério de Kant e
Boistel, defende a obrigatoriedade como consectário da liberdade de contrata,
armando esta equação: o contrato obriga porque as partes livremente o aceitam.
Ruggiero e Maroi assentam a regra na unidade da vontade contratual.62”
Sobre a positivação desse princípio no córtex civil português, Mário Júlio de Almeida
Costa ensina que:
“Este significa que, uma vez celebrado, o contrato plenamente válido e eficaz
constitui lei imperativa entre as partes («lex privada») (1). É o que expressa o art.
406.º, n.º 1, do Cód. Civ.: «O contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode
62
PEREIRA, Caio Mário da Silva - Instituições de Direito Civil. 19.ª ed. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense,
2015, p. 14-15.
63
PEREIRA, Caio Mário da Silva - Instituições de Direito Civil. 19.ª ed. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense,
2015, p. 13.
29
modifica-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contratos ou nos casos
admitidos na lei.64”
64
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 312-313.
65
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 10.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2015, p.
227.
66
BUENO, Francisco da Silveira - Minidicionário da lígua portuguesa. São Paulo: FTD, 2000.
67
PEREIRA, Caio Mário da Silva - Instituições de Direito Civil. 19.ª ed. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense,
2015, p. 18.
30
algumas modalidades, careçam de determinadas formalidades para que sejam considerados
válidos perante a ordem jurídica68.
Raciocina, no estudo dos contratos, assim, Andrea Cristina Zanetti que “o princípio
do consensualismo é a manifestação recíproca, em acordo, da vontade de duas ou mais
pessoas, com o objetivo de obrigarem-se a determinadas prestações (direitos e deveres)”69.
Dito isto, não há dúvidas de que os princípios tratados decorrem daquele que
considera preponderante a autonomia de vontade das partes contraentes, de tal forma que,
consensualmente, obrigam-se a cumprir certas prestações.
Por fim, reflete-se que o efeito jurídico presente nessas premissas é a vinculação, a
qual Pontes de Miranda referencia em seus ensinamentos que “sem que as manifestações de
vontade entrem no mundo jurídico não há vinculação, porque a vinculação já é eficácia do
negócio jurídico”70.
68
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012.
69
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p.61.
70
MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado: parte especial. XXXVIII vols. Rio de Janeiro: Borsoi,
1962, p. 47-48.
71
PEREIRA, Caio Mário da Silva - Instituições de Direito Civil. 19.ª ed. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense,
2015, p. 15.
72
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 62.
31
alheios à relação jurídica, mas que podem vir a sofrer as consequências do contrato ou mesmo
auferir vantagens indiretamente73.
Esse princípio, de relatividade dos efeitos das obrigações para terceiros, é de
fundamental importância ao estudo do contrato, eis que positivado nas codificações civis
italiana, francesa e espanhola74, já que, atualmente, sob a égide do direito contemporâneo,
agregado aos outros preceitos, orienta no sentido de que, embora determinado negócio jurídico
não imponha direitos e obrigações a terceiros, isto não significa que seus efeitos não tenham
consequências ou reflexos sobre eles, o que pode implicar na intervenção estatal no
julgamento dos casos jurisdicionados75.
Deve-se frisar, entretanto, que a boa-fé pode ter caráter subjetivo ou objetivo. Andrea
Cristina Zanetti perfeitamente aborda tal distinção:
“As duas espécies de boa-fé – subjetiva (presente no CC desde 1916 e comumente
percebida na área dos direitos reais) e objetiva (inserida com a reforma de 2002) são
absolutamente distintas. Enquanto a boa-fé subjetiva baseava-se na ignorância de
estar lesando direito alheio ou no erro escusável de uma determinada situação que o
contratante acredita a ser regular, muitas vezes restrito às disposições literais do
contrato, a boa-fé objetiva pauta-se na ética, honestidade, retidão, lealdade e cuidado
73
GOMES, Orlando - Contratos. 24.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
74
PEREIRA, Caio Mário da Silva - Instituições de Direito Civil. 19.ª ed. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense,
2015.
75
DÍEZ-PICAZO, Luis, e Antonio Gullón - Sistema de derecho civil. Vol. I. Madrid: Tecnos, 2003.
76
GOMES, Orlando - Contratos. 24.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 112.
32
com o interesse do outro contratante, tido como um membro da sociedade que possui
proteção jurídica.77”
Em mesma viés, aclara Silvio de Salvo Venosa que:
“Na boa fé subjetiva, o manifestante de vontade crê que sua conduta é correta, tendo
em vista o grau de conhecimento que possui de um negócio. Para ele há um estado de
consciência ou aspecto psicológico que deve ser considerado.
A boa-fé objetiva, por outro lado, tem compreensão diversa. O intérprete parte de um
padrão de conduta comum, do homem médio, naquele caso concreto, levando em
consideração os aspectos sociais envolvidos. Desse modo, a boa-fé objetiva se traduz
de forma mais perceptível como uma regra de conduta, um dever de agir de acordo
com determinados padrões sociais estabelecidos e reconhecidos.78”
77
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 112. (Zanetti,
2012, p. 112)
78
VENOSA, Silvio de Savio - Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 2.ª ed.
Vol. 2. São Paulo: Atlas, 2002, p. 379.
79
MARTINS-COSTA, Judith - A boa fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
80
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 71.
33
“A boa-fé contratual não se limita aos atos singulares do contratante, mas sim à
avaliação da totalidade de conduta de cooperação das partes no âmbito do contrato,
mesmo que não esteja expresso na avença, determinando atos de confiabilidade,
fidelidade, empenho, sacrifício, disponibilidade de auxílio à contraparte, rapidez e
veracidade na troca de informações, a fim de atender às expectativas do outro,
segundo a finalidade da espécie contratual.81”
No córtex civil brasileiro, há a previsão no artigo 422, comentado por Caio Mário da
Silva Pereira desse modo: “o Código Civil de 2002 preencheu essa lacuna e dispôs no seu art.
81
BETTI, Emilio - Teoria geral das obrigações. Tradução: Francisco José Galvão Bruno. Campinas: Bookseller,
2005, p. 111.
82
PEREIRA, Caio Mário da Silva - Instituições de Direito Civil. 19.ª ed. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense,
2015, p. 20.
83
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 120.
84
PEREIRA, Caio Mário da Silva - Instituições de Direito Civil. 19.ª ed. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense,
2015.
85
LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes - Direito das Obrigações. 12.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2015,
p. 51.
34
422 que os contraentes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua
execução, os princípios da probidade e boa-fé”86.
No contexto atual e ora estudado, tem-se que os usos e costumes não podem ser
postos de lado pelo julgador na análise da conduta contratual adequada, que deve estar em
conformidade com aquela adotada noutros negócios jurídicos firmados, impondo
“comportamentos objetivamente conforme aos parâmetros de cooperação, honestidade e
lealdade dirigidos à promoção dos fins perseguidos na concreta relação obrigacional”87.
Desse modo, a boa-fé objetiva é princípio geral do direito que impõe às partes a
observância de um padrão ético social, bem como à lealdade e a confiança recíprocas, ainda
que não haja previsão expressa em contrato, indispensável ao atendimento das expectativas
surgidas em razão da celebração e da execução da avença.
86
PEREIRA, Caio Mário da Silva - Instituições de Direito Civil. 19.ª ed. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense,
2015, p. 19.
87
PEREIRA, Caio Mário da Silva - Instituições de Direito Civil. 19.ª ed. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense, 2015,
p. 20.
88
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes - Direito civil: estudos. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p.
102.
35
Afinal, não teria sentido exigir-se um comportamento social do proprietário e outro
diverso para as partes envolvidas numa relação contratual.89”
O Código Civil Brasileiro, de 2002, dispõe em seu artigo 421, que “a liberdade de
contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”91. Tal norma
comprova que o Direito contemporâneo, cedendo aos ditames sociais, positivou a
consolidação do interesse coletivo ao particularizado do contrato, atribuindo-lhe função social.
Considerando introdutoriamente a questão, Caio Mário da Silva Pereira, em atenção
ao supracitado dispositivo legal brasileiro, ensina que:
“A redação que vingou deve ser interpretada de forma a se manter o princípio de que
a liberdade de se contratar é exercida em razão da autonomia da vontade que a lei
outorga às pessoas. O contrato ainda existe para que as pessoas interajam com a
finalidade de satisfazerem os seus interesse. A função social do contrato serve para
limitar a autonomia da vontade quando tal autonomia esteja em confronto com o
interesse social e este deva prevalecer, ainda que essa limitação possa atingir a
própria liberdade de não contratar, como ocorre nas hipóteses de contrato
obrigatório.92”
Maria Bernardete Miranda sobre a função social do contrato bem arremata que:
“Trata-se, sem sombra de dúvida, do princípio básico que deve reger todo o
ordenamento normativo no que diz respeito à matéria contratual. O contrato, embora
aprioristicamente se refira somente às partes pactuantes (relatividade subjetiva),
também gera repercussões e - por que não dizer? – deveres jurídicos para terceiros,
além da própria sociedade, de forma difusa.93”
89
FERRAZ, Rogério - Responsabilidade civil pós-contratual: no direito civil, no direito do consumidor, no
direito do trabalho e no direito ambiental. 2. ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007. (Ferraz, 2007, pp. 118-119)
90
TEPEDINO, Gustavo - Contornos Constitucionais da propriedade privada. Rio de Janeiro: Renovar, 1999,
p. 292.
91
CÓDIGO Civil Brasileiro. [Em linha] Planalto, 2016. [Consult. 09 de Jun. 2016]. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.
92
PEREIRA, Caio Mário da Silva - Instituições de Direito Civil. 19.ª ed. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense, 2015,
p. 12.
93
BERNARDETE, Maria. - Teoria geral dos contratos. [Em linha] Direito brasil, 2008. [Consult. 09 de Jun.
2016]. Disponível em http://www.direitobrasil.adv.br/artigos/cont.pdf.
36
Ora, nesses termos, é certo que o contrato deve ser analisado de maneira sistemática,
observando-se os preceitos constitucionais, para uma aplicação voltada ao social, apta a
garantir a igualdade das partes e o equilíbrio contratual94.
Andrea Cristina Zanetti discorre com muita precisão que:
“A função social não tolera a submissão do interesse coletivo ao interesse particular;
a luta contratual desleal; o abuso de superioridade de um dos contratantes; o
desequilíbrio do contrato e a conduta imoral em explorar a inexperiência,
necessidade ou estado de perigo do outro.95”
Finalizando a questão, por oportuno, Nelson Nery Junior esclarece que “tudo o que
ocorre relativamente a um contrato terá forçosamente repercussão em outros casos que digam
respeito ao mesmo contrato”97.
94
SANDRI, Jussara Schimitt - Função social do contrato: Conceito, Natureza jurídica e fundamentos.
Revista de Direito Público. Londrina: Direito Público. Ano 6, n.º 2 (agosto 2011), p. 120-141.
95
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 108.
96
PEREIRA, Caio Mário da Silva - Instituições de Direito Civil. 19.ª ed. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense,
2015, p. 12-13
97
JUNIOR, Nelson Nery - Código Civil comentado. 9.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 627.
37
A função social do contrato impõe, portanto, o atendimento não só aos interesses das
partes envolvidas, mas também aos proclames sociais, de modo que não pode haver conflito
dos termos do contrato com os valores albergados no seio da sociedade.
Isto é, não pode haver em uma especifica e determinada relação obrigacional o
desatendimento aos preceitos da boa-fé objetiva ou do equilíbrio das prestações contratuais, o
que, via consequência, seria sinônimo de desproporção: com a vantagem de um sobre o ônus
do outro. O ordenamento jurídico, se permissivo quanto à chancela de tal abuso de direito,
poderia criar diversas situações jurídicas equivalentes àquela, perpetuando injustiça.
38
mas, sobretudo, como um princípio que vem servir e garantir a própria liberdade
contratual.98”
98
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 315-316.
99
MARQUES, Claudia Lima - Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações
contratuais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 288.
100
FERREIRA, Aparecido Hernani, e Paulo Luiz Netto Lôbo - O novo Código Civil discutido por juristas
brasileiros. Campinas: Bookseller, 2003, p. 87.
101
ALMEIDA, Carlos Ferreira de - Contratos IV: funções. circunstâncias. interpretação. Coimbra: Almedina,
2014, p. 292.
39
1.2.2. Princípios constitucionais afetos aos contratos.
A Constituição de um Estado consiste no normativo maior que rege a sua estrutura e
funcionamento. Já que na Constituição está contido o regramento basilar e fundamental, nela
também estão presentes os princípios primeiros que vão servir para orientar todas as demais
normas.
Dito isto, existem princípios constitucionais que devem ser observados nas
negociações praticadas entre os particulares, ou seja, a concretização de um contrato, em
hipótese alguma, poderá se afastar daquilo que a sociedade entendeu como justo e
fundamental.
