E-Book Questões Raciais - Educação, Perspectivas, Diálogos e Desafios

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Manuel Alves de Sousa Junior

Tauã Lima Verdan Rangel


(Organizadores)

QUESTÕES RACIAIS
Educação, Perspectivas,
Diálogos e Desafios

2022
© Dos organizadores - 2022

Editoração e capa: Schreiben


Imagens da capa: Jean-Baptiste Debret - arquivo dos organizadores.
Revisão: os autores
Revisor técnico: Manuel Alves de Sousa Junior

Conselho Editorial (Editora Schreiben):


Dr. Adelar Heinsfeld (UPF)
Dr. Airton Spies (EPAGRI)
Dra. Ana Carolina Martins da Silva (UERGS)
Dr. Douglas Orestes Franzen (UCEFF)
Dr. Eduardo Ramón Palermo López (MPR - Uruguai)
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Dr. Glen Goodman (Arizona State University)
Dr. Guido Lenz (UFRGS)
Dr. João Carlos Tedesco (UPF)
Dr. José Antonio Ribeiro de Moura (FEEVALE)
Dr. Leandro Hahn (UNIARP)
Dra. Marciane Kessler (UFPel)
Dr. Marcos Pereira dos Santos (FAQ)
Dra. Natércia de Andrade Lopes Neta (UNEAL)
Dr. Odair Neitzel (UFFS)
Dr. Wanilton Dudek (UNIUV)

Esta obra é uma produção independente dos organizadores. A exatidão das informações,
opiniões e conceitos emitidos, bem como da procedência das tabelas, quadros, mapas e
fotografias é de exclusiva responsabilidade do(s) autor(es).

Editora Schreiben
Linha Cordilheira - SC-163
89896-000 Itapiranga/SC
Tel: (49) 3678 7254
[email protected]
www.editoraschreiben.com

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Q5 Questões raciais : educação, perspectivas, diálogos e desafios. / Organizado-
res : Manuel Alves de Sousa Junior, Tauã Lima Verdan Rangel. – Itapi-
ranga : Schreiben, 2022.
556 p. ; e-book

E-book no formato PDF.


EISBN: 978-65-89963-59-2
DOI: 10.29327/560095

1. Educação. 2. Racismo na educação. 3. Lei n. 10.639/03. 4. Lei


n. 11.645/08. I. Título. II. Sousa Junior, Manuel Alves de. III. Rangel,
Tauã Lima Verdan.

CDU 37: 316.4


Bibliotecária responsável Kátia Rosi Possobon CRB10/1782
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO........................................................................................9
Manuel Alves de Sousa Junior
Tauã Lima Verdan Rangel
PREFÁCIO..................................................................................................12
Manuel Alves de Sousa Junior

UNIDADE I – EDUCAÇÃO E SUAS PERSPECTIVAS

“A CARNE MAIS BARATA DO MERCADO É A CARNE NEGRA”:


COMO RESSIGNIFICAR A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE
ALUNAS/OS NEGRAS/OS, NO ESPAÇO ESCOLAR, POR MEIO DE
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DECOLONIAIS?..........................................15
Adejan Santos Dias Batista
Érica Santos Dias Batista
Luan Menezes dos Santos
COMPOSIÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E EDUCACIONAIS NO BRASIL
COLÔNIA, IMPÉRIO E REPÚBLICA: DIFERENTES MOLDES,
ESPAÇOS E TEMPOS DE CONSTITUIR ENSINO E
APRENDIZAGEM.....................................................................................24
Silas Lacerda dos Santos
Lizete Caires Barros Martins
HISTÓRIA DA ÁFRICA ALÉM DOS LIMITES DA IMAGINAÇÃO.........40
Patrícia da Silva Soares
O ENSINO DE HISTÓRIA PAUTADO NA CULTURA
AFROBRASILEIRA....................................................................................56
Jackson Adair Gonçalves
O BRINCAR DO QUINTAL E DO TERREIRO: POSSIBILIDADES
DA BNCC NA EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
NA EDUCAÇÃO INFANTIL .....................................................................66
Débora Magalhães de Souza França
PELO FIM DO RACISMO NEGRO E INDÍGENA:
POSSÍVEIS ABORDAGENS A PARTIR DA BNCC....................................78
Gustavo dos Santos Souza
Daniele Gonçalves Colman
TEORIA ANTIRRACISTA CRÍTICA PARA DESCOLONIZAÇÃO
DO ENSINO DA HISTÓRIA INDÍGENA...................................................89
Ana Catarina Zema
Peterson Mendes Martins
EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES RACIAIS: REFLEXÕES SOBRE
AÇÃO DE GESTORES E PROFESSORES ACERCA DAS
QUESTÕES RACIAIS NA ESCOLA.........................................................101
Malsete Arestides Santana
Nilvaci Leite de Magalhães Moreira
Rosana Fátima de Arruda
A POPULAÇÃO NEGRA NO LIVRO DIDÁTICO NO ESTADO DO
MARANHÃO NA CONTEMPORANEIDADE.........................................109
Marcos José Soares de Sousa
Caroline Bandeira de Sousa
Elivelton Costa Oliveira
UMA EXPERIÊNCIA EM SALA DE AULA, O SUBDIAGNÓSTICO
DE AUTISTAS NEGROS: UMA RELAÇÃO ENTRE RACISMO
E CAPACITISMO......................................................................................120
Amanda Santiago Souza Melo
Robson Batista Moraes
REFLEXÕES SOBRE A TRAJETÓRIA FORMATIVA DOCENTE
E O LUGAR DA INTERCULTURALIDADE: APRENDIZAGENS
E DESAPRENDIZAGENS........................................................................136
Andrea Lugo Nectoux
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E AS LEIS 10.639/03 E 11.645/08:
POTENCIALIDADES E DESAFIOS NA EDUCAÇÃO ESCOLAR.........148
Thays Leal Silva
EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: O DISCURSO DA
INCLUSÃO E A MARGINALIZAÇÃO DA POPULAÇÃO NEGRA.......163
Domingos Dutra dos Santos
Guilherme Aguiar Gomes
Wraydson Silva Sousa
ENSINO DE HISTÓRIA E AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS:
SABERES E FAZERES NA ESCOLA QUILOMBOLA
MARIA ELOISA BATISTA.......................................................................184
Rafaela Matos de Santana Cruz
Letícia Fumiko Kudo
A (DES)EDUCAÇÃO DOS NEGROS E NEGRAS:
POR UMA EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
NO CURRÍCULO ESCOLAR....................................................................200
Tatiana Marques da Silva Parenti Filha
Graziela Oliveira Neto da Rosa
PELE PRETA: O ESTIGMA PARA A CONCRETIZAÇÃO
DO DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO.....................................211
Braulio Brasil de Almeida
Luciana de Oliveira Fumian Brasil
Carolina Esposte Campos
RESPONSABILIDADE SOCIAL DA UNIVERSIDADE COMO
CONTRIBUIÇÃO PARA A CIDADANIA.................................................224
Neuza Maria de Siqueira Nunes
Juliana da Silva Gomes
Artur de Siqueira Nunes Reis
OS ESTUDOS CRÍTICOS DA BRANQUITUDE E A POLÍTICA
DE COTAS RACIAIS NO BRASIL............................................................235
Marisa Fernanda da Silva Bueno
UM PASSO A MAIS: PENSAR O IMPLEMENTO DA POLÍTICA
DE COTAS NO ÂMBITO DOS CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO
STRICTO SENSU DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE
FLUMINENSE NO PERÍODO DE 2020-2021, A PARTIR DE UMA
ABORDAGEM QUALITATIVA................................................................248
Douglas Souza Guedes
Tauã Lima Verdan Rangel
A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI DE COTAS NA REDE FEDERAL DE
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL, CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA..........264
Maurício Sousa Matos
Tatyanne Gomes Marques
MENINAS NA CIÊNCIA: INICIAÇÃO CIENTÍFICA
E LITERATURA NEGRA NO IFMA (2018-2021).....................................280
Francisca Márcia Costa de Souza
OS DIÁRIOS DE LEITURA COMO INSTRUMENTO PARA O
LETRAMENTO ANTIRRACISTA: DIALOGIA E SUBJETIVIDADE.....298
Bruna Carolini Barbosa

UNIDADE II – DIÁLOGOS, DESAFIOS E SUAS PERSPECTIVAS

PRIMÓRDIOS E BASES DA ESCRAVIDÃO NEGRA NO OCIDENTE:


POVOAMENTO DA TERRA, IGREJA CATÓLICA E PORTUGAL.......309
Manuel Alves de Sousa Junior
PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO MÉDICO,
RAÇA E DOENÇAS NO NORDESTE ESCRAVISTA...............................320
Bárbara Barbosa dos Santos
BIO-PERSPECTIVAS (1938): EDUCAÇÃO EUGÊNICA DURANTE O
DECLÍNIO DA EUGENIA NO BRASIL...................................................334
Manuel Alves de Sousa Junior
Angelo Tenfen Nicoladeli
QUESTÕES RACIAIS NO BRASIL: UMA ANÁLISE DOS TERMOS
DISCRIMINAÇÃO, PRECONCEITO E RACISMO..................................347
Daniel Bergue Pinheiro Conceição
Márcia Cristina Gomes
RACISMO ESTRUTURAL, FAVELIZAÇÃO E MEIO AMBIENTE:
A PRIVAÇÃO DO ACESSO AO MEIO AMBIENTE URBANO
ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO E A FRAGILIZAÇÃO DO
MOSAICO DA CIDADE...........................................................................359
Welington Cipriano da Silva
Tauã Lima Verdan Rangel
DA ELABORAÇÃO SIMBÓLICA À PRÁTICA DISCRIMINATÓRIA:
O RACISMO INSTITUCIONAL E ESTRUTURAL...................................373
Anselma Garcia de Sales
Airton Pereira Junior
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: PONDERAÇÕES SOBRE
IDENTIDADE E MEMÓRIA DA POPULAÇÃO NEGRA BRASILEIRA....389
Domingos Dutra dos Santos
Guilherme Aguiar Gomes
Wraydson Silva Sousa
CULTURA NEGRA, PATRIMÔNIO E RACISMO:
QUILOMBO DA PEDRA DO SAL...........................................................406
Thamires da Costa Silva
POLÍTICA DE AÇÃO AFIRMATIVA: UMA ARGUIÇÃO BASEADA
NA EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBOLA...........................................422
Fábio José Brito dos Santos
SANGUE RUIM: UMA ANÁLISE DO PRECONCEITO RACIAL
EM HARRY POTTER................................................................................431
Gabriel Felipe da Silva
PAI JOÃO VAI MORRER:
TRISTEZA E ESCRAVIDÃO NA POESIA DE JORGE DE LIMA............446
Livramento Fernanda de Lima Araújo
Claudenice da Silva Souza
TERREIROS DE CANDOMBLÉ NÀGÓ E A PRESERVAÇÃO
DA LÍNGUA YORÙBÁ: USOS E DESCRIÇÃO LINGUÍSTICA................457
Jobson Jorge da Silva
José Emanuel Sebastião da Silva Pereira
SWING E ARMAS: A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO EM
COAL BLACK AND DE SEBBEN DWARFS (1943)........................................468
Inajara Barbosa Paulo
O NOVO NEGRO E O RADICALISMO DO HARLEM: UMA
INTRODUÇÃO A AFRICAN BLOOD BROTHERHOOD (1919-1924).....480
Luan Kemieski da Rocha
O DISCURSO DE ÓDIO RACIAL NOS EVENTOS DESPORTIVOS:
UMA ANÁLISE À LUZ DO DIREITO FUNDAMENTAL À
LIBERDADE DE EXPRESSÃO.................................................................495
Eloy Pereira Lemos Junior
José Arthur Figueiras Deolino
RELAÇÃO ENTRE LINGUAGEM, BRANQUITUDE, RACISMO E
EXPLORAÇÃO DE TRABALHADORAS DOMÉSTICAS NEGRAS E
PERIFÉRICAS NO BRASIL: O CASO MADALENA GORDIANO..........509
Robson Batista Moraes
Amanda Santiago Souza Melo
ERÊ.JPG – INFÂNCIA, NEGRITUDE E REPRESENTAÇÃO:
FOTOGRAFIAS SOBRE CRIANÇAS NEGRAS NO
RECÔNCAVO BAIANO............................................................................525
Fernanda de Souza Santos
INJUSTIÇA HÍDRICA E VULNERABILIDADE SOCIAL:
A PANDEMIA DA COVID-19 NO ÂMBITO DAS COMUNIDADES
MAIS VULNERÁVEIS - A DIGNIDADE EM VERTIGEM......................537
Welington Cipriano da Silva
Anysia Carla Lamão Pessanha
Tauã Lima Verdan Rangel
POSFÁCIO................................................................................................550
Tauã Lima Verdan Rangel
SOBRE OS ORGANIZADORES...............................................................552
APRESENTAÇÃO

As imagens que ilustram a capa deste livro são obras de arte do francês
Jean-Baptiste Debret (1768-1848). Esteve no Brasil de 1816 a 1831 e foi um gran-
de artista do Brasil Joanino e do Primeiro Reinado. Artista reconhecido e pre-
miado na Europa, foi contratado pela coroa portuguesa e, com outros artistas,
deu origem à chamada Missão Artística Francesa no Brasil. Um dos objetivos
dos artistas era fundar a Escola Real de Artes e Ofícios, mas como o contexto
político estava conturbado com a morte de D. Maria I (1816), revoluções em
Pernambuco (1817), Bahia (1821/1823), Pará (1821), dentre outras, além da si-
tuação instável na Europa, o projeto foi sendo adiado, e só em 1826 foi fundada
a Academia Imperial de Belas Artes, Debret atuou como professor até 1831.
Enquanto isso, os artistas franceses desenvolveram outros trabalhos para a Corte
Portuguesa. Debret pintou vários quadros de Dom João VI e, posteriormente,
também, de Dom Pedro I.
Seu livro intitulado Voyage pittoresque et historique au Brésil (Viagem pitores-
ca e histórica ao Brasil), publicado em Paris, de 1834 a 1839, foi “o mais famoso
de todos os livros ilustrados por estrangeiros a respeito do Brasil” (BANDEIRA;
LAGO, 2020, p. 55). Foram 8 anos de trabalho até a publicação do livro, que con-
tou com centenas de imagens representativas do Brasil. Foram quadros à óleo,
aquarelas, esboços diversos a lápis, tinta ou aquarela e gravuras em litografia.
Debret deu atenção especial às três principais classes presentes no Império:
os negros, os indígenas e os colonizadores portugueses, bem como seus costumes
sociais no Rio de Janeiro, então capital do Império. É através desses registros,
e outras missões semelhantes, que a historiografia obteve as melhores fontes de
conhecimento para um melhor entendimento do Brasil da época.
Quando trazemos esses conhecimentos para o campo das questões raciais,
não é diferente. As imagens trazem o cotidiano de negros e indígenas no Brasil
Império e, desse modo, podemos conhecer muito da história destes grupos no
Brasil e, por consequência, a construção das relações de poder, de exploração e
de papeis sociais desempenhados pelos mais diversos segmentos.
Este livro traz 40 capítulos de autores que discorrem sobre os mais va-
riados temas ligados às questões raciais, como, por exemplo, desde a análise de
obras de arte como Harry Potter até as Teorias Raciais do século XIX, como a
eugenia, passando pela legislação de cotas raciais. Nesse sentido, o livro foi divi-
dido em duas unidades.
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

A Unidade I, intitulada Educação e suas perspectivas, traz 22 capítulos


das questões raciais que atravessam a educação de diversas formas. As Leis nº
10.639/03 e nº 11.645/08 são discutidas em abordagens diferentes em alguns
capítulos, bem como as políticas de cotas raciais no Brasil. A Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), o currículo escolar, os processos de ensino e apren-
dizagem, a história da África no contexto escolar, o livro didático, as questões
raciais no ambiente escolar, o letramento antirracista, além de relatos de expe-
riência docente são elementos presentes e contextualizadores da análise promo-
vida nos capítulos da unidade.
A Unidade II, denominada Diálogos, Desafios e suas perspectivas, contém
18 capítulos sobre como as questões raciais dialogam com os diversos aspectos
da sociedade e os desafios enfrentados pelas relações étnico-raciais. Assim, os
capítulos compreendem uma multiplicidades de olhares sobre as questões ra-
ciais, a exemplo de uma organização secreta radical estadunidense de libertação
do povo negro, injustiça hídrica e vulnerabilidade social na pandemia, quilombo
como patrimônio e como política de ação afirmativa, diálogos sobre o início
da escravidão negra no ocidente, eugenia nas primeiras décadas do século XX,
escravidão na poesia, linguística nos terreiros de candomblé, preconceito racial
em filme e produção de conhecimento médico, raça e doenças no período escra-
vista, representação de crianças negras em fotografia, discurso de ódio racial em
eventos desportivos, exploração de trabalhadoras domésticas negras no Brasil,
identidade e memória negra no Brasil, além do racismo estrutural, institucional,
ambiental e em desenhos animados.
A partir de matizes diversificados, heterogêneos e perspectivas crítico-re-
flexivas, os debates promovidos neste livro trazem à tona, enquanto elemento
central a reunir os diálogos entre os autores, os desafios que circundam e lo-
calizam as questões raciais no Brasil. Tal como os capítulos que constituem
as duas unidades em que a obra se encontra organizada, há que se reconhecer
que a temática é complexa e, ao mesmo tempo, multifacetada, compreendendo
os mais diversos segmentos e produzindo uma série de despertamentos que
fazem pensar acerca da construção das relações de poder no Brasil contem-
porâneo, enquanto um projeto de opressão e de exploração de determinados
grupos étnicos.
Desejamos a todos uma boa leitura e que os textos ajudem os leitores a
refletir sobre os mais diversos pontos das questões raciais no Brasil e no mun-
do. A sociedade precisa entender que aprender e discutir sobre esses temas
contribui para um melhor entendimento do mundo contemporâneo, sob vários
aspectos, em prol de um aumento de cultura antirracista universal em detrimen-
to aos muitos tipos de racismo ainda existentes enraizados no seio da socieda-
de. Agradecemos a cada leitor pelo seu tempo, disponibilidade e interesse, e

10
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

convidamos a ajudarem na difusão e compartilhamento desta obra.

Manuel Alves de Sousa Junior


Biólogo, Historiador, Doutorando em Educação pela Universidade de
Santa Cruz, MBA em História da Arte, Professor do IFBA - Campus Lauro de
Freitas. Bolsista PROSUC/CAPES.

Tauã Lima Verdan Rangel


Estudos Pós-Doutorais em Sociologia Política pela UENF.
Doutor e Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais, Bacharel em Direito e
Licenciado em Pedagogia.
Professor da Faculdade Metropolitana São Carlos - Unidade Bom Jesus
do Itabapoana-RJ.

REFERÊNCIA
BANDEIRA, Júlio; LAGO, Pedro Corrêa do. Debret e o Brasil: obra comple-
ta. 6. ed. Rio de Janeiro: Capivara, 2020. 720 p.

11
PREFÁCIO

O tema desta obra - Questões raciais - é cada dia mais necessário para ser
debatido em todos os ambientes possíveis e imagináveis, visto que nosso país é
atravessado por um racismo estrutural que percorre e atua em todos os lugares,
em todas as classes sociais, em cada esquina do Brasil.
Próximo da data limite de fechamento dos capítulos desta obra, a mídia
noticiou mais um caso de violência contra negros no país: A morte do congolês
Moïse Mugenyi Kabagambe de 24 anos. Ele foi em um quiosque na praia da
Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, cobrar o pagamento em atraso de dias traba-
lhados no local e foi espancado até a morte por alguns homens. Moïse fugiu de
conflitos armados na República Democrática do Congo em 2011. Mais um caso
de racismo e violência contra pretos e pobres que vai entrar para as estatísticas.
Será que se fosse um jovem branco, o desfecho seria o mesmo? Fica a reflexão!
Os agressores, também negros, ajudam a refletir o racismo estrutural do nosso
país. 
Moïse era preto, pobre e migrante. Para a estadunidense Judith Butler, são
condições que fazem com que sua vida seja enlutável, ou seja, não seja digna de
luto, digna de uma comoção nacional. O filósofo francês, Michel Foucault, nos
seus estudos sobre biopolítica, trouxe a máxima do biopoder que é “Fazer viver
e Deixar morrer”. Não precisa muito esforço para entender que Moïse se encon-
trava no “Deixar morrer”. Achille Mbembe, a partir dos estudos de biopolítica de
Foucault, cunhou o conceito necropolítica que trouxe o “Fazer morrer”, o fazer
morrer de uns em detrimento de outros, o fazer morrer de uns para o bem viver
de outros. Todos os conceitos destes teóricos dialogam com o racismo e a rotina
diária de pretos e pobres do Brasil. 
Quando pensamos nos povos indígenas não é muito diferente, principal-
mente, em tempos de negacionismo e de retrocessos na legislação e proteção dos
povos originários e suas terras. Atualmente são pouco mais de 800 mil brasileiros
indígenas que resistem e buscam protagonismo na sociedade, mesmo com per-
seguições e genocídios que ocorrem em atritos com garimpeiros, madeireiros e
fazendeiros desde o tempo que estas terras ainda nem eram chamadas de Brasil.
O agro é pop, o agro é tech, o agro é tudo! (contém ironia!)
Moïse não foi o primeiro e não será o último. Na mesma semana da morte
do congolês, Durval foi assassinato com tiros, ao chegar em sua casa, em São
Gonçalo, no Rio de Janeiro, após um vizinho, sargento da Marinha do Brasil,
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

supor que era um ladrão. Eles se juntam à menina Ágatha Félix, na zona norte
também do Rio de Janeiro; ao menino Miguel Silva em Recife; ao menino João
Pedro, em São Gonçalo/RJ; ao indígena Galdino Santos (pataxó-hã-hã-hãe) em
Brasília; à vereadora Mariele Franco, no Rio de Janeiro; e a centenas de outros
corpos invisíveis e enlutáveis que sofrem violências e  são mortos todos os dias
em cada canto do nosso Brasil. Por isso, estes temas precisam ser debatidos e
divulgados em todos os espaços, seja na academia, na militância, na rua, na chu-
va, na fazenda ou numa casinha de sapê, como disse Hyldon de Souza Silva, na
composição imortalizada na voz de Paula Toller da banda Kid Abelha. 
Esta obra está repleta de textos que levam à interlocução das questões ra-
ciais com as mais diversas áreas do conhecimento como eugenia e teorias raciais,
arte, literatura, esportes, educação, história, literatura, meio ambiente, resistên-
cia entre outras. Entendemos que a educação é um dos pilares fundamentais para
galgarmos algum dia a verdadeira (e ainda utópica) democracia racial em detri-
mento da fantasiosa democracia racial cunhada por Gilberto Freyre no clássico
Casa Grande & Senzala de 1933. 

Manuel Alves de Sousa Junior


Historiador, MBA em História da Arte
Doutorando em Educação pela UNISC
Professor do IFBA campus Lauro de Freitas
Bolsista PROSUC/CAPES

13
Unidade i

EDUCAÇÃO E SUAS
PERSPECTIVAS
“A CARNE MAIS BARATA DO MERCADO É
A CARNE NEGRA”: COMO RESSIGNIFICAR A
CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DE ALUNAS/OS
NEGRAS/OS, NO ESPAÇO ESCOLAR, POR MEIO DE
PRÁTICAS PEDAGÓGICAS DECOLONIAIS?
Adejan Santos Dias Batista1
Érica Santos Dias Batista2
Luan Menezes dos Santos3

INTRODUÇÃO/CONTEXTUALIZAÇÃO

A Lei 10.639/2003 foi implantada e implementada, no Brasil, para romper


com as injustiças sociais relacionadas, principalmente, com as discriminações ra-
ciais, por meio de um discurso multiculturalista assimilacionista que fosse capaz
de reconhecer as diferenças e, a partir de então, promover vozes, visibilidades e
valorização da ancestralidade negra no contexto sociocultural. Porém, mesmo
reconhecendo avanços, no sentido de respostas de ações afirmativas compen-
satórias, atribuindo reparações às diferenças sociais, verificou-se que essa não
dizimou problemas de ordem estrutural - injúria racial; concepções de currículos

1 Mestrando em Educação pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC); Especialis-


ta em Ensino de Geografia pela Universidade Cândido Mendes (UCM) e em História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena pelo Centro Universitário (UNINTER); Graduado em
Geografia – licenciatura plena pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC); Gradu-
ando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Santa cruz (UESC); Docente da
educação básica da rede estadual e municipal de Itapebí – Ba; E-mail: adejandias@hotmail.
com; [email protected]; [email protected].
2 Mestranda em História pela Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC); Especialis-
ta em História e Cultura Afro-brasileira pela Faculdade de Tecnologia e Ciência (FTC);
Pós-graduanda em História e Cultura Afro-brasileira e Indígena pelo Centro Universitário
(UNINTER); Graduada em História e Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz
(UESC); graduada em Pedagogia pelo Centro Universitário (UNINTER); docente da edu-
cação básica da rede estadual e municipal de Itapebí – Ba; E-mail: [email protected].
3 Doutorando em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA); Mestre em En-
sino das Relações Étnico-Raciais pela Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB);
pós-graduado em Gestão do Trabalho Pedagógico pela Faculdade do Vale Elvira Dayrell
(FVED), e Inclusão e Diversidade na Educação pela (UFRB), graduado em Pedagogia pela
Faculdade do Sul (UNIME/FACSUL); docente da educação básica da rede municipal de
Itabuna – Ba; E-mail: [email protected].
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

hegemônicos, e de um ensino fundamentado em práticas pedagógicas coloniais.


A persistência de tais problemas, no contexto socioeducacional, se justifi-
ca porque, embora tenha havido avanços sociais importantes, a Lei 10.639/2003
não conseguiu corrigir distorções de ordens porque tais problematizações estão
relacionadas à forma estrutural de como a sociedade se construiu e tem se cons-
truído (no caso, por discursos e concepções que conformam com a desraciona-
lização proposta pela matriz ideológica e teórica do mito da democracia racial).
Logo, a cultura afro-brasileira e indígena, permanece inserida nas narrativas his-
tóricas e eurocêntricas como subalternas. E o negro, mesmo inserido numa so-
ciedade pluriétnica, continua sendo visto, estereotipadamente, por muitos, como
“a carne mais barata do mercado”. Desse modo, a problematização da pesquisa
esteve relacionada com o racismo e as práticas antirracistas.
A partir de então, suscitou o seguinte questionamento: será que alunas (os)
negras (os) são “reconhecidos” como inferiorizados, inclusive com reflexos na
baixa estima educacional, porque seus corpos, sua cor de pele, suas culturas his-
tóricas, são resultado de uma falta de consciência política e histórica, decolonial,
suscitando o contexto da alienação sociocultural? Assim, por vias de estudos di-
recionados às questões das relações étnico-raciais, propôs-se descontruir estereó-
tipos racistas, percebidos no chão da escola, por alunos negros, através de uma
atividade prática pedagógica decolonial, a qual culminou na fomentação de um
projeto que foi inserido na reformulação do PPP (Projeto Político Pedagógico)
da escola, no sentido subsidiar mediações e intervenções que fossem capazes de
ressignificar o reconhecimento das pluralidades étnico-raciais, bem como a va-
lorização identitária do sujeito negro no espaço democrático de construção das
diferenças raciais e sociais.
Em suma, o objetivo do trabalho foi analisar a reverberação dos estigmas
racistas no espaço escolar, e possibilitar o desmonte do racismo institucional e
individual, a partir de uma atividade antirracista, na perspectiva de construção
identitária de novos caminhos para promoção social de alunas(os) negras(os).
Contudo, se fez necessário identificar conteúdos racistas que apareciam no am-
biente escolar, relacionados com a cor de pele, textura de cabelo, traços faciais
etc.; descrever uma prática racista, a partir de uma encenação teatral, e elaborar
um planejamento antirracista, a partir de aspectos relacionados a costumes e
traços culturais específicos de alunos negros da instituição, culminando com a
produção de cadernos de orientação ante hegemônico.

MÉTODO/METODOLOGIA
A fim de atender aos objetivos propostos, o relato de experiência, a par-
tir do aporte metodológico, se fundamentou numa abordagem qualitativa, uma

16
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

vez que estudos, análises e catalogação das informações, relacionadas às ques-


tões subjetivas, pautadas em saberes, costumes, valores culturais de alunas(os)
negras(os), constituíram reflexões importantes para o entendimento da proposi-
ção dos estigmas que marcaram a construção histórica cultural. Para além disso,
a abordagem qualitativa contemplou todo um universo interpretativo natural e
socialmente, por entender que os participantes da pesquisa apresentaram todo
um arcabouço histórico, social e culturalmente contextualizados, a partir de suas
vivências. Conforme Minayo,
a pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preo-
cupa nas ciências sociais com um nível de realidade que não pode ser quan-
tificado, ou seja, ela trabalha com o universo de significados, motivos, as-
pirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais
profundo das relações dos processos e dos fenômenos que não podem ser
reduzidos à operacionalização de variáveis (MINAYO, 1995, p. 22-23).

Assim, essa abordagem de pesquisa permitiu que houvesse o levantamento


de material anti hegemônico, – saberes, costumes e traços culturais, respaldados
nos Direitos Humanos, por meio de uma encenação teatral; entrevista semiestru-
turada, e ideias de observação, enquanto coleta de dados, para que, a partir disso,
fossem sugeridas práticas antirracistas na escola, bem como para professores da
instituição, enquanto possibilidades de conteúdo a serem planejados de forma
interdisciplinar, e que esses se constituíssem caminhos para um planejamento
mais significativo semanal, por unidades, e anual, na tentativa de ressignificar
um currículo que ainda se configura num viés hegemônico.
Enquanto a definição do método, a pesquisa adotou o estudo de caso, por
entender que se trataria de um procedimento que enfatizaria um fenômeno par-
ticular, o qual evidenciaria contextos em múltiplas dimensões, principalmente
os aspectos unitários. A partir desse método, foi possível fundamentar o relato
de experiência na abordagem qualitativa, numa perspectiva de construção do
conhecimento, a partir de um processo, socialmente, possibilitado pela interação
de sujeitos históricos e, culturalmente, construídos. Assim, entende-se que o es-
tudo de caso propiciaria articulação entre as experiências do cotidiano, suas pro-
duções culturais, bem como as formas de interação social, os quais constituem
primazias centrais no bojo da preocupação do pesquisador.
Nesse sentido, Peres e Santos (2005) fazem referências a três pressupostos
básicos que servem como fundamentação metodológica para uma abordagem
qualitativa de estudo de caso:
1 – O conhecimento deve estar em constante processo de construção;
2 – O caso reúne uma multiplicidade de dimensões;
3 – A realidade pode ser compreendida de diversas óticas.
Portanto, no entendimento desses autores, se a compreensão da realidade

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(O rganizadores )

é construída a partir do entendimento de um sujeito histórico que mantém in-


terações sociais, faz-se necessário uma maior aproximação do pesquisador com
essas realidades.
Em relação aos sujeitos da pesquisa, fizeram parte do relato de experien-
cia: dois profissionais, sendo um psicossocial e um professor negro não perten-
cente a unidade escolar investigada (esses dois profissionais participaram da
primeira etapa procedimental – encenação teatral e discussão sobre os Direitos
Humanos); nove professores da turma selecionada e vinte alunos, sendo quator-
ze negros e seis de pele clara, de um total de trinta alunos (essa seleção de alunos
ocorreu por meio de uma amostra não probabilística) em que esses participaram
da primeira e segunda etapa da culminância da atividade. Nesse formato, os pro-
cedimentos metodológicos da investigação se processaram em decorrência da
catalogação, bem como a análise dos dados que foram oportunizados mediante
a entrevista semiestruturada, bem como de ideias de observação, enquanto ins-
trumento de coleta de dados.
Segundo Ludke e André (1986), três métodos de coleta de dados podem
ser utilizados na pesquisa qualitativa: observação, entrevista e pesquisa ou aná-
lise documental. Contudo, dos três métodos citados, dois foram definidos para
subsidiarem a pesquisa: entrevista e ideias de observação. Em relação aos três
tipos de entrevistas – estruturada, semiestruturada e não estruturada, optou-se
pela entrevista semiestruturada, por entender que se trataria de um tipo de en-
trevista mais livre, menos estruturada em que não há imposição de uma ordem
rígida de questões e por se adequar a um método mais eficaz para um tipo de
abordagem qualitativa.
Contudo, a despeito de ideias de observação, esse tipo de instrumento foi
proposto por entender que seria um método de análise visual que permitiria o
pesquisador correlacionar, tanto o ambiente natural, em que um determinado
fenômeno ocorre, quanto o contexto social, numa propositiva de aproximação
da perspectiva dos participantes que seriam investigados.

REVISÃO DE LITERATURA

A desconstrução do discurso colonial por meio de práticas decoloniais

A colonialidade, segundo Quijano (2007), “é a representação do saber pelo


caráter eurocêntrico do conhecimento moderno e, sua articulação, às formas de
dominação colonial/imperial”. Essa categoria conceitual refere -se, especifica-
mente, às formas de controle do conhecimento associadas à geopolítica global
traçada pela colonialidade do poder. Nesse sentido, se a cultura escolar é, em
geral, construída e marcada por uma política hegemônica de caráter monocultu-
ra, invisibiliza as diferenças, a qual termina sendo resultado de uma política de
18
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

negação, silenciamento e apagamento, tanto relacionada à construção identitária


da criança, no seu estado inicial de formação, bem como ao docente no seu pro-
cesso de formação continuada, proposto a desconstruir discursos coloniais por
meio de suas práticas decoloniais.
Contudo, paralelo aos discursos do campo teórico da colonialidade,
Rezende (2019), discorre sobre o entendimento da política decolonial, a defi-
nindo como resultado de políticas de enfrentamentos e ações coletivas. Segundo
a autora, “estudos decoloniais são enfrentamentos de ideologias coloniais e
não constituem teorias, mas sim uma postura de enfrentamento que modifica
a interpretação das teorias coloniais” (REZENDE, 2019, p. 2). E, sabendo-se
que ninguém nasce racista, porém, se torna racista, verifica-se que a consequên-
cia desse entendimento está associada a política do racismo ideológico que se
perpetua, bem como reverbera, no inconsciente coletivo. Diante disso, parte a
necessidade de enfrentamento de práticas/ações coloniais, na tentativa de des-
montar um modelo de educação centralizadora e discriminatória, adotado desde
o período da colonização brasileira. Nesse sentido, as práticas decoloniais não
devem ser entendidas como uma tematização/teorização, mas uma política de
enfrentamento.
Haja vista, quando associa o termo raça ao conceito de nativo, entendi-
do aqui como conceituação populacional desprovida de conceitos acadêmicos,
é possível observar que tal termo se aplica ao entendimento do pertencimento/
lugar/identidade. E, se tratando de Brasil, por exemplo, a ideia de raça está total-
mente vinculada à cor da pele das pessoas e, quando se ouve uma criança dizer:
“eu não gosto da sua cor de pele”, além de ter adotado atitude racista, está en-
tendido o sentimento de pertença e desvalorização do diferente. Nesse contexto,
se observa que o racismo estrutural reverbera no que se entende por racismo in-
dividual, contribuindo e perpassando para o âmbito institucional/escola. Afinal,
segundo Munanga,
Essa é uma condição primordial para que possamos transformar radical-
mente nossa estrutura mental herdada do mito da democracia racial, mito
segundo o qual no Brasil “não existe preconceito étnico-racial e, conse-
quentemente, não existem barreiras sociais baseadas na existência da nossa
diversidade étnica e racial, podemos então enfrentar o segundo desafio de
como inventar as estratégias educativas e pedagógicas de combate ao racis-
mo” (MUNANGA, 1996, p. 18).

Assim, a escola, a qual deveria ser espaço de desconstrução de estereóti-


pos, às vezes termina potencializando a perpetuação de estigmas, seja porque o
racismo estrutural já se configura nos moldes da naturalização e “normalização”,
seja pelo tipo de racismo institucional, estrito ao tipo de política pública imple-
mentada na educação. Segundo Silva e Rosemberg (2008), “os diversos estudos

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(O rganizadores )

sobre preconceito educacional, dentro das escolas, apontam a discriminação ra-


cial e a desigualdade nas relações raciais”. Desse modo, compete à escola o papel
fundamental neste processo de reconhecimento da identidade racial dos alunos,
já que a socialização da criança se amplia com o convívio na educação escolar,
e o espaço escolar é propício para esta socialização. Nesse sentido, Faria e Finco
sinalizam que,
Meninas e meninos sofrem diferentes formas de violências ao longo da
infância e do processo de constituição de suas identidades. Um processo
semelhante acontece no processo de construção do pertencimento racial,
no processo de construção das identidades da criança negra. A pesquisa
sobre relações raciais que abordou a questão da criança negra no espaço
escolar, em sua grande maioria, apresentou problemas de relacionamento
com seus colegas e professores ocasionados pela cor, gerando uma relação
conflituosa e muitas vezes nociva para os que acabam sendo rejeitados por
seus atributos físicos (FARIA; FINCO, 2011, p. 63).

Neste sentido, os problemas relacionados às construções de identidades,


sobretudo de crianças negras, no âmbito educacional, bem como o reconheci-
mento das diferenças de relacionamentos entre colegas e professores, ocasiona-
dos pela cor de pele, diz respeito ao tipo de cultura escolar dominante em ins-
tituições educativas, as quais priorizam o comum, o uniforme, o homogêneo.
E, segundo Hall (2006, p. 13), “A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’:
formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”. Assim,
identidade e diferença tendem a ser naturalizadas, já que são tomadas como fatos
da vida social diante das quais todos devem assumir uma postura de silencia-
mento, conforme a política hegemônica, a qual torna o sujeito objeto do racismo
velado.
Para tanto, a expressão “eu não gosto da sua cor de pele”, entre outras,
constituem falas herdadas de um racismo estrutural, em que a naturalização de
ações, hábitos, falas e pensamentos, já se configuraram rotineiras no chão de es-
colas, e têm promovido, direta ou indiretamente, a segregação ou o preconceito
racial.
Contudo, há uma necessidade de que sejam oportunizadas ações de prá-
ticas pedagógicas decoloniais, no contexto educacional, a fim de romper ou de-
sestruturar injúrias raciais embutidas nas escolas. E, ao se pensar numa proposta
de intervenção, pensa-se em apostar em aportes teóricos do multiculturalismo in-
terativo, também denominado de interculturalidade (CANDAU, 2009), na pers-
pectiva de rompimento de padrões segregacionistas propostos pela abordagem
assimilacionista e diferencialista.

20
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

RESULTADOS E DISCUSSÕES

O relato de experiencia aconteceu numa escola da rede pública estadual,


do município de Ilhéus – Ba, em uma turma do nono ano do ensino fundamental
– anos finais, a qual continha um maior número de alunos negros. A atividade
antirracista contou com a participação de dois profissionais, para que tais pudes-
sem participar da proposta e, com isso, contribuir com o desfecho: um psicos-
social não negro, e um professor negro que não atuasse na própria instituição de
ensino, o qual contracenou com os alunos, enquanto o psicossocial analisou as
condutas e falas, conduzindo ao processo de ideias de observação; foram fomen-
tados roteiros para as entrevistas, os quais continham frases racistas, e também
foram estipulados dois minutos, para cada aluno, a fim de que esses fizessem as
leituras acerca das frases que direcionariam a contracena. As frases foram me-
morizadas, por eles, e, após, reverberaram no momento que contracenaram com
o profissional.
Para isso, foram estabelecidas duas etapas procedimentais: em primeiro
momento, a sala foi organizada em círculo e, à frente do quadro, o professor se
manteve sentado, defronte para os alunos selecionados (negros e não negros);
foi entregue, a esses, roteiros, os quais constaram frases racistas: “eu não gosto
da sua cor de pele; “seu cabelo parece uma esponja”, “a carne mais barata do
mercado é a carne negra”, “só podia ser negro”, “negro tem que sofrer mesmo”,
“da cor do pecado”, entre outras. Nesse momento, alguns alunos, após ter lido
as frases, se recusaram a falar para o professor o que leram. A partir de então, o
psicossocial indagou: “Por que não quer ler”? “Não entenderam”? “Quer reler,
a fim de rever o que não entendeu”? “Por que não”? “Você acha errado o que
leu”? “Por que”? “Quem você acha que escreveu essa frase”? “Como você se
sente dizendo essas frases para você mesmo e/ou um negro”? “Para você, o que
é preconceito”? “Você já viu, em algum lugar, essas frases”? “Você acha que seria
mais fácil ler esse texto para mim que não sou negro”? Alguns alunos disseram
que não. Nesse momento, o psicossocial perguntou: “Por que não”?
A partir de então, os alunos externaram seus receios, medos, ou mesmo
experiências já vividas – sendo o causador ou receptor de injúrias racistas. Assim,
o psicossocial e o professor participante da encenação teatral, explanaram sobre
os Direitos humanos, referenciando a diversidade racial e cultural, e o entendi-
mento a respeito do que seja uma sociedade pluriétnica.
Em relação a segunda etapa, foi produzido um material gráfico – cader-
no de orientação, o qual, a partir de relatos de experiências de práticas racis-
tas e antirracistas, a escola pôde contar com a contribuição da produção para
todo o corpo docente da instituição, a fim de que, através de seus planejamentos
diários, semestrais, anuais, contribuísse para o exercício de práticas decoloniais,

21
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

respaldadas numa política de enfrentamento contra o tipo de racismo estrutural,


institucional e individual tão presente no âmbito educacional.
A construção desse material ante hegemônico se deu a partir da composi-
ção musical da artista/cantora Elza Soares – a carne, bem como a participação
de todos os professores e alunos da turma em lócus. Para isso, foram definidas
duas aulas (cada uma contendo um tempo de cinquenta minutos); os profes-
sores orientaram os alunos a ouvirem e refletirem sobre a letra da música, e,
após, fazerem suas observações por escritas. Já na segunda aula, foi proposto um
momento de reflexão, discussão e verbalização sobre as seguintes questões: que
impacto essa composição causaria na sociedade; qual seria a ideia/discussão/
proposição central da música, e quais entendimentos eles – alunos, conseguiram
sistematizar.
A partir de então, os professores mediaram a construção/produção do ma-
terial didático, pedagógico, decolonial, explicando, discutindo e orientando sobre
os elementos constitutivos para uma produção acadêmica, segundo as regras da
ABNT. Após a construção da primeira etapa do caderno de orientação, os pro-
fessores da turma, bem como os alunos, o apresentaram para a gestora escolar,
enquanto proposta de um projeto que se tornaria uma possibilidade de atividade
didática antirracista a ser contemplada no PPP (Projeto Político Pedagógico) da
escola. Essa primeira etapa da construção do material ante hegemônico foi rea-
lizada até o mês de julho, quando, através de uma feira de exposição artística,
foi apresentada a toda comunidade escolar, e também aos pais dos alunos da
instituição. Enquanto a segunda etapa/desfecho do caderno de orientação, foi
definido o mês de novembro para a exposição, a qual culminou, exatamente na
data em que se comemora o dia da consciência negra.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir de então, o desfecho do trabalho culminou-se com a ressignifi-
cação das práticas pedagógicas decoloniais, as quais não ficaram circunscritas
a tematizações e teorizações sobre racismo estrutural, institucional, individual,
mas, a partir da prática de tais conceitos, foi possível descortinar os olhares para
a desconstrução de práticas coloniais e, acima de tudo, protagonizar o aluno
negro enquanto importante em sua construção identitária; valorização e reco-
nhecimento da sua ancestralidade negra, com visibilidade não apenas no âmbito
educacional, mas social também, enquanto sujeito histórico construído de sabe-
res e vivências culturais na sociedade.
Portanto, o relato de experiência, através de cada etapa que foi construída,
o seu resultado mostrou o quanto é possível acreditar em intervenções e repara-
ções sociais, quando se protagoniza aquele(a) que está marginalizado(a), social

22
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

e racialmente, numa sociedade em que o discurso que se emprega é que o negro


necessita se manter silenciado, neutralizado na sociedade, mas que, através de
simples ações numa sala de aula, numa escola, dignifica a pessoa humana, a
valorização identitária. Afinal, o maior aprendizado e legado que essa prática de-
colonial e antirracista, referencia é que ainda há descortinar a forma equivocada
de pensar que, para os três tipos de racismos, não exista solução de rompimento
de tais.

REFERÊNCIAS
CANDAU, V. M. Escola e cultura(s) - As tensões entre universalidade e mul-
ticulturalismo. Texto apresentado na Reunião da Anped Sudeste, 2007. Versão
digital, 2009.
FARIA, Ana Lúcia Goulart de; FINCO, Daniela (orgs). Sociologia da Infância
no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados, 2011.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 11ª edição. Rio de
Janeiro: Editora DP&A, 2006.
LUDKE, Menga; ANDRÉ, M. E. D. Pesquisa em educação: abordagens qua-
litativas. São Paulo: EPU, 1986.
MINAYO, M.C. de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa. São
Paulo-Rio de Janeiro: HUCITEC-ABRASCO, 1995.
MUNANGA, Kabengele (org.). Estratégias e políticas de combate à discrimi-
nação racial. São Paulo: EDUSP, 1996.
PERES, R. S.; SANTOS, M. A. Considerações gerais e orientações práticas
acerca do emprego de estudos de caso na pesquisa científica em Psicologia. In-
terações, v. X, n. 20, p. 109-126, jul./dez. 2005.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder y clasificación social. Bogotá:
Pontificia Universidad Javeriana / Siglo del Hombre, 2007, p. 93-126.
REZENDE, Tânia Ferreira; LIMA, Hildomar José de. Base Nacional Comum
Curricular: diretrizes para a sustentação da colonialidade da linguagem. São
Paulo: Pontes, no prelo, 2019.
SILVA, Paulo V. B; ROSEMBERG, Fúlvia. Brasil: Lugares de negros e brancos
na mídia. In: Teu Van Djjk. (org.). Racismo e disclurso na América Latina.
São Paulo: Contexto, 2008, p.73 - 119.

23
COMPOSIÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E EDUCACIONAIS
NO BRASIL COLÔNIA, IMPÉRIO E REPÚBLICA:
DIFERENTES MOLDES, ESPAÇOS E TEMPOS DE
CONSTITUIR ENSINO E APRENDIZAGEM
Silas Lacerda dos Santos1
Lizete Caires Barros Martins2

INTRODUÇÃO

No bojo das empreitadas mercantilistas, durante os séculos XV e XVI, or-


ganizadas pela coroa portuguesa e espanhola, com o apoio financeiro dos nobres
e burgueses, vários exploradores europeus começaram a aventurar-se pelo mar
“desconhecido”, isto é, pelo oceano Atlântico, Pacífico e Índico, dando início à
chamada “Era das Navegações” e “Descobrimentos Marítimos”. Durante via-
gens, exploradores portugueses chegaram a outras terras até então desconhecidas
pelos europeus: Costa Ocidental da África, terras indianas da Ásia e em uma
grande porção de terra na América (Novo Mundo), que denominaram Terra de
Vera Cruz, futuramente chamada de Brasil. O avistamento de terras, que acon-
teceu no dia 22 de abril de 1500, pelos portugueses, foi relatado por Pero Vaz de
Caminha, como escrivão da expedição, segundo Martins,
em 21 de abril, uma terça-feira a frota vê alguns sinais de terra e na quarta-
-feira pela manhã do dia 22, avistam um grande monte, muito alto e outras
serras mais baixas com grandes arvoredos, este monte recebeu o nome de
Monte Pascoal, por estar na semana de Páscoa, e a terra recebeu o nome de
Ilha de Vera Cruz, nome mudado no ano seguinte para Terra de Santa Cruz
e a partir de 1503, para Brasil (MARTINS, 2005, p. 140.

Nos dias seguintes, observando a nova terra, os exploradores das Naus de


Pedro Álvares Cabral avistaram povos que vieram ao litoral, houve o primeiro

1 Mestre pelo Programa em Pós-graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais da Univer-


sidade Federal do Sul da Bahia (PPGER-UFSB). Licenciado em Letras, Língua Portuguesa
e Literaturas pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). E-mail: silaslacerda17@hot-
mail.com .
2 Licenciada em História pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Bacharela em
Serviço Social pela Universidade Pitágoras Unopar Anhanguera (UNOPAR). Professora
Efetiva da Rede Municipal de ensino de Teixeira de Freitas e Medeiros Neto-Bahia. E-mail:
[email protected] .
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

encontro entre dois povos distintos, culturalmente diferentes, conforme os relatos


do escrivão oficial do governo português que acompanhava Cabral, a carta de
Pero Vaz de Caminha descrevia o seguinte:
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e
bons narizes, bem feitos e tomou em uma almadia (canoa) dois daqueles ho-
mens da terra - mancebos e de bons corpos - [...]. Ambos traziam os beiços de
baixo furados e metidos por eles ossos brancos. Traziam os beiços furados e
nos buracos traziam uns espelhos de pau que pareciam espelhos de borracha.
Queriam vir com ele alguns, mas ele não quis senão dos mancebos dispostos
e homens de prol (bem afeiçoados, graciosos) (SILVA, 2010, p. 27).

A partir desse período, o contato entre europeus portugueses e nativos das


novas terras, designados pelos lusitanos de Índios, e muitas vezes de “selvagens”,
foram intensos e com explorações do trabalho dos nativos, pelos portugueses,
com o objetivo de extrair riquezas existentes. Assim que chegaram, os portugue-
ses declararam as terras como pertencentes ao Rei de Portugal. A visão que os
lusitanos relataram dos nativos brasileiros ao longo dos anos de contato, foram
as piores possíveis. Pero de Magalhães Gandavo, no seu Tratado da terra do Brasil,
escrito no final século XVI, relata uma imagem degradante e preconceituosa des-
ses povos, os nativos “seriam desumanos e cruéis, vivendo como animais, sem
ordem e sem sociedade” (LEONARDI, 1996, p. 19).
Para colocar em prática a empreitada de mercantilização e colonização,
os portugueses precisavam de trabalho e colaboração dos indígenas e como não
conseguiram assegurar o trabalho constante dos mesmos, devido a diversos fa-
tores culturais, geográficos e demográficos, logo procuraram outras formas de
conseguir mão de obra para a empresa colonizadora. Iniciaram assim a compra
de africanos escravizados na Costa Ocidental da África, para Rodrigues:
[...] Desde Cabo Verde para o sul e ainda Cabo da Boa Esperança, nos
territórios e costa de Moçambique, como também em outros sertões que es-
tavam em guerras, e as quais fazia muitos prisioneiros, sem os matarem. Os
mais conhecidos eram os de Província de Guiné (em cujos números com-
preendiam berberes, jalofos, felupos e mandingas), do Congo, de Moçambique
e Costa da Mina (RODRIGUES, 2008, p. 33).

Todos esses africanos escravizados eram dos territórios vizinhos, onde os


portugueses já faziam contatos comerciais desde meados do século XV. A partir
da segunda metade do século XVI, os contatos comerciais incluíam a compra de
povos escravizados para realizar o trabalho na monocultura do açúcar, segundo
produto retirado da colônia portuguesa na América, o primeiro era a extração do
Pau-Brasil, árvores nativas da Mata Atlântica brasileira, através do trabalho indí-
gena. Sendo os africanos escravizados e utilizados por seus senhores (em terras
americanas) para todo tipo de trabalho, estes ainda eram tratados como “coisas”
e de forma cruel, com tratamento desumano e violento, Antonil menciona que:
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No Brasil, costumam dizer que para o escravo são necessários três PPP, a
saber, pau, pão e pano. E, posto que comecem mal, principiando pelo casti-
go que é o pau, contudo, prouvera a Deus que tão abundante fosse o comer
e o vestir como muitas vezes é o castigo, dado por qualquer causa pouco
provada, ou levantada; e com instrumentos de muito rigor, ainda quando
os crimes são certos, de que se não usa com os brutos animais, fazendo
algum senhor mais caso de um cavalo que de meia dúzia de escravos, pois
o cavalo é servido, e tem quem lhe busque capim, tem pano para o suor, e
sela e freio dourado [...] (ANTONIL, 2011, p. 108).

Na segunda metade do século XVI, a colônia portuguesa na América já


contava com três povos diferentes na sua estrutura social, e foram esses povos
que deram seus contributos para a composição étnico-racial do Brasil. Os portu-
gueses se achavam um povo superior, civilizado, enquanto os Índios (nativos) e
os diversos povos africanos escravizados eram vistos como povos inferiores, sel-
vagens, incivilizados, bárbaros e por essa condição deveriam ser submetidos ao
um processo de escravidão. Essa dicotomia: civilizado, em oposição a bárbaro,
perdurou por longos séculos, segregando indígenas e africanos da participação
igualitária na sociedade. A segregação de povos prejudicou de forma plural a
sociedade brasileira. Eles passaram séculos sem direitos sociais, civis, culturais,
religiosos e políticos, tendo que sobreviver a essas adversidades.
Desse modo, o estudo em questão objetiva realizar uma reflexão teóri-
ca e historiográfica das composições étnico-raciais e educacionais do Brasil, em
seus diferentes períodos: Colônia, Império e República, interligados ao ensino
e aprendizagem de negros e indígenas. Inicialmente, introduz-se o contexto das
grandes navegações e o processo de descobrimento de terras na América, bem
como as primeiras composições e relações étnico-raciais de povos que foram co-
lonizados por portugueses em razão de um projeto maior de governança, interes-
ses financeiros, da mão de obra escravizada e de dominação.
Na metodologia, caminhou-se por procedimentos investigativos, tais
como: Pesquisa Teórica, através de estabelecimento de dialéticas com teóricos
do campo da Educação, da História, da Sociologia e da Antropologia. A partir
da Pesquisa Bibliográfica, de cunho qualitativo, buscou-se responder hipóteses
sobrepostas, em que foram estabelecidos diálogos interdisciplinares na delimi-
tação da epistemologia em questão, uma vez que analisar ao longo da história
dos mais de 500 anos do Brasil como o processo educacional foi ofertado para os
diversos povos é de vital importância na contemporaneidade.

O BRASIL COLÔNIA: A CHEGADA DOS JESUÍTAS E O INÍCIO DA


EDUCAÇÃO EM TERRITÓRIO BRASILEIRO

Quando os portugueses chegaram nas Américas, encontram diversos po-


vos nativos vivendo na faixa litorânea e outros que habitavam no sertão. Havia
26
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

uma multiplicidade de povos e de línguas faladas por eles, o que dificultou as


primeiras relações étnicas com esses povos. O governo português providenciou a
vinda de padres para atender espiritualmente colonos e nativos, com o objetivo
de transformá-los em “novos cristãos”, ou seja, o objetivo era o de catequizá-los
pelo catolicismo. Dos missionários que vieram, a grande maioria era compos-
ta de padres Jesuítas, membros da Companhia de Jesus3. Segundo o sociólogo
Freyre,
os jesuítas foram outros que pela influência do seu sistema uniforme de
educação e de moral sobre um organismo ainda tão mole, plástico, quase
sem ossos, como o da nossa sociedade colonial nos séculos XVI e XVII,
contribuíram para articular como educadores o que eles próprios dispersa-
vam como catequistas e missionários (FREYRE, 2003, p. 45).

Compreende-se que o acesso às escolas jesuíticas era restrito, por vezes,


excludente e seletivo, o que se afirma quando o autor menciona: “só negros e
moleques parecem ter sido barrados das primeiras escolas jesuíticas. Negros e
moleques retintos” (FREYRE, 2003, p. 266). Além de trabalhar para a igreja
católica com a finalidade espiritual, esses missionários também se empenharam
em realizar o ensino escolar dos filhos dos colonos e dos indígenas.
A história da educação brasileira começa com a chegada dos primeiros
jesuítas ao território brasileiro, em março de 1549, eles vieram com o primeiro
governador-geral do Brasil, Tomé de Souza, sob o comando do Padre Manoel
de Nóbrega. Após quinze dias do desembarque dos primeiros jesuítas na nova
terra, edificaram a primeira escola elementar brasileira, localizada em Salvador.
Contudo, não levaram em conta que os indígenas que aqui viviam, ao seu modo,
também educavam suas crianças. No entanto, a educação dos indígenas se dava
pela preparação para toda a vida, eram preparados para a sobrevivência e o dia
a dia na mata. Ou seja, mesmo depois de adultos os indígenas continuavam a
receber instruções. Analisando a educação informal dos indígenas, para Gohn
(2010) apud Rückert e Moreira (2020) relatam que: “[...] saberes adquiridos são
absorvidos no processo de vivência e socialização pelos laços culturais e de ori-
gem dos indivíduos” (p. 237). Essa forma de organização não foi respeitada pelos
europeus que no Brasil chegaram, trazendo seu modelo de educação e formas es-
pecíficas de intervenção na prática educativa, o que Saviani (2013, p. 03) chamou
de “pedagogia brasílica”.
Como os indígenas viviam em comunidades e partilhavam uma economia
natural e de subsistência, a educação que eles compartilhavam não era dividida
por classes formais, todos tinham acesso às instruções. A única diferença estava

3 Ordem religiosa católica romana fundada por Santo Inácio de Loyola. Começou com um
grupo de missionários dedicados à educação e a trabalhos de caridade, em 1534. A Com-
panhia de Jesus foi aprovada oficialmente pelo Papa Paulo III, em 27 de setembro de 1540.
27
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na distribuição do que aprendiam de acordo com o gênero, a educação era aces-


sível a todos. Com a chegada dos colonizadores e missionários europeus, muitos
desses sistemas educacionais indígenas foram desestruturados, com a implanta-
ção do sistema eurocêntrico. Em 1570, a obra jesuítica era composta por cinco
escolas de instrução elementar, em diversas partes diferentes da colônia: Porto
Seguro, Ilhéus, São Vicente, Espírito Santo. São Paulo de Piratininga e três colé-
gios: Rio de Janeiro, Pernambuco e Bahia. Após duas décadas da presença dos
missionários jesuítas, eles já haviam se instalado do norte ao sul, principalmente
nas regiões litorâneas.
No início, as escolas funcionavam de acordo com o plano de estudos do
padre Manuel de Nóbrega. Plano que iniciava com a aprendizagem da língua
portuguesa e passava pela doutrina cristã católica. Depois disso, eram encami-
nhados às escolas para aprender a ler e escrever, onde também podiam ter aces-
so ao canto orfeônico e à música instrumental. Nas próximas etapas, recebiam
formação profissional, agrícola e aprendiam a língua latina. Com o passar dos
anos, os missionários implantaram a uniformização do ensino, todas as escolas
jesuítas passaram a ser regulamentadas por um documento, escrito por Inácio de
Loiola, chamado também de Ratio Studiorum4. Esse programa de estudos iniciava
com curso de humanidades e passava por um curso de filosofia e por último de
teologia. Os que pretendiam seguir as profissões liberais, estudavam na Europa,
na Universidade de Coimbra, em Portugal, a mais famosa no campo das ciências
jurídicas e teológicas, e na França, a mais procurada na área da medicina.
Os Jesuítas ensinavam os indígenas a contar, ler, soletrar, escrever e rezar
em latim. Através do contato com as crianças indígenas, os padres recolhiam o
material para a organização da língua. Outra metodologia utilizada pelos jesuí-
tas foi a de ensinar através da música, do Teatro e da Dança, atraindo assim a
atenção dos pequenos indígenas e garantindo o sucesso da catequização.
Esse processo de ensino perdurou até 1759, quando todos os Jesuítas fo-
ram expulsos de todas as colônias portuguesas, por decisão de Sebastião José de
Carvalho, o Marquês de Pombal, primeiro-ministro de Portugal, encarregado de
fazer grandes reformas no governo português. A decisão de expulsar os jesuítas
era para sanar as muitas contendas entre colonos e jesuítas. Esses missionários
educadores possuíam 25 residências, 36 missões e 17 colégios e seminários dis-
tribuídos por várias partes da colônia. Dessa forma, a população colonial no

4 Espécie de coletânea privada, fundamentada em experiências acontecidas no Colégio Ro-


mano e adicionada a observações pedagógicas de diversos outros colégios, que busca ins-
truir rapidamente todo jesuíta docente sobre a natureza, a extensão e as obrigações do seu
cargo. Surgiu com a necessidade de unificar o procedimento pedagógico dos jesuítas diante
da explosão do número de colégios confiados à Companhia de Jesus como base de uma
expansão missionária. Constituiu-se numa sistematização da pedagogia jesuítica contendo
467 regras cobrindo todas as atividades dos agentes diretamente ligados ao ensino.
28
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Brasil ficou desassistida do ensino educacional formal. Por Saviani (2010), com-
preende-se que é possível perceber que o início da educação brasileira é marcado,
principalmente, pela colonização, enquanto exploração da terra, aculturação,
enquanto submissão forçada dos índios à cultura europeia e catequização dos
indígenas na fé cristã católica.
A partir de Barroso (2019) compreendemos que é possível refletir sobre o
quanto os brancos, portugueses, filhos da elite, eram alvos de uma educação for-
mal, longa, diversificada e preparatória para o poder e/ou para a vida eclesiástica.
Essa educação era ministrada nos colégios, nos seminários e na Universidade de
Coimbra. Baseava-se em gramática, filosofia, humanidades e artes, e completava
o estudo de cânones e da teologia. Outros portugueses, pertencentes aos segmen-
tos das classes populares, tinham acesso apenas aos rudimentos escolares: isto
é, ler, escrever e contar. Para os indígenas e mestiços, a educação era ministrada
nas missões, nos engenhos e nas igrejas. A estes ensinava-se, precariamente, o ca-
tecismo preparatório para o batismo, para a vida cristã, além de ofícios e tarefas
servis que, naquele tempo, por serem consideradas desonrosas, não podiam ser
executadas pelos brancos.
E como ficou a educação escolar dos africanos escravizados e seus des-
cendentes no Brasil colônia? Segundo Casimiro (2007), os colonizadores desen-
volveram pedagogias para atender a educação e a evangelização dos escravos.
Sobretudo, propuseram campanhas pela humanização da escravidão e partici-
param da elaboração de leis canônicas. Em meados do século XVI, debates acir-
rados, liderados por teólogos, aconteciam nos círculos religiosos e universidades
ibéricas, visando garantir tanto a evangelização dos escravos negros, como as
normas que deveriam direcionar o seu trato pelos patrões. As instruções esco-
lares aos africanos escravizados e seus descendentes aconteciam nos colégios,
missões e senzalas. No entanto, o sistema não alcançava a todos, muitos grupos
de colonos, escravizados, ex-escravos, indígenas e seus descendentes não tinham
a oportunidades de receber educação formal, até porque a colônia portuguesa
na América era de grandes proporções territoriais e os missionários jesuítas não
abarcavam todo o território.
Muitos desses indivíduos eram considerados “desqualificados”, nesse gru-
po estavam: escravos domésticos, órfãos, crianças abandonadas, filhos ilegítimos
(inclusive filhos de padres), mestiços, negros alforriados etc., ficando excluídos
desse sistema de ensino. O que restava aos “sobrantes sociais” era trabalhar como
aprendizes de oficiais mecânicos e no comércio, no caso das mulheres, muitas
aprendiam ofícios domésticos e engrossavam os exércitos de doceiras, lavadeiras
e quitandeiras que perambulavam pelas cidades da Colônia, conforme Casimiro
(2007). O ensino secundário não era permitido para índios e negros.

29
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

TRANSIÇÃO DO BRASIL COLÔNIA PARA IMPÉRIO: A EDUCAÇÃO


DO SÉCULO XIX

Em 22 de janeiro de 1808, com a chegada da família real ao Brasil, come-


çou o processo de criação de órgãos como a Biblioteca Real, O primeiro Jornal,
a Casa da Moeda, a Academia Real Militar, o Jardim Botânico, dentre outros.
Em 1815 o Brasil oficialmente deixou de ser colônia e passou a ser chamado de
Reino Unido de Portugal e Algarves. Nesta perspectiva, a partir de 1808, ofi-
cialmente, o Brasil passou a ser o centro do governo português e as deliberações
passaram a ser despachadas e cumpridas em todo o Reino.
Com a chegada da Família Real ao Brasil, mudanças eram necessárias em
todos os setores, pois a partir de então a colônia abrigava a Corte. O príncipe D.
João procurou implementar essas mudanças, buscando melhorar os diversos sis-
tema aqui vigentes, pois a colônia agora foi elevada à categoria de Reino Unido
ao lado de Portugal e do Algarve. D. João não veio para o Brasil sozinho, junto
com ele estava toda sua corte, que incluía mais 10 mil nobres e os maiores intelec-
tuais de Portugal. Vieram também obras de arte e todos os arquivos portugueses
e sessenta mil livros.
No bojo dessas mudanças, procurou-se também modificar o ambiente
cultural no Brasil, abrindo os portos brasileiros a outras nações europeias, tam-
bém aos ingleses, contribuindo para a entrada de diversos produtos diferentes
na Colônia a partir de 1808. Essas medidas envolveram outras questões que não
apenas a cultural, obviamente, mas o que atraiu um número significativo de in-
telectuais estrangeiros que foram responsáveis pelo salto no campo educacional.
Esse salto educacional esteve atravessado pela necessidade de atender a nobreza
portuguesa. É um salto no tocante à necessidade de atendimento de uma mino-
ria social, inclusive, estrangeira, claro que uma parcela mínima de filhos da elite
aristocrata brasileira também foi assistida por este desenvolvimento, uma vez que
estes sujeitos se deslocavam para Portugal para aquisição do diploma de ensino
superior.
Após mudanças implementadas no Período Joanino, houve alterações po-
líticas em Portugal. A exemplo, D. João teve que retornar a Portugal devido a
exigências da Corte Portuguesa5, deixando assim o seu filho, D. Pedro, no Brasil.
D. Pedro também foi pressionado pelas Cortes para retornar a Portugal, deixan-
do o Brasil na posição de Colônia. Devido às pressões políticas internas (Brasil)
e externa (Portugal), D. Pedro declarou a Independência do Brasil em 1822. A
partir da independência, o Brasil procurou elaborar a sua própria Constituição.
O objetivo central dessa nova Constituição era exatamente o de impulsionar

5 A volta do mesmo a Portugal foi em decorrência da Revolução Liberal do Porto de 1820,


que exigia o seu retorno a Lisboa e o do Brasil ao status de colônia.
30
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

novos rumos da nação. Com relação à educação no Império, no artigo 179 da


Constituição brasileira de 1824 é dito que a instrução primária gratuita deveria
ser garantida a todos os súditos do Imperador, estabelecendo uma ampla liberda-
de, assim como a abertura irrestrita para o estabelecimento de novas instituições
de ensino. Todas essas alterações viabilizaram na prática um convite à livre ini-
ciativa privada, estimulando a criação de escolas particulares por todo o país, que
surgiram no vácuo deixado pelo Estado desde a saída dos missionários e educa-
dores jesuítas. A falta de professores nas poucas escolas mantidas pelo Estado
dificultava o cumprimento do artigo 179 da Constituição de 1824.
As escolas básicas se mantiveram, ao longo de todo o Império, acessíveis
apenas a uma ínfima parcela da população, enquanto o índice de analfabetismo
nunca era inferior a 80%. Em 1854, D. Pedro II, então já há alguns anos no po-
der, reformulou o conteúdo ministrado e a própria estrutura do ensino básico,
através do decreto nº 1.331, de 17 de fevereiro de 1854, o Imperador aprovou o
regulamento para a reforma do ensino primário e secundário, segundo Rocha,
pode-se dizer que o também Decreto-Lei Couto Ferraz, de 1854, é um
ponto de inflexão nas políticas públicas de educação ao longo do Império.
Foi ele quem estabeleceu pela primeira vez uma estruturação funcional da
educação, que vinha sendo requisitada desde a primeira lei de educação, de
1827 (ROCHA, 2010, s.p.).