Luiz Edson Fachin, sobre o assunto, refere que:
“O Direito Constitucional penetra, hoje, em todas as disciplinas e, via consequência,
também, no Direito Civil. Além da liberdade, constitucionalmente assegurada, e suas
repercussões no direito à intimidade, trata a questão da igualdade no Direito Civil,
dividindo-a em momentos básicos: igualdade como não discriminação no exercício,
ou do gozo dos direitos civis; igualdade em matéria sucessória.102”
102
FACHIN, Luiz Edson - Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 300.
103
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 86.
104
FINGER, Julio César- A Constituição Concretizada - Construindo Pontes entre o Público e o Privado .
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 94.
40
de tal forma findava com a noção concebida de que regulamentação do âmbito privado do
ponto de vista unicamente patrimonial, “para a realização de valores da pessoa humana como
titular de interesses existenciais”105.
Comentam, do mesmo modo, os professores Costa Machado e Anna Candida da
Cunha Ferraz, que:
“A dignidade da pessoa humana é o valor-fonte de todos os direitos fundamentais.
Esse valor, que deve ser considerado fundamento e fim último de toda a ordem
política, busca reconhecer não apenas que a pessoa é sujeito de direitos e créditos,
mas que é um ser individual e social ao mesmo tempo. No espaço privado, reino da
satisfação das necessidades, a pessoa é indivíduo, isto é, mostra-se voltada para a
realização de suas necessidades biológicas. Já no espaço público, a pessoa é um ser
social, ou, como preferiu Aristóteles, o homem é um animal político (...).106”
Andrea Cristina Zanetti, por sua vez, trata do magnânimo e fundamental preceito em
face de concepção na vida em sociedade:
“Como princípio jurídico, a dignidade humana apresenta dois aspectos: a) no
negativo é a garantia de que a pessoa não será objeto de ofensas e humilhações,
atuando em defesa da pessoa; b) no positivo é o preceito que garante o pleno
desenvolvimento de cada indivíduo portanto promocional, alcançando todos os
setores do direito, inclusive o direito privado.107”
105
FINGER, Julio César- A Constituição Concretizada - Construindo Pontes entre o Público e o Privado .
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 94.
106
MACHADO, Costa; FERRAZ, Anna Candida da Cunha - Constituição Federal interpretada: artigo por
artigo, parágrafo por parágrafo. Barueri: Manole, 2014, p. 5.
107
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 89.
108
MORAES, Maria Celina Bodin de - O princípio da dignidade humana. Em Princípios do direito civil
contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 17.
41
Por certo, a dignidade da pessoa humana é “o vetor para a ponderação de colisão
entre os direitos fundamentais”109.
Outrossim, deve-se fazer uma distinção quanto a esse assunto. Existe uma igualdade
formal ou jurídica em contraposição com uma igualdade substancial – ou fática. A primeira
corresponde à paridade perante o Direito de que todos são iguais perante a lei; a segunda,
busca afastar as disparidades entre as pessoas mediante instrumentos eficazes de promoção de
uma igualdade real e concreta113.
109
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 10.ª ed. Salvador:
JusPodivm, 2016, p. 31.
110
ALEXY, Robert - Teoria dos direito fundamentais. Tradução: Virgílio Afonso da Silva. São Paulo:
Malheiros, 2008, p. 419.
111
ALEXANDRINO, Marcelo, e Vicente Paulo - Direito Constitucional Descomplicado. 7.ª ed. São Paulo:
Método, 2011, p. 122.
112
ALEXANDRINO, Marcelo, e Vicente Paulo - Direito Constitucional Descomplicado. 7.ª ed. São Paulo:
Método, 2011, p. 122.
113
BONAVIDES, Paulo - Curso de direito constitucional: a importância do princípio da igualdade. São
Paulo: Malheiros, 2001.
42
A Constituição da República Federativa do Brasil aborda tanto a igualdade formal
quanto a material. O artigo 5º determina que "todos são iguais perante a lei"114. Aqui, há a
igualdade formal. O dispositivo 3º dispõe que, em seu inciso IV, que “constituem objetivos
fundamentais da República Federativa do Brasil: promover o bem de todos sem preconceitos,
de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação"115, trazendo a
base da igualdade material.
Para Pedro Lenza, com relação à previsão constitucional da dignidade da pessoa
humana como garantia fundamental no Estado Brasileiro tem-se que:
“O art. 5º, caput, consagra serem todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza.
Deve-se, contudo, buscar não somente essa aparente igualdade formal (consagrada
no liberalismo clássico), mas, principalmente, a igualdade material.
Isso porque, no Estado social ativo, efetivador dos direitos humanos imagina-se uma
igualdade mais real perante os bens da vida, diversa daquela apenas formalizada em
face da lei.116”
Celso Antônio Bandeira de Mello aborda que três questões carecem de observação,
na aplicação desse basilar princípio:
a) “a primeira diz com o elemento tomado com fator de desigualação; b) a segunda
reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério
de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c)
a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses
absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados.117”
114
CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil de 1988. [Em linha] Planalto, 2016. [Consult. 09 de Jun.
2016]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm.
115
CONSTITUIÇÃO da República Federativa do Brasil de 1988. [Em linha] Planalto, 2016. [Consult. 09 de Jun.
2016]. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm.
116
LENZA, Pedro - Direito constitucional esquematizado. 18.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 1072.
117
MELLO, Celso Antônio Bandeira de - Conteúdo jurídico do princípio da igualade . São Paulo: Malheiros,
1995, p. 21.
43
1.2.2.3. Princípios da solidariedade social e do desenvolvimento, livre iniciativa e justiça
social
A solidariedade trata do “auxílio mútuo”, da “ligação recíproca entre pessoas ou
coisas independentes”118.
Na Constituição Federal interpretada, de coordenação de Costa Machado,
“solidariedade, enfim, como peça fundamental para a caracterização da pessoa humana como
ente social, é o princípio que norteia o relacionamento no espaço público, a aproximação e a
cooperação social entre pessoas, entre povos e também entre Estado e pessoas”119.
Portanto, “o princípio da solidariedade encerra em si o dever de reciprocidade”120.
A solidariedade, dessa forma, trata do ser individual como sujeito dotado de
personalidade única e independente e de sua relação com os demais indivíduos, de forma a
considerar, em sua conduta, a esfera de direitos destes, proporcionando bem estar geral
mediante o respeito recíproco.
Corroborando o aduzido, mais uma vez bem pontua Andrea Cristina Zanetti que:
“A solidariedade social, por um lado, leva o Estado e o indivíduo ao bem comum, à
consecução de atos que, embora possam ser particulares, não impliquem em
perturbação da sociedade e seus valores; e, por outro lado, exige que o Estado
assegure condições idôneas para o desenvolvimento pleno das aptidões pessoais de
cada um.121”
Não é à toa que a Constituição Federal Brasileira, em seu artigo 3º, inciso I,
preconiza, como um dos objetivos fundamentais do Estado, a construção de uma “sociedade
livre, justa e solidária”.
Maria Celina Bodin de Moraes frisa que a solidariedade é:
“(...) a expressão mais profunda de sociabilidade que caracteriza a pessoa humana.
No contexto atual, a lei maior determina – ou melhor, exige – que nos ajudemos,
mutuamente, a conservar nossa humanidade, porque a construção de uma sociedade
livre, justa e solidária cabe a todos e cada um de nós.122”
118
BUENO, Francisco da Silveira - Minidicionário da lígua portuguesa. São Paulo: FTD, 2000, p. 724.
119
MACHADO, Costa; FERRAZ, Anna Candida da Cunha - Constituição Federal interpretada: artigo por
artigo, parágrafo por parágrafo. Barueri: Manole, 2014 p. 8.
120
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 97.
121
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 48.
122
MORAES, Maria Celina Bodin de - O princípio da solidariedade. Em Os princípios da Constituição de
1988, por Manoel Messias Peixinho, Isabela Franco Guerra e Firly Nascimento Filho. Rio de Janeiro:
Lumen, 2001, p. 176.
44
Relacionado a esse princípio de caráter primeiro e constitucional, o Direito Brasileiro
consagra, nos artigos 1º, inciso IV e 170, os princípios do desenvolvimento, livre iniciativa e
justiça social.
Sobre o assunto, estudado ainda por Andrea Cristina Zanetti:
“Em outro aspecto, tomada como livre concorrência, o Estado deve interferir para
assegurar que não haja abuso de indivíduos e entidades provadas detentoras de
posição dominante ou privilegiada no mercado, visando a sua eficiência, o que
implica buscar formas para facilitar a obtenção de bens e serviços por pessoas e
empresas. Trata-se, em última instância, de uma das medidas salutares ao
desenvolvimento da economia, assegurando um mercado com liberdade real e
minimamente equilibrado, voltando sua atenção às necessidades do empreendedor,
da empresa, bem como seus atos particulares, que repercutem no meio social.123”
123
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 99.
124
MORAES, Maria Celina Bodin de - O princípio da dignidade humana. Em Princípios do direito civil
contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
45
2. ADIMPLEMENTO E INADIMPLEMENTO: CONCEITOS E MODALIDADES.
Naturalmente, haja vista que o contrato surge dos interesses consonantes de dois ou
mais sujeitos, imbuídos – presume-se - de boa-fé, para a concretização de objetivos comuns,
não se imagina a transgressão deliberada do pacto, apta a acarretar a sua impontualidade ou
inviabilidade. Entretanto, em que pesem as condições originárias em que ocorreu a avença,
outras circunstâncias adversas podem vir a surgir na relação obrigacional, acarretando,
inevitavelmente, a não concretização, seja parcial seja integral, daquilo convencionado
primariamente.
Oportuna, outrossim, a doutrina de Caio Mário da Silva Pereira, a qual sustenta que o
contrato:
“Normalmente, cessa com a prestação. A solutio é o seu fim natural, com a liberação
do devedor e satisfação do credor. Não cabe retornar ao assunto, já que sobre todos
os aspectos do pagamento dissertamos nos nos 152 e segs., supra (vol II). Não
125
PEREIRA, Caio Mário da Silva - Instituições de Direito Civil. 19.ª ed. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense,
2015, p. 129.
126
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira - Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das
obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 21.
127
VENOSA, Sílvio de Salvo - Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 2.ª ed.
Vol. 2. São Paulo: Atlas, 2002, p. 235.
46
importa a natureza da solução, nem a sua forma. Na obligatio dandi ou na obligatio
faciendi, o cumprimento extingue a obrigação. Extingue o contrato.128”
128
PEREIRA, Caio Mário da Silva - Instituições de Direito Civil. 19.ª ed. Vol. III. Rio de Janeiro: Forense,
2015, p. 129.
129
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 10.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2015, p. 7.
130
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 10.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2015, p.
17.
131
TELLES, Inocêncio Galvão - Manual dos Contratos em Geral. 4.ª ed. Wolters Kluwer Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, p. 219.
132
LEITÃO, Luís Manuel Teles de Menezes - Direito das Obrigações. 12.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina,
2015.
133
FARIA, Werter R. Mora do devedor - Porto Alegre: Sergio antonio Fabris Editor, 1981, p. 10.
134
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 7.ª ed. Vol. II. Coimbra: Almedina, 2014, p. 7.
47
Para Mário Júlio de Almeida Costa, entretanto:
“(...) reservar-se a palavra cumprimento para a realização da prestação pelo devedor,
espontânea ou coercitivamente (arts. 762.º e 817.º). Segue-se a distinção entre
cumprimento voluntário e coercitivo: o primeiro é o normal, o cumprimento por
antonomásia. Todavia, a nossa lei não manteve essa orientação terminológica,
referindo-se a cumprimento ainda quando um terceiro efectue a prestação. (art. 768.º,
n.º 2)”135.
135
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 991-992.
136
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 7.ª ed. Vol. II. Coimbra: Almedina, 2014, p.
10.
137
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 991.
48
obrigação, ou adimplemento, recebe o nome de pagamento. Pagar significa, portanto,
satisfazer, o direito do credor, seja dando alguma coisa, fazendo ou não fazendo algo.
Desvinculemos da ideia de pagamento a de dar dinheiro.138”
Por seu turno, Jorge Cesar Ferreira da Silva, expõe que o adimplemento se dá
“quando se realizar o conjunto de interesses envolvidos na relação”139.
Observa-se que adimplemento é idêntico ao cumprimento e, ainda, ao pagamento,
desde que se desconsidere daquele o aspecto pecuniário de forma obrigatória.
Entretanto, Mário Júlio de Almeida Costa ressalva que essa não é a concepção
amparada pelo córtex civil português ao pontuar que:
“Ainda se aduz uma última observação prévia, agora de ordem terminológica. É que,
por vezes, os autores e a lei empregam também a palavra pagamento para designar o
cumprimento voluntário de toda e qualquer obrigação, mesmo de prestação de facto.
Este sentido técnico-jurídico de pagamento não coincide com o seu significado na
linguagem vulgar, em que se circunscreve ao cumprimento das obrigações
pecuniárias.
O Cód. Civ. Adotou o seguinte critério: de um modo geral, utiliza apenas o termo
cumprimento; todavia, conserva o uso indiferenciado das palavras cumprimento e
pagamento para indicar a actividade solutória do devedor nas obrigações pecuniárias
(arts. 550.º e 558.º).140”
138
FIUZA, César. Direito civil - Curso completo. 11.ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 338.
139
SILVA, Jorge Cesa Ferreira da - Boa-fé e violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.
69.
140
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 994.
141
SILVA, Jorge Cesa Ferreira da - Boa-fé e violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.
78.
49
pretende atingir traduz-se na expectativa do credor em relação ao valor patrimonial que
passará a aferir quando finalizado o negócio firmado.
Concludentemente, o adimplemento contratual, no contexto estudado impacta não só
o cumprimento da prestação dita como principal e objeto do acordo - podendo-se, como já
dito, algo ser dado, feito ou não feito - mas também a observância dos deveres acessórios,
considerados os princípios suscitados afetos aos contratos.
142
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 7.ª ed. Vol. II. Coimbra: Almedina, 2014, p.
60.
143
DINIZ, Maria Helena - Curso de direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações. 28.ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2013.
144
LOTUFO, Renan - Código Civil comentado - Obrigações - Parte Geral. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2003,
p. 427.
50
adimplemento de uma obrigação, sempre que a respectiva prestação debitória deixa de ser
efectuada nos termos adequados”145.
Destarte, consiste o inadimplemento, nos ensinamentos de Lucas Gaspar de Oliveira
Martins, diferindo-o do adimplemento, em:
“De um lado, por adimplemento deve-se compreender a realização pelas partes, e
conforme seus deveres específicos, de todos os interesses envolvidos na relação
obrigacional e emanados do vínculo, sejam eles do credor, sejam do devedor,
possuindo este conjunto de interesses como norte básico, porém, os interesses
daquele.”
“Por outro lado, pode-se definir inadimplemento como a não realização da prestação
devida. Entretanto, esta definição não é apropriada por se referir exclusivamente à
prestação principal.
De fato, o inadimplemento é a situação objetiva de não realização da prestação
debitória e de insatisfação do interesse do credor, independentemente da causa de
onde a falta procede. Dada a existência de deveres laterais decorrentes da boa-fé
objetiva, o conceito de inadimplemento deve ser construído também em observância
desses fatores dentro de uma noção de obrigação complexa, integrada por um
conjunto de direitos e deveres que atingem ambas as partes, isto é, credor e
devedor.146”
Ora, quando o contrato é firmado, busca-se que o seu objeto seja executado da forma
exata pretendida pelas partes. Nesse contexto, suscita-se o princípio da pontualidade, o qual
determina que a prestação devida deve estar plenamente ajustada à obrigação objeto da relação
contratual, momento em que se opera o cumprimento integral.
Oportuno, aqui, colacionar os comentários do jurista português Inocêncio Galvão
Telles sobre o princípio da pontualidade:
“As obrigações em regra são pontualmente cumpridas. O devedor faz ou entrega
aquilo que deve, na data do vencimento e nas mais circunstâncias legal ou
contratualmente exigidas.
Mas nem sempre assim acontece. Por vezes o credor não obtém a prestação devida
ou não a obtém nas exactas condições em que ela tinha que ser efectuada.
Verifica-se nesses casos a inexecução da obrigação e torna-se necessário saber que
consequências derivam daí.
Fala-se então de não cumprimento, tomada a expressão em sentido amplo,
compreensivo de diversas modalidades que serão discriminadas nas considerações
subsequentes.147”
145
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1033-1034.
146
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira - Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das
obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 21-22.
147
TELLES, Inocêncio Galvão - Manual dos Contratos em Geral. 4.ª ed. Wolters Kluwer Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, p. 299.
51
Portanto, o inadimplemento subdivide-se em modalidades, sendo que cada qual
impõe um efeito diverso.
Sobre essa questão, comentam Cristiano Chaves Farias e Nelson Rosenveld que:
“Outra perspectiva utilizada concerne ao efeito do inadimplemento para a relação
obrigacional. Ou seja, o resultado do inadimplemento varia se o descumprimento for
definitivo, houver mero atraso no cumprimento ou o cumprimento for defeituoso. A
distinção entre o inadimplemento absoluto e a mora será percebida em cada situação
particularizada. Frequentemente, será com base na viabilidade de cumprimento da
prestação, mesmo que intempestiva, que situaremos a mora. Em contrapartida, o
inadimplemento absoluto poderá aferir-se naquelas situações em que a boa-fé
objetiva indica que a prestação perdeu a sua utilidade econômica para o credor, sendo
impraticável a manutenção da relação jurídica, pois não há espaço para o
adimplemento. Por fim, acrescenta-se às duas formas tradicionais do
inadimplemento, a modalidade do cumprimento defeituoso, que se associa à ideia da
violação positiva do contrato. Aqui incide uma violação à relação obrigacional, que
não satisfaz o perfil da mora nem tampouco do inadimplemento absoluto.148”
“(...) existirá inadimplemento absoluto quando, por exemplo, contrata uma orquestra
para um baile e ela deixa de comparecer. De nada adiantará para o organizador da
148
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 10.ª ed. Salvador:
JusPodivm, 2016, p. 537.
149
SILVA, Jorge Cesa Ferreira da - Boa-fé e violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
52
festa (o credor, então) que a orquestra disponha-se a apresentar-se no dia seguinte,
uma vez que todos os convivas já estavam presentes.150”
.
Deste modo, o mesmo autor trata do inadimplemento afirmando que ocorre quando
“a obrigação não foi cumprida em tempo, lugar e forma convencionados e não poderá sê-
lo”151.
Portanto, a prestação tornou-se impossível de ser cumprida, o que sintetiza Agostinho
Alvim, ao dizer que “a obrigação não foi cumprida nem poderá sê-lo”152.
Mário Júlio de Almeida Costa, de forma conclusiva, ensina que ocorre o
inadimplemento absoluto, descumprimento total ou incumprimento definitivo quando “a
prestação, que ficou por efectuar na altura exacta, não mais poderá sê-lo, pois tornou-se para
sempre irrealizável, mercê da sua impossibilidade material ou da perda do interesse do
credor”153.
Desse último conceito, extrai-se que a impossibilidade de cumprimento deriva não só
do fato de não poder mais ser realizada, por uma questão material, mas também em face da
perda de interesse do credor, isto é, a prestação torna-se inútil ao credor, embora seja possível
de ser concretizada.
Na doutrina portuguesa, explicita Inocêncio Galvão Telles quanto à perda da utilidade
da prestação para o credor:
“Essa susceptibilidade ou insusceptibilidade de cessação da impossibilidade de
cumprir deve ser vista à luz do interesse do credor. Quer isto dizer que o
impedimento pode materialmente desaparecer e no entanto a impossibilidade da
prestação assumir juridicamente o significado de impossibilidade definitiva por a
prestação perder para o credor oportunidade. Como se declara no artigo 792.º, n.º 2, a
impossibilidade só de considera temporária enquanto, atenta a finalidade da
obrigação, se mantiver o interesse do credor.154”
Deve-se frisar que tal perda do interesse do credor não decorre de um simples juízo
arbitrário em função de o combinado não ter sido fielmente cumprido. O objeto carece de sua
150
VENOSA, Sílvio de Salvo - Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 2.ª ed.
Vol. 2. São Paulo: Atlas, 2002, p. 238
151
VENOSA, Sílvio de Salvo - Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 2.ª ed.
Vol. 2. São Paulo: Atlas, 2002, p. 237
152
ALVIM, Agostinho - Das inexecuções das obrigações e suas consequências. 4.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1972, p. 7.
153
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1034.
154
TELLES, Inocêncio Galvão - Manual dos Contratos em Geral. 4.ª ed. Wolters Kluwer Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, p. 324.
53
utilidade quando, em razão das próprias circunstâncias da avença, a prestação a ser
concretizada se esvazia, padecendo de finalidade.
Nesse sentido, a doutrina de Cristiano Chaves Farias e Nelson Rosenveld:
“É certo supor que o interesse econômico do credor determina a conversão da mora
em inadimplemento absoluto, mas não se pode cogitar de arbítrio do credor. Só há
inadimplemento absoluto se o atraso gerou o desaparecimento da necessidade do
credor na obtenção da prestação. Em suma, toda vez que o devedor deseje pagar e
objetivamente a prestação ainda se revela viável ao credor, deverá este aceitá-la. O
adimplemento é um direito subjetivo do devedor e o magistrado deverá garanti-lo
quando possível.155”
Também a esse respeito, manifesta-se Mário Julio de Almeida Costa, retratando que
“a importância de tal interesse, embora aferida em função da utilidade concreta que a
prestação teria para o credor, não se determina de acordo com o seu juízo arbitrário, mas
considerando elementos susceptíveis de valoração pelo comum das pessoas”156.
Portanto, quando o cumprimento da prestação, embora temporário e possível, deixa
de interessar ao credor, estar-se, também, diante do incumprimento definitivo.
Dito isto, o inadimplemento absoluto radica situações em que a obrigação não seja
mais possível de ser prestada, seja por uma razão de mera impossibilidade fática, seja por
impossibilidade jurídica decorrente da perda da utilidade para o credor.
155
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 10.ª ed. Salvador:
JusPodivm, 2016, p. 545.
156
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1054.
54
Assim, existem situações nas quais “o devedor não executa a obrigação quando ela se
vence, mas poderá vir a executá-la posteriormente, dado que a prestação, na sua forma
originária, continua a ser materialmente possível e o credor continua a ter interesse nela”157.
Faz-se necessário ressalvar, mais uma vez, que “não é a possibilidade do
cumprimento da obrigação que se distingue mora de inadimplemento, mas sob o aspecto da
utilidade para o credor”158.
O pressuposto de utilidade, para que não se configure o inadimplemento total, pode
ser extraído do córtex civil brasileiro, o qual prescreve, em seu artigo 395, parágrafo único,
que “se a prestação, por causa da mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e
exigir satisfação de perdas e danos”159.
Destarte, quando o incumprimento é transitório, porém permanece útil ao credor,
configura-se o instituto tão conhecido da mora, entendido assim:
“A mora ocorre quando há o retardamento, em geral culposo, no pagar ou no
executar de prestação pelo devedor ou, ainda, quando a execução da prestação é
insatisfatória por se distanciar do que foi avençado contratualmente (mora solvendi).
De forma semelhante, há a mora do credor (mora accipiendi) quando ele recusa o
recebimento da prestação em tempo, lugar e forma estabelecidos no contrato (arts.
394 e s. do CC/2002).160”
157
TELLES, Inocêncio Galvão - Manual dos Contratos em Geral. 4.ª ed. Wolters Kluwer Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, p. 300.
158
VENOSA, Sílvio de Salvo - Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 2.ª ed.
Vol. 2. São Paulo: Atlas, 2002, p. 238.
159
CÓDIGO Civil Brasileiro. [Em linha] Planalto, 2016. [Consult. 09 de Jun. 2016]. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.
160
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 288.
161
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 135.
55
credor, prontificando-se a purgar a mora quando seja o caso, isto é, desde que a
prestação não se tenha tornado inútil ao credor.162”
162
ALVIM, Agostinho - Das inexecuções das obrigações e suas consequências. 4.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1972, p. 48.
163
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira - Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das
obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 31.
164
VENOSA, Sílvio de Salvo - Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 2.ª ed.
Vol. 2. São Paulo: Atlas, 2002, p. 238.
165
TELLES, Inocêncio Galvão - Manual dos Contratos em Geral. 4.ª ed. Wolters Kluwer Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, p. 300.
166
CÓDIGO Civil Brasileiro. [Em linha] Planalto, 2016. [Consult. 09 de Jun. 2016]. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.
56
Se a obrigação provier de facto ilícito (art. 805.º, n.º 2, al. b)) – hipótese em que a
mora se conta a partir da prática desse facto;
Se o próprio devedor impedir a interpelação, pelo que se considera interpelado na
data em que normalmente o teria sido (art. 805.º, n.º 2, al. c));
Se o devedor declara ao credor, inequívoca, definitiva, conscientemente e de forma
peremptória, a sua intenção de não cumprir, embora possa fazê-lo – o que, como é
óbvio, equivale e até antecipa a interpelação.167”
Por todo o exposto, infere-se que, quando caracterizada a mora, existe ainda a
possibilidade de a prestação ser cumprida. Todavia, há situações que, perdida a utilidade da
prestação, a mora torna-se inadimplemento absoluto.
Das definições trazidas a lume, observa-se que a mora decorre de um retardamento
culposo, seja por conduta do devedor, seja por conduta do credor, excetuado o caso fortuito e a
força maior.
167
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1049-1040.
168
CORDEIRO, Antônio Manuel da Rocha e Menezes - Direito das Obrigações. Vol. 2. Lisboa: Associação
Acadêmica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1986, p. 440.
169
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014.