Subsequente a esse decreto imperial de 1854, outro decreto importante


para a educação no Império, foi o decreto Leôncio de Carvalho, do ano de 1879,
para Rocha,
o Decreto Leôncio de Carvalho, por sua vez, caracterizou-se como um ver-
dadeiro novo paradigma da política de educação, num contraponto acen-
tuado com a tradição advinda especialmente do Decreto Couto Ferraz. O
traço marcante da novidade por ele trazida é a controvertida questão do
“ensino livre” (ROCHA, 2010, s.p.).

Com a Constituição do Império, com as outras leis subsequentes, mes-


mo assim, o ensino formal não atingiu grande parcela dos súditos do Império.
A constituição não garantiu a liberdade para os africanos e seus descendentes
escravizados e indígenas, também não garantiu a atenção devida por parte dos
governantes com relação à educação formal abrangente a todos.
Os negros, escravizados ou não, do Império, não tiveram vantagens du-
rante a primeira Constituição. Sua situação social e funcional estava associada
ao trabalho manual e não deveriam dele ser apartados, a fim de não prejudicar
a produção e não degradarem o trabalho intelectual. O artigo 94, inciso II, da
Constituição do Império, impedia formalmente que todos os negros tivessem
acesso a direitos básicos como, por exemplo, o de votar e de ser votado, decretan-
do sua exclusão, limitando o ensino somente aos cidadãos brasileiros sem que o

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

negro participasse da vida ativa, econômica, social, política e do sistema oficial


de ensino, visto que a grande maioria dos escravizados eram de origem africana,
tirando deles a oportunidade de receber dignidade e cidadania.

A EDUCAÇÃO ESCOLAR E A ASCENSÃO DE NEGROS E


INDÍGENAS NO BRASIL REPUBLICANO

No século XIX, o Brasil passou por diversas mudanças, marcado por


profundas alterações sociais, políticas e econômicas. O Estado brasileiro se ca-
racterizou, por muito tempo, pelo colonialismo/escravismo, e a questão racial
apresentou-se como um dos elementos determinantes para as configurações da
sociedade e do Estado brasileiro. Os indígenas e os negros escravizados foram,
desde o século XVI, excluídos do acesso a riqueza produzida no país, além de
renegados e excluídos de todos os processos pelos quais passava a sociedade bra-
sileira ao longo da sua história.
A educação é um desses elementos cruciais e de extrema importância para
a vida das pessoas em uma sociedade. Do processo escolar, os negros e os in-
dígenas escravizados sempre ficaram à margem, onde poucos tiveram acesso a
esse sistema, sendo que esses dois grupos representavam a maioria da população
brasileira. Para os negros e negras, as primeiras oportunidades concretas de edu-
cação escolar e ascensão surgiram no Estado Republicano, quando o desenvolvi-
mento industrial dos anos finais do século XIX impulsionaram o ensino popular
e o ensino profissionalizante, que tinha objetivo abastecer as recém indústrias de
mão de obra.
Para Abreu (2011), o ensino popular estabeleceu-se mediante instalação
dos grupos escolares urbanos e das escolas isoladas nos bairros. É na República
que o ensino primário tem maior ênfase, ou seja, nesse período enfatizou-se a
disseminação da escola primária, a escola do povo. Nessa perspectiva, a educa-
ção popular era vista, no Brasil Republicano, como primordial para o desenvol-
vimento e progresso do país, por isso, intelectuais e políticos a priorizavam como
objeto de reforma, fundamental para a organização da sociedade.
Conforme Faria Filho,
[...] Os grupos escolares e seu processo de organização significavam, por-
tanto, não apenas uma nova forma de organizar a educação, mas, funda-
mentalmente, uma estratégia de atuação no campo do educativo escolar,
moldando práticas, legitimando competências, propondo metodologias,
enfim, impondo uma outra prática pedagógica e social dos profissionais do
ensino através da produção e divulgação de novas representações escolares
(FARIA FILHO, 2000, s.p.).

O processo de escolarização dos negros e seus descendentes no Brasil


Republicano foi iniciado devido a carência de mão de obra da recém instalada
32
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

indústria brasileira. Um ano antes da Proclamação da República, o Brasil já ha-


via abolido a escravidão em seu território, por essa razão ex-escravos estavam
presentes na sociedade e sem nenhum projeto de integração. O fato de não haver
um projeto de integração para esses ex-escravizados, concisamente como cida-
dãos de direitos, surge assim a vital importância das escolas populares para inte-
grar os sujeitos na sociedade como cidadãos e trabalhadores livres.
Os negros e seus descendentes foram se agarrando as oportunidades que
lhes eram acessíveis para se integrar a sociedade e como forma de sobrevivência.
Em momentos cruciais da história republicana, pode-se encontrar registros dos
movimentos de protesto dos negros, o mais emblemático foi o promovido pela
Frente Negra Brasileira, em 1931, na cidade de São Paulo. Na cidade do Rio
de Janeiro, o protesto racial se organizou em torno do Teatro Experimental do
Negro, liderado por Abdias do Nascimento e Guerreiro Ramos, no final dos anos
40. Adentrar a esses movimentos foi de suma importância para as que obtives-
sem as conquistas que essa população iria conseguir nas décadas do século XX.
Dentre as bandeiras de luta, destacava-se o direito à educação, oportunidades
iguais no mundo do trabalho, ascensão social, integração e conscientização, por
meio da qual os negros aprenderiam a história de seus ancestrais, os valores e a
cultura de seu povo, podendo, a partir de então reivindicar direitos sociais e polí-
ticos, direito à diferença e respeito humano. Foi através desses movimentos que a
população negra alcançou avanços na legislação, evidenciados pela Constituição
de 1988 que apresentou garantias legais ao povo negro.
No Período Republicano pouco foi feito em relação aos povos indígenas.
Nas primeiras décadas do século XX, mesmo com a presença do Estado, que se
pretendia laico, muitas ordens religiosas se mantiveram atuando entre os povos
indígenas, algumas de comum acordo, até mesmo selando convênios com o go-
verno republicano. Quando o governo republicano formulou um programa vol-
tado ao cuidado destinado aos indígenas, no interior das ações que compuseram
o programa, figurou a escola. A escolarização confessional dos povos indígenas
perdura e é visível até os dias atuais, através de algumas escolas ligadas às mis-
sões religiosas. Nesse ínterim, foi criado o Serviço de Proteção ao Índio (SPI),
concomitante à ação militar de contato e “apaziguamento”, constatou a presen-
ça de missões religiosas e implementação da educação escolar.
O Brasil entrou no século XX com a necessidade de uma maior integra-
ção dos povos negros e indígenas nas esferas da sociedade. Mas conseguir essa
integração não foi fácil, muitas lutas tiveram que ser travadas. Foi no seio do mo-
vimento negro que surgiram escolas com o objetivo de alfabetizar adultos e pro-
mover formação completa para as crianças negras. A alfabetização dos adultos
era preocupação constante, os líderes viam a educação como algo que deveria ser
realizado pela própria iniciativa dos negros, o movimento negro dos anos 1940 e

33
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

1950, reivindicavam ensino fundamental gratuito para todas as crianças (brancas


e negras), ou seja, o projeto educacional visava a sociedade como um todo.
No caminhar das décadas seguintes, as lutas do povo negro, através dos
movimentos, foi ganhando força, conquistando espaços e direitos. Assim, o de-
bate sobre os negros e a educação aumentou em 1988, com o Centenário da
Abolição. Ao longo da década de 1980, o movimento negro dedicou-se a lutas
pela democratização do ensino. Com base nesse tema, várias foram as pautas: li-
vro didático, currículo, formação dos professores, etc. Os ganhos obtidos através
dos manifestos realizados pelos movimentos foram elencados na Constituição
de 1988.
Nos 1990, a luta pela efetivação das garantias constitucionais continuou
na pauta desses movimentos, assim, destacaram-se os temas: pré-vestibulares
para pobres e negros, ações afirmativas e sistemas de cotas em Universidades.
No início do século XXI foi sancionada a Lei 10.639/2003 que tornou obriga-
tório o Ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nos currículos das redes
de ensino, e a Lei 11.645/2008, que instaurou a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. As conquistas continuaram nos
anos seguintes, houveram alguns avanços no que se refere ao sistema de reserva
de vagas oferecidas nos concursos públicos (Lei 12.990/2014) e o ingresso nas
universidades públicas federais do país (Lei 12.711/2012).
Percebe-se que as composições e relações étnico-raciais que formaram a
sociedade brasileira foram de inteira desigualdade e exclusão dos segmentos ne-
gro e indígena, pelos colonizadores europeus, ao longo de toda a história do país.
Ganhos foram adquiridos ao longo desse intenso contato, mas muitos outros
direitos ainda estão por ser conquistados.

EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: POLÍTICAS PÚBLI-


CAS COMO AÇÕES REPARATIVAS

No cenário educacional contemporâneo tem sido de extrema importância


o avanço das políticas públicas, especificamente quando se trata da educação
para as relações étnico-raciais. As Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, menciona-
das anteriormente, contemplaram, sobretudo, a garantia da pluralidade e diver-
sidade étnica e cultural de povos que foram marginalizados e excluídos durante
dados períodos e espaços da história e da composição étnica do Brasil. Todavia,
pela perspectiva curricular nacional, se assume o compromisso em desconstruir
estereótipos, preconceitos e marginalização dos povos negros e indígenas.
Com as presentes políticas públicas reparatórias e inclusivas, a perspec-
tiva é que se crie uma história que se oponha à visão eurocêntrica dominante.
Conforme os estudos de Araújo e Giugliani (2014), as leis nº 10.639/2003 e

34
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

11.645/2008 referem-se apenas à educação básica, tanto pública quanto privada,


não incluindo outras modalidades, como o Ensino Superior.
Para Araújo e Giugliani,
a escola contemporânea, através das suas práticas educacionais, dos co-
nhecimentos e valores que são estimulados, deve ser um espaço onde os
estudantes se reconheçam como membros da comunidade escolar. Assim,
pouco a pouco, tornam-se conscientes de uma série de peculiaridades que
as ajudam a afirmar sua identidade, proporcionando-lhes, por meio do pro-
cesso de ensino-aprendizagem, o acesso à história e a cultura do seu grupo
étnico-racial e dos demais (ARAÚJO; GIUGLIANI, 2014, p. 14).

Nesse sentido, infere-se que a instituição escolar, como espaço de possibi-


lidade de construção de identidades, seja ela nacional, étnico-racial ou pessoal, é
via de aprendizado e transmissão das visões de mundo, bem como, de expressão
de valores, posicionamentos, princípios e ações. A afirmativa vai de encontro
ao pensamento de Carvalho (2012, p. 210) as instituições sociais “adquirem um
importante significado no processo de construção da identidade, posto que cons-
tituem-se no espaço de produção de saberes, de experiências, de inter-relações, de
comunicações, de intenções e das operações de sentido – simbólicas.”
Desse modo, compreende-se que as instituições escolares vão além de for-
mas, normas e sistemas burocráticos engajados apenas em perpetuar poder e
disciplina, pois os espaços de sala de aula podem ser considerados como vias
de comunicações, articulações, (re)produções e de divulgações de diferentes cul-
turas e identidades, assim como as políticas públicas se inserem nesse diálogo
como disseminadoras das relações étnico-raciais. Haja vista que, conforme nos
propõe Carvalho,
no contexto escolar, as identidades devem ser tratadas como sendo realiza-
das em diversos espaços sociais, midiáticos, familiares e organizacionais,
entre outros, onde novos sentidos e narrativas, por vezes contraditórios,
podem afetar comportamentos e provocar novas inter-relações sociais
(CARVALHO, 2012, p. 211).

Na contemporaneidade, pela consciência da identidade, torna-se possível


reconhecer a importância das relações étnico-raciais e a compreender pertença
individual, quem de fato se é e o que se tem em comum com o outro, de modo
que se torna necessário para o estabelecimento de relacionamentos interpessoais.
Interessante a discussão proposta por Carvalho (2012), pois o mesmo leva a refletir
sobre as identidades e a cultura, demonstrando como são construídas historica-
mente, em razão das relações étnico-raciais e forma como cada indivíduo é repre-
sentado ou identificado nos sistemas culturais que “normatizam” grupos. Desse
modo, infere-se que as identidades estruturam sociedades, ao mesmo tempo em
que constroem e reconstroem os sujeitos, como um processo de exterioridade.

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(O rganizadores )

É preciso uma educação para as relações étnico-raciais que desconstrua


estereótipos e preconceitos, que não inferiorize culturas e identidades, que des-
colonize o pensamento hegemônico e eurocêntrico. Na compreensão de Araújo
e Giugliani
a sociedade brasileira em geral e, em particular, a educação assimila e
reproduz o imaginário popular a respeito da população negra e indígena
como populações inferiores, de segunda classe. As culturas, as vozes, os
saberes dos grupos estigmatizados costumam ser silenciadas, anuladas nas
escolas como possibilidade de resistência ou reação a subalternização a que
estes grupos estão condicionados (ARAÚJO; GIUGLIANI, 2014, p. 5).

Infelizmente, presencia-se constantemente a ausência de materiais que


contemplem a cultura afro-brasileira e indígena com reflexão e vivência no coti-
diano escolar. Para Araújo e Giugliani,
a escola tende a enfatizar as assimilações das diferenças culturais ao in-
vés de tratar os estudantes como portadores de memórias sociais diversi-
ficadas, massificando-os, negando-lhes o direito de falar e representar na
busca de conhecimento, aprendizagem e autodeterminação (ARAÚJO;
GIUGLIANI, 2014, p. 5).

Todavia, as leis 10.639/03 e 11.645/08 corroboram para a inserção da


educação desses grupos étnico-raciais em espaços educacionais, de modo que a
apresentação de culturas e identidades sejam abrangentes e contemplem diversas
etnias que já vivem há muito tempo em território brasileiro, contribuindo tam-
bém para a adoção gradual, nas instituições de ensino, de mudanças drásticas
nas matrizes curriculares, a disseminar visões estereotipadas, formas de combate
ao racismo, a valorização dos negros e indígenas, sobretudo a prática coletiva de
representações sociais desses povos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do que foi exposto, pode-se inferir que o processo educacional de


indígenas e negros no Brasil foi feito a partir de um processo de exclusão e impo-
sição dos ideais europeus. No entanto, com a implementação das leis 10.639/03
e 11.645/08, percebe-se uma mudança significativa na política educacional, co-
meçando a inserir as culturas indígenas, africanas e afro-brasileiras no currículo
escolar, inclusão essa que não ocorreu de uma hora para outra. É necessário
que se tenha cuidado para que estereótipos não sejam reproduzidos, como foi
durante longo período da história, cabendo a reflexão contínua das composições
étnico-raciais e educacionais no país, interligando o ensino e aprendizagem de
negros e indígenas.
Analisar, ao longo da história do Brasil, como o processo educacio-
nal foi ofertado para negros, indígenas e europeus é de vital importância na
36
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

contemporaneidade. Fica evidente que esse processo educacional formal não foi
ofertado de forma equitativa e sequer contemplou a todos. Os colonizadores não
envolveram os indígenas no processo de colonização, ambos os povos não foram
contemplados de forma incisiva no processo educacional. Os indígenas foram
motivo de preocupação por parte dos jesuítas, como um meio de catequizá-los,
os padres ministravam de forma básica a cultura europeia e letrada a algumas
etnias aldeadas, catequização essa que também fazia parte do processo de colo-
nização europeia para os povos do Novo Mundo.
Esse processo de oferta da educação formal vigorou e de forma desigual.
Negros e indígenas foram prejudicados com relação a falta de inclusão no pro-
cesso de construção de uma sociedade letrada, ficando assim, sem garantias de
inclusão no projeto de nação gestado pela visão eurocêntrica da história. Embora
grupos indígenas tenham lutado pela obtenção de seus direitos, em razão da
catequização católica, porém, a forma de incluí-los também os prejudicou, uma
vez que eles teriam que negar sua própria cultura e adquirir a cultura do colo-
nizador. Os dois grupos são alvos de discriminação racial. Segundo o Banco
Inter-Americano de Desenvolvimento e a Cealc, ambos são vítimas de “exclu-
são social”, “entendida como a impossibilidade de um grupo social participar
plenamente das esferas social, política, cultural e econômica da sociedade”
(HOOKER, 2006, p. 02).
Desse modo, vê-se que a situação de desigualdade, com relação aos ne-
gros e indígenas no processo de inclusão no sistema educacional, foi tema da
constituinte de 1987, ficando garantida a inclusão na Constituição Brasileira de
1988 e sendo regularizada nas Leis posteriores da década de 1990 e início do
século XXI: Lei 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e
as 10.639/03 e Lei 11. 645/08, garantindo a inclusão do ensino da cultura afro-
-brasileira nas modalidades de ensino no país. Ainda temos muito que avançar e
conquistar no âmbito das ações reparativas, fazer valer direitos de grupos étnicos.

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que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currí-
culo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena”. Brasília, DF: Presidência da República, 2008. Dis-
ponível em http://www.planalto.gov. br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/
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das autarquias, das fundações públicas e das sociedades de economia mista con-
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38
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

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39
HISTÓRIA DA ÁFRICA
ALÉM DOS LIMITES DA IMAGINAÇÃO
Patrícia da Silva Soares1

INTRODUÇÃO

A história ensinada nas escolas é um elemento formador da memória co-


letiva e de identidade de quem faz parte desse processo. Como afirma Jacques
Le Goff: “a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um ins-
trumento e objetivo do poder” (LE GOFF, 1984, p. 46). É manifesto em que
a construção de uma identidade passa pelo conhecimento da própria História,
para fazê-la presente como referência cultural.
Nesse sentido, a História da África ainda está em construção como área
de discussão e de pesquisa nas nossas universidades, uma vez que até mesmo os
estudos feitos por africanos são recentes, só começaram com as lutas de inde-
pendência quando os países africanos começaram a abordar, explorar e edificar
sua própria História, a resgatar seu passado e a desconstruir a visão da África
subjugada, inferior e sem história.
Em 2003 é promulgada a Lei 10639/032 que torna obrigatório o ensino
de História da África e cultura afro-brasileira na Educação Básica, porém, ainda
hoje, a alteridade africana é pouco conhecida pelos professores e, talvez por isso,
retratada de forma superficial nos livros didáticos. Em relação ao material sobre
História da África que temos no Brasil, após a Lei Marina de Mello e Souza diz:
Como só há pouco tempo o tema passou a ser dado nas universidades e a
ocupar com mais frequência as preocupações dos pesquisadores, a carência
de formação dos professores e de material didático é compreensível. Mas
isto está mudando. Já há algum material em português para orientar pro-
fessores e alunos dos vários níveis, como livros de literatura para crianças,
didáticos para jovens e de cunho mais acadêmico para professores. Esses
materiais ainda são escassos, e poucos são realmente bons, pois antigos
preconceitos teimam em persistir, seja por desinformação, seja pela força

1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Goi-


ás. Professora da Rede Estadual de Ensino do Estado de Goiás. Email: patriciassoares1@
gmail.com Projeto financiado pela Fundação de Amparo a Pesquisa de Goiás FAPEG.
2 A Lei 10639/2003, altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as di-
retrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências.
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

das heranças recebidas (SOUZA, 2008, s/p).

Do mesmo modo, Danielle Bastos Lopes (2014) também faz uma análise
do material didático de História da África no Brasil, que pode ser um instrumen-
to de grande importância para a construção do conhecimento e na elaboração de
referências sobre a África, os africanos e os afrodescendentes. Lopes Analisa que
permanecem nos livros didáticos o “congelamento das culturas”, a permanência
de concepções de sociedades “atrasadas” e “primitivas”. Para Henrique Cunha
Júnior (2008), o elemento básico para Introdução à História Africana não está
na história africana, mas na desconstrução e eliminação de alguns elementos
básicos das ideologias racistas brasileiras, já que o cotidiano brasileiro é povoado
de símbolos de negros selvagens e escravos amarrados, que processam e adminis-
tram o escravismo mental e realizam a tarefa de feitores invisíveis, a chicotear a
menor rebeldia do imaginar diferente. Para Cunha Júnior (2008, s.p.), são cinco
os pontos importantes a serem desconstruídos na imaginação dos brasileiros so-
bre a África:
1. A África não é uma selva tropical.
2. A África não é mais distante que os outros continentes.
3. As populações Africanas não são isoladas e perdidas na selva.
4. O europeu não chegou um dia na África trazendo civilização.
5. A África tem história e também tinha escrita (CUNHA JUNIOR, 2008,
s.p.).

A partir dessas colocações iniciais, o presente trabalho propõe um método


de ensino que vise a desconstrução das imagens sobre o continente africano e
seus povos ao longo da história, Para tanto, conta com cinco passos: problema-
tização do real, com uma questão motivadora do estudo da temática; sondagem
do conhecimento do aluno sobre a temática a ser trabalhada; trabalho com a
representação que a sociedade que está sendo analisada tem de si mesma; inter-
pretação de textos e fontes históricas; avaliação das novas representações forja-
das pelos alunos, sobre a sociedade analisada, após o trabalho em sala de aula.
Este trabalho é fruto da pesquisa de mestrado em Ensino na Educação Básica,
CEPAE/UFG, entre os anos de 2015 a 2017.

ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA NO BRASIL: UM BREVE


HISTÓRICO

A Lei nº 10.639/2003 é uma Lei Federal, promulgada em 9 de janeiro de


2003, após lutas de ativistas negros e negras em busca de políticas públicas que
visassem a diminuição das desigualdades raciais, tornando obrigatório o ensino
de História da África e Cultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de Ensino
Fundamental e Médio de todo país. Esta Lei altera a Lei de Diretrizes e Bases

41
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

da Educação Nacional 9394/1996, acrescentando os artigos 26-A, 79-A e 79-B,


estabelecendo que, em todo o currículo escolar e em todas as áreas da Educação
Básica, em especial, nas áreas de Educação Artística, Literatura e História, de-
vam ser ministrados conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira,
incluindo o estudo da “História da África e dos Africanos, a luta dos negros no
Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil” (BRASIL, 2003). Esta Lei coloca ainda que es-
ses conteúdos devam ser trabalhados em todas as disciplinas, item fundamental
para a compreensão, por parte do aluno, da participação dos africanos na for-
mação do brasileiro em todos os âmbitos social, cultural, político e econômico.
Ainda assim, se questiona: Por que foi necessário a criação de uma Lei
para se implementar um conteúdo tão importante nas escolas brasileiras? Mônica
Lima (2004) enumera cinco razões para a criação da Lei:
1. Historiadores brasileiros, do século XIX e princípio do século XX, tra-
taram indevidamente, ou ignoraram, a participação africana em nossa
formação influenciados por preconceitos originários da sociedade es-
cravista, entre os quais os ideais de branqueamento, pautados na teoria
do darwinismo social;
2. Os africanos e afrodescendentes são vistos na maior parte das ve-
zes como dominados: escravos, oprimidos, explorados ou rebeldes
derrotados;
3. As universidades ignoraram o tema até recentemente;
4. Preconceitos etnocêntricos - África como lugar atrasado, inculto, selva-
gem e africanos como impotentes e incapazes;
5. Informações folclorizadas e idealizadas sobre a África- terra da ma-
cumba, da capoeira, do tambor.
A criação da Lei 10639/2003 não aconteceu de forma natural, e nem por
uma ação isolada do Estado brasileiro, mas devido a muitas lutas do Movimento
Negro por políticas públicas de ações afirmativas. Em 1950, no I Congresso do
Negro Brasileiro, promovido pelo Teatro Experimental Negro, já encontramos
em sua Declaração Final, solicitações relativas ao estudo de História e cultura
afro-brasileira como uma das condições necessárias para atenuar a situação de
“abandono”, em que os negros brasileiros estavam relegados depois da abolição
pelas estruturas econômicas e sociais do país. Para Nascimento (1968, p. 293),
“o Congresso recomenda, especialmente, a) o estímulo ao estudo das reminis-
cências africanas no país bem como dos meios de remoção das dificuldades dos
brasileiros de cor e a formação de Institutos de Pesquisas, públicos e particulares,
com esse objetivo”.
Contudo, a agenda de demandas dos movimentos negros intensificou-se

42
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

após a Ditadura Militar (1964-1985), com o ressurgimento do Movimento Negro


Organizado em 1978. Devido à luta dos movimentos sociais negros, em 20 de de-
zembro de 1985, é promulgada a Lei Caó ou Lei nº 7.437/1985, que inclui, entre
as contravenções penais, “a prática de atos resultantes de preconceito de raça, de
cor, de sexo ou de estado civil” (BRASIL, 1985) e que não foi ainda revogada. Já
em 1988, a Constituição Brasileira torna o racismo crime inafiançável.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviola-
bilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à proprie-
dade, nos termos seguintes: [...]
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível,
sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; (BRASIL, 1988).

Porém, a luta dos ativistas negros desse período reconhecia que não basta-
va punir os crimes de racismo e preconceito racial. Era preciso ir além e adotar
políticas públicas para a diminuição das desigualdades raciais. Eles entenderam
que a inclusão da história e cultura afro-brasileira e africana na Educação Básica
significava o reconhecimento do negro pela sociedade e, consequentemente, sua
inclusão social, de forma mais justa e igualitária.
No documento final da Convenção Nacional do Negro pela Constituinte,
realizada em Brasília, em 1986, seus 186 participantes, compostos por “represen-
tantes de 63 Entidades, compreendendo Entidades Negras, Sindicatos, Partidos
Políticos e Grupos Sociais, de 16 Estados da Federação”, reivindicavam no que
diz respeito à educação e a cultura:
VI- Sobre Educação:
1- “O processo educacional respeitará todos os aspectos da cultura brasilei-
ra. É obrigatória a inclusão nos currículos escolares de I, II e III graus, do
ensino da história da África e da História do Negro no Brasil”; [...]
3- “A elaboração dos currículos escolares será, necessariamente, submetida
à aprovação de representantes das comunidades locais”; [...]
5- Que seja alterada a redação do § 8º do artigo 153 da Constituição
Federal, ficando com a seguinte redação: “A publicação de livros, jornais
e periódicos não dependem de licença da autoridade. Fica proibida a pro-
paganda de guerra, de subversão da ordem ou de preconceitos de religião,
de raça, de cor ou de classe, e as publicações e exteriorizações contrárias à
moral e aos bons costumes”
VII- Sobre a Cultura:
3- “Que seja declarado Feriado Nacional, o dia 20 de novembro, data da
morte de Zumbi, o último líder do Quilombo dos Palmares, como Dia
Nacional da Consciência Negra”; [...]
4- “Que seja efetivado o reconhecimento expresso do caráter multirracial
da Cultura Brasileira”; (BRASÍLIA, 1986, p. 3-5).

Essa luta vai levar à sanção da Lei 10639 em 2003, pelo Presidente Luiz
Inácio Lula da Silva, quando foram criadas políticas de promoção à igualdade

43
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

racial. Uma das políticas públicas para a promoção da igualdade racial foi o
desenvolvimento das ações afirmativas, como o sistema de cotas para o ensino
superior e cargos nas empresas estatais (RABELO, 2015).
Pensando nisso, por que trabalhar História da África na Educação Básica?
Para Santos (2005), historicamente, o sistema de ensino brasileiro não é só eu-
rocentrista, como também desqualifica o continente africano e inferioriza racial-
mente os negros, produz e reproduz a discriminação racial contra os africanos e
seus descendentes. O estudo de História da África é fundamental para o estabe-
lecimento de sentido das “experiências vivenciadas pelas comunidades afro-bra-
sileiras, além de proporcionar importante contribuição na discussão das questões
de natureza étnico-raciais como racismo e a discriminação racial” (SOARES,
2019, p.27). Segundo Nascimento:
O sistema educacional é usado como aparelhamento de controle nesta es-
trutura de discriminação cultural. Em todos os níveis do ensino brasileiro
– elementar, secundário, universitário – o elenco das matérias ensinadas,
como se se executasse [...] constitui um ritual da formalidade e da ostenta-
ção da Europa, e, mais recentemente, dos Estados Unidos. Se consciência
é memória e futuro, quando e onde está a memória africana, parte ina-
lienável da consciência brasileira? Onde e quando a história da África, o
desenvolvimento de suas culturas e civilizações, as características, do seu
povo, foram ou são ensinadas nas escolas brasileiras? Quando há alguma
referência ao africano ou negro, é no sentido do afastamento e da alienação
da identidade negra. Tampouco na universidade brasileira o mundo negro-
-africano tem acesso. O modelo europeu ou norte-americano se repete, e as
populações afro-brasileiras são tangidas para longe do chão universitário
como gado leproso. Falar em identidade negra numa universidade do país
é o mesmo que provocar todas as iras do inferno, e constitui um difícil desa-
fio aos raros universitários afro-brasileiros (NASCIMENTO, 1978, p. 95).

Como pode-se notar, a educação brasileira passou por reformulação na


década de 1990, com a criação e aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional em 1996 (LDB - Lei 9394/1996). Para auxiliar sua imple-
mentação, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) entre 1995-1996, foram
lançados com o objetivo de fornecer orientações para os professores formularem
os currículos de suas disciplinas. A LDB e os PCNs sinalizavam para uma pos-
sível aproximação com os estudos ligados à história e cultura afro-brasileira e
africana.
Nesse contexto, a LDB determinou que o ensino de História do Brasil,
deveria “levar em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a
formação do povo brasileiro” (BRASIL, 1996). Já os PCNs apontaram para a
necessidade de inserir temas sobre “pluralidade cultural”, destacando a questão
da “democracia racial” como um aspecto central a ser problematizado nas ati-
vidades escolares. A problematização da diversidade cultural brasileira já estava

44
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

presente na legislação desde a década de 1990, de modo que a necessidade da


Lei 10.639/2003 coloca-nos algumas questões, pois ela indica que o trabalho que
vinha sendo feito, segundo os PCNs, não estava sendo satisfatório.
Uma vez que o negro brasileiro faz parte dessa população estigmatizada,
não basta desenvolver um trabalho centrado nas questões étnico-raciais, mas é
preciso rever o olhar dirigido para o próprio continente africano mantido, até
o advento da Lei 10.639/03, em um “silêncio” que exterioriza a continuidade
do preconceito. Para Santos (2005), a Lei foi um avanço no processo de demo-
cratização do ensino e na luta antirracismo, no entanto, é bem genérica em seu
conteúdo, não estabelece metas para sua implementação, não faz referência à ne-
cessidade de qualificação dos professores da Educação Básica para ministrarem
os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira, nem da necessidade
de as universidades reformularem seus programas para formação de professores.
Nesse âmbito, em 2004, foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação
o parecer nº CNE/CP 003/2004 que foi transformado em resolução CNE/CP
001/2004 em 22 de junho de 2004 e, em 2009, o Plano Nacional de Implementação
das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-raciais
e Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Esse documento tem
por objetivo instituir Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana que regulamentam as alterações trazidas à Lei 9394/1996 pela Lei
10639/2003,
expressa em seu texto que as políticas de ações afirmativas, no campo edu-
cacional, buscam garantir o direito de negros e negras e de todos os cida-
dãos brasileiros ao acesso em todos os níveis e modalidades de ensino, em
ambiente escolar com infraestrutura adequada, professores e profissionais
da educação qualificados para as demandas contemporâneas da sociedade
brasileira, e em especial capacitados para identificar e superar as manifes-
tações de preconceitos, racismos e discriminações, produzindo na escola
uma nova relação entre os diferentes grupos étnico-raciais, que propicie
efetiva mudança comportamental na busca de uma sociedade democrática
e plural (BRASIL, 2013, p. 10-11).

Como nota-se, as Diretrizes, diferente dos documentos anteriores, como


LDB (BRASIL, 1996) e PCN (BRASIL, 1998), apontam possíveis temas e obje-
tos a serem tratados nas salas de aula sobre História da África. As diretrizes des-
tacam que o professor deve dirigir seu trabalho na desconstrução de estereótipos
que recaem sobre o continente, foram feitas as seguintes determinações para esse
conteúdo específico:
- Em História da África, tratada em perspectiva positiva, não só de de-
núncia da miséria e discriminações que atingem o continente, nos tópicos
pertinentes se fará articuladamente com a história dos afrodescendentes

45
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

no Brasil e serão abordados temas relativos: – ao papel dos anciãos e dos


griots como guardiões da memória histórica; – à história da ancestralidade
e religiosidade africana; – aos núbios e aos egípcios, como civilizações que
contribuíram decisivamente para o desenvolvimento da humanidade; – às
civilizações e organizações políticas pré-coloniais, como os reinos do Mali,
do Congo e do Zimbabwe; – ao tráfico e à escravidão do ponto de vista dos
escravizados; – ao papel de europeus, de asiáticos e também de africanos
no tráfico; - à ocupação colonial na perspectiva dos africanos; – às lutas
pela independência política dos países africanos; – às ações em prol da
união africana em nossos dias, bem como o papel da União Africana, para
tanto; – às relações entre as culturas e as histórias dos povos do continente
africano e os da diáspora; – à formação compulsória da diáspora, vida e
existência cultural e histórica dos africanos e seus descendentes fora da
África; – à diversidade da diáspora, hoje, nas Américas, Caribe, Europa,
Ásia; – aos acordos políticos, econômicos, educacionais e culturais entre
África, Brasil e outros países da diáspora;
- O ensino de Cultura Africana abrangerá: – as contribuições do Egito para
a ciência e filosofia ocidentais; – as universidades africanas Timbuktu,
Gao, Djene que floresciam no século XVI; – as tecnologias de agricultura,
de beneficiamento de cultivos, de mineração e de edificações trazidas pelos
escravizados, bem como a produção científica, artística (artes plásticas, li-
teratura, música, dança, teatro), política, na atualidade;
- O ensino de História e Cultura Africana se fará por diferentes meios,
inclusive a realização de projetos de diferentes naturezas, no decorrer do
ano letivo, com vistas à divulgação e estudo da participação dos africanos
e de seus descendentes na diáspora, em episódios da história mundial, na
construção econômica, social e cultural das nações do continente africano
e da diáspora, destacando-se a atuação de negros em diferentes áreas do
conhecimento, de atuação profissional, de criação tecnológica e artística,
de luta social (entre outros: rainha Nzinga, Toussaint-L’Ouverture, Martin
Luther King, Malcom X, Marcus Garvey, Aimé Cesaire, Léopold Senghor,
Mariama Bâ, Amílcar Cabral, Cheik Anta Diop, Steve Biko, Nelson
Mandela, Aminata Traoré, Christiane Taubira) (BRASIL, 2004, p. 21-23).

Desse modo, em 2010 inicia-se, na Conferência Nacional de Educação


(CONAE), as discussões sobre a necessidade da construção de uma Base
Nacional Comum Curricular (BNCC). Entre 2015 e 2018, essa proposta foi de-
batida e aprovada até sua versão final. A BNCC “é um documento normativo
que define o conjunto de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem
desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica3” (BRASIL,
2018), de forma que Estados e municípios devem reorganizar seus currículos
para adequá-los a essas normativas. O documento não indica os conteúdos a
serem desenvolvidos, mas indica as competências e habilidades que se espera
que todos os estudantes desenvolvam ao longo da escolaridade, elencando ainda
algumas habilidades para o ensino de História da África, principalmente, para os
anos finais do Ensino Fundamental.

3 Fonte: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/a-base Acesso: 21/02/2022


46
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Apesar do avanço em trazer o Ensino de História da África como obriga-


tório na construção dos currículos dos sistemas de ensino estaduais e municipais,
na BNCC, o continente e sua história continuam atrelados aos ditames colo-
niais, sendo considerado apenas em suas relações com o Ocidente, ignorando,
por exemplo, as conexões Índicas e com o Império Árabe Islâmico.
Nesse sentido, há a necessidade de se promover o desmonte de certos ar-
ranjos de conteúdos da história ensinada nos níveis Fundamental e Médio, bus-
cando a superação da visão tradicional imposta pelos currículos em que se cris-
talizam noções como progresso, civilização, modernização, marcando os rumos
em direção aos quais todos os povos devem caminhar. Essa desmontagem passa
pela reorganização dos tópicos a serem trabalhados e pela inclusão de temas
que, ao invés de construir aqueles modelos de sociedade a serem alcançados, ou
mostrar sociedades diversas, sob uma visão linear e generalizada, numa linha
histórica que é europeia, busquem analisar efetivamente os temas e problemá-
ticas presentes no meio social, com uma abordagem diversificada, não somente
política e econômica, mas também cultural e social.

ESTRUTURA DO MÉTODO E MATERIAL DIDÁTICO

Para Vygotsky (2001), o homem se forma em contato com o social, de


modo que a aprendizagem se dá na interação entre os sujeitos, entre si e com o
meio em que vivem, e não se resume a aquisição de informações, mas é um pro-
cesso interno, ativo e interpessoal. Para o teórico, o professor, por ser mais expe-
riente, é o mediador desse processo e deve planejar as interações de seus alunos.
Como o processo de aprendizagem é social, o foco da nossa atenção desloca-se
para as interações e os métodos de ensino tornam-se fundamentais.
A palavra Método vem do latim, methodu, méthodos, que significa cami-
nho para chegar a um fim; conjunto de procedimentos técnicos e cientí-
ficos; ordem pedagógica na educação; sistema educativo ou conjunto de
processos didáticos. Assim, ao abordar métodos de ensino e de aprendiza-
gem, trata-se de um caminho para se chegar ao objetivo proposto. No caso
específico da educação escolarizada, o fim último seria a aprendizagem do
aluno de maneira eficaz (LACANALLO et al., 2007, p. 2).

Os métodos devem criar condições para que os alunos se tornem cidadãos,


livres de manipulações, que consigam ter a capacidade de pensar e examinar cri-
ticamente as ideias que lhes são expostas e a realidade social que compartilham
(SOARES, 2019, p. 21). Segundo Dewey (2007), para compreender o sentido da
experiência, o espírito deve rememorar as situações concretas que se apresentam
fora da escola, as ações que na vida comum despertam interesse. O essencial
para o processo de aprendizagem é a interação entre o aluno, o assunto e o modo
pelo qual o conhecimento lhe é apresentado. Para Dewey (2007) são etapas do
47
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

método de educar:
- uma situação problema dentro de um contexto de experiência que ser-
virá de estímulo;
- a posse de conhecimentos informativos para agir dentro da situação;
- a ocorrência de sugestões, que o aluno mesmo deverá desenvolver de
forma ordenada;
- a oportunidade de aplicar as ideias surgidas, comprovando seu valor e
descobrindo o seu significado.
Com base nas premissas discutidas e nas etapas propostas por Dewey, foi
desenvolvida um método de História da África, que também pode ser trabalhada
para a produção de material didático de outros povos “estigmatizados e estereo-
tipados aos olhos da nossa cultura como indígenas, ciganos, muçulmanos etc”
(SOARES, 2019, p. 22). O objetivo principal é a desconstrução das imagens sobre
o continente africano e seus povos ao longo da história.
Para tanto, este trabalho, metodologicamente, conta com cinco passos:
problematização do real, com uma questão motivadora do estudo da temática;
sondagem do conhecimento do aluno sobre a temática a ser trabalhada; trabalho
com a representação que a sociedade que está sendo analisada tem de si mesma;
interpretação de textos e fontes históricas; avaliação das novas representações
forjadas pelos alunos, sobre a sociedade analisada.
A partir deste método, foi construído o material didático “História da
África: além dos limites da Imaginação”, que propõe aos alunos algumas proble-
máticas sobre História, diversidade, África etc. O material pode ser acessado em
sua integra no apêndice 3 da dissertação “África, um Novo Olhar: o ensino de
História da África na Educação Básica” (SOARES, 2017)4, entre as páginas 148
a 199. O material é composto por textos e atividades para que o professor busque
apoio na elaboração de suas aulas, seguindo uma dinâmica, com começo, meio
e fim, porém o professor pode selecionar apenas os textos e atividades que serão
úteis na elaboração de seus planos de aula e para seus alunos. A seguir, apresen-
taremos as etapas do método e as atividades propostas.

1- PROBLEMATIZAÇÃO DO REAL

No primeiro momento, propomos duas questões motivadoras que partem


de uma problematização da nossa realidade. Por que estudar História da África
no Brasil? Por que foi necessária uma lei (Lei 10639/03) para fazer conteúdo tão
importante para a compreensão da História Nacional?

4 SOARES, Patrícia da Silva. África, um Novo Olhar: o ensino de História da África na


Educação Básica, Goiânia, 2017. https://educapes.capes.gov.br/handle/capes/574971
Acesso: 21/02/2022
48
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

O conhecimento histórico é produzido pelo historiador no confronto entre


questões que partem do presente, elaboradas para a compreensão do passado e
as fontes históricas encontradas durante a pesquisa. Compreende-se que, “no en-
sino de História, problematizar é construir uma problemática acerca do passado,
a partir de um objeto de estudo, tendo como referência o cotidiano e a realidade
presente daqueles que vivem a história,” (SCHIMIDT, 2002, p. 208).
Com esse entendimento, o objetivo geral dessa primeira etapa é analisar,
com os alunos, a seleção do conteúdo de História do nosso currículo escolar e
a inclusão da História da África e da cultura afro-brasileira como componente
curricular, a partir das duas questões motivadoras. Nesse interim, foi formulado
um texto didático intitulado “A Importância da História da África no Brasil5, que
analisa a Lei 10639/03, por que da sua criação e por quem foi pensada, e uma
atividade intitulada “A Lei 10639/2003 e a Sala de Aula”6, que trabalha as duas
problemáticas iniciais.

2- SONDAGEM DO CONHECIMENTO DO ALUNO SOBRE A


TEMÁTICA A SER TRABALHADA

Nos novos estudos sobre o Ensino de História, os alunos passaram a ser


compreendidos como agentes de sua própria formação, com ideias e experiências
prévias sobre a sociedade, a cultura e sobre a própria história. Neste processo de
aprendizagem, é a partir do presente de cada um que o conhecimento sobre o
passado acontece> “de acordo com essa nova linha de investigação, existem di-
ferentes tipos de passado, baseados em diferentes modos de ler o presente, sendo
que o passado deve ser descrito e explicado em coerência com a evidência exis-
tente” (SOBANSKI et al., 2009, p. 11).
Partindo desse entendimento, o professor é um pesquisador e investiga o
conhecimento prévio dos alunos como forma de iniciar o trabalho contextuali-
zado da História, a ideia é conhecer o aparato intelectual dos alunos, de modo
a desafiá-los e acompanhá-los na construção da aprendizagem (BARCA, 2004).
Aqui neste trabalho chamamos de Sondagem do conhecimento do aluno sobre
a temática a ser trabalhada, com a ideia de que não só o professor analise o co-
nhecimento dos alunos sobre o tema, mas que os próprios alunos percebam as in-
formações por eles apresentadas e o que será reconstruído no decorrer das aulas.
Para a sondagem do conhecimento dos alunos, foi formulado um questio-
nário, intitulado, “Imagens da África”7, com o objetivo de analisar qual é a visão
predominante que eles têm sobre a África. É um questionário com perguntas

5 SOARES, 2017, p. 152


6 Idem, p. 154
7 Idem, p. 157
49
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

fechadas, com afirmações sobre o continente africano, em que o aluno deve res-
ponder: concordo, discordo, indeciso. O professor também pode propor que o
aluno aplique o questionário com outras pessoas de diferentes idades. Ao final, é
proposta a tabulação dos dados dos questionários da turma e a transformação em
tabelas para a visualização da imagem da África a ser trabalhada e desconstruída
durante as aulas

3- TRABALHO COM OUTRAS REPRESENTAÇÕES DA SOCIEDADE


ANALISADA

O objetivo geral dessa etapa8 é analisar a construção dos estigmas e este-


reótipos construídos sobre o continente africano e seus povos. Para isso, foram
propostos a análise de imagens, mapas, documentário e textos literários (pro-
duzidos por duas autoras africanas9), pois oferecem aos alunos outros olhares,
novas narrativas e outros tipos de representação sobre o continente, fazendo-os
também questionar a ideia de unicidade da história e as suas interpretações.
O destaque dessa etapa é a atividade “Representações do Continente
Africano”,10 que propõe a análise de representações do continente africano por
meio de uma busca no Google Imagens, e o diagnóstico de quais são as imagens pre-
dominantes da África neste suporte de pesquisa e o motivo dessa predominância.
Após esse primeiro passo, é proposto aos alunos uma nova pesquisa, desta feita,
na rede social Twitter, com a hashtag #TheAfricaTheMediaNeverShowsYou11
(África que a mídia não mostra para você), em que africanos de vários países pos-
tam fotografias das suas cidades, da sua vida cotidiana, da diversidade das várias
regiões do continente. Criada pela estudante somali-americana, Diana Salah, de
22 anos, com o objetivo de desconstruir a narrativa única que apenas vende a
miséria e o sofrimento, e mostrar a diversidade do continente. Os alunos têm
que selecionar uma fotografia que diverge da sua percepção sobre o continente
e justificar a sua escolha. O objetivo da pesquisa é que os alunos consigam ter
uma percepção de que há diferentes formas de representar o continente africano
e seus povos, e que a forma que representamos e interpretamos outros povos são
expressões da nossa própria cultura.

4- INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS E FONTES HISTÓRICAS

8 Idem. P. 156 a 174.


9 CHIZIANE, Paulina. Eu, Mulher... Por uma Nova Visão do Mundo. Revista do Núcleo
de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 5, n° 10, abril de 2013. ADI-
CHIE, Chimamanda Ngozi, Sejamos Todos Feministas. São Paulo: Companhia da Letras.
10 SOARES, 2017, p.157 e 158.
11 https://twitter.com/search?q=%23TheAfricaTheMediaNeverShowsYou&src=tyah&ver-
tical=default&f=tweets Acesso:22/02/2022
50
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Nesta etapa, trabalha-se com encontros culturais de alguns povos africa-


nos do século X a XV e a produção de novas culturas híbridas, por causa das tro-
cas promovidas pela análise de textos historiográficos e fontes históricas12. Tem
como objetivo entender a dinâmica do continente anterior ao século XV que,
diferente da representação de isolamento que temos hoje, estava todo interligado
por rotas de comércio e os diversos povos encontravam-se, trocavam mercadorias
e cultura.
É necessário perceber que a história é interpretação, que os textos historio-
gráficos são pontos de vista construídos a partir da documentação selecionada.
Para Barca (2007), esse processo se chama de literacia histórica, que é a capacidade
de “lermos o mundo historicamente”. Para isso, o professor deve debater e sele-
cionar mensagens, saber interpretar fontes históricas, analisar e selecionar pontos
de vista, comunicar sob diversas formas, apostar em metodologias que envolvam
os alunos no ato de pensar historicamente (BARCA, 2007).
Nesse sentido, o trabalho do professor assenta-se sobre a utilização de
diferentes fontes históricas e narrativas históricas, com o objetivo de promover
nos alunos a competência histórica de compreender que a História é construída
com diversas perspectivas (BARCA, 2004). Assim, foram formuladas atividades
de análise de documentos escritos tanto de viajantes que passaram pela região13
quando um relato de um griot14 – membros da sociedade da costa ocidental afri-
cana, que têm como função a transmissão da cultura e história de seu povo pela
oralidade – como exemplo de visões diferentes sobre uma mesma cultura.

5- AVALIAÇÃO FINAL

Na etapa final, voltamos ao questionamento inicial, sobre a sociedade


trabalhada e apresentação do conhecimento construído pelo aluno em relação
aos povos estudados. O que permanece e o que mudou com as análises feitas nas
aulas anteriores. Para isso, foi formulado uma enquete15, que propõe aos alunos
retomarem o questionário de sondagem, sobre qual representação eles tinham
sobre o continente africano e compará-las com as ideias que possuem após a
disciplina. O objetivo dessa atividade é uma autoavaliação dos alunos, de forma
que este instrumento permite ao professor e ao aluno analisar se houve mudança
no pensamento histórico em relação à temática investigada, comparar ideias his-
tóricas produzidas antes e depois do trabalho com o conteúdo.

12 SOARES, 2017,p.75 a 199


13 Idem, 178
14 Idem,182-183
15 Idem, p.198
51
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

CONCLUINDO

A representação que o brasileiro tem sobre o continente africano e seus


povos não sofreu grandes transformações desde o início do século XX. A África
ainda é vista como uma região selvagem, isolada, distante, de onde vieram os
“escravos” no período colonial. A proposta didática “História da África: além
dos limites da imaginação”, foi construída a partir da análise da “Lei 10639/03”
e seu complemento as “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana.
Um dos principais problemas encontrados para o ensino de História da
África é a falta de material didático para o professor, os livros didáticos destinam
poucas páginas a esse conteúdo. Neste trabalho, além de sugerir um método di-
dático, o professor pode selecionar os textos e atividades que lhe interessam para
a construção de suas aulas.
A temática sobre as representações do continente africano foi seleciona-
da, visando à desconstrução das imagens construídas em nossa cultura, de uma
África indistinta, um bloco de fome, escravidão, pobreza, doença e sequidão,
almejando à reconstrução da imagem do próprio negro afrodescendente brasi-
leiro, pois ligamos a imagem do africano, dominado, escravizado, selvagem à
própria imagem do negro. O conteúdo visa estabelecer um sentido positivo para
a formação da identidade do aluno negro e a formação de cidadãos atuantes e
democráticos, capazes de compreender as relações sociais e étnico-raciais de que
participam, ajudam a manter e ou reelaborar.

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educação histórica. Braga: Uniminho, 2004. p. 131-144.
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52
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

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temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Brasí-
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54
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

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VIGOTSKY, L. S. Psicologia pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

55
O ENSINO DE HISTÓRIA PAUTADO NA
CULTURA AFROBRASILEIRA
Jackson Adair Gonçalves1

INTRODUÇÃO

O que muito tem se verificado em livros didáticos escolares é a falta de ma-


terial dedicado a cultura africana no Brasil, e mais, pouco estimulado a temática
pelos professores em sala de aula.
Os negros sempre fizeram parte da cultura brasileira, mais de 52 % da
população brasileira tem descendência africana, e mesmo assim, as perspectivas
de ações ou projetos que culminem em um diálogo nos educandários ainda é
muito raro.
Nota-se que esse assunto não é só de ser trabalhado com alunos do ensi-
no médio, alunos das séries iniciais do ensino fundamental devem receber uma
formação, pois, com base na Lei 10.639 de 2003, institui na educação básica o
estudo da cultura afro brasileira e indígena.
Ainda, temos o marco da Consciência Negra, data em 20 de novembro,
como forma de resgatar a historicidade da cultura afro, porém, inúmeras vezes
passa-se desapercebido nos educandários.
É notório destacar as lideranças que ainda lutam pela igualdade de gênero
e raça no Brasil, e temos um exemplo aqui no Estado do Rio Grande do Sul,
que é a professora Fabrícia Ferreira, que hoje concilia seu trabalho na Secretaria
Estadual de Educação (SEDUC-RS), com o trabalho de Miss Africana e, em
suas ações busca reforçar essa temática nos educandários, chamando a atenção
dos professores da importância em se falar dos movimentos negros e do papel
que esse povo teve e tem, na desenvoltura do país.
Enfim, a luta é diária, são negros violentados, espancados, discriminados
diariamente no país, é necessário repensar dentro da disciplina de história, em
dialogar com os alunos a questão inter-racial, os valores e respeito, e trazer a
tona, toda essa cultura fantástica brilhante na Bahia, para todos os cantos do
país.
O trabalho, se dividiu em subtítulos para facilitar a compreensão dos

1 Mestrando em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Professor da Rede Esta-
dual do Rio Grande do Sul. Email: [email protected].
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

leitores, e ao mesmo tempo, para trazer ao debate questões essenciais de serem


trabalhados no ensino didático.

SINCRETISMO RELIGIOSO: UMBANDA E CATOLICISMO

A religião afrobrasileira, muito difundida pelos negros vindos da África


no período colonial, é até hoje um legado de bravura e resistência, até porque os
negros encontraram na fé motivos para enfrentar os obstáculos e sofrimentos que
sofriam e sofrem até os dias atuais, sendo vítimas de desrespeito em seus templos
e terreiros.
Segundo Bezerra (2020, s/p) destaca que o sincretismo religioso “... se
caracteriza pela união de elementos culturais, religiosos e ideológicos distintos
que formarão uma nova cultura, religião ou sociedade.”
Ainda Bezerra elenca que:
O cristianismo nasceu do judaísmo, e um dos pilares desta crença, a Torá,
faz parte do conjunto de livros sagrados cristãos, a Bíblia. Igualmente, a
grande festa judaica, a Páscoa, está presente no cristianismo, após ser res-
significada pelos cristãos. [...] Da mesma forma, a Igreja Católica tomou
elementos da administração o Império Romano absorvendo sua organiza-
ção. Um exemplo é a instituição de um líder máximo, o Pontífice. Este tí-
tulo, no entanto, vem da religião politeísta romana e pertencia ao sacerdote
de mais prestígio do Colégio Pontifical (BEZERRA, 2020, s.p.).

Esse sincretismo entre a Umbanda e o catolicismo é muito importante


para a sociedade pois, o Estado é laico, livre para todos os pensamentos e mani-
festações religiosas. Essa sintonia se dá pelos atos de caridade, de amor, de culto
aos orixás e dos momentos de aproximação à espiritualidade através do líder
religioso da casa. O catolicismo já tem uma missa mais tradicional, pautadas na
Bíblia e no monoteísmo, que trazem aspectos de Roma, sabendo que hoje em dia
o catolicismo também originou outros movimentos católicos.
A Umbanda é uma religião brasileira, de matriz africana, onde ocorrem
diversos sincretismos. Esta crença tem elementos do kardecismo, do candomblé,
da religião indígena, do catolicismo, entre outros cultos. O sincretismo ocorre
tanto em nível doutrinal com elementos do monoteísmo, reencarnação e figu-
ras a serem cultuadas, como no aspecto exterior, pois suas celebrações ocorrem
numa Casa ou Terreiro (BEZERRA, 2020, s.p.).
As religiões de matrizes africanas, como a Umbanda, sofreram e ainda
sofrem discriminação por parte de pessoas e ou religiões, essa perseguição vem
de longos tempos, quando o Brasil ainda era Colônia de Portugal. O preconceito
pelos cultos as entidades (orixás) nesse período, vinham dos fazendeiros e escra-
vocratas, que tinham como única religião o catolicismo.
Guimarães reflete sobre o assunto:

57
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Sem autonomia e com o catolicismo, advindo dos portugueses, como re-


ligião dominante na época, os negros trazidos ao Brasil em navios negrei-
ros eram impedidos de manifestar as crenças nos Orixás, cujo culto era
apontado como heresia e feitiçaria por escravocratas e fazendeiros de várias
regiões do país. Na tentativa de defender a religiosidade e a identidade de
um povos, eles mantiveram a crença através dos Otás [pedras]. [...]Assim,
cada Orixá tinha sua pedra - colocada dentro imagens que representam
os santos católicos - reverenciada sem a opressão dos senhores. Desta for-
ma, deu-se início ao sincretismo religioso, através da associação dos ori-
xás aos santos católicos, e funcionando como uma maneira de livrar-se
dos castigos e perseguições religiosas da época. Assim, quando se cultuava
Santa Bárbara, estava se referindo à Iansã; ao rezar para Nossa Senhora da
Conceição, falavam com Iemanjá (GUIMARÃES, 2018, s.p.).

O autor Guimarães (2018) bem retrata o período colonial, onde as reli-


giões afro brasileiras eram discriminadas e não aceitas, até porque os portugueses
dominavam o país com as catequeses trazidas pelos padres jesuítas, e tudo que
fosse contra a vontade religiosa portuguesa, seria heresia ou pecado.

O ENSINO RELIGIOSO COMO REFLEXÃO HISTORIOGRÁFICA


DA CULTURA RELIGIOSA DAS MATRIZES AFRICANAS.

A escola é um espaço de socialização de saberes, de democracia, onde


crenças, raças, etnias se encontram, formando várias culturas diversificadas no
ambiente escolar. Em regiões do país, a educação do campo é voltada para indí-
genas, que aprendem conhecimentos e trocam ideias dentro de suas línguas com
professores especializados.
Também vale relembrar que a Constituição (BRASIL, 1988), no parágrafo
único ao artigo 1º dispõe que “todo o poder emana do povo, que o exerce por
meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Deste modo, a sociedade se encontra devidamente legitimada a exigir de seus
representantes o cumprimento dos preceitos constitucionais acima descritos me-
diante a formulação de políticas públicas, dentre elas as fiscais, que garantam a
implementação e a eficácia dos objetivos perseguidos na Constituição Federal
nos seus preceitos fundamentais (GOLDSTAJN, 2012, p. 01).
O ensino religioso é essencial nos educandários de todas as escolas do país,
não apenas como uma mera disciplina, mas sim como uma disciplina capaz de
mostrar ao aluno que religião não é uma só, ou uma ideologia, é algo que vai
além, é também diálogo e reflexão acerca das diferentes manifestações religiosas
presentes na historicidade do Brasil e na modernidade atual.
Denota-se que durante o estudo e a própria vivência em sala de aula, per-
cebe-se que uma parte da sociedade pensa que o ensino religioso é ligado a dou-
trina católica ou que seria “o ensinamento de uma determinada religião”.

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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

O professor como mediador de todo conhecimento, deve sempre ter a con-


vicção que durante seus debates e reflexões, os alunos que ali estão presentes são
oriundos de famílias católicas, evangélicos, umbandistas, espíritas, entre outras,
por isso deve destacar a importância de dialogar e aceitar o convívio e socializa-
ção de todos.
O ensino religioso é uma disciplina muito importante no ambiente escolar,
visto que agrega valores e reflexão sobre o meio espiritual aos educandos, não
como uma ferramenta doutrinária, mas sim como uma forma dos alunos veem
o mundo de forma diferente, principalmente no que tange às diferenças sociais e
religiosas. Nesse contexto analisando épocas remotas, nota-se que os bons costu-
mes e valores que antes eram ensinados em casa, estão se perdendo, não só sob
influência da mídia, mas pela correria do trabalho do dia a dia, ou seja, vive-se no
capitalismo, onde tudo depende do trabalho e do sistema econômico.
Nesta análise, Gaertner afirma:
A sociedade na qual vivemos hoje é muito diferente daquela em que nossos
pais e avós viveram em suas juventudes. Os valores e costumes que antes
guiavam a geração anterior não são mais os mesmos. Em alguns casos,
chegam a ser contraditórios atualmente. É preciso educar essa geração para
que valores como responsabilidade, lealdade, coragem, ética, sabedoria e
respeito continuem unânimes e essenciais para a nossa convivência en-
quanto sociedade. Seja qual for a sua origem e sua cultura, valores éticos
devem ser os mesmos para todo mundo, no Brasil, nos EUA ou no Japão.
O melhor meio de estimular este pensamento é com a educação do ensino
religioso (GAERTNER, 2017, p. 01).

Conforme destacado pelo autor Gaertner (2017), a nova geração deve


ser educada para uma melhor vida em sociedade, pautada com os valores de
responsabilidade, ética, sabedoria, entre tantas outras, que aos poucos estão se
perdendo. É notável que a escola busque criar um momento para que os alunos
reflitam sobre suas ações em casa, no ambiente onde vivem, na própria escola,
com os amigos, enfim, o ensino religioso tem o papel de estimular para que esses
conceitos e atitudes venham a melhorar, e de certa forma, trazer benefícios para
a vivência em sociedade.
Ainda Gaertner frisa:
Hoje em dia, é cada vez mais comum presenciarmos pessoas mais indivi-
dualistas e, em certos níveis, egoístas com o mundo a sua volta. O apren-
dizado de valores como os que são passados com o ensino religioso tem a
chance de mudar este paradigma, uma vez que o foco é na formação de um
cidadão inserido dentro de uma sociedade. Aprender a viver de modo co-
laborativo e saber que todos têm a mesma importância, bem como direitos
e responsabilidades, dentro de uma sociedade, faz com que as atitudes e
ações dos alunos sejam mais coletivas, em prol de um bem maior. É pre-
parar as pessoas para se doarem mais ao próximo (GAERTNER, 2017, p.
01).
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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Neste contexto fica evidente o estímulo que o ensino religioso dá na vida


do jovem educando, que aprenderá a ser mais participativo e colaborativo frente
a socialização de saberes e atitudes perante o seu próximo, fazendo com que o
ambiente social seja mais harmonioso e igualitário entre todos. É essencial que a
disciplina ensino religioso seja coordenada por um docente capacitado, que real-
mente debata essas questões e busque a interação recíproca entre os educandos.
O ensino religioso traz muitos benefícios para quem está formando as suas
raízes e conceitos. Incluir esse tipo de disciplina nas escolas é poder transformar
e multiplicar estes benefícios em algo muito maior, que atingirá um número mais
avantajado de pessoas, espalhando a palavra e os valores religiosos e éticos em
uma sociedade que se tornará bem mais justa. (GAERTNER, 2017, p. 01).
Segundo Serafim ressalta que:
O ensino religioso não trata de uma área de temas transversais, mas, acima
de tudo, é uma área de conhecimento necessário em sintonia com os pila-
res da educação que busca aprender a conhecer, a fazer, a conviver e a ser.
Tem como objetivo “propiciar a aprendizagem significativa dos elementos
básicos que compõem o fenômeno religioso, analisando as diferentes ma-
nifestações do Sagrado a partir da realidade do educando, subsidiando na
formação dos questionamentos existenciais, contribuindo de forma inter-
disciplinar e transdisciplinar no exercício da cidadania e do convívio social,
ético e pacífico e, promovendo o diálogo inter-religioso, o respeito às dife-
renças com o outro e com a natureza” (SERAFIM, 2012, p. 01)

Nesse contexto, o autor nos apresenta o real significado do ensino religio-


so nos educandários que é a formação pautada na aprendizagem significativa
através da análise das diferentes manifestações religiosas, buscando aproximar o
educando do conhecimento, e que através disto aprenda a respeitar ainda mais o
“sagrado religioso” de cada colega em sua classe. Para isso, o docente necessita
estar capacitado e saber aplicar as lições tomando como base a ética e respeito a
todas as manifestações religiosas.
De fato, o Brasil é um país rico em culturas religiosas em diferentes esta-
dos e cidades, e desde a colonização até sua independência já existiam rituais
religiosos, bem como crendices e benzeduras, que fazem parte da espiritualidade
brasileira. Hoje em dia, o ensino religioso não é catequese, mas sim um estudo
centrado nas religiões existentes, ou seja, o conhecer do sagrado, uma releitura
de todo o campo espiritual vivenciado pelas pessoas.
Ainda Serafim relembra a historicidade do ensino religioso:
No decorrer da história educacional do Brasil, houve várias tendências so-
bre a forma de conhecer o transcendente. Das três concepções de ensino
religioso que existem no Brasil, no que se refere ao termo “religião”, a
mais recente situa-se na visão de uma “releitura” (do latim: “relegere”,
significa: re-ler) a respeito do fenômeno religioso, que se caracteriza pelo
conhecimento hermenêutico, a partir do convívio social, no saber de si, e

60
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

não como catequese (“reelegere”, quer dizer: re-escolher), como um povo


escolhido, embora haja uma aceitação muito forte e atuante sobre as ques-
tões éticas ou vivência de valores (“religere”, isto é, religar a pessoa à Deus)
(SERAFIM, 2012, p. 01).

Frisa-se que a disciplina de ensino religioso não está no educandário para


converter ou mudar a religião dos alunos, mas sim, fazer com que os estudantes
conheçam a historicidade das outras culturas religiosas que fizeram parte da his-
tória do Brasil ou que, ainda, fazem parte. É um momento de rever o papel que
a espiritualidade pode ocupar na vida do educando, não só com a parte teórica,
mas também de se criar momentos de reflexão sobre as coisas boas que a vida
proporciona através da fé em algo sagrado.
Para isso, como já destacado, o profissional que atua com a disciplina de
ensino religioso deve manter o foco no saber de sua classe, passando os conheci-
mentos e desfrutando da participação de seus alunos. A disciplina não é pensar
em seu salário ou fazê-la uma extensão de uma determinada religião, mas sim,
buscar conhecer cada uma, com carinho, amor e atenção.
Segundo Morais destaca:
Enquanto o Ensino Religioso for compreendido como o espaço do qual as
Tradições Religiosas se utilizam para manter o proselitismo religioso, ao
fazerem da escola uma extensão da instituição religiosa, buscando novos
adeptos, ou transformando a disciplina Ensino Religioso num cabide de
empregos para seus fiéis, mantendo ou reforçando seus salários, esse tipo
de atitude evidencia-se que não é a disciplina de Ensino Religioso a pro-
blemática. O problema é a competência pedagógica dos que orientam o
processo de ensino-aprendizagem na instituição (MORAIS, 2014, p. 01).

A parte pedagógica institucional deve sempre acolher da melhor forma


os estudantes, visto que cabe acompanhar se os docentes realmente estão cum-
prindo seu papel que é formar educandos éticos e criar aulas que primem pela
diversificação cultural.
Nas escolas brasileiras, o Ensino Religioso (ER) é um componente cur-
ricular do Ensino Fundamental e nessa perspectiva, o conceito de religião não
deve atender a compromissos religiosos específicos. A escola é um ambiente de
aquisição de conhecimento e, exatamente por isso, é um espaço que permite or-
ganização, condução e desenvolvimento dessas diferenças (SILVA, 2014, p. 166).
Para que o ensino religioso realmente tenha seu significado no âmbito es-
colar, bem como na vida social e espiritual do aluno, é imprescindível que o
docente tenha uma formação comprometida com o saber, além de uma postura
ética e que em sala de aula vise destacar ações e atividades que envolvam todas
as manifestações religiosas. Ainda, uma formação específica acadêmica, seja na
graduação ou pós graduação em ensino religioso, dará um melhor norte na de-
senvoltura das atividades em sala de aula.

61
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Em relação aos conteúdos a serem trabalhados na disciplina de ensino


religioso, Silva destaca:
O Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER) acom-
panha, organiza e subsidia o esforço de professores, associações e pesqui-
sadores para efetivar o Ensino Religioso como componente curricular a
partir dos seguintes eixos e conteúdos a serem trabalhados nas escolas: a)
Culturas e tradições religiosas: o desenvolvimento de temas que decorrem
da relação entre cultura e tradição religiosa, destacando a ideia transcen-
dente da visão tradicional e atual; b) Teologias: analisar as múltiplas con-
cepções do transcendente com destaque para a descrição das suas repre-
sentações nas tradições religiosas, doutrinas e crenças que orientam a vida
do fiel, etc.; c) Textos sagrados e tradições orais: aprofundam o significado
da palavra sagrada no tempo e no espaço, com destaque para a autoridade
do discurso religioso; d) Ritos: buscam o entendimento das práticas cele-
brativas contemplando, por exemplo, a descrição das práticas religiosas e
identificando os símbolos mais importantes das tradições religiosas; e) Et
hos: consiste em analisar a vivência crítica e utópica da ética humana a
partir das tradições religiosas considerando o relacionamento com o outro
(SILVA, 2014, p. 169).

O autor Silva (2014) enfatiza algumas temáticas a serem trabalhadas den-


tro da disciplina de ensino religioso, buscando abordar contextos reflexivos e
que realmente tragam contribuições na vida estudantil e profissional do aluno.
Salienta-se que essa linhagem de pensamento destacada pelo autor em que frisa
alguns conteúdos, são sugestões que podem e devem ser incluídas no plano de
aula do docente em ensino religioso pois, traz neutralidade e eficiência na abor-
dagem espiritual e religiosa em sala de aula.

A DISCIPLINA DE HISTÓRIA COMO PAPEL FUNDAMENTAL NO


TRABALHO DO RESGATE DA CULTURA AFROBRASILEIRA

A disciplina de história vem fazer esse resgate cultural do povo afrodes-


cendente no Brasil, através de seus legados, vivências, contribuições e a partici-
pação do negro em diferentes setores da sociedade. O negro na história não foi
aquele visto somente como escravo, mas sim como “ser humano” que ajudou a
escrever a história do país. Sem suas comidas, suas vestimentas, seus saberes, sua
liderança e sua garra frente aos seus patrões que os maltratavam, não existiria
essa miscigenação de culturas e nosso Brasil não seria “rico” de tantas invenções,
criatividades e conhecimentos.
Compreender as relações estabelecidas no interior da sociedade brasileira
é importante para que se possa entender as desigualdades raciais e sociais do
Brasil. Assim, o ponto inicial desta desigualdade parece estar sedimentada nos
estereótipos socialmente construídos sobre o negro escravizado. Estas imagens
negativas foram se constituindo com tal força que se formou ao longo dos anos

62
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

um fosso considerável de desigualdade entre a 11630 população negra e a popu-


lação branca (CASTRO et al., 2009, p. 11629).
Conforme os autores Castro e colaboradores (2009) fica nítido que o país
brasileiro ainda existe escravidão, ainda existe racismo, preconceito, e é a partir
deste momento que a disciplina de história toma como base formar os educandos
com um pensando voltado realmente ao saber crítico, ou seja, mostrar a força do
povo afro brasileiro tem desempenhado durante séculos, para mostrar que todos
os seres humanos são iguais, não é a cor da pele que vai mudar a capacidade
intelectual do sujeito ou o cargo que ele vai ocupar na sociedade. Rever e estudar
as matrizes africanas é cultuar a raça brasileira, é valorizar os antepassados que
lutaram contra a escravidão, para tornar uma sociedade livre, onde todos possam
ser iguais, conforme a Constituição Brasileira estabelece.
Para Castro e colaboradores frisa que:
A criação de espaços de luta em favor da igualdade racial no Brasil per-
passa os séculos, desde a formação de quilombos (XVI) até a criação de
instituições e/ou associações no início do século XX. No início desse sé-
culo tem-se a criação de diferentes espaços com o objetivo de dar maior
visibilidade à população negra. Na década de 1930 e 1940 podemos assi-
nalar, respectivamente, a criação da Frente Negra Brasileira que defendia a
educação como caminho para a promoção da igualdade racial no país, e o
Teatro Experimental do Negro (TEN) que objetivava inserir no teatro bra-
sileiro o negro como tema, intérprete e criador. Na década de 1950 surge a
Associação Cultural do Negro (ACN) que teve como proposta a constru-
ção de uma ideologia para o negro brasileiro. Na década de 1960 e 1970,
acontecimentos fora do Brasil como a luta dos negros estadunidenses por
direitos civis, as lutas de independência dos países africanos e, internamen-
te, a ditadura militar no Brasil, espalharam a semente da militância negra
(CASTRO et al, 2009, p. 11.631).

Os movimentos dos negros na atualidade vem a somar pelos seus direitos,


que é continuar lutando pelos seus cultos livres sem ameaças ou discriminação,
e também por direito a cursar o ensino superior e participar ativamente nas po-
liticas públicas que os favoreçam em todos os segmentos, seja saúde, educação,
moradia, enfim.
Denota-se nessa caminhada vários filósofos, sociólogos negros que tem
conquistado seu espaço social e que podem debater na mídia a reflexão sobre a
ancestralidade africana no país. No Rio Grande do Sul, um dos grandes nomes é
a Miss Afro Plus Size Brasil, Fabrícia Ferreira, professora, natural de Espumoso-
RS, que tem intensificado suas ações com palestras escolares e formação de pro-
fessores no Estado a respeito da importância da cultura afro brasileira na his-
toricidade local, regional e nacional. Fabrícia pretende neste ano de 2022 criar
projetos em parceria com professores sobre a história da cultura afro no país,
além de visitar municípios e criar palestras com essa finalidade. Como Miss Afro

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(O rganizadores )

Plus Size Brasil, sua meta é cada vez mais dialogar seja em entrevistas para a
mídia, seja com professores, alunos e comunidade, sobre a valorização do negro
na modernidade e que a descriminação é crime e deve ser denunciada.

CONCLUSÃO

O ensino religioso tem tomado muitas vezes proporções erradas nos edu-
candários enquanto disciplina do saber, visto que, o docente não tem uma pre-
paração necessária para atuar neste campo, seja por não ter formação na área de
ensino religioso, ou por muitas vezes tentar pregar uma doutrina religiosa em sua
classe.
Denota-se que muitos docentes da área, não pensam na formação sólida
do estudante, mas sim apenas em passar um texto qualquer e ganhar seu dinhei-
ro no final do mês. Para isso, busca-se profissionais capacitados, e que o setor
pedagógico das escolas deem atenção às atividades desempenhadas por seus do-
centes, visando verificar se realmente as temáticas e planos de aula estejam sendo
desenvolvidos da forma correta.
O ensino religioso é muito mais que uma disciplina, busca formar no alu-
no seu caráter de respeito frente às diferentes manifestações religiosas, e levar ao
aluno conhecimento prévio sobre historicidade, espiritualidade e saber frente às
diferentes manifestações culturais religiosas.
A umbanda, religião de matriz africana, tem sido destaque no Rio Grande
do Sul pela devoção em Iemanjá, orixá que tem suas festividades no mesmo dia
que Nossa Senhora dos Navegantes. Denota-se que também é uma religião his-
tórica, que tem suas raízes fixadas nos terreiros e casas, principalmente de Porto
Alegre, e que foi trazida por escravos no período colonial no Brasil.
A fé e devoção é nítida em todos os festejos, sejam eles na Umbanda ou
no Catolicismo, porém os traços da historicidade religiosa sobrevive aos séculos,
passando de geração para geração, e os cultos sendo um portal com a espirituali-
dade, emanando luz e prosperidade aos seus devotos e fiéis.
Já a disciplina de história necessita fazer esse resgate histórico da cultura
afrobrasileira, tendo em vista a obrigatoriedade através das leis 10.639/2003 e
11.645/2008, tanta cultura herdada pela cultura negra que muitos alunos não co-
nhecem, tantos monumentos no próprio Estado do Rio Grande do Sul, na Bahia,
Salvador, Rio de Janeiro que são marcas do legado afrodescendentes que não são
debatidos em aula. É notório a falta de atualização por parte dos docentes e da
inclusão por mais que seja lei nos currículos educacionais.

REFERÊNCIAS
BEZERRA, Juliana. Sincretismo. Toda Matéria, 2020. Disponível em: ht-

64
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

tps://www.todamateria.com.br/sincretismo/. Acesso: 02 nov. 2021.


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SERAFIM, Jonas. A importância do ensino religioso nas escolas. 2012.
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SILVA, Isaac Pinto da. Ensino Religioso em sala de aula: Contribuições á for-
mação do aluno e á aprendizagem de valores. UNITAS – Revista Eletrônica
de Teologia e Ciências das Religiões, Vitória-ES, v. 2, jul-dez, 2014. Dispo-
nível em: http://revista.faculdadeunida.com.br/index.php/unitas/article/
view/225/237. Acesso em: 14 ago. 2019.

65
O BRINCAR DO QUINTAL E DO TERREIRO:
POSSIBILIDADES DA BNCC NA EDUCAÇÃO
PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NA
EDUCAÇÃO INFANTIL
Débora Magalhães de Souza França1

Prezo insetos mais que aviões.


Prezo velocidade
das tartarugas
mais do que a dos mísseis.
Tenho em mim
esse atraso de nascença.
Eu fui aparelhado
para gostar de passarinhos.
Tenho abundância
de ser feliz por isso.
Meu quintal
é maior que o mundo.
(Manoel de Barros)

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa busca responder a seguinte questão: de que forma os


campos de experiência da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a
educação infantil podem contribuir para a educação das relações étnico-raciais
na faixa etária de 4 e 5 anos de idade? A partir deste questionamento nos pro-
pusemos a refletir sobre as possibilidades de intervenção que conversasse com a
BNCC de forma a promover uma educação mais igualitária e equânime no que
concerne a temática racial.
Os percursos que me trouxeram até o presente tema foram muitos. Cito
aqui alguns dos mais relevantes, como meu ingresso na educação infantil no
ano de 2019 ao assumir o cargo de professora na rede municipal de Niterói.
Nesta feita passei a integrar o seleto time da Unidade Municipal de Educação
Infantil (UMEI) Rosalda Paim. Foi também o lugar onde encontrei pares com-
prometidos com uma educação da escuta, do cuidado com a criança e com seu

1 Mestre em Educação, cultura e comunicação em Periferias Urbanas. Professora de educa-


ção infantil na rede municipal de Niterói (UMEI Rosalda Paim). E-mail: dbrdszfrn@gmail.
com
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

protagonismo. Neste local passei a compreender a magnitude de lecionar para


uma fase tão única e essencial da vida humana: a primeira infância.
Neste lugar, pela primeira vez, tirei meus sapatos e pisei o chão sagrado
da educação de crianças pequenas. Chão de pedrinhas, terra e encantos. Hoje,
danço descalça ao som das cantigas de rodas, pulo amarelinha, ouço e conto
histórias de outros tempos, outros povos, outras culturas que por vezes também
me integram. Em cada olhar atento a minha voz, reconheço a voz de minha
própria infância. Este encontro com a infância também me produz inquietações
que ganham maior sentido nas palavras de André Luiz de Souza Filgueira (2021)
quando afirma:
A educação se coloca como vetor de renovação da cultura. Se há uma cul-
tura de exclusão. Deve-se fomentar uma cultura de inclusão. É aí que a
educação se impõe. Uma pedagogia politizada, que age na coletividade,
que agrega o que é excluído para enfrentar uma cultura de eliminação do
estranho (FILGUEIRA, 2021, p. 11).

Inquietação que surge ao presenciar, enquanto estagiária na rede pública,


uma criança negra sendo taxada por seus colegas como a mais feia da turma,
simplesmente por ter traços condizentes com sua ascendência étnica. E por fa-
lar em meus, outro importante passo nessa jornada de pesquisadora veio com a
maternidade. Ao passo que conhecia o universo infantil tornei-me mãe de um
casal de crianças negras e que me fizeram perceber que em diferentes instâncias a
vida me cobrava posicionamentos e a retomada de inquietações sobre a temática
racial que teciam meu território da pesquisa e das buscas pelo conhecimento.
Busco no chão da terra mãe inspirações para a minha maternidade, o meu fazer
pedagógico e o meu objeto de pesquisa.
Neste trabalho entende-se por negro a soma das categorias preto e par-
do adotada pelo sistema de classificação de cor/raça do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE). Afro-brasileiro é a identidade étnico-racial que
destaca a origem africana dos brasileiros, ou seja, une a identificação nacional
(brasileiro) com a origem africana. O termo afrodescendente é amplo, pois reúne
todos os descendentes das populações africanas da diáspora negra. Sendo assim,
pode-se considerá-lo transnacional. Entende-se por uma educação antirracista
aquela que leva em consideração o contexto étnico-social do educando, abar-
cando em sua prática as múltiplas culturas e identidades existentes no ambiente
escolar. Refletir-se-á acerca de uma educação antirracista que compreenda a os
sete elementos estruturais selecionados por Cavalleiro (2003), que são: 1) o cur-
rículo escolar; 2) o material didático; 3) a formação docente; 4) a minimização
do problema racial; 5) o universo semântico; 6) a distribuição desigual de afeto e
estímulo; 7) e a negação da diversidade racial na composição da equipe de pro-
fissionais da escola.

67
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Para melhor análise da temática proposta, partimos da conceituação do


termo “étnico-racial” aplicado pelo Ministério da Educação (MEC). O termo,
“raça” fora por muito tempo utilizado para estabelecer distinções no plano bio-
lógico. Foram elaboradas “taxionomias de raças” que justificavam no plano bio-
lógico as hierarquias sociais. A desconstrução da ideia de raça para pensar a di-
ferença existente na espécie humana não fez desaparecer. Durante o século XIX
havia as teorias do determinismo biológico que justificavam a dominação do
branco sobre outros grupos humanos. Por conta disso, há ainda uma conotação
negativa na utilização do termo raça, que até hoje é utilizado no sentido social
para pensar e diferenciar os grupamentos humanos (FRANÇA, 2015).
De acordo com Nilma Lino Gomes (2010) a utilização de tal conceito pelo
movimento negro brasileiro e por intelectuais, acontece pelo seguinte fato:
usam-no porque a discriminação racial e o racismo existentes na sociedade
brasileira se dão não apenas devido aos aspectos culturais dos represen-
tantes de diversos grupos étnico-raciais, mas também devido à relação que
se faz na nossa sociedade entre esses e os aspectos físicos observáveis na
estética corporal dos pertencentes às mesmas (GOMES, 2010, p. 45).

Além disso, de acordo com Gomes (2010), para o movimento negro, a


simples substituição do conceito de raça por etnia no Brasil, não modifica a
compreensão do racismo e da forma como se desenvolve em nossa sociedade.
Um dos sociólogos que defendem o conceito de raça como construção social é
Antônio Sérgio Guimarães (1999) que afirma:
“Raça” é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural.
Trata-se, ao contrário, de um conceito que se denota tão-somente uma for-
ma de classificação social, baseada numa atitude negativa frente a certos
grupos sociais, e informada por uma noção específica de natureza, como
algo endodeterminado. A realidade das raças limita-se, portanto, ao mundo
social (GUIMARÃES, 1999, p. 9)

Os estudiosos que preferem o termo etnia, o acolhem por acreditar que


este conceito aborde um campo mais amplo no âmbito cultural, designando não
apenas características físicas, mas um referencial de pertencimento de um deter-
minado grupo. De acordo com Ellis Cashmore (2000):
Um grupo possuidor de algum grau de coerência e solidariedade, compos-
to por pessoas conscientes, pelo menos em forma latente, de terem origens
e interesses comuns. Um grupo étnico não é mero agrupamento de pessoas
ou de um setor da população, mas uma agregação consciente de pessoas
unidas ou proximamente relacionadas por experiências compartilhadas
(CASHMORE, 2000, p. 196).

Em sua conceituação de grupo étnico, Fredrik Barth (1998) aponta que


um grupo étnico segue algumas características tais quais: perpetuação biológica;

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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

compartilhamento de valores culturais; autoidentificação dos membros e iden-


tificação pelos outros, como pertencentes daquele grupo; organização do grupo
para delimitar o “eu” e o “outro”, ocorrendo aqui uma delimitação de fronteiras.
Cabe destacar que nesta pesquisa, o conceito de etnia de Fredrik Barth será usa-
do para designar os afro-brasileiros como pertencentes a um grupo étnico.
A fim de superar os limites impostos pelos conceitos, o Ministério da
Educação (MEC) faz uso do termo étnico-racial quando institui a Educação para
as Relações étnico-raciais (ERER). A presente pesquisa se apropria do termo
citado como base de suas reflexões.

BREVE HISTÓRICO E CONTEXTUALIZAÇÃO

De acordo com Jaccoud (2008) no artigo O Combate ao Racismo e à


Desigualdade: o desafio das políticas públicas de promoção da igualdade racial, desde
os anos de 1980 tem havido um esforço por parte do Governo e do Movimento
Negro na tentativa de reconhecer e intensificar o combate à discriminação ra-
cial. Medidas como a criação da Fundação Palmares, em 1988, e a Constituição
Federal de 1988 que no artigo 5°, inciso XLII classifica o racismo como crime
inafiançável e imprescritível, são exemplos desta configuração. Em 1989, foi pro-
mulgada a Lei Caó que define como crime qualquer ação que impede ou dificulte
o atendimento em locais públicos em decorrência da cor ou raça. Além disto, no
mesmo período começam a serem criadas delegacias especializadas em crimes
raciais, sendo inaugurada a primeira em 1991, no Estado do Rio de Janeiro.
Entre os anos de 2001 e 2002 os ministérios criaram programas de ações
afirmativas em benefício da população negra e em 2003, com a criação da
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) al-
gumas medidas consideravelmente importantes tomaram forma, como Programa
de Combate ao Racismo Institucional (PCRI); Programa de Promoção da
Igualdade de Oportunidades para Todos, do Ministério Público do Trabalho
(MPT); as ações afirmativas de promoção de acesso ao Ensino Superior e o que
é especialmente caro a esta pesquisa: a implementação da Lei no 10.639/2003,
que altera a Lei das Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) e estabe-
lece a obrigatoriedade da inclusão no currículo do Ensino Básico do estudo da
História e da Cultura Afro-Brasileira.
Além deste contexto nacional, pressões de órgãos internacionais como a
Organização das Nações Unidas (ONU), marcaram o contexto da implementa-
ção da Lei 10.639/03. A participação do Brasil na III Conferência de Combate
Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e todas as
Formas Correlatas de Discriminação (2001) na África do Sul, amplia o debate
acerca de medidas necessárias para a diminuição das desigualdades raciais em

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

diversas esferas de instituições brasileiras, incluindo a saúde.


Em 2004 a Secretaria de Inclusão Educacional (Secrie), funde-se com a
Secretaria Extraordinária de Erradicação do Analfabetismo (Seea) originando
a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad).
A Secad que no Governo da Presidente Dilma Rousseff torna-se Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) imple-
menta políticas educacionais nas seguintes áreas: alfabetização e educação de
jovens e adultos, educação ambiental, educação em direitos humanos, educação
especial, do campo, escolar indígena, quilombola e educação para as relações
étnico-raciais.
Um de seus objetivos [da Secad] é tornar a multiplicidade de experiências
pedagógicas dessas áreas em modos de renovação nas práticas educacio-
nais. Mais do que uma reunião de programas, a tarefa da nova secretaria
é articular as competências e experiências desenvolvidas, tanto pelos sis-
temas formais de ensino como pelas práticas de organizações sociais, em
instrumentos de promoção da cidadania, da valorização da diversidade e
de apoio às populações que vivem em situações de vulnerabilidade social.
[...] Para democratizar a educação é preciso mobilizar toda a sociedade.
O MEC, por intermédio da Secad, tem a missão de promover a união de
esforços com os governos estaduais e municipais, ONGs, sindicatos, asso-
ciações profissionais e de moradores (BRASIL, 2004, p.1).

Apesar dos crescentes esforços para repensar um ambiente escolar antir-


racista, Eliane Cavalleiro (2003) aponta para uma dualidade existente na escola,
que configura-se pela escassez de conhecimento acerca do continente africano,
contrastando com o excesso de informações sobre o continente europeu.
Consideraremos nesta pesquisa os apontamentos legais para o ensino de
tal conteúdo como a Lei 10.639/03 e a Lei 11.645/08, o parecer do CNE 2004, as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais.
A partir deste cenário, nos propomos a pensar estratégias e propostas que
auxiliem no processo de implementação de uma educação para as relações ét-
nico-raciais na educação infantil que fosse aliado aos campos de experiência da
Base Nacional Comum curricular.

UM QUINTAL DO BRINCAR: ANALISANDO AS PROPOSTAS DA


BNCC PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL

A Base Nacional Comum Curricular de 2017 para a educação infantil nos


convida a pensar na criança em sua totalidade, quando somos impelidos a refletir
acerca das relações estabelecidas com seus pares, a construção de sua identidade
e as conexões criadas a partir de si e daqueles que a cercam. Pensar o nosso corpo
e o outro nos remete a pensar na realidade na qual este corpo se insere e nas im-
plicações sociais as quais ele está sujeito. Segundo Gomes (2002, p. 41) “o corpo
70
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

fala a respeito do nosso estar no mundo, pois a nossa localização na sociedade


dá-se pela sua mediação espaço e tempo. Estamos diante de uma realidade dupla
e dialética: ao mesmo tempo que é natural, o corpo é também simbólico.”
Este corpo traz consigo também a possibilidade de se expressar das mais
variadas formas, abrigando a diversidade imensa que este convite à expressão
pode conter. É um convite para que através das interações e brincadeiras as crian-
ças possam obter a autonomia necessária para seu pleno desenvolvimento in-
cluindo sentir-se confortável socialmente para serem quem são.
A Base Nacional Comum Curricular traz em sua composição a compi-
lação de cinco campos de experiências a serem desenvolvidos nessa fase e que
servem como norteadores do fazer pedagógico. São eles: O eu, o outro e o nós;
Corpo, gestos e movimentos; Traços, cores e formas; Escuta, fala, pensamento e
imaginação; Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações. São estes
campos que irão servir como base para as propostas de interações neste presente
trabalho.

UM TERREIRO DO BRINCAR: PROPOSTAS DE ATIVIDADES PARA


A ERER.

A construção de uma nação é um exemplo do que Benedict Anderson


(1996) denomina de “comunidades imaginárias”, ou seja, uma comunidade que
não é real, e sim criada a partir da interação entre seus membros. As culturas dos
grupos étnicos existentes em uma nação são por vezes invisibilizadas em prol
de uma cultura comum a todos os nacionais. Frederick Barth (1998) aponta a
existência de fronteiras étnicas criadas pelas unidades étnicas e que delimitam os
indivíduos definindo-os e os identificando. O racismo, como parte da estrutura
social na qual estamos inseridos, afeta crianças desde a mais tenra idade.
Maria Aparecida Silva Bento (2011) elabora uma revisão bibliográfica e
observa que a partir da idade dos 3 a 5 anos as crianças já são capazes de per-
ceber a diferença racial que consta na sociedade, bem como interpretá-la, esta-
belecendo o que é socialmente valorizado ou desvalorizado. Para a autora, “As
noções de diferenças e de hierarquia raciais em nossa sociedade são adquiridas
na família, no espaço da rua, nas organizações religiosas e, posteriormente, nas
creches e nas escolas” (BENTO, 2011, p. 102). Bento (2011) em uma análise dos
estudos de Fazzi (2004) observa que a partir de estudos realizados com crianças
norte-americanas entre 3 e 5 anos revelou que é nesta etapa da vida que surge a
aquisição do conceito de cor-raça. Partindo desta reflexão o presente trabalho
se propõe a realizar um recorte etário com ênfase em crianças pequenas (entre 4
anos e 5 anos e 11 meses) da pré-escola. Tomando como base os cinco campos de
experiência apresentados na Base Nacional Comum Curricular para a educação

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(O rganizadores )

infantil, formulamos propostas de interações que vão de encontro à educação


para as relações étnico-raciais. As propostas a seguir se dividem de acordo com
os campos aos quais se identificam.

BNCC E O CAMPO DE EXPERIÊNCIA: EU, O OUTRO E NÓS


A partir daqui apresentaremos propostas de atividades que elaboramos a
fim de auxiliar na educação para as relações étnico-raciais. Propostas estas que
conversem com os campos de experiência da BNCC. O primeiro deles, intitulado
“EU, O OUTRO E O NÓS” objetiva proporcionar para as crianças a interação
com seus pares, com os adultos e consigo mesmas. Construindo autonomia e
reciprocidade, reconhecendo as construções sociais nas quais se inserem bem
como o contato com outras culturas. Cavaleiro (2003) apud Bento (2011) chama
a atenção para um fato interessante: ao investigar três gerações de famílias negras
de baixa renda, O autor destaca a importância que essas famílias dão em levar a
criança a se reconhecer enquanto negras e em suscitar nelas uma autovisão posi-
tiva e igualitária em relação à criança branca.
Desta forma, dentre as propostas elaboradas destacamos o manuseio de
brinquedos, livros e imagens que expressem a variedade étnica, como bonecas
e super-heróis negros; acesso a exemplos históricos positivos de origem étnica
negra; participação de oficinas e projetos que valorizem traços étnicos da criança
negra, como o cabelo crespo; fabricação de abayomis e bonecas de pano pretas;
contato com a estética negra através de turbantes, murban, tranças, kufi, filá, etc.;
e o conhecimento sobre as características de diferentes culturas e etnias de origem
africana com imagens de pessoas de diferentes lugares do continente Africano,
demonstrando assim a pluralidade existente lá. Neste campo de experiência a
preparação do espaço é de suma importância tanto para uma ambientação que
aproxime as crianças de outras realidades étnicas e culturais quanto para a con-
cepção de que este espaço atuará como terceiro educador de forma convidativa
e instigante.

BNCC E O CAMPO DE EXPERIÊNCIA: CORPO, GESTOS E


MOVIMENTOS

Neste campo, a consciência corporal é trabalhada, bem como a intera-


ção entre corpo, emoção e linguagem. Nesta dinâmica em que o corpo ganha o
protagonismo, é uma oportunidade riquíssima para se trabalhar a corporeidade
dentro da visão das culturas africanas. Neste campo as emoções também são de
grande relevância. Filgueira (2021) em seu artigo Pedagogia Preto-Diaspórica: uma
etnografia ético-filosófica do corpo deseducado, aponta:

72
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Bell Hooks (2010) quem denuncia os estragos no campo afetivo causados


pela escravidão: a repressão das emoções. Não se pode chorar. Sorrir é
repelido. E expressão de dor é vetada. A manifestação afetiva, de qualquer
fraqueza, que faz parte da condição humana, é tolerada. Dar e receber ca-
rinho são proibidos. Ser feliz, nem pensar. Gerações pretas inteiras foram e
são criadas sob o estigma da interdição das emoções (FILGUEIRA, 2021,
p. 35).

Pensando nesta ponte, pensamos como propostas de intervenção a reali-


zação de jogos de origem africana que promovam movimentação corporal como
“amarelinha africana”, “meu querido bebê”, etc.; danças com diferentes ritmos
de origem africana e afrobrasileira como maracatu, maculelê, capoeira, jongo,
samba, etc.; encenação de peças teatrais de protagonismo negro e a escuta de
diferentes músicas e ritmos de origem africana e afro-brasileira.

BNCC E O CAMPO DE EXPERIÊNCIA: TRAÇOS, SONS, CORES E


FORMAS

Torna-se urgente e necessário que a escola se debruce sob a temática do


multiculturalismo e da diversidade que a compõe. Este campo traz como orien-
tação a disseminação das artes e culturas e o estímulo à livre expressão artística
da criança. Consideramos de fundamental importância que se abra o leque de
possibilidades para que estas crianças tenham acesso a diversos tipos de artes
e não apenas a eurocêntrica e aos modelos hegemônicos em nossa sociedade.
Também ressaltamos o interesse na naturalização da diversidade ao não tratar
as artes de origem africana como folclore ou uma vertente mais “exótica” das
demais, mas em equiparação de abordagem e valorização dos mais diversos mo-
delos culturais. Desta maneira propomos as experiências o manuseio de instru-
mentos de origem africana e afrobrasileira como atabaque, caxixi, tambores, be-
rimbau, agogô, reco-reco, chocalho, etc. e o conhecimento sobre as obras de artes
oriundas do continente africano como esculturas, pinturas, etc.

BNCC E O CAMPO DE EXPERIÊNCIA: ESCUTA, FALA,


PENSAMENTO E IMAGINAÇÃO

Neste campo, vemos a valorização das linguagens, seja de forma oral ou


escrita. É de fato um privilégio poder contar com diversas culturas de origem
africana que traz como base a oralidade na contação de histórias e na figura do
griot. A experiência de vida também é estimada e tem um lugar especial nas so-
ciedades africanas, contrastando com nossa visão capitalista e ocidental de não
valorização do idoso. Bento (2011) afirma:

73
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Godoy (1996) desenvolveu um estudo envolvendo crianças e famílias bran-


cas e negras, buscando identificar como a criança, com idade entre 5 e 6
anos, de nível socioeconômico baixo, representa a questão das etnias em
seu grupo. Ela destaca, dentre os resultados, que a criança revela tendência
a elaborar seu autoconhecimento e sua identidade por meio de evidências
externas, além de acreditar que a verdade acerca de si mesma costuma ser
expressa por adultos significativos em sua vida (BENTO, 2011, p. 102).

Assim, propomos experiências como o conhecimento de fatos históricos/


culturais que enfatize o protagonismo negro; ter acesso a escrita de contos, his-
tórias, poemas, etc. de protagonismo negro; conhecimento de histórias africanas
e afrobrasileiras de origem oral e escrita; a escuta e a narração de histórias que
enalteçam sua ancestralidade, memória afetiva e valorização dos mais velhos;
reconhecimento da a função do griôt e sua importância nas culturas de origem
africana; acesso a escuta/leitura de livros de autores africanos de língua portu-
guesa aprendendo sobre a variação linguística sobre os países. Para este tópico é
importante salientar a ampliação do acervo da unidade de educação, bem como
o material disponível e disponibilizado na sala de aula para ser utilizado como
apoio pelo professor e pelas crianças.

BNCC E O CAMPO DE EXPERIÊNCIA: ESPAÇOS, TEMPOS,


QUANTIDADES, RELAÇÕES E TRANSFORMAÇÕES

Podemos encontrar neste campo diversas formas de interação que nos pos-
sibilite conhecer a diversidade do continente africano, desmistificando a teoria de
unidade sociocultural e econômica. Nossa intenção é de que as crianças tenham
acesso à variedade de espécimes que habitam o continente, aprendam através dos
búzios e das sementes conhecimentos matemáticos e brinquem com a geometria
dos tecidos africanos. São inúmeras as possibilidades, dentre as quais destaca-
mos a aquisição de conhecimentos matemáticos utilizando grãos de alimentos de
origem africana, búzios, pedras etc.; conhecimento da fauna e da flora de países
africanos, suas belezas naturais e recursos e a percepção de diferenças culturais,
sociais e físicas entre os diversos países africanos, desmistificando a ideia de uni-
dade territorial e cultural.
Precisamos ressaltar que as propostas aqui apresentadas não se tratam de
receitas prontas, mas sim possibilidades que podem se adequar a cada realidade.
Sua implementação perpassa por uma série de fatores para além do interesse do
professor, embora consideremos este como principal vetor para que a educação
antirracista ocorra de fato. A criação e manutenção de um acervo bibliográfico,
visual, audiovisual, artístico etc. na escola em que a educação infantil ocorre é de
suma importância para a facilitação do trabalho docente. O apoio da comunida-
de escolar na preparação do espaço, na abordagem da temática e conscientização

74
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

da necessidade de se trabalhar temas tão caros à nossa sociedade também se


revela vetor de potenciação de um trabalho valioso no combate ao racismo. As
propostas aqui observadas precisam acima de tudo, serem adequadas a cada fai-
xa etária do grupo escolar onde serão trabalhadas, bem como a necessidade de
se levar em consideração a bagagem sociocultural das crianças ao entrarem em
contato com essas experiências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pensar em uma educação antirracista é de suma importância em todas as


fases da infância. Na educação infantil, revela-se ainda mais significativa essa
necessidade pelo fato de que é o momento em que a criança toma consciência de
sua identidade e identificação com o grupo social do qual faz parte. Passa a ter a
percepção, ainda que em menor intensidade do que os maiores, das tensões que
cercam as questões raciais e o lugar social no qual seu grupo étnico está inseri-
do. A percepção de beleza e do que é socialmente valorizado começa a receber
influência a partir deste momento. Nessa fase é fundamental o papel da escola,
pois ainda que inserida em um ambiente familiar que não seja estimulador de
uma consciência racial positiva, a criança terá acesso a uma visão mais diversa e
inclusiva sobre ela mesma e os outros. Este fator é imprescindível para a constru-
ção de uma sociedade menos racista. Nas palavras de Filgueira
A educação de coloca como vetor de renovação da cultura. Se há uma
cultura de exclusão, deve-se fomentar uma cultura de inclusão. É aí que a
educação se impõe. Uma pedagogia politizada, que age na coletividade,
que agrega o que é excluído para enfrentar uma cultura de eliminação do
estranho (FILGUEIRA, 2021, p. 11).

Contamos com importantes aliados para que a educação se torne antir-


racista. A formação docente, políticas públicas voltadas para este grupo e uma
visão diversificada sobre o currículo fazem toda diferença. Além de uma escuta
atenta, tão cara a educação de crianças pequenas. Para que a educação antirra-
cista seja uma realidade a escola deve caminhar de mãos dadas com a família
e outros espaços educativos, propiciando à criança negra a oportunidade de se
reconhecer como indivíduo valorizado e seguro nos mais diversos espaços. Além
de oferecer a criança desta faixa etária equânime e inclusivo.
Ao se debruçar sobre a temática racial e refletindo sobre o currículo e
suas implicações acerca de uma educação para as relações étnico-raciais pro-
pomos intervenções para crianças de 4 e 5 anos que conversem com os campos
de experiência da Base Nacional Comum Curricular para a educação infantil.
Desta forma nosso olhar se volta em busca de novos caminhos em direção a uma
sociedade mais justa e igualitária para todos. São proposições a serem pensadas,

75
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

refletidas e adaptadas em turmas de educação infantil ao abordar a temática ra-


cial. Na UMEI em que trabalho, como nos baseamos em temas geradores, em
diferentes momentos as professoras abordam temáticas raciais em suas práticas
docentes. A abordagem de temas como habitação e literatura, encontram respal-
do nas obras de Carolina Maria de Jesus e são capazes de transformar o espaço
em um agente apto a ensinar sobre cidadania, empatia e respeito ao próximo.
Torna-se possível, mesmo para crianças tão pequenas, refletirem sobre as diferen-
ças sociais e econômicas existentes na sociedade e que de tão perto nos rodeiam.
Um semestre totalmente dedicado ao conhecimento do continente africano e sua
influência sobre a nossa cultura é um outro exemplo de tema já abordados na
UMEI. Em todos os casos, buscamos respeitar o lugar de fala, trazendo pessoas
que fazem parte da comunidade negra, que possuem conhecimento de causa e
que possam colaborar significativamente para aumentar o repertório cultural de
cada criança. Além de contar com uma maioria de crianças negras na formação
da comunidade discente. Algumas delas, inclusive, originárias de países africa-
nos com famílias que buscam refúgio no Brasil. Famílias que são extremamente
valorizadas como detentoras de conhecimento acerca do tema. Acreditamos na
união de toda a comunidade escolar no cumprimento desta missão de promover
uma educação antirracista.

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gen y la difusión del nacionalismo, México; Fondo de Cultura Económica,
1996.
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Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT, 2011, p.98-117
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FAZZI, Rita de Cássia. O drama racial de crianças brasileiras: socialização en-
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76
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

FRANÇA, Débora de Souza. Direito à Flor da Pele: estudo de caso sobre o


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FILGUEIRA, André Luiz de Souza. Pedagogia Preto-Diaspórica: uma etno-
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JACCOUD, Luciana. “O combate ao racismo e à desigualdade: o desafio das
políticas públicas de promoção da igualdade racial”. In: Theodoro, Mario
(org.). As políticas públicas e a desigualdade racial no Brasil: 120 anos após a
abolição. Brasília, Ipea, 2008, p.131-75.

77
PELO FIM DO RACISMO NEGRO E INDÍGENA:
POSSÍVEIS ABORDAGENS A PARTIR DA BNCC
Gustavo dos Santos Souza1
Daniele Gonçalves Colman2

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa foi construída tendo como objetivos a apresentação de


possíveis abordagens pedagógicas em prol da desconstrução do racismo negro e
indígena, a partir de uma articulação teórica com autores pós-colonialistas, atra-
vessados pelas questões étnico-raciais, utilizando como base algumas habilidades
e competências presentes na Base Nacional Comum Curricular, direcionadas aos
anos do ensino fundamental.
Metodologicamente, apoiamo-nos em uma investigação de cunho biblio-
gráfico, sendo construída a partir de uma abordagem qualitativa das habilida-
des e competências presentes na BNCC e dos teóricos que melhor dialogassem
com os objetivos propostos. Sendo assim, fundamentamo-nos em teóricos como
Fanon (2008), Quijano (1992; 2005) e Walsh (2009), que trabalham a questão do
colonialismo e a colonialidade enquanto fenômenos que contribuíram e ainda
contribuem negativamente para a perpetuação de concepções equivocadas no
que se refere às populações negras e aos povos indígenas.
Vale salientar que termos teóricos como colonialismo e colonialidade apre-
sentam divergências em seus significados, sendo o colonialismo uma relação de
“dominación directa, política, social y cultural de los europeos sobre los con-
quistados de todos los continientes” (QUIJANO, 1992, p. 11); enquanto a co-
lonialidade se refere ao “ao entendimento de que o término das administrações
coloniais e a emergência dos Estados-nação não significam o fim da dominação
colonial” (SANTOS, 2018, p. 4).
No rastro dessa discussão, esperamos com este estudo fazer emergir, den-
tro da temática supracitada, inquietações e provocações aos leitores e pesqui-
sadores, para que dessa forma sejam instigados a problematizar tais questões a
1 Historiador. Mestrando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Católica Dom Bosco - PPGE/UCDB. E-mail: [email protected]
2 Historiadora. Mestra em Educação. Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Católica Dom Bosco - PPGE/UCDB. E-mail:
[email protected]
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

partir de olhares outros, colaborando para a construção de conhecimentos múlti-


plos e diversificados em suas perspectivas teórico-metodológicas.

UMA BREVE ARTICULAÇÃO TEÓRICA

Reforçada e senão criada pela arrogância do discurso colonial, a racializa-


ção das identidades negras e, posteriormente, as identidades indígenas, fizeram
emergir problemas dos quais até a contemporaneidade, os povos indígenas e as
populações negras lutam para desconstruir. Mesmo a abolição da escravidão não
foi o suficiente para corrigir os erros humanos cometidos para com esses sujeitos,
visto a estrutura que foi construída tendo como fundamentação ideais preconcei-
tuosos que asseguravam status social e capital nas mãos de poucos, majoritaria-
mente héteros, brancos, cristãos e europeus ou descendentes.
Fanon (2008) nos mostra como a racialização decorrente do discurso colo-
nial constrói muros entre sujeitos por meio da produção de suas identidades sob
a ótica do colonizador. Discorrendo sobre antilhanos e senegaleses, o autor nos
mostra o estranhamento que há entre eles.
Conhecemos no passado e ainda hoje antilhanos que se envergonham
quando são confundidos com senegaleses. É que o antilhano é mais “evo-
luído” do que o negro da África: entenda-se que ele está mais próximo do
branco; e esta diferença existe não apenas nas ruas e nas avenidas, mas
também na administração e no Exército (FANON, 2008, p.40).

Percebe-se que os antilhanos citados pelo autor são produtos formatados


pelo colonialismo, que se recusam a aceitar serem confundidos com povos afri-
canos, isso porque, perante a lógica colonial, os povos africanos são negros, e
os negros são a justificativa para todo mal existente dentro desse discurso, e se
tornaram sujeitos que estão sob a eterna promessa de alcance da mesmidade
europeia francesa, e por isso são menos negros do que os senegaleses, porque os
senegaleses, na lógica colonial, estão ainda mais distantes dos brancos.
Dialogamos com Fanon (2008) para melhor apresentar a forma como o
colonialismo penetra nas mais diferentes dimensões da sociedade e que, mesmo
com sua dita dissolução mundial, substituiu-se pela colonialidade que camufla a
racialização das identidades por meio de um discurso multicultural abrangente.
[...] a dupla modernidade/colonialidade historicamente funcionou a partir
de padrões de poder fundados na exclusão, negação e subordinação e con-
trole dentro do sistema/mundo capitalista, hoje se esconde por trás de um
discurso (neo)liberalista multiculturalista. Desse modo, faz pensar que com
o reconhecimento da diversidade e a promoção de sua inclusão, o projeto
hegemônico de antes está dissolvido (WALSH, 2009, p. 16).

Dessa forma, mesmo com o suposto rompimento do colonialismo, a ló-


gica colonial ainda perdura por meio da colonialidade, demonstrando que as
79
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

formas de dominação não necessariamente serão diretas e explícitas, mas dissi-


muladas dentro de um discurso multicultural funcional (WALSH, 2009) que se
faz como uma estratégia para manter o status quo em que o colonizador sempre se
encontrará no topo de uma hierarquia racial, social e epistêmica por ele mesmo
construída.
O fato de que os europeus ocidentais imaginaram ser a culminação de uma
trajetória civilizatória desde um estado de natureza, levou-os também a
pensar-se como os modernos da humanidade e de sua história, isto é, como
o novo e ao mesmo tempo o mais avançado da espécie. Mas já que ao
mesmo tempo atribuíam ao restante da espécie o pertencimento a uma
categoria, por natureza, inferior e por isso anterior, isto é, o passado no
processo da espécie, os europeus imaginaram também serem não apenas os
portadores exclusivos de tal modernidade, mas igualmente seus exclusivos
criadores e protagonistas (QUIJANO, 2005, p. 122).

E o campo da educação não escapou a essa lógica. Trazida ao país pelos


europeus, através da Companhia de Jesus em 1549, a educação escolar exibiu em
seus primórdios uma concepção racializada e preconceituosa perante os sujeitos
que desejavam “educar” naquele período.
[...] os índios foram deixados de lado pela missão educacional da
Companhia de Jesus, que os substituíram pelos filhos dos grandes proprie-
tários agrários. A ação pedagógica jesuítica, na prática, ficou reduzida a
formação de um minúsculo estrato social de letrados que, através do do-
mínio do saber erudito e técnico europeu de então, orienta as atividades
mais complexas e opera como centro difusor de conhecimentos, crenças e
valores (MELO; SANTOS; ANDRADE, 2009, p. 3).

O sistema contemporâneo ainda tem em sua prática preceitos desse perío-


do. A propagação de uma educação monocultural, centrada em valores brancos
e europeus, ainda é presente em livros didáticos, materiais audiovisuais e mesmo
na prática docente. Não deveria ser dessa forma, visto a garantia constitucional
da obrigatoriedade do ensino sobre história e cultura afro-brasileira e indígena,
que reforça o respeito à diversidade étnico-cultural.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da popula-
ção brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da his-
tória da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no
Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação
da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social,
econômica e política, pertinentes à história do Brasil (BRASIL, 1988).

Mesmo parte da Constituição Federal, não é suficiente para extinguir o


racismo existente dentro da sociedade. A educação nesse contexto é uma faca de
dois gumes, pois, da mesma maneira que forma cidadãos éticos, responsáveis e
preocupados com o coletivo, também há a propagação de concepções deturpadas
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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

sobre os povos indígenas e afro-brasileiros. Isso porque, infelizmente, a concep-


ção eurocêntrica ainda perdura no cenário educacional contemporâneo, trazen-
do à tona muitas ideias estereotipadas, fruto do discurso colonial.
A permanência de concepções equivocadas sobre esses povos são frutos
do colonialismo, que deixaram de ser manifestadas de forma explícita após a su-
posta dissolução mundial do regime, dando lugar à colonialidade que continuou
a perdurar condições e relações racializadas/hierarquizadas. Este fenômeno vela
de maneira articulada o racismo ainda existente na sociedade contemporânea.
Hall (2014; 2020) nos diz que as identidades são construídas a partir da relação
com o outro, mais especificamente identificando aquilo que não somos.
Da mesma forma, o racismo acontece, de maneira um tanto negativa,
quando se cria um sujeito outro a partir da lógica colonial, pois segundo Fanon
(2008), quem cria o estereótipo não é o sujeito que carrega a concepção mani-
festada, mas sim aquele que o enxergou de tal forma negativa. “O judeu é um
homem que os outros homens consideram judeu: eis a verdade simples de onde
se deve partir... É o anti-semita que faz o judeu” (FANON, 2008, p. 90).
Conscientes de que somos produtos da modernidade, mas que, a partir da
busca por uma formação intermulticultural e sob muita vigilância epistemológi-
ca, propomos levantar algumas possibilidades de abordagens nas brechas exis-
tentes na Base Nacional Comum Curricular-BNCC nos currículos escolares para
o ensino de História, tendo como eixo central a desconstrução do racismo negro
e indígena. Além da BNCC e da Constituição de 1988, nos apoiamos nas leis
10.639/2003 e 11.645/2008, ambas como conquistas dos movimentos negros
e indígenas que obrigam todo o currículo escolar e de curso implementarem o
ensino de História e cultura afro-brasileira e indígena.
A BNCC orienta habilidades e competências para o ensino de História des-
de a Educação Infantil ao Ensino Médio, e nela é possível verificar sugestões de
métodos e ferramentas para melhor elaborar o currículo tendo-a como base. Desde
a Educação infantil, o ensino de História a partir da BNCC dá espaço para tratar
das questões das diferenças étnico-raciais, o professor ou professora só se pergunta
como abordar isso para crianças pequenas, a resposta para esse “como fazer?” e
“como falar?” é o que não quer calar. Com Nilma Lino Gomes comungamos em
dizer que “faça!” “Diga!”, mesmo que ainda estejamos em processo de aprendi-
zado para desempenhar com mais eficiência a função e luta pelo fim do racismo.
[...] é preciso falar sobre a questão racial, desmistificar o racismo, superar a dis-
criminação racial. Diferentemente do que alguns pensam, quando discutimos
publicamente o racismo não estamos acirrando o conflito entre os diferentes
grupos étnico/raciais. Na realidade é o silenciamento sobre essa questão, que
mais reforça a existência do racismo, da discriminação e da desigualdade racial
(GOMES, 2012, p. 51-52).

81
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

O processo é educativo mesmo, até porque aprendemos a ser racistas e pre-


conceituosos, a formação do discurso e da mentalidade se dá desta forma. A tão
discutida e criticada BNCC hoje toma forma de escudo para seguir fazer/dizer
em prol do fim do racismo. Ainda segundo Gomes (2012, p. 51), é preciso saber
falar e o que falar e isso é aprendível.
Mas não basta apenas falar. É importante saber como se fala, ter a com-
preensão do que se fala e mais: partir para a ação, para a construção de
práticas e estratégias de superação do racismo e da desigualdade racial.
Essa é uma tarefa cidadã de toda a sociedade brasileira e não só dos negros
ou do movimento negro. E a nossa ação como educadores e educadoras,
do ensino fundamental à universidade, é de fundamental importância para
a construção de uma sociedade mais justa e democrática, que repudie qual-
quer tipo de discriminação.

A sensibilidade em saber como falar passa pelo crivo do posicionamento


político, a forma como abordar um assunto tão evitado como racismo vai de-
pender da postura epistemológica de quem fala, o que, seguramente, causa um
pouco de insegurança, algo compreensível já que não nos ensinaram a falar algo
diferente de reproduzir o discurso racista.

BNCC EM PAUTA: REFLEXÕES SOBRE SUAS COMPETÊNCIAS


PARA A DISCIPLINA DE HISTÓRIA NO ENSINO FUNDAMENTAL.

Para começar a pensar em possíveis abordagens, vale lembrar sempre que


a África é o berço da humanidade, onde a negritude impera. Evitando compa-
rações, é possível mostrar que ela ainda hoje é um continente rico etnicamente,
culturalmente e não se congela na imagem da escravidão e da miséria. Outros
aspectos a serem observados são os impactos e consequências da colonização,
das guerras e da globalização nos problemas sócio-político-cultural dentro do
âmbito continental. Mesmo para nós, professores/as, precisamos lembrar que
a História das Américas e do Brasil está banhada por sangue e suor indígena e
negro, portanto, é indispensável não tratar das relações étnico-raciais em todo
currículo escolar.
A partir do campo teórico que nos orienta, as comparações serão sempre
perigosas, dado que a comparação não respeita as especificidades contextuais,
culturais, étnicas, religiosas, gênero, cosmovisões, ou seja, a comparação afunila
concepções outras dos fatos, algo limitado ao dicotômico, bem/mal, bom/mau,
bonito/feio, humano/desumano. As práticas pedagógicas estão carregadas de-
las e tem perpetuado um currículo monocultural. Nesse sentido, pensemos que
a compreensão do que é bonito/feio, riqueza/pobreza, limpo/sujo, evoluído/
primitivo e tantas outras coisas pelas quais rotulamos culturas não tem o mesmo
sentido nessas realidades. Partir desse princípio possibilita a expansão de nossa

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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

ótica para mudar alguns paradigmas, mudar nossas abordagens, que aqui se re-
ferem às formas de falar, lembrando que a fala não se dá só oralmente, o corpo e
as ações também falam, muitas vezes mais que a forma verbal.
Os povos indígenas não podem mais ficar folclorizados apenas quando
falamos de “Descobrimentos do Brasil” e depois desaparecerem da História e do
planeta. Os negros não podem mais estarem atrelados apenas aos conteúdos de
Brasil Colonial e a escravidão, aparecer depois com a abolição da escravidão e
na mágica do monoculturalismo desaparecerem também. Eis que as normas da
BNCC têm para o ensino de História levantado muitas competências que obri-
gam os currículos trazerem nos conteúdos as questões étnico-raciais, culturais,
saberes indígenas, saberes e cultura afrodescendente e, por algumas vezes, rela-
cionar com a África para além dos conteúdos citados.
Para o primeiro ano do Ensino Fundamental em uma das competências
se lê, “(EF01HI04) Identificar as diferenças entre os variados ambientes em que
vive (doméstico, escolar e da comunidade), reconhecendo as especificidades dos
hábitos e das regras que os regem” (BRASIL, 2018). Para além do ambiente
em que ela vive, existe a possibilidade de trazer outras realidades como, acam-
pamentos, aldeias urbanas e rurais, quilombos e favelas, ou seja, mostrar para
as crianças que existem formas outras de estar e viver no mundo, isso pensan-
do também em realidades outras escolares e comunitárias. Para o segundo ano,
existe a oportunidade de trazer outras formas de compreender o tempo e ainda
explorar as formas como outras culturas como, indígenas e africanos medem e
mediam o tempo. Na competência se lê “(EF02HI06) Identificar e organizar,
temporalmente, fatos da vida cotidiana, usando noções relacionadas ao tempo
(antes, durante, ao mesmo tempo e depois)” (BRASIL, 2018). Algo a se pensar a
partir disso é o próprio significado de tempo para outras culturas, ver que a nossa
forma de lidar com o tempo cronológico não é universal.
A diversidade étnica e racial é algo presente em todo o território brasi-
leiro, não há cidade ou estado que se isente disso. O que ocorre é a invisibili-
zação dessa diversidade, algo que a BNCC na competência (EF03HI01) para
o terceiro ano não deixa escapar, “Identificar os grupos populacionais que for-
mam a cidade, o município e a região, as relações estabelecidas entre eles e os
eventos que marcam a formação da cidade, como fenômenos migratórios (vida
rural/vida urbana), desmatamentos, estabelecimento de grandes empresas etc”
(BRASIL, 2018). Outra oportunidade em levantar uma abordagem quanto aos
diferentes sujeitos e culturas presentes nesses contextos, bem como o papel
deles na construção da cidade e o lugar que ocupam na sociedade. Evitando
comparações depreciativas ainda é possível, “(EF03HI03) Identificar pontos de
vista em relação a eventos significativos do local em que vive, aspectos relacio-
nados a condições sociais e à presença de diferentes grupos sociais e culturais,

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

com especial destaque para as culturas africanas, indígenas e de migrantes”


(BRASIL, 2018, grifo nosso). Aqui a questão das desigualdades sociais será
inevitável, assim como as muitas formas como essas culturas influenciam o
modo de vida local.
No quarto ano, pode-se discutir “Os processos migratórios para a forma-
ção do Brasil: os grupos indígenas, a presença portuguesa e a diáspora forçada
dos africanos. Os processos migratórios do final do século XIX e início do século
XX no Brasil. As dinâmicas internas de migração no Brasil a partir dos anos
1960” (BRASIL, 2018). Um cuidado a ser tomado é não cair na lógica do evo-
luído/primitivo, sociedades complexas já existiam no hoje chamado Brasil, isso
não pode mais ser negado em sala de aula como já não é mais pela História. E os
negros escravizados possuem uma História que precisa ser contada, uma história
de reis/rainhas, príncipes/princesas, guerreiros/as que sobreviveram a invasões
bárbaras, sujeitos que assistiram reinos serem saqueados e destruídos pelos ditos
humanos evoluídos e cristãos, sujeitos que construíram com muito sofrimento
esse país que chamamos de Brasil.
Religião é algo que tratamos como tabu ainda hoje, andar em ovos, mas
também é fundamental abordar, até porque fundamenta muito do que somos,
pensamos e enxergamos o mundo. É no quinto ano que a competência “O pa-
pel das religiões e da cultura para a formação dos povos antigos. (EF05HI03)
Analisar o papel das culturas e das religiões na composição identitária dos povos
antigos” (BRASIL, 2018).
Aqui vale enfatizar que vamos levantar abordagens a partir do que nos
forma, o cuidado está em observar que, assim como não existe uma só cultura,
uma só língua, um só povo, etc., não existe uma só religião, em muitas culturas
assim como a nossa, a Ocidental, é um elemento fundante na formação de iden-
tidade de um povo, o que justifica a diversidade, e a diferença dos sujeitos justi-
ficam a coexistência das mesmas, ou seja, religiões que transitam num mesmo
território. Essa liberdade religiosa nos é garantido enquanto direitos humanos.
“(EF05HI04) Associar a noção de cidadania com os princípios de respeito à di-
versidade, à pluralidade e aos direitos humanos” (BRASIL, 2018). Uma liberda-
de que não nos foi dada, mas conquistada, “(EF05HI05) Associar o conceito de
cidadania à conquista de direitos dos povos e das sociedades, compreendendo-o
como conquista histórica” (BRASIL, 2018), a duras penas. As competências se-
guintes requerem
(EF05HI08) Identificar formas de marcação da passagem do tempo em
distintas sociedades, incluindo os povos indígenas originários e os povos
africanos.
(EF06HI08) Identificar os espaços territoriais ocupados e os aportes cultu-
rais, científicos, sociais e econômicos dos astecas, maias e incas e dos povos
indígenas de diversas regiões brasileiras.
84
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

(EF07HI02) Identificar conexões e interações entre as sociedades do Novo


Mundo, da Europa, da África e da Ásia no contexto das navegações e in-
dicar a complexidade e as interações que ocorrem nos Oceanos Atlântico,
Índico e Pacífico.
(EF07HI09) Analisar os diferentes impactos da conquista européia
da América para as populações ameríndias e identificar as formas de
resistência.

Ao dialogarmos com as competências direcionadas para o 8º ano do en-


sino fundamental, percebemos a importância do lugar de fala nas discussões,
sejam elas acadêmicas, políticas ou sociais, pois “ (EF08HI11) identificar e expli-
car os protagonismos e a atuação de diferentes grupos sociais e étnicos nas lutas
de independência no Brasil, na América espanhola e no Haiti” (BRASIL, 2018),
contextualiza não somente as respectivas independências, mas faz emergir a par-
ticipação ativa de diversos povos em variados momentos da história, antes não
vista. Dessa forma, dentro do campo historiográfico, diríamos que está sendo
posta em evidência uma perspectiva outra de se enxergar a história, “uma histó-
ria vista de baixo” (SHARPE, 1998).
Isso também ocorre quando colocamos em pauta a discussão sobre a tute-
la dos povos indígenas:
(EF08HI14) Discutir a noção da tutela dos grupos indígenas e a participação
dos negros na sociedade brasileira do final do período colonial, identificando
permanências na forma de preconceitos, estereótipos e violências sobre as
populações indígenas e negras no Brasil e nas Américas (BRASIL, 2018).

Ao propor essa discussão, além de salientar a participação dos povos


indígenas e negros na construção da atual sociedade brasileira, questiona-se a
perpetuação de estruturas produzidas no período colonial que contribuem, ma-
leficamente, para a propagação de concepções deturpadas sobre a realidade so-
ciocultural dos povos indígenas e populações negras no Brasil.
De encontro a nossa ótica sobre a discussão proposta na EF08HI14, faz-se
complementar a EF08HI20, que propõe “Identificar e relacionar aspectos das
estruturas sociais da atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir
a importância de ações afirmativas (BRASIL, 2018)”. Essa última, aponta ainda
para um diálogo com outras competências e habilidades propostas para trabalho
com o 9º ano do ensino fundamental, como, por exemplo, a EF09HI04, que
intenta “discutir a importância da participação da população negra na formação
econômica, política e social do Brasil (BRASIL, 2018)”.
E discutindo sobre ações afirmativas e a participação da população ne-
gra nas diversas esferas da vida em sociedade, enxergamos com bons olhos e
de forma complementar a questão envolvendo “Os movimentos sociais e a im-
prensa negra; a cultura afro-brasileira como elemento de resistência e superação
das discriminações (BRASIL, 2018)”. Vemos nessa, a possibilidade de discutir e
85
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

reforçar a relevância dos movimentos sociais como mecanismos de resistência,


visto que muitos dos direitos conquistados tanto pelas populações negras, quanto
indígenas, foram resultados de inúmeras movimentações coletivas.
Entrelaçando todas as competências e habilidades supracitadas, caminha-
mos rumo a uma educação que construa cidadãos que respeitem “(EF09HI08)
as pluralidades e diversidades identitárias na atualidade (BRASIL, 2018)”, e que
se preocupem com “(EF09HI08) as pautas dos povos indígenas no século XXI
e suas formas de inserção no debate local, regional, nacional e internacional
(BRASIL, 2018)”.
Sendo assim, todas as competências citadas são oportunidades para novas
abordagens, de forma assertiva, mostrar aos alunos/as que não somos iguais e
isso é bom; que não existe uma única forma de viver e ver o mundo e, principal-
mente, mostrar que cada povo tem seu tempo, seu modo de ser, modo de viver e
estar no mundo, e isso não significa que são piores ou melhores que outros gru-
pos étnicos. Há sempre a possibilidade de aprender com epistemologias, modos
de vida e cosmovisões outras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebemos que a Base Nacional Comum Curricular nos apresenta bre-
chas decoloniais (WALSH, 2009) pelas quais conseguimos trabalhar com assun-
tos que promovem a desconstrução de concepções equivocadas, produzidas his-
toricamente, sobre negros e indígenas. Possibilita, ainda, significativas mudanças
na perspectiva de análise da sociedade, visto tamanha atuação de movimentos
indígenas e negros na contemporaneidade, fazendo emergir questionamentos
sobre as atuais estruturas socioeconômicas e culturais, ainda atravessadas pela
escravidão do período colonial.
Através deste, esperamos contribuir, ainda de que forma inacabada, para
a problematização da educação no que se refere ao trabalho com questões en-
volvendo as temáticas negras e indígenas, reconhecendo a importância da parti-
cipação dos múltiplos povos na formação de nossa sociedade e, principalmente,
apoiando-se na educação como uma forma de ressignificar a histórica subalter-
nização direcionada a estes povos por meio do colonialismo e, posteriormente,
a colonialidade.
Com isso, a escrita desse artigo tem a expectativa de criar visibilidade para
futuros debates e colaborar para a circulação de informações a respeito das habi-
lidades e competências presentes na BNCC que permitem um maior envolvimen-
to da comunidade escolar com temáticas importantes referentes às populações
negras e aos povos indígenas.
Sendo assim, não esperamos concluir de maneira concreta esse estudo,

86
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

visto a impossibilidade de finalizar totalmente qualquer que seja a investigação.


Primeiro porque estaríamos limitando tamanha amplitude do assunto à uma
única perspectiva; segundo porque reconhecemos que estamos escrevendo sobre
questões negras e indígenas, porém, com exceção da autora deste que é descen-
dente indígena, não ocupamos seus lugares de fala e salientamos ainda que não
há melhores sujeitos para problematizar o tema do que os próprios protagonistas
desse contexto.

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Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
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WALSH, Catherine. Interculturalidade Crítica e Pedagogia Decolonial: in-sur-

87
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

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Intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de
Janeiro - 7 Letras, 2009.

88
TEORIA ANTIRRACISTA CRÍTICA
PARA DESCOLONIZAÇÃO DO ENSINO
DA HISTÓRIA INDÍGENA
Ana Catarina Zema1
Peterson Mendes Martins2

INTRODUÇÃO

Ao longo dos últimos anos, o ensino da história indígena conheceu avanços


significativos no Brasil. O mais importante foi, sem dúvida, a promulgação da Lei
nº 11.645/2008 que, complementando a Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003,
estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da “História e Cultura Afro-brasileira
e Indígena” no currículo oficial da rede de ensino. Ao instituir as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o
Ensino da História e Cultura Afro-brasileira e Africana e Indígena, o Conselho
Nacional de Educação (CNE), por meio do Parecer CNE/CP nº 3/2004 e da Lei
nº 11.645/2008, visava promover e divulgar uma educação capaz de, não apenas
produzir conhecimentos orientados por valores, visões de mundo dos afro-bra-
sileiros e dos povos indígenas, mas também capaz de provocar mudanças nas
atitudes, posturas e valores, de modo a formar cidadãos conscientes e atuantes no
seio de uma sociedade pluriétnica (BRASIL, 2004; BRASIL, 2008).
Mais de dez anos já se passaram desde a enunciação dessas diretrizes
e, no entanto, as escolas e instituições brasileiras de ensino continuam sendo
denunciadas como espaços onde persistem e se reproduzem desigualdades so-
ciorraciais. Como poderia o ensino da história indígena contribuir para formar
cidadãos conscientes e atuantes no seio de uma sociedade pluriétnica, cidadãos
responsáveis, capazes de questionar as diversas formas de injustiça e de desen-
volver um espírito crítico e de solidariedade coletiva? Quais os desafios para uma
1 Pós-doutorado em Ciências Políticas pela Universidade Laval (Quebec). Pós-doutorado
em Antropologia do Desenvolvimento no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Uni-
versidade de Brasília (CDS/UnB). Doutora e mestre em História Social pelo Programa
de Pós-graduação em História (PPGHIS) da UnB. Pesquisadora e membro do Grupo de
Estudos em Direitos Étnicos Moitará da Faculdade de Direito da UnB. Pesquisadora e
membro do Observatório de Direitos e Políticas Indigenistas (OBIND) do Departamento
de Estudos Latinoamericanos (ELA/UnB). Contato: [email protected].
2 Pós-graduado em História e Cultura Afro-brasileira e africana. Graduado em História e
Pedagogia.
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

descolonização do ensino da história indígena? Como uma educação antirracis-


ta, aplicada ao ensino da história indígena, poderia mudar as relações de força e
agir em favor de uma mudança social radical?
Para responder a essas indagações, partimos do pressuposto de que a sim-
ples inclusão da figura do “indígena” nos livros didáticos de história ou na sala
de aula, da forma como vem sendo feita, não é suficiente para a descolonização
do ensino da história desses povos. É preciso que o ensino da história indígena
esteja ligado à luta antirracista e por justiça social para que um verdadeiro pro-
cesso de descolonização aconteça.
O objetivo deste trabalho é apresentar as contribuições da Teoria
Antirracista Crítica (TARC) para a descolonização do ensino da história indí-
gena. Em um primeiro momento, relembramos a história da luta do movimento
indígena no Brasil para a inclusão no currículo oficial da rede de ensino da obri-
gatoriedade temática da cultura e da história indígena. Em seguida, destacamos
algumas especificidades da Teoria Antirracista Crítica em relação às teorias multi
e intercultural. Veremos que, enquanto o multiculturalismo e a interculturalida-
de enfatizaram a harmonia intergrupal, o enriquecimento mútuo pela celebra-
ção da diversidade e da troca intercultural, assim como o reforço da autoestima
de estudantes racializados pela valorização de sua herança cultural, a Teoria
Antirracista Crítica, mais preocupada com a construção e a persistência das de-
sigualdades sociais, propõe um exame crítico do papel histórico da exploração
econômica e política de grupos racializados. Apresentamos, finalmente, os doze
princípios de uma educação antirracista para refletirmos sobre quais seriam suas
possíveis contribuições para a ensino da história indígena no Brasil.

A LUTA DO MOVIMENTO INDÍGENA CONTRA OS PERIGOS DE


UMA HISTÓRIA ÚNICA

As relações de dominação resultantes da experiência colonial europeia


moderna se fundaram na ideia da inferioridade racial dos povos colonizados.
Além da colonização político-administrativa, o colonialismo implicou uma co-
lonização epistêmica para justificar e garantir a ideia da inferioridade racial.
Problematizar o colonialismo e as relações de poder coloniais que se mantêm
nos dias de hoje sob a forma de colonialidade do poder, do ser e do saber, signi-
fica questionar a hegemonia dos conhecimentos postos como universais, entre
eles, a “monocultura histórica” (MENESES, 2013). De fato, “um dos objetivos
do colonialismo, enquanto projeto político, foi a negação do direito à história
dos povos colonizados” que significou também uma negação de sua humanidade
“através da violenta usurpação do seu direito à autodeterminação” (MENESES,
2016, p. 29 - 30).