57
quando este dever não tenha uma vinculação direta com os interesses do credor na
prestação”170.
Ora, aqui, pela análise dos conceitos antevistos, não se trata do atraso ou da omissão
da prestação objeto da obrigação a ser cumprida. Não há qualquer problema de identidade ou
de quantidade, mas sim, um defeito ou vício naquilo que fora efetivamente realizado. Portanto,
essa modalidade de cumprimento refere-se a uma execução de má qualidade, por isso que se
suscita a violação de um dever lateral assumido pelo credor171.
Há, todavia, entendimento diverso, quando Ruy Rosado de Aguiar Júnior disserta
que:
“O cumprimento imperfeito pode estar ligado à própria prestação principal, e assim
ofendê-la diretamente, mas também pode decorrer de descumprimento de obrigação
acessória, sendo essa violação causadora da ofensa indireta à obrigação principal,
gerando, conforme o caso, o seu desfazimento.172”
Mário Júlio de Almeida Costa ilustra algumas situações que estão amparadas por essa
modalidade:
“Consideremos alguns exemplos: o vendedor que entrega animais doentes que
contagiam os outros que o comprador tem nos seus estábulos; o comerciante que
fornece gêneros deterioradas que o cliente consome com prejuízo para a saúde ou se
vê forçado a inutilizar; o contabilista que organiza, no prazo estabelecido ou até antes
do decurso deste, um balanço errado da empresa, levando a gerência a tomar
decisões ineficazes ou ruinosas; o operário que efectua uma reparação em
determinado prédio, mas que, ao sair, danifica um móvel, ou por descuido, lança uma
ponta de cigarro que provoca incêndio; a pessoa a quem se empresta um livro e que
não se informa, ao devolvê-lo, que o mesmo esteve nas mãos de um doente com
enfermidade contagiosa que se transmite ao comodante.173”
170
SILVA, Jorge Cesa Ferreira da - Boa-fé e violação positiva do contrato. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.
272-273.
171
MACHADO, João Baptista - Pressupostos da resolução por incumprimento. Coimbra: Gráfica de Coimbra,
1927.
172
AGUIAR, Ruy Rosado de - Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: AIDE,
2004, p. 123.
173
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1060.
174
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1035.
58
Para o Direito Brasileiro, doutrinariamente, o adimplemento relativo está inserido
dentro do instituto da mora e consiste, segundo Andrea Cristina Zanetti, na “inobservância do
lugar, tempo e forma devidos175.
Nesse diapasão, Eduardo Bussata pontua que:
“(...) a simples divisão em adimplemento absoluto e mora, tal qual adotada pelo
Código Civil, não satisfaz interesses de ordem prática, bem como não é didática.
Contrariamente a outros ordenamentos jurídicos, como é o caso do português,
conforme dispõe o art. 394, a mora abrange todo e qualquer inadimplemento quanto
ao tempo, ao modo ou mesmo ao lugar que a obrigação deve ser cumprida. Isso,
além de romper com a tradição de versar a mora somente sobre o aspecto temporal
do descumprimento, no Direito brasileiro, conforme dispõe o artigo 394, a mora
abrange todo e qualquer inadimplemento quanto ao tempo, ao modo ou mesmo ao
lugar que a obrigação deve ser cumprida. Isso, além de romper com a tradição de
versar a mora somente sobre o aspecto temporal do cumprimento, faz com que se
juntem num mesmo conceito e tratamento hipóteses as mais diversas de
descumprimento, como de mero atraso até inobservância de qualidade devida. Por
essa razão, preferiu-se para diferenciar as modalidades de inadimplemento a adoção
de classificação acima descrita, que acaba por permitir melhor especificação e,
consequentemente, melhores soluções práticas para os casos verificados.176”
175
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 289.
176
BUSSATTA, Eduardo Luiz - Resolução dos contratos e teoria do adimplemento substancial. 2.ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2008, p. 25. (Bussatta, 2008, p. 25)
177
AGUIAR, Ruy Rosado de - Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: AIDE,
2004, p. 123-124.
59
2.2.3. Efeitos jurídicos do inadimplemento e responsabilidade civil contratual.
Em princípio, Mário Júlio de Almeida Costa introduz que:
“Como decorre do exposto, as várias causas do não cumprimento têm diferentes
consequências jurídicas: enquanto umas determinam a pura extinção do vínculo
obrigacional, outras constituem o devedor em responsabilidade indemnizatória e
conduzem à realização coactiva da prestação; e outras, ainda deixam basicamente
inalterado o vínculo obrigacional, sem agravarem a responsabilidade do devedor.178”
178
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1036.
179
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1068.
180
TELLES, Inocêncio Galvão - Manual dos Contratos em Geral. 4.ª ed. Wolters Kluwer Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, p. 326.
181
DIAS, José de Aguiar - Da responsabilidade civil. 11.ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 55.
182
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1037.
60
violação que não seja intencional, mas resulte de sua responsabilidade por falta de
diligência”183.
Mário Júlio de Almeida Costa ensina que:
“A lei estabelece uma presunção de culpa do devedor: portanto, sobre ele recai o
ônus da prova. E a culpa segundo os critérios aplicáveis à responsabilidade civil
extracontratual: portanto, em abstracto e não em concreto (art. 799.º, n. os 1 e 2).
Vigora a regra da responsabilidade subjetiva. Mas também neste plano se concede
algum acolhimento à tendência para o objectivismo nos critérios de imputação, como
imperativo da tutela do crédito, que se revela especialmente em dimensões
empresariais.184”
Sendo certo que, para que haja a reparação em perdas e danos, impõe-se que existam
efetivamente prejuízos a serem reparados, com a restauração do equilíbrio perdido, e não tão
somente o simples descumprimento. Tem-se assim que:
“Para que surja a responsabilidade do devedor em consequência do inadimplemento,
não basta este lhe seja imputável – quer dizer, que assente num seu acto culposo – ou
que se trate de uma das situações excepcionais de responsabilidade contratual
objetica ou pelo risco. Ainda se torna necessário que sobrevenham para o credor
alguns danos ou prejuízos que possam considerar-se resultado do não
cumprimento.186”
183
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 10.ª ed. Salvador:
JusPodivm, 2016, p. 541.
184
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1037-1038.
185
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 10.ª ed. Salvador:
JusPodivm, 2016, p. 555-556.
186
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1041.
61
Portanto, verifica-se que do inadimplemento devem estar plenamente evidenciados os
danos decorrentes ao credor, de modo a ser imputada responsabilidade civil ao devedor.
Por todo exposto, Mário Júlio de Almeida Costa, quanto ao tema e previsão na
legislação civil portuguesa, trata dos efeitos positivados no caso da “impossibilidade do
cumprimento e mora não imputáveis ao devedor (arts. 790.º a 797.º), a falta de cumprimento e
mora imputáveis ao devedor (arts. 798.º a 812.º) e a mora do credor (arts. 813.º a 816.º).
Sobre os efeitos, o mesmo autor assim doutrina:
“Fixemos as três hipóteses que a lei prevê relativamente à impossibilidade de uma ou
de algumas das prestações:
I – Se a impossibilidade não for imputável às partes, a obrigação considera-se
limitada às prestações ainda possíveis (art. 545.º). Daí que, restando apenas uma
prestação, se concentre a obrigação nessa única.
II – Se a impossibilidade for imputável ao devedor, haverá que distinguir se a escolha
lhe pertencia ou não. No primeiro caso, ele deve efectuar uma das prestações
possíveis. Mas se a escolha couber ao credor, «este poderá exigir um das prestações
possíveis, ou pedir a indemnização pelos danos provenientes de não ter sido
efectuada a prestação que se tornou impossível, ou resolver o contrato nos termos
gerais» (art. 546.º).
(...)
III – Se a impossibilidade for imputável ao credor, existirão igualmente dois
caminhos. Tendo ele o direito de escolha, considera-se cumprida a obrigação. E,
cabendo a escolha ao devedor, «também a obrigação se tem por cumprida, a menos
que este prefira efectuar outra prestação a ser indemnizado dos danos que houver
sofrido» (art. 547.º).187”
Deflui-se da leitura que é possível, após a análise do caso, verificado o real prejuízo e
a boa-fé do devedor, ou requerer o cumprimento da avença coercitivamente pela via judicial
ou a sua resolução, podendo acumular, em qualquer hipótese, o pedido de perdas e danos em
razão dos prejuízos efetivamente comprovados.
2.2.3.1 Inadimplemento definitivo
Tem-se como efeito do inadimplemento absoluto, eis que houve ruptura total da
avença, sem possibilidade ou interesse de reavê-la, por lógica, a consequente resolução do
contrato, bem como o ressarcimento à parte lesada dos danos havidos.
É claro e cristalino, ainda, que se os termos do contrato, em hipótese alguma, podem
ser cumpridos, há de se buscar a restauração do status quo ante com a avaliação das perdas e
danos, de modo a equilibrar a relação que fora violada.
187
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 734-735.
62
Mário Júlio de Almeida Costa, sobre o tema, reflete que:
“O inadimplemento definitivo que ocorra com culpa do devedor confere ao credor o
direito à indemnização dos danos sofridos. No art. 801.º, n.º 1, equipara-se ao não
cumprimento a impossibilidade da prestação imputável ao devedor, pois, se a
prestação se torna impossível por culpa sua, responde «como se faltasse
culposamente ao cumprimento da obrigação».
(...)
Constituem causas de determinação do inadimplemento definitivo a perda do
interesse do credor e a inobservância de um prazo suplementar razoável por ele
fixado (art. 808.º). Quanto aos efeitos, como ficou salientado, parifica-se ao não
cumprimento definitivo a impossibilidade da prestação imputável ao devedor.188”
E continua:
“O que decorre da lógica e coerência dessa opção é colocar o prejudicado na situação
em que se encontraria se o contrato não houvesse sido celebrado. Portanto, não é
exonerá-lo da obrigação que assumiu ou restituir-lhe pelo facto de celebrar o contrato
(dano «in contrahendo»).
(...)
Ao prejudicado cabe assim o direito de exigir o ressarcimento, quer dos danos que
representam uma desvalorização ou perda patrimonial, quer ainda dos que se
traduzem numa não valorização ou frustração do ganho.189”
2.2.3.2 Mora
Bem, dito isso, a problemática concentra-se no adimplemento tardio e no defeituoso,
cuja ocorrência pode ou impactar a rescisão do contrato ou a exigência de seu cumprimento,
podendo ser integrado a ele o pedido de indenização para reparação da parte lesada, com o
188
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1043.
189
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1045
190
TELLES, Inocêncio Galvão - Manual dos Contratos em Geral. 4.ª ed. Wolters Kluwer Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, p. 328.
63
pagamento das perdas e danos, correspondentes, analisado o caso, aos juros, correção
monetária, cláusula penal moratória, eventuais perdas e danos, honorários advocatícios e
despesas processuais.
O artigo 395, do Código Civil Brasileiro, dispõe que “não cumprida a obrigação,
responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo os índices
oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”191.
Nesse contexto, Cristiano Chaves Farias e Nelson Rosenveld sublinham que:
“Quando se verifica o inadimplemento da obrigação principal, surgem, em favor do
credor, diversas opções. Seja a possibilidade de resolução com imposição de perdas e
danos, aplicação da cláusula penal com prefixação de prejuízos ou, mesmo, a própria
opção do credor pela tutela específica quando for o objeto possível e a prestação
remanescer útil pra ele (art. 475, CC).192”
191
CÓDIGO Civil Brasileiro. [Em linha] Planalto, 2016. [Consult. 09 de Jun. 2016]. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.
192
TELLES, Inocêncio Galvão - Manual dos Contratos em Geral. 4.ª ed. Wolters Kluwer Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, p. 550.
193
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira - Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das
obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 32..
194
VENOSA, Sílvio de Salvo - Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 2.ª ed.
Vol. 2. São Paulo: Atlas, 2002, p. 241.
64
Nesse passo, pontilha-se, por oportuno ao presente debate, que “se há mora, a
prestação não cumprida pode ser realizada ainda, uma vez que sua execução, em si mesma,
permanece útil ao credor, apesar de acrescida por perdas de danos, portanto, há a
responsabilidade de receber”195.
Ensina Inocêncio Galvão Telles que:
“O devedor constitui-se em responsabilidade obrigacional se da mora advierem
prejuízos para o credor (art. 798.º a art. 804.º n.º 1). O credor conserva direito à
prestação originária mas tem, além disso, direito a ser indemnizado dos danos
resultantes de essa prestação não haver sido efectuada em tempo. É a chamada
indemnização moratória.196”
E, continua:
“Também a simples mora do devedor o obriga a reparar os danos causados ao credor
(art. 804.º, n.º 1). Verifica-se mora debitória, como sabemos, se houve atraso
culposo no cumprimento, mas subsiste a possibilidade futura deste. Expressa a lei
que «o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja
imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido» (art. 804.º
, n.º 2).198”
Vale dizer que o cumprimento pode ter sido efetuado, todavia, de forma defeituosa. O
vício nem sempre é patente e a verificação dos efeitos deve se dar de forma acurada. A
prestação defeituosa carece ser apreciada sob em que aspectos, tendo em vista o
originariamente pactuado, houve violação do princípio da boa-fé e da correspondência.