90
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Desde a ascensão dos movimentos indígenas, lideranças, militantes e inte-


lectuais indígenas têm insistido na necessidade de uma reescrita da história capaz
de esclarecer a relação entre as críticas sobre a maneira como esses povos foram
representados na história oficial e suas lutas por descolonização e autodetermi-
nação. Acadêmicos indígenas reconhecem hoje a importância da história para
uma melhor compreensão do presente e consideram sua recuperação “um aspec-
to necessário e fundamental no processo de descolonização” (SMITH, 2016, p.
57).
Em 21 de abril de 2000, durante a comemoração intitulada “Brasil: 500
anos”, milhares de pessoas representantes de vários povos indígenas, juntamente
com outros setores da sociedade, organizaram um movimento de protesto com o
nome “Brasil: outros 500”. Depois de terem sido reprimidos violentamente pela
polícia militar, os manifestantes redigiram um documento final expondo suas
reivindicações e uma delas, a de número 6, referia-se à produção e ao ensino da
história. Os movimentos e representantes indígenas demandavam que a “verda-
deira história” deste país fosse reconhecida e ensinada nas escolas, e que fossem
levados em conta os milhares de anos de existência das populações indígenas
nesta terra (BRASIL, 2000).
A preocupação com a inclusão da temática indígena no ensino escolar
brasileiro não é nova. As denúncias do movimento indígena sobre os danos cau-
sados pela negação de seu direito à história e contra a reprodução de estereótipos
discriminatórios dos povos indígenas nos materiais didáticos escolares são anti-
gas. Essas denúncias estiveram presente nos discursos das lideranças indígenas
desde o começo do movimento indígena brasileiro, nas décadas 1960 e 1970,
alcançando um marco histórico durante as lutas pelos seus direitos na assem-
bleia constituinte de 1987. Mas foi somente em 2008, com a promulgação da
Lei nº11.645 que, pela primeira vez no Brasil, a obrigatoriedade do ensino da
“História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” nas escolas foi estabelecida.
A Lei nº11.645 determinou que as escolas deveriam incluir conteúdos
referentes à história e à cultura afro-brasileira e dos povos indígenas no âmbi-
to do currículo escolar, preferencialmente, nas áreas de Educação Artística, de
Literatura e de História do Brasil, de modo a reconhecer e a celebrar a diver-
sidade étnica e cultural do país. Com a promulgação dessa Lei, o movimento
indígena marcou sua entrada nas políticas públicas de inclusão étnica e racial
pelo viés da educação. Para Daiara Tukano (2018, p. 35), a Lei nº 11.645 de
2008 deve ser reconhecida como “uma estratégia dentro do processo de justiça
de transição destes segmentos sociais à procura do reconhecimento de sua dig-
nidade humana” considerando as violências históricas que os afligem desde o
período colonial. A Lei nº11.645/2008 é resultado da luta política organizada
do movimento indígena brasileiro na busca pela “construção de uma sociedade

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(O rganizadores )

mais tolerante e inclusiva” (TUKANO, 2018, p. 35). Trata-se, de fato, de uma


grande conquista do movimento indígena, sobretudo quando se leva em consi-
deração que o Brasil é um país cuja legislação afirma que a escola, como lugar
de formação de cidadãos, deve promover a necessária valorização das matrizes
culturais que fazem do Brasil um “país rico, múltiplo e plural” e que considera
“as matrizes Europeia, Africana e Indígena como de igual valor e potência como
formadora de nossa nação”, mas onde “a matriz indígena é sistematicamente
silenciada, invisibilizada e marginalizada” (TUKANO, 2018, p. 35).
No entanto, a modificação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, com a promulgação da Lei nº 10.639, de 2003, e sua alteração com
a Lei nº 11.645, de 2008, não foi suficiente para alterar as relações coloniais de
poder que, historicamente, têm contribuído para a exclusão e a marginalização
dos povos indígenas nesse país. Além disso, como sugere Daiara Tukano (2018,
p. 36), a Lei tem sido usada contra negros e indígenas, na medida em que, “fa-
zendo um ensino racista, [...] abriu espaço para a repetição de estereótipos tidos
como ‘cultura geral’ sobre negros e indígenas”. A data do 19 de abril, por exem-
plo, marcada como dia para abordar a temática indígena nas escolas, é o dia em
que, frequentemente, se assiste à reprodução de “conteúdos superficiais sobre os
povos indígenas, com pouca ou nenhuma contextualização, nem pensamento
crítico sobre a razão desse conteúdo como combate ao racismo e discriminação”
(TUKANO, 2018, p. 36).
Daiaira Tukano chama a atenção para os perigos de um ensino da história
indígena descontextualizado, despolitizado e reprodutor de estereótipos e pre-
conceitos. Ela insiste sobre a importância de que o ensino da história indígena
seja aproximado à luta contra o racismo e a discriminação. A seguir, são apresen-
tados os fundamentos da Teoria Antirracista Crítica (TARC), particularmente
as suas especificidades em relação às teorias multi e intercultural, para, depois,
avaliarmos suas possíveis contribuições para a descolonização do ensino da his-
tória indígena no Brasil.

A TEORIA ANTIRRACISTA CRÍTICA (TARC)

A Teoria Antirracista Crítica tem suas raízes na Teoria Crítica Racial


(TCR) que é o resultado das discussões por direitos civis, a partir dos anos 1960,
nos Estados Unidos (THÉSÉE; CARR, 2016). A TARC seria uma síntese no-
tável da TCR, da educação antirracista e das práticas de descolonização, enfa-
tizando a “necessidade de estudar as realidades sociorraciais a fim de descobrir
suas dinâmicas, desconstruí-las e, o mais importante, transformá-las” (Sleeter,
2013 apud Thésée; Carr, 2016, p. 8). Um de seus argumentos fundadores que, de
certa forma, a distinguiria da TCR, é que “não se pode abordar os racismos, a

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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

construção social da raça que os justifica, e os processos de racialização que os


operacionaliza, sem assumir desde o início que se é antirracista” (DEI, 2013, p.
1).
A Teoria Antirracista Crítica é pouco conhecida no Brasil. Mesmo nos
Estados Unidos e no Canadá, onde surgiu, ainda não é muito influente na área
da educação, enquanto resposta institucional à diversidade, comparativamente
às duas outras correntes da educação intercultural e multicultural (POTVIN;
CARR, 2008). Essas três correntes compartilham algumas preocupações comuns
fundadas sobre “os grandes valores das democracias modernas: respeito ao plu-
ralismo e aos direitos da pessoa, promoção da igualdade de oportunidades e da
equidade, valorização do quadro democrático que permita o exercício da cidada-
nia” (POTVIN; CARR, 2008, p. 199). Elas se distinguem, na prática, pelo foco
em um desses polos, “a educação antirracista estando mais centrada na constru-
ção e na persistência das desigualdades sociais” (POTVIN; CARR, 2008, p. 199).
Enquanto a educação intercultural ou multicultural enfatiza “a harmonia
intergrupal”, “o enriquecimento mútuo pela celebração da diversidade e da troca
intercultural”, assim como “o reforço da imagem de si entre os alunos dos grupos
racializados pela valorização de sua herança cultural” (POTVIN; CARR, 2008,
p. 200-201), os teóricos da educação antirracista estão mais preocupados com a
construção e a persistência das desigualdades sociorraciais.
Para os partidários de uma educação antirracista, as promessas de trans-
formação social e de igualdade que as teorias inter e multicultural traziam não
foram cumpridas. A educação multicultural foi criticada, por exemplo, por se ba-
sear em “uma perspectiva mais individual que grupal” e por ter tido “um impacto
maior na sensibilização dos preconceitos entre os grupos maioritários do que na
promoção social dos alunos originários dos grupos étnico-culturais ou raciais”
(POTVIN; CARR, 2008, p. 201). Essa corrente teórica foi também denuncia-
da por adotar uma perspectiva “essencialista das diferenças étnicas” (POTVIN,
2017, p. 100) e por “refletir um ponto de vista e os interesses dos grupos domi-
nantes, que tentam acomodar e administrar a diversidade ao mesmo tempo em
que continuam a desvalorizar implicitamente o Outro” (POTVIN; CARR, 2008,
p. 201).
George Jerry Sefa Dei3, um dos mais importantes proponentes da TARC
no campo da pedagogia, explica que o desafio da diversidade não consiste em

3 George Jerry Sefa Dei é chefe Adumakwaahene da cidade de Asokore, no Gana, e profes-
sor de Educação Antirracista no Ontario Institute for Studies in Education (OISE), da Universi-
dade de Toronto. Como tal, foi merecedor de vários prêmios pelo seu importante trabalho.
O professor Dei tem se dedicado não apenas aos estudos sobre raça e racismo na Educação,
mas tem se interessado também pelo pensamento indígena e anticolonial e mostrado como
estes pensamentos podem contribuir para a construção de novas possibilidades pedagógi-
cas.
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(O rganizadores )

geri-la ou integrá-la, mas em tirar dessa experiência uma nova compreensão do


nosso mundo social. Dei propõe pensar o antirracismo como uma “nova lente
crítica” para ver e questionar a forma como “as escolas, as faculdades e univer-
sidades” (1996, p. 249) funcionam reproduzindo o “domínio branco patriarcal”
(1996, p. 251). O olhar crítico antirracista permite descobrir os “racismos embu-
tidos, os sexismos e os classismos” e “detectar os apagamentos acadêmicos, as
exclusões e as negações dos conhecimentos e das histórias de grupos marginali-
zados e desfavorecidos” (1996, p. 250). Dei explora algumas das maneiras pelas
quais o conhecimento e a prática antirracistas podem ser “construídos, produzi-
dos e disseminados” considerando os desafios que os atuais processos de globa-
lização têm colocado para a educação e a mudança social, ao mesmo tempo em
que explica “a razão de se engajar em uma práxis antirracista” (1996, p. 251).
Ele propõe uma teoria crítica antirracista definida como “estratégia orien-
tada à ação para a mudança sistêmica e institucional”, a fim de eliminar não ape-
nas o racismo, mas também os “outros sistemas interligados de opressão social”
(1996, p. 252). Para Dei, o antirracismo é um questionamento do status quo, na
medida em que aborda explicitamente os processos de diferenciação social em
termos de poder e de equidade mais que como elementos da “variedade cultural
e étnica” (POTVIN; CARR, 2008, p. 201). Assim, a TARC se concentra no exa-
me dos efeitos sócio-estruturais das práticas racistas e racializadas (DEI, 1996, p.
259) e se interessa, particularmente, nas relações de poder que instrumentalizam
as diferenças, questionando “as estruturas e seu papel na produção-reprodução
das desigualdades, assim como a responsabilidade de todas as categorias de ato-
res” (POTVIN; CARR, 2008, p. 202).
A TARC requer uma análise da produção e transmissão do racismo em
cada ambiente. No meio escolar, a TARC coloca em questão “a definição da
missão educacional e do currículo”, “a organização dos serviços educacionais”,
“a vida cotidiana da escola” e “as relações entre professores, alunos, pais e outros
atores” (POTVIN; CARR, 2008, p. 202). A TARC questiona a marginalização
de certas vozes na sociedade e a deslegitimação/desvalorização do conhecimen-
to e da experiência dos grupos racializados, desafiando o que é posto como “co-
nhecimento válido” (DEI, 1996, p. 254). A TARC, quando aplicada ao campo
da pedagogia, questiona também as “explicações patológicas de que a ‘família”
ou ‘ambiente doméstico’ são a fonte dos ‘problemas’ que os jovens enfrentam nas
escolas” (DEI, 1996, p. 255). Argumenta-se que tais explicações desviam a aten-
ção de “uma análise crítica das estruturas institucionais que tratam os jovens de
forma desigual e justificam o status quo, atribuindo prioridade causal às próprias
vítimas” (DEI, 1996, p. 255 – 256).
A partir das contribuições de George Sefa Dei, Gina Thésée e Paul
Carr (2016) sistematizaram os doze princípios fundamentais da TARC: 1) A

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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

identidade racial é central na construção identitária das pessoas racializadas; 2)


Os racismos preexistem à noção de raça; 3) O racismo é uma forma de contínua
opressão e agressão, cuja intensidade é agravada pela interseccionalidade da raça
com outros aspectos da identidade (etnia, gênero, classe socioeconômica, língua,
sotaque, religião, sexualidade ou necessidade especial); 4) É preciso levar em
consideração a especificidade dos racismos antinegro; 5) É preciso levar em con-
sideração o contexto histórico de racialização; 6) A teorização do antirracismo
crítico se baseia em discursos, métodos, práticas e conhecimentos; 7) Racismos e
colonialismos são agressões historicamente ligadas à dinâmica hegemônica im-
perialista e capitalista; 8) Reconhecimento do fenômeno da “branquitude”; 9)
Reconhecimento das vozes de resistência epistemológica; 10) O objetivo do an-
tirracismo é essencialmente a transformação das realidades sociais para a eman-
cipação das pessoas racializadas e promoção de uma coexistência mútua; 11)
A indigeneidade como uma leitura historicizada da cidadania e uma releitura
crítica da geopolítica dos racismos e; 12) A espiritualidade como uma dimensão
importante das lutas contra as agressões racistas (2016, p. 8-10).4
Considerando seu caráter radical e inovador, a TARC suscitou um certo
número de críticas. A importância dada à ‘raça’ foi criticada como fator deter-
minante das desigualdades sociais; a incompatibilidade da educação antirracista
com os objetivos da educação à cidadania e o irrealismo de sua estratégia de
transformação social (POTVIN; CARR, 2008, p. 202-203). A seguir, discutimos
a descolonização do ensino da história indígena a partir das críticas levantadas
por Linda Tuhiwai Smith (2016).

POR UMA DESCOLONIZAÇÃO DO ENSINO DA HISTÓRIA INDÍGENA


A descolonização do ensino e da escrita da história indígena, de acordo
com o pensamento decolonial, implica uma crítica à modernidade ocidental e à
sua racionalidade hegemônica. A descolonização do conhecimento requer uma
reabilitação do valor dos conhecimentos que não se encaixam na episteme mo-
derna. Contestar a dominância epistêmica do Norte global representa um desa-
fio no sentido de abrir o mundo a outros saberes, narrativas e lutas, contadas por
múltiplas vozes. No caso específico do ensino e da escrita da história indígena,
descolonizar significa problematizar a dimensão epistêmica do colonialismo mo-
derno, mostrando como a imagem predominante do indígena na história ainda é
reflexo de representações forjadas no centro de um saber de matriz eurocêntrica
que reforça a permanência das perspectivas do Norte sobre o Sul.
Linda T. Smith nos dá algumas pistas importantes para pensar a descolo-
nização do ensino e da escrita da história indígena, em seu livro Decolonizing me-
thodologies: research and Indigenous Peoples, publicado pela primeira vez em 1998.

4 O desenvolvimento de cada um desses princípios será feito em uma próxima publicação.


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(O rganizadores )

Nesse livro, ela propõe pensar a descolonização como um processo capaz de


“provocar um pensamento revolucionário” sobre os papéis que desempenham
“o conhecimento, a produção do conhecimento, as hierarquias do conhecimen-
to e as instituições do conhecimento” na transformação social (2016, p. 14-15).
Ela explica que uma metodologia decolonial deveria, inicialmente, servir para
garantir que a “pesquisa seja significativa” para as comunidades e que a visão e
a experiência indígena sejam reconhecidas (2016, p. 13). Também, deveria servir
para assegurar que toda e qualquer pesquisa envolvendo os povos indígenas seja
feita de um modo “respeitoso, ético, compreensivo e útil” (2016, p. 30). Smith
denuncia o legado colonial do racismo epistêmico e da exploração dos conheci-
mentos e da sabedoria indígena por parte dos pesquisadores não indígenas há sé-
culos e mostra como os legados imperiais do conhecimento ocidental continuam
influenciando as instituições educacionais e excluindo os povos indígenas e suas
aspirações.
A História foi e continua sendo uma disciplina “colonizadora”. A negação
das perspectivas indígenas sobre a história foi, segundo Smith, “uma necessidade
imperiosa da ideologia colonial em seu processo de impor-se”. Essa negação
pode ser compreendida, em parte, porque as perspectivas indígenas eram consi-
deradas “primitivas” e “incorretas”, mas, sobretudo, “porque desafiavam e resis-
tiam à missão colonizadora” (2016, p. 56). Essa negação teve suas consequências
sobre as vidas indígenas.
A ligação entre os povos e sua história é fundamental, não apenas por
razões de identidade, mas também por razões sociais e políticas. No caso dos
povos indígenas, a ruptura com sua historicidade foi acompanhada pela ruptura
de suas relações com o território e pela usurpação de seu direito à autodetermi-
nação. A forma como escrevemos e ensinamos história tem um impacto na vida
das pessoas no presente. Conhecer e compreender a história não é apenas com-
preender o passado, mas também compreender nosso papel e lugar na sociedade
no presente, pois a história, seja escrita ou ensinada, deve ser relacionada com as
realidades atuais.
A negação da história indígena está relacionada à produção de sua invi-
sibilidade no presente. Ser “invisível” significa que eles não podem ser vistos,
ouvidos ou compreendidos. Esta invisibilidade é intencionalmente construída
no presente, a fim de criar uma ausência e destruir a possibilidade de um futuro.
Se você não tem futuro, qual é sua situação no presente ou qual é o significado
de seu passado? A negação da história e do passado dos povos indígenas é uma
forma de dizer que eles não existem no presente e que não têm futuro. Tanto que,
durante anos, foi dito que eles seriam aculturados e não existiriam mais como
indígenas. Esta negação da história indígena e de seu lugar no tempo tem uma
relação com a terra. Quando seu passado é negado, sua existência é invisibilizada

96
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

no presente e você não tem futuro, por que você precisaria da terra?
A crítica indígena à história ocidental sustenta que tal história é um “proje-
to modernista que se desenvolveu paralelamente às crenças imperialistas sobre o
Outro”. A história se constrói em torno de um conjunto interconectado de ideias.
Ela destaca dez: 1) A história é totalizante; 2) A história é universal; 3) A histó-
ria é uma grande cronologia; 4) A história é equivalente ao desenvolvimento; 5)
A história tem a ver com a autorealização do sujeito humano; 6) Os relatos da
história se podem contar em uma narrativa coerente; 7) A história é uma disci-
plina inocente; 8) A história se constrói sobre categorias binárias e; 9) A história
é patriarcal (2016, p. 57-59). A descolonização do ensino da história indígena
começaria pela revisão e desconstrução dessas ideias.
A descolonização do ensino e da escrita da história indígena depende de
uma revisão crítica de conceitos centrais, a começar pelas ideias de espaço e
tempo, da forma como foram hegemonicamente definidos pela racionalidade
moderna – estrutura de saber que legitima a expansão do projeto civilizacional
moderno ocidental no mundo. Depende, também, de uma compreensão da ora-
lidade e do papel das tradições orais na produção do conhecimento indígena.
Assim, a prática da história oral se apresenta como fundamental para o desen-
volvimento de uma educação antirracista. Sobre a prática da história oral, Smith
explica que a “arte de contar histórias” é “parte integral de toda investigação
indígena” (SMITH, 2016, p. 194). Os testemunhos indígenas são vivos e “cada
história individual é poderosa” e contribui para uma história coletiva (SMITH,
2016, p. 194). As narrativas indígenas sobre o passado são formas de “transmitir
as crenças e os valores” de um povo, “esperando que as novas gerações os apre-
ciem e continuem transmitindo a história” (SMITH, 2016, p. 194-195). É uma
maneira de “conectar o passado com o futuro, uma geração com a outra, a terra
com a gente e a gente com a história” (Smith, 2016, p. 195). As narrativas indíge-
nas são também compreendidas como “uma obra que educa o coração, a mente,
o corpo e o espírito” (SMITH, 2016, p. 195).
A compreensão da oralidade e do papel das tradições orais nos coloca a
necessidade de aprendermos a ouvir e a integrar a versão indígena da história.
Nesse sentido, a participação das organizações indígenas é fundamental na esco-
lha e na definição dos conteúdos, assim como sua colaboração na criação de ma-
terial didático e para a formação de professores. Os conteúdos da história indí-
gena não deveriam ser pensados apenas em termos de conhecimentos, deveriam
ser tratados em uma abordagem mais íntima, pois existem sensibilidades a serem
descobertas e uma visão de mundo mais holística a ser integrada. Deveríamos,
assim, tentar fazer refletir nas nossas práticas pedagógicas valores particularmen-
te significativos para os povos indígenas como reciprocidade, interdependência,
compartilhamento, respeito à natureza, consciência das consequências de nossos

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

atos. Um tal enriquecimento dos cursos escolares teria não apenas como efeito
combater os racismos e preconceitos, mas permitiria também aos milhares de
crianças e jovens indígenas que hoje frequentam as escolas e universidades bra-
sileiras serem reconhecidos e terem fortalecido o orgulho de seu povo e de sua
cultura.
São muitos os caminhos para pensarmos a descolonização do ensino da
história indígena. Aqui destacamos apenas alguns, como a importância da his-
tória oral e da participação e parceria com os povos indígenas na construção
de boas práticas pedagógicas na escola, assim como na revisão dos conteúdos
curriculares. Também chamamos a atenção para o perigo de uma compreensão
da história eurocêntrica e a necessidade de desconstrução de suas ideias funda-
doras. Seria, ainda, preciso discutir os usos de alguns conceitos, palavras, ca-
tegorias, mapas e conteúdos, utilizados recorrentemente nas aulas de história,
para pensarmos em estratégias de revisão com vista a uma descolonização dessa
disciplina.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nosso desconhecimento da história e da realidade dos povos indígenas ain-


da é um obstáculo para a luta contra o racismo anti-indígena no Brasil. Mesmo
após mais de dez anos da promulgação da Lei n.º 11.645/2008, ainda podemos
questionar: Quantos professores de história seriam capazes de nomear sete povos
indígenas no Brasil? Quantos deles já visitaram uma comunidade ou estiveram
com algum indígena? Algum deles seria capaz de contar um conto indígena? Na
verdade, faz pouco tempo que começamos a tomar consciência das profundas
rupturas sociais e culturais que viveram os povos indígenas desde a invasão dos
europeus.
Na luta contra o racismo anti-indígena, o ensino da história que, durante
décadas, perverteu nossas percepções sobre esses povos, deveria ser a ponta de
lança desse projeto hoje. Por isso, os movimentos indígenas pediram aos sucessi-
vos governos que tomassem as medidas necessárias para favorecer o reconheci-
mento de suas identidades, valorizando suas culturas, línguas e visões de mundo
nas instituições educativas e lutam por uma reescrita da história que dê lugar e
voz aos povos indígenas.
O objetivo desse capítulo foi apresentar os princípios da Teoria Antirracista
Crítica como uma ferramenta para a descolonização do ensino e da escrita da
história indígena, ponderando sobre algumas questões de ordem epistemológi-
ca, ética e política que todo historiador, professor ou pesquisador, deveria con-
siderar quando a temática envolve esses povos. As contribuições da TARC são
válidas para pensarmos como o ensino e a escrita da história indígena poderiam

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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

descolonizar seu próprio discurso e suas práticas. Elas são válidas, também, por-
que nos levam a refletir sobre como lutar contra o racismo por meio do ensino
da história indígena. Acreditamos que a luta contra o racismo deve ser um dos
principais objetivos do ensino da história indígena. Para isso, é preciso mudar a
mentalidade e avançar na construção de um programa escolar que não apenas
questione os processos de dominação da cultura eurocentrada, mas que favoreça
a compreensão dos processos de construção e produção do racismo e de cons-
cientização e responsabilização da sociedade como um todo.
Seguindo as proposições da TARC, o ensino da história indígena deveria
incluir uma reflexão sobre os processos de construção dos racismos. É preciso ex-
plicar aos jovens que o racismo não é o resultado de um confronto entre pessoas
de cor de pele diferentes, mas o produto de uma construção política e econômica.
É preciso ensinar a perceber o conjunto de elementos que contribui, ainda hoje,
para a formação de opiniões e preconceitos raciais a fim de afastá-los do sistema
educativo. É preciso preparar os futuros professores de história a desenvolver
uma abordagem crítica das representações tendenciosas, dos conceitos e noções
inadequadas por meio das quais a história indígena é ensinada. Uma das primei-
ras tarefas que o professor de história deve ser capaz de cumprir é questionar os
seus próprios preconceitos e racismos.

REFERÊNCIAS
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Educação (CNE), Parecer n. CNE/CP 003/2004, Diretrizes Curriculares
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em Direitos Humanos e Cidadania. Universidade de Brasília, 2018.

100
EDUCAÇÃO PARA AS RELAÇÕES RACIAIS:
REFLEXÕES SOBRE AÇÃO DE GESTORES
E PROFESSORES ACERCA DAS
QUESTÕES RACIAIS NA ESCOLA
Malsete Arestides Santana1
Nilvaci Leite de Magalhães Moreira2
Rosana Fátima de Arruda3

INTRODUÇÃO

Para a educação das relações raciais não basta ter uma gestão com lide-
rança e professores fazendo trabalhos esporádicos, esta deve contribuir signifi-
cativamente para a promoção da igualdade racial, tendo como um dos meios
para essa ação o conhecimento do racismo educacional que, conforme discutido,
é institucionalizado. Por isso, aparece escondido sob o manto de democracia
racial, ou seja, na sociedade brasileira, há dificuldade para reconhecer as ações
racistas devido à forma difusa com que ele ocorre e permeia as relações sociais.
Uma educação antirracista respeita as diferenças raciais no discurso e na práti-
ca, discute as desigualdades na sociedade e busca combater estereótipos e ideias
pré-concebidas, o que visa erradicar o preconceito e a discriminação racial, pois
valoriza a igualdade de tratamento nas relações e possibilita uma vivência positi-
va entre todos (CAVALLEIRO, 2000).
A formação do profissional para uma educação antirracista possibilita
compreender a diversidade racial e torna o educador mais apto a lidar com a
temática, possibilitando que os estudantes construam comportamentos mais re-
ceptivos às diferenças. Para Cavalleiro (2000), o professor informado sobre as
questões raciais pode contribuir para tornar a escola um espaço de respeito a di-
versidades, e possibilita que alunos de grupos estigmatizados racialmente possam

1 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso; Graduada em Pedagogia


(UFMT); Especialização em Relações Raciais na Educação Brasileira (UFMT); Especiali-
zação Metodologia Ensino Superior (UFMT); Professora na Rede Municipal de Ensino de
Cuiabá.
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso; Coordenadora da Rede
Ubuntu polo Cuiabá (Rede de Formação de professores sobre Educação Étnico Racial)
3 Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso; Graduada em Pedagogia
(UFMT); Especialização em Educação Infantil (UFMT).
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

usufruir de elementos que contribuam para a autoestima deles.


Dessa forma, fazemos aqui uma reflexão acerca da importância da ação da
gestão escolar e dos professores nos conflitos que envolvem as relações raciais no
contexto da escola pública, no sentido de que faz parte da função dos gestores e
docentes participarem da construção de uma proposta curricular que contemple
as questões raciais, assim como corroborar para que essa proposta seja colocada
em prática. O estudo congrega algumas análises de pesquisas de dissertação de
mestrado realizadas em 2012, 2013, 2014, a partir de dados coletados por meio
de entrevistas com gestores e docentes.

METODOLOGIA

Os dados apresentados nesta produção são provindos de investigações


em dissertações, realizadas em escolas públicas do Município de Cuiabá (MT).
As referidas pesquisas foram desenvolvidas a partir de procedimentos qualitati-
vos, uma vez que respondem às questões sociais específicas que não podem ser
quantificados (MINAYO, 2010). Além disso, busca introduzir um novo sentido
aos problemas dando ênfase às especificidades socioculturais (GROULD, 2008).
Nos trabalhos de pesquisa foram realizadas entrevistas semiestruturadas com
gestores e docentes, uma vez que a entrevista possibilita uma maior interação en-
tre entrevistado e entrevistador, oportunizando ao pesquisador observar atenta-
mente “a linguagem do corpo, gestos, posturas, mimicas, olhares, é também nos
silêncios” (BOURDIEU, 1999, p.10). A entrevista semiestruturada é conduzida
com foco, combinando questões abertas e fechadas, propondo uma flexibilidade
para melhor aprofundar nas informações.

REVISÃO DA LITERATURA

As ações do espaço escolar contrapõem-se à burocracia e ao autoritarismo


da administração escolar, socializando o poder e evidenciando a participação da
comunidade. Para que isto aconteça, a gestão democrática deve contemplar as
decisões do conselho ou colegiados escolares, assembleias e reuniões coletivas
de trabalhos e participação na elaboração do projeto político-pedagógico. Na
concepção de Luck, o modelo de administração e de gestão escolar é diferente,
sendo que:
[...] o conceito de gestão escolar, que ultrapassa o de administração escolar,
por abranger uma série de concepções não abarcadas por este outro, po-
dendo citar a democratização do processo de construção social da escola
e realização de seu trabalho, mediante a organização de seu projeto polí-
tico-pedagógico, o compartilhamento do poder realizado pela tomada de
decisões de forma coletiva, a compreensão da questão dinâmica e conflitiva
e contraditória das relações interpessoais da organização, o entendimento
102
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

dessa organização como uma entidade viva e dinâmica, demandando uma


atuação especial de liderança e articulação, a compreensão de que a mu-
dança de processos educacionais envolve mudanças nas relações sociais
praticadas na escola e nos sistemas de ensino (LUCK, 2002, p. 16).

Como pode-se ver, é preciso pensar nas ações escolares, entre elas, as dos
gestores, como uma articulação consciente entre ações, que se realizam no coti-
diano da instituição escolar e o seu significado político e social. Para Luck (2008
p. 46), “o conceito de gestão está associado à mobilização de talentos e esforços
coletivamente organizados, à ação construtiva conjunta de seus componentes,
pelo trabalho associado, mediante reciprocidade que cria um “todo” orientado
por uma vontade coletiva”. Nesse mesmo pensamento, para os teóricos Gadotti e
Romão (2004), a gestão escolar contribui para a democratização das relações no
ambiente das escolas, em que todos os sujeitos dessa relação (alunos, pais, pro-
fessores, funcionários, diretores e comunidade) buscam uma convivência harmô-
nica e um crescimento grupal, agindo como agentes de modificação na própria
escola e na comunidade.
Desse modo, as ações dos gestores e professores no espaço escolar deve
oferecer subsídios para um diálogo a respeito da realidade plural, de forma parti-
cipativa, atenta à diversidade presente na escola, que trabalhe na perspectiva in-
clusiva, combatendo as desigualdades, ações que esteja associada a um contexto
de transformação e cidadania.
Neste sentido, faz parte das ações de gestores e professores participarem da
construção de uma proposta curricular que contemple as questões raciais, assim
como corroborar para que essa proposta seja colocada em prática. Todavia, alguns
gestores e os outros profissionais da educação têm se mostrado indiferentes em
relação ao desempenho de seu papel diante das diferentes evidências de discri-
minação racial no processo educativo. Talvez, isso ocorra pela falta de preparo
desses profissionais da educação para lidar com as situações de racismo no coti-
diano escolar. Assim, faz-se necessário sua participação nos cursos de formação
na perspectiva antirracista, para que adquiram suporte teórico que possibilite a
diminuição de índices expressivos de desigualdades raciais na educação brasileira.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Promover uma educação antirracista é levar para o espaço escolar a dis-


cussão sobre as desigualdades na sociedade, pois a educação antirracista reco-
nhece o ambiente escolar como espaço para a realização de um trabalho, capaz
de possibilitar o conhecimento respeitoso das diferenças raciais. Paralelamente,
promover uma gestão antirracista precisa de um posicionamento diante dos de-
safios e vontade que fazem a diferença. Para Cavalleiro (2000), se olharmos su-
perficialmente o cotidiano escolar brasileiro, teremos a impressão da existência
103
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de um ambiente de relação harmoniosa entre adultos e crianças, sejam eles bran-


cos ou negros, dando a entender que todos usufruem das mesmas oportunidades
dentro dessa sociedade.
Entretanto, pesquisas sobre racismo no cotidiano escolar apontam que os
mesmos preconceitos que permeiam as relações sociais dos alunos entre si, re-
produzem-se no espaço escolar. De acordo com a professora Iolanda Oliveira
(2006), os profissionais da educação têm poder para contribuir para a emancipa-
ção dos alunos. Entretanto, não é isso que acontece, já que:
Os referidos profissionais têm se mostrado incapazes de exercer o poder
que lhes foi delegado em face da garantia da qualidade da educação de
modo geral e, em especial, diante das diferentes evidências de discrimina-
ção racial no processo educativo (OLIVEIRA, 2006, p. 117).

Como se nota, o currículo escolar também é fundamental para uma edu-


cação emancipadora. Segundo Sacristán (1998 p. 98), “o currículo é um projeto
seletivo cultural, social, político e administrativamente condicionado, que preen-
che a atividade escolar e que se torna realidade dentro das condições da escola
tal como se acha configurada”. Cavalleiro (2000, p. 100), coloca que a escola pre-
cisa se organizar para demonstrar a todos a importância da pluralidade racial na
sociedade. Assim, os educadores devem contemplar a discussão de diversidade
racial na sociedade, discutir os problemas raciais em suas diferentes proporções,
que atingem os grupos sociais.
Ainda no pensamento de Cavalleiro (2000), os conteúdos propostos nos
cursos de formação de professores, contribuirão para diminuir os expressivos ín-
dices de desigualdades raciais na educação brasileira, de modo que as pesquisas
enfatizam o despreparo dos profissionais da educação para lidar com as situa-
ções de racismo no cotidiano escolar.
Isso se deve ao fato de os educadores serem fruto de uma educação euro-
cêntrica, que enraizou em nossa sociedade, a ideia de que a diferença entre as
raças é um mito, pois todos são iguais perante a lei, conforme reza o artigo V da
Constituição brasileira (BRASIL, 1988). Contudo, a questão da superioridade e
inferioridade entre as pessoas, conforme sua cor, é reforçada nos livros didáticos
- conscientes ou inconscientemente – e representa os interesses do grupo que
detém o poder e busca todas as formas possíveis para mantê-lo em suas mãos.
Nesse sentido, afirmamos a necessidade de formação dos gestores/as e
demais profissionais da educação na perspectiva das questões raciais. A parti-
cipação do gestor(a) nas estruturas do contexto escolar, entre elas, a cultural e
a política, pode interferir de forma positiva ou negativa na construção de novos
valores que buscam a construção de uma escola de qualidade.
Nesse raciocínio, Pinto (2000) observa que a formação do profissional an-
tirracista da educação possibilita compreender a diversidade étnica e racial da
104
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

espécie humana, tornando o educador mais apto a lidar com a temática, possibi-
litando que os alunos construam comportamentos mais receptivos às diferenças.
Ainda para Pinto (2000), o professor informado sobre as questões raciais pode
contribuir para tornar a escola um espaço de respeito a diversidades, e possibilita
que alunos de grupos estigmatizados racialmente possam usufruir de elementos
que contribuam para a autoestima deles. Para Cavalleiro (2000), uma educação
antirracista respeita as diferenças raciais no discurso e na prática, discute as de-
sigualdades na sociedade e busca combater estereótipos e ideias pré-concebidas,
o que visa erradicar o preconceito e a discriminação racial, valorizando a igual-
dade de tratamento nas relações e possibilita uma vivência positiva entre todos.
De acordo com a pesquisa de dissertação de mestrado realizada por Santana
(2012), muitos gestores ainda resistem em admitir que nas escolas onde gerenciam
exista discriminação. Atribui a discriminação racial como bullying, modismo, mini-
mizando as consequências das práticas racistas no trabalho com os alunos.
[…] aqui não há racismo, discriminação não. Eu não vejo. Aqui a comunidade é
composta de negros, a maioria dos alunos são negros. (Diretora B). “o preconceito
aqui é contra os deficientes, mas com o negro não.” (DIRETORA ESCOLA B).

[...] aqui na minha escola não há discriminação, as brigas são por outro motivo, mas
não vejo discriminação pela cor não. Hoje é mais o bullying, virou modismo, é o que
nós temos visto frequentemente na mídia e isto tem refletido no comportamento dos
alunos na escola. (DIRETORA ESCOLA A).

Além das diretoras apresentarem dificuldades em lidar com os conflitos


ocorridos cotidianamente no ambiente escolar, Santana frisa que eram constan-
tes as brigas por conta de apelidos ou piadinhas pejorativos, em que os alunos
envolvidos eram encaminhados para a sala da diretora, e, segundo a autora, os
alunos negros recebiam punição oral ou era relatado no livro de ocorrência: “[...]
Algumas vezes os alunos eram impedidos de entrar na sala sem a presença do
responsável. Outras vezes os alunos ficavam na direção de castigo em pé ou fa-
zendo cópias. E muitas vezes ficavam sem educação física, a aula que eles mais
gostavam” (SANTANA, 2012, p. 85).
Nesse mesmo pensamento, na pesquisa realizada por Moreira (2013), pro-
fessoras negras denunciam o silêncio de muitos docentes no enfrentamento do
racismo no âmbito escolar e que, na maioria das vezes, são elas que tomam frente
a essas questões.
[...] da parte dos profissionais para com os alunos ouvi muitas piadinhas, como na
situação: ‘quem fez tal coisa foi aquele negrinho, aquela negrinha’, era incapaz de
falar o nome da criança. Outra coisa: ‘aquele ali não aprende, ô negro rude, não
aprende mesmo’. Eu comecei a sentir angustiada, nervosa, falei: é impossível que
alguém dos profissionais, colegas de trabalho não vai se tocar que isso aí é uma dis-
criminação. (PROFESSORA ANA LÚCIA).

105
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(O rganizadores )

[…] aqui, os professores têm resistência em trabalhar sobre isso, não tem interesse
pelos materiais, principalmente os enviados pelo MEC e os do projeto da cor da cul-
tura. Quando eles vão falar sobre a questão racial, fala somente superficial. As datas
passam batidas, como se não fosse importante. (PROFESSORA MARINA).

Na pesquisa de Arruda (2014), os professores argumentam sobre a necessi-


dade de investir em formação continuada para que possam aprimorar seus conhe-
cimentos sobre a questão racial na escola, e o quanto é importante esse conhe-
cimento para a mudança de percepção e postura dos profissionais da educação:
[...] Até o ano de 2009, muito pouco se falava em relações raciais nas esco-
las em que trabalhei. Trabalhávamos o tema somente no dia 20 de novem-
bro, Dia da Consciência Negra. Até então eu não sabia como lidar com as
questões de discriminação e racismo no cotidiano escolar

[...] Naquele primeiro momento, a percepção que a gente tinha é trabalhar essas ques-
tões por que era uma imposição da Lei. Hoje eu penso assim, a lei está aí tem que ser
trabalhada, mas hoje não é mais a questão da Lei em si. Mas os próprios valores que
nós temos que desenvolver uns para com os outros (CAMÉLIA. ENTREVISTA.
CUIABÁ, 23/05/2014).

Como pode-se observar, embora a lei 10.639 traga em seu bojo, a obrigato-
riedade em relação a mudança de postura dos docentes e reestruturação do cur-
rículo escolar que contemplem o reconhecimento e a valorização do negro desde
sua promulgação em 2003, ainda precisamos avançar e muito nessa questão. Vale
destacar que, a educação antirracista deve levar a escola e a sociedade a não se
calar diante das situações de racismo, fazer da escola e da sociedade um lugar de
respeito às diferenças, às diversidades.
Nesse sentido, falar de gestão antirracista requer que os gestores sejam
preparados para reconhecer a existência do racismo na sociedade brasileira; im-
plementar a Lei nº 10639/03 para a construção positiva, valorizar e reconhecer
a identidade dos afro-brasileiros; considerar a diversidade e a pluralidade cultu-
ral da sociedade brasileira; ter comprometimento ético com relação à questão
racial; realizar estudos e reflexões aprofundadas acerca das questões raciais na
sociedade brasileira; combater estereótipos e ideias pré-concebidas visando er-
radicar o preconceito e a discriminação racial; contemplar na matriz curricular
as Diretrizes que aborda a educação das relações raciais; promover diálogos nos
conflitos raciais com todos os envolvidos; contextualizar os conflitos raciais e
ampliar as discussões; ver os conflitos raciais numa possibilidade educativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Entendemos que a gestão escolar e os professores exercem um papel pri-


mordial nas mudanças de atitudes dos atores sociais que compõem a comunidade

106
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

escolar. Gestores e professores são figuras importantes no combate ao racismo


escolar, uma vez que a discriminação racial se manifesta nesse ambiente que,
aparentemente, é livre de preconceitos, mas pode gerar danos ao grupo negro
inserido neste espaço. Portanto, suas atitudes devem ser contundentes na im-
plementação da Lei. 10.639/03, na mudança de posturas dos atores sociais e
na restruturação da Proposta curricular, para que se estabeleça uma educação
efetivamente antirracista.
Enfim, é preciso ressaltar a necessidade de formação do educador, do
gestor para a prática profissional, que considere a diversidade étnica racial no
contexto escolar. Entretanto, o não acesso à formação sobre as questões étnicas
raciais, não o excetua da responsabilidade e sensibilidade com o tratamento da
diversidade e amparo dos alunos frente às situações de discriminação. A omissão
dos gestores e professores diante das discriminações raciais acaba autorizando
que continue a prática do racismo no cotidiano das relações estabelecidas na
escola. Assim, é necessário a promoção de uma educação antirracista, capaz de
favorecer a escola não se calar diante das situações de racismo, fazer da escola e
da sociedade um lugar de respeito à diferença, à diversidade.

REFERÊNCIAS
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PINTO, Regina Pahim. A escola como espaço de reflexão/ atuação no campo
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(Mestrado em Educação). Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de
Educação. Programa de Pós - Graduação em Educação. Cuiabá/MT, 2012.

108
A POPULAÇÃO NEGRA NO LIVRO DIDÁTICO
NO ESTADO DO MARANHÃO
NA CONTEMPORANEIDADE
Marcos José Soares de Sousa1
Caroline Bandeira de Sousa2
Elivelton Costa Oliveira3

INTRODUÇÃO

O dia 09 de janeiro de 2003 foi marcado no Brasil pela promulgação de


uma normativa jurídica que geraria um grande impacto na educação e na histo-
riografia brasileira. O então presidente Luís Inácio Lula da Silva, sancionou a
Lei 10.639 que torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana nas escolas públicas e privadas de Ensino Fundamental e Médio. A
referida normativa acrescenta dois artigos a Lei 9394 de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional que em 1996 regularizou e organizou a educação nacional
com base na Constituição Federal de 1988. Com as referidas mudanças o artigo
26 da LDB – 9394/1996 ficou da seguinte forma:
Art.26-A - Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, ofi-
ciais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre história e Cultura
Afro-Brasileira.
Parágrafo 1º - O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil,
a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política, pertinentes à História do Brasil.
Parágrafo 2º - Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-brasileira
serão ministrados no âmbito de todo currículo escolar em especial, nas
áreas de Educação Artística e de Literatura e Histórias Brasileiras.

1 Mestre em Ensino de História – UEM; Especialista em Educação do Campo – UEMA;


Especialista em Educação a Distância: Tutoria e Metodologia de Ensino EaD; Licencia-
tura Plena em História; Professor Municipal em Codó e Coelho Neto/MA; Membro do
NEABI – Umirim. Email: [email protected].
2 Graduada em Pedagogia, Professora, pós-graduada em Gestão, Supervisão Escolar pela
Faculdade Latino Americana de Educação (FLATED), email:carolbandeirakdi@gmail.
com.
3 Licenciado em Pedagogia pela FAI/ISEC - Caxias/MA. Licenciado em Letras Literatura
pelo CESC/UEMA - Caxias/MA. Email: [email protected].
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Art.79-B – O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como “Dia


Nacional da Consciência Negra” (BRASIL, 2003, s.p.).

O intuito da lei é problematizar as representações do povo negro no Brasil


dentro de uma cultura brancocentrica alicerçada no colonialismo europeu subsi-
diado na exploração de mão de obra escrava, trazida da África e que durou mais
de 300 anos. Esse triste legado do Brasil reverbera negativamente até hoje nas
ações de cunho racista sofridas por homens e mulheres negras cotidianamente.
Santos (2018, p. 18) ressalta que “A importância de discutir até o tempo presente
essa lei e sua aplicabilidade é representar a resistência do movimento negro, que
mesmo em um cenário adverso sempre busca se colocar nos espaços de debates”.
O protagonismo do povo negro na História do Brasil não pode passar des-
percebido, não devemos silenciar os feitos e ações dessas pessoas que ajudaram
a formar o Brasil tal qual o conhecemos. A história de luta do povo negro deve
ser lembrada, mas também se faz necessário trazer representações distintas da
escravidão, destacando a população negra em situações diferentes daquelas que
estamos acostumados a ver nos livros didáticos de história que é comumente
a de pessoas submissas, sujeitas a tutela do branco, coadjuvantes do heroísmo
civilizatório europeu. É preciso dar visibilidade ao povo negro em um contexto
além de escravizado.
A escola é um ponto de partida interessante para essa mudança de para-
digma, por paradigma Souza (2017, p. 18) assinala que: “o horizonte histórico
que define os pressupostos para qualquer tipo de conhecimento. Normalmente,
todas as pessoas são influenciadas pelo paradigma na qual são criadas e nin-
guém, em condições normais, pensa além de seu tempo”. Pois é na escola que
as crianças e jovens tem o primeiro contato com a narrativa histórica vigente
sobre a população negra no Brasil. A partir do que propõe a Lei, a escola deve se
organizar como um espaço de reparação correção e de uma discussão racial que
na sociedade em geral foi por muito tempo deixado em segundo plano. Criou-se
no Brasil a ideia de que não somos racistas pois vivemos todos em harmonia.
Na prática não é o que acontece, basta ver os jornais televisivos ou não que nos
deparamos com situações no mínimo vexatórias.
Com o objetivo de analisar como os negros e negras são representados nos
livros didáticos nas duas maiores cidades do Estado do Maranhão é que elabo-
ramos esse trabalho que visa discutir a centralidade do livro didático impresso
em plena era digital e como após 18 anos da Lei 10.639/2003, os livros retratam
o povo negro nesse Estado. A Lei 10.639/2003 desde a sua aprovação tem pro-
porcionado um maior debate sobre os silenciamentos e omissões relacionados à
população negra nas mais diversas instituições brasileiras, abrindo caminho para
os questionamentos sobre o trabalho desenvolvido nas instituições escolares e
sobre como o povo negro é apresentado nos conteúdos escolares. É preciso fugir
110
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

do “mito da democracia racial”, através de questionamentos sobre como o livro


didático por exemplo representa o povo negro em suas páginas. É fundamen-
tal lembrar, que a aprovação da referida lei incidiu sobre o PNLD, uma grande
responsabilidade, a partir do momento que a lei impôs um novo elemento cons-
tituinte do livro didático que vai de encontro a proposta de ressignificação do
papel do povo negro na história nacional e mundial. O PNLD passou a solicitar
uma mudança estrutural na produção do conteúdo do livro didático referente a
temática racial. Santos (2018, p. 30), diz que assim “a inserção da temática racial
no PNLD se torna mais um objeto de disputas”. Essas disputas irão envolver
múltiplos agentes responsáveis pelo complexo sistema de elaboração, distribui-
ção do livro didático no país.
Devido aos vários interesses que permeiam a construção do livro didático
e por executar vários papéis, seu uso na sala de aula deve vir acompanhado de
criticidade e problematizações sobre seu conteúdo, forma e aporte pedagógico.
Guimarães e Silva (2012, p.48) alertam que é preciso “desconstruir discursos an-
tidemocráticos, monoculturais, difusores de estereótipos e preconceitos de classe,
raça, religião”. Essa desconstrução pode e deve ser iniciada a partir da indaga-
ção sobre a ausência ou pouca representatividade no livro didático de grupos
formadores do Brasil como os povos indígenas e a população negra. Para que
a educação siga referenciada pelos princípios da “consciência política e história
da diversidade; fortalecimento de identidades e de direitos; ações de combate ao
racismo e a discriminações” Silva, (2007, p. 490-491).

METODOLOGIA

No Maranhão o Ensino Fundamental é de responsabilidade dos municí-


pios, enquanto cabe ao Estado a oferta do Ensino Médio. Assim optamos por
trabalhar com os livros do oitavo ano que trazem em seu conteúdo as chamadas
“rebeliões regenciais”, que dentre elas teve a Balaiada (1838-1841), ocorrida no
Maranhão que foi um movimento com líderes populares, pardos e negros.
Optamos por analisar a representação do povo negro na Balaiada, como
eles são representados, citados e descritos nos livros utilizados em São luís e
Imperatriz, as duas maiores cidades maranhenses. Para realizar essa análise usa-
mos a proposta de Circe Maria Fernandes Bittencourt (2009) que define três as-
pectos básicos para a análise do livro didático: forma, conteúdo histórico escolar
e seu conteúdo pedagógico, segundo ela são imprescindíveis se olhar esses aspec-
tos em uma análise desse material didático.
Os livros selecionados foram escolhidos pelos professores de História atra-
vés de reuniões pedagógicas organizadas pelas secretarias de educação e pelos
gestores e coordenadores escolares. O livro selecionado na capital maranhense

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São Luís foi: História Sociedade e Cidadania do autor Alfredo Boulos Junior
da editora FTD. Na cidade de Imperatriz o livro adotado foi Estudar História:
da origem do homem era digital da autora Patricia Ramos Braick da editora
Moderna. Ambos utilizados no triênio 2017, 2018, 2019.

A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO BALAIO NO LIVRO DIDÁTICO


MARANHENSE

O Maranhão é uma das unidades federativas do Brasil, localizada na re-


gião nordeste do Brasil em consonância com a Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios Contínua (PNADC) de 2019 atualmente tem uma população
composta por 7.075.181, e a composição dessa população considerando o recor-
te étnico-racial/cor é de 12,8% que se autodeclaram pretos, 17,9% brancos, os
pardos são 68,5%, PNADC (IBGE, 2019).
A história do Maranhão foi permeada por invasões e sublevações internas
contra as intempéries da natureza e dos homens. No período da colonização
brasileira os holandeses em 1641, e os franceses entre os anos de 1612 a 1615,
ambos aportaram em terras maranhenses em busca de fortuna e de potencializar
o seu capitalismo mercantil nas terras do “novo mundo”, isso fez com que em
1612 um grupo de franceses, apesar das terras a leste pelo Tratado de Tordesilhas
(1494) serem consideradas portuguesas e as oeste serem da Espanha no chamado
novo mundo decidissem por implantar uma colônia. No século XVII em terras
brasileiras “pretendiam os franceses fundar a França Equinocial”, ergueram o
forte de Sant Luís que daria origem a cidade de São Luís atual capital do Estado,
fundada por Daniel de La Touche (MARTINS, 2000, p. 23). Em 1615, durante a
União Ibérica os portugueses retomam o território e em 1621 foi criado o Estado
Colonial do Maranhão.
A província do Maranhão segue durante o Período Colonial (1530 – 1822)
como importante localidade estratégica para o domínio português até sua adesão
a independência do Brasil de Portugal. Em 28 de julho de 1823, uma Câmara
Geral reunida em São Luís oficializou o alinhamento da Província com o novo
status político brasileiro, o Império. Galves (2011, p. 106) menciona que “Em 28
de julho de 1823, uma Câmara Geral reunida em São Luís oficializou a “ade-
são” da província ao Império brasileiro”, no entanto, é fundamental alertar que
o alinhamento do Maranhão com a nova situação política, não se fez sem uma
intensa luta no interior da província e significou uma grande vitória para o im-
pério brasileiro na conclusão da independência. Galves (2008, p. 01) destaca que
a “independência do Brasil foi feita aos poucos. Bem depois do famoso Grito
do Ipiranga, um bom pedaço do país mantinha-se fiel ao Império português. O
Maranhão foi uma das últimas províncias a aderir ao “chamado” de D. Pedro I.

112
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

E não sem resistência”.


Tanto nas abordagens da História Regional como na História Nacional
um dos fatos que marca a História do Estado, foi a Balaiada que de acordo com
o professor Assunção:
A revolta que entrou na historiografia com o nome de Balaiada, foi sem
dúvida, uma das maiores insurreições populares ocorridas durante o Brasil-
Império. Mobilizou pelo menos 12.000 homens contra os governos de duas
províncias, controlou extensas faixas do território nacional durante os anos
de 1839-40 e requereu a intervenção maciça do governo central para ser
finalmente subjugada (ASSUNÇÃO, 1998, p. 67).

A diversidade dos grupos étnico-raciais que participaram deste movimen-


to até hoje é uma marca do povo maranhense como vimos nos dados sobre a
composição do Estado. Tanto nos aspectos regionais como nacionais, pouco se
estuda sobre a presença da população negra nesse movimento. Apesar de no coti-
diano do povo maranhense, observarmos uma forte influência africana e de seus
diaspóricos na cultura, na cidade, na comida, entre outros, quando analisamos os
conteúdos escolares percebemos uma invisibilidade dessa população na história
do Estado.
A centralidade e a complexidade do livro didático nas escolas brasileiras é
alvo de pesquisas na academia que discutem as particularidades do livro didáti-
co, seus desafios e suas possibilidades. As diferentes funções ocupadas pelo livro
são definidas em virtude das orientações escolares. Michael Apple afirma que o
livro é complexo em sua constituição ao dizer que:
Eles são, ao mesmo tempo, resultado de atividades políticas, econômicas
e culturais de lutas e concessões. Eles são concebidos, projetados e escri-
tos por pessoas reais, com interesses reais. Eles são publicados dentro dos
limites políticos e econômicos de mercados, recursos e poder. E o que sig-
nificam o livro e seu uso envolve disputas em comunidades com compro-
missos evidentemente diferentes e também entre professores/as e alunos/
as (APPLE, 1997, p. 74).

A importância de termos o registro do protagonismo negro nos livros didá-


ticos vai para além de construir uma representação positiva desta população no
processo escolar, com ela os alunos negros podem se sentir pertencente de uma
história que vai para além daquela que categoriza seus antepassados somente na
condição de escravizados, submissos, animalizados. Carvalho (2006), alerta que
a inexistência de aspectos positivos sobre os negros nos livros didáticos coopera
para a baixa estima e para a disseminação de um sentimento de inferioridade nos
alunos negros/as.
Utilizamos a figura do Negro Cosme para analisar representação do povo
negro no Maranhão por sua representatividade na luta por liberdade dos escra-
vizados maranhenses. Cosme é um símbolo do protagonismo negro no Estado
113
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

que durante muito tempo foi invisibilizado e desqualificado na sua condição de


líder balaio. Nascido em Sobral no Ceará, ele era negro, forro e letrado o que
era raro na época, liderou mais de 3.000 homens e mulheres negras na Balaiada
e chegou a fundar uma escola de primeiras letras no quilombo da Tocanguira
fundado por ele. Se proclamou “Tutor da Liberdade” e guerreou bravamente
até ser preso e condenado à forca. O autor Assunção (2012, p. 508), lamenta ao
dizer que: “Infelizmente sabemos muito pouco sobre essa figura, que merece ser
considerado o Zumbi maranhense”.
Quando tratamos especificamente sobre esse movimento, parte da histo-
riografia nacional afirma que ela ocorreu somente em terras maranhenses não se
estendendo para outras províncias fato esse que encontra discordância na fala de
Dias (1995, p. 73), que amplia o alcance da revolta e confirma a participação de
diversas classes sociais ao afirmar que:
A Balaiada foi um movimento social ocorrido no Piauí, Maranhão e
Ceará, do final de 1838 a fins de 1841. De um lado, grandes proprietários
de terra e de escravos, autoridades provinciais e comerciantes; de outro,
vaqueiros, artesãos, lavradores, escravos e pequenos fazendeiros (mes-
tiços, mulatos, sertanejos, índios e negros) sem direito à cidadania e
acesso à propriedade da terra, dominados e explorados por governos
clientelistas e autoritários formados pelas oligarquias locais que ascen-
deram ao poder político com a “proclamação da independência” do país
(DIAS, 1995, p. 73).

Os estudos de Assunção (1998) demonstram que a Balaiada se destaca no


cenário nacional por suas peculiaridades que a diferem das demais revoltas ocor-
ridas no país durante a regência, foi um movimento que teve desde o seu início
uma liderança popular. Ela também pode ser considerada uma das primeiras
revoltas camponesas de grande magnitude do Brasil. Para melhor sistematizar a
análise dos livros didáticos e verificar como a figura de Cosme é retratada nos li-
vros didáticos utilizados nas cidades mencionados elaboramos quatro categorias
representativas:

Livro História Sociedade e Estudar História: da origem


Cidadania do homem era digital
Representação Positiva Inexistente
Descrição Líder de revoltosos Inexistente
Nas páginas 167-168 – Mais
Citação Inexistente
de uma vez.
Traz 1 foto da estátua de
Imagem Inexistente
Cosme.

Fonte: Elaborado pelos autores

114
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Livro: História, Sociedade e Cidadania

A capital do Maranhão, São Luís, localizada no litoral da região nordeste


do Brasil, possui 1.108.975 habitantes, conforme estimativa do IBGE em 2010.
Adotou o livro da FTD, História, Sociedade e Cidadania de Alfredo Boulos
Junior. A obra de Boulos já é conhecida dos professores de História pois geral-
mente seus livros são adotados nas escolas. Na obra aqui analisada o autor cita o
“Negro Cosme” dentro do evento em que o personagem surge na historiografia
nacional que é a Balaiada. Boulos Junior (2018), cita os motivos que desencadea-
ram a revolta popular ocorrida no Maranhão entre 1838 e 1841. O autor, dedica
duas páginas a Balaiada (167, 168) e cita Cosme nominalmente três vezes.
Os líderes da Balaiada também são citados pelo autor, na página 167, sua
trajetória dentro da revolta e seu desfecho. Boulos Junior (2018), caracteriza os
líderes do movimento descrevendo-os como homens do povo que eram e relacio-
na o evento maranhense como o momento histórico nacional vigente na época.
Na página 167, Boulos introduz o estudante na figura de Cosme, ressaltando sua
liderança diante dos escravizados e forros que o seguiram durante a Balaiada. O
autor discorre sobre o destino da Balaiada e de seus líderes. O que chama a aten-
ção é o fim de Cosme que vai ser o único dos “líderes” a ser preso e sentenciado
a morte.
O livro ressalta a liderança de Cosme na Balaiada ao mencionar seu
comando sobre 3 mil quilombolas e sua adesão ao movimento balaio. Boulos
Junior (2018) ao realçar a influência de Cosme sobre uma quantidade signifi-
cante de pessoas, lhe confere mesmo que sem intenção um papel de protagonista
nos embates do movimento e na sua conjuntura social em um período aonde a
pessoa do negro era tão desacreditado em suas ações. Ao trazer a imagem de
Cosme logo na página inicial que apresenta a Balaiada, o autor não só atende ao
que decreta a lei 10.639/2003 sobre a importância de se inserir as figuras negras
da história em representações positivas na história e no livro didático, como tam-
bém lhe confere um lugar de destaque dentre os líderes da Balaiada.

Livro: Estudar História: da origem do homem era digital

O livro Estudar História: da origem do homem era digital, da editora


Moderna, foi adotado na cidade de Imperatriz que é a segunda maior cidade do
Estado com 259.337 habitantes e está inserida na região tocantina do Maranhão,
fazendo divisa com o Estado do Tocantins. O livro foi elaborado por duas au-
toras Patrícia do Carmo Ramos Braick que é mestre em História pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) e Anna Barreto que é
Mestre em História Social pela USP (BRAICK; BARRETO, 2018). Ambas já
atuaram ou atuam como professoras da educação básica, o que lhes confere um
115
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

conhecimento prático do ensino.


No que se refere ao Negro Cosme o livro não traz nenhuma referência ao
personagem, as autoras não consideraram relevante apresentar como a Balaiada
se desenvolveu e seus principais nomes. As autoras fazem alusão superficial ao
movimento balaio na página 146 contrapondo com a Sabinada (1837-1838) que
ocorreu na Bahia ao dizer “Já a Balaiada foi uma revolta popular contra as impo-
sições da aristocracia rural maranhense” (BRAICK; BARRETO, 2018, p. 146).
As autoras se aprofundam nos seguintes eventos: Rusgas Cuiabanas,
Cabanagem, a Revolta dos Malês e a Revolta dos Farrapos. Sobre a figura do
Negro Cosme o que existe é silencio. Não sabemos quais os critérios utilizados
pelas autoras para que o evento ocorrido no Maranhão no período regencial fos-
se apenas assinalado em um mapa e em uma breve referência de pouco mais de
uma linha. O livro aborda a revolta dos malês ocorrida na Bahia em 1835 com
riqueza de detalhes atendendo ao que a Lei 10.639 determina. O intrigante é que
um livro adotado no Maranhão não destaque a Balaiada com o mesmo cuidado
uma vez que essa obra didática será utilizada por alunos maranhenses que preci-
sam de uma identidade regional que dialogue com a sua realidade.
A respeito de Cosme nenhuma linha ou alusão a sua pessoa no contex-
to histórico do período aonde geralmente se espera que exista alguma informa-
ção sobre ele. Enquanto livro didático adotado por professores no Estado do
Maranhão, palco dessa luta que envolveu vários segmentos da sociedade in-
cluindo os escravizados e quilombolas liderados por Cosme, a falta de atenção
a essa ausência se trata de uma grande falha na escolha desse material didático.
É preciso considerar durante a escolha que “o livro didático é um importante
veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura”
Bittencourt (2010, p. 72). Essa função é intrínseca do livro, pois ele também refle-
te os valores do seu autor e dos outros responsáveis por sua confecção.
Ao não relatar com maiores detalhes um evento tão importante para o
protagonismo negro no Maranhão que reverberou em sua época por todo o im-
pério demandando uma movimentação de tropas do governo e a vinda do futuro
patrono do Exército Duque de Caxias a província. As autoras retiram dos alunos
negros e negras a possibilidade de se sentirem representados na história local por
um personagem que vai na contramão das representações conferidas ao povo
negro no período histórico em que Cosme se insere, viveu e marcou seu nome na
história do Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As investigações sobre o protagonismo da população negra na História do


Brasil se fortalece quando constatamos que o ensino de História da África e do

116
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Brasil, como campo de interesse e investigação nas universidades tem passado


por uma significativa mudança, podemos perceber que esse avanço é o resultado
de um giro epistêmico ao lidar com as fontes da História e sua narrativa, o que
permite questionar as presenças e ausências no palco da História e como essas
histórias individuais, regionais se vinculam com a História nacional.
O fato de eleger o Maranhão como território de investigação se dá pelo
fato de ser a área de atuação profissional dos autores e por ser o Maranhão con-
forme foi demonstrado no trabalho uma região com uma população de maioria
negra, que nem sempre se vê representada como protagonista da História nos
livros didáticos que utilizam. No desenvolvimento da pesquisa sobre o Negro
Cosme e outros personagens citados no texto, o que se percebe é que existem
avanços sobre a narrativa da população negra no livro didático, a oferta de textos
acadêmicos voltados para a discussão da Lei 10.639/2003 e da sua implemen-
tação teve um significativo crescimento, porém ainda perdura o silenciamento
sobre a trajetória dos/as negros/as na História brasileira em alguns materiais
didáticos escolhidos pelos professores no Maranhão.
A adoção do negro Cosme como figura central para análise do livro serviu
como base para se discutir através da história de vida dele, qual a representação
ofertada pelos autores dos livros sobre personagens negros que se destacaram
em movimentos locais e que tiveram repercussões nacionais. Ao verificar os
livros didáticos escolhidos pelos professores maranhenses através das secretarias
de educação municipais o que se percebe é que no momento da escolha figuras
históricas relevantes para a História local como Cosme são omitidas ou passam
despercebidas pelos professores.
Sabemos que a produção e escolha dos materiais didáticos envolvem uma
série de fatores que não são descritos nesse trabalho pois esse não era o seu obje-
tivo, mas ressaltamos a grande importância do cuidado no momento da adoção
desse importante recurso utilizado nas escolas brasileiras, uma vez que em mui-
tos casos o livro didático é o único livro ao qual os alunos tem acesso. O combate
ao ostracismo que a população negra foi e é submetida na história é de respon-
sabilidade de todos. Não podemos nos esquivar dessa discussão tão importante
para a mudança de mentalidade e de ações em um país tão diverso como o Brasil.