Em tal situação de inexatidão, cogita-se, ainda, da possibilidade de inobservância de
um dever lateral de conduta, podendo acarretar até mesmo a resolução do contrato.
Sobre o adimplemento imperfeito e seus efeitos, comenta Andrea Zanetti que:
“Contudo, quando o credor, apesar da inadequação, não recusa a contraprestação e
sofre danos, desvalorizando a prestação, inviabilizando-a a ou dificultando o fim a
que objetivamente encontra-se vinculada, pode se configurar a violação positiva do
195
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 288..
196
TELLES, Inocêncio Galvão - Manual dos Contratos em Geral. 4.ª ed. Wolters Kluwer Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, p. 303.
197
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1047.
198
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1048..
65
contrato. Nesses casos, o cumprimento defeituoso gera não somente a obrigação de o
devedor indenizar os danos causados ao credor, exigindo, se preferir, a reparação ou
substituição da coisa ou a redução da contraprestação, mas também a resolução do
contrato se caracterizada sua violação substancial, com perda do interesse do
credor.199”
Verifica-se, nesse passo, que a boa-fé objetiva pode, ou não, se distanciar da conduta
do devedor.
Deflui-se, desse modo, que a aplicação dos efeitos da mora, no caso de cumprimento
retardado ou imperfeito, considera, a uma, a não prestação ou sua execução de forma diversa
do tempo, lugar e forma convencionados e, a duas, a relação entre a natureza da conduta do
descumprimento e os danos decorrentes do inadimplemento202.
199
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 31.
200
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1063.
201
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1062.
202
ASSIS, Araken de - Comentários ao Código Civil brasileiro: do direito das obrigações. Edição: Arruda
Alvim e Thereza Alvim. Vol. 5. Rio de Janeiro: Forense, 2007.
66
Mário Júlio de Almeida Costa assevera que:
“Exclui-se a responsabilidade do devedor pelo incumprimento definitivo, simples
mora ou cumprimento defeituoso, sempre que tais situações derivem de facto do
credor ou de facto não imputáveis nem a um nem a outro. Ocorre a última hipótese
quando o inadimplemento derive de facto de terceiro ou, em termos gerais, exista
caso fortuito ou de força maior.203”
Ab initio, cumpre ressaltar que os institutos do caso fortuito e força maior são
tratados, por muitos doutrinadores e juristas, como sinônimos fossem, interessando, ao
presente estudo, que a ocorrência de fato ou o evento imprevisível ou de difícil previsão que
não pode ser evitado esteja evidentemente configurado, mas que provoca consequências ou
efeitos nas esferas jurídicas dos envolvidos e de terceiros.
Segundo a moderna doutrina esposada por Agostinho Alvim, o caso fortuito está
diretamente relacionado a um evento ligado com a parte contratante, enquanto a força maior
vincula-se aos acontecimentos externos que interferem na relação jurídica dos envolvidos 204
Mário Júlio de Almeida Costa instrui que:
“De harmonia com a orientação talvez preponderante, o conceito de caso de força
maior tem subjacente a ideia de inevitabilidade: será todo o acontecimento natural ou
acção humana que, embora previsível ou até prevenido, não se pôde evitar, nem em
si mesmo nem nas suas consequências. Ao passo que o conceito de caso fortuito
assenta na ideia da imprevisibilidade: o facto não se pôde prever, mas seria evitável
se tivesse sido previsto.205”
O Código Civil brasileiro, no que concerne aos efeitos oriundos dos ditos institutos
não fez qualquer distinção de tratamento, veja-se:
“Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou
força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário,
cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.206”
203
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1072.
204
ALVIM, Agostinho - Das inexecuções das obrigações e suas consequências. 4.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1972.
205
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1073-1074.
206
CÓDIGO Civil Brasileiro. [Em linha] Planalto, 2016. [Consult. 09 de Jun. 2016]. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.
67
negócio do qual a obrigação procede houver sido feito sob condição ou a termo, e a
prestação for possível na data da conclusão do negócio, mas se tornar impossível
antes da verificação da condição ou do vencimento do termo, é a imposibilidade
considerada superveniente e não afecta a validade do negócio.207”
207
CÓDIGO Civil [Em linha] Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, 2015. [Consult. 09 de Jun. 2016].
Disponível em http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=775&tabela=leis&so_miolo.
208
TELLES, Inocêncio Galvão - Manual dos Contratos em Geral. 4.ª ed. Wolters Kluwer Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, p. 323.
209
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1075.
210
TELLES, Inocêncio Galvão - Manual dos Contratos em Geral. 4.ª ed. Wolters Kluwer Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, p. 323.
68
Quanto ao risco, Inocêncio Galvão Telles explicita que:
“Diz-se que suporta o risco Aquela das partes que sofre o prejuízo proveniente de a
prestação e impossibilitar por caso fortuito ou de força maior. Suporta o risco o
credor se a obrigação se extingue, com a consequente exoneração do devedor, tendo
o credor, mesmo assim, de realizar a contraprestação nos contratos bilaterais (cfr. At.
796.º m.º 1). Suporta o risco o devedor se continua vinculado, devendo indemnizar os
danos provenientes do caso fortuito ou de força maior.
Pois bem, se o devedor está em mora quando sobrevém a impossibilidade casual da
prestação, é seu o risco, ainda que este coubesse em princípio ao credor (como cabe
na hipótese prevista no cit. Art. 796.º n.º 1). Dá-se a perpetuação da obrigação
«perpetuatio obligationis». A obrigação sobrevive a um facto que deveria
normalmente extingui-la, apresentando-se sob a forma de indemnização que o
devedor tem de satisfazer ao credor.211”
Muitas vezes, por exemplo, pode ser que, na obrigação de dar, a coisa que não foi
entregue sofra deterioração ou perda. Ou seja, se o devedor houvesse executado a conduta que
se espera tempestivamente, o prejuízo não teria ocorrido.
Nesses casos, ensinam Cristiano Chaves Farias e Nelson Rosenveld que:
“Se no período em que se manifesta o atraso da obrigação perece o objeto da
prestação em decorrência do fortuito, impõe-se a assunção pelo devedor da obrigação
de indenizar pelo valor da coisa sem que o inadimplente possa alegar a transferência
do risco ao credor e a consequente extinção da obrigação. Afasta-se aqui a regra
geral do art. 393 do Código Civil, pois o devedor moroso responde pela
impossibilidade da prestação durante o retardamento, havendo um nexo causal entre
o atraso e a impossibilidade.212”
211
TELLES, Inocêncio Galvão - Manual dos Contratos em Geral. 4.ª ed. Wolters Kluwer Portugal. Coimbra:
Coimbra Editora, 2010, p. 3056.
212
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 10.ª ed. Salvador:
JusPodivm, 2016, p. 558.
213
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1061.
69
Pode existir que, na relação obrigacional, o credor venha a ter uma conduta morosa, a
qual ocorre quando este obsta o cumprimento da obrigação, pois não pode ou não consegue
receber o devido, ou mesmo, se recusa a recebê-la.
Para Mário Júlio de Almeida Costa, “o credor incorre em mora quando, sem motivo
justificado, não aceita a prestação que lhe é oferecida nos termos legais ou não pratica os actos
necessários ao cumprimento da obrigação”214.
O artigo 400 do código civil preconiza que:
“A mora do credor subtrai o devedor isento de dolo à responsabilidade pela
conservação da coisa, obriga o credor a ressarcir as despesas empregadas em
conservá-la, e sujeita-o a recebê-la pela estimação mais favorável ao devedor, se o
seu valor oscilar entre o dia estabelecido para o pagamento e o da sua efetivação.215”
Por outro turno, o Código Civil português preconiza, em seu artigo 813.º, que “o
credor incorre em mora quando, sem motivo justificado, não aceita a prestação que lhe é
oferecida nos termos legais ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da
obrigação”217.
Deve-se, ao presente estudo, entender que a mora do credor pode atenuar ou suavizar
a posição do devedor, importando, de forma imperativa, ressaltar que deve ser sempre
observada a boa-fé que se impõe ao comportamento de ambas as partes.
214
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 1079..
215
CÓDIGO Civil Brasileiro. [Em linha] Planalto, 2016. [Consult. 09 de Jun. 2016]. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.
216
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 10.ª ed. Salvador:
JusPodivm, 2016, p. 561.
217
CÓDIGO Civil [Em linha] Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, 2015. [Consult. 09 de Jun. 2016].
Disponível em http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=775&tabela=leis&so_miolo.
70
3. TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL.
Em decorrência do pacta sunt servanda, tem-se o princípio da conservação do
negócio jurídico, cuja orientação jurídica busca a manutenção do contrato e em face de fatos
não antevistos, tenta-se a correção daquilo que seja necessário, sem haver o desprezo ao que
fora planejado inicialmente.
A celebração do contrato chancela os propósitos das partes, os quais, supõem, que
serão definitivamente cumpridos, sem qualquer intercorrência, já que os envolvidos buscarão,
cada qual na medida do compromisso que firmaram, realizar os atos necessários à
concretização do resultado.
Nesse contexto, não se olvida da inexistência da boa-fé.
Consoante o professor Agostinho Alvim, vários são os motivos que induzem o
homem a cumprir o prometido:
“Primeiramente a simples ética: a voz da consciência, o hábito adquirido pelo
homem bem educado. Nem todos têm, é verdade, uma consciência bem formada, de
modo a cumprir todos os deveres, somente em satisfação a regras morais. Mas
quando esse motivo não fosse suficiente, haveria o temor da reprovação pública. Este
temor leva muitas pessoas a cumprir deveres morais, não porque ouçam a voz da
consciência, nem porque sejam esses deveres providos de sanção, mas a fim de evitar
a reprovação de seus pares. Todavia, quando nada disto bastasse, é certo de que as
obrigações, no sentido jurídico, isto é, as obrigações civis, são providas de sanção,
qualquer que seja a sua fonte. Logo, o credor que compelir o devedor a que cumpra a
obrigação e quando ele chegar a este extremo, a situação do devedor já estará
agravada com encargos da mora. Estes motivos todos fazem com que as pessoas, em
regra, se desempenhem, espontaneamente, das obrigações que assumiram.218”
Entretanto, não se afastando da conduta ética das partes, atinentes aos deveres
colaterais, situações podem causar a ruptura do esperado, e a questão de dissolver o contrato
ou exigir que o restante seja cumprido se impõe como discussão.
No Direito Romano, inexistia a previsão de um instituto jurídico que viabilizasse a
resolução do contrato quando o devedor viesse a descumprir a avença. Apenas
excepcionalmente, quando expressamente convencionado pelos contratantes, era possível
dissolver o termo contratual e ressarcir patrimonialmente à parte lesada219.
218
ALVIM, Agostinho - Das inexecuções das obrigações e suas consequências. 4.ª ed. São Paulo: Saraiva,
1972, p. 6-7.
219
BUSSATTA, Eduardo Luiz - Resolução dos contratos e teoria do adimplemento substancial. 2.ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2008.
71
Quando da elaboração do Decreto Quemadmodum, da lavra do Papa Inocêncio III,
foi reconhecido o direito de o marido deixar a esposa infiel, entendido assim que havia a
possibilidade de rompimento do contrato matrimonial por violação do dever de fidelidade
inobservado pela mulher. Nesse passo, logo a acepção de possibilidade de se resolver o
contrato mediante descumprimento foi estendida para todos os contratos com prestações
recíprocas, sendo positivada, posteriormente, no direito francês220.
Dada a viabilidade de ocorrência de ruptura contratual, passou a ser discutida em
quais hipóteses esse rompimento deveria se sobrepor frente aos princípios contratuais
propriamente ditos, especialmente porque o contrato vigora plenamente entre as partes que a
eles se obrigaram.
A substancial performance origina-se no direito inglês, no século XVIII. A teoria foi
concretizada com o caso Boone versus Eyre, de 1779, julgado por Lord Mansfield, julgador
que percebeu a necessidade de ser relativizada a necessidade do cumprimento exato, perfeito,
dos contratos frente ao descumprimento de parte do avençado.
O estudo, por conseguinte, centra-se na teoria do adimplemento substancial, com
exórdio, como já mencionado, na jurisprudência inglesa, a qual a denominou como
substancial failure performance, de forma a solucionar, considerada a gravidade, o
descumprimento sério e suficiente das obrigações não enquadradas como warranties e
conditions221.
220
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira - Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das
obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011.
221
BUSSATTA, Eduardo Luiz - Resolução dos contratos e teoria do adimplemento substancial. 2.ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2008.
72
decorreu do fato de que Boone não havia garantido o domínio sobre os bens alienados, não
existindo, ali, mais escravos.