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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

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119
UMA EXPERIÊNCIA EM SALA DE AULA,
O SUBDIAGNÓSTICO DE AUTISTAS NEGROS:
UMA RELAÇÃO ENTRE RACISMO E CAPACITISMO
Amanda Santiago Souza Melo1
Robson Batista Moraes2

INTRODUÇÃO

O presente artigo é resultante de uma pesquisa qualitativa, utilizou-se


como técnica a observação participante. Possui um caráter indisciplinar (MOITA
LOPES, 2006). Está inserido no campo epistemológico da Linguística Aplicada,
e na grande área dos estudos da linguagem. Dito isso, o artigo visa revelar a
relação direta entre racismo e capacitismo, no contexto das deficiências, mas
especificamente do autismo.
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição do neurodesen-
volvimento, ou seja, os estudos mais atuais defendem que sua origem é biológica,
genética e cerebral. A formação do Sistema Nervoso Central (SNC) das crianças
autistas é diferente da formação cerebral das crianças neurotípicas. O que se sabe
até agora é que o autismo pode ser herdado ou não herdado, assim, essa condi-
ção acompanha toda a vida da pessoa.
A sintomatologia básica do autismo encontra-se nas áreas da linguagem,
socialização e do comportamento. Nesse sentido, as pessoas autistas apresentam
dificuldade de linguagem, pouco interesse na socialização e comportamentos
que envolvem rituais, por exemplo, apego à rotina e movimentos repetitivos e es-
tereotipados. Entretanto, é importante destacar que cada pessoa autista é única,
portanto, podem apresentar essas características em maior ou menor grau. Dessa
forma, não podemos generalizar, mas entender o autismo em suas manifestações.
O TEA, como a nomenclatura assinala, é um espectro, ele é dividido em
3 (Três) níveis de suporte. O nível 1 (um) é definido pelo DSM V, como sendo
aquele em que a criança ou adulto autista precisa de auxílio em uma intensidade
menor que os outros níveis. Isso não significa que essas pessoas não necessitem

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura pela Universidade Fede-


ral da Bahia-UFBA.
2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Linguística pela Universidade Federal de
Santa Catarina-UFSC.
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

de suporte para realizarem as atividades da vida diária (AVDs). De acordo com


Gaiato (2018), encontram-se aqui as crianças que conseguem aprender e usar os
recursos que recebem, com auxílio menos intenso.
O nível 2 (dois) é definido como aquele em que as crianças autistas pre-
cisam de muito apoio e intervenção terapêutica. Essas pessoas possuem mais
dificuldades para participarem de trocas sociais. A rigidez cognitiva é maior do
que no nível de suporte 1, o que gera dificuldade em se relacionar adequadamen-
te com outras pessoas. O apego à rotina é mais intenso, bem como os rituais e
interesses restritos e repetitivos. Quando interrompidos em seus rituais, podem
ter o comportamento alterado.
O nível 3 (três) diz respeito às pessoas que precisam de mais apoio. Elas
podem ter dificuldades na comunicação verbal e não verbal. Há prejuízos inten-
sos no estabelecimento de relações com outras pessoas. Nesse sentido, ela acaba
sendo limitada e difícil de ocorrer. Nesse ínterim, os comportamentos restritos
e repetitivos interferem em todos os contextos de suas vidas, mesmo recebendo
intervenção terapêutica, pode existir uma maior gravidade na apresentação dos
sintomas.
As pessoas com deficiência, especificamente as pessoas autistas, podem
exercer vida produtiva na sociedade, desde que recebam o suporte da sociedade,
de acordo com a classificação de autismo que possuem, no sentido de realizarem
as AVDs (Atividades da vida Diária) de forma plena e satisfatória. Entretanto,
é sabido que vivemos em uma sociedade que, muitas vezes, classifica a pessoa
com deficiência de incapaz, retirando dela a possibilidade de exercer suas capa-
cidades, de desempenhar diversas funções como trabalhar, estudar, relacionar-se
afetivamente com outras pessoas, ou seja, a sociedade exclui e limita a atuação
das pessoas com deficiências. Além disso, quando se trata de pessoas autistas ne-
gras, para além de outros preconceitos, elas, ainda, sofrem o racismo em diversos
contextos.
Uma das questões que impactam no desenvolvimento pleno do autista na
sociedade diz respeito à falta do diagnóstico ou ao diagnóstico tardio. Dessa for-
ma, a partir de um grande estudo publicado em 2020, pelo Centro de Controle de
Doenças e Prevenção de Saúde Americano (CDC- Center For Disease Control
and Prevention), a cada 54 (cinquenta e quatro) crianças nascidas, atualmente, 1
(uma) é autista.
Sobre o exposto, Gaiato (2018) afirma que, se forem consideradas as esco-
las públicas do Brasil, que atendem cerca de 37 milhões de alunos, cerca de 600
mil crianças apresentam alguns dos sintomas do TEA. Esse número deve crescer
consideravelmente, se consideradas as escolas particulares e outras instituições.
Os números de autistas no Brasil e no mundo são cada vez maiores.
No entanto, a maior parte de crianças e adolescentes com TEA, no Brasil,

121
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

fecha o diagnóstico de forma tardia, ou mesmo nunca o recebem. Essa situação


acaba gerando a falta de intervenção precoce com vistas ao acolhimento necessá-
rio para o bom desenvolvimento de habilidades sociais e de comunicação com o
objetivo de permitir à criança, ou o adolescente e até mesmo o adulto, uma vida
pautada pela inclusão na sociedade (GAIATO, 2018).
Um fator relevante que dificulta o diagnóstico de pessoas autistas está re-
lacionado ao racismo. Autistas negros possuem maior dificuldade de fechar o
diagnóstico comparados com autistas brancos. O racismo, por sua vez, é um
processo político, ideológico, histórico e econômico em constante reformulação
e que parte do fundamento da raça, como uma falsa justificativa para violentar,
discriminar e explorar as potencialidades das pessoas negras. Dessa forma, o ra-
cismo opera de maneiras específicas em determinadas conjunturas sociais e fun-
ciona permanentemente nos diversos contextos contra pessoas fenotipicamente
negras e outros grupos raciais (ALMEIDA, 2018). Portanto, as pessoas negras
com deficiência, além de serem atingidas pelo capacitismo, também são pelo
racismo.

A HISTÓRIA DO TEA

O Autismo, nome amplamente conhecido e direcionado ao Transtorno do


Espectro Autista (TEA), como é definido pelo Manual de Diagnósticos Mentais,
5º ed (DSM V), é assim conhecido por apresentar sintomas variados em termos
de inabilidade para a socialização, dificuldades de comunicação e interesses res-
tritos e esteriotipados. Como o própiro nome apresenta, o TEA é uma síndrome
que possui um espectro de manifestações, as quais são agrupadas em um conjun-
to de características com diferentes graus e tonalidades de manifestações clínicas
(BRITES; BRITES, 2019).
Porém, mesmo sendo considerado um transtorno altamente complexo e
detentor de particularidades e somando-se a essas particularidades no transtorno
em si, estão as próprias variações do ser humano. Sendo assim, cada criança é
única e relaciona-se com fatores diversos em relação ao ambiente familiar, ao de-
senvolvimento emocional, por exemplo. Além das comorbidades, que podem se
apresentar no curso da vida da criança, tornando mais dificultoso a delimitação
do transtorno, o diagnóstico do TEA, bem como também a intervenção, a tempo
de potencializar suas capacidades linguísticas, sociais e de comportamento.
Na ciência, Eugen Beuler (1857-1939) psiquiatra, foi considerado a pri-
meira pessoa que se conhece que usou o termo “Autismo” para fazer referência
a forma clínica mais radical e intensa dos grupos das esquizofrenias em que o
indivíduo estaria encapsulado em seu próprio mundo, desligando-se do mundo
exterior.

122
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Dessa forma, inicialmente, o autismo esteve atrelado a Esquizofrenia,


Distúrbio de causa não conhecida, que combina fatores genéticos, ambientais,
de estrutura e química cerebral. Nesse distúrbio, acontece a dissociação da reali-
dade, trazendo prejuízos na capacidade da pessoa pensar, sentir e agir de forma
clara e organizada, gerando prejuízos de vivências sociais.
Embora, possivelmente, se tenha ouvido falar de autismo nas décadas
mais recentes, a história desse transtorno está relacionada à história mais longa
das doenças mentais e Deficiência Intelectual (DI), assim, o TEA já era estudado
há mais de 60 anos. Contudo, só foi desvinculado de outros transtornos, como
a Esquizofrenia, na década de 1940, com os estudos de Léo Kanner, psiquiatra
infantil, que publicou um artigo descrevendo o Autismo Infantil (WHITMAN,
2015).
Léo Kaner (1894-1981), Psiquiatra austríaco, residente nos Estados
Unidos, diferenciava o distúrbio autístico dos grupos das esquizofrenias, discor-
dando do que fora afirmado por Bleuler em 1911 (ORRÚ, 2012). Bleuler consi-
derava o autismo como mais um dos sintomas da Esquizofrenia. Ele enfatizava a
“deterioração emocional”, ressaltando no autismo, mais o distúrbio em relação
à realidade do que ao contato afetivo (ORRÚ, 2012).
De acordo com Whitman (2015), as principais características do autismo
descritas por Kanner incluíam incapacidade de se relacionar com pessoas; falha
no uso da linguagem para fins de comunicação em situações sociais; resistência
a mudanças e uma preocupação excessiva com manter tudo igual; orientação
para objetos em vez de pessoas; boas capacidades cognitivas-intelectuais; falta de
resposta ao ambiente; rígida adesão a rotinas e tumulto emocional, quando os
rituais eram perturbados; linguagem incomum, com repetição da fala de outras
pessoas, respostas literais e utilização de pronomes de forma inapropriada.
Após a publicação de Léo Kanner, Hans Asperger (1906-1980) também
descreveu uma síndrome muito semelhante ao autismo. Essa condição se ca-
racterizava por limitações sociais e interesses restritos, entretanto, contrastando
com a definição de Kanner, as pessoas descritas por Asperger mostravam-se mais
típicas, no que tange ao desenvolvimento da linguagem. Assim, a fala dessas
pessoas, embora não atrasada, ainda era considerada incomum e estereotipada,
assim como os aspectos não verbais da comunicação também eram estranhos,
com expressões faciais apáticas e gestos inapropriados.
Para Asperger, esse subtipo de Autismo era um traço da personalida-
de e não um transtorno do neurodesenvolvimento. Ele nomeou essa condição
como Transtorno da Personalidade Autista (Autistic Psycopathy). Apesar de usar
a palavra Autismo, ele não tinha conhecimento do estudo feito por Kanner um
ano antes, nos Estados Unidos. Segundo Volkmar e Wiesner (2019), Asperger
teve contato com vários casos dessa condição, que, de certa forma, diferia da

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

condição clássica do autismo. A partir de 1980, com a publicação de uma série


de casos, essa forma diferente de autismo passou a ganhar atenção. Entretanto,
somente no Manual de Transtornos e Diagnósticos na versão IV (DSM- IV) que
a categoria Transtorno de Asperger foi oficialmente reconhecida, apesar de ter
sido retirada no DSM-V.
O conceito permanece e faz referência a casos mais leves do TEA.
Entretanto, antes disso, diversos termos foram propostos, a partir de diversas dis-
ciplinas. Tem-se conhecimento dos termos: na Neurologia Pediátrica, Síndrome
do Déficit de Aprendizagem do Hemisfério Direito; na Fonoaudiologia,
Transtorno do Processamento Semântico-Pragmático; na Psiquiatria, Transtorno
da Personalidade Esquizóide e na Psicologia, um perfil da Incapacidade de
Aprendizagem Não Verbal.
O autismo só foi mencionado formalmente como um transtorno após a
publicação de Kanner, sua existência anterior a isso é certa. Antes de 1943, os au-
tistas tendiam a ser incluídos como particularidades de outros transtornos, como
Psicose Infantil ou Deficiência Intelectual (DI), ou eram simplesmente vistos
como pessoas estranhas e peculiares (WHITMAN, 2015). Sobre essa questão,
Conforme Brites e Brites (2019), antes mesmo do autismo ser descrito nos livros
científicos, alguns relatos semelhantes de comportamentos curiosos e estranhos
entre crianças já apareciam em textos folclóricos e contos de fadas.
Essas crianças teriam sido raptadas por fadas ou gnomos , que deixavam no
lugar uma substituta fisicamente igual, mas com uma personalidade total-
mente diferente. O rapto ocorreria bem cedo na vida da criança , mas a mãe
não notava tão rápido. Ela passaria a estranhar o comportamento da crian-
ça, pois ela não era mais afetiva, passa a gritar, ficar agressiva e ignorar os
pais. Essas histórias eram também observadas em vários países e tinham
perfis similares, como mudança repentina de comportamento (geralmente
no segundo ano de vida) e explosões verbais logo sucedidas por silêncio e
perda e comunicação (BRITES; BRITES, 2019, p. 27).

Pode-se interpretar esse relato de história e contos de fadas citados por


Brites e Brites (2019) como o que hoje é conhecido como autismo regressivo. Na
história citada a cima, nota-se que a criança, ao ser sequestrada, faz referência
a essa “ausência” da criança no mundo da família, é como se ela não estivesse
presente nas vivências e rotinas familiares. Após já ter adquirido habilidades, a
criança regride, como após a explosão do vocabulário, que ocorre por volta dos
24 meses, ela perde essas habilidades linguísticas, voltando ao estágio inicial da
aquisição da fala. A agressividade também é presente em alguns tipos de autis-
mo, principalmente, naqueles em que a criança perde habilidades. A agressivi-
dade pode funcionar como uma tentativa de regulação diante das capacidades
perdidas.
Bruno Bettelheim (1903-1990), diretor da Escola Ortogenética de Chicago

124
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

para crianças com Transtornos, construiu, para a psicanálise, a hipótese de que a


criança autista vivencia uma experiência negativa com a mãe, o que a faz perder
a capacidade da demanda natural humana para a troca com o outro (ORRÚ,
2012). Em 1967, ele publicou o livro Fortaleza Vazia, com o qual popularizou a
noção de Kanner, de “mãe geladeira”. Para esse autor, a tendência para o isola-
mento surge como a única alternativa para o fato de não tolerar o mundo exte-
rior. Dessa forma, a criança se “encapsula” no seu eu.
Ele afirmou que a criança autista não estava biologicamente predetermi-
nada a manifestar os sintomas, mas, ao invés disso, estava biologicamente
predisposta aos sintomas. O autismo era latente até que a criação inadequa-
da lhe desse um sopro de vida (GRANDIN, 2019, p. 16).

Outra definição relevante sobre o autismo é a conhecida como hipótese


cognitiva. Em 1976, Ritvo (1930- 2020) publicou um livro sobre o autismo. Ao
contrário da abordagem psicanalítica que culpabilizava a mãe, na gênese do au-
tismo, ele levanta a possibilidade do TEA ocorrer a partir da derivação de uma
patologia exclusiva do Sistema Nervoso Central (SNC). Nessa perspectiva de
Ritvo, inaugura-se a relação entre autismo e deficits cognitivos. Portanto, para ele,
desde o nascimento, a cognição dessas crianças já se apresentava diferente das
crianças típicas e poderia ocorrer em paralelo a outras comorbidades.
Para a literatura e o desenvolvimento dos estudos epidemiológicos e os
diversos grupos de pesquisas que se dedicam ao autismo, as teorias baseadas em
causas emocionais se mostram inconsistentes. Por isso, foram enfraquecidas no
Brasil e no mundo. Logo, abriram espaço para a aceitação e intensificação de
pesquisas de base cognitiva, ou seja, neurobiológica.
Em face disso, os anos de 1970 e 1980 foram importantes pois trouxeram
diversos artigos e estudos que foram mostrando anormalidades bioquímicas nes-
ses pacientes, disfunções em determinadas áreas cerebrais; associação de sinto-
mas entre gêmeos monozigóticos que apresentavam forte correlação genética,
maior incidência de epilepsia, associação com intercorrências pré-natais, proble-
mas de constância sensorial e a presença de síndromes e malformações cerebrais
(BRITES; BRITES, 2019).

A DEFICIÊNCIA NA HISTÓRIA

Revisitando um panoroma geral das Pessoas Com Deficiência frente a so-


ciedade, pode-se dizer que, na Antiguidade, elas eram tratadas em condições de
sub-humanidade. Os tratamentos dispensados eram no sentido da eliminação.
Na Idade Média, os tratamentos voltados para as Pessoas com Deficiência al-
ternavam entre maus tratos e supervalorização, dependendo das suas imagens
estarem associadas a Deus, quando eram consideradas a imagem e semelhança

125
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

dele, ou quando eram associadas ao demônio, sendo consideradas como resulta-


dos de castigos.
Ao ser consideradas a semelhança de Deus, essas pessoas eram protegidas,
surgindo a visão caritativa e assistencialista. Quando as pessoas com deficiências
eram atreladas aos castigos espirituais e vinculação demoníaca, elas poderiam
ser maltratadas. Logo, na Idade Média, a sociedade variava em atitudes de elimi-
nação ou superproteção, posturas influenciadas pelo Cristianismo.
No Renascimento, as Pessoas com Deficiência não eram vistas somente
com base na fé cristã, mas, ao surgir o interesse de médicos em estudar as condi-
ções de deficiência, a visão organiscita influencia esse período. Esses indivíduos
passaram a ser assistidos em hospitais e instituições. Pode-se dizer que, mesmo
considerando a segregação desse contexto, é possível olhar pela via do reconhe-
cimento desse público, mesmo em caráter médico.
Através da Revolução Francesa, que, dentre outras coisas, defendia que
a educação deveria ser oferecida para todas as minorias políticas e sociais, os
deficientes passaram a ser acolhidos em ambientes educacionais de currículo co-
mum, ainda que em espaços separados.
No século XX, as duas Grandes Guerras obtiveram, como uma das con-
sequências, o grande número de homens com muitas condições de deficiência.
Esses passaram a ser vistos como Pessoas Com Deficiência, porém a sociedade
da época considerava relevante as potencialidades dessas pessoas.
Na década de 1960, em Roma, são realizadas as primeiras Paraolimpíadas.
A partir de então, há uma mudança de paradigma na sociedade, as pessoas com
deficiência passaram a ter visibilidade social, contribuindo para o reconhecimen-
to gradativo dessa população.
Assim, percebe-se a saída de um percurso histórico de exclusão, passa-se
pelo momento e movimento de normalização desses sujeitos, até a integração
das PCDs nos espaços comuns. Hoje, existe o movimento de inclusão dessa po-
pulação na sociedade, reconhecendo as diferenças nos espaços comuns.
Contudo, o que é visto, na prática, está muito longe da inclusão e equidade
de oportunidades, assim como o reconhecimento das suas identidades e diferen-
ças, sobretudo quando se trata de pessoas negras e periféricas. Nesse sentido, é
comum, na sociedade atual, falar que alguém é normal ou anormal, contudo,
essa prática é feita com base no que as pessoas acreditam ser “normal”, com base
nos repertórios pessoais e nas influências culturais, históricas e sociais.
Dessa forma, as definições e comportamentos que envolvem pessoas com
deficiência não escapam das formas hegemônicas e dominantes de representá-las.
As formas de ver o outro, nos países da América Latina, são oriundas de uma
história instituída pela dominação europeia, escravização, racismos, subjugação
e aculturamento. Esses fatores expressam-se de várias formas nas representações

126
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

sociais, discursos e crenças que permeiam o senso comum e, por vezes, até a
ciência.
A partir do exposto acima, sabemos que as condições históricas da socie-
dade ocidental possibilitaram à medicina exercer o poder e a tarefa de legislar
sobre a vida do outro, principalmente das pessoas com deficiência. Assim, o dis-
curso aplicado pela medicina a qualquer pessoa baseia-se na ideia de invariância
biológica do homem e invariância das relações sociais (ILLICH, 1973).
O processo de medicalização da sociedade constitui uma ferramenta de
controle social do estado e da medicina. Nessa perspectiva, as pessoas com defi-
ciências são vistas como meros corpos, assim como as questões sociais e huma-
nas são transformadas em biológicas (RAAD; TUNES, 2011).
Contudo, aquele que foge a dita norma, a pessoa negra com deficiência,
geralmente, é limada pela medicina, pois até o diagnóstico de TEA é negado.
Para que haja a compreensão da relação entre deficiência, racismo e capacitismo,
nas próximas linhas, é preciso que haja uma discussão da constituição do racis-
mo na sociedade, a relação entre racismo e capacitismo e o impacto de ambos na
vida das pessoas com deficiência e autistas.

RACISMO E CAPACITISMO, UMA VIA DE MÃO DUPLA

O termo Capacitismo é a concepção presente no social, lê as pessoas com


deficiência como não iguais, menos aptas ou não capazes para gerir a própria
vida. Segundo Campbell (2001, p. 44), capacitismo (ableism) define-se como:
“uma rede de crenças, processos e práticas que produz um tipo particular de
compreensão de si e do corpo (padrão corporal), projetando um padrão típico
da espécie e, portanto, essencial e totalmente humano”. A deficiência, para o
capacitista, é um estado diminuído do ser humano.
Essa forma de opressão age como um mecanismo de negação social e pre-
conceitos contra às pessoas com deficiências. Dessa forma, as diferenças são vis-
tas como falta, carência e impossibilidades. As características das deficiências se
inscrevem nos corpos dessas pessoas. Esses corpos, geralmente, são considerados
imperfeitos, inábeis por uma sociedade preconceituosa. Essa sociedade induz à
“construção de uma corporeidade que tem como objetivo o controle, a correção,
em função de uma estética corporal hegemônica” (SILVA, 2006, p. 46).
A partir de Silva (2006), é possível entender que a deficiência não é uma
condição estática, natural e definitiva, visto que ela está diretamente relacionada
com as relações e as socializações que determinam o desenvolvimento das pes-
soas atípicas na sociedade. Dessa forma, a ideia de corpos sadios e produtivos em
uma sociedade capitalista adquire uma função social e política de seletividade e
de categorização do que é normal e não normal (RAAD; TUNES, 2011).

127
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Além de selecionar e categorizar, a sociedade também controla as pessoas


com deficiência, ou melhor, os seus corpos. Assim, a partir de Foucault (2004),
entende-se o capacitismo como uma estratégia política, ou seja, o corpo é uma
realidade biopolítica. Quanto mais o diagnóstico é demorado, mais as pessoas
necessitam de cuidados, isso porque não são estimuladas a exercerem indepen-
dência e autonomia, desse modo, costumam se submeter às normas e à tutela de
uma produção médica capitalista e também capacitista.
O médico atua como um juiz que legisla sobre a vida dessas pessoas.
Como técnico autorizado, ele detém o poder de “conduzir o destino” dos seus
pacientes. Se eles agem sob a perspectiva biologicamente determinada, eles con-
ferem aos sujeitos autistas a exatidão, a medida e a ordem, com base no patriar-
cado excludente e normatizador. A sociedade esquece que precisa cuidar dos
PCDs e não dos seus defeitos. Desse modo, o discurso de evolução da espécie
maquia a seletividade praticada.
No contexto das deficiências, o capacitismo e o racismo são inseparáveis.
Sendo assim, a interseccionalidade existente, nesse contexto, representa um sis-
tema de opressão interligado. Pessoas negras com deficiência são vulnerabiliza-
das não só por sua raça, mas também por sua condição. As duas questões estão
imbricadas. Assim, muitos autistas passam anos sendo subdiagnosticados, até
os serviços básicos de saúde e o acesso a terapias qualificadas lhes são negados.
O racismo deve ser visto como um fenômeno global que tem por finalida-
de humilhar, cercear direitos sociais, matar e deixar morrer de diversas formas
pessoas negras, tudo isso com base no critério da raça. Neste texto, a discussão
sobre o racismo tem um público específico: corpos negros. Desse modo, ele é
sempre um processo, e não apenas um ato individual, cuja finalidade é segregar
sistematicamente o segmento racial negro e as pessoas pertencentes aos grupos
sociologicamente minorizados.
A noção de raça é um fenômeno criado na modernidade em meados do sé-
culo XVI para estabelecer distinção. Primeiro, entre animais e plantas, posterior-
mente, entre seres humanos (ALMEIDA, 2018). A ideia de raça é um conceito
meramente político, importante para justificar de forma sistemática a discrimina-
ção do estrato social negro e outros grupos historicamente perseguidos em razão
da raça ou pertença social.
Na perspectiva de Almeida (2018), o conceito de raça incide/opera basi-
camente sobre dois registros. Primeiro, “como caraterística biológica, em que
a identidade racial será atribuída por algum traço físico, como cor da pele”
(ALMEIDA, 2018, p. 24). Em segundo, “como característica étnico-cultural, em
que a identidade será associada à origem geográfica, a religião, à língua ou a ou-
tros costumes” (ALMEIDA, 2018, p. 24), o que, no dizer de Franz Fanon (2008),
é denominado como racismo cultural. Portanto, é valido ressaltar que o racismo

128
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

é uma violência que, assim como um choque, de repente, surpreende pessoas


negras, e tentar colocá-las novamente em uma cena colonial (KILOMBA, 2019).
Em suma, o racismo é um abuso de poder, ou seja, é uma junção entre o uso/
abuso do poder e o preconceito em razão da raça.
O racismo no Brasil incide sempre contra pessoas que possuem uma es-
tética negra, a saber: em sujeitos que possuem pele escura, lábios grossos, nariz
alargado, cabelos crespos, pobres ou não pobres, grupos de pessoas negras e per-
tencentes a religião de matriz africana, e nem mesmo as crianças autistas negras
são poupadas de tamanha violência. Assim, é relevante sublinhar que o fato de
uma pessoa negra ascender socialmente também não lhe inume do racismo.
O racismo, na ótica de Almeida (2018), é uma forma organizada de “dis-
criminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de
práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens para in-
divíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam” (ALMEIDA, 2018, p.
25).
No que tange as crianças ou adolescentes negras autistas e periféricas, que
é o foco principal desse artigo, o racismo pode operar como forma de discri-
minação direta ou indireta, consciente ou inconscientemente. Nesse sentido, o
preconceito, o estigma e o juízo de valor pautado no critério da raça e em estereó-
tipos são os principais fatores responsáveis pela prática do racismo contra essas
crianças negras.
Cabe explanar que, devido à condição socioeconômica desfavorável, as
crianças negras e periféricas já encontram uma enorme barreira no processo de
acesso ao Sistema Único de Saúde (SUS) e a consultas a médicos especialistas
que possam lhes dá um diagnóstico preciso de TEA.
Para além das dificuldades de acesso e permanência do acompanhamento
das crianças negras no SUS, há também uma barreira por parte dos responsáveis,
familiares e das próprias escolas, com algumas exceções, no que se refere ao pre-
paro adequado dessas pessoas para identificar crianças que possuem um possível
TEA.
Por conseguinte, compete explicitar que, devido a processos sócio-histó-
ricos, dentre eles, a escravização negra, a maioria das pessoas negras é pobre, e
a maioria dos pobres é negro. E ainda hoje vivem em situação de precariedade,
com algumas exceções.
Sendo assim, no que se refere a negros e não negros, a questão racial está
diretamente imbricada com a questão econômica. Isso significa afirmar que os
acessos à uma equipe multidisciplinar de profissionais devidamente preparados
para atender a esse público de crianças que precisam de um diagnóstico de TEA
tornam-se ainda mais difíceis para crianças negras e empobrecidas.
O racismo contra crianças negras e periféricas autistas não pode se reduzir

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(O rganizadores )

a concepção individualista do racismo, pois esse racismo é o tipo mais explícito


e passível de sofrer sanções penais e cíveis. O racismo que as crianças autistas
sofrem é na esfera estrutural e institucional. Primeiro, o racismo estrutural é o
elemento central da sociedade brasileira, responsável por estruturar todas as re-
lações sociais e o sistema público e privado de saúde, assim como as instituições
escolares nas quais as crianças autistas circulam reproduzem esse racismo.
No que diz respeito ao segundo conceito, o referente ao racismo institu-
cional, trata-se de uma série de impedimentos, exigências, regras, omissões e
mecanismos que são criados no interior das instituições que afetam direta ou
indiretamente o acesso de crianças negras e periféricas ao acompanhamento e,
sobretudo, ao diagnóstico do TEA.
Ante o exposto, é necessária uma força tarefa entre família, responsáveis,
escola e sistema de saúde, juntamente com a construção de políticas públicas que
promovam e garantam o acesso das crianças negras e periféricas ao possível diag-
nóstico do autismo e, quando necessário, ao acompanhamento com profissionais
especializados no assunto.
Por fim, é urgente um conjunto de ações coletivas por parte dos pesquisa-
dores-professores, pais, mães e a sociedade civil para que cobrem aos entes polí-
ticos a garantia do acesso e permanência das crianças autistas a escola. Ademais,
solicitar que as Secretarias de Educação qualifiquem profissionais devidamente
preparados para ensinar e acompanhar as crianças autistas e pessoas com defi-
ciências nas escolas.

METODOLOGIA

Esta pesquisa se delineia como um estudo qualitativo, ou seja, é interpre-


tativo, experiencial, situacional e personalítico (STAKE, 2010). A técnica utili-
zada para a obtenção dos dados foi a observação participante, aquela em que o
pesquisador participa de forma real da comunidade ou grupo. Ele se incorpora à
comunidade (MARKONI; LAKATOS, 2017). Conforme o exposto, as pessoas
observadas foram três alunos de uma escola estadual, situada na periferia de
Salvador, no ensino noturno, na modalidade de Educação de Jovens e Adultos
(EJA).
A professora de Língua Portuguesa é uma mulher negra, periférica, de
29 anos. Ela obteve o diagnóstico de TEA também aos 29 anos. Por esse fato
e por tudo o que viveu até receber o diagnóstico, além da sua formação em
Psicopedagogia e Neuropsicologia, ela conseguia perceber os sinais e sintomas
de diversos transtornos neurobiológicos.
A partir disso, a professora de Língua Portuguesa conseguiu perceber que
três dos alunos do EIXO 4, modalidade de ensino que corresponde ao 6º e 7º

130
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

ano do ensino regular, apresentavam características de autismo. Assim, procurou


saber dos responsáveis pela instituição de ensino se os educandos em questão
possuíam algum diagnóstico. A resposta que obteve da escola foi que ambos
possuíam dificuldades de aprendizagem, receitas de remédios antidepressivos e
ansiolíticos, mas não possuíam um laudo oficial.
Para ter maior acesso aos alunos, assim como maior conhecimento sobre
eles, sucedeu-se a entrevista não estruturada, aquela em que o pesquisador possui
maior liberdade para desenvolver cada situação, a depender do que ele considere
adequado. Na entrevista não estruturada, as perguntas são abertas e podem ser
respondidas através do diálogo informal (MARKONI; LAKATOS, 2017).
As entrevistas foram do tipo focalizada, pois a entrevistadora, por conhe-
cer sobre o autismo e também ser uma pessoa autista, sabia, de antemão, os
tópicos que deveriam abordar, com a finalidade de extrair desses alunos as infor-
mações que pudesse compreender se existia relação entre a falta do diagnóstico
formal, o racismo e o capacitismo.

ANÁLISE DOS DADOS E RESULTADOS

A pesquisadora participante é professora autista, mulher, negra, 29 anos,


formada em Letras, em Psicopedagogia e em Neuropsicologia. Se intitula mu-
lher e mãe atípica, pois também é mãe de uma criança autista de 9 anos.
Ela relembra que, durante sua vida, possuía dificuldade de interação, tro-
cas de fonemas na oralização, e alguns movimentos repetitivos e estereotipados,
como esfregar os dedos, passar a língua nos dentes e mexer nos cabelos. Esses
movimentos, geralmente, aconteciam quando ela recebia muitas informações do
ambiente, podendo ocorrer por meio da visão, audição, olfato, tato e o paladar.
Essas características influenciaram bastante a sua vida acadêmica.
Durante a sua primeira infância, teve dificuldade de interação na escola de
forma substancial, tanto com os seus professores como com os colegas de classe.
Na adolescência, aprendeu a mascarar as características do TEA, sempre buscan-
do copiar o comportamento das meninas típicas. Entretanto, esse mascaramento
demandava uma grande energia e desgaste emocional. Dessa forma, ainda na
adolescência desenvolveu depressão e Transtorno de Ansiedade Generalizada
(TAG).
Após sentir-se muito ansiosa e deprimida, relatou a seus pais que precisava
de ajuda. Contudo, ao buscar suporte médico, relata que, quando explicava sobre
as características relacionadas ao autismo, como a falta de flexibilidade mental,
a busca por padrões, a dificuldade de sair da rotina, sempre recebia a devolu-
tiva: “você é autista? Não! Você está apresentando um quadro de depressão e ansieda-
de”. Assim, por muitos anos se questionou o porquê de ser diferente dos demais

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

adolescentes e continuou mascarando quem realmente era.


A referida professora conta que, durante sua graduação e também a pós-
-graduação, teve dificuldades educacionais que raramente foram percebidas por
seus professores. Uma das dificuldades apontadas por ela faz referência a lin-
guagem pragmática, nesse sentido, sempre demorava mais tempo para entender
metáforas, linguagem figurada, mensagens de duplo sentido, expressões idio-
máticas, por exemplo. Também continuava apresentando falta de interações, de
construções de amizades e estabelecimentos de vínculos emocionais.
Assim, somente na graduação e pós-graduação, começou a tentar enten-
der se o racismo que sofria em seu cotidiano também estava relacionado com o
capacitismo, o qual implicitamente sempre ocorria, fosse na sala de aula, ou no
ônibus, ou até mesmo pela família, pelo motivo de possuir o desenvolvimento
mais lento, comparado com as pessoas neurotípicas.
Nessa época, também começou a questionar o porquê de os profissio-
nais de saúde apenas relatarem a depressão e a ansiedade, omitindo, ou me-
lhor, negando diagnóstico do TEA. Porém, mesmo com alguns problemas de
aprendizado, prosseguiu os estudos, formando-se em Letras, posteriormente em
Psicopedagogia, além de ter concluído uma pós-graduação em neuropsicologia e
ser mestranda de uma instituição, na Bahia.
Portanto, essa pessoa autista tornou-se professora de português da turma
do EIXO IV e também dos alunos que apresentavam sinais de autismo. Logo,
por ter passado por situações semelhantes, decidiu observá-los. Assim, tentou
ajudar com as dificuldades de aprendizagem e de convivência que esses alunos
possuíam. Fazendo uso da escuta sensível visando compreender a sintomatolo-
gia apresentada, e se sofriam racismo e também o capacitismo, ela se aproximou
deles.
Com essa perspectiva, foram feitas observações durante uma sequência
didática sobre produção textual relato de vida, com a tipologia textual da nar-
ração e da descrição, na qual a professora utilizou como estimuladores textos
que abordavam os assuntos deficiência, dificuldade de aprendizagem, depressão,
ansiedade, racismo, autismo e capacitismo.
Durante as aulas foram realizadas as entrevistas não estruturadas. Assim,
a partir dos textos, a professora estimulou que cada aluno da turma emitisse co-
mentários sobre si. Desse modo, conseguiu extrair comentários dos três alunos
“possivelmente autistas”.
O aluno 01, adolescente de 18 anos, negro, periférico, filho único, morava
com os pais e relatou que sempre teve dificuldade de aprendizagem e de sociali-
zação, contudo, em suas palavras, ele disse “Professora, os médicos nem me ouvem,
somente receitam remédios e mais remédios para depressão, não é fácil ser depressivo
e negro. Eles não me escutam”. Em outro momento ele diz, “Os meus vizinhos me

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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

chamam de retardado”.
O aluno 02 foi um adolescente de 15 anos, pardo, periférico, gêmeo de ou-
tro adolescente que estudava pela manhã na mesma escola, no 2º ano do ensino
médio. Mora com a mãe e há anos não vê o pai. Ele relatou que sempre teve uns
comportamentos diferentes como o balançar o corpo para frente e para trás, não
conseguia fazer amigos e sempre era apontado pelos colegas como esquisito. Em
uma de suas falas ele disse “Pobre, negro e estudante atrasado, só pode viver
dopado”.
O aluno 03 foi uma adolescente de 18 anos, do gênero feminino, negra,
periférica, filha caçula de uma família de 4 irmãs, mora com os pais. Ela relata
que sempre foi considerada a “ovelha negra” da família por ser diferente das
demais irmãs, por ter dificuldade para aprender, até que foi transferida do turno
matutino para o noturno. A aluna 03 diz que toma remédios para depressão e
ansiedade, mas que ninguém quis se aprofundar para entendê-la. Nas palavras
dela, “Nem na doença preta e pobre tem paz”, em outro momento ela diz, “é difícil
ter médico, professora e quando acho um, eles só fazem me deixar lerda, tomo os remé-
dios e só tenho vontade de dormir” e ainda afirma, “As pessoas me chamam de idiota,
dizem que sou maluca, que tenho retardo mental”.
Como é possível perceber, ambos os alunos relataram para a professora
que passam por constrangimentos, bullying, por situações de racismo e capa-
citismo. Tanto os alunos 01, 02 como a aluna 03 fazem referência as questões
étnico-raciais, quanto às situações capacitistas. Dessa forma, expressões como
“não é fácil ser depressivo/negro/retardado /atrasado; pobre/negro/atrasado, pre-
ta/pobre/idiota/maluca/retardada mental” aparecem em seus relatos e fazem re-
ferência às categorias analisadas nessa pesquisa, racismo e capacitismo.
Além disso, como pessoa autista que também teve o diagnóstico negado
por muitos anos, sendo silenciada, perdendo direitos essenciais como o pleno
desenvolvimento de pessoa e cidadã, a professora de português percebeu nes-
ses três alunos sinais e sintomas do TEA, principalmente no que diz respeito à
sintomatologia básica dessa condição do neurodesenvolvimento, nas áreas da
linguagem, do comportamento e da cognição. Sendo assim, convidou a direção
escolar para uma reunião e falou de suas suspeitas. A professora e direção de-
cidiram solicitar aos pais dos estudantes que comparecessem à escola para uma
reunião. Foi aconselhado que os pais, mais uma vez, buscassem suporte médico,
para que seus filhos fossem avaliados e, em caso de confirmação do autismo,
fossem encaminhados para terapias multidisciplinares que potencializariam suas
habilidades, assim como os ajudariam a superar as dificuldades, permitindo que
vivessem com equidade de oportunidades na sociedade, sobretudo, na escola.
A instituição escolar entrou em contato com a unidade de saúde da famí-
lia do bairro ao entorno da escola e solicitou que os responsáveis pela unidade

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(O rganizadores )

entrassem em contato com as famílias e encaminhassem esses adolescentes para


a avaliação clínica com o psiquiatra e com psicólogos ou neuropsicólogos. Após
três meses dessa pesquisa, a direção da escola recebeu a notícia que ambos os alu-
nos tiveram o diagnóstico de autismo fechado. Passados 5 meses, todos os alunos
estavam sendo acompanhados por terapeutas como psicólogos, psicopedagogos,
terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos. Assim, a professora constatou que o
desempenho desses alunos, em suas aulas, como nas aulas de outros professores,
melhorou de forma significativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebe-se nos relatos dos alunos e nas experiências em sala de aula narra-
das no texto, a importância das escolas terem um olhar sensível aos possíveis alu-
nos autistas, e, sobretudo, da relevância da formação especializada do professor
que, por sua vez, tenha traquejo para lidar e identificar por meio de observações
em sala, as dificuldades de aprendizagem dos alunos. Além disso, verifica-se a
dedicação em tentar identificar os possíveis casos de TEA, e, posteriormente, a
intervenção por meio de comunicação aos responsáveis e o direcionamento deles
a profissionais da saúde.
É revelado através dos comentários dos alunos que ambos relacionam as
questões sociais, no caso, o racismo ao capacitismo. Essa intersecção acontece,
mesmo que, no momento, eles não saibam, oficialmente, que são autistas. Assim,
compreende-se que os dados apontam para possibilidades de associação entre ra-
cismo e capacitismo, demonstrando que as múltiplas vulnerabilidades atingiram
aos estudantes participantes desse estudo.
Desse modo, é importante que a escola, como ambiente de educação e de
cidadania, construa um olhar mais atento para as relações sociais que acontecem
nesse espaço, valorizando a vida, como também as diferenças, pois o racismo e
o capacitismo acontecem de forma concomitante, demonstrando que o último
é estrutural assim como o primeiro. Assim, são produções dessa sociedade e
do espaço escolar. Portanto, através dessa pesquisa esperamos não só contribuir
com as investigações na área, mas, sobretudo, desejamos engajar debates sobre
as desigualdades, que no caso das pessoas autistas, são potencializadas quando
somadas a questão racial.

REFERÊNCIAS
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mento, 2018.
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tico de transtornos mentais [recurso eletrônico]: DSM-5. 5. ed. Porto Alegre:

134
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

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preensão e tratamento. Porto Alegre: Artmed, 2019.
WHITMAN, Thomas L.O desenvolvimento do autismo. São Paulo: M. Books
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135
REFLEXÕES SOBRE A TRAJETÓRIA FORMATIVA
DOCENTE E O LUGAR DA INTERCULTURALIDADE:
APRENDIZAGENS E DESAPRENDIZAGENS
Andrea Lugo Nectoux1

INTRODUÇÃO

Como alguém se torna professor? Certamente a resposta a essa pergunta


não poderá se restringir a aspectos técnicos, instrumentais, tampouco ao âmbito
do domínio dos conteúdos disciplinares a serem ensinados. A formação do pro-
fessor se dá em espaços educacionais oficiais, que fornecem a habilitação para
o exercício da profissão, mas não somente aí. Constituindo dimensões não-for-
mais, extrapolando a circunscrição da disciplina, da teoria e da universidade,
a formação docente alcança as experiências mais pessoais como nossa relação
cotidiana com nossos parceiros de jornada: nossos alunos. Vivemos junto com
eles o desafio de conferir significado à nossa realidade comum. Ao encarar de
modo honesto e comprometido esse desafio, o recurso à teoria disciplinar muitas
vezes não somente se mostra insuficiente, como se configura mesmo como mais
um obstáculo ideológico a ser submetido à crítica.
Através do relato reflexivo de meu percurso pessoal, do processo que me
tornou a professora que sou, essas e outras questões são abordadas através da pri-
meira pessoa. Embora utilize uma metodologia autobiográfica, isso não significa
que os fatos, as reflexões e análises sejam particularidades individuais que não
guardem relação alguma com as experiências de outros sujeitos. Pelo contrário,
o relato da memória e sua ressignificação poderão encontrar eco nas trajetórias
de outros professores, pois tratam de aspectos compartilhados por nossa classe
profissional.

RELATO REFLEXIVO: FERRAMENTA PARA A FORMAÇÃO


CONTÍNUA DO PROFESSOR EM SALA DE AULA

Ninguém começa a ser educador numa certa terça-feira às quatro horas da tarde.
Ninguém nasce educador ou marcado para ser educador.

1 Professora de Filosofia da Rede Pública Estadual/RJ (SEEDUC/RJ). Graduada em Filo-


sofia (UFRGS), especialista em Ensino de Filosofia (PROPGPEC/CPII), especialista em
Revisão de Texto (AVM) e Mestre em Educação (CPII). E-mail: [email protected].
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

A gente se faz educador, a gente se forma, como educador,


permanentemente, na prática e na reflexão sobre a prática.
Paulo Freire (FREIRE, 1991, p. 58).

A epígrafe escolhida como ponto de partida desta reflexão, de Paulo Freire,


sinaliza de modo expressivo o eminente caráter permanente da formação profis-
sional dos professores. A construção de nossas competências e da modelagem
de nossa identidade profissional não se reduz ao aprendizado concernente ao
âmbito acadêmico que formalmente nos habilita ao exercício da profissão. Essa
construção se estende no tempo e se aprofunda em sentido, sobretudo, durante a
prática profissional.
Não é um diploma que faz um professor. Ele se faz a cada dia, vivendo e
partilhando com os alunos as urgências de nosso tempo. Eventualmente, inclu-
sive, faz-se necessário aprender a desaprender certos aspectos – alguns centrais
– da formação acadêmica, com vistas à mobilização de uma educação insurgente
e libertadora (RUFINO, 2021). Precisamente, diante da realidade concreta que
se impõe na efetiva prática escolar, caracterizada estruturalmente pela lógica da
colonialidade (QUIJANO, 2010), que se baseia na inferiorização abissal e per-
sistente de certas populações raciais e sociais de forma violenta, no extermínio
de seus corpos e mundos, a tarefa de descolonizar emerge como um imperativo
incontornável de uma educação significativamente humanista. Se o saber oficial,
legitimado institucionalmente pelo pensamento hegemônico das universidades,
escolas e currículos, reproduz em grande medida a ordem colonial através de seu
caráter monológico e eurocêntrico, “a invocação da ideia de desaprendizagem
tem força política e poética quando assumida para enfrentar o cânone. (...) a de-
saprendizagem, nesse caso, é uma ação tática que desautoriza o ser e o saber que
se quer único.“ (RUFINO, 2021, p. 169).
Um dos grandes trunfos da colonialidade é a faceta que se desdobra na
imposição de um regime discursivo restritivo, que interdita as vozes e as produ-
ções intelectuais das cosmovisões e dos universos culturais não identificados com
os valores e premissas epistemológicas do Ocidente – materializados no cânone
e tendo, contemporaneamente, as instituições de ensino ocidentalizadas como
dispositivos chanceladores. Isso significa que as condições acadêmicas intramu-
ros, a partir de dentro do cânone e de seu universalismo abstrato característico,
não são favoráveis à insurgência de uma crítica capaz de alcançar a raiz de nossa
deformação estrutural, originada na condição colonial
Diante disso, é de grande importância para pensar a educação a irrupção
de vozes que tragam as experiências do mundo real, provenientes do efetivo exer-
cício profissional em sala de aula - na qual a existência do Outro se impõe de um
modo incontornável, com toda a sua potência desestabilizadora e transformado-
ra, cujas contradições concretas inviabilizam as fórmulas mágicas abstratas. A

137
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

existência/resistência implacável do Outro – o outro ignorado pela academia –,


e sua persistente irredutibilidade, é a perturbação da ordem necessária para um
pensar crítico a respeito de uma educação libertadora.
Dessa forma, a narrativa de professores pode ser um instrumento especial-
mente rico, pois parte de um sujeito que têm sua formação profissional marcada
por um duplo território: o da academia e o da sala de aula.
É a vivência da realidade do próprio chão da escola um produtor de deses-
tabilização dos saberes canônicos – quando assumimos a necessária postura re-
flexiva frente ao nosso ofício. A reflexão permanente sobre o que fazemos, sobre
as possibilidades de nossa atividade, é a atividade capaz de tornar nossa prática
docente significativa e aperfeiçoar cada vez mais nossa formação profissional.
Desde a década de 1990, no Brasil, começou a ganhar espaço no debate
acadêmico a discussão a respeito do potencial de metodologias autobiográficas
como ferramentas potentes para a formação docente, em um caráter reflexivo e
crítico. A recepção da clássica obra organizada por Antônio Nóvoa, “Vida de
professor”, cumpre um importante papel nessa direção. Nessa obra, discute-se a
importância da experiência no processo de formação docente, que é contínuo e
permanente, desenvolvendo-se no próprio exercício profissional. Partindo desse
entendimento, a produção de documentos pessoais em que o docente resgata
suas vivências e reflete sobre sua trajetória, pode ser um exercício formativo pri-
vilegiado na construção de sua identidade de professor. Segundo Dominicé, cita-
do por Nóvoa, “a vida é o lugar da educação e a história de vida é o terreno no
qual se constrói a formação. Por isso, a prática da educação define o espaço de
toda a reflexão teórica” (DOMINICÉ apud NÓVOA, 1995, p. 24).
Construímos nossa identidade profissional de modo contínuo e perma-
nente. A modelagem de nossa identidade, enquanto professores, particularmen-
te, envolve o processo pessoal da construção subjetiva, a constituição de nossa
percepção da realidade, assim como do modo como a interpretamos. A constitui-
ção da identidade docente, segundo Nóvoa, é feita “de lutas e de conflitos, é um
lugar de construção de maneiras de ser e de estar na profissão” (NÓVOA, 1995,
p.16). Construímos nossa forma de ser professores na prática diária, e essa cons-
trução será tanto mais consistente quanto mais reflexivo pudermos ser, quanto
mais engajados nos processos de ressignificação constante estivermos.
Em relação ao potencial de metodologias autobiográficas, a linguista Inês
Signorini afirma que “a narrativa pessoal é, de fato, um recurso de que dispomos
tanto para revelarmos como para desenvolvermos nossa compreensão do que
somos como entidades psicológicas e também como seres de um mundo social e
culturalmente definido.” (SIGNORINI, 2001, p. 118).
Nesse sentido, o gênero discursivo Relato Reflexivo é um instrumento va-
lioso para a formação docente contínua, segundo o concebe Signorini (2006).

138
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Conforme sua concepção, há gênero discursivos com maior capacidade de


desencadear a problematização e a ressignificação das experiências escolares,
chamados gêneros catalizadores. Em suas palavras, esses gêneros “favorecem
o desencadeamento e a potencialização de ações e atitudes consideradas mais
produtivas para o processo de formação tanto do professor como de seus apren-
dizes” (SIGNORINI, 2006, p. 8). Dentre eles, o relato reflexivo é sugerido como
gênero que pode proporcionar, especialmente, a reflexão, a reavaliação, o redi-
recionamento e a intervenção transformada sobre práticas e posicionamentos
do professor. Esse gênero consiste em uma narrativa autobiográfica em que o
professor relata sua experiência e sua trajetória profissional. O Relato Reflexivo,
dessa forma, operacionaliza duas funções primordiais, segundo Signorini:
Dar voz ao professor enquanto profissional, ou seja, enquanto agente de
um campo de trabalho específico. Através da elaboração do “relato reflexi-
vo” são desencadeados processos de articulação e legitimação de posições,
papéis e identidades autoreferenciadas, ou seja, construídas pelo narrador/
autor para si mesmo.
A segunda função é a de, através da interlocução mediada pela escrita, criar
mecanismos e espaços de reflexão sobre teorias e práticas que constituem
os modos individuais (SIGNORINI, 2006, p. 54)

Assim, a tessitura dessa narrativa autoral reflexiva, ao resgatar as vivências


revisitadas e buscar elaborar sua significação, articula prática e teoria, passado e
presente, memória e crítica. Dessa forma, esse gênero discurso pode catalisar a
ampliação da compreensão da própria prática, do papel docente e sua conjuntu-
ra, promovendo ressignificações e reposicionamentos profissionais.
Baseada no potencial desse gênero textual, procurei realizar uma reflexão
sobre minha prática profissional enfocando um processo importante que vivi, de
radical mudança de perspectiva epistemológica: da adesão acrítica à monologia
ocidental à abertura à interculturalidade e a busca por sua projeção na prática de
sala de aula.

OS VENTOS DO NORTE NÃO MOVEM MOINHOS...

Jurei mentiras e sigo sozinho


Assumo os pecados
Os ventos do Norte não movem moinhos
E o que me resta é só um gemido
Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos
Meu sangue latino, minh’alma cativa
Rompi tratados, traí os ritos
Quebrei a lança, lancei no espaço
Um grito, um desabafo
E o que me importa é não estar vencido
Minha vida, meus mortos, meus caminhos tortos

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Meu sangue latino, minh’alma cativa


(João Ricardo e Paulo Mendonça)

A Faculdade de Filosofia ensinou-me, de modo límpido e claro, algo que


já estava presente como uma premissa implícita em todo a minha experiência
escolar: que o conhecimento verdadeiro não tem tempo nem lugar, e o sujeito do
conhecimento não tem cor, gênero, história, nem se submete a nenhuma condi-
ção específica de produção. Que a verdade é o valor de um juízo, uma relação
lógica, de caráter universal e absoluto. Em relação aos diversos campos científi-
cos, parece-me que a Filosofia apresenta um especial apego à premissa conceitual
do conhecimento como absoluto, uma vez que, diferentemente da maioria dos
demais saberes, ela não constitui um saber essencialmente empírico, ou seja, não
baseia seu modo de análise na experimentação. Nas ciências modernas, o mito
da neutralidade do conhecimento embasa a definição hermética do método, de
modo que as condições iniciais dos experimentos sejam “filtrados” e os variáveis
contingentes descartadas pela via metodológica – de modo a restar somente o
que apresenta regularidade, imutabilidade, que possa ser generalizável. Mesmo
assim, o resultado, que é a formulação de uma regra geral, é uma generalização,
ou seja, tem uma precisão probabilística, não necessária.
Em Filosofia, nossas conclusões não costumam ser extraídas da experi-
mentação concreta, mas da abstração - então, supostamente, os dados que mani-
pulamos, as ideias, já são puros, “limpos de mundo”, por assim dizer. O conheci-
mento que se busca, em Filosofia, não se apresenta em termos de generalizações,
mas em termos de universalidade. Essa concepção de Filosofia, que é hegemôni-
ca na academia, e que pude vivenciar, torna difícil a penetração da consideração
das condições históricas de produção de conhecimento nesse campo discursivo, e
conduz, invariavelmente, à invisibilização de outros modos de saber (filosóficos,
inclusive) produzidos para além do eixo Ocidental e de sua herança epistemo-
lógica. O que se produz no âmbito da Filosofia institucional dominante é algo
como uma verdadeira “alergia ao espaço” - tomando emprestada a expressão do
filósofo Nelson Maldonado-Torres (2008, p. 72) - como um fator de relevância
filosófica, embora ela mesma seja expressão circunscrita de uma certa tradição
filosófica, marcada seminalmente pela herança metafísica, que teve seu desenho
determinado pela experiência de pensamento localizado na Grécia, e mais re-
centemente, pelo pensamento moderno ocidental, que tem em Descartes seu ex-
poente paradigmático.
Não foi na faculdade de Filosofia que entrei em contato com questões
como a relação entre poder e conhecimento, como as condições históricas e cul-
turais do conhecimento, como o condicionamento da geopolítica na produção
de saberes, como a relação entre identidade e alteridade nas relações étnico-ra-
ciais, como a influência da colonialidade sobre nossas formas de conhecimento
140
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

e de subjetividade e tantas outras questões que hoje mobilizam este trabalho de


mestrado. Pois, embora a Filosofia seja um campo de saber marcado pela carac-
terística da criticidade sobre os fundamentos como elemento essencial, ela não
costuma refletir esse atributo crítico sobre seus próprios pressupostos históricos.
Paira sobre a Filosofia um particular “esquecimento” a respeito dessas questões,
consideradas filosoficamente irrelevantes de partida (mas que -e diria mesmo,
porque -, se levadas em conta, têm o potencial acarretar a desestabilização de
seus valores centrais, como a universalidade do conhecimento, a neutralidade da
razão, o pensamento dicotômico ocidental e a supremacia da razão sobre outras
faculdades).
Mesmo o pensamento marginal de críticos da tradição ocidental ou da
modernidade como valor absoluto, como por exemplo as veredas abertas por
Nietzsche, que eventualmente desembocariam em ideias pós-modernas, ideias
que circulam de maneira “errante” e experimental na universidade, sofre in-
variavelmente da essencial “cegueira da colonialidade”, outra expressão de
Maldonado-Torres (2008, p. 73). Por mais radical que seja o caráter da crítica
contra-hegemônica intra-europeia, ela parece sempre incapaz de enxergar o eu-
rocentrismo como problema, portanto, incapaz de alcançar as realidades, as pro-
duções e as problemáticas vividas pelo resto do mundo – incapaz de ver o nexo
necessário entre modernidade e colonialidade.
Hoje, já um tanto distante do positivismo hegemônico do ensino universi-
tário de Filosofia, exercendo a docência de Filosofia na rede pública do estado do
Rio de Janeiro – e tendo sido tocada profundamente pelo chão da escola, por sua
realidade concreta e contradições - me pergunto como pudemos, eu e tantos co-
legas de graduação, percorrer toda a experiência formativa da universidade sem
que nos saltasse aos olhos o caráter monológico e exclusivamente eurocentrado
das ideias estudadas ali. Como pude não perceber o etnocentrismo flagrante do
referencial epistêmico do paradigma de conhecimento em vigor, mesmo sendo,
eu mesma, uma mulher latino-americana à margem desse mesmo referencial?
Como não reparei a ausência absoluta de autores negros, indígenas, hindus,
orientais, aborígenes, entre outros? Como não me dei conta da ausência quase
absoluta de mulheres nas bibliografias estudadas, e, de modo geral, no cânone
da Filosofia?
Essa foi a grande perplexidade pela qual fui e ainda sou tomada. Assim,
uma das preocupações centrais de minha pesquisa, é tentar entender melhor
como esse tipo de alienação funciona e fornece condições para a reprodução das
condições de uma sociedade desigual estruturada no mito colonial da raça e no
racismo.
Foram meus alunos que me despertaram desse sono solipsista e autorre-
ferente. Foi a multiplicidade explícita das condições existenciais, a diversidade

141
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

concreta de formas de experienciar a vida e de fazer-se sujeito, assim como, além


da riqueza, as adversidades que essa pluralidade representa em uma sociedade
racista como a nossa. De certa forma, minha experiência docente foi um choque
de realidade para alguém que vivia demasiado no “mundo das ideias”, como eu.
E junto de meus alunos, meus parceiros, aprofundo a cada dia mais um passo
nesse “descobrimento” (ao revés).
Hoje em dia, em termos de posicionamento teórico, já não faço coro com
as vozes dominantes de minha disciplina, tampouco me preocupo em respeitar
os limites disciplinares desse campo de saber. Procuro não subestimar o que não
conheço e não me apegar excessivamente ao que domino - o que seria uma pos-
tura comum ao etnocentrismo, por sinal, por isso bastante familiar. Centrada
nessas premissas, recentemente realizei uma pesquisa de mestrado profissional
na qual procurei desenvolver um tipo de investigação e produção acadêmica com
foco na ruptura do paradigma dominante e epistemicida, assim como na trans-
formação social pautada em pilares distintos dos que conheci na graduação.
Esses pilares, por mim antes inexplorados, e mesmo ignorados, são as re-
lações étnico-raciais e a Filosofia Africana, no âmbito do ensino na educação
básica, pensados a partir de uma perspectiva decolonial – cujo objetivo maior
consistia em converter essa rica matriz de pensamento em práticas pedagógicas
capazes de contribuir para a libertação dos sujeitos.
Cursei a graduação em Filosofia em uma tradicional universidade fede-
ral, sem jamais ter ouvido a expressão “Filosofia Africana”. Uma vez, logo no
início do curso, ouvi um colega perguntar sobre a Filosofia Oriental, mas logo
foi advertido de que ali não se estudavam “essas coisas”. Hoje consigo enxergar
as questões por trás dessa recusa, mas por muito tempo, nem visualizar essa
negação como uma questão relevante eu conseguia – o que para mim serve de
demonstração da tamanha eficiência do epistemicídio na produção de pontos
cegos em nossa perspectiva.
É importante pontuar que a época a que me refiro nesse relato, o tempo de
minha graduação, era um momento em que as políticas de cotas sociais e raciais
para ingresso em minha universidade ainda não estavam sendo implantadas. O
reflexo disso era que, por exemplo, só existia um estudante negro em minha
turma de ingresso, que era composta por sessenta alunos. Portanto, o discurso
eurocêntrico padrão da instituição não encontrava oposições ou um público cul-
turalmente diverso que tornasse difícil contornar a abordagem das questões da
diversidade cultural e epistêmica, como creio que a realidade proporcionada pela
vigência da lei de cotas tornou. A concreta presença representativa da multiplici-
dade racial e pluralidade étnica, assim como de outros grupos discriminados da
população, contribui imensamente para o importante objetivo político-epistemo-
lógico de ampliar a gama de perspectivas, de problematizar os lugares comuns da

142
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

visão dominante e revelar seus pontos cegos.


Atualmente, sou professora na rede pública do Rio de Janeiro, em uma es-
cola noturna que contempla o ensino médio regular e EJA (Educação de Jovens
e Adultos), função que desempenho há cinco anos. Apresentar minha perspec-
tiva implica falar da branquitude intrínseca ao modo como sou concebida na
sociedade e aos privilégios de que disponho. O fato de nunca ter percebido a
contradição do eurocentrismo da academia, por exemplo, considero hoje ser um
efeito dessa branquitude.
É característica do processo de racialização do branco em uma sociedade
colonial que ele não se veja racializado, que ele se entenda como um sujeito
universal - justamente o modelo de sujeito com o qual a Filosofia trabalha. Por
isso, comumente o branco costuma creditar seus êxitos sociais somente ao mérito
próprio, não compreendendo, e em outros casos negando-se a admitir, que ele
desfruta de benefícios materiais e simbólicos que facilitam seu posicionamento
em lugares de poder, ao passo que as existências marcadas pela raça ou outros
marcadores da diferença tem sua mobilidade social obstruída, por amplos e di-
versos expedientes da estrutura colonial racista.
Para um branco, assumir a perspectiva decolonial significa renunciar à
zona de conforto de representar a si mesmo como a subjetividade padrão e assu-
mir as implicações que sua própria racialização apresenta, ou seja, compreender-
-se como beneficiário secular de privilégios indevidos. Diante disso, acredito que
uma branquitude crítica (SCHUCMAN, 2020) deve responsabilizar-se e enga-
jar-se na luta por outra estrutura social em que não haja privilégios particulares,
mas sim direitos para todos e justiça social.
Entretanto, enquanto mulher branca, não posso dizer que esse modo de
interpretar a realidade, atento à problemática racial e suas amplas e profundas
implicações na experiência vivida, tenha sido fácil e muito menos que é um
processo concluído. Assumir a postura decolonial não diz respeito meramente
ao domínio de determinada chave analítica, mas traz como consequência a de-
manda existencial do contínuo escrutínio crítico das coordenadas que situam
nossa subjetividade, bem como o reposicionamento subjetivo a partir de outras
coordenadas, a serem descobertas (desencobertas e criadas) a cada dia. Esses
referenciais outros não estão dados, como o modelo de subjetividade moderna
que permeia toda a nossa experiência existencial, e o cânone ocidental e suas
noções basilares. Para o empreendimento decolonial de políticas, epistemologias
e subjetividades outras há que se desconstruir a tendência que temos, nós que
fomos formados segundo o paradigma etnocêntrico da modernidade colonial, de
naturalizar e reproduzir suas representações e modelos automaticamente.
Além disso, há que assumir o compromisso incerto e cheio de obstácu-
los de criar formas de engendrar o presente, de viver a vida, de se relacionar

143
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

com a realidade, conjugando o resgate do que se fez inaudito pela colonialidade


com utopias futuras de efetiva equidade. Se trata do compromisso de criar tra-
vessias, como nos informa a expressão do título do livro de Wanderson Flor do
Nascimento (2020) sobre Filosofia Africana, “entre apostas e heranças”. Nessa
direção, inspira-nos a potência de Exu, que, segundo o provérbio iorubá - presen-
teado por esse mesmo livro de Nascimento - é aquele “que matou um pássaro
ontem com uma pedra que só jogou hoje”, para subverter a ideia moderna da
linearidade do tempo, para ressignificar o passado, criar um presente generoso e
potente e sonhar um futuro justo e plural.
A partir da consciência desse compromisso, como professora, vi-me con-
vocada à construção de estratégias pedagógicas decoloniais, orientadas à forma-
ção intercultural e antirracista. No entanto, não foi surpresa que não encontrasse
muito material didático, para uso em sala de aula, a respeito do ensino das rela-
ções raciais e sobre o racismo na perspectiva filosófica, tampouco sobre Filosofia
Africana e Ameríndia. No decorrer da pesquisa, fui operando em minha ótica
o giro perspectivo de abordagem e aperfeiçoando modos de encontrar e coletar
subsídios teóricos (porque a tradição da política editoria brasileira, de modo ge-
ral, também é eurocentrada, portanto não costuma privilegiar as produções fora
desse eixo geográfico). Fui também me aprofundando nas premissas decoloniais,
aproximando-me das suas problemáticas, das principais categorias de análise
do tema das relações raciais e do material que pude encontrar sobre Filosofia
Africana.
À medida que me aprofundava, ia constatando o grande potencial das
Filosofias Africanas para mobilizar processos pedagógicos descolonizadores
para a problematização das identidades coloniais, para a construção de identida-
des calcadas no reconhecimento de si e da alteridade e para a construção de uma
nova sociedade baseada nos valores da interculturalidade. Considero essa pro-
posta capaz de fazer jus à pluralidade cultural do mundo e, particularmente, do
Brasil, a partir da riqueza que a diferença cultural constitui, e ao mesmo tempo
pautar a equidade das diferenças, efetivada concretamente em aberturas mútuas
para intersubjetivações catalisadoras de identidades complexas e descolonizadas.
Frente às formas específicas de multiculturalismo, a perspectiva que inspira meu
trabalho não se confunde com o multiculturalismo assimilacionista (CANDAU,
2013, p. 20), pois não visa à mera inclusão dos grupos racializados e discrimina-
dos à cultura dominante (que se apresenta como sem viés). Tampouco conside-
ra-se que o diálogo intercultural se dê sem tensões e contraposições pois existe
uma assimetria fundamental nas relações culturais no âmbito da colonialidade
que não seria diluída pela simples revelação de seu caráter artificial.
Penso que trabalhar com o ensino das relações étnico-raciais carrega o
compromisso de contribuir de alguma forma para a transformação social, de

144
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

modo a servir, à sua medida, para a criação das condições conforme as quais a
equidade real seja possível: uma efetiva descolonização. Por isso o multicultu-
ralismo que embasa meu trabalho privilegia a insurgência das epistemologias e
cosmovisões subalternas e o diálogo entre aqueles que programaticamente não
foram escutados, ou seja, não tiveram suas vozes reconhecidas pelo referencial
dominante, as existências subalternizadas pelo projeto da modernidade ociden-
tal. A aposta é que a abertura do horizonte monocultural do projeto ocidental
às ideias da subalternidade insurgente possa transformar o mundo no sentido de
uma radical democracia.
Dessa forma, o ensino da Filosofia Africana, em uma perspectiva decolo-
nial, parece-me capaz de levantar questionamentos a respeito dos valores colo-
niais, de modo a desestabilizar sua hegemonia em nossas consciências. É sabido
que as transformações não se fazem somente de críticas, mas elas são imprescin-
díveis na construção de qualquer mudança.
Penso que o ensino de filosofias africanas é capaz de oferecer instrumentos
conceituais e existenciais para problematizarmos e repensarmos a nós mesmos,
nossas identidades e as relações étnico-raciais no âmbito da colonialidade, sobre-
tudo em nosso país.
Apesar de toda a diversidade do pensamento africanos, tendo esses ob-
jetivos em mente, podemos destacar alguns ricos elementos estruturantes que
subjazem às particularidades e que contrastam de tal forma com a concepção
ocidental que torna incontornável sua reconsideração crítica e sua relativização.
Reverter o epistemicídio (SANTOS, 2010) que o pensamento africano sofreu
através da exposição de sua riqueza silenciada, encoberta ou resistente, presente
de forma mais ou menos evidente em práticas, valores e cosmovisão que compar-
tilhamos (uma vez que a cultura brasileira é, em grande medida, afrodiaspórica),
além de atuar na direção da reparação de uma injustiça epistêmica, carrega o
potencial de operar o agenciamento dos sujeitos aviltados pela ordem colonial.
Penso que o ensino de Filosofia Africana pode, em alguma medida, con-
tribuir na restituição de parte da herança de pensamento negada, ou seja, restituir
o devido lugar do pensamento africano e afrodiaspórico e de seus produtores
no universo das grandes experiências de pensamento – e dessa forma contribuir
para a reversão do vil efeito de desqualificação ontológica promovida pela lógica
colonial (NOGUERA, 2014). O contato com o pensamento africano pode ser
capaz de nos proporcionar acesso a outro tipo de experiência e compreensão de
mundo, que extrapolam o esquema da racionalidade ocidental, marcada pelo
reducionismo, dualismo e fragmentação analítica, e intrinsecamente vinculada a
um projeto de poder que opera sobre as bases do racismo.
A Filosofia Africana apresenta característica singulares e potentes para
alicerçar modos outros de vida. Aponto como fundamental a percepção de que

145
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

diferentemente do pensamento ocidental, ela privilegia operações conjuntivas


em seu processo de conhecimento e não disjuntivas. Isso significa dizer que o
pensamento africano, em suas diferentes expressões, não parece priorizar proces-
sos dialógicos dicotômicos, analíticos, por oposição de valores, mas sim a busca
por consenso baseada na intersubjetividade. O conhecimento, assim, tem o sen-
tido de uma produção coletiva, uma construção. A própria humanidade não está
dada, mas deve ser construída na comunidade, o que nos é apresentado através
da ideia filosófica do Ubuntu: sou porque somos (RAMOSE, 2011).
Em vez do Ser e da essência, a noção central da Filosofia Africana é o
vir-a-ser, sobretudo através da ideia onipresente no continente africano de Força
Vital (LOPES; SIMAS, 2020). Força vital é energia, movimento, é a vida sendo
– e toda a natureza compartilha dessa forma de espírito. Homem e natureza,
portanto, não se encontram separados, não constituem modos de ser distintos
(e hierarquizados, como acontece no pensamento ocidental) mas integrados, in-
terligados e interdependentes. Também os que já morreram e os que ainda não
nasceram fazem parte dessa rede, o que confere uma perspectiva de continuidade
que molda um outro tipo de ética, distinta da ocidental.
Diante da crise e saturação evidente do modelo moderno, evidenciado de
modo flagrante por sua consequência mais extrema que é a possibilidade con-
creta de levar a vida humana ao desaparecimento em um curto prazo por sua
postura predatória em relação à natureza e às futuras gerações, não seria a hora
de evocar a Filosofia Africana para projetar modos outros de vida, que talvez
possam redirecionar nossa civilização ao largo da autodestruição?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Porque a formação docente não se reduz à formação acadêmica, temos


chance de criar sentido para nossa própria prática profissional. Temos chance
de introduzir as reais urgências de nossos alunos, de nosso tempo, vivenciadas
na prática do cotidiano escolar como elementos preponderantes no movimento
plástico que modela nossa identidade profissional a cada dia. Levando em con-
ta o que a academia ignora, coletado em nossa experiência concreta, podemos
transformar o caráter conservador e colonial do sistema educacional, em nossa
microesfera de atuação, em uma potente ferramenta de transformação.
A partir da prática reflexiva contínua, podemos ressignificar o sentido do
que fazemos e em vez de mobilizar a prática educacional na direção de uma rati-
ficação do pensamento hegemônico, excludente e monocultural, podemos atuar
em uma direção insurgente, ampliando horizontes culturais e aprofundando de
modo consistente a crítica ao pensamento único.

146
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

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147
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E AS LEIS 10.639/03 E
11.645/08: POTENCIALIDADES E DESAFIOS
NA EDUCAÇÃO ESCOLAR
Thays Leal Silva1

INTRODUÇÃO

As relações raciais e o racismo são questões que têm ganhado cada vez
mais visibilidade, relevância e espaço no debate público brasileiro, sobretudo
a partir do início deste milênio, em função da crescente implantação de ações
afirmativas. Um importante marco nessa direção foi a promulgação da Lei
10.639/03, que modificou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira
tornando obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira em todo o
currículo da Educação Básica, seguida pela Lei 11.645/08 que introduziu tam-
bém a História e Cultura Indígena.
Nesse contexto, no presente artigo apresentamos algumas reflexões sobre
as relações étnico-raciais no Brasil e suas reverberações no campo da educação
escolar. Para tanto, discutiremos brevemente os conceitos de raça, etnia e racis-
mo, problematizando os mitos referentes às relações raciais e a discussão en-
tre a marginalização e o racismo, focando na luta da população afro-brasileira.
Evidenciaremos ainda, o caminho histórico das Leis 10.639/03 e 11.645/08, que
rompem com o posicionamento político e ideológico, que nega a história do pon-
to de vista do colonizado, e oportunizam a compreensão da diversidade cultural
brasileira.
Entendendo que a escola é um campo de notável influência na formação
dos sujeitos para as relações sociais, buscamos refletir sobre a prática de uma
educação antirracista, que possibilite a construção do conhecimento, jogando luz
sobre saberes e vozes encobertas pelo modelo cultural, social e epistemológico
ocidental moderno – colonial. Pois, a partir da inserção da história e cultura dos
povos indígenas e afro-brasileiro no currículo e no fazer pedagógico escolar é
possível a criação de um novo saber, um saber que reproduza de forma igualitária
as histórias e culturas dos povos formadores da nação brasileira.

1 Mestra em Educação Básica (Colégio Pedro II). Graduada em Licenciatura plena em His-
tória (UGB). Graduada em Psicologia (UFF). Professora de História na Prefeitura Munici-
pal de Resende/RJ. E-mail: [email protected]
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Assim, reconhecemos a importância que os saberes docentes e discentes


exercem nos processos pedagógicos, nas construções sociais e nas problematiza-
ções antirracistas que emergem nos conteúdos escolares, bem como, a potenciali-
dade da escola como um espaço tão fecundo para colocar em prática as referidas
leis, visando contribuir na superação dessa chaga colonial que é o racismo.

RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E EDUCAÇÃO ESCOLAR


BRASILEIRA

Para pensarmos as relações étnico-raciais e suas consequências na edu-


cação, usaremos a palavra raça como uma construção social forjada nas tensas
relações entre brancos e negros, muitas vezes aparentadas como harmoniosas,
conforme difundido pelo mito da democracia racial, nada tendo a ver com o
conceito biológico. Assim, entendemos o conceito de raça no sentido sociológi-
co do termo, ou seja, como objeto das ciências sociais e humanas socialmente
construído. Destacamos que as ciências naturais já comprovaram que a huma-
nidade tem uma única origem e, portanto, não existem raças humanas. Contudo,
o conceito de raça foi constituído na interação entre os homens, reverberando
implicações sociais negativas às características fenotípicas das populações negras
e indígenas. E essas consequências exigem a busca de reparação aos danos cau-
sados (OLIVEIRA, 2006).
Para tanto, é importante destacar a evolução conceitual que a palavra raça
sofreu com o passar dos anos. A origem da palavra surge no italiano razza e no
latim ratio como significado de espécie. Assim, o termo foi utilizado inicialmente
pela zoologia e pela botânica para organizar animais e vegetais em categorias. Na
Idade Média, o termo raça começou a ser usado como sinônimo de descendência
e linhagem, sendo usado para distinguir as classes sociais ou castas, e era asso-
ciado a aptidões intelectuais, justificando a classificação de nobreza e plebe. Nos
séculos XV-XVIII, a cor de pele começou a ser usada para diferenciar as raças, e
assim, a humanidade dos grupos considerados inferiores foi questionada com a
ajuda das ciências naturais para nomear os outros como diferentes na biologia e
antropologia física (OLIVEIRA, 2006). Assim, como afirma Munanga e Gomes:
Esperava-se que a classificação em raças das populações que compõem
a espécie humana, pudesse servir para explicar a variabilidade humana.
Infelizmente, além de não alcançar esse objetivo, o conceito de raça desem-
bocou numa classificação absurda que a própria biologia moderna criticou.
Como já foi dito, o critério principal da classificação da diversidade huma-
na em raça foi a cor da pele a partir da qual os classificadores decretaram
as três grandes raças que persistem até hoje em nosso imaginário coletivo:
a raça negra, branca e amarela. Ora, a cor da pele depende do grau de
concentração da melanina, uma substância que todos temos, é um critério
relativamente irrisório, pois apenas menos de 1% dos genes que constituem

149
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

o patrimônio genético de um indivíduo são implicados na transmissão da


cor da pele (MUNANGA; GOMES, 2016, p. 215).

Embora a biologia já tenha confirmado que não existe fundamentação


científica da classificação da humanidade em diferentes raças, sabemos que para
além dos processos de subjugação e escravização dos povos indígenas e africa-
nos, por conta de suas características físicas, essa classificação que já havia acon-
tecido para justificar a colonização, se torna novamente evidente na II Guerra
Mundial, quando o Nazismo aplicou o conceito de raça para justificar a suposta
supremacia dos brancos (raça pura e branca) sobre outros grupos.
Contudo, o termo foi ressignificado pelo Movimento Negro e estudiosos
do campo das relações raciais no Brasil que, atualmente o utilizam rejeitando a
ideia de que existam raças superiores e inferiores, mas dando-lhe um significado
relacionado ao reconhecimento da diferença entre grupos humanos, sem atribuir
qualidades positivas ou negativas, reconhecendo a condição, origens ancestrais
e identidades próprias de cada um deles. Assim, o termo raça utilizado com um
sentido social e político se associa à história da população negra no Brasil e à difí-
cil relação entre raça, racismo, preconceito e discriminação racial (MUNANGA;
GOMES, 2016).
Dessa forma, podemos entender a diferenciação de raças como uma
construção social, política e cultural produzida nas relações sociais e de poder ao
longo da história. Para Munanga e Gomes:
É no contexto da cultura que nós aprendemos a enxergar as raças. Isso
significa que aprendemos a ver negros e brancos como diferentes na forma
como somos educados e socializados. (...) Aprendemos, na cultura e na
sociedade, a perceber as diferenças, a comparar, a classificar. Se as coisas
ficassem só nesse plano, não teríamos tantos complicadores. O problema é
que, em variados contextos, também vamos aprendendo a tratar as distas
diferenças de forma desigual. A questão mais séria é: por que aprendemos
a ver o outro e, nesse caso, o negro, como inferior devido aos atributos
físicos e a sua origem africana? A resposta é: porque vivemos em um país
com uma estrutura racista que precisa ser superada e porque o histórico da
escravidão ainda afeta negativamente a vida, a trajetória e a inserção so-
cial dos descendentes de africanos em nosso país (MUNANGA; GOMES,
2016, p. 176).

Muitos intelectuais e educadores rejeitam o uso do conceito raça e prefe-


rem o termo etnia, por este não carregar um sentido biológico. Segundo Oliveira
(2006), a palavra raça é de natureza morfobiológica e a palavra etnia tem o con-
teúdo de natureza social histórica, cultural e psicológica. Assim, a designação de
um grupo étnico se baseia nos seguintes critérios: “possuir ascendência comum;
ter a mesma língua; professar a mesma religião; possuir uma mesma cultura; e
residir em um mesmo território geográfico” (OLIVEIRA, 2006, p. 45).

150
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Silva (2020) destaca que para a teoria social contemporânea, raça e etnia
não podem ser considerados construtos culturais fixos ou definitivos por estarem
sujeitas a um constante processo de transformação. Uma vez que a diferença e a
identidade fazem parte de um processo relacional de mútua dependência, sendo
assim, a diversidade cultural é um processo histórico e discursivo de construção
da diferença.
Entendemos que a soma dos conceitos raça e etnia possibilita explicitar a
dimensão cultural (linguagem, tradições, ancestralidade) e a racial (característi-
cas físicas) de um povo. Assim, estes dois termos são considerados pertencentes
um ao outro e por conta da dificuldade de distinção, grande parte da literatura os
usa de forma equivalente. Nesse sentido, de acordo com Oliveira (2006), o uso da
expressão “étnico/racial” tem o intuito de abranger as considerações para além
do aparente, uma vez que sujeitos aparentemente brancos podem ter ancestrais
negros. Assim, o emprego do termo étnico, na expressão étnico-racial, serve para
apontar que as tensas relações ocasionadas pela diferença na cor da pele e traços
fisionômicos, também ocorrem devido à raiz cultural, que difere em visão de
mundo, valores e princípios de outros povos e raças.
Para dialogar sobre as relações étnico-raciais no Brasil focaremos na luta
das populações afrodiaspóricas e negra brasileira, desta forma, discutiremos o
racismo e a discriminação que a população negra sofre. Pois, embora, a maior
parte da população brasileira seja composta de negros, ainda persiste em nosso
país um imaginário étnico-racial que privilegia e valoriza principalmente as raí-
zes europeias, ignorando ou pouco valorizando as outras, que são a indígena, a
africana, a asiática. O que perpetua ideologias, desigualdades e discriminação
racial (BRASIL, 2004b).
A construção da identidade negra acontece na conexão de classe, gênero e
raça, questões permeadas pelo racismo e desigualdade social. Para Nilma Gomes
(2010, p. 98), essa “identidade construída pelos negros brasileiros (pretos e par-
dos) se dá não apenas por oposição ao branco, mas também pela negociação,
pelo conflito e pelo diálogo com este e outros grupos étnico-raciais.” Segundo
Munanga e Gomes,
o racismo é um comportamento, uma ação resultante da aversão, por vezes,
do ódio, em relação a pessoas que possuem um pertencimento racial ob-
servável por meio de sinais, tais como cor de pele, tipo de cabelo, formato
do olho, etc. Ele é resultado da crença de que existem raças ou tipos huma-
nos superiores e inferiores, a qual se tenta impor como única e verdadeira.
Exemplo disso são as teorias raciais que serviram para justificar a escravi-
dão no XIX, a exclusão dos negros e a discriminação racial (MUNANGA;
GOMES, 2016, p. 179).

A cor ou raça dos negros estava associada ao escravizado, que detinha um


lugar marginalizado no sistema colonial. Segundo Souza (1983 apud RIBEIRO,
151
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

2019, p. 11) “A sociedade escravista, ao transformar o africano em escravo, defi-


niu o negro como raça, demarcou o seu lugar, a maneira de tratar e ser tratado,
os padrões de interação com o branco e instituiu o paralelismo entre cor negra e
posição social inferior”.
A reação ao pensamento racista veio com a idealização do “mito da demo-
cracia racial brasileira” ou “mito das três raças”, criada a partir das influências
da obra “Casa-grande e senzala”. A obra de Gilberto Freire trouxe um novo
modo de pensar sobre as relações raciais no Brasil, colocando o negro e o índio
como importantes figuras para a formação da sociedade brasileira. Com “Casa-
grande e senzala”, a identidade brasileira passou a ser definida positivamente,
destacando o nacionalismo brasileiro.
A partir do “mito da democracia racial brasileira”, criou-se uma imagem
de harmonia racial no Brasil, com a convivência pacífica entre brancos e negros,
que serviu aos interesses dos que apostavam numa elite branca para conduzir
essa sociedade. Assim, foi construída a ideia de que a cor não é importante no
Brasil, contudo, a discriminação aos negros seguiu com o “racismo à brasileira”
– que discrimina sem parecer que está discriminando. Como afirmam Munanga
e Gomes (2016, p. 181),
O racismo no Brasil se dá de um modo muito diferente de outros contextos,
alicerçado em uma constante contradição. As pesquisas, histórias de vida,
conversas e vivências cotidianas revelam que ainda existe racismo em nos-
so país, mas o povo brasileiro, de modo geral, não aceita que tal realidade
exista. Dessa forma, quanto mais a sociedade, a escola e o poder público
negam a lamentável existência do racismo em nosso país, mais ele se pro-
paga e invade as mentalidades, as subjetividades e as condições sociais e
educacionais nos negros (MUNANGA; GOMES, 2016, p. 181).

Para pensarmos soluções para uma realidade racista, devemos tirá-la da


invisibilidade e trazer para o debate individual e coletivo. Embora, exista hoje
uma maior sensibilidade em relação à vivência do racismo e da desigualdade
racial brasileira, a estrutura de classes continua. Assim, segundo Gomes (2010, p.
100), “as dimensões de raça, gênero, e cultura ainda encontram-se lutando – mes-
mo dentro da possibilidade de construção de um outro mundo – por um lugar de
reconhecimento no contexto das lutas contra hegemônicas.” No caso da questão
racial, mesmo que aos poucos, negros participem da inserção profissional, inte-
lectual e política em setores historicamente negados e experienciem uma ascen-
são social, o racismo continua sendo base da estrutura social do país nitidamente
desigual (GOMES, 2010). Nesse sentido, é importante a luta por uma mudança
ampla da sociedade brasileira, pois, como afirma Gomes (2010, p. 102):
Acredita-se que a superação do racismo e da desigualdade racial possibi-
litará transformações éticas e solidárias para toda a sociedade e permitirá
o efetivo exercício da justiça social e da cidadania que respeite e garanta o
152
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

direito a diversidade. Acredita-se também, que esse processo poderá pro-


porcionar uma reeducação social e cultural dos brasileiros no trato com a
diversidade, questionando e problematizando o mito da democracia racial
(GOMES, 2010, p. 102).

Segundo Teixeira (2006), existe um “ideal de ego do branco”, que foi cons-
truído com base no determinismo da elite e se perpetua hoje nas escolas através
dos livros didáticos e dos conteúdos que marginalizam a história negra e indí-
gena, focando majoritariamente na história dos brancos europeus. Isso acontece
por conta do epistemicídio, que:
É o fenômeno que ocorre pelo rebaixamento da autoestima que o racismo
e a discriminação provocam no cotidiano escolar; pela negação aos negros
da condição de sujeitos de conhecimento, por meio da desvalorização, ne-
gação ou ocultamente das contribuições de continente africano e da diás-
pora africana ao patrimônio cultural da humanidade; pela imposição do
embranquecimento cultural e pela produção do fracasso e evasão escolar
(CARNEIRO, 2005 apud RIBEIRO, 2019, p. 63)

Nesse sentido, o epistemicídio é o apagamento de produções e saberes


produzidos por grupos oprimidos, juntamente com a exclusão das oportunida-
des educacionais. Segundo Ribeiro (2019), o privilégio social produz o privilégio
epistêmico, que deve ser confrontado para que a história não seja contada apenas
pelo ponto de vista do poder, uma vez que é prejudicial, que numa sociedade, os
sujeitos não conheçam a história dos povos que a ergueram. Para que isso mude,
é necessária uma educação que permita a valorização da história e cultura da
população brasileira afrodescendente. É necessária uma educação antirracista.
Nesse contexto, as Leis 10.639/03 e 11.645/08 trazem a obrigatoriedade
da inserção da história e cultura dos povos indígenas e afro-brasileiro. Essa inser-
ção da diversidade cultural e da questão racial no projeto educativo e a articula-
ção dessas temáticas nas discussões curriculares são um caminho para uma edu-
cação antirracista com práticas eficazes de combate ao racismo e de superação
das desigualdades sociais, através do respeito e reconhecimento das diferenças
étnico-raciais presentes na nossa história e sociedade. Dessa forma, a educação
das relações étnico-raciais possibilita aprendizagens, troca de conhecimentos, e a
construção de uma sociedade justa, igual, equânime.

O CAMINHO DA LEI Nº 10.639/03

Iniciativas para estabelecer uma educação plural e inclusiva percorreram o


Brasil no século XX, como a Frente Negra Brasileira, na década de 1930, que se
comprometeu na luta por uma educação que contemplasse a História da África
e dos povos negros e combatesse práticas discriminatórias sofridas pelas crian-
ças nas escolas. Nos anos 1940, o Teatro Experimental do Negro, liderado por

153
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Abdias do Nascimento, discutiu a formação global das pessoas negras, indicando


políticas públicas que já se constituíam como as primeiras propostas de ação
afirmativa no Brasil. A inserção da história da África e do negro no Brasil, no
currículo escolar do país, foi defendida pelo Movimento Negro Unificado, uma
das organizações do movimento negro brasileiro, em 1978. Nos anos 1980, com
o Movimento Social Negro, intelectuais e pesquisadores da área da educação
desenvolveram um amplo debate sobre a importância de um currículo escolar
que refletisse a diversidade étnico-racial da sociedade brasileira. No campo do
movimento negro, em 1995 a Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania
e a Vida, apresentou reivindicações e propostas de políticas públicas para a po-
pulação negra, inclusive com políticas educacionais, sugeridas para o governo
federal (BRASIL, 2013).
Além desse rico processo de luta, o Brasil passava por mudanças educa-
cionais com a Constituição Federal 1988, a LDB de 1996 e os PCN (1997,1998 e
1999), documentos que traziam propostas de transformação no acesso à educa-
ção para todos os brasileiros, através da construção de uma educação mais igua-
litária, sem preconceitos e distinções, que valoriza as contribuições das diferentes
culturas e etnias para a formação do povo brasileiro.
Então, desse contexto de luta e mudanças educacionais, os deputados fe-
derais Ester Gross (educadora) e Ben-Hur Fonseca (ativista do movimento ne-
gro) no ano de 1999, apresentaram o projeto de lei que tornava obrigatório o
ensino de História da África e da Cultura Afro-brasileira, reconhecendo a luta
antirracista, as injustiças e discriminações contra negros e afrodescendentes no
Brasil (CRUZ, 2016).
Em 2003, esse projeto se tornou a Lei n° 10.639, assinada pelo presidente
da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em uma de suas primeiras ações à frente
do governo brasileiro, em 9 de janeiro de 2003, alterando a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) Lei n° 9.394/96 e tornando obrigatório o
ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira. Com esta determinação,
a educação no Brasil incorporou, no marco legal, princípios de promoção da
igualdade racial (BRASIL, 2013).
A Lei n. 10.639 de 9 de janeiro de 2003, que alterou o artigo 26 e 79 da
LDB afirma:
Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acres-
cida dos seguintes arts. 26-A e 79-B:
Art. 26-A Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais
e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura
Afro-brasileira.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá
o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil,
a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,

154
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e


política pertinente à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
Educação Artística e de Literatura e História Brasileira.
(…) Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como
‘Dia Nacional da Consciência Negra’. (BRASIL, 2003, p. 1)
A proposta da Lei 10.639 traz uma reflexão que se opõe ao ensino euro-
cêntrico dos conteúdos, indicando o desenvolvimento de uma prática pedagógica
que apresente a história da África no passado e no presente; mostrando as lutas,
resistências, artes, diversidade e contribuições do povo negro no Brasil e no mun-
do (BRITO, 2017). A Lei 10.639 permite esse questionamento, contudo, não é
um processo mecânico, mas sim, um processo que se constrói socialmente atra-
vés de professores que se responsabilizam por estudar e compartilhar a história
afro-brasileira e africana com seus alunos, através das escolas que valorização o
ensino da cultura dos povos colonizados, através dos alunos que constroem um
conhecimento sobre a real formação da sociedade brasileira. Ou seja, é um pro-
cesso dinâmico e complexo.
De acordo com essa Lei, a referência teórica e pedagógica deve estar pre-
sente na formação docente, nos currículos, nas práticas docentes e no combate às
discriminações raciais e culturais no meio escolar. Nesse sentido, a lei simboliza
um marco histórico da luta antirracista no Brasil e transformação da política
educacional e social brasileira. Desta forma, a Lei 10.639 representa mais um
passo nas políticas de ações afirmativas e de reparação para a educação básica e
segundo Fonseca (2012 apud BRITO, 2017, p. 75), “é uma resposta à urgente ne-
cessidade levar à comunidade escolar o passado e o presente dos povos africanos
e afro-brasileiros”. Pois como afirma Nilma Gomes:
Muito mais do que um conteúdo curricular, a inserção da discussão sobre
a África e a questão do negro no Brasil nas escolas da educação básica têm
como objetivo promover o debate, fazer circular a informação, possibilitar
análises políticas, construir posturas éticas e mudar o nosso olhar sobre a
diversidade (GOMES, 2008, p. 81).

Outro dispositivo legal para concretização da educação antirracista são as


Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações étnico-raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileiras e Africanas (DCNERER).
Essas diretrizes foram estabelecidas em 2004 pelo Parecer CNE/CP n° 03/2004
(BRASIL, 2004a) e pela Resolução CNE/CP n° 01/2004 (BRASIL, 2004b), que
definiram sobre como deve ser uma educação para as relações étnico-raciais.
Essa resolução foi realizada por meio de consulta a especialistas no tema, entida-
des dos movimentos negros, conselhos estaduais e municipais de Educação, pro-
fessores e alunos para sua elaboração. O documento é destinado aos profissionais

155
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

da educação, aos gestores de políticas educacionais e à sociedade brasileira.


As DCNERER são importantes por apresentarem de forma mais clara,
em termos de currículo, o que deve ser ensinado. Essas diretrizes visam, na área
da educação, auxiliar o direito dos negros no reconhecimento e valorização de
sua história, cultura e identidade; buscam combater o racismo e as discrimina-
ções; e propõem a construção de saberes, atitudes e valores que eduquem cida-
dãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial – sejam eles descendentes
de africanos, povos indígenas, europeus ou asiáticos – almejando a formação de
uma sociedade brasileira democrática e igualitária.
Em 2009, foi publicada primeira edição do Plano Nacional de
Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações
Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana
– Lei nº 10.639/2003, e elaborado por meio das contribuições de diversos en-
contros regionais. Em 2013, foi publicada uma segunda edição desse Plano, já
apresentando alguns dados sobre a Lei nº11.645/08, que promoveu a inserção da
história e da cultura indígena no currículo da Educação Básica.
Esse Plano Nacional de Implementação exibe as responsabilidades e
competências do governo federal e possui seis eixos estratégicos propostos: 1)
Fortalecimento do marco legal; 2) Política de formação para gestores e profissio-
nais de educação; 3) Política de material didático e paradidático; 4) Gestão de-
mocrática e mecanismos de participação social; 5) Avaliação e monitoramento;
6) Condições institucionais (BRASIL, 2013).
O Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, juntamente com o Parecer CNE/
CP n° 03/2004 e a Resolução CNE/CP n° 01/2004 visa contribuir para que
educadoras e educadores de todo o país se tornem os principais agentes na plena
efetivação da Lei n° 10.639/03.
As práticas pedagógicas devem estar orientadas para relações sociais igua-
litárias, que reconheçam a valorização da contribuição de mulheres e homens
africanos e seus descendentes para a formação social brasileira.

O CAMINHO DA LEI Nº 11.645/08

Após cinco anos a Lei 10.639 foi atualizada para a Lei 11.645, de 10 de
março de 2008, que acrescentou a obrigatoriedade da temática História e Cultura
Indígena nos currículos oficiais da rede de ensino, alterando artigo 26-A da LDB
para:
Art. 1º O art. 26-A da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a
vigorar com a seguinte redação:

156
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino mé-


dio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura
afro-brasileira e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da popula-
ção brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da
história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas
Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação
da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social,
econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos
indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo es-
colar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história
brasileiras. (BRASIL, 2008, p. 1)

A Lei de 11.645/08 incluiu a obrigatoriedade do ensino da História e


Cultura Indígena nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais
e particulares, juntamente com a História e Cultura Afro-Brasileira. Embora en-
trelaçados à construção do Brasil, são temáticas distintas que requerem preparo,
estudo e vontade para serem inseridas dentro e fora da escola. Esperamos que
a partir dessa Lei “seja revertido, paulatinamente, um quadro sombrio de des-
conhecimento a respeito da presença de sociedades que já há muito vivem nos
atuais territórios americano e brasileiro e que sobreviveram física e culturalmen-
te através do tempo, lutando, inclusive, contra o próprio extermínio” (SILVA;
COSTA, 2018, p. 67).
Contudo, a efetivação do ensino da História e Cultura Indígena na
Educação Básica, esbarra em dois obstáculos: a ausência dessa temática nos cur-
sos superiores que formam professores e a barreira cultural que reforça a presen-
ça de preconceitos e estereótipos do indígena como exótico, selvagem e isolado
da sociedade. Por conta dessas duas questões, que formam um ciclo de desin-
formação educacional e social, é muito comum encontrar professores e alunos
envolvidos em atividades estereotipadas, geralmente apenas no Dia do Índio, que
apresentam o indígena como aqueles que andam nus ou vestem tangas, falam lín-
guas estranhas, usam colares e cocares e não são civilizados como os não índios.
Muitos professores, inclusive, desconhecem a origem dessa data,2 que insere o
índio idealizado na vida escolar como sendo algo do passado, com um dia espe-
cífico para celebração e deslocado do cotidiano dos discentes.
As ideias errôneas e anacrônicas ensinaram a não índios que índio é coisa

2 Em 1940 aconteceu o Primeiro Congresso Indigenista Interamericano, que ocorreu entre


14 e 24 de abril, no México, onde foram criados o Instituto Indigenista Interamericano e o
dia 19 de abril como “Día del Alborigen Americano”, chamado de Dia do Índio no Brasil.
Essa data foi relacionada na década de 1940 à comemoração cívica difundindo a caracteri-
zação folclórica e exótica do ser índio nas escolas brasileiras, o que infelizmente persiste até
os dias atuais.
157
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

do passado e que nossos contemporâneos indígenas já não seriam mais índios de


verdade por ter acesso à tecnologia e a objetos vindos de outras culturas, consi-
derando-os como menos índios ou aculturados3. Por isso, pensar na inserção da
história e cultura indígena nas disciplinas da Educação Básica, demanda que os
docentes entendam que a escola brasileira foi, por muito tempo, transmissora
de ideias preconceituosas e de práticas discriminatórias contra os indígenas, e
também negros e outros grupos étnicos (SILVA; MEIRELES, 2017 apud SILVA;
COSTA, 2018).
A Lei 11.645/08 sozinha, não é capaz de mudar a mentalidade e a prática
de uma sociedade tão marcada pela colonização, mas ela contesta ideais peda-
gógicos executados há anos na Educação Básica, além disso, possibilita o anseio
de professores e alunos de conhecer mais sobre a cultura indígena, tão negada
fora e dentro da escola. Segundo (SILVA; COSTA, 2018, p. 69) essa lei é fruto
de “muitas lutas dos movimentos sociais, de indígenas, indigenistas4 e de outros
segmentos que apoiam/apoiaram as causas desses grupos, marginalizados e ex-
cluídos desde os tempos coloniais”.
Como é o caso das lutas pela elaboração da Constituição Federal de 1988,
que representou um grande marco na história dos povos indígenas, uma vez que
ela rompeu com a ideia do Estado de integrar os indígenas à sociedade brasi-
leira. Tal ideia perdurou desde a Proclamação da República em 1889 até o fim
da Ditadura civil-militar, quando vários movimentos de líderes indígenas, con-
trários a essa política integracionista, ganharam força e voz na construção da
Constituição de 1988, que reconheceu os direitos coletivos desses povos. Assim,
a Constituição Cidadã “garantiu aos índios o direito de permanecerem índios,
bem como a manutenção de suas identidades étnicas e culturais. Também possi-
bilitou a educação escolar indígena, alicerçada em instrumentos de valorização
das línguas, dos saberes e das tradições indígenas” (SILVA; COSTA, 2018, p.
113).
Embora a Constituição de 1988 tenha apresentado um cenário mais favo-
rável a indígenas, problemas seculares ainda persistiam e persistem em relação
a essas populações, como a invasão de grande parte das terras destinadas aos
indígenas. A realidade mostra que cumprimento dos direitos conquistados pelos
povos colonizados é uma tarefa árdua de todos.
Além da Constituição Federal, outros documentos oficiais foram cria-
dos pelo governo como forma de superar as injustiças sociais sofridas por esses

3 Teorias de aculturação, muito presentes no Brasil até 1970, consideravam que a assimi-
lação de indígenas à elementos da sociedade brasileira transformavam o índio em um ser
aculturado, ou seja, alguém que deixou de ser índio e atingiu outro status.
4 Movimentos indígenas se referem àqueles cujos protagonistas são os próprios índios. Já os
movimentos indigenistas são formados pelos apoiadores dos índios, que podem ser intelec-
tuais ou ativistas.
158
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

povos, como a Lei 11.645, fruto de lutas iniciadas no período colonial e presentes
até hoje. Apesar de críticas à maneira como a lei foi apresentada em 2008, como
a ausência de professores, indígenas e especialistas no processo que acarretou
sua promulgação, o texto conduziu avanços na discussão e inserção da cultura
indígena nas escolas.
A Lei acrescenta a relevância do estudo dos povos indígenas brasileiros
nas escolas e possibilita a mobilização em torno das questões veladas das práticas
sociais e educacionais no nosso país. Desta forma, tal Lei traz possibilidades de
conflitos, confrontos e negociações epistêmicas, colocando em evidência a visibi-
lidade de outras lógicas históricas, diferentes da lógica dominante eurocêntrica,
além de pôr em debate a descolonização epistêmica (OLIVEIRA, 2010).
Giovani Silva e Anna Costa (2018) destacam que há muito a ser pesqui-
sado e publicado sobre os povos indígenas ancestrais e atuais, principalmente na
área dos livros didáticos, para que a temática se insira nas escolas desvincula-
da de estereótipos e preconceitos alimentados por séculos dos, até pouco tempo
atrás, chamados “povos primitivos” ou “povos sem história”. Para que então,
os indígenas deixem ser considerados coadjuvantes da chegada dos europeus,
e depois apagados dos livros, dos currículos e das aulas, para serem lembrados
apenas no dia 19 de abril. Sobre isso, as autoras questionam: “Como combater
o preconceito e a discriminação a partir desse cenário de silêncio e apagamento
da diversidade na história brasileira? Os professores de quaisquer disciplinas têm
muito a ganhar se se dispuserem a aprender com a diversidade etnocultural do
país” (SILVA; COSTA, 2018, p. 96).
Como sabemos, a Lei 11.645 não faz referência apenas ao ensino da his-
tória e cultura dos indígenas, mas também dos africanos e afrodescendentes, te-
máticas tão necessárias em uma educação ainda marcada pelo preconceito en-
raizado contra os indígenas e negros, muitas vezes limitados pela História como
selvagens e escravizados. Assim, a Lei apresenta várias possibilidades para en-
sinar o respeito a presença da diversidade cultural e étnico-racial, seja indígena,
negra ou migrante. Ensinar que essa diversidade é um patrimônio nacional e
deve ser preservado e valorizado é uma responsabilidade educacional e social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sabemos que não seriam necessárias as Leis 10.639/03 e 11.645/08 em


pleno século XXI se o entendimento da constituição sócio-histórica do Brasil
não subjugasse as culturas africanas e indígenas aos estereótipos de dominados,
escravizados, conformistas. Quando as diferenças inviabilizam a coexistência de
culturas, a luta por igualdade também é voz dos excluídos, como ressalta Candau
(2008, p. 49), citando Boaventura: “temos o direito a ser iguais, sempre que a

159
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

diferença nos inferioriza; temos o direito de ser diferentes sempre que a igualda-
de nos descaracteriza”.
Entender e ressignificar as relações raciais no Brasil demanda buscar os
variados aspectos desse fenômeno tão complexo, em que se entrelaçam questões
epistemológicas, éticas, políticas, estéticas, linguísticas, sociológicas, históricas,
geográficas, etc. Logo, compreendemos que qualquer abordagem desse tema que
o restrinja a um só desses aspectos, fatalmente o simplificaria de modo impró-
prio e o mutilaria como objeto de análise. Além de tentar abranger a mais ampla
gama possível de saberes, a educação antirracista deve buscar abranger a maior
gama de olhares e vozes. Assim, a voz do aluno, a voz do negro, a voz do mar-
ginalizado, – perspectivas nem sempre identificadas como legítimas no caminho
do conhecimento, tal como se dá na modernidade – podem encontrar espaço
para diálogo na escola.
A temática das relações étnico-raciais e do ensino da História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena ainda têm muitos lugares para alcançar, principal-
mente no que tange às relações sociais. Para que possamos incluir e levar novos
olhares às demandas coletivas, é importante que a história contada pela ótica
europeia seja revista e repensada, dando lugar à verdadeira história do negro e
do indígena. Nesse sentido, as Leis 10.639 e 11.645 representam mais um passo
nas políticas de ações afirmativas e de reparação para a educação básica, por
possibilitarem a realização de debates antirracistas no país, bem como, a concre-
tização do ensino da história dos povos indígenas e afro-brasileiro nos currículos
e espaços escolares.
Apontamos que um ensino que valoriza as várias existências étnico-raciais
é benéfico para toda a sociedade, pois possibilita a compreensão do outro nas
suas idiossincrasias, combatendo os preconceitos, transformando o perverso sis-
tema racial e englobando toda a sociedade brasileira. Dessa forma, acreditamos
que a prática da educação antirracista, embora desafiadora em uma sociedade
colonial e racista, é um caminho que oportuniza o relato do sujeito subalterni-
zado, a problematização dos mitos referentes às relações raciais e a discussão da
relação entre marginalização e racismo. Isso significa construir um conhecimen-
to jogando luz sobre saberes e vozes encobertas pelo modelo cultural, social e
epistemológico ocidental moderno – colonial.
As Leis 10.639 e 11.645 rompem com o posicionamento político e ideo-
lógico que nega o outro, que nega a história do ponto de vista do coloniza-
do, trazendo a possibilidade de compreensão da diversidade étnica brasileira.
Compreensão que não é automática, pois como afirma Fonseca (2012 apud
BRITO, 2017), os esforços com palestras, cursos de formação e seminários sobre
o assunto são pequenos e não atingem satisfatoriamente as escolas brasileiras e o
meio acadêmico, por isso, é preciso lutar para que as leis alcancem a sala de aula

160
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

e, consequentemente, a história dos povos africanos e indígenas seja valorizada,


pesquisada, discutida e disseminada. Concretizar essas ações com a participa-
ção de todos os envolvidos no processo pedagógico de formação é um desafio
constante, por conta dos currículos e materiais didáticos que trazem apenas a
história na visão eurocêntrica, mas é a única forma de construir novos conceitos,
saberes e histórias sobre os povos colonizados e a verdadeira formação de nossa
diversidade étnica.

REFERÊNCIAS
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dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temá-
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de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, DF: MEC/SEF,
2004a.
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de Educação Básica. Resolução CNE/CP n° 01/2004- Institui Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico Raciais e para o
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, DF: MEC/
SEF, 2004b.
BRASIL. Lei n. 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a lei n. 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, modificada pela lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currícu-
lo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena”. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 11 mar.
2008.
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trizes curriculares nacionais para educação das relações étnico-raciais e para
o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Brasília, DF: MEC/
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BRITO, Marlene Oliveira. Narrativas negadas: estratégias de resistência à dis-
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pedagógica. In: CANDAU, Vera Maria; MOREIRA, Antonio Flávio (Orgs.).
Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. 2.ed. Petrópo-
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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
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162
EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS:
O DISCURSO DA INCLUSÃO E A
MARGINALIZAÇÃO DA POPULAÇÃO NEGRA
Domingos Dutra dos Santos1
Guilherme Aguiar Gomes2
Wraydson Silva Sousa3

INTRODUÇÃO

Partindo das temáticas previstas na Lei Federal 10.639/2003, que nos di-
reciona ao ensino e inclusão do estudo da História e Cultura Afro-brasileira,
este trabalho investiga as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História da Cultura Afro-brasileira e
Africana. Objetiva-se fazer uma análise da relação entre Educação e as Relações
Étnico-raciais com foco no discurso da inclusão e da marginalização da popula-
ção negra.
Em princípio, precisamos demarcar que no Brasil a análise da relação en-
tre as políticas públicas sociais e a questão étnico-racial foi limitada, de um lado,
por desentendimentos das especificidades das relações raciais, e, de outro lado,
por uma iniciativa explícita da maioria das políticas governamentais e de parte
da intelectualidade de ocultar e descaracterizar o problema racial brasileiro. Dito
isto, pensar as políticas sociais e a constituição da sociedade brasileira em sua
conexão com as relações étnico- raciais e, por conseguinte, a pobreza e a desi-
gualdade social, não são possíveis sem levar em conta as raízes escravistas de
quase quatro séculos em nossa formação e as implicações do desenvolvimento
capitalista em nosso país.

1 Mestre em História pela Universidade Estadual do Maranhão; Integrante do Núcleo de


Pesquisa e Extensão sobre África e o Sul Global (NeÁfrica). E-mail: dutradomingos09@
gmail.com.
2 Graduando em História pela Universidade Federal do Maranhão, Bolsista de Iniciação de
Científica sob orientação do Prof. Dr. Alexandre Guida Navarro; Integrante do grupo de
estudo: Camelot – Grupo de Estudo em História Medieval (UFMA); E-mail: GuilhermeA-
[email protected].
3 Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão; Especialista em em
Língua Portuguesa e Filosofia pela Faculdade Venda Nova do Imigrante; E-mail: wrayd-
[email protected].
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

As análises desta pesquisa, portanto, têm fundamento em nossas reflexões


quanto à questão étnico-racial como uma das determinantes do processo de desi-
gualdade, por qual passa a grande maioria da população negra, da questão social
e posterior construção das políticas públicas sociais, que se apresentam como
inclusivas e multirraciais no decorrer da história brasileira, mas que em verdade,
por ação da política governamental de Estado tem causado à população negra
toda gama de violência, discriminações e desigualdade.

EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E A FORMAÇÃO


SOCIAL BRASILEIRA

A Educação das Relações Étnico-Raciais tem por objetivo a formação de


cidadãos, homens e mulheres empenhados em promover condições de igualdade
no exercício de direitos sociais, políticos, econômicos, dos direitos de ser, viver,
pensar, próprios aos diferentes pertencimentos étnico-raciais e sociais. Para de-
sencadear, executar, avaliar processos de Educação das Relações Étnico-Raciais
é preciso que se compreenda como os processos de ensino-aprendizagem têm-se
constituído, entre nós, ao longo dos mais de 511 anos de história.
Visto que, somos um país de herança escravista e que continua deixando
marcas de desigualdade e discriminação profundas em nossa sociedade. Atinge
não apenas o social e o econômico, mas também as formas de como pensamos,
nos relacionamos e de como analisamos a história de nosso país. Por essa razão,
durante muitos séculos, enxergamos a população brasileira como se ela fosse
uma totalidade homogeneizada pela mestiçagem, sem conflitos étnico-raciais,
pois se dizia que éramos um verdadeiro paraíso racial.
Esta parte do capítulo, portanto, pretende discutir o processo de formação
social brasileira, em perspectiva histórica, tendo como eixo central a participação
da população negra e como ela foi percebida e teorizada por parte da intelligentsia
brasileira. Para tanto, entenderemos formação na perspectiva apontada por Chauí,
segundo a qual:
Quando os historiadores falam em formação, referem-se não só às determi-
nações econômicas, sociais e políticas que produzem um acontecimento
histórico, mas também pensam em transformação e, portanto, na continui-
dade ou descontinuidade dos acontecimentos, percebidos como processos
temporais (CHAUÍ, 2013, p. 9 - destaque da autora).

Os trabalhadores escravizados, em vista disso, não foram colocados no rol


da classe trabalhadora brasileira, que teria se originado apenas após o intenso
processo migratório subsidiado de europeus, no contexto da industrialização e
urbanização das primeiras décadas do século XX. Como ressalta Silva (2008) o
tratamento teórico da questão social no Brasil quase nunca admite sair desses

164
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

marcos temporais e, em nossa consideração, portanto, ignora solenemente mi-


lhões de trabalhadores escravizados ou alforriados, mas que tem na resistência
contra as formas de exploração e opressão de sua condição de trabalhadores afri-
canos(as) e afrodescendentes uma característica fundamental. Principalmente
por meio das fugas e formação dos quilombos: “São muitos raros os momentos
em que a ordem capitalista conheceu uma atividade grevista sistemática de tama-
nha dimensão” (MAESTRI, 2005, p. 10).
Diante do exposto, tornar-se-á fundamental destacar as questões que
Guimarães (2012) busca responder, pois são ininterruptas na interpretação da
sociedade brasileira, quais sejam: qual a relação entre as raças e as classes, e qual
o significado da chamada “democracia racial”?
Para este autor, no Brasil, a categoria classe tem servido para explicar to-
das as desigualdades sociais e raciais. Racismo, preconceito e discriminação se
tornam meras consequências da estrutura de classe, e a democracia racial tem
servido sistematicamente para explicar a convivência entre os grupos étnico-ra-
ciais na realidade nacional. Grosso modo, diz ele, se subtrai todas as formas de
coerção que não sejam econômicas (gênero, raça, nacionalidade, etc.) do pro-
cesso de dominação e exploração do trabalho. Entretanto, a presença das raças e
outras formas de opressão são a prova cabal de que elas são utilizadas e operam
funcionalmente para imprimir exploração econômica no capitalismo.
Quando se pensa as particularidades da questão social no Brasil, Santos
(2012), por exemplo, realça o marco teórico supracitado – entre 1930 e 1960
– destacando que nesse período é que se completa o capitalismo brasileiro em
sua condição periférica, urbana e industrial. E, a partir dos anos 1960 com a
industrialização pesada teríamos o surgimento de importantes especificidades da
questão social, que deixariam marcas nos anos 1980 e 1990. No seu texto, apon-
ta para a rapidez das mudanças ocorridas numa sociedade onde dominavam as
marcas do passado colonial-escravista e garante:
[...] abolido o regime de trabalho escravo, a população negra não foi ime-
diatamente transformada em trabalhadores assalariados, em face da opção
pela imigração europeia. Seu papel foi, antes, o de população excedente
para as necessidades médias do capital agrário. Ressalta-se, nesse ínterim,
“a fase de branqueamento da população brasileira, [...] e a marginalidade
do negro” [...] dois ícones culturais da sociedade brasileira, presentes até
os dias atuais, inclusive em termos de constituição do mercado de trabalho
(SANTOS, 2012, p. 142, destaque nosso).

Sem dúvida, o branqueamento e a marginalização da população negra são


duas questões constitutivas fundamentais do mercado de trabalho no Brasil. No
texto supracitado, a autora, diz tratar-se de ícones culturais, o que é uma verda-
de, mas ainda insuficiente. A própria autora, mesmo abordando o período co-
lonial e imperial citando a escravidão – apenas tangencialmente – praticamente
165
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(O rganizadores )

se restringe a essa referência quando aborda um período tão fundamental como


os quase 400 anos de escravização, e de um dos problemas mais essenciais da
formação social do Brasil, da classe trabalhadora e do mercado de trabalho: o
racismo estrutural.
Como bem demonstrou Almeida (2018, p. 38) o racismo estrutural é histó-
rico, ideológico, político, econômico e atravessa todas as instituições brasileiras:
do Estado ao sistema judiciário. Ele “cria as condições sociais para que, direta ou
indiretamente, grupos racialmente identificados sejam discriminados de forma
sistemática” produzindo com isso desigualdade social em bases raciais. Portanto,
não se trata apenas de ícones culturais, mas sim estruturais na configuração de nos-
sa desigualdade e, sendo assim, de nossa questão social.
A invisibilidade da questão racial ainda destaca-se numa parte significati-
va dos estudos sobre a realidade brasileira, após os anos 1930, com o processo de
industrialização e o nascimento e consolidação da classe operária brasileira. E
isso se explica, segundo Guimarães (2012), porque os brasileiros acreditam que a
desigualdade racial no país é consequência da desigualdade de classe. Nesse sen-
tido, a melhoria das condições socioeconômicas dos(as) negros(as) representaria
o fim do próprio racismo. Em outro sentido, para alguns, tratar de discriminação
racial é anacrônico, tendo em vista já estar comprovado que não existem raças
humanas.Não é possível na realidade brasileira, responde o autor em destaque,
abstrair a categoria raça, mesmo sabendo que biologicamente ela não existe e
que se trata de um conceito social. Conforme enfatiza:
[...] “raça” é não apenas uma categoria política necessária para organizar
a resistência ao racismo no Brasil, mas é também categoria analítica indis-
pensável: a única que revela as discriminações e desigualdades que a noção
brasileira de “cor” enseja são efetivamente raciais e não apenas de “classe”
(GUIMARÃES, 2012, p. 50).

A história do Brasil é repleta de exemplos da relação raça e classe na do-


minação da classe trabalhadora. Todo o processo de “independência” que cul-
minou na formação de uma Monarquia e na manutenção da grande extensão
territorial do Brasil, não se dividindo em várias Repúblicas como no resto da
América Latina só foi possível, dentre outros fatores, por conta da necessidade
de se manter a escravidão – como afirma Gorender (2000) – e conter as rebeliões
negras e populares que estourariam como a Balaiada, Sabinada, Cabanagem e
tantas outras.
Assim sendo, não se pode negar que por quase 400 anos a população negra
trabalhou em diversos ramos da produção e circulação de produtos, inclusive,
sendo ela mesma uma mercadoria. Porém, como num passe de mágica, após
1888, a classe trabalhadora composta pela população negra foi considerada pre-
guiçosa, vadia e vagabunda, enquanto a população europeia foi transformada

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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

nos operários e embriões da classe trabalhadora no Brasil, tanto pelo Estado,


como por uma parte importante da intelectualidade brasileira. Moura (1995, p.
55) não teve dúvidas em afirmar que a história da classe trabalhadora no Brasil
ainda precisa ser escrita, pois:
Não temos uma história que conte como o povo brasileiro criou a história
trabalhando. Criando trabalho, querendo trabalho. Como ele lutou para
melhorar o trabalho, para se libertar praticamente de tipos cada vez mais
abusivos de trabalho. Ninguém fez a história do trabalho no Brasil. Temos
a história das ideologias, a história das religiões. Mas não como o trabalha-
dor se organizou, se compôs. Como ele lutou contra os níveis de explora-
ção sucessivos que apareceram.

O Estado, por meio de suas políticas governamentais, em especial depois


da constituição republicana, produziu uma série de instrumentos e ações que im-
peliram a população negra para marginalidade e impediram deliberadamente o
acesso dessa população ao mercado de trabalho, a um pedaço de terra e ao parco
sistema educacional existente. Nina Rodrigues, a título de exemplo, no fim do
século XIX e inicio do XX chegou a propor dois tipos de leis criminais: uma para
a população branca e outra para a população negra, pois ele dizia que sendo di-
ferentes e desiguais em intelecto, moral e condição de trabalho, as leis penais não
deveriam ser iguais para brancos e negros, pois em virtude de sua raça, a popula-
ção negra estava mais propensa para o crime e a vadiagem (SCHWARCZ, 2006).
Além disso, na República, as primeiras legislações trabalhistas e sociais
atingiam apenas quem estava no mercado formal de trabalho, em sua maior parte
imigrantes europeus, o que foi chamado de cidadania regulada. Para a maioria da
população brasileira negra, restou o mercado informal ou as cadeias públicas.
Essa política de embranquecimento do Brasil e marginalização da população
negra têm efeitos materiais e simbólicos até hoje na formação social brasileira.
O Estado, nas primeiras décadas do século XX, teve que intervir na ques-
tão social por meio de políticas públicas sociais, porém se restringiu às áreas
urbanas e alguns setores específicos da economia brasileira, dando preferência
aos trabalhadores já situados no mercado formal de trabalho e afastando-se dos
trabalhadores informais e do mundo agrário (SANTOS, 2012). Todavia, quem
estava no mercado informal de trabalho e no mundo agrário era justamente a
população negra. Dessa forma, comprova-se como o Estado, por meio inclusive
de suas políticas sociais, constrói todo um processo de marginalização negra.
Como ressalta Yazbek (1993, p. 20):
[...] em uma sociedade assentada na exploração de poucos sobre muitos,
como é a sociedade brasileira, as políticas de corte social, ao regularem as
relações sociais, não só favorecem a acumulação e oferecem bases para a
legitimação do Estado, como reproduzem a dominação. Do ponto de vis-
ta político, além de encaminhar para frentes menos conflitivas as relações

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

entre o capital e o trabalho, essas políticas têm o objetivo de estancar e mi-


nimizar as tensões sociais e manter as bases de apoio do Estado, conferindo
uma face mais humanitária ao capitalismo.

A população negra, por força de determinações históricas e ideológicas,


ocupou e ainda ocupa um lugar subalterno nos mais diversos setores da vida
social. Constatam-se omissões e lacunas presentes no tratamento da história, da
cultura, do trabalho e da resistência negra no Brasil e desinformações sobre o
continente africano. As muitas instituições culturais – escola, TV, rádio, cinema,
etc. - têm desempenhado um papel importante na reprodução de padrões e va-
lores eurocêntricos negando os referenciais históricos e culturais da população
negra brasileira
Com o mínimo de saúde, educação, esporte, cultura, direitos socais e em-
prego, uma parte considerável dessa população é impelida para as margens da
sociedade e com isso se torna alvo de políticas de encarceramento e genocídio.
Desde a chegada dos primeiros navios negreiros transportando africanos escravi-
zados para o território brasileiro que a história da população negra tem sido de
superar os obstáculos postos à sua existência.
Em vista disso, como expõe Dussel (2009), é necessário iniciar um proces-
so de descolonização, no sentido de fazer uma crítica ao ocultamento do ser colonial.
Mardonado-Torres (2009) alerta que parte significativa dos filósofos modernos
ocidentais ratifica suas raízes em termos geopolíticos bem específicos: a Europa.
A partir desse lócus econômico e cultural produz-se o esquecimento da colonialidade
e a noção de que não é possível existir sem as conquistas epistêmicas da Europa.
Essa colonialidade é marcada por um discurso de universalidade que de fun-
do se apóia numa específica localização geopolítica e isso implica no esqueci-
mento da experiência colonial e de seus povos, ou seja, no esquecimento do ser
colônia, isto é: na colonialidade do ser. Isso resulta no que Blaut (apud MALDONA-
TORRES, 2009, p. 351) denominou de mito difusionista do vazio que tem as se-
guintes características:
[...] Uma região não-europeia encontra-se vazia ou praticamente desabi-
tada de gente (razão pela qual a fixação de colonos europeus não implica
qualquer deslocação de povos nativos). A região não possui uma popula-
ção fixa: os habitantes caracterizam-se pela mobilidade, nomadismo, pela
errância (e, por isso, a fixação europeia não viola nenhuma soberania po-
lítica, uma vez que os nómadas não reclamam para si o território). As cul-
turas desta região não possuem um entendimento do que seja propriedade
privada – quer dizer, a região desconhece quaisquer direitos e pretensões à
propriedade (daí os ocupantes coloniais poderem dar terras livremente aos
colonos, já que ninguém é dono delas). A camada final, [...], corresponde
a um vazio de criatividade intelectual e de valores espirituais, por vezes
descrito pelos europeus [...] como sendo uma ausência de racionalidade.

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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

É inserido neste tipo de raciocínio que Caio Prado Jr. ao discutir o objetivo
de Portugal com a colonização do Brasil traz esta afirmação:
No seu conjunto, e vista no plano mundial e internacional, a coloniza-
ção dos trópicos toma o aspecto de uma vasta empresa comercial, mais
completa que a antiga feitoria, mas sempre com o mesmo caráter que ela,
destinada a explorar os recursos naturais de um território virgem em pro-
veito do comércio europeu. É este o verdadeiro sentido da colonização
tropical, de que o Brasil é uma das resultantes; e ele explicará os elementos
fundamentais, tanto no econômico como no social, da formação e evolu-
ção históricas dos trópicos americanos (PRADO JUNIOR., 1965, p. 25,
destaque nosso).

O autor em destaque reforça a ideia de que os europeus teriam vindo ex-


plorar um território virgem – erro que Prado Jr. comete também no livro História
Econômica do Brasil, publicado em 1945, ao dizer que as regiões tropicais eram
primitivas e vazias. Tais argumentações têm sido questionadas pelas atuais pes-
quisas sobre as populações indígenas no país, que tem demonstrado justamente o
contrário (CUNHA, 1992). Não obstante esses erros é certo que, no século XVI,
depois da invasão europeia, o território que viria a ser batizado futuramente com
o nome de Brasil foi alvo de uma política de ocupação e exploração que resultou
na inserção ao antigo sistema colonial e, portanto, no sistema-mundo que a épo-
ca se caracterizava pelo capitalismo comercial.
Assim sendo, inserido no quadro do antigo sistema colonial, fruto da ex-
pansão marítima e do desenvolvimento capitalista no continente europeu, a colô-
nia brasileira conforme Prado Junior (1998, p. 55) deveria ser “[...] uma simples
produtora e fornecedora de gêneros úteis ao comércio metropolitano e que se
pudessem vender com grandes lucros nos mercados europeus”. O objetivo de
Portugal com a colonização do Brasil era explorar o máximo possível de suas ri-
quezas em proveito próprio. “Esta se realizará em larga escala, isto é, em grandes
unidades produtoras – fazendas, engenhos, plantações [...] – que reúnem cada
qual um número relativamente avultado de trabalhadores (PRADO JUNIOR,
1965, p. 23).
Com a produção da cana-de-açúcar e a ocupação efetiva do território
brasileiro inaugurou-se o sistema produtivo de exploração, sendo o latifúndio,
a monocultura e o trabalho escravizado elementos essenciais para a diminuição
dos gastos e aumento dos lucros (NOVAIS, 2001). A grande extensão territorial
evitava gastos com fertilização e cuidados técnicos. A monocultura impedia o
crescimento da pequena propriedade desinteressante para metrópole; e, o traba-
lho escravizado se impunha por algumas razões, dentre elas a existência de um
tráfico ultramarino de escravos era o que mais justificava.
Conforme nos mostra Novais (2001), o tráfico de escravizados possibili-
tava enormes lucros à metrópole e isso determinou a substituição do trabalho

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

escravizado indígena pelo trabalho escravizado africano e, não uma suposta


inaptidão ao trabalho por parte dos indígenas ou mesmo as frustradas tentativas
de escravizá-los, pois como demonstra Cunha (1992) as populações indígenas,
no empreendimento da colonização, foram alvo de inúmeras configurações de
cerceamento, controle e exploração do trabalho, sendo a escravização indígena
utilizada de forma generalizada.
As riquezas que a coroa portuguesa e os comerciantes de escravizados
angariavam com o tráfico tornavam esta atividade, e por consequência o traba-
lho coercitivo africano, indispensáveis à dinâmica das relações entre metrópole
e colônia.
[...] o tráfico negreiro e a escravidão, como tributários do movimento de
expansão colonial europeu estão recheados de justificativas utilizadas para
caracterizar o africano como escravo e estabelecer como legítima a caça
humana que produziu na África durante vários séculos (SOUSA FILHO,
2004, p. 136).

Os europeus, nessa condição, utilizaram-se de variados argumentos (bio-


lógicos, religiosos, econômicos, etc.) para legitimar a exploração dos(as) africa-
nos(as) em terras brasileiras. Seguindo o mesmo raciocínio, Carneiro (1958) e
Moura (1988) ressaltaram que o(a) negro(a) passou a ser definido como inferior,
bárbaro, selvagem, assemelhado a um animal, simples instrumento de produção,
onde lhes foram retirados sua verticalização e humanização através da violência
física e psicológica. Essas concepções e práticas foram os pretextos necessários
para a utilização da mão-de-obra africana como escrava.
[...] a imagem do negro tinha de ser descartada de sua dimensão humana.
De um lado havia necessidade de mecanismos poderosos de repressão para
que ele permanecesse naqueles espaços sociais permitidos e, de outro, a
sua dinâmica de rebeldia que a isso se opunha. Daí a necessidade de ser ele
colocado como irracional, as suas atividades de rebeldia como patologia
social e mesmo biológica (MOURA, 1988, p. 23).

Durante a Colônia e o Império, a reprodução da força de trabalho e a


inculcação da ideologia dominante – ao contrário do que ocorreu na Europa
onde a educação e a cultura tiveram papéis fundamentais – eram exercidos pela
violência da Escravidão. O extermínio físico e mental fazia parte da estrutura
organizativa da sociedade. Não havia dissimulação, porém a legitimam de inú-
meras formas.
Na passagem do Império para a República, e da escravidão para o ca-
pitalismo dependente, outras formas de controle e extermínio para subsidiar a
exploração e opressão da população negra brasileira foram colocadas em prá-
tica. A nascente burguesia brasileira saindo do seio da elite latifundiária e es-
cravocrata redefiniu o ideário escravista visando à manutenção do seu poder e

170
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

marginalização da pessoa negra. Mesmo que nem todos os senhores escravistas


ou de engenho tivessem se tornado burgueses, é possível perceber que:
Essa porção de senhores rurais tendeu a secularizar suas idéias, suas con-
cepções políticas e suas aspirações sociais; e, ao mesmo tempo, tendeu a ur-
banizar, [...], seu estilo de vida, revelando-se propensa a aceitar formas de
organização da personalidade, das ações ou das relações e das instituições
econômicas, jurídicas e políticas que eram mal vistas e proscritas no passa-
do. Em uma palavra, ela aburguesou-se, [...] (FERNANDES, 1976, p. 28).

Não é por acaso que nas palavras de Florestan Fernandes, a burguesia bra-
sileira ao construir neste país um capitalismo dependente foi incapaz de conciliar
desenvolvimento econômico, soberania nacional e democracia. Em Florestan
Fernandes é possível apreender como a burguesia nacional nasceu sob a depen-
dência do capitalismo internacional. Percebemos, como nesse período de tran-
sição entre a Monarquia e a República, entre a ordem escravista e o capitalismo
dependente, a ratificação de uma estrutura oligárquica e latifundiária que co-
nectava claramente a função agro-exportadora do capitalismo nacional, frente à
ordem econômica mundial (SAMPAIO JUNIOR, 1999; FERNANDES, 1976).
Contudo, o fim da escravidão em 1888 e, por conseguinte da Monarquia,
e o inicio da República geraram uma série de instabilidades e incertezas sobre o
futuro do Brasil. A partir desse contexto, pensar o que seria o Brasil e quais polí-
ticas e ações deveriam ser tomadas para incorporar o país na rota do progresso e
do desenvolvimento tomaram proeminência nas discussões políticas e acadêmi-
cas que, até a primeira metade do século XX, demarcaram um ethos social para
o Brasil e sua população caracterizada pelas relações entre grupos étnico-raciais
diferenciados e miscigenados.
No pós-abolição a argumentação primeira é que a população negra não
se adaptaria sem controle, coerção e disciplina. Os intelectuais e adeptos dessas
argumentações se valiam de teorias raciais, supostamente científicas, produzi-
das na Europa que tiveram grande impacto nos centros de pesquisa, academia
e institutos que pensavam o território brasileiro. Entre as produções baseadas
no determinismo racial, que tiveram ressonância no Brasil, destacamos as de
Gobineau em 1853 e Le Bom no ano de 1894 que apontavam a miscigenação
com um problema civilizacional, enalteciam o que qualificam de tipos puros e,
com efeito, entendiam a miscigenação como um meio de degeneração. Tendo
grande assentimento entre os anos de 1870 e 1930 associavam as características
fenotípicas da população e do indivíduo à sua capacidade moral e intelectual,
utilizando-se de fundamentos biológicos (SCHWARCZ, 1993).
Essas teorias baseadas no determinismo racial alegavam que havia uma
diferença substancial entre as raças e que a superioridade da raça branca dava-
-se em virtude de sua maior inclinação à civilização do que a população negra.

171
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Nesse sentido, combinava-se raça, características físicas, valores e comportamen-


tos. A teoria evolucionista, que impôs pensar que uma sociedade saía de estágios
menos desenvolvidos e civilizados para estágios mais desenvolvidos, toma corpo
no Brasil consideravelmente até a metade do século XX.
Após a independência do Brasil em 1822, por exemplo, a mestiçagem sur-
gia como um atributo da nacionalidade pretendida. Projetava-se um país fun-
dado na mistura de negros, índios e europeus, na base de uma natureza rica
e pródiga, uma dádiva divina – um projeto romântico da nação brasileira. O
objetivo era, evidentemente, entre tantos outros: camuflar as hierarquias sociais
e raciais. De outro modo, surgiram também as teses que detectavam o perigo da
miscigenação e a barreiras que esta criaria para a instauração da cidadania. Nina
Rodrigues em 1888, como já apontamos, alegava que os seres humanos eram
desiguais e por isso haveria a necessidade da diferenciação da justiça, tendo em
vista que igualdade jurídica seria impossível já que o povo, por sua mestiçagem,
estava fadado ao fracasso e degeneração (AMARAL, 2011; ALBUQUERQUE;
FRAGA FILHO, 2006; SCHWARCZ, 2006).
Segundo Schwarcz (2006) as instituições da intelectualidade brasileira ti-
veram destaque nas reflexões e propostas políticas em torno dessa temática. Por
essa razão, as faculdades de direito do Recife e de São Paulo, que formavam a
intelligentsia nacional, partiram teorias da mestiçagem e a implementação delas.
As faculdades de medicina do Rio de Janeiro e da Bahia formaram os médicos
missionários e higienistas que estariam na linha de frente de uma visão preconcei-
tuosa em relação à população e o processo de formação da sociedade brasileira.
Essa intelectualidade propunha a eugenia, o combate a miscigenação; en-
fatizava que as doenças teriam vindo da África e que, por isso, teríamos um en-
fraquecimento biológico e moral. Não por acaso, mesmo um autor que está lon-
ge de representar e ser inserido nesta perspectiva do determinismo racial, como
Sérgio Buarque de Holanda, deixa escapar em sua obra prima, Raízes do Brasil,
publicado pela primeira vez em 1936, a seguinte afirmação:
Pioneiros da conquista do trópico para a civilização, tiveram os portugue-
ses, nessa proeza, sua missão histórica. E sem embargo de tudo quanto se
possa alegar contra sua obra, forçoso é reconhecer que foram não somente
os portadores efetivos como os portadores naturais dessa missão. Nenhum
outro povo do Velho Mundo achou-se tão bem armado para se aventurar à
exploração regular e intensa das terras próximas á linha equinocial, onde
os homens depressa degeneram, segundo o conceito generalizado na era
quinhentista, [...] (HOLANDA, 1999, p. 43).

Em outras palavras, não apenas atribui aos europeus, no caso específi-


co o português, a missão civilizatória, desconsiderando a priori as populações
indígenas, como inflige ao território brasileiro a condição de degenerar os que
aqui habitam. Essa caracterização é seguida de outra, bem mais problemática,
172
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

que tem sido objeto de variadas críticas e pesquisas confirmando o contrário. A


afirmação segundo o qual, a conquista europeia, na figura dos portugueses, teria
sido mais flexível e menos dura, sendo assim, mais acolhedora e sem desarmonia
racial. Isso resultaria numa completa ausência de orgulho racial e, portanto, de
clivagens marcadas pela discriminação e preconceito. O português por ser já um
mestiço, segundo Holanda (1999, p. 55) não se assegurou no princípio da hierar-
quia e da discórdia racial: “Com freqüência as suas relações [dos escravizados]
com os donos oscilavam da situação de dependente para a de protegido, e até de
solidário e afim.”
Nesta perspectiva, Sérgio Buarque Holanda se encaixa na seguinte argu-
mentação de Chauí (2013, p. 23):
Na ideologia do “caráter nacional brasileiro”, a nação é formada pela
mistura de três raças – índios, negros e brancos – e a sociedade mestiça
desconhece o preconceito racial. Nessa perspectiva, o negro é visto pelo
olhar do paternalismo branco, que vê a afeição natural e o carinho com
que os brancos e negros se relacionam, completando-se uns aos outros,
num trânsito contínuo entre a casa grande e a senzala. Na ideologia da
“identidade nacional”, o negro é visto como classe social, a dos escravos,
e sob a perspectiva da escravidão como instituição violenta que coisifica o
negro, cuja consciência fica alienada e só escapa fugazmente da alienação
em momentos de revolta.