Lord Mansfield julgou a cobrança procedente, entendendo que o comprador não
estava dispensado de pagar o convencionado, sob o fundamento de que há distinção em um
contrato entre as obrigações dependentes, chamadas de "conditions", e as obrigações
independentes, denominadas de “warranties”. No caso sob julgamento, o descumprimento não
incidia sobre uma obrigação dependente; considerou, por outro lado, que se tratava de uma
obrigação secundária, podendo o caso, dessa forma, se resolver somente em perdas e danos ao
invés de resultar na resolução do contrato.
Em resumo, o magistrado, à época, entendeu que a obrigação da alienação dos
escravos não configurava como dependente, e sim, como secundária, não havendo necessidade
de se romper o contrato, mas tão somente de se resolver o descumprimento em perdas e danos.
Vale explicitar que conditions constituem as obrigações cerne do objeto contratual,
ditas como deveres principais; por outro lado, warranties são aquelas que, pela natureza
acessória, são independentes e fogem à reciprocidade contratual222.
Dada à importância de tal julgamento, este veio a ser publicado no Diário de Justiça
do Estado de São Paulo, na página 949, de 16 de janeiro de 2013, nesta íntegra:
“Boone demandou contra Eyre, pois este atrasou o pagamento estipulado pelas partes
no contrato. O contrato firmado propunha ao Eyre o pagamento de 500 libras e uma
renda anual de 160 libras a Boone contanto que este transferisse a propriedade de
uma plantação nas Antilhas, com os escravos que ali viviam, garantindo seu domínio
e posse pacíficos. Eyre atrasou o pagamento e Boone estava cobrando o que tinha de
direito em juízo (400 libras de renda atrasada) e Eyre alegava que a obrigação não
tinha sido cumprida por Boone, pois não garantiu o domínio sobre os bens alienados
não existindo mais escravos. Lord Mansfield julgou procedente, entendendo que o
comprador não estava dispensado de pagar o convencionado, pois distinguia em um
contrato as obrigações dependentes, chamadas de “conditions” e as obrigações
independentes. No caso em questão não configurava uma obrigação dependente, ou
seja, não eram cláusulas essenciais, constituindo a própria substância do contrato,
cujo cumprimento era imprescindível. Considerou uma obrigação secundária se
resolvendo somente em perdas e danos e não cabendo a resolução do contrato. Sendo
assim, essa doutrina é antiga no sistema da Common Law, passando a ter maior
relevância com a reforma do judiciário de 1873, impedindo efeitos negativos a uma
222
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira - Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das
obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011.
73
parte em benefício de outra. Como visto a doutrina do adimplemento substancial
surgiu no Direito Inglês, pertencente à família da Common Law.223”
Explica Lucas Gaspar de Oliveira Martins também no que concerne ao julgado que:
“Para evitar injustiças advindas da resolução do contrato em razão de
descumprimento de somente uma fração da obrigação, surgiu no direito inglês o
entendimento de que somente o descumprimento de uma prestação dependente
(condition) dava ensejo à resolução do contrato, ao passo que o descumprimento de
um dever acessório ou colateral, do qual a obrigação não é dependente (warrant),
concedera ao credor apenas o direito de reclamar as perdas e danos (damages). Se o
dever descumprido pode ser considerado condition, a parte contrária possui o direito
de buscar a dissolução do vínculo contratual. Entretanto, se o descumprimento atingir
um warrant, viável será tão somente requerer as perdas e danos.225”
223
DIÁRIO, São Paulo - TJ-cad.4-1ª Inst-Int. Diário de Justiça, 2013 [Em linha]. [Consult. 09 de Jun. 2016].
Disponível em http://www.jusbrasil.com.br/diarios/49883953/djsp-judicial-1a-instancia-interior-parteii-16-01-
2013-pg-949.
224
PARIZ, Ângelo Aurélio Gonçalves. A teoria do adimplemento substancial. [Em linha]. [Consult. 09 de Jun.
2016]. Disponível em https://jus.com.br/artigos/25425/a-teoria-do-adimplemento-substancial.
225
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira - Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das
obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 57.
74
princípio da autonomia da vontade. Violada uma condition, seria atingido o
equilíbrio contratual. Então caberia à parte lesada pedir a sua resolução, com o que a
parte inadimplente nada poderia exigir, ainda que houvesse prestado algo Caso a
infração fosse uma warrant, a relação contratual não seria discutida e o contratante
não inadimplente estaria legitimado apenas a pedir o adimplemento do que fora
omitido, se possível, e o ressarcimento dos danos sofridos.226”
226
BECKER, Anelise - A doutrina do adimplemento substancial no direito brasileiro e em perspectiva
comparativista. Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Rio Grande do Sul: Rio Grande do Sul:
Livraria do Advogao. Ano 9, n.º 6. (Novembro 1993), p. 62.
227
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira - Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das
obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 58.
228
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira - Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das
obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 58-59.
75
permite a busca das perdas e danos que o caso importar ou, sendo ainda possível, a
demanda pelo cumprimento da específica prestação devida.229”
229
BUSSATTA, Eduardo Luiz - Resolução dos contratos e teoria do adimplemento substancial. 2.ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2008. Bussata, 2008, p. 51.
230
BECKER, Anelise - A doutrina do adimplemento substancial no direito brasileiro e em perspectiva
comparativista. Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Rio Grande do Sul: Rio Grande do Sul:
Livraria do Advogao. Ano 9, n.º 6. (Novembro 1993), p. 63.
231
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 10.ª ed. Salvador:
JusPodivm, 2016.
232
BUSSATTA, Eduardo Luiz - Resolução dos contratos e teoria do adimplemento substancial. 2.ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2008, p. 108.
76
correlação com a relevância do inadimplemento, sob pena de converter em abuso de
direito.233”
Em tal cenário, resta suficientemente claro que os valores da ordem jurídica servem
como parâmetro de equilíbrio, como fiel da balança, de modo a equacionar os efeitos do
contrato.
Nesse passo, também, de ser considerado se persistem condições para que a
obrigação venha a ser cumprida, embora de forma parcial, se subsiste o interesse do credor na
prestação, e se há possibilidade de o credor ser ressarcido pela parte do descumprimento que
fora verificada.
233
BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação Cível Nº 406.006.4/2-00/SP, rel. Des.
Francisco Loureiro. Publicado em 19/10/2006
234
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 10.ª ed. Salvador:
JusPodivm, 2016, p. 551.
77
Andrea Cristina Zanetti, estudiosa no assunto, assevera, após a adaptação do instituto
nos ordenamentos influenciados pela tradição romana-germânica, que o adimplemento
substancial consiste, desta forma, no:
“(...) inadimplemento ínfimo, ou de escassa importância que desautoriza, e, destarte,
funciona como um limite, à faculdade resolutória dada ao credor, bem como
impossibilita o uso de defesas como a exceção do contrato não cumprido, já que o
descumprimento em questão não possui gravidade suficiente para colocar em risco
ou corromper o sinalagma contratual.235”
235
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 295.
236
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 295.
237
BUSSATTA, Eduardo Luiz - Resolução dos contratos e teoria do adimplemento substancial. 2.ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2008, p. 116.
238
FRANÇA, Rubens Limongi - Teoria e prática da cláusula penal . São Paulo: Saraiva, 1988, p. 6.
239
FARIA, Werter R. Mora do devedor - Porto Alegre: Sergio antonio Fabris Editor, 1981, p. 25.
78
Portanto, busca-se, nesse passo, quando da aplicação judicial da teoria ao caso
concreto, a efetividade do contrato, com a invocação, especialmente, dos princípios da função
social e da boa-fé objetiva.
Em suma, o adimplemento substancial consiste em afastar a resolução do contrato
tendo em vista os princípios que o regem.
Assim, a Teoria do Adimplemento Substancial baseia-se em princípios doutrinários,
ainda que já tenha sido positivada em determinados ordenamentos jurídicos, posto que seu
exórdio é a própria construção jurisprudencial, sendo que, atualmente, o julgador analisa quais
as obrigações determinadas já foram cumpridas e se o descumprimento contratual foi
suficiente para afetar, de modo drástico, o objeto do contrato, vedada a extinção imperativa da
obrigação por inadimplemento, sob pena de configurar sacrifício demasiado ao credor.
A situação que se tem em vista é aquela que o devedor não executa perfeitamente os
termos do contrato ou não atinge plenamente os fins propostos, porém o cumprimento de parte
do contrato encontra-se próximo, consideravelmente, do seu resultado final.
A teoria - ou princípio, como tratada por alguns juristas - do adimplemento
substancial repele, nesses casos, a resolução do negócio quando o adimplemento foi realizado
de modo substancial, isto é: a parte inadimplida é considerada mínima em relação ao todo.
Concludentemente, Eduardo Luiz Bussatta ensina que:
“A doutrina e a jurisprudência têm ressaltado a necessidade de que o incumprimento
deve ser importante, grave, de não escassa importância, de grande magnitude, em
razão de que o contrato é orientado pelo princípio da conservação, bem como seria
contrário à boa-fé contratual o exercício do direito subjetivo de resolver o contrato
em tais casos. Defende Carlos Miguel Ibáñez que o incumprimento deve ser valorado
de acordo com o expressamente pactuado pelas partes, isso para as hipóteses de
existir clausula resolutiva expressa. Em não havendo, têm-se proposto dois critérios:
o subjetivo, baseado na vontade presumida das partes; e o objetivo, que atende à
interdependência das obrigações, de forma que somente haverá direito à resolução
quando o inadimplemento afete uma obrigação que era substancial à estrutura do
contrato.240”
240
BUSSATTA, Eduardo Luiz - Resolução dos contratos e teoria do adimplemento substancial. 2.ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2008, p. 52.
79
entendimento deve se orientar em prol da preservação da avença, desde que viável e de
interesse dos contraentes.
O princípio da boa-fé, ao estudo em voga, deve ser entendido como a matriz que
orienta a teoria do adimplemento substancial, porquanto sua aplicação implica em analisar se o
devedor procedeu com correção e honestidade, bem como se estava imbuído de boa intenção e
no propósito de a ninguém prejudicar, de forma a autorizar ou não a incidência da teoria e a
aproveitar parte do cumprimento que tenha sido executado.
241
CÓDIGO Civil Brasileiro. [Em linha] Planalto, 2016. [Consult. 09 de Jun. 2016]. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.
80
Nesse diapasão, comenta Eduardo Luiz Bussata:
“Seja pelo conteúdo ético que possui, seja pelo histórico que apresenta, o princípio
da boa-fé objetiva, sem sombra de dúvida, figura o mais importante de todos os
princípios, à medida que realmente permite, por meio das suas especializações
funcionais, a obtenção da justiça do caso concreto, especialmente ao admitir que o
magistrado, ao julgar determinado caso contratual que lhe foi posto, possa atentar aos
meandros e peculiaridades do caso concreto a fim de proferir uma decisão justa, que
se apresente mais vantajosa em termos de custo social, ainda que contrária ao sentido
literal de determinada regra. Enfim, a boa-fé erige-se em elemento substancial da
evolução do direito, que com insistência, denomina-se “a socialização do direito”242.
Por outro turno, a função social do contrato impõe, em suma, como abordado
anteriormente, que o exercício de um direito individual se dê em consonância com aquilo que
a sociedade preserva como fundamental.
Por oportuno, as lições de Cristiano Chaves Farias e Nelson Rosenveld:
“O ordenamento jurídico concede a alguém um direito subjetivo para que satisfaça
um interesse próprio, mas com a condição de que a satisfação individual não lese as
expectativas coletivas que lhe rodeiam. Todo poder de agir é concedido à pessoa,
para que seja realizada uma finalidade social; caso contrário, a atividade individual
falecerá de legitimidade e o intuito do titular do direito será recusado pelo
ordenamento.243”
242
BUSSATTA, Eduardo Luiz - Resolução dos contratos e teoria do adimplemento substancial. 2.ª ed. São
Paulo: Saraiva, 2008, p. 65.
243
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 10.ª ed. Salvador:
JusPodivm, 2016, p. 128.
244
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira - Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das
obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011..
81
Portanto, de forma vital, instituem que as partes devem ter uma conduta pautada nos
valores éticos de probidade, e tão somente quando evidenciada a boa-fé do devedor e o
respeito à função social do contrato, é que a teoria do adimplemento substancial poderá ser
aplicada pelo julgador.
Para Mário Júlio de Almeida Costa, “na base do instituto do enriquecimento sem
causa, como o seu próprio nome já denuncia, encontra-se a ideia de que pessoa alguma deve
locupletar-se injustificadamente”246.
Segundo Cristiano Chaves Farias e Nelson Rosenveld, “a ideia é a de repor o
patrimônio do credor ao que era anteriormente, mas transferir-lhe os acréscimos que
aconteceram em outro patrimônio247.
245
NORONHA, Fernando - Direito das Obrigações. Vol. I. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 421.
246
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 489-490.
247
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 10.ª ed. Salvador:
JusPodivm, 2016, p. 124.