Essas formulações, com variadas matizes teóricas, têm nos intelectuais e


políticos do fim do século XIX e início do século XX grandes difusores. Para
tais pensadores, a miscigenação e, portanto, a mistura racial fazia nascer um
ser degenerado e incapaz mentalmente: o mulato. Sendo assim, a miscigenação
deveria ser estancada numa nação que se pretendia ser civilizada e saudável.
Em argumentação contrária, mas com a mesma finalidade, outro discurso desse
período incentivava a miscigenação, mas o objetivo era embranquecer a popu-
lação brasileira para a garantia da civilização. Isto é, ratificamos, um projeto de
embranquecimento da nação passou a fazer parte do repertório político e cultu-
ral da formação da sociedade brasileira e se materializou em inúmeras políticas
públicas.
Daí os investimentos na imigração de trabalhadores europeus e as barrei-
ras para a vinda de africanos, bem como todas as políticas e práticas de persegui-
ção à cultura negra como o samba, as religiões de matriz africana e a capoeira.
Prado Junior (1998, p. 260, destaque nosso) dirá: “A imigração concorrerá com a
habilitação técnica do trabalhador europeu, muito superior ao nacional recém-e-
gresso da escravidão ou estados similares”. Mais recentemente diz Santos (2012,
p. 140, destaque nosso): “Os conflitos entre capital e trabalho se notabilizam [...]
a partir da chegada dos imigrantes europeus, que trouxeram consigo sua tradição
organizativa e sindical”

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Todavia, hoje sabemos que esse tipo de análise deve ser relativizada e que
a população negra no Brasil, desde o começo da escravização, possuía uma sé-
rie de profissões e graus variados de educação. Trabalhavam em muitos setores
da produção e, portanto, em muitas ocasiões tinham as condições técnicas para
assumir postos de trabalhos depois da abolição oficial em 1888. E mesmo tendo
conhecimento que muitos negros não sabiam operar máquinas, os imigrantes
europeus, também, em seu conjunto não tinha essa habilidade.
Nessa direção, se faz necessário pensar a especificidade do racismo em
nosso território e de como a população negra foi incorporada nesse projeto de
formação da sociedade brasileira, pautada em um ideal de desenvolvimento, ci-
vilização e progresso.
[...] os projetos nacionais no Brasil desde a implantação da primeira repú-
blica caminharam no sentido de institucionalizar o racismo, tornando-o
parte do imaginário nacional. Ou seja, o Brasil é um típico exemplo de
como o racismo converte-se em tecnologia de poder e modo de internalizar
as contradições (ALMEIDA, 2018, p. 67. destaque do autor).

Diferente do que se praticava em outros países, com a institucionalização


da supremacia branca, por meio da segregação rígida, a classe dominante bra-
sileira, em sua maioria, pensava a solução para o problema negro do ponto de
vista da eugenia. Interessada na construção da unidade e da identidade nacional,
ameaçada pelos grupos étnico-raciais diferentes e hierarquizados, a miscigena-
ção apareceu como uma plataforma para o branqueamento do povo brasileiro,
diferente do racismo diferencialista de outras nações que buscavam a absoluti-
zação da diferença por meio de práticas segregacionistas. No caso do Brasil, o
racismo seria do tipo assimilacionista, ou seja, marcado pela incorporação das
diferenças étnico-raciais e culturais em torno de uma identidade nacional única
(MUNANGA, 1999).
A partir da década de 1930 – considerada por muitos um marco de nossa
industrialização e modernidade – foi uma baliza importante desse tipo de pen-
samento e política. Mesmo que as teorias raciais tenham perdido fôlego na aca-
demia, ganharam as ruas e o cotidiano das pessoas. Neste período, fortaleceu-se
uma positivação da mestiçagem, por meio do mito das três raças. Gilberto Freire
com Casa Grande e Senzala, publicado na década de 1930, não teve dúvidas em
afirmar a mestiçagem como o grande caráter nacional que influenciaria decisiva-
mente na formação biológica da população, mas também na produção cultural.
Ele deu as bases para o que viria a ser denominado o mito da democracia racial
(SCHWARCZ, 2006).
A começar pela década de 1930 tem-se uma busca pela homogeneização
dos mercados, da composição racial do povo brasileira e da cultura. É nesse
contexto que o termo raça, em sentido biológico, vai perder força na explicação

174
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

da realidade brasileira. Para explicar a vontade de homogeneidade nacional e


ao mesmo tempo as contribuições dos diversos povos para a cultura nacional
se erigiu o conceito de democracia racial (GUIMARÃES, 2012). Normalmente
essa política, que envolve a questão racial, empreendida pelo Estado brasileiro e
legitimada por diversos intelectuais no período é esquecida por boa parte dos que
discutem políticas sociais no país, que passaram a periodizar o pós 1930 como
a década que marcaria a origem da questão social no Brasil e a intervenção do
Estado no enfrentamento dessa questão, mas que pouco ou nada analisaram as
relações étnico-raciais.
Guimarães (2012, p. 55) entende a “democracia racial” brasileira como
uma ideologia historicamente datada, materializada em práticas sociais, em polí-
ticas estatais e em discursos literários e artísticos”. Entre 1930 e 1970 a ideologia
da democracia racial prevaleceu em nosso país, com pontuais contestações e an-
corada numa política de Estado que buscava invisibilizar a questão negra como
algo importante. Somente a partir de 1970 passaria a sofrer uma série de críticas,
principalmente do novo movimento negro organizado, ainda no processo de re-
democratização do Brasil.
No plano da ideologia se configurava a seguinte situação – na medida
em que a população negra intensificava suas ações em busca da liberdade e da
construção de outra estrutura societal; a necessidade de conter essa resistência e
a urgência, portanto, em construir um padrão de pensamento e consenso que evi-
tasse os conflitos raciais que, no caso brasileiro era, também, conflitos de classes
– pois, a divisão de social do trabalho era divisão racial – fez surgir um aparato
ideológico que buscava explicar a identidade nacional brasileira, por meio das
relações harmoniosas entre as raças.
Não é por acaso, que os abolicionistas que mais tem destaque na história
do país, são aqueles que defendiam uma transição legalista, integracionista e
reformista ao sistema dominante dos brancos e latifundiários, em detrimento de
outros setores que defendiam ações mais profundas de transformação da reali-
dade (AZEVEDO, 1994). É, dessa forma, como dissemos, que duas ações, ini-
cialmente, surgiram para “solucionar” o problema: a política de branqueamento
e a ideia de democracia racial devidamente articuladas à questão de classe para
manter a dominação sobre a população negra e dinamizar a estrutura capitalista
da formação social brasileira.
A ideologia do branqueamento posta em prática com o incentivo dado
aos imigrantes europeus e a busca, a partir deles, de tornar o Brasil um país
branco foi “[...] uma tática para desarticular ideologicamente e existencialmente
o segmento negro a partir de sua auto-análise” (MOURA, 1983, p. 126). Em
outras palavras, numa sociedade competitiva, a divisão racial do trabalho duran-
te a escravidão seria substituída pela “competição democrática” da sociedade

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(O rganizadores )

capitalista. Tal pensamento escamoteia a construção histórica do país e vira as


costas à condição da população negra durante essa formação. Essa “competi-
ção democrática” consubstanciada no mito da democracia racial “desarticula a
consciência do negro brasileiro” (MOURA, 1983, p. 127), pois o mesmo se veria
como incapaz frente ao sucesso profissional do(a) branco(a).
A população negra seriam suprimidas as oportunidades de trabalho, re-
servadas ao segmento branco nativo e aos imigrantes europeus, disto resultando
uma divisão de funções na sociedade brasileira, restando ao segmento negro po-
sições sociais inferiores ou rejeitadas pelos/as brancos/as. Por outro lado, esta
população negra marginalizada seria utilizada como fator de barganha para a su-
perexploração do(a) trabalhador(a) branco(a), haja vista formarem um exército
industrial de reserva denso e preparado, pois a população negra na história deste
país sempre ocupou inúmeras funções na máquina produtiva brasileira. Como se
percebe, raça e classe estão articuladas na dominação da classe trabalhadora no
país. Portanto, frente às evidentes diferenças sociais e econômicas entre os três
grupos étnico-raciais formadores deste país foram construídos mecanismos ideo-
lógicos de subordinação e consenso da população marginalizada.
O mito da democracia racial como forma de ocultar tais desigualdades
(MOURA, 1983), conferiria, então, à sociedade brasileira um padrão de solida-
riedade entre os grupos étnico-raciais que anularia qualquer forma de racismo
e discriminação presentes em outros territórios. Isto posto, as diferenças raciais
e econômicas seriam responsabilidade do indivíduo, ou seja, de sua capacidade
intelectual e moral para conquistar mobilidade e ascensão econômica. Isso tem
repercussões sérias na auto-estima da pessoa negra que passa a se perceber como
inferior e intelectualmente incapaz. A suposta democracia racial, dessa forma,
gerou efeitos no plano material e subjetivo que alocou e continua reservando
lugares privilegiados para uma parcela mínima da população e subalternos para
os descendentes de africanos no Brasil.
Albuquerque e Fraga Filho (2006) afirmam que a idéia de democracia ra-
cial, já em construção no Brasil por volta de 1920, ganhou nas décadas seguintes
mais adeptos. Ao longo das décadas de 1930 e 1940 essas idéias de mestiçagem e
de democracia racial foram entrelaçadas na construção de uma identidade nacio-
nal. Nesse movimento, samba, capoeira e candomblé foram aos poucos incorpo-
rados como símbolos de nacionalidade, expressões da síntese cultural própria ao
Brasil. Essa noção de identidade nacional pressupunha que tínhamos uma cultu-
ra homogênea e singular, resultado da miscigenação racial. Como discorre Ortiz:
A ideologia do Brasil-cadinho relata a epopéia das três raças que se fun-
dem nos laboratórios das selvas tropicais. Como nas sociedades primitivas,
ela é um mito cosmológico, e conta a origem do moderno Estado brasi-
leiro, ponto de partida de toda uma cosmogonia que antecede a própria

176
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

realidade. [...], e na é difícil constatar que essa fábula é engendrada no mo-


mento em que a sociedade brasileira sofre transformações profundas, pas-
sando de uma economia escravista para outra de tipo capitalista, de uma
organização monárquica para republicana, e que se busca, por exemplo,
resolver o problema da mão-de-obra incentivando-se a imigração europeia
(ORTIZ, 1994, p. 38).

Teria se constituído um racismo mestiço e cordial, onde cada brasileiro,


sendo uma ilha de democracia racial, está circundado por racistas de todos os la-
dos (SCHWARCZ, 2006). Daí Munanga (1999) considerar que o mestiço passou
a ser encarado como uma ponte que fundaria a nacionalidade brasileira. Por essa
razão, o mito da democracia racial ganha força, pois sendo misturados desde a
origem, não seríamos racistas. Repousaria aí, a originalidade do racismo brasilei-
ro, que foi competente em reforçar uma sociedade desigual e racista, sem grandes
conflitos aparentes, como existiria em outras sociedades.
Nesse sentido, conforme Munanga (1999), analisando a produção de parte
da elite intelectual do fim do século XIX, desenvolveu-se um tipo de racismo uni-
versalista marcado pelas seguintes características: assimilação dos membros dos
grupos étnico- raciais diferentes; negação absoluta da diferença; ideal implícito
de homogeneidade; destruição da identidade racial e etnocídio.
A questão Étnico-Racial, como vimos, esteve sempre associada à consti-
tuição civilizacional do país e dentro dessa perspectiva, a população negra foi
apresentada como entrave a uma possível ordem que garantisse o progresso.
Nesse sentido, a diferença étnico-racial se transformou em instrumento para o
estabelecimento de desigualdades sociais e políticas de violência contra a popu-
lação negra.
Deste modo, quando falamos de violência no Brasil, em especial, é a ju-
ventude negra armada e cometendo assaltos e homicídios que aparece nos canais
de comunicação e difusão da opinião pública. Essa é a aparência da violência
que foi construída em nosso país. A violência tem cor e tem rosto para a grande
maioria da população brasileira. E isso não é por acaso, pois temos um projeto de
nação, construído historicamente, que alicerçado no racismo e em outras formas
de discriminação fez com que nossa percepção de violência fosse extremamente
limitada e vinculada explicitamente a um individuo determinado: o jovem negro.
No entanto, se olharmos mais de perto, pode se comprovar que a realidade
nos mostra outra face. Ao invés de criminosos naturais do Brasil, a juventude
negra é que tem sido vitima de um projeto de genocídio histórico. O Estado
capitalista brasileiro, em diferentes contextos, tem desenvolvido uma política de
genocídio da juventude negra que tem raízes na escravidão e que se funda teo-
ricamente com o nascimento da República, que associa princípios escravistas
remanescentes da Colônia e do Império com o discurso raciológico, capitalista e
eugenista do período republicano.
177
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

A política era precisa e habilmente manobrada para conquistar neutrali-


dade e legitimidade. A equação era e continua simples, mas refinada. Violam-se
muitos direitos: educação, saúde, esporte, direitos sociais, trabalho, lazer; depois
se conduz para a marginalidade; retira-lhes a identidade étnico-racial, o nome,
a história, as referências históricas, a dignidade e os renomeia: bandidos. Logo
após: mata-se, encarcera-se e marginaliza-se. Uma política que tem história e que
se renova; que tem múltiplas causas e justificativas; que tem diferentes contextos
e territórios. Mas o resultado final é sempre o mesmo: o genocídio negro. E de-
pois disso tudo, se culpa as vítimas pelo seu extermínio. No passado, porque não
queriam trabalhar, porque eram inferiores, bestiais e preguiçosos; no presente,
porque são usuários de drogas, malandros e traficantes.
Evidente que a violência também se expressa no desemprego, na deficiên-
cia de habitação, lazer, educação, saúde, trabalho entre outros processos de ca-
rência de bens materiais e culturais. Mas, notadamente, esses mecanismos de
exploração e opressão pouco são vistos como práticas de violência contra a po-
pulação negra. Entretanto, esse modelo de formação da sociedade brasileira e
a questão social no Brasil, pautada pela questão racial, não foi edificado sem
resistência da população negra.

EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E A LUTA DA


POPULAÇÃO NEGRA POR DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICOS

A problemática da diversidade no Brasil, embora apareça nas discussões


educacionais nos anos 1990, é antiga, acompanha a história de lutas por inserção
cidadã na sociedade, empreendidas por indígenas, negros, sem-terra, empobre-
cidos, outros marginalizados pela sociedade. No Brasil esses grupos populacio-
nais são designados como “minorias inúteis” e sem identidade. O ocultamento
da diversidade no Brasil vem reproduzindo, tem cultivado, entre índios, negros,
empobrecidos, o sentimento de não pertencer à sociedade. Visão distorcida das
Relações Étnico-Raciais vem fomentando a ideia de que vivemos harmoniosa-
mente integrados, numa sociedade que não vê as diferenças. Considera-se demo-
crático ignorar o outro na sua diferença.
Didaticamente uma forma de trabalhar esse ocultamento da diversidade,
é levar para a sala de aula o conceito de brasileiro cordial, que trata todos com
igualdade, ignorando deliberadamente as suas nítidas e contundentes diferen-
ças. Sérgio Buarque ao discutir o ethos nacional, apresenta a relação dialética da
sociedade brasileira. Para o autor, o homem cordial seria a chave analítica para
compreender como certos setores da sociedade resistem à diversidade.
Nesse sentido, nos referenciamos na concepção de identidade assumida
por Bernd (1987) e Munanga (2000), na qual é pensada por ambos como um

178
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

conceito político e não cultural, mesmo que ocorra a partir de um resgate da


cultura e história da população negra. O Movimento negro nessa direção deve
desenvolver, no nosso entendimento, o que Petras (1995, p.123) qualifica de “luta
cultural”, isto é, um combate contra as formas de opressão e exploração da socie-
dade capitalista e desestruturação urbana, assentado “[...] nos valores de autono-
mia, comunidade e solidariedade necessários para criar uma consciência capaz
de realizar transformações sociais [...]” numa luta contra-hegemônica. Em outro
sentido e complementar, destacamos a compreensão de Pratt (1999) segundo
a qual a constituição da identidade étnico-racial no interior de uma concepção
que leva em conta a luta de classes é fundamentalmente importante. Em suas
palavras:
Política de identidade no sentido de conscientização de uma forma parti-
cular de opressão por um grupo imediato pode ser um ponto adequado de
partida. Este entendimento, contudo, tornar-se-á uma prisão de “identida-
de” (raça ou gênero) isolada dos outros grupos sociais explorados, a me-
nos que transcenda os pontos imediatos de opressão e confronte o sistema
social no qual está mergulhado. E isso exige uma análise de classe mais
ampla da estrutura do poder social que preside e define as condições, tanto
das desigualdades gerais quanto das específicas (PRATT, 1999, p. 24).

Se o Estado capitalista e seus ideólogos, no entanto, serviram para frear


diversas conquistas; em contraponto, colocaram na ordem do dia para os movi-
mentos sociais negros a necessidade da organização e da luta por mais direitos,
pois se perceberam conscientes da importância que tem a promoção e desen-
volvimento de políticas públicas por parte do Estado, no sentido de combater o
racismo, e que são necessárias as conquistas no campo democrático como forma
de garantir avanços nos direitos sociais dos trabalhadores.
É nesse contexto histórico e social que os movimentos sociais negros agi-
ram e agem buscando promover a igualdade de direitos e condições sociais para
a população negra. Entre avanços, limites e contradições, a luta do movimento
social negro se constitui hoje – no contexto do neoliberalismo e da globaliza-
ção – em importante instrumento para se pensar a questão social no Brasil e as
Relações Étnico-Raciais. É o que faremos a seguir.
Após a abolição da escravidão, os africanos e seus descendentes tiveram
de enfrentar o difícil acesso ao mercado de trabalho livre, a discriminação e a
exclusão racial. Diante desses novos obstáculos, os negros não abateram, orga-
nizaram-se em associações políticas e culturais, que deram origem a um forte
movimento em torno da identidade negra.
A ideia de raça, que remete à aparência física e à região de origem, está na
base do preconceito, que pode tanto se referir a uma marca, como a cor, quanto
a uma origem, como o continente africano. No Brasil, o preconceito de marca,
isto é, com relação à cor da pessoa, é o mais evidente, ao passo que nos Estados
179
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Unidos o preconceito de origem é o que predomina, uma vez que os descenden-


tes de negros que têm aparência de brancos são considerados negros.
Nesse sentido, a introdução das temáticas em destaque interfere de modo
direto não apenas na construção da memória e na cultura históricas, mas na
consciência histórica a ser desenvolvida pela escola. Ela, desde onde percebe-
mos, propõe uma cisão entre a memória consagrada pela tradição, cristalizada
no Mito das Três Raças, e aquela a ser trabalhada a partir da execução do atual
corpo legislativo. O ensino das relações étnico-raciais propõe outras narrativas,
de modo a desconstruir o paradigma europeu de currículo, intervindo assim na
construção da memória, no entanto, ela altera a forma pela qual a consciência
histórica passa a ser construída na escola.
Assumimos, então, que a escola cumpre um papel relevante na conforma-
ção e na consciência histórica. É na escola que crianças e adolescentes travam
contato com a narrativa consagrada sobre a conformação da sociedade brasilei-
ra, por meio da seleção de fatos, processos e interpretações realizada pela pro-
dução historiográfica, pela literatura didática e pelo saber docente. Diante disso,
a escola é o espaço privilegiado para o embate correto e desmistificado sobre a
formação e identificação vinculadas à nacionalidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Considera-se que a Educação para a diversidade Étnico-Racial, e as in-


dagações que ela traz aos processos de formação e esclarecimento que ela traz
a toda comunidade escolar, poderá ser um dos caminhos para a redução das
desigualdades e para a construção de subjetividades mais democráticas. Para su-
perar o ocultamento em que vivem as minorias neste país, precisamos ultrapassar
estereótipos e extinguir preconceitos.
É por meio da educação das Relações Étnico-Raciais que podemos tratar
das experiencias educativas e culturais entre os povos indígenas, quilombolas e
habitantes de outros terrítorios negros. Somente assim, descobriremos que cor-
pos negros, brancos, indígenas, mestiços, doentes, sadios, gordos, magros, com
deficiências, produzem conheceimentos distintos, todos igualmente himanos e,
por isso, ricos em significados. Precisamos indicar mudanças nos currículos dos
cursos de licenciatura e de pedagogia, numa perspectiva emancipatória e inclu-
siva, as disciplinas de História da África e Relações Étnico-Raiciais devem ser
obrigatórias em todas as instituições e cursos. Precisamos ainda realizar ainda
uma mudança epistemológica no currículo do livro didático da escola pública.
A Educação das Relações Étnico-Raciais é sempre interdisciplinar, sem-
pre na pluralidade, assim cabe a todos os professores a tarefa de reconstruir os
saberes, de promover o diálogo, de quebrar preconceitos e eliminar estereótipos.

180
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

É em sala de aula, e por meio da vinculação entre o conhecimento teórico e a


vida prática dos estudantes na sociedades, que podemos lutar por nação justa e
igualitária, sem desgualdade, sem racismo e sem morte em massa da população
negra – genocídio este que ocorre diarimente. O percurso da cidadania no Brasil,
como não poderia deixar de ser, seguiu os rumos da história do país. Um país que
se tornou independente com a maior parte da população excluída dos direitos
civis e políticos e sequer mobilizada por um sentido de nacionalidade.

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E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

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183
ENSINO DE HISTÓRIA E AS RELAÇÕES ÉTNICO-
RACIAIS: SABERES E FAZERES NA ESCOLA
QUILOMBOLA MARIA ELOISA BATISTA
Rafaela Matos de Santana Cruz 1
Letícia Fumiko Kudo2

INTRODUÇÃO

A escrita, ferramenta poderosa, essencial para o desenvolvimento e orga-


nização da sociedade vem, ao longo dos anos, transformando-se. Fez-se também
instrumento potente para lutas, resistências, insurgências. É através da escrita
que tantas meninas, pretas, suburbanas, lutam para escreviver3 suas histórias, de
sujeitas que foram – e ainda são - invisibilizadas pela sociedade. Ao escrever, re-
siste-se a um estado genocida, a necropolítica, que violenta, oprime, inferioriza,
marginaliza, mata e deixa morrer negros, gays, mulheres, e tantas outras diversi-
dades que fogem à regra, à norma, à moral e bons costumes dos homens de bem.
Por isso escrevemos, por uma educação antirracista, acompanhada de vo-
zes ancestrais silenciadas pela colonialidade, a partir do lugar de (re)existência
– enquanto mulheres, negras, interioranas, alunas de escola pública, filhas de
agricultores semianalfabetos, fruto das cotas e do Programa de Financiamento
Estudantil (FIES), que veem na educação uma das poucas oportunidades para
mudar de vida. Escrevemos como forma de reverberar a luta, não apenas de
quem se pronuncia, mas daqueles que também silencia. Partindo deste lugar, esta
escrita é fruto do desenvolvimento de pesquisa de mestrado de uma das autoras,
Rafaela Mattos, sobre o ensino de História em comunidade quilombola.
Com o pensamento nos problemas estruturais de nossa sociedade, calca-
dos nas lógicas colonialistas, a pesquisa tem como tema de estudo o ensino de
História que é tecido no chão da Escola Municipal Maria Eloisa Batista Santos,

1 Mestranda em Educação pela Universidade Tiradentes (Unit/PPED/SE). Formada em


História (Unit-Aracaju). E-mail: [email protected].
2 Mestra em Educação pela Universidade Tiradentes (Unit/PPED/SE). Pós-graduada em
Psicopedagogia pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Formada em História
pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail: leticiakudo.tl@gmail.
com
3 O uso do termo escreviver neste texto faz referência ao termo escrevivência da autora negra
Conceição Evaristo (2017). Escrevivência, por sua vez, refere-se à escrita de mulher negra.
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

localizada na comunidade quilombola Sítio Alto, no município de Simão Dias–


SE. A comunidade teve seu reconhecimento quilombola pela Fundação Cultural
Palmares no ano de 2014. O interesse e incentivo pelo reconhecimento quilom-
bola tornou-se mais presente depois de um projeto desenvolvido dentro da escola
da comunidade, com jovens e adultos, promovido pelo Mova-Brasil4, o qual foi
realizado entre os anos de 2011 a 2013.
A ancestralidade da população do Quilombo Sítio Alto é fruto de povos
que foram escravizados em uma fazenda da região chamada Rio dos Negros.
Atualmente, cerca de 112 famílias moram na comunidade, o que corresponde
a 505 habitantes. Por muitos anos, a comunidade foi associada a “coisas ruins”
por ser composta, em sua maioria, por pessoas negras. Os moradores até hoje
são alvos de discriminação racial. Antes de se chamar Sítio Alto, a comunidade
recebeu vários nomes: Alto da Moléstia, Alto do Cacete, Alto dos Pompons e
Alto do Cruzeiro.
A escola na comunidade, oferta ensino fundamental e tem 260 alunos ma-
triculados, entre os turnos matutino, vespertino, e noturno, sendo este último
voltado para a modalidade da Educação de Jovens e Adultos (EJA). A equipe
diretiva e pedagógica conta com uma diretora e mais dezenove professores. Por
se tratar de uma escola de educação básica dos anos iniciais, pesquisar os faze-
res e saberes que são desenvolvidos se faz necessário e urgente no que tange a
“compreensão da dinâmica e construção da identidade quilombola, bem como
as implicações geradas nas comunidades a partir de seu reconhecimento como
comunidade remanescente” (SILVA, 2016, p. 12).

PENSANDO A EDUCAÇÃO QUILOMBOLA – QUESTÕES DE


PESQUISA

Confluimos com o pensamento da socióloga Daniela Santos Silva (2016),


sobre a importância em se trabalhar questões identitárias nas escolas, sobretudo
em escolas de comunidade quilombola. No entanto, desenvolver projetos com
as crianças nesses espaços educacionais, deve ir muito além de planejamentos
que objetive apenas rodas de conversas sobre identidade. Há que se compreender
como as identidades atravessam o fazer/ensinar História e as relações étnico-
-raciais, tendo em vista os processos de gestação do planejamento ao nascer das
práticas.
Para tanto, é importante compreender os processos de (des)construção
do ensino de História na Escola Municipal Maria Eloisa Batista Santos, de

4 Criado por Paulo Freire, em São Paulo, na gestão de Luiza Erundina, o projeto MOVA-
-Brasil procura seguir um caminho educativo que proporcione aos educandos envolvidos
irem além do domínio da leitura e escrita. (SILVA, 2017, p. 86)
185
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

educação escolar quilombola; analisar intencionalidades pedagógicas no fazer/


ensinar história no chão da escola; identificar, a partir das falas das crianças,
como as relações étnico-raciais se constituem, considerando seus processos de
construção identitária.
Com as lentes ajustadas para perceber as colonialidades que ainda se fa-
zem presentes em nosso ser, saber, fazer, é que apostamos na epistemologia de-
colonial como ferramenta de luta, de combate, de ação política, de desconstru-
ção para reconstruir um saber/fazer outro, coletivo, em constante diálogo com
a comunidade.
A problemática central para a pesquisa, em desenvolvimento, está enfin-
cada em torno da compreensão e desmistificação de questões sobre identidade
negra. Nesse sentido, questionamos: como as identidades atravessam os saberes e
fazeres do ensino de história e das relações étnico-raciais, tendo em vista os pro-
cessos de gestação do planejamento ao nascer das práticas na Escola Municipal
Maria Eloisa Batista Santos, de educação escolar quilombola? Como o fazer/
ensinar história, que é tecido no chão de uma escola quilombola, ultrapassa a co-
lonialidade sobre a questão da identidade negra? Como se (des)constrói o ensino
de História na escola quilombola? Por meio de quais práticas? Como as relações
étnico-raciais se constituem no chão dessa escola?
O pressuposto central da pesquisa circunscreve-se em torno da potência
das identidades e do ensino de história por acreditar que um quilombo se faz
quilombo e resiste como tal pela força das identidades – com todos os conflitos
e contradições, próprios desse processo de construção. Assim, ensinar História
possibilita a construção de um saber significativo, identitário, posto que conhecer
as trajetórias históricas, inclusive a do quilombo Sítio Alto, é apossar-se a própria
história. Isso pode despertar, nos alunos e alunas, a produção de saberes e faze-
res e a própria familiarização com várias problemáticas que envolvem histórias
outras.
Por ser uma escola dentro do território quilombola, questiona-se também
quais estratégias são desenvolvidas entre comunidade e escola para o fortaleci-
mento dessas identidades. Como as identidades, nos processos dinâmicos e con-
flituosos que marcam as suas construções, atravessam as relações entre escola e
comunidade? Por que, além do trabalho com as crianças, é preciso trabalhar com
os pais, estes que estão em processo de formação da sua própria identidade e do
seu próprio reconhecimento como quilombolas?
A potencialidade de ensinar história visando a oferecer um saber significa-
tivo, que possibilite conhecer as trajetórias históricas, inclusive as da Maloca5 e
do Sítio Alto, é conhecer a própria história. Isto desperta no aluno a curiosidade

5 Comunidade quilombola localizada em Aracaju/SE. É o segundo quilombo urbano ofi-


cialmente reconhecido no Brasil.
186
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

e a familiarização com várias problemáticas que envolvem a história, em geral, e


a história do Brasil como estado-nação.
Pensando uma educação antirracista que seja múltipla e possibilite espa-
ços de falas outras, é que optamos por desenvolver uma pesquisa de caráter qua-
litativo, do tipo etnográfico como procedimento Metodológico. Segundo André
(1995, p. 24), a etnografia é um “esquema de pesquisa desenvolvido pelos an-
tropólogos para estudar a cultura e a sociedade. Etimologicamente, etnografia
significa “descrição cultural”. Por isso é importante a utilização desse tipo de
metodologia para a compreensão do objeto investigado.
A partir de visitas técnicas à Escola Quilombola Municipal Maria Eloisa
Batista Santos, no quilombo rural do Sítio Alto em Simão Dias/SE, será feita
a observação participante nas atividades realizadas em duas turmas no turno
vespertino. Assim, será possível observar quais ações são desenvolvidas para tra-
balhar as questões que envolvem a identidade e a cultura negra na formação das
crianças. Para a coleta de dados, serão utilizados roteiros, respeitando sempre as
questões culturais e sociais.
Conforme André (1995, p. 34), as entrevistas semiestruturadas tem ob-
jetivos de “[...] descrever as ações e representações dos seus atores sociais, re-
construir sua linguagem, suas formas de comunicação e os significados que são
criados e recriados no cotidiano do seu fazer pedagógico”. As ferramentas da
pesquisa de tipo etnográfica possibilitam a escuta sensível das experiências que as
crianças e professores tem na escola e são fundamentais para “perceber os alunos
e professores como produtores de conhecimentos, com saberes, com sensibilida-
des, diferenciados dos meus” (PAIM, 2005, p. 62).
Deste modo, com o pensamento na escuta sensível, realizamos na escola
quilombola Maria Eloisa Batista dos Santos entrevistas semiestruturadas e ob-
servação participante nas turmas do 4º e 5º anos com crianças de 8 a 12 anos
de idade. Quanto ao público adulto, participou as professoras e a diretora. A
observação participante aconteceu no período de um ano, dois dias por semana
e em outros eventos que a escola organizou. As falas dos sujeitos entrevistados
foram gravadas, com o auxílio de um gravador de áudio, pensadas e dialogadas
com referencial teórico adotado.
Ciente de que os procedimentos de coleta e análise dos dados exigem cui-
dados éticos que compreendem o bem-estar dos participantes da pesquisa, bem
como a garantia da autonomia, privacidade e confidencialidade dos mesmos
(posto que expuseram o seu cotidiano em relatos de experiências pessoais), a
participação na pesquisa contou com a assinatura do Termo de Consentimento
Livre pelos professores e corpo diretivo da escola e pelos pais dos alunos.
O uso dessa metodologia possibilita dialogar com os sujeitos, fazer análise
de informações, exercendo uma escuta sensível de vozes que por tanto tempo

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(O rganizadores )

foram e ainda são deixadas às margens, imersas em uma educação colonizadora


que não respeita os corpos, saberes e fazeres dos povos negros, e que tem o racis-
mo estruturado nas entranhas da formação do estado.

FIGURA 1: fluxograma contendo uma síntese da metodológica

Fonte: Elaborado pela autora (2020), com base na metodologia de pesquisa

Enfatizamos que esta pesquisa não teve pretensão apenas investigar o ensi-
no de história que é desenvolvido dentro de uma escola quilombola, mas apren-
der com os sujeitos da comunidade, no seu cotidiano escolar, os significados do
fazer/ensinar história, das suas vivências e, consequentemente, o processo de
construção da identidade. Nesse sentido, será pertinente estabelecer diálogos,
potencializar a voz das crianças para que rememorem experiências vividas, nar-
rem seu cotidiano e possibilitem a compreensão da identidade na sua fluidez e
dinamicidade.

A TECITURA DO ENSINO DE HISTÓRIA

A história, como componente curricular, foi pautada em teorias eurocên-


tricas, uma vez que a historiografia brasileira por muito tempo foi influenciada
e contada pela historiografia europeia. Deste modo, a colonização instalou uma
hegemonia, elegendo a Europa como referência universal na produção do conhe-
cimento, deslegitimando e marginalizando outras epistemologias. Logo, inferio-
rizaram em sua escrita os povos negros e indígenas.
188
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Diante do processo histórico de subalternização e silenciamentos do povo


negro do Brasil, destacamos que foi através de intensas lutas e resistências do mo-
vimento negro brasileiro, no final do século XX, que algumas políticas públicas
de reparação histórica foram efetivadas na Constituição Cidadã de 1988.
Nos anos finais do século XX, o país passou por um processo de redemo-
cratização, uma reafirmação das agitações no que se refere às questões étnico-ra-
ciais, principalmente pelo movimento negro, que desempenha grande protago-
nismo na luta por direitos e efetivação de políticas de ação afirmativa em prol da
reparação histórica pelos danos causados e herdados da escravização de negros
na sociedade brasileira.
A Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional - LDB nº 9.394/966, que
regula o sistema educacional brasileiro, nas esferas pública e privada, prevê con-
teúdos obrigatórios no ensino de História na educação básica. Aqui, chamamos
a atenção para o artigo 26 § 4º, o qual define que “O ensino de História do Brasil
levará em conta as contribuições das diferentes etnias para a formação do povo
brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia”. Em 1997,
com a publicação do texto dos Parâmetros Curriculares Nacionais7 (PCN), pelo
Ministério da Educação e Cultura, vem reafirmar a importância do ensino de
História desde os anos iniciais, voltado para as questões que envolvem identida-
des, destacando os objetivos:
Identificar o próprio grupo de convívio e as relações que estabelecem com
outros tempos e espaços;
Reconhecer mudanças e permanências nas vivências humanas, presentes
na sua realidade e em outras comunidades, próximas ou distantes, no tem-
po e no espaço;
Questionar sua realidade, identificando alguns de seus problemas e refletin-
do sobre algumas de suas possíveis soluções (BRASIL, 1997, p. 33).

Os PCN dos anos iniciais da educação básica ainda contam com uma
divisão por dois ciclos, além de eixos temáticos de orientação de conteúdos pro-
gramáticos. Essa divisão estabelece o que as crianças precisam aprender durante
essas duas etapas de aprendizagem escolar. Os conteúdos ligam-se aos saberes e
fazeres desenvolvidos nos espaços de convívio das crianças.
Mesmo com alguns ajustes já sendo realizados e algumas políticas públicas
sendo efetivadas, em 2003 foi criada a Lei nº 10.6398, de 09 de janeiro de 2009,
6 BRASIL. Presidência da República. Lei nº9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabe-
lece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, 20 de
dezembro de 1996. Disponívelem: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/
id/559748/lei_de_diretrizes_e_bases_3ed.pdf ?sequence=1&isAllowed=y . Acesso em: 28
outubro 2020
7 Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: história,
geografia/ Secretaria de Educação Fundamental. – Brasília: MEC/SEF, 1997. 166p.
8 BRASIL, Lei 10.639/03 de 09/01/2003. Altera os artigos 26 e 79 da Lei 9.394/96 de Dire-
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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

que veio para ampliar e potencializar a abordagem de temáticas relacionadas à


diversidade étnico-racial na escola. Fica, assim, obrigatório o ensino da história
negra afro-brasileira e africana nos currículos. A lei focaliza a obrigatoriedade
desses conteúdos, de forma interdisciplinar, não apenas na disciplina de história,
mas também nas demais disciplinas embora tenham dado um destaque para as
de História, Artes e Literatura.
Como forma de aplicação do ensino das relações étnico-raciais fornecido
pela Lei nº 10.639/03, foi criada a Lei nº 11.6459, de 10 de março de 2008, que
além de obrigar o ensino da cultura africana e afro-brasileira, inclui o de cul-
tura indígena em todo território nacional. A esse respeito, o historiador Elison
Paim (2016) diz que: “A viabilização do ensino de outras histórias nas escolas
brasileiras de nível básico, como determinou inicialmente a Lei 10.639/03 e pos-
teriormente a Lei 11.645/08, é um esforço de reconhecimento e valorização da
diversidade cultural brasileira” (PAIM, 2016, p.166).
Para reafirmar a valorização da diversidade cultural brasileira, temos a
Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que é um “documento de caráter
normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens es-
senciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalida-
des da Educação Básica” (BRASIL, 2017, p.7). Assim, para os anos iniciais ela
“contempla, antes de mais nada, a construção do sujeito. O processo tem início
quando a criança toma consciência da existência de um ‘Eu’ e de um ‘Outro’”
(BRASIL, 2017, p. 403).
Portanto, fazendo referência ao que está na BNCC, quando se refere à re-
lação da criança com o outro, a Base reafirma o processo de construção e forma-
ção da sua identidade, que através do contato com outros sujeitos da comunidade
ou do grupo pertencente, fortalece, amplia e entende as dinâmicas de ser sujeito
que pertencem a um lugar. Esta relação do ensino de história com a vida da
criança é essencial para que elas, logo cedo, vejam que são protagonistas, porque
a identidade se constrói na dinâmica de ser sujeito para além da escola.
No tocante a escola quilombola, não poderíamos esquecer da aprova-
ção, em 2012, das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Quilombola10 (DCNEEQ), que estabelece que a educação escolar quilombola

trizes e Bases da Educação Nacional, inserindo a obrigatoriedade da inclusão de História e


Cultura Africana e afro-brasileira em todo o ensino nacional, público e privado.
9 BRASIL. Lei 11.645/08 de 10/03/2008.Altera a Lei no9.394, de 20 de dezembro de 1996,
modificada pela Lei no10.639, de 09 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade
da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
10 BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Resolu-
ção Nº 8, de 20 de Novembro de 2012. Brasília: Conselho Nacional de Educação -Câmara
de Educação Básica (CNE/CEB).
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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

tem que seguir uma organização voltada à “memória coletiva; das línguas re-
miniscentes; dos marcos civilizatório; das práticas culturais; dos acervos de re-
pertórios orais; dos festejos, usos, tradições e demais elementos que conformam
o patrimônio cultural das comunidades quilombolas de todo o país” (BRASIL,
2012, p. 3).
Esse olhar específico para a educação escolar quilombola potencializa a
escola como lugar de reafirmação das identidades da comunidade, visto que,
entre todos os conflitos e contradições próprios da construção de identidades,
um quilombo se faz quilombo sobrevivendo como tal pela força das identidades
que nele existe.

Tecendo diálogo e pensando o ensino de história

Repensar a história é fundamental para entendemos que o ensino de histó-


ria possibilita ao aluno reconhecer-se enquanto sujeito que produz conhecimen-
to. Por muito tempo ficamos presos a um ensino que valorizava e priorizava a
história europeia, mas, com as mudanças realizadas no currículo desde a criação
da Lei nº 9.394/96 – LDB, podemos identificar intencionalidades educativas que
mostram a importância desse componente curricular, principalmente, no que se
refere à educação básica. De acordo com Fonseca (2006), “O objetivo fundamen-
tal da História, no ensino de primeiro grau (ensino fundamental), é situar o aluno
no momento histórico em que vive [...]” (p. 127 - 128). Assim, pensado a questão
do currículo para escola básica Pereira e Seffner dizem que:
Pensar um currículo de história para escola básica sem levar em considera-
ção os temas desestruturantes e sensíveis é continuar a pensar um currículo
eurocêntrico, cronológico, dominante, branco, heterossexual e racista. Dito
de outro modo, consiste numa submissão da aula de História a um passado
morto e objetificado. [...] (PEREIRA; SEFFNER, 2018, p. 20).

É essencial despertar no aluno as problemáticas referentes ao local em que


eles vivem. Este processo é necessário para questionar o ensino de história euro-
cêntrico, possibilitando o sujeito a entender as dinâmicas da comunidade que ele
pertence. Esta ação é uma maneira de entender “o caráter formativo da História
na constituição da identidade, da cidadania, do (re)conhecimento do outro, do
respeito à pluralidade cultural e da defesa do fortalecimento da democracia”
(FONSECA; SILVA, 2010, p. 17). Esse caráter formativo da história possibilita
espaço de falas “outras”, produzido de um outro lugar não-europeu, de povos
que foram subalternizados, marginalizados e silenciados na sociedade brasileira
no processo de colonização, e que por muitos anos, a história perpetuou, por

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(O rganizadores )

nortear-se através da fábrica epistemológica das teorias do norte global, as quais


não deram conta de responder as relações de poder que se estabeleceram durante
os processos de invasões e genocídios causados pela colonialidade, um processo
não desassociado da modernidade, mas nascem juntos, fortificando-se e espa-
lhando-se pelos outros cantos do mundo.
Baseados em teorias raciais da Europa no século XIX, “a construção do
pensamento racial brasileiro, pautado na classificação hierárquica, foi legitimada
pela “ciência que chega ao país em finais do século XIX, sendo ‘consumida’ do
evolucionismo e social-darwinismo, popularizados enquanto justificativa teórica
de práticas imperialistas de dominação” (SCHWARCZ, 1993, p. 30). As forma-
ções acadêmicas das elites brasileiras possuíam embasamento nas teorias raciais
que foram proliferadas na sociedade brasileira, marginalizando os corpos nas
esferas que a colonialidade exerce.
Trabalhando nas três esferas da colonialidade, do ser, do saber e do po-
der, o colonizador instala sua hegemonia através das teorias raciais, que, segun-
do Schwarcz (1993), com o enfraquecimento da escravidão, essas teorias foram
apresentadas como modelo a seguir, para justiçar os interesses que se montavam
e para prevalecer a conservação rígida das hierarquias. Dessa forma, na socieda-
de que estava em formação, podemos identificar um processo doloroso, sangren-
to e desumano vivenciados pelos povos não europeus, principalmente o negro.
O Brasil foi e é palco do genocídio das populações negras, porque desde
os primórdios, “evidencia-se que no processo de formação do povo brasileiro
sempre existiu uma busca por nacionalismo e por unidade racial caracterizada
por uma única raça – a branca” (SANTOS, 2019, p. 73). Esse nacionalismo está
vinculado à questão da formação da identidade brasileira, que hegemonizou um
tipo de cidadão: o homem branco. Isso mostra, por exemplo, o porquê de uma
comunidade quilombola como a do Sítio Alto ter dificuldade de identificar seus
traços e se declarar negra, sem todo questionamento do que é ser negro em uma
sociedade que violentamente nega essa identidade. Isto porque, conforme Hall
(2000),
as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós pre-
cisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institu-
cionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas espe-
cíficas, por estratégias e iniciativas específicas. Além disso, elas emergem
no interior do jogo de modalidades específicas de poder e são, assim, mais
o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma
unidade idêntica […] (HALL, 2000, p. 109).

É porque as identidades11 são construídas dentro dos discursos de poder

11 Em alguns momentos no texto, usaremos a palavra identidade no plural,” identidades” por


acreditar no seu sentido plural e dinâmico!
192
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

que o colonizador estabeleceu e estabelece padrões estereotipados, fortalecendo


e legitimando a sua identidade em detrimento daquelas que ele mesmo margina-
lizou. Isso ocorre dentro do próprio discurso opressor. Porém, pensando junto de
Hall (2000), acreditando que as identidades são dinâmicas e são construídas so-
cialmente, é preciso considerar os “sujeitos historicamente marginalizados como
produtores de saberes” (ALMEIDA, 2019, p. 25), isso se torna essencial para o
processo de (des)construção da ideia de identidade única, que segue a linha das
forças dos poderes da lógica essencialista.
O passado histórico do Brasil é marcado pela violência racista contra os
corpos e a mente do negro. Segundo Sousa (1983, p. 2), “ser negro é ser violen-
tado de forma constante, contínua e cruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla
injunção: a de encanar o corpo e os ideais de ego do sujeito branco e a de recu-
sar, negar e anular a presença do corpo negro”. A autora destaca também como
a violência racista trabalhou impiedosamente para destruição da identidade do
sujeito negro. Pois, para o sujeito negro oprimido, os indivíduos brancos, diver-
sos em suas efetividades psíquicas, econômicas, sociais e culturais, ganham uma
feição ímpar, uniforme e universal: a brancura (SOUSA, 1983, p. 4). A questão
da “brancura”, trabalhada no imaginário do negro conscientemente agirá como
estratégia para legitimar a identidade do branco como a melhor, a boa e o mode-
lo a ser seguido.
Bhabha (1998) discorre sobre estas estratégias de poder que o colonizador
traça para deslegitimar as identidades do colonizado chamando de “mímica”,
por ser uma “articulação dupla, uma estratégia complexa de reforma, regulação
e disciplina que se “apropria” do Outro ao visualizar o poder” (p. 130). Dentro
dessa mímica, a qual “[...] o colonizado não adquire nessa busca, apesar da tenta-
tiva, um lugar para chamar de seu, para sentir-se pertencente [...]” (ALMEIDA,
2019, p. 24). Vai sendo criado o “entre-lugar” que nas fronteiras, no intervalo
de espaço interstício, os sujeitos vão elaborando as “estratégias de subjetivação
– singular ou coletiva – que dão início a novas signos de identidade [...]”, ou
seja, nesta dinâmica as identidades podem ser caracterizadas “[...] como proces-
so contínuo e dinâmico de construções múltiplas e minoritárias” (ALMEIDA,
2019, p. 24).
A mímica, estratégica traçada pelo colonizador em território brasileiro
para dominar os corpos, está enraizada quando a identidade do povo brasileiro
nasce, enaltecendo a matriz lusa, associada à negação das matrizes afro e tupi.
Todos esses fatores fincados no víeis eurocêntrico que age na reprovação da ne-
gritude, opera pela “submissão ao código do comportamento tido como branco,
concretiza a figura racista criada pela mistificadora democracia racial brasileira,
a do “negro de alma branca” (SOUSA, 1983, p. 4).
O mítico discurso da democracia racial que se instalou no Brasil pelas

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

elites brancas, nada mais foi que uma estratégia de esconder e deixar harmonioso
os reais problemas enfrentados pelo país, como o vigente sistema escravocrata,
que assim, iria sustentar a mesma ordem e hierarquia como se fosse algo natural.
O que vemos hoje é reflexo desse passado, de um país que na sua estrutura, de-
senvolveu uma cultura racista, que inferioriza e massacra os corpos e as mentes
dos povos negros. Assim, Nascimento (1980, p. 69) em seus escritos mostra que
“Os brancos têm sido os únicos a ditar arbitrariamente o sentido do Cristianismo,
da Justiça, da Beleza, da Cultura, da Civilização, da Democracia, e isto desde o
início da colonização até os dias presentes”.
Em confluência a este pensamento, lembramos a crítica profunda que o
educador Paulo Freire (2000) faz ao sistema de educação brasileiro, indicando
ser este um sistema colonial, de uma sociedade dependente, que fomenta a cultu-
ra do silêncio, para que este se reproduza entre nós, fazendo de nosso povo seres
menos, que não reconhece a força e potência de nossa cultura, de nosso povo,
que não pensa nossa realidade a partir dela mesma, dos problemas e questões
existenciais e sociais, mas sim através de moldes pré-existentes e herdados da
colônia.
É preciso, portanto, quebrar com essa cultura do silêncio, pensar o diálogo
e a educação de forma recíproca, amorosa e profundamente horizontal. Buscar
produzir um saber coletivo, pois a comunicação é a busca da significação, da
interação de sujeitos iguais, sem hierarquia de poderes, saberes e seres. Dizer a
palavra é um direito humano, e não de uns e outros! Nisso se faz a ação cultural,
a pedagogia da liberdade, da ação, do amor, da luta! (FREIRE, 1987).
Desse modo, na trajetória da pesquisa sobre o ensino de história dentro
de uma escola quilombola, fazer uso de uma escuta sensível lança possibilidades
para ouvir vozes “outras” – que contam suas próprias experiências e história,
contidas no chão de uma escola quilombola, – e traduz a compreensão de que “a
história regional traz à tona as experiências dos grupos dominados e dos projetos
que foram destruídos pelos dominantes”, como defende Paim em diálogo com
Thompson (2005, p. 177).
Lembrando Thompson (1981) “o objeto do conhecimento histórico é a
história “real”, cujas evidências devem ser necessariamente incompletas e im-
perfeitas” (THOMPSON, 1981, p. 50). A história não precisa ser linear para ser
entendida, tampouco bela, com final feliz, metricamente perfeita, nisso consiste
os contos, os poemas. A história real “não só é mais rica, mais viva e mais como-
vente, mas também mais verdadeira [...]” (THOMPSON, 1992, p.137).
A história não é uma fábrica para a manutenção da Grande Teoria, como
um Concorde do ar global; também não é uma linha de montagem para a
produção em série de pequenas teorias. Tampouco é uma gigantesca esta-
ção experimental na qual as teorias de manutenção estrangeiras possam

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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

ser “aplicadas”, “testadas” e “confirmadas”. Esta não é absolutamente sua


função. Seu objetivo é reconstruir, “explicar”, e “compreender” seu objeto:
a história real” (THOMPSON, 1981, p. 57).

Partindo dessa história que é problematizadora, que não tem como função
a preservação de verdades universalizantes, mas sim de pensar e ler o presente,
é que esta pesquisa faz uso de epistemologias que pensam com, e assim, pos-
sibilitam reescrever histórias de sujeitos inferiorizados e marginalizados histo-
ricamente. Sabe-se que “a colonização junto com a colonialidade aconteceu e
deixou resquícios, pois estas são construídas da modernidade, e não derivada”
(MIGNOLO, 2005, p. 75). Portanto, é necessário traçar diferentes possibilidades
de descortinar a colonialidade, nas esferas do Ser, do Saber e do Poder.
A autora Almeida (2019, p. 20), em diálogo com Maldonado-Torres (2007)
e Quijano (2005), afirma que:
[...] a colonialidade perpassa todos os âmbitos da existência e pode ser
compreendida em diferentes dimensões. Por exemplo, a “colonialidade do
ser” é exercida a partir do processo de hierarquização e da desumanização,
pautada no eurocentrismo, elegendo sujeitos inferiores e superiores, pondo
em dúvida o valor humano, a capacidade de raciocínio e cognição dos su-
jeitos colonizados (MALDONADO-TORRES, 2007). Noutra dimensão,
pertinente para o pensamento decolonial, a “colonialidade do saber” se
exercita pela imposição do padrão de pensamento e produção do conheci-
mento, essencialmente europeu, como universal e legítimo, subalternizan-
do outras racionalidades e perspectivas epistemológicas, acadêmicas e, de
modo geral, excluindo outros saberes que não sejam europeus.

Nesse sentido, a colonialidade deixou marcas na esfera do poder e do sa-


ber, legitimando apenas um tipo de conhecimento, semelhante a uma fábrica, a
qual os setores trabalham juntos para o desenvolvimento dessa esfera. No en-
tanto, como Almeida (2019, p. 21) afirma, em diálogo com Foucault, “é impor-
tante considerar que onde o poder se constitui, emergem pontos de resistência
– nem sempre na mesma proporção”. Pontos estes que quebram com a lógica do
Europeu fabricante de conhecimento científico. Por isso a necessidade da reescri-
ta da história para possibilitar espaço de falas “outras”, produzida de um outro
lugar não-europeu, de sujeitos que foram subalternizados, marginalizados e si-
lenciados na sociedade brasileira no processo de colonização. Em diálogo com
Walsh (2014), Mirianne Almeida continua:
Neste sentido, a decolonialidade se constitui como postura ontoepistemo-
lógica, a partir das práticas de resistência, entendidas como “plurais”, de
grupos historicamente marginalizados. Constituídas nas dobras da norma,
as resistências possibilitam um “modo outro”, de ser, sentir e viver diáspo-
ro (WALSH, 2014). Assim, o pensamento decolonial se volta para a releitu-
ra da história, possibilitando enxergar que práticas de resistência empreen-
didas no processo de colonização configuravam um pensamento “outro” e

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(O rganizadores )

antecedem o uso do termo ‘colonialidade’ (ALMEIDA, 2019, p. 24).

Nos territórios colonizados a resistência fora possível uma vez que houve
a criação de estratégias de sobrevivência do ser-saber que abriram fissuras nas ló-
gicas do colonialismo. Hoje há uma continuidade dessas práticas que Catherine
Walsh denomina de Pedagogia Decolonial. Esta pode ser entendida “[...] como
práticas insurgentes que fraturam a modernidade/colonialidade e tornam possí-
vel outras maneiras de ser, estar, pensar, saber, sentir, existir e viver” (WALSH,
2013, p. 27).
Imersa na etnografia no ato de “escutar, vivenciar e compreender o pensa-
mento africano recriado na diáspora”, Machado (2013, p. 21) legitima a escola
como “lugar onde todas as vozes podem ser ouvidas, onde tudo é juntado e tem
significado incluindo uma perspectiva de reconfigurar o processo educativo de
sujeitos autônomos, coletivos e solidários a partir da cultura local”. Nisto consis-
te o urgente e importante papel que a escola ocupa, principalmente uma escola
quilombola, como local para estabelecer diálogos que possam soltar vozes e rees-
crever histórias. Pois,
sem dúvida, nesse diálogo com as comunidades negras precisamos estar
preparados, ou melhor, em constante preparo. Os detentores dos patrimô-
nios negros são sujeitos políticos, protagonistas da história do Brasil, guar-
diões de memórias e narradores de histórias pouco divulgadas, mesmo que
não tenham tido acesso à educação formal, mesmo que não tenham reco-
nhecimento social e formação escolar/acadêmica. Estarão sempre, como
nós, escrevendo e reescrevendo histórias e novas estratégias de vida e de
luta (ABREU, 2019, p. 33-34).

Tomado como objetivo compreender a constituição da pedagogia de (re)


existência a partir das experiências de crianças e quilombolas, desenha-se o uso
de pedagogias de (re)existência que ultrapassam os muros da escola e como a
vivência no campo possibilita ver uma pedagogia que “emerge como rachadura
na concretude da colonialidade; no fazer cotidiano, no mais singelo ato de rea-
firmar a vida diariamente, como possibilidade de (re)existência na necropolítica”
(ALMEIDA, 2019, p. 131).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como em um crochê, a escrita buscou trançar experiências do início da


composição de pesquisa, a partir do diálogo com a comunidade quilombola e
teorias que permitem um fazer com, e não sobre ou para. Neste bordado vimos
autores que pensam um ensino de História que problematiza as bases epistêmi-
cas, bem como a composição do currículo da disciplina História. Junto aos estu-
diosos que discutem o conceito de colonialidade, que apontam que a coloniza-
ção aconteceu e deixou resquícios, indicou-se a necessidade de traçar diferentes
196
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

possibilidades de descortinar a colonialidade, nas esferas de Ser, Saber e Poder.


Discutiu-se também os conceitos de identidade para explicitar a importân-
cia do estudo do ensino de História dentro de uma escola quilombola, tanto para
a formação de uma identidade que visibiliza o sujeito como agente/produtor
de sua história bem como no ensino dessa disciplina enquanto possibilidade de
problematização, reformulação e democratização de comunidade invisibilizadas
no país.
A presente pesquisa ainda encontra-se em andamento, entretanto, os estu-
dos e visitas a campo tem possibilitado perceber que a escola quilombola do Sítio
Alto constituiu-se como lugar de possibilidades, de histórias, de resistência para
existência, onde sujeitos podem ser ouvidos e vozes potencializadas.
No chão da escola faz-se, diariamente, espaço para trocas culturais, pes-
soais, desabrochar de subjetividades, afetos e tantos outros sentimentos, saberes
e fazeres que quebram as barreiras da colonialidade, a cultura do silêncio, da
opressão, da classificação e inferioridade por tanto tempo atribuída a esses povos,
desenhando assim, caminhos outros, para uma educação de diálogo, antirracista,
de prática, ação, de fato, uma educação para a libertação!

REFERÊNCIAS
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de história e educação antirracista. In: Revista História Hoje, São Paulo, v. 8,
nº 15, p. 17, 2019.
ALMEIDA, Mirianne Santos de. Entre gritos e silêncios: ecos de uma peda-
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199
A (DES)EDUCAÇÃO DOS NEGROS E NEGRAS: POR
UMA EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
NO CURRÍCULO ESCOLAR
Tatiana Marques da Silva Parenti Filha1
Graziela Oliveira Neto da Rosa2

INTRODUÇÃO

O cotidiano escolar nos últimos dez anos tem sido um lugar paradoxal
para nós, mulheres, cidadãs e professoras atuantes da educação pública, identi-
ficadas e defensoras da educação inclusiva, emancipadora e libertadora, em que
a sala de aula é um território político, de tecer sonhos e realidades (FREIRE,
2010). Nesta reflexão discorremos sobre nossas experiências e inquietações em
torno da Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER). Para Grada Kilomba
(2019), o racismo cotidiano reflete em vocabulários, discursos, imagens, gestos,
ações e olhares que colocam o sujeito negro como a personificação dos aspectos
reprimidos na sociedade branca, a “Outridade”, que recria esse projeto de silen-
ciamento, controlando a possibilidade de o sujeito negro ser escutado e fazer
parte da humanidade.
A partir de nossas experiências como docentes/gestoras e de nossos es-
tudos acadêmicos, indicamos que as leis 10.639/03 e 11.645/08, que tratam do
ensino da história e da cultura africana, afro-brasileira e indígena, as Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER) e
o Plano Nacional de implementação da ERER, não estão sendo respeitadas/
implementadas no cotidiano escolar. Problematizamos essa indicação a partir
da inação da gestão pública que, ao longo dos anos, contribui no fortalecimen-
to do racismo cotidiano no espaço escolar. Conforme Maria Aparecida Bento
(2014), este silêncio em torno das políticas públicas afirmativas, possibilitam o

1 Tatiana Marques da Silva Parenti Filha- Filósofa; Pedagoga; especialista em Gestão Esco-
lar; Supervisão Escolar e Culturas Juvenis; Mestre e Doutora em Educação. Coordenadora
da Assessoria escolar SMED-SL.
2 Graziela Oliveira Neto da Rosa – Pedagoga, especialista em Gestão Escolar e Mestre em
Educação. Professora da rede municipal de Esteio. Atual presidenta do Sindicato dos Ser-
vidores do município de Esteio. Membro do movimento negro de Esteio, membro do Mo-
vimento Negro Unificado - RS e Membro do Grupo Interinstitucional GT 26-A do TCE/
RS.
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

não prestar contas, compensar ou indenizar os negros. Por essa razão, que elas
por vezes são taxadas de protecionistas.
O Estado, sobretudo nos últimos quatro anos, dá pouca relevância à pauta
racial, o que reitera a sistemática de discriminação, que tem a raça como funda-
mento, se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que cul-
minam em desvantagens ou privilégios, chamada por Silvio de Almeida (2018)
de racismo estrutural. Em decorrência de tal realidade, muitas vezes, quem acaba
assumindo a responsabilidade de trazer a pauta da educação antirracista e/ou
quebrando a lógica da invisibilidade de tais demandas, são professoras/es ne-
gras/os e/ou professoras/res militantes da luta antirracista.
A maioria das instituições segue mantendo o mesmo currículo da escola
colonizadora e embranquecida, com práticas que ignoram os impactos do racis-
mo estrutural no cotidiano da escola e na sociedade como um todo. Os dados re-
ferentes aos índices de analfabetismo, de evasão/reprovação/abandono escolar,
de distorção idade/ano, posicionam os estudantes pretos e pardos no topo desses
indicadores. Devemos ter ciência de que o sistema de colonização está enraizado
em nossa cultura, e é necessário muita reflexão, debate e diálogo para que, aos
poucos, possamos nos enxergar hora como colonizador, ora como colonizado,
para ressignificar nossa prática docente, currículo escolar e construir uma socie-
dade igualitária. Conforme Fanon (2008), é o colonizador que fez o colonizado,
mas é o colonizado que faz a descolonização. Esse poder colonizador que está
em plena atividade é o que ocupa os espaços concretos de dominação. A escola
é um desses locais que precisa sofrer uma ruptura desse sistêmico processo e ser
descolonizada.
A educação, ao longo dos anos, vem ofertando aos povos indígenas e ne-
gros o lugar da insignificância, passando boa parte de sua trajetória escolar sendo
convencidos da sua inferioridade. Para Woodson (2021), a ideia de inferioridade
transpassa o negro em quase todas as aulas de que participa e em quase todos
os livros que estuda. O racismo estrutural, exercitado em diversas instituições
sociais consolida, concretiza as ideias da vida social que tem em si o racismo or-
gânico. Dito de modo mais direto: as instituições são racistas porque a sociedade
é racista (ALMEIDA, 2018). A qualidade das instituições educacionais é afetada
profundamente pelo racismo, prejudicando a trajetória escolar e comprometendo
a garantia do direito à educação de estudantes do nosso país. Enfrentá-lo é um
desafio da sociedade brasileira.
A instituição escola, em geral, tem trabalhado numa lógica de produção
de indivíduos aptos a se adaptar à realidade social, que é desigual, excludente e
discriminatória. Reside aí o paradoxo profissional a que nos referimos no início
desta reflexão. Somos mulheres professoras, uma preta e uma branca, militantes
de um mundo mais justo, plural e igualitário, onde a escola ocupa um lugar

201
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

determinante nas trajetórias de vidas. Contudo, ainda necessitamos de propostas


que se institucionalizem e envolvam todas/os educadoras/es de cada escola e,
consequentemente, na maneira como a nossa sociedade está estruturada, pois
nem sempre mobilizamos outros colegas, estudantes, turmas de crianças e/ou
estudantes, ainda assim, seguimos semeando um currículo enegrecido.
Acreditamos que não seja falta de políticas públicas, tampouco, de orien-
tações para implementá-las, o desafio segue centrado num projeto de sociedade
que ainda se faz dominante, projeto esse que tenta eliminar as diferenças étnico-
-raciais, folclorizar as marcas culturais, sabedoria, conhecimentos, tecnologias
que não de raízes europeias (SILVA, 2007). Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva
(2011), aponta que enegrecer o fazer pedagógico tem relação direta com a forma
com que os negros se expõem ao mundo. Portanto, enegrecer é face a face, em
que negros e brancos se espelham uns nos outros, comunicam-se, sem que cada
um deixe de ser o que é. A autora acrescenta dizendo que, nesse processo de
enegrecer, educam-se na busca de superar a arrogância dos que detêm o poder e
o retraimento dos que são levados a se sentir oprimidos.
Compartilhamos aqui relatos de experiências vividos no contexto escolar,
ora como estudantes, ora como professoras e gestoras. É através da metodologia
da escrevivência3, conceito cunhado por Conceição Evaristo (2020), que apresen-
taremos reflexões que levam ao entendimento do quanto a escola tem cumprido
o papel (des)educador dos estudantes não brancos. Por fim, apresentamos alguns
caminhos que possam ser trilhados na busca pela implementação de um currícu-
lo escolar plural e antirracista. Sair da inação, partir para possibilidades que não
alienam, não desrespeitem e desumanizam e, que contem a verdadeira história,
é o que apresentamos no percurso desse artigo, um desacomodar para poder sair
de uma perspectiva que deseduca, para uma educação antirracista.

NOSSAS ESCREVIVÊNCIAS: A PROFESSORA NEGRA


As escolas são as maiores reprodutoras de desigualdades, principalmente
raciais, sendo essa situação chamada pelos pesquisadores de racismo institucio-
nal. Ele é silencioso, direto e indireto, por vezes, formal e, por outras, informal;
não midiático, não polemiza, mas se expressa nos dados da vida social da po-
pulação negra, consolidando o fracasso político do Estado na promoção dessa
parcela da população. O mundo representado na escola e fora dela é dos brancos,
na qual, em sua maioria, as culturas europeias são um ideal a ser seguido, posi-
cionado como padrão. Para Fanon (2008), nos tornamos indivíduos imersos na

3 Escrevivência - Busca falar com a escrita, um dos símbolos de resistência e uma forma
prática de vencer a dor. Que articula três termos - escrever, ver e viver -, é um elemento
permanente no percurso investigativo, que possibilita um profundo mergulho no plano da
experiência.
202
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

cultura alheia a nossa própria cultura.


Para os estudantes negros, manter-se em silêncio, na invisibilidade, segue
sendo uma estratégia de proteção que, até hoje, está presente no cotidiano esco-
lar. As vítimas reais do racismo são rapidamente esquecidas. “Esse desrespeito,
ou melhor, essa omissão, espelha a desimportância dos negros e negras como
sujeitos políticos, sociais e individuais” (KILOMBA, 2019, p. 72). Na escola é
que, aos poucos, fui aprendendo a negar a cultura e história do meu povo. Em
toda trajetória escolar dos estudantes negros/as, a escola se torna cotidiana-
mente responsável e cúmplice pelo processo de embranquecimento. Hoje, tenho
ciência que ao longo dos anos, sem perceber, a cultura, em especial, as religiões
afro-brasileiras, foi se tornando distante das minhas práticas e vivências. Não sei
bem quando isso passou a acontecer, mas confesso que hoje, após passar por um
processo de descolonização, e tendo um outro olhar sobre a sociedade, acredito
ser uma negra que, aos poucos, acabou tornando-se embranquecida.
Lembro-me criança, sentada no colo da mãe de santo, batendo palma e
celebrando na roda de saravá a chegada das entidades. Amava quando era dia de
festa, todos muito envolvidos na preparação dos alimentos, os tambores prontos
para os toques. Percebo que, durante quase toda minha vida, não sabia explicar e
nem conceituar algumas situações cotidianas que ocorriam nos espaços que fre-
quentava, principalmente, dentro da escola. Hoje, percebo o quanto a sociedade,
mesmo sem perceber, me (des)educou. Segundo Woodson (2021), “devemos ter
consciência de que o negro nunca foi educado. Ele apenas foi informado sobre
outras coisas que ele não era autorizado a fazer” (p. 92).
Ao remexer no baú das memórias, lembro do tempo que estava no ensino
fundamental e que a minha religião era motivo de brincadeiras e piadas. A pos-
tura dos meus colegas e o não envolvimento dos adultos foram contribuindo para
o meu afastamento, eu tinha vergonha de dizer que era da minha religião que
estavam caçoando. Não falar sobre o racismo na escola faz com que o problema
pareça não existir, o que só contribui para a aprendizagem do silêncio, pois a
escola ensina a criança negra a silenciar. Diante desse cenário, passei a crer que
estar no Terreiro não era bom, então passei a negar.
Uma outra situação que ocorria frequentemente com as mulheres negras,
foi as inúmeras vezes que chorei, ao ver meu cabelo cair em função das químicas,
afinal, eu precisava alisar, torná-lo “bom”. Lembro-me de sair da cabeleireira
com a cabeça cheia de feridas em função do henê quente. Nas palavras de Nilma
Lino Gomes, podemos analisar:
Mas como a escola lida com o corpo negro, o cabelo crespo e a cultura
negra? Como as crianças, adolescentes, jovens e adultos negros são vistos
e se veem na escola? Para respondermos a essas questões teremos que nos
aproximar dos homens e mulheres negras que já passaram pela escola e

203
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

também daqueles que ainda estão realizando a sua trajetória escolar e escu-
tar, atentamente, o que eles têm a nos dizer (GOMES, 2003, p. 174).