82
Positivando o tema, o Código Civil português, em seu artigo 473, n.º 1, preconiza
que “aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir
aquilo com que injustamente se locupletou”248.
A respeito, Mário Julio de Almeida Costa, comentando o dispositivo da legislação
civil portuguesa, entende que o enriquecimento pressupõe a existência simultânea de três
requisitos, quais sejam: “1) a existência de um enriquecimento; 2) que esse enriquecimento se
obtenha à custa de outrem; 3) a falta de causa justificativa”249.
O abuso de direito tem com fundamento legal o artigo 187, do Código Civil
brasileiro, o qual determina que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao
exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela
boa-fé ou pelos bons costumes”250.
Cristiano Chaves Farias e Nelson Rosenveld referem que:
“O abuso do direito é considerado um ato ilícito objetivo pelo novo Código Civil
(art. 187), pois a sua aferição independe da constatação da culpa pela violação formal
de uma norma, sendo suficiente a antijuridicidade da conduta, a violação material
dos fins dados pelo ordenamento jurídico. Em verdade, o abuso do direito como
modo de controle da legitimidade do exercício de direitos subjetivos e potestativos é
uma das vertentes da atuação do princípio da boa-fé sobre as relações
obrigacionais.251”
248
CÓDIGO Civil. [Em linha] Legifrance, 2006. [Consult. 09 de Jun. 2016]. Disponível em
https://www.legifrance.gouv.fr/content/download/1966/13751/.../Code_41.pdf..
249
COSTA, Mário Júlio de Almeida - Direito das obrigações. 12.ª ed. Coimbra: Almedina, 2014, p. 491.
250
CÓDIGO Civil Brasileiro. [Em linha] Planalto, 2016. [Consult. 09 de Jun. 2016]. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.
251
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil: obrigações. 10.ª ed. Salvador:
JusPodivm, 2016, p. 551.
252
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 191.
83
considerar a finalidade social do direito subjetivo e, ao utilizá-lo desconsideradamente, causa
dano a outrem”253.
Por outro turno, entende-se que o abuso de direito não pressupõe, necessariamente,
um caráter emolutivo - entendido como aquele vazio, sem utilidade para quem o praticou.
Pode ser, assim, que derive uma desvantagem a terceiro, ou mesmo sem qualquer
desvantagem para as partes, venha a ferir os princípios de probidade e, em especial, a função
econômico-social do contrato254.
Nesse sentido, percebe-se que o abuso de direito não se relaciona a um caráter
econômico necessariamente com relação à vantagem de um em desfavor de outro, ainda que
possa haver reflexo dessa natureza de forma indireta. A questão paira sobre o exercício
indistinto de determinado direito, sem amparo jurídico, de tal forma que possa deixar outros
em situação prejudicada. A onerosidade excessiva para sua existência não se impõe como
requisito.
Destarte, é uma violação, a priori, à ordem jurídica, que pode ou não causar dano a
outro de forma direta, ou ainda, aos alheios envolvidos na relação jurídica polarizada.
Interessa, portanto, para a configuração do abuso de um direito, que esteja
desvirtuada a finalidade primeira da lei, mesmo que – repisa-se - não haja vantagem para o
descumpridor ou consequências manifestadamente desvantajosas aos outros, sejam ou não
partícipes do evento.
253
RODRIGUES, Silvio - Direito Civil. Responsabilidade Civil . 20.ª ed. Vol. 4. São Paulo: Saraiva, 2003, p.
45.
254
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012.
84
Portanto, “não compadece o direito contemporâneo com a manifesta desproporção
entre o inadimplemento de pequena gravidade e a gravíssima sanção imposta ao devedor, em
manifesta afronta aos princípios de boa-fé objetiva e do equilíbrio contratual”255.
Oportuno, aqui, dizer que Lucas Gaspar de Oliveira Martins pontua que “todo e
qualquer inadimplemento injustificado é causa de responsabilidade, mas não qualquer
inadimplemento que é causa de resolução”256.
Renan Lotufo elucida que:
“(...) ações contrárias às situações de confiança, ou contra situações protegidas pelo
Direito, são disfuncionalidades perante o sistema. Todas as hipóteses estudadas
revelam que as soluções do sistema na proteção da confiança, da aparência, do relevo
de situações jurídicas materiais, para superar o formalismo, em coibir o abuso de
direito, têm como fundamento a boa-fé.257”
Andrea Cristina Zanetti trata que, com relação ao descumprimento ínfimo, não há
que se cogitar da onerosidade excessiva, para a configuração do enriquecimento ilícito e do
abuso de direito, basta a manifestação da violação ao aspecto da boa-fé258.
Nesse diapasão, a principiologia tem papel fundamental na aplicação da teoria do
adimplemento substancial, porquanto o conceito de ínfimo descumprimento é vago e
subjetivo, considerando-se que o pode ser grave para um, pode não ser, para outro.
Os valores éticos intrínsecos à utilização da dita teoria no sistema jurisdicional não
permitem que alguém se sirva de seu direito exclusivamente para causar dano a outrem.
Para a correta aplicação da teoria do adimplemento substancial, há de se observar o
estrito respeito aos princípios que vedam o enriquecimento ilícito e o abuso de direito, de tal
sorte que apenas se privilegiam os descumprimentos dados como mínimos quando
devidamente aferidos com base no princípio da boa-fé e da função social do contrato.
255
BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Apelação Cível Nº 4060064200/SP, rel. Des. Francisco
Loureiro. Publicado em 19/10/2006.
256
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira - Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das
obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 88.
257
LOTUFO, Renan - Código Civil comentado - Obrigações - Parte Geral. Vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2003,
p. 507.
258
ZANETTI, Andrea Cristina - Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012.
85
4. HIPÓTESES LEGAIS DE APLICAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO
SUBSTANCIAL.
Diante das circunstâncias do caso concreto, imperiosa é a invocação da teoria do
adimplemento substancial consagrada pela doutrina e pela jurisprudência contemporânea.
Já existem ordenamentos jurídicos que expressamente amparam normas que aludem à
Teoria do Adimplemento Substancial.
No Direito Italiano, o artigo 1.455, do Codici Civile italiano; no Direito Português, o
artigo 802, nº 2, do Código Civil, e; no Direito Francês, pelo artigo 1.184, do Código Civil
(Code).
À baila, o supracitado artigo na legislação civil italiana:
“Art. 1455. (Importanza dell'inadempimento). Il contratto non si puo' risolvere se
l'inadempimento di una delle parti ha scarsa importanza, avuto riguardo all'interesse
dell'altra.259”
259
CODICE Civile Normativva: n. 262. [Em linha] Normativa, 1942. [Consult. 09 de Jun. 2016]. Disponível em
http://www.normattiva.it/uri-res/N2Ls?urn:nir:stato:regio.decreto:1942-03-16;262.
260
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira - Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das
obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 94.
261
CÓDIGO Civil [Em linha] Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa, 2015. [Consult. 09 de Jun. 2016].
Disponível em http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=775&tabela=leis&so_miolo.
86
Citado o artigo 802, nº 2, do Código Civil, João de Matos Antunes Varela, comenta
sobre a expressa previsão da norma na legislação portuguesa:
“O novo Código Civil reflecte já a influência das correntes francamente superadoras
do positivismo jurídico, não só no regime de alguns dos contratos em especial, mas
também na aceitação explícita de algumas soluções gerais de forte sentido inovado,
entre as quais cumpre destacar as seguintes:
A consagração do princípio ético-jurídico da boa fé em termos de grande amplitude,
de modo a abranger tanto a preparação e formação dos contratos (art. 227.º)(1), como
o cumprimento da obrigação e exercício do direito correspondente (art. 762.º);
A condenação explícita do abuso de direito, definido em termos de grande
maleabilidade (art. 334.º);
A imposição do dever de restituir em todas as situações de enriquecimento sem causa
(arts. 473.º e segs.);
O reconhecimento das obrigações naturais, como figura de carácter geral (art. 402.º);
A possibilidade de resolução ou modificação do contrato, por alteração anormal das
circunstâncias vigentes ao tempo da sua celebração em que as partes tenham fundado
a decisão de contratar (arts. 437.º e segs.);
O alargamento do círculo dos negócios usurários, punidos com a anulabilidade do
acto (art. 282.º);
A possibilidade de redução do montante da indemnização abaixo do valor do dano,
quando a responsabilidade extracontratual se funde na mera culpa do agente (art.
494.º);
A condenação indiscriminada das cláusulas de exclusão ou limitação da
responsabilidade do devedor (art. 809.º).262”
Pelo que se verifica, segundo o Código Civil italiano, o contrato não será resolvido se
o inadimplemento de uma das partes tiver escassa importância, considerado o interesse da
outra parte. O Código Civil francês prescreve no mesmo sentido, impondo a analise das
circunstancias sem que a rescisão contratual se opere de pleno direito em face do devedor.
Hodiernamente, como visto no capítulo anterior, a Teoria do Adimplemento
Substancial, embora utilizada no julgamento dos casos postos sob a tutela jurisdicional, ainda
262
VARELA, João de Matos Antunes - Das obrigações em geral. 10.ª ed. Vol. I. Coimbra: Almedina, 2015, p.
30-32.
263
CÓDIGO Civil. [Em linha] Legifrance, 2006. [Consult. 09 de Jun. 2016]. Disponível em
https://www.legifrance.gouv.fr/content/download/1966/13751/.../Code_41.pdf.
87
não teve sua positivação concretizada em muitos dos ordenamentos pátrios, sendo, mesmo
quanto há previsão normativa, dadas as peculiaridades de cada caso, imprescindível que seja
realizada a análise dos litígios sob a ótica dos princípios invocados e, primordialmente, sendo
inexorável, o acompanhamento da construção jurisprudencial.
264
CÓDIGO Civil Brasileiro. [Em linha] Planalto, 2016. [Consult. 09 de Jun. 2016]. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.
88
expresso, a parte lesada pelo inadimplemento pode (não deve) pedir a resolução,
acrescentando ainda uma inovação importante na inserção da oração “se não preferir
exigir-lhe o cumprimento”265.
O Direito brasileiro, na aplicação da teoria aos casos concretos postos sob a tutela
jurisdicional, tendo em vista a finalidade de pôr fim aos conflitos cujo objeto tem por
discussão a relação jurídica decorrente de um liame contratual, passou a entender pela
impossibilidade de resolução contratual por incumprimento quando for aferido que a mora
havida é irrelevante em face da parte adimplida, não cabendo, assim, a extinção do pacto, mas
sim, a aplicação de outros efeitos jurídicos, com a possibilidade de cobrança ou execução
judicial, bem como das perdas e danos a serem indenizadas.
Os tribunais regionais brasileiros, como também o Superior Tribunal de Justiça,
vêm consolidando o entendimento no sentido da não extinção do contrato e tão somente de
cobrança efetiva do cumprimento da obrigação, uma vez satisfeita boa parte do contrato, sob a
égide dos princípios consagrados no ordenamento civil brasileiro, quais sejam, da vedação ao
abuso de direito, da função social dos contratos, da boa fé objetiva, e a vedação ao
enriquecimento sem causa, respectivamente, insculpidos nos artigos 187, 421, 422 e 884266.
Em razão disso, o Conselho da Justiça Federal editou, em 2006, o Enunciado 361
CJF/STJ, afirmando que “o adimplemento substancial decorre dos princípios gerais
contratuais, de modo a fazer ponderar a função social do contrato e o princípio da boa-fé
objetiva, balizando a aplicação do art. 475”267.
O dispositivo legal em apreço determina que “a parte lesada pelo inadimplemento
pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em
quaisquer dos casos, indenização por perdas e danos”268.
265
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira - Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das
obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011.
266
CÓDIGO Civil Brasileiro. [Em linha] Planalto, 2016. [Consult. 09 de Jun. 2016]. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.
267
FEDERAL, Conselho da Justiça - IV JORNADA DE DIREITO CIVIL – Enunciados aprovados. [Em linha]
Conselho da Justiça Federal. [Consult. 09 de Jun. 2016]. Disponível em
http://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/472..
268
CÓDIGO Civil Brasileiro. [Em linha] Planalto, 2016. [Consult. 09 de Jun. 2016]. Disponível em
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm.
89
Portanto, o citado artigo trata do incumprimento voluntário ou culposo do
contrato, prescrevendo que a parte lesada pelo inadimplemento pode optar pela exigência do
cumprimento forçado da obrigação ou a sua resolução por perdas e danos.
O Superior Tribunal de Justiça, no ano de 2004, começou a interpretar o jovem
Código Civil de 2002, o qual entrou em vigor no início de 2003, julgando, inicialmente,
demandas judiciais envolvendo a busca e apreensão de veículos, adquiridos por meio de
contratos de compra e vendas com reserva de domínio, mantendo as decisões de instâncias
inferiores que impossibilitavam a retomada do bem, em face apenas de parte de
descumprimento e, via consequência, extinguiram as relações contratuais;269.
Posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça, responsável por julgar, em última
instância, lesões às normas de caráter infraconstitucional, ao analisar case que versava sobre
um contrato de leasing para a aquisição de 135 (cento e trinta e cinco) caminhões, cuja
devedora era uma transportadora de mercadorias, considerou que os bens objeto do contrato
eram destinados à atividade-fim da contratante e, havendo quitação de 30 (trinta) das 36 (trinta
e seis) prestações, entendeu não ser razoável a reintegração da credora na posse dos veículos,
porém ressalvou que estava “preservado o direito de crédito, limitando-se apenas a forma
como pode ser exigido pelo credor, que não pode escolher diretamente o modo mais gravoso
para o devedor, que é a resolução do contrato”270.
Nesses termos, a jurisprudência pátria passou a estabelecer padrões numéricos,
mediante a previsão de percentuais sobre os quais estaria configurado o inadimplemento
mínimo e parcial diante do todo, cem por cento, do contrato, seguindo a doutrina italiana,
como explicitado por Lucas Gaspar de Oliveira Martins:
“Por esse motivo a doutrina italiana, ao se debruçar sobre a discussão do parâmetro
adequado à valoração do inadimplemento, com relação ao art. 1.455 do Código
Civile, afastou o critério subjetivo, que leva em consideração a vontade hipotética do
contratante não inadimplente, adotando para esse fim o critério objetivo que leva em
conta a economia do contrato, a globalidade d relação existente e o desequilíbrio
ocasionado pelo descumprimento, deixando de lado qualquer valoração subjetiva que
o contratante possa fazer do seu interesse.”271
269
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça - AG 607406/RS, rel, Des. Fernando Gonçalves. Publicado em
09/11/2004.
270
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça - Recurso Especial nº 1200105/AM, rel, Des. Paulo de Tarso
Sanseverino. Publicado em 19/06/2012.
271
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira - Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das
obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 94.
90
Entretanto, a atividade jurisdicional tem variado bastante, já que cada regional
possui um entendimento diverso. Há uma faixa elástica que fixa, ser cumprimento substancial,
o adimplemento desde 63,58% (sessenta e três vírgula cinquenta e oito porcento) do contrato
integral272, estendendo, em outros tribunais para números bem perto da totalidade.
Também não é incomum que certos julgadores considerem não haver
adimplemento substancial quando o incumprimento está inserido dentro da faixa entendida
para aquele regional, sendo fácil constatar controversas jurídicas dentro de um mesmo órgão
julgador, como é o caso do julgado abaixo:
“Nas hipóteses em que a extinção da obrigação pelo pagamento esteja muito próxima
do final, exclua-se a possibilidade de resolução do contrato, permitindo-se tão-
somente a propositura da ação de cobrança do saldo em aberto. In casu, não ocorre a
proximidade do final das prestações avençadas, pois, apenas 67,52% do débito foi
pago.273”
Pelo que se vê, não se sabe quais os fundamentos que levam determinados
julgadores a proferir decisões divergentes. Essa ausência de critérios objetivos e claros que
delimitem o que seria ou não um adimplemento substancial do contrato, deixa demasiada
margem aos subjetivismos do juiz, criando um ambiente de incerteza jurídica ao
jurisdicionado, bem como descrédito no Poder Judiciário.
272
BRASIL, Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão - Apelação Cível Nº 30.768/MA, rel. Des. Marcelo
de Carvalho Silva. Publicado em 11/09/2013.
273
Brasil, Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão - Apelação Cível Nº 23.61/MA, rel. Des. Marcelo de
Carvalho Silva. Publicado em 23/05/2014.
91
vier a arguir a resolução do contratual, o devedor faria jus a sua manutenção, sob a
justificativa de que pagou parte considerável do contrato? Parece que não. Em que pese não
esteja evidenciada, quantificadamente, a má-fé, há uma ausência de boa-fé por parte do
devedor.
O entendimento que vigora é que o credor, no que concerne ao inadimplemento
retardatário da obrigação de dar em pecúnia está ressarcindo o credor quando paga o montante
acordado com os consectuários, também pecuniários, decorrentes de sua mora.
Lucas Gaspar de Oliveira Martins traz, no bojo de sua dissertação a respeito do
assunto, que a teoria do adimplemento substancial não pode amparar determinadas situações,
tal qual a do devedor costumeiro, que sofre, em geral, apenas as sanções pecuniárias legais em
razão de seu inadimplemento274.
Afinal, essa teoria não pode privilegiar o mau pagador, eis que tal comportamento
agride o princípio da boa-fé objetiva.
Outra hipótese que merece especial atenção é de cunho casuístico.
Um determinado credor possui uma quantia pendente de recebimento e tal valor
representa justamente porcentagem enquadrada na faixa controvertida pela jurisprudência
sobre o que seria considerado adimplemento substancial. No caso de o credor ajuizar uma
ação de resolução contratual pela inadimplência do devedor, aquele estaria correndo um risco
de ter sua ação julgada improcedente e, ainda ter que arcar com o ônus decorrente da
sucumbência, caso seu feito fosse julgado por um magistrado que entendesse que houve
incumprimento mínimo do contrato.
Portanto, a problemática da questão é que a aplicação da teoria aos casos concretos
implica em configurar um adimplemento de relevância e, tal necessidade de análise casuística,
não pode levar em consideração apenas critérios quantitativos, ou seja, qual a porcentagem
adimplida pelo devedor.
Visando mitigar problemas como os acima relatados, deve-se passar a inspeção do
adimplemento substancial por dois enfoques, um objetivo e outro subjetivo. O primeiro
adotando um critério matemático para o incumprimento da relação jurídico/contratual
274
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira - Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das
obrigações. São Paulo: Saraiva, 2011.
92
pertencentes às partes, enquanto o segundo visa apreciar o comportamento dos envolvidos no
contrato.
De fato, comenta Lucas Gaspar de Oliveira Martins:
“É importante delinear exatamente os critérios para se valorar a gravidade do
descumprimento, uma vez que se trata de expressão de conteúdo vago e impreciso,
que merece atenção especial. Sem esta questão corretamente delineada não se pode
verificar a substancialidade do adimplemento ou, contrariamente, a insignificância do
inadimplemento, motivo pelo qual se estende fundamental levantar todas as
características do caso concreto, isto é, a situação ocorrida, os interesses e a conduta
das partes, assim como todas as demais circunstâncias que no caso se mostrem
relevantes.275”
275
MARTINS, Lucas Gaspar de Oliveira - Mora, inadimplemento absoluto e adimplemento substancial das
obrigações. São Paulo: Saraiva, 201, p. 93-94.
93
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a necessidade de um convívio social organizado e a necessidade de movimentar
bens para suprir as necessidades humanas, surgiram as relações contratuais.
Quando determinada pessoa se propõe a firmar um negócio tem, por certo, o alcance
de um resultado. Em que pese a insegurança e a desconfiança que possa haver quanto à
existência posterior de fatos imprevisíveis, supõe-se que os contraentes envolvidos estão
imbuídos de boa-fé e pretendem cumprir as prestações assumidas de forma integral e exata.
O contrato, por conseguinte, chancela os objetivos pretendidos, bem como os riscos
da relação e as penas contratuais a serem aplicadas na hipótese de descumprimento, sendo
certo que o córtex do contrato é justamente alcançar o acertado entre as partes, uma troca de
obrigações, direito e deveres, prestações e contraprestações que guardem um mínimo de
equilíbrio.
Fatos corriqueiros ou inesperados, entretanto, podem vir a surgir no curso da
execução do contrato, e, em muitas negociações, são formalizadas cláusulas assecuratórias que
preveem a equação que deva ser observada para reequilibrar a situação originária alterada no
caso de certas imprevisões.
Mesmo com a previsão de cláusulas dessa espécie, são múltiplos os fatos que podem
vir a ocorrer e a incidir na relação contratual, abalando o estado em que ela se encontra, e, de
tal maneira, resta alterado o equilíbrio antes nela guardado.
Dito isto, sabendo-se que as relações jurídicas traduzem uma relação humana
originada de interesses igualmente humanos e convergentes dos contratantes, a ruptura do
equilíbrio também pode vir a alterar tais pretensões, de tal sorte que uma, por um lado, venha a
querer o rompimento do contrato e a outra, peça a sua manutenção, apurados os prejuízos que
se deram no curso do descumprimento.
Nesse panorama, com efeito, surgiu a Teoria do Adimplemento Substancial, que,
amparada na boa-fé objetiva, bem como no princípio da função social dos contratos, e ainda
na vedação do abuso de direito e no enriquecimento sem causa, analisa, quando o devedor
incorre em mora, o cumprimento do contrato em seu aspecto essencial, não permitida a
resolução do vínculo se já houver cumprimento significativo.
94
O adimplemento substancial atua, em tese, como instrumento de equidade diante da
situação fático-jurídica carecedora de intervenção judicial, permitindo soluções razoáveis e
sensatas, conforme as peculiaridades do case.
Entretanto, embora o Direito, seja pela letra da lei, seja pela construção
jurisprudencial, contemple a solução ao caso concreto, muitas vezes a aferição despenca no
mundo do subjetivo, e sua valoração impede na análise das circunstâncias casuísticas,
envolvendo também aquilo que cada julgador entende como certo e relevante.
De logo, ao se estudar o Direito das Obrigações, palco das discussões relacionadas às
trocas comerciais, observou-se que as noções jurídicas vinculadas a tal ramo do Direito nunca
foram uma unanimidade, encontrando muitas divergências técnicas, embora muitas não
tenham qualquer significância pratica, conforme abordado.
Todavia, tal divergência decorre do fato de que o Direito apenas vem firmar súplicas
sociais, que mudam de acordo com os aspectos culturais e políticos, de tal sorte que já se vê a
conjuntura efervescente das opiniões jurídicas em que se origina a teoria do adimplemento
substancial. Também, as polêmicas doutrinárias comprovam que a presença do aspecto
humano é inerente à construção da técnica jurídica.
Estas questões, por si e a priori, já denotam a dificuldade de uniformização da
matéria.
Nesse quadro, tão somente é pacifico que, nas hipóteses em que a extinção da
obrigação pelo pagamento esteja muito próxima do final, exclui-se a possibilidade de
resolução do contrato, sendo cabível apenas a propositura da ação para a cobrança do saldo
remanescente, acrescido dos encargos pecuniários decorrentes.
É fato que quando os contratantes se reúnem para dispor de seus interesses não
imaginam que possam existir determinadas anomalias. Nesse passo, a confiança que permeou
a relação obrigacional no momento da concretização do pacto deixa de ser a mesma diante do
inadimplemento deflagrado.
Além disso, o credor, frente à expectativa de um resultado perfeito tal como
imaginado, vê-se frustrado. Quando as partes, então, passam para o momento de conflito,
advindo da alteração do equilíbrio do contrato, elas também permeiam, na pretensão de
romper ou manter o liame, as angústias e as frustrações que dali se originaram.
95
Tais sentimentos humanos são de dimensão variável, posto que cada um tem um
sentido próprio de valoração.
Portanto, mensurar os danos patrimoniais e extrapatrimoniais, e reequilibrar o estado
das coisas, tal qual na origem, não é tarefa fácil ao julgador, que também imprime, nessa
resolução, aspectos pessoais de valoração.
Ademais, como se não bastasse, atender à satisfação de uma parte pode acarretar, por
via transversa, um prejuízo ao outro envolvido.
A matéria que se encontra controvertida no âmbito judicial é um ato reflexo dos
dilemas sociais. Os julgadores encontram as dificuldades próprias de se resolver a
problemática casuisticamente, já que cada questão contém itens próprios, circunstâncias
peculiares, principalmente quando se constatam condições subjetivas que norteiam o
comportamento das partes, responsáveis por caracterizar o valor da boa-fé.
A doutrina e a jurisprudência, por essas razões, ainda se encontram sem parâmetros
rigorosos e objetivos para que a questão se torne matéria pacificada, de modo que não se sabe
qual inadimplemento afigura-se realmente significativo, apto a causar a resolução.
Sem suporte teórico, a jurisprudência brasileira invoca a teoria do adimplemento
substancial apenas em abordagem quantitativa, quando é possível de forma aritmética -
parâmetro que também se encontra controverso - aferir se o contrato está próximo do resultado
esperado e, assim, o descumprimento enquadra-se como ínfimo.
A questão – enfatiza-se – em que se encontra o cenário dessa controvérsia jurídica é a
analise que deve ser feita sob o aspecto qualitativo, afastando-se a ocorrência, por exemplo, de
situações em que se constatem moras sucessivas, purgadas reiteradamente pelo devedor, em
claro abuso de direito.
Sendo certo que é necessário estabelecer parâmetros objetivos para que os julgadores
profiram decisões consonantes e, dessa forma, garantir a segurança da ordem jurídica, não se
vislumbrou, até o momento, como fixar critérios precisos em matéria de cunho subjetivo, já
que avaliar a conduta humana é um constante e árduo desafio, que, até o momento, soa
invencível quanto ao tema sob debate.
96
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