Ser igual às colegas da escola era abandonar minhas tranças, meu cabelo
crespo, rejeitar meu corpo, passar por momentos de negar minha pele e, inclusi-
ve, minhas origens. Era não comentar sobre as rodas de saravá, era aceitar convi-
tes para grupos de jovens da igreja católica, pois isso fazia com que eu estivesse
próxima de ser aceita. Creio que passamos parte de nossas vidas nos adequando
ao modo ocidental de viver. Ou nos adaptamos a esses modos ou a sobrevivência
se torna difícil. O mundo representado na escola e fora dela é dos brancos, no
qual as culturas europeias são um ideal a ser seguido. Conforme Gomes (2003),
precisamos construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que, his-
toricamente, ensina ao negro, desde muito cedo, que para ser aceito é preciso
negar-se a si mesmo. Outro ponto importante a relatar é o sentimento de invisi-
bilidade e abandono por parte dos professores, na dissertação de mestrado, Rosa
(2021), relata uma dessas lembranças:
Uma das diversas lembranças escolares foi na quinta série, assim como
outros colegas, eu tinha algumas dificuldades para me adaptar com nove
professores. Um distanciamento real mudou completamente as relações
entre professores e alunos. Visivelmente nós, alunas e alunos negros, sen-
tíamos um tratamento hierárquico na sala, pois os colegas brancos tinham
visibilidade, reconhecimento e elogios. Exemplo disso foi uma das expe-
riências negativas que vivi quando fui reprovada e repeti o ano: uma das
professoras não me deixava participar das aulas e proibia responder seus
questionamentos. Ela dizia que o fato de ser repetente, não me autorizava
a responder, pois já sabia os conteúdos. Em uma das aulas expositivas, ela
me mandou calar a boca e baixar o braço, me ridicularizando na frente dos
colegas, situação que não era recorrente com as crianças brancas (ROSA,
2021, p. 76-77).

Em 2014, assumo a direção da escola de Ensino Fundamental, e no ano de


2017, assumo como vice-diretora de escola de Ensino Médio; duas experiências
maravilhosas. Estando na gestão dessas duas escolas, foi possível fazer diferen-
tes leituras das relações que se estabelecem no contexto escolar, principalmente,
quando se trata do racismo e as formas como ele acontece no processo de ensino
e aprendizagem.

NOSSAS ESCREVIVÊNCIAS: A PROFESSORA BRANCA

Em minha trajetória escolar sempre tive colegas negros e negras, sempre


brinquei com eles e elas. Tal afirmação soa coloquial e corriqueira. Isso era o que
eu pensava até me tornar adulta e descobrir que pessoas brancas, pardas e negras
são tratadas de maneiras distintas em nossa sociedade. Pintava meus desenhos
com lápis “cor da pele”, o que nunca me provocou incômodo, nem reflexão,

204
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

tendo em vista que pouco, ou nada, se falava de raça, etnia, racismo, diferenças,
desigualdades...
Quando cresci e reencontrei minhas colegas negras, e tivemos a oportuni-
dade de relembrar de nossas experiências escolares, infância, brincadeiras, é que
fui percebendo que estudávamos juntas, mas não vivíamos as mesmas coisas.
Uma delas, em nossos encontros de adultas, sempre comenta sobre o meu jeito
forte e intenso de abraçar, de que eu sempre a abracei assim, e ela se sente criança
quando nos abraçamos. E eu nunca entendia o que isso significava de fato, até o
dia em que fui até a casa dela entregar o livro que publiquei, oriundo da minha
tese de doutorado. Ela estava feliz e nervosa, também não estranhei, tendo em
vista que sempre que nos encontramos nos emocionamos. Umas horas depois
desse encontro, ela me enviou uma mensagem relatando o que esse encontro ti-
nha significado pra ela. Ela contou que quando estudávamos juntas, na segunda
série do ensino fundamental, ela não tinha banheiro em casa e que agora, mesmo
morando no mesmo lugar, ela havia construído dois banheiros na casa dela, com
o salário de professora que ganhava, após passar muita dificuldade para cursar
uma graduação e se formar. Esse relato fez muita coisa fazer sentido pra mim, eu
nunca a tinha visto como alguém diferente e muito menos inferior a mim.
Conversamos sobre situações tristes e difíceis que ela vivera na escola e na
vida, e que ainda vive situações de desrespeito e humilhação. Fiquei pensando no
significado e na invisibilidade da negritude pra mim. Se por um lado, eu nunca a
tratei com diferença e desrespeito, também não tinha noção do que ela e outros
colegas viviam, porque nunca debatemos isso em sala de aula? Por que as situa-
ções que ela vivia não eram vistas ou pautadas? Meyer (2006) argumenta que o
currículo escolar é “um artefato social e cultural, que precisa ser compreendido e
discutido, considerando-se suas determinações históricas, sociais e linguísticas”,
pois, através dele, identidades são forjadas. Tal questão me fez refletir sobre o
papel da escola na construção e/ou reprodução do racismo, que também pode
ser vista pela perspectiva de (des)educação dos negros e negras.
Contudo, é importante destacar que a instituição escola é uma das insti-
tuições sociais que educam e que “as instituições não são fontes ou essências,
e não possuem nem essência nem interioridade. Elas são práticas, mecanismos
operatórios que não explicam o poder, pois que supõem os seus relacionamentos
e contentam-se em ‘fixá-los’, segundo uma função reprodutora e não produtora”
(DELEUZE, 1987, p. 105-106). Sendo assim, é preciso atentar para os sujeitos,
as práticas e os processos educativos. O que não pautamos, o que não falamos,
não problematizamos também educa, tanto ou com mais intensidade do que o
que explicitamos.
Práticas atentas à diversidade, pluralidade e inclusão sempre pautaram
minha ação docente, tendo em vista que os estudos de gênero, sexualidade,

205
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

feminismo e juventudes são minha área de atuação e produção acadêmica.


Muitas vezes, tais temáticas se articulam às questões étnicas e raciais, sobretudo,
quando estas questões são refletidas a partir do contexto escolar e/ou no âmbito
da formação docente. Procuro pautar atividades pedagógicas que contemplem a
diversidade cultural, étnica e social, a partir do repertório presente nas histórias
de vida das crianças/estudantes envolvidos. Essa prática me faz ser classificada
como “a colega que trabalha diversidade”. Aí me pergunto: Essa não é uma
temática na qual estamos todos/as envolvidos/as? Uma temática importante e
potente para todas as aulas e campos de saber? Não raro, fui procurada pela coor-
denação pedagógica de instituições privadas em que lecionei, para descrever o
que havia pautado em minhas aulas para compor os documentos da escola, regis-
trando que a instituição havia realizado atividades envolvendo as leis 10.639/03
e 11.645/08.
Dentre minhas experiências como professora, poderia destacar várias que
me marcaram, surpreenderam e emocionaram. Para compartilhar aqui, elegi
uma que envolve uma colega negra que ocorreu numa escola municipal, com
turmas de estudantes do 6º ao 9º ano de escola pública, em que atuava como
professora de Filosofia. Programei várias atividades para novembro4, entre elas,
propus um cine debate. Para essa atividade, precisei reunir turmas para poder
juntar o tempo de meus períodos de aula, consequentemente, envolvi os colegas
que trabalhavam com as mesmas turmas naquele dia. Assim, minha colega, pro-
fessora de inglês, participou dessa atividade. No momento do debate, ela levan-
tou e relatou como se sentia quando era criança na escola, em que era chamada
cabrita, pois sua mãe penteava seu cabelo de maneira que ficavam duas saliências
em seu cabelo.
Ao relatar perante a turma, ela chorou e desabafou sobre como isso havia
lhe marcado. Foi um momento muito emocionante, em que nós todos, estudan-
tes e professoras, pudemos refletir e debater sobre racismo, preconceito e violên-
cia na escola. Cabe destacar que em nenhum outro momento essa colega havia
conversado comigo sobre questões raciais e/ou de preconceito, mesmo quando
expliquei a minha proposta a todos os colegas. O que destaco nessa experiência
foi o fato dessa atividade ter mobilizado uma colega a compartilhar algumas de
suas vivências como negra com nossos estudantes.
Com isso, não me posiciono em um lugar de destaque e/ou de importân-
cia, mas compartilho para destacar o quanto o contexto educacional, muitas ve-
zes, não oportuniza que colegas negros possam ser vistos como negros, que tem
trânsitos e trajetórias sociais diferentes dos brancos. Com isso, quero dizer que os

4 Diversidade étnico-racial é uma temática que trabalho ao longo do ano, mas costumo cha-
mar outras pessoas, geralmente negras, para conversarem com os estudantes nesse período.

206
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

currículos escolares, muitas vezes, invisibilizam todos os sujeitos negros que nela
transitam, isso quando não os marginalizam, inferiorizam e/ou ignoram que
suas vivências podem contribuir para que (re) pensemos o currículo. Selecionei
essas vivências por acreditar que ambas indicam, por perspectivas diferentes,
consequência de um currículo que invisibiliza e silencia as questões raciais no
contexto escolar.

ENEGRECENDO A ESCOLA

Com base nisso, fica evidente a necessidade de romper com o ciclo de


silêncio e reprodução do racismo na instituição escola, tendo em vista que, ao
longo dos anos, a omissão por parte dos responsáveis pela educação, reforçou e
reproduziu o racismo estrutural, institucional e cotidiano.
Com práticas escolares que silenciam e invisibilizam crianças e estudan-
tes negros e indígenas, a contribuição social de negros e povos ameríndios, bem
como da cultura africana e indígena na história do Brasil, ousamos indicar que
a instituição escola tem deseducado crianças e jovens, naturalizando a hierarqui-
zação entre pessoas de diferentes etnias, produzindo discursos e práticas precon-
ceituosas e racistas, uma vez que segundo Michel Apple (apud SILVA, 1995, p.
15) “nossa sociedade é estruturada de tal modo que os significados dominantes
têm mais possibilidade de circular”. A escola, de maneira geral, tem privilegiado
e reproduzido representações de etnias brancas e discursos homogeneizantes, em
que saberes, vivências e histórias são desconsideradas e subalternizadas. Com
isso, não só o racismo é (re)produzido e consolidado, mas também crianças e jo-
vens negros e indígenas são impelidos a não conhecer/valorizar suas raízes e real
valor histórico em nossa sociedade. Para Woodson (2021), a raiz do problema
também se encontra naqueles “educados” que possuem atitude de desprezo em
relação ao próprio povo, “porque em suas escolas, bem como nas escolas mistas,
os negros são ensinados a admirar os hebreus, os gregos, os latinos e os teutôni-
cos e a desprezar os africanos” (p. 13).
Práticas escolares e processos educativos que seguem silenciando e invi-
sibilizando as questões étnico-raciais em seu currículo, conservam altos índices
de analfabetismo, de evasão escolar, de distorção idade/ano, posicionando estu-
dantes pretos, pardos e indígenas no topo desses resultados. Por questões aqui
expostas, e outras vivenciadas cotidianamente, indicamos que a escola precisa ser
descolonizada, enegrecida e, consequentemente, rever seu currículo com vistas
a abrir-se a todas as pessoas. Acreditamos que o primeiro passo para a ressig-
nificação de sua prática seja assumir que a discriminação e o preconceito são
marcas enraizadas em nossa história e sociedade, e cristalizadas por processos
educativos (SILVA, 1995).

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Ao trazer a ERER para o centro do debate no cotidiano escolar, entende-


mos que se faz necessário ampliar o nosso repertório, seja na escrita, nos espaços
de poder, na arte, nas canções etc. Nilma Lino Gomes, vem afirmar que:
As teorias racistas presentes no cotidiano escolar e na sociedade não sur-
giram espontaneamente, nem são meras transposições de pensamento ex-
terno. Elas sofrem um processo de retroalimentação, e terminam por legi-
timar o racismo presente no imaginário social e na prática social e escolar
(GOMES, 2003, p. 70).

A história africana e indígena precisa estar na vitrine, sair da periferia e


ocupar o centro das cenas e currículos escolares, há uma demora nas políticas de
reparação e precisamos pensar em alternativas para reverter esse cenário moroso.
A ERER precisa ser um projeto de toda uma sociedade, deve-se lutar por liberda-
de, autonomia, resistência, luta e coragem; é preciso encontrar beleza em lugares
que o mundo diz que não tem. Não podemos seguir aceitando a permanência
desse silêncio que é ensurdecedor. Para que a escola participe do enegrecimento
da sociedade, ela terá de lutar para se libertar de tudo que nela ajuda a desumani-
zar; precisará, pois, livrar-se dos mecanismos e ideias que manipula, levando as
pessoas a se verem “nascidas” para mandar ou serem mandadas, para saber ou
serem ignorantes, para possuir ou servir (SILVA, 2011).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As Diretrizes Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais


apontam que a prática pedagógica da/do professor/a, o suporte da supervisão
escolar e os investimentos que devem ser realizados por aqueles que garantem a
execução das políticas públicas, precisam estar alinhados a uma intencionalidade
que seja relevante, pertinente, plural e equitativa. Pensar e investir num currículo,
em que as diferenças étnico-raciais sejam vistas como riqueza cultural, é uma
maneira de romper com práticas excludentes, com a violência cultural, psicoló-
gica, social e educacional.
A ERER deve estar no centro das intencionalidades pedagógicas, práticas
educativas e ações do cotidiano escolar. A educação escolarizada precisa assumir
o papel social de questionar os lugares sociais, em que a cultura eurocêntrica co-
loca os sujeitos não brancos e se comprometer com a história do Brasil completa,
a nossa verdadeira história que é resultado da contribuição de diferentes etnias
e culturas. Essa história completa é complexa, e pode ser significativa pra todos
nós sujeitos brancos e não brancos.
O Estado brasileiro deve assumir a responsabilidade pelos fatos do passa-
do, assim como pelas omissões do presente e suas consequências como: desigual-
dades, discriminação, racismo e as mais variadas formas de violências: física,

208
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

mental e simbólica. As narrativas que foram construídas ao longo dos séculos


sem a presença negra e indígena, necessitam ser ressignificadas, as práticas so-
ciais precisam deixar de ser violentas e traumatizantes para a população não
branca.
Para nós, urge enegrecer o currículo escolar e a práxis, para desestabilizar
a estrutura que mantém as desigualdades no país, compreendemos, assim como
Petronilha (2011), que os caminhos possíveis estejam focados na ERER. É com
essa possibilidade de enegrecimento do pensamento, das formas de se relacionar,
produzir conhecimentos e compor o currículo escolar, que apostamos na pos-
sibilidade de mudança na maneira própria dos negros se porem no mundo, se
representarem e serem representados, assim como de se verem face a face com
os sujeitos não negros, se espelharem, comunicarem e relacionarem, sem deixar
de ser o que cada um é.
Nesta direção, reiteramos a necessidade de desnaturalizar a ausência do
outro, reconhecendo a importância da valorização das diferenças na escola, bem
como na sociedade. Tais atitudes devem ser realizadas “em” e “com” a comuni-
dade, assim a ERER será viável e passível de consolidação de fato. Não ser injus-
to com os diferentes e ser desobediente epistemologicamente, é se permitir não
reproduzir inverdades, injustiças e violências. E para que possamos mudar na
raiz do problema, não podemos agir de forma superficial, pois será apenas uma
ação paliativa, correndo o risco de seguirmos fracassando no tempo e espaço.
Nós, professoras negras e brancas, temos o compromisso de sermos antir-
racistas, não nos contentando somente em trabalhar com os conceitos históricos
e culturais da população afro-brasileira e indígena, mas assumir atitudes e proce-
dimentos que contribuam na educação dos nossos estudantes de forma integral,
buscando como aliada a ERER.

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209
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WOODSON, Carter G. A (des)educação do negro. São Paulo: Edipro, 2021.

210
PELE PRETA:
O ESTIGMA PARA A CONCRETIZAÇÃO
DO DIREITO FUNDAMENTAL À EDUCAÇÃO
Braulio Brasil de Almeida1
Luciana de Oliveira Fumian Brasil2
Carolina Esposte Campos3

INTRODUÇÃO

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo


5º, caput, assevera que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qual-
quer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança à proprie-
dade, nos termos seguintes” (BRASIL, 1988, s/p). Como se vê, o próprio Texto
Maior garante a não distinção entre os indivíduos submetidos ao ordenamento
pátrio, obstaculizando, assim, distinção advinda de qualquer natureza.
Segundo a orientação da nossa Corte Suprema, traduzida nas palavras do
Eminente Ministro Celso de Mello:
[...] enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) –
que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam

1 Mestre em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória (2017). Graduado em
Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES (2006). Graduado em Teologia
pela Faculdade Unida de Vitória (2017). Pós-Graduado em Direito Público com ênfase em
Direito Administrativo pela Universidade Potiguar-RN (2007). Pós-Graduado em Ciências
Penais pela Universidade Anhanguera-UNIDERP-MS (2011). Pós-Graduado em Direito
Constitucional com formação para o Magistério Superior pela Universidade Anhanguera-
-UNIDERP (2011). Servidor Efetivo do Ministério Público do Estado do Espírito Santo.
Professor da Faculdade Metropolitana São Carlos - FAMESC. E-mail: brauliobrasilalmei-
[email protected]
2 Graduada em Farmácia pela Universidade Nova Iguaçu (2007), Mestrado em Saúde da
Família pela Universidade Estácio de Sá (UNESA), Especialização em Farmacologia Clí-
nica pelo Instituto Ethos Farma - ES e Especialização em Saúde da Família pela Faculdade
Redentor - RJ. Exerce função de Farmacêutica no Serviço de Home Care Home Star. Do-
cente na Universidade Iguaçu - RJ e da Faculdade Metropolitana São Carlos - RJ. E-mail:
[email protected]
3 Bacharela em Direito pela Faculdade Metropolitana São Carlos – FAMESC (2021). Auxi-
liar Operacional da Orbenk Administração e Serviços Ltda – atuando junto ao Ministério
Público do Estado do Espírito Santo – Promotoria de Justiça de Bom Jesus do Norte.
E-mail: [email protected]
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econô-


micos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas,
reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de ter-
ceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos
genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da soli-
dariedade e constituem um momento importante no processo de desenvol-
vimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados
enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial
inexauribilidade (STF, 1995, p. 39.206).

Quanto aos direitos sociais, os quais estão incluídos na utilizada classifi-


cação de direitos fundamentais de segunda geração, juntamente com os direitos
econômicos e culturais, vislumbrados no início do século XX, precisas são as
lições de Themistocles Brandão Carvalho:
O começo do nosso século viu a inclusão de uma nova categoria de direi-
tos nas declarações e, ainda mais recentemente, nos princípios garantido-
res da liberdade das nações e das normas da convivência internacional.
Entre os direitos chamados sociais, incluem-se aqueles relacionados com
o trabalho, o seguro social, a subsistência, o amparo à doença, à velhice...
(CARVALHO, 1996, p. 202).

Antes de adentrarmos na seara do objeto principal do presente trabalho,


qual seja, o direito à educação, vale ser gizado que o basilar direito de todo in-
divíduo é o direito à vida, e a uma vida digna. Isto é, o direito à vida é a mais
fundamental de todas as garantias e direitos, pois é condição sem a qual nenhum
outro direito pode ser exercido. Na mesma toada, a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 adotou a teoria da igualdade de direitos, vedando,
desse modo, distinções através das quais indivíduos sejam tolhidos de seus direi-
tos assegurados pelo Texto Maior (MORAES, 2018).
Nesse espeque, a igualdade deve ser entendida, assim como deve abranger,
a possibilidade de todos os cidadãos terem direito a tratamento idêntico pela lei
e, de igual sorte, pelo Estado, a quem incumbe a função de fazer valer a eficácia
da norma. Ou seja, todos devem ter igualdade de aptidão e de virtuais possibili-
dades, sob pena de se ver aviltado o constitucional direito em tela. Desse modo, o
intérprete da norma, a autoridade pública, basicamente, está obrigada a aplicar a
lei e demais atos normativos de maneira igualitária, ou seja, desprovida de quais-
quer distinções em razão de raça, sexo, religião, convicções políticas, filosóficas
e classe social (MORAES, 2018).
Cediço é que, tutelado constitucionalmente, o direito à educação possui
íntima relação com outros direitos, haja vista possuir o caráter de possibilitar o
acesso a outras garantias também previstas na Constituição da República. Não
é à toa que vem listado como o primeiro direito social, previsto no artigo 6º
do Texto Maior. Para além disso, a CRFB/1988, no título que cuida da Ordem

212
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Social, prevê o fomento de um agir coletivo, que engloba a sociedade, a família e


o Estado, a fim de ver a efetivação desse direito, voltada, em seu âmago, para o
desenvolvimento do educando como cidadão e como pessoa (CÂMARA, 2017).
Conforme já manifestado pelo Supremo Tribunal Federal, corroborado
pela mais abalizada doutrina, os direitos e deveres individuais, assim como os
coletivos, não estão restringidos apenas ao art. 5º, da CRFB/1988, pois podem
ser vislumbrados em todo o texto constitucional e, ainda, aqueles decorrentes ou
expressos dos princípios constitucionais, bem como os derivados das convenções
e tratados internacionais dos quais o Brasil seja signatário (LENZA, 2019).
Segundo a concepção formalista dos direitos fundamentais, para a qual
estes são aqueles direitos e garantias descritos como tais no ordenamento cons-
titucional de uma nação, revestidos de significativo grau de segurança e rigidez,
cuja mutabilidade é mais dificultada, o direito à educação encontra-se caracte-
rizado no ordenamento jurídico pátrio como um direito fundamental, presente,
conforme já mencionado, no rol dos direitos sociais, que integram os direitos
fundamentais (CÂMARA, 2017).
Não se pode negar que o art. 6º, onde se encontram insertos os direitos
sociais basilares, está inserido em um contexto mais amplo no plano constitucio-
nal, umbilicalmente ligado aos princípios fundamentais elencados no Título I, da
CRFB/1988, destacando-se o princípio da dignidade da pessoa humana, sendo
um fundamento do Estado democrático de Direito. Este princípio, na verdade, é
o “Fio de Ariadne”, denotando a interrelação dos direitos fundamentais, eis que
eles se complementam (MARINONI; MITIDIERO; SARLET, 2018).
É importante ser mencionado, ainda, que significativa parcela dos direitos
sociais consagrados, especialmente no artigo 6º do Texto Maior, foi objeto de
densificação em diversos dispositivos ao longo do texto constitucional, como se
vê no título que versa sobre a ordem social, na qual está presente o direito à edu-
cação. Aliado a isto, vale ser destacado que tais direitos sociais somente possuem
efetiva aplicabilidade e compreensão quando vistos conjunta e sistematicamente
com as demais normas constitucionais com as quais se vinculam (MARINONI;
MITIDIERO; SARLET, 2018).
O direito à educação, portanto, é um verdadeiro direito à humanização,
essencial ao desenvolvimento do cidadão, eis que o indivíduo não nasce educa-
do, porém possui, desde seu nascimento, direito à dignidade, direito de ser, sendo
a educação essencial para a efetivação da dignidade garantida a todo indivíduo.
Ou seja, pode ser dito que num Estado Democrático de Direito a dignidade da
pessoa humana só se consubstancia quando há a garantia do direito à educação,
pois sem ela não é possível ocorrer o pleno desenvolvimento.
Inobstante a CRFB de 1988 garantir como direitos fundamentais a igualda-
de e a educação, vedando qualquer discriminação impeditiva a estes, observa-se

213
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

na sociedade brasileira uma latente desigualdade entre pretos e brancos no aces-


so à educação, pois as pessoas classificadas como não brancas, em percentual
significativamente alto, estão tolhidas de um dos componentes básicos para a
consecução da humanização, caracterizando a pele preta, assim, um estigma
impeditivo.

METODOLOGIA

Preliminarmente, urge consignar que a efetividade do acesso aos direitos


fundamentais no Brasil, na prática, ainda é condicionada à cor da pele, apesar de
restar previsto na Constituição Federal que todos são iguais em direitos e deveres.
Contudo, o presente trabalho destaca a relação do racismo com o não acesso ao
direito à educação de pessoas pretas.
Dado o recorte proposto, estabeleceram-se como métodos científicos de
abordagem o historiográfico e o dedutivo. O primeiro encontrou aplicação com
o assentamento das bases históricas relacionadas ao estabelecimento do concei-
to de raça, assim como do próprio racismo, e os impactos gerados por estes na
formação da sociedade moderna. O segundo, por sua vez, foi empregado para
exame do objeto central da proposta, a fim de atender o objetivo específico, que
é romper os estigmas da pele preta para acesso à educação, como forma de efe-
tivação dos direitos fundamentais, os quais, em última análise, se traduzem no
próprio direito à humanização que todo indivíduo detém.
No que concerne à classificação da pesquisa, pode-se enquadrar como do-
tada de natureza exploratória e, no que concerne ao enfrentamento do objeto,
como possuidora de perfil qualitativo. Em alusão às técnicas de pesquisas, devido
ao perfil de enfrentamento, empregou-se a revisão de literatura, sob o formato
sistemático, como técnica primária, auxiliada pela pesquisa bibliográfica e da
análise de leis como técnicas complementares. No que se refere ao processo de
seleção, as plataformas pesquisadas foram o Google Acadêmico e o Scielo, sendo
empregado como descritores de busca palavras-chave relacionadas ao tema e o
critério de seleção a pertinência e correlação com o tema.

DESENVOLVIMENTO

Ao tratar da não concretização do direito de acesso à educação em razão


da cor da pele, é preciso estar a par de alguns conceitos básicos relacionados ao as-
sunto. Os termos racismo, discriminação e preconceito logo vêm à mente quando
se levanta a questão racial. Portanto, mostra-se primordial solidificar tais concei-
tos para entender como os indivíduos, a sociedade e o próprio Estado atuam de
forma a não garantir oportunidades igualitárias de acesso ao ensino. De plano,
cumpre consignar que o conceito de “raça”, como é conhecido atualmente, foi
214
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

culturalmente construído ao longo de vários séculos. O termo raça denotando a


cor da pele foi empregado pela primeira vez, como forma de classificar os seres
humanos, no ano de 1684, pelo físico francês François Bernies (MARTINS, 2005
apud FRANCISCO JUNIOR, 2008).
Entretanto, a concepção biológica da palavra “raça”, responsável pelo
surgimento do racismo contemporâneo, que inferioriza negros e indígenas em
relação aos brancos, adveio dos primórdios da humanidade, mais precisamente
da Grécia Antiga (FRANCISCO JUNIOR, 2008). A primeira manifestação de
racismo foi promovida por Aristóteles, para justificar que alguns povos estariam
destinados ao trabalho braçal por nascerem fisicamente mais fortes, enquanto
outros povos, mais capacitados intelectualmente, deveriam governar e dominar
os demais (SANT’ANA, 2005 apud FRANCISCO JUNIOR, 2008).
Deste modo, o pensamento de que existiam homens que nasciam para ser
livres e existiam aqueles que nasciam para ser dominados era a base da sociedade
greco-romana, classificando os seres humanos como “superior” ou “inferior”.
Logo, qualquer povo que não fosse o seu, que não compartilhasse da sua língua,
da sua religião, era considerado um ‘bárbaro’ ou ‘selvagem’, o que significaria ser
menos que um ser humano, e, portanto, estar fadado à escravidão e subordinação
(BOMFIM; FAGUNDES, 2020).
Os discursos biológicos racistas foram baseados na ideia científica da luta
entre as raças, justificada pela teoria do evolucionismo e da luta pela vida. A
ideologia racista está fundada na noção de que há uma raça superior (branco-
europeia) em todos os sentidos. A suposta superioridade da raça branca estaria
ligada à moralidade, intelectualidade, estética... E, consequentemente, as demais
raças constituiriam um perigo para o patrimônio biológico da humanidade. Neste
momento, passou-se a defender a sociedade contra todos os “perigos biológi-
cos” das raças inferiores ou da mistura destas com a raça branca (SCHUCMAN,
2010).
O fenômeno do racismo, baseado na premissa da existência de várias “ra-
ças humanas” distintas entre si, se tornou a ideologia perfeita para justificar o
processo de escravidão dos povos africanos, a colonização e a expansão do capi-
talismo, assim como a ideia de pureza racial que levou ao extermínio dos judeus
durante a Segunda Guerra Mundial. Todos esses eventos históricos resultaram
na hierarquização dos povos europeus em relação às outras populações do globo
(SCHUCMAN, 2010).
O desenvolvimento do capitalismo, por exemplo, levou à incorporação
progressiva dos demais continentes ao sistema europeu, de forma subordinada e
dependente. As sucessivas hegemonias navais e comerciais – ibérica, holandesa
e inglesa – marcaram a presença europeia na América, na África e na Ásia. No
continente Americano, constituíram-se as colônias-padrão da fase mercantilista,

215
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

e muitas delas, a exemplo do Brasil, receberam mão-de-obra escrava majoritaria-


mente do continente Africano (CHAGASTELLES, 2008).
Como dito anteriormente, estes fatos históricos resultaram na forma como
a sociedade se organiza atualmente. Neste sentido, o racismo moderno é visto
como fruto da expansão europeia, a partir do fim do século XV, e da dominação
dos europeus e descendentes sobre os outros povos do mundo. Contudo, é impe-
rioso destacar que os racistas europeus não definiam as outras “raças” a partir de
toda e qualquer diferença física, eles apenas focavam nas diferenças físicas que
diferenciavam os europeus dos outros povos (WADE, 1997 apud MONSMA,
2017). O paradigma colonial permite, ainda, a definição de racismo como a re-
jeição aos imigrantes em vários países europeus, mesmo quando é justificada por
ideologias da inferioridade cultural ou religiosa, sem referência aberta à diferen-
ça biológica. Esses imigrantes chegam já estigmatizados por toda uma carga de
estereótipos do passado colonial, que quase sempre destacam a superioridade
cultural, intelectual e moral dos europeus (MONSMA, 2017).
Ante o exposto, pode se dizer que o racismo nada mais é do que uma
ideologia socialmente construída que prega a existência de uma hierarquia entre
grupos humanos. Sendo assim, no presente contexto, o racismo pode ser com-
preendido como um fenômeno histórico-social ideológico, consolidado e mani-
festado por meio de preconceitos, discriminação e estereótipos. O preconceito,
por sua vez, é um julgamento prévio, expressado por meio de valores, ideias ou
pensamentos pré-moldados no dia a dia. Já a discriminação pode ser entendi-
da como a ação de exclusão, restrição ou preferência que impede o tratamento
ou acesso igualitário a direitos e oportunidades em função de alguma diferença
entre os indivíduos. A conduta discriminatória, que pode ser uma ação ou uma
omissão, viola direitos das pessoas com base em critérios injustificados e injustos,
como a cor da pele (FRANCISCO JUNIOR, 2008).
Neste espeque, cumpre ressaltar que os avanços conquistados pela ciência
passaram a demonstrar a inviabilidade científica da ideia de raça, como forma
de classificação dos seres humanos. Os biólogos, geneticistas e bioquímicos che-
garam à conclusão que o conceito de “raça” se tornou objetivamente inoperante
para explicar a diversidade humana. Contudo, a hierarquização promovida pelos
naturalistas dos séculos passados gerou graves consequências para a sociedade
atual. A subordinação de grupos específicos, distintos pelo tom de pele, ainda é
uma realidade viva no imaginário e na representação coletiva de diversas popu-
lações. Seu uso é, portanto, justificado como uma construção sociológica e uma
categoria social de dominação e exclusão (MUNANGA, 2005 apud BARROS;
MARTINS, 2019).
Os fatores históricos que mediaram a formação da sociedade moderna
levaram à edificação de uma cultura marcada pelo racismo, o que permite a

216
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

compreensão do quadro de desigualdade racial dos dias atuais. Entrementes, an-


tes de adentrar na questão principal da análise, é necessário explicitar o sistema
com base no qual é feita a identificação e a classificação dos grupos raciais no
Brasil, assim como dados oficiais e atuais que retratam a persistência de alto nível
de desigualdade entre negros e brancos na sociedade brasileira, tanto em relação
ao acesso a direitos fundamentais como saúde, educação, segurança, moradia e
trabalho, quanto em relação à exposição à violência policial (LIMA, 2020).
Desse modo, cumpre asseverar que a identificação dos grupos raciais no
Brasil é feita de acordo com o sistema classificatório de “cor ou raça” utilizado
pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que traz as seguintes
categorias: branca, preta, parda, amarela e indígena. Sendo assim, de acordo
com a classificação do IBGE, pretos e pardos constituem categorias raciais di-
ferentes, as quais, juntas, compõem a população negra. A esse respeito, não se
pode perder de vista o fato de que a identidade racial, atualmente, refere-se tan-
to à dimensão biológica do indivíduo quanto a características étnico-culturais,
como localização geográfica, língua e religião. Portanto, para o IBGE, “negro” é
definido como a soma de pretos e pardos. Já o “não negro” se refere à soma dos
indivíduos de raça/cor branca, amarela e indígena (LIMA, 2020).
Isto posto, impende consignar que, no Brasil, o negro ainda hoje é repre-
sentado nos estratos sociais de mais baixa renda. Tal fato possui raízes históricas
que remetem à escravidão. Com a abolição da escravatura e tendo sido os afro-
descendentes lançados à sua própria sorte, se deu início a um duplo processo de
discriminação, que permite explicar a persistência da pobreza relativa de negros.
Por um lado, a discriminação econômica se deu pela transmissão intergeracional
do baixo capital humano, em face de inexistentes políticas inclusivas, que garan-
tissem a equidade, reflexo das preferências elitistas do Brasil colônia, que tornava
a escola um espaço para poucos e brancos. Por outro lado, a crença em torno de
uma raça inferior – que era a ideologia que sustentava a escravidão – não se esgo-
tou com a abolição, mas se perpetuou, refletindo-se em inúmeras manifestações
culturais, como na música e nos meios de comunicação (GOLZITO et al., 2006
apud CERQUEIRA; MOURA, 2013).
O racismo surge, portanto, na cena política brasileira, como doutrina
científica, quando se avizinha à abolição da escravatura e, consequentemente, à
igualdade política e formal entre todos os brasileiros, e mesmo entre estes e os
africanos escravizados. Entretanto, o racismo brasileiro não deve ser lido apenas
como reação à igualdade legal entre cidadãos formais, que se instalava com o fim
da escravidão. Não se pode ignorar que o racismo, no Brasil, também foi o modo
como as elites intelectuais, principalmente aquelas localizadas em Salvador e
Recife, reagiam às desigualdades regionais crescentes que se avolumavam entre o
Norte e o Sul do país, em decorrência da decadência do açúcar e da prosperidade

217
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

trazida pelo café. Havia na época um temor ao ver se desenvolver no Sul uma na-
ção branca, enquanto a mestiçagem campeava no Norte (GUIMARÃES, 2004).
Após longas décadas de exploração e trabalhos forçados, ocorreu a proi-
bição do tráfico de escravos, fato que deu início a uma abolição lenta, gradual e
controlada da escravidão que resultou num processo brutal de exclusão e geno-
cídio contra os negros e seus descendentes. Em seguida, foram editadas a Lei do
Ventre Livre e a Lei dos Sexagenários. A primeira libertava os filhos de escravos
nascidos a partir daquela data. Contudo, na prática, foi uma forma de tirar a
responsabilidade dos senhores de escravos sobre as crianças que nasciam na sen-
zala. Acrescente-se a isto a inexistência de qualquer tipo de política social que
atendesse as demandas daquelas crianças. Data daí a marginalização de crianças
e adolescentes negros que hoje são chamados de “menores”. Já a segunda lei
libertava os escravos com mais de 60 anos de idade. Todavia, tal lei era quase que
inócua, pois eram raros os escravos que chegavam àquela idade. Outrossim, vale
destacar que a lei libertava, porém não garantia nenhum tipo de assistência que
atendesse esta demanda social (OLIVEIRA, 2000).
Neste sentido, é imperioso frisar que o período de exploração da mão-de-
-obra escrava totalizou três séculos, tendo chegado ao fim em 1888, com a conhe-
cida Lei Áurea. Sendo assim, é difícil pensar que 300 anos da história do Brasil,
marcados pela exploração, tortura, e massacre da população negra, seriam supe-
rados da noite para o dia, com a abolição da escravidão no país. O que se perce-
be, porém, é a ocorrência de uma abolição inconclusa, uma vez que os negros,
que passaram a ser cidadãos livres, foram lançados à própria sorte na sociedade
brasileira. Não lhes foi garantido o mínimo para a subsistência, como emprego,
alimento e moradia. Aqueles que antes tinham o que comer, onde dormir, apesar
dos trabalhos forçados e dos castigos constantes, se viram sem qualquer perspec-
tiva de manutenção da própria existência (OLIVEIRA, 2000).
Após a abolição da escravidão, o preconceito mudou de conteúdo e de
funções sociais:
“Com a desagregação da ordem servil, que naturalmente antecedeu, como
processo, à abolição, foi-se constituindo, pouco a pouco, o problema negro, e
com ele intensificando-se o preconceito com novo conteúdo. Nesse proces-
so, o “preconceito de cor ou de raça” transparece nitidamente na qualidade
de representação social que toma arbitrariamente a cor ou outros atributos
raciais distinguíveis, reais ou imaginários, como fonte para a seleção de
qualidades estereotipáveis. De um momento para outro, o negro – que fora
sustentáculo exclusivo do trabalho na escravidão – passa a ser representado
como ocioso, por ser negro, e assim por diante (CARDOSO, 2003 apud
SILVA; TOBIAS, 2016, p. 184).”

Na luta para combater e diminuir a desigualdade racial em nossa socie-


dade, a qual faz com que grande parte da população negra viva na condição de

218
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

exclusão, entra a ação do Movimento Negro com sua pauta reivindicatória, que,
no cenário político-institucional do Brasil, atualmente, apresenta-se como um
dos principais movimentos sociais. Pauta-se o movimento na demonstração das
falhas e incoerências do nosso sistema democrático, o qual é marcado por idios-
sincrasias sociais maculadas pelo racismo estrutural e institucional presentes no
país (SANTOS, 2008 apud BARROS; MARTINS, 2019).
E é nesse cenário que entra o estigma da pele preta como obstáculo à
concretização do direito à educação, ou seja, as segregações acima mencionadas
culminaram com a desigualdade educacional entre brancos e pretos, de modo
que estes, em comparação com aqueles, são tolhidos do direito à humanização,
haja vista que a educação é um componente essencial à formação completa do
indivíduo. Nesse sentido, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios Contínua – PNAD Educação, de 2019, feita pelo IBGE, cerca de
71,7% dos jovens fora da escola são negros, e apenas 27,3% destes são brancos.
Segundo o mesmo estudo, a desigualdade de acesso à educação também é nítida
nos índices de analfabetismo. Em 2019, 3,6% das pessoas brancas de 15 anos ou
mais eram analfabetas, enquanto entre as pessoas negras esse percentual chegava
a 8,9% (INSTITUTO UNIBANCO, 2020, online).
Impende ser destacado, ainda, que além do acesso à educação a desi-
gualdade racial afeta, sobremaneira, o próprio direito à aprendizagem, pois,
segundo estudo realizado pela Iede (Interdisciplinaridade e Evidências no
Debate Educacional), através da obtenção de dados do Sistema de Avaliação da
Educação Básica (Saeb), em todos os Estados da Federação, seja no 5º ou 9º ano,
na totalidade das disciplinas analisadas (matemática e língua portuguesa), exis-
tem significativas e marcantes diferenças entre o percentual dos estudantes pre-
tos e brancos que atingem os adequados índices de aprendizagem (INSTITUTO
UNIBANCO, 2020, online).
Como já esposado outrora, tais discriminações são derivadas da própria
história da sociedade brasileira, pois o Brasil foi a última nação ocidental a abo-
lir a escravidão, não criando, consequentemente, condições dignas de inserção
do povo negro na sociedade. Com isso, encontra-se arraigado na subjetividade
e no inconsciente dos indivíduos e das próprias instituições os preconceitos di-
recionados à população preta, os quais são perceptíveis nas atitudes discrimi-
natórias observáveis e mensuráveis, como é o caso da educação (INSTITUTO
UNIBANCO, 2020, online).
Analisadas as diversas variantes, percebe-se que a desigualdade racial
no acesso à educação é altamente complexa, demandado o enfrentamento de
muitos desafios. Nesse prisma, alguns caminhos podem ser identificados como
ações a diminuir tais discrepâncias. Prima facie, deve ser adotado um diálogo
voltado cada dia mais para a valorização da cultura negra. Seguindo essa trilha,

219
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

são necessárias oficinas voltadas para o combate ao preconceito, inserção de


representações negras na literatura adotada, e, ainda, a desconstrução da ideia
de uma raça superior, a fim de que, assim, seja realmente assegurada a igualdade
no acesso ao fundamental direito à educação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consoante se depreende da abordagem realizada no texto, em que pese a


Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 asseverar a universaliza-
ção do direito fundamental à educação, verifica-se, na prática, que a pele preta se
traduz em um verdadeiro estigma para a não concretização do direito de acesso
à educação, o qual deve ser assegurado a todo e qualquer cidadão, independen-
temente da cor, sexo ou ‘raça’.
Nessa esteira, o não acesso à educação em razão da cor da pele transmu-
ta-se, na verdade, em ofensa a outros e basilares direitos fundamentais do indiví-
duo, dentre os quais se destaca a liberdade e, em última ratio, o próprio direito à
vida, pois não há que se falar em uma vida digna sem acesso à educação. Assim,
romper as barreiras do preconceito racial é medida necessária e urgente para a
garantia da concretização e efetivação do direito à educação, sem o qual o indi-
víduo permanecerá às margens da sociedade e, consequentemente, distante de
uma vida digna.
Sendo o direito à educação um verdadeiro direito à humanização, impres-
cindível ao desenvolvimento do cidadão, deve ser efetivado a todos os indivíduos,
como pressuposto para assegurar a dignidade do ser. Assim, cumpre ser destaca-
do que a dignidade da pessoa humana só se consubstancia quando há a o acesso
à educação, pois sem está a formação global do ser resta prejudicada.
Diante desse prisma, mesmo que há muito se tem escutado acerca da
igualdade étnico-racial e social, traduzida na igualdade de direitos, observa-se
que a realidade social e étnica brasileira encrostada está absolutamente distante
disso. Perpetuou-se ao longo da história a ideia de inferioridade de certos povos,
dentre os quais podemos destacar o preto e o índio, ou seja, a desigualdade é
algo impregnado na estrutura social brasileira, trazendo abissais distorções que
afetam aqueles taxados como seres de menor importância.
Nesse contexto de disparidades existentes, a escola passou a assumir, per-
mitir e consolidar as desigualdades existentes na sociedade, sejam elas culturais,
sociais ou étnico-raciais, isto porque ao assumir uma postura de que é igual para
todos, implicitamente adotou a ideia de que cada um chega onde sua capacida-
de permite, ignorando, entretanto, os pontos nevrálgicos de distorções impostos
pela sociedade.
O direito de acesso à educação transmuta-se, assim, na capacitação do

220
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

indivíduo para o agir crítico na sociedade, na sua construção como cidadão do-
tado de capacidades cognitivas, culminando, inexoravelmente, na preservação
da plena democracia, a qual não existe diante de restrições impostas pela cor da
pele.
Como seres inacabados que somos, devemos, a todo custo, militar em prol
de uma educação antirracista, baseando nossas ações, e, inegavelmente, as ações
do Estado, através do diálogo e da construção de alternativas voltadas para o me-
lhor equilíbrio da sociedade. Esse, inclusive, é o ensinamento do saudoso mestre
Paulo Freire:
Não mais educador do educando, não mais educando do educador, mas
educador-educando com educando-educador. Desta maneira, o educador
já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em
diálogo com o educando que, ao ser educado também educa. (FREIRE,
2005, p. 78-79).

Como um dos instrumentos mitigadores dessa ofensa à efetiva igualdade


de direitos podem ser destacadas as políticas afirmativas, por meio das quais se
busca diminuir o abismo existente entre pretos e brancos no acesso à educação,
materializadas, por exemplo, pelas cotas raciais e sociais para acesso aos cursos
de graduação em nosso país.
Ante o discorrido, o presente trabalho se volta a chamar a atenção para o
tema do estigma causado pela pele preta como impedimento ao acesso à educa-
ção, vez que é notório o desequilíbrio entre brancos e pretos quanto ao tema, es-
tando estes negligenciados e aviltados de seus basilares direitos, seja em razão do
arraigado racismo estrutural presente em nossa sociedade, bem como da estratifi-
cação social existente, a qual também empurra os pretos para a base da pirâmide.
De modo algum se busca esgotar a temática e estabelecer estratégias e/ou
métodos para a solução do problema, o que seria temeroso e irresponsável ante a
complexidade do objeto. Busca-se, assim, trazer o tema à discussão, apontar ca-
minhos viáveis a serem trilhados, além de fomentar a reflexão acerca da questão,
tudo com o fito de ver efetivada uma educação antirracista.

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223
RESPONSABILIDADE SOCIAL DA UNIVERSIDADE
COMO CONTRIBUIÇÃO PARA A CIDADANIA
Neuza Maria de Siqueira Nunes1
Juliana da Silva Gomes2
Artur de Siqueira Nunes Reis3

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo abordar a contribuição da res-


ponsabilidade social da universidade na formação de indivíduos para atuarem
de maneira responsável com a capacidade de valorizar a vida e de respeitar a
dignidade das pessoas. A universidade, além da responsabilidade pela educação
formal também deve ter responsabilidade pela educação não formal, disponibi-
lizada por meio de projetos sociais extensionistas com atuação para modificar a
realidade social em benefício de uma sociedade mais justa e igualitária.
A responsabilidade social da universidade não deve ser uma atividade
afastada da educação, mas precisa ser uma nova maneira de educar, com mais
abrangência e com mais consciência e não com atividades isoladas em certos
períodos. Deve estar incorporada no dia a dia dos indivíduos interligada ao que
é ensinado ao que é praticado de acordo com as ações coerentes com o discur-
so e com a ação. A responsabilidade social da universidade está na habilidade
em disseminar e pôr em prática os princípios e os valores através da gestão, da
docência, da investigação e da extensão. Os valores e os princípios de cada indi-
víduo estão relacionados ao plano pessoal com a dignidade da pessoa, liberdade
e integridade.
A metodologia empregada na condução do presente são os métodos histo-
riográfico e dedutivo, auxiliados pelas seguintes técnicas de pesquisa: revisão de
literatura sistemática e análise documental.

1 Doutoranda em Ciências da Educação pela Universidad Autônoma de Asunción. Mestra


em Economia Empresarial pela Universidade Cândido Mendes. neuzamsnunes@gmail.
com.
2 Mestranda em Cognição e Linguagem pela Universidade Estadual do Norte Fluminense.
[email protected].
3 Graduando do Curso de Medicina da Faculdade Metropolitana São Carlos. artursnr@
gmail.com.
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

RESPONSABILIDADE SOCIAL DA UNIVERSIDADE

A educação é uma importante ferramenta de transformações e de melho-


rias nas relações sociais. Dessa forma, a universidade é um ambiente privilegiado
que pode contribuir para a formação de indivíduos capazes de pensar e de agir
para a construção de um mundo melhor e para a melhoria de vida. Assim, a
educação pode servir como condução necessária para a inclusão social capaz de
oportunizar igualdade de condição para a formação profissional e para a redução
de desigualdade social.
A universidade pode colaborar com a sociedade ofertando recursos huma-
nos qualificados que poderão intervir na realidade com respostas para as deman-
das que emergem no dia a dia. O ambiente universitário desenvolve ações no
campo científico que interage aos demais âmbitos sociais com responsabilidade
em produzir soluções em prol da sociedade. Para tanto, todos os envolvidos, os
gestores, os professores, os funcionários e os alunos, precisam entender a função
social da universidade para que se possa construir o conhecimento. Juliatto sa-
lienta que:
por sua natureza, toda universidade é socialmente responsável pelo fato de
preparar profissionais que deverão sustentar-se com dignidade e de prepa-
rar lideranças para todas as áreas, formadores de opinião e tomadores de
decisão. Além disso, ela promove a responsabilidade social enquanto educa
seus alunos para a solidariedade (JULIATTO, 2004, p. 17).

O desenvolvimento humano deve ser centrado na compreensão das dife-


renças, no pluralismo cultural, e a universidade é uma poderosa instituição para
promover o desenvolvimento cultural, social e econômico da comunidade onde
se encontra. Portanto, faz-se indispensável refletir sobre a responsabilidade social
da universidade, em razão de ser um local privilegiado para a produção de co-
nhecimentos e para a formação de cidadãos capazes de atender às demandas da
sociedade que surgem no século XXI.
Para dar suporte à sociedade precisa-se de um ensino superior equitativo
que garanta o acesso e a participação dos indivíduos, independente de fatores
como o socioeconômico, gênero ou etnia, muitas vezes comprometido pelas de-
sigualdades nos níveis anteriores ao da educação universitária. Caso as oportu-
nidades educacionais anteriores resultem na falta de pré-requisitos para a admis-
são no ensino superior, os indivíduos podem ser excluídos da universidade. A
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) redige
em 2008 várias publicações sobre educação superior, e algumas são destinadas à
igualdade:
equidade em educação tem duas dimensões. A primeira é a justiça, a qual
pressupõe que circunstâncias pessoais e sociais – por exemplo, sexo, status

225
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

socioeconômico ou origem étnica – não devem ser um obstáculo ao desen-


volvimento do potencial educativo. A segunda é a inclusão, a qual implica
assegurar um padrão básico mínimo de educação para todos – por exem-
plo, que todos devem ser capazes de ler, escrever, e fazer cálculos aritmé-
ticos simples. As duas dimensões estão intimamente ligadas: combater o
insucesso escolar ajuda a superar os efeitos das carências sociais, as quais,
muitas vezes, são responsáveis por esse fracasso (OCDE, 2008, p. 73).

Assim sendo, no decorrer do tempo as universidades debatem maneiras de


promover mudanças em seus sistemas educacionais em direção aos estímulos e
ao desenvolvimento de novas abordagens de aprendizagem e de produção, gestão
e aplicação do conhecimento para o acesso e a inclusão. Nesse contexto, têm-se
discutido qual a contribuição e o papel dos sistemas educacionais e das institui-
ções universitárias em transmitir, produzir e disseminar o conhecimento com o
comprometimento e com a responsabilidade social para contemplar os desafios
estabelecidos globalmente para construir uma sociedade com mais justiça e mais
igualdade. O debate revela que é necessária a promoção de mudanças em direção
à construção de ambientes educacionais responsáveis pela promoção da equida-
de e do desenvolvimento de mecanismos de inclusão social.
A responsabilidade social da universidade está na capacidade em difundir
e colocar em prática os princípios e os valores por meio da gestão, da docência,
da investigação e da extensão. Os valores e os princípios individuais estão agre-
gados ao plano pessoal em conformidade com a dignidade da pessoa, liberdade,
integridade e no plano social com o “bem comum e equidade social; desenvolvi-
mento sustentável e meio ambiente; sociabilidade e solidariedade para a convi-
vência; aceitação e apreço à diversidade; cidadania, democracia e participação; e
no plano universitário – compromisso com a verdade; excelência; interdependên-
cia e transdisciplinaridade” (LA JARA, 2007 apud MOROSINI, 2009, p. 174).
Nas instituições de ensino superior, segundo Vercelli (2010), a responsabi-
lidade social acontece por intermédio da extensão, consolidada no país após os
anos de 1980, quando o compromisso social das universidades públicas brasilei-
ras passa a ser discutido e reordenado. As ações desenvolvidas através da exten-
são começam a ser articuladas com o ensino e com a pesquisa com evidências
de ser necessário ofertar uma formação integral aos alunos. Logo, surge uma
cooperação entre o poder público, a universidade, a comunidade e as empresas
com o propósito de aproximar as universidades com a sociedade.
Por esse ponto de vista, a universidade deve ter como propósito formar
para a cidadania e o conhecimento adquirido pela educação torna-se um ele-
mento importante não somente no ambiente universitário, mas além dele, capaz,
através da responsabilidade social, de formar/tornar indivíduos autônomos para
atuarem de maneira responsável com a capacidade de valorizar a vida e respeitar
a dignidade das pessoas. Para Vercelli (2010), a universidade deve ser responsável

226
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

pela educação formal como também pela educação não formal, ofertada através
de projetos sociais extensionistas, atuando com desempenho capaz de transfor-
mar a realidade social em prol de uma sociedade com mais justiça e igualdade.
Gohn (2006 apud Vercelli, 2010, p. 130) define educação formal como a que é
regulamentada conforme as diretrizes nacionais, com os conteúdos preestabele-
cidos cujo objetivo está em transmitir o conhecimento sistematizado e desenvol-
ver habilidades e competências, almejando uma aprendizagem efetiva para que o
indivíduo consiga certificado para continuar a estudar em outro grau de ensino.
Para a autora, educação não formal:
É um processo que envolve seis dimensões:
1- aprendizagem política, que envolve a consciência política dos cidadãos;
2- capacitação para o trabalho desenvolvendo as habilidades e competên-
cias necessárias para atuar no mercado;
3- aprendizagem de práticas com objetivo comunitário, isto é, envolve pro-
blemas do cotidiano;
4- aprendizagem de conteúdos desenvolvidos pela educação formal, porém
em espaços diferenciados que levam o indivíduo a compreender o que se
passa ao seu redor e, com isso, fazer uma leitura do mundo;
5- educação na e pela mídia que pouca atenção recebe por parte dos edu-
cadores e;
6- educação para arte de bem viver, relacionados à boa alimentação, ao es-
porte, à saúde de forma geral a fim de evitar e/ou aprender a conviver com
o estresse. (GOHN, 2006 apud VERCELLI, 2010, p.130-131)

A educação não formal, em conformidade com Vercelli (2010), não é


substituída pela educação formal, ambas se completam através de programas
específicos interligando comunidade e universidade, tendo em vista a formação
dos indivíduos para a cidadania. A educação deve ser direcionada para a justiça
social; para os direitos humanos, sociais, políticos e culturais; para a liberdade;
para a igualdade; para a democracia; contra a discriminação e para o respeito das
diferenças culturais. A aprendizagem será significativa mediante a experiência e
a reflexão sobre as questões sociais em que a extensão poderá preparar cidadãos
com a capacidade de fazer a leitura da realidade em busca de uma transformação
social para uma vida com mais dignidade.
O Plano Nacional de Extensão Universitária de 2000-2001 aponta o com-
promisso social da universidade como forma de inclusão nas ações para promover
e garantir os valores democráticos, a igualdade e o desenvolvimento social. Para
Nogueira (2000), o plano estabelece que extensão deva ser a prática acadêmica
com o objetivo de articular a universidade, em suas atividades de ensino e pes-
quisa, de acordo com o que é requisitado pela sociedade. As instituições devem
elaborar e executar políticas públicas para a cidadania e a extensão universitária,
como processo educativo, cultural e científico, vinculando o ensino e a pesquisa
de forma indissociável. O plano reconhece a função essencial da universidade em

227
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

produzir e socializar o conhecimento, tendo em vista a interferência na realidade.


Mas para atender à demanda das necessidades da maioria da população
precisam-se retomar alguns princípios básicos que fazem parte da política da
extensão universitária, dentre eles:
- a ação cidadã das universidades não pode prescindir da efetiva difusão dos
saberes nelas produzidos, de tal forma que as populações cujos problemas
tornam-se objeto da pesquisa acadêmica sejam também consideradas sujei-
to desse conhecimento, tendo, portanto, pleno direito de acesso às informa-
ções resultantes dessas pesquisas;
- a prestação de serviços deve ser produto de interesse acadêmico, científi-
co, filosófico, tecnológico e artístico do ensino, pesquisa e extensão, deven-
do ser encarada como um trabalho social, ou seja, ação deliberada que se
constitui a partir da realidade e sobre a realidade objetiva, produzindo co-
nhecimentos que visem à transformação social (NOGUEIRA, 2000, p. 5).

A responsabilidade social não deve ser uma tarefa separada da educação.


Pereira (2003) esclarece que precisa ser uma nova maneira de educar, deve ser
abrangente e mais consciente, e não com atividades isoladas em determinadas
ocasiões. Precisa estar agregada no dia a dia dos indivíduos, conectada ao que
é ensinado e ao que é praticado, em consonância com as ações coerentes com o
discurso e com a ação. Nesse âmbito, a universidade pode contribuir para formar
cidadãos capazes de praticar a cidadania, princípio fundamental da educação
focada em valores universais. Para tanto, a responsabilidade social deve contri-
buir para a integração da comunidade com o envolvimento dos docentes e dos
discentes no estudo da realidade local em busca de soluções e de práticas para
os problemas da sociedade, “promovendo a educação que fortaleça a consciên-
cia crítica, criadora, técnica e ética, gerando novos conhecimentos; apoiando
a criação e produção cultural, integrando-se à ação educativa e aos diferentes
contextos sociais da região” (PEREIRA, 2003, p. 124).
Ribeiro (2013) também corrobora que a universidade tem como função
básica a produção e a transmissão do conhecimento para o desenvolvimento da
sociedade e que:
o papel da universidade é desenvolver mentes humanas proativas para o
pleno exercício da cidadania, por meio de ações criativas capazes de cons-
truir sociedades socialmente responsáveis e economicamente sustentáveis.
Todo o seu esforço precisa convergir para a formação de competências,
como o respeito pelo outro e pelo planeta, solidariedade humana, espírito
de democracia e de coletividade, além de competências técnicas e cien-
tíficas, no sentido de promover uma melhor formação acadêmica e pro-
fissional. Assim, diz-se que universidade tem papel capital na promoção
de ações de responsabilidade social, ou seja, ela concretiza seu papel de
instituição geradora de conhecimento através da responsabilidade social
universitária no processo que inter-relaciona ensino, pesquisa e extensão
(RIBEIRO, 2013, p. 36).

228
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Pela óptica da organização de uma gestão universitária socialmente res-


ponsável, além das funções sociais de ensino, pesquisa e extensão, precisam ser
esboçadas outras linhas, sem as quais a responsabilidade social teria dificuldade
de cumprir, como: “a) garantir a responsabilidade social da ciência; b) promover
a formação da cidadania democrática; c) contribuir para o desenvolvimento, por
meio da formação do estudante, como agente de desenvolvimento” (RIBEIRO,
2013, p. 40).
A universidade precisa estar atenta às grandes mudanças que ocorrem no
mundo pelo impacto da globalização econômica, científica e cultural, e por ser
uma instituição que sofre as interferências políticas, econômicas, culturais e tec-
nológicas na sua proposta social. Percebe-se que cada vez mais cresce no mundo
a quantidade de universidades empreendedoras, tendo em vista menor depen-
dência financeira do Estado e com foco na sustentabilidade institucional.
A responsabilidade social universitária, para Ribeiro (2013), deve entender
o contexto histórico da instituição criada para atender a elite brasileira, mas que
a partir de 1968, com a modernização da universidade no país, está voltada para
ser uma “universidade para todos”, tendo como princípio a indissociabilidade
ensino, pesquisa e extensão e prestação de serviços à comunidade em sua volta,
institucionalizando, de tal modo, os primeiros sinais da responsabilidade social
universitária.
O ensino superior, para Ribeiro e Magalhães (2014), deve ter como uma
das suas fundamentais intenções a prioridade em gerar o conhecimento, a quali-
dade dos serviços prestados e, por decorrência, prezar pelo desenvolvimento das
variadas dimensões, como a dimensão social, a cultural, a de sustentabilidade e
a econômica. O conhecimento produzido no intuito de promover o desenvolvi-
mento social sugere que a universidade seja apta a preparar os estudantes para
desenvolver a consciência crítica sobre o mundo em que vivem e prepará-los para
resolver procedimentos necessários para construir uma sociedade melhor, com
mais justiça e com democracia. Por conseguinte, a universidade deve agregar
o compromisso pela ética, além de “buscar o conhecimento da realidade, pois
a responsabilidade social diz respeito a uma forma de gestão capaz de assistir
aos grupos sociais excluídos pela pobreza, pela fome, pela falta de segurança,
pelas enfermidades e pela falta de garantias dos seus direitos sociais” (RIBEIRO;
MAGALHÃES, 2014, p. 141).
A definição de responsabilidade social universitária está interligada ao de-
senvolvimento para a promoção humana e indica outro campo de atuação, o
desenvolvimento sustentável, que determina a importância de utilizar os recur-
sos naturais com critérios e com planejamento, já que são finitos. A educação
superior deve ter como proposição não só a discussão sobre a responsabilidade
social, mas mostrar soluções lógicas sobre o desenvolvimento sustentável para

229
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

que o mundo tenha no futuro um meio ambiente melhor. Para tanto, a universi-
dade deve estar pautada no desenvolvimento de competências para a formação
do capital humano tendo em vista promover o crescimento econômico, justiça
social e cidadania.

CAPITAL HUMANO COMO RESPONSABILIDADE SOCIAL

Um dos fatores mais importantes para o papel econômico do capital hu-


mano é o aumento da chamada economia do conhecimento, que se baseia na
produção e gerenciamento dos dados e da informação. O êxito econômico dos
países depende, em grande parte, do seu capital humano - sua educação, suas
competências, seus talentos e suas capacidades. Uma das maneiras na contri-
buição para o crescimento econômico é através da educação e da formação do
capital humano.
A educação formal é importante para a formação do capital humano e
para garantir que as pessoas desenvolvam as competências e os conhecimentos
que lhes possibilitarão obter melhores condições de vida. Não se deve pensar na
formação do capital humano só em termos de instrução, mas sim em termos de
aprendizagem, um processo contínuo ao longo da vida. Para a OECD (2007)
economicamente os retornos do capital humano podem ser entendidos como
prosperidade individual e de economia nacional. Os retornos do capital humano
tendem a aumentar, em função do aumento no nível de instrução das pessoas.
A teoria do capital humano considera que existe uma relação entre edu-
cação e rendimento. A relação é direta onde a variável educação afetaria a
variável rendimento. A hipótese é que maiores níveis de escolaridade elevam
a produtividade do trabalho do indivíduo, ocorrendo consequentemente, um
aumento de salário. Desta maneira, a teoria reconhece a validade do trinômio
educação-produtividade-renda.
Em geral, os indivíduos reconhecem os benefícios que a educação oferece
em termos econômicos ou salariais. Pelo lado da oferta de trabalho (indivíduos),
educar-se pode elevar a produtividade e, pelo lado da demanda de trabalho (em-
presas), essa maior produtividade é recompensada através de maiores salários.
Para Tafner (2005, p. 1), “o conhecimento é um bem valioso”. A escola formal
ainda continua sendo o principal caminho para o conhecimento tornando as
pessoas mais conscientes, podendo ser um agente valioso de transformação. A
educação permite às pessoas utilizarem melhor os recursos a que têm acesso e
gerar ganhos de produtividade no trabalho, fator determinante no crescimento
econômico e na remuneração dos trabalhadores.
Tendo como base a teoria do capital humano, as decisões que orientam
uma pessoa a cursar anos adicionais de estudo seguem os princípios neoclássicos

230
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

de maximização. O montante de investimento que os indivíduos fazem em for-


mação ou qualificação profissional está relacionado na expectativa de retornos
adicionais futuros traduzidos na forma de aumento salarial. Ou seja, o indivíduo
considera a taxa de retorno diante a um custo de oportunidade ditado pelo rendi-
mento presente que ele deixa de obter (se em lugar de estudar estivesse trabalhan-
do), mais uma taxa proveniente do pagamento do ensino a ser recebido.
Conforme Alves e Vieira (1995), partindo dos pressupostos da teoria do
capital humano, a educação e a qualificação profissional constituem requisito
fundamental para que os trabalhadores possam ampliar as oportunidades de in-
serção no mercado de trabalho. A qualificação profissional sendo representada
pela capacidade de aprender, pelo conjunto de atitudes, como iniciativa e auto-
nomia garante aos trabalhadores empregabilidade, isto é, capacidade de perma-
necer no mercado de trabalho.
Segundo Barros, Henriques e Mendonça (2002), a expansão educacional
aumenta a produtividade do trabalho, contribuindo para o crescimento econômi-
co, o aumento de salários e a diminuição da pobreza. Também promove maior
igualdade e mobilidade social, na medida em que a condição de “ativo não trans-
ferível”, faz da educação um ativo de distribuição mais fácil do que a maior
parte dos ativos físicos. Para os autores, o subinvestimento em capital humano
é preocupante, na medida em que a escolaridade da população explica de modo
significativo, a intensa desigualdade de renda do país. O estoque individual de
capital humano pode ser medido pelo número de séries completas de estudo for-
mais. Em relação ao mercado de trabalho, observa-se que a heterogeneidade da
escolaridade entre os trabalhadores e o valor atribuído aos anos de escolaridade
adicionais representam os principais determinantes da desigualdade salarial.
Carpena e Oliveira (2002) estimaram o estoque do capital humano a partir
de coeficientes de retorno à educação e à experiência, com base em uma equação
de Mincer, que relaciona o logaritmo dos rendimentos dos indivíduos com seus
respectivos anos de escolaridade e de experiência no trabalho. As estimativas fo-
ram obtidas utilizando-se o método do valor presente dos fluxos de renda futuros
dos indivíduos que, por hipótese, dependem de sua escolaridade e experiência
no trabalho. Identificaram, conforme visão predominante na literatura, que a
escolaridade é a variável mais significativa para determinar o capital humano.
O entendimento de responsabilidade social, segundo Medeiros Júnior
(2004), pode ser visto como um compromisso ao longo da vida humana dentro
do aspecto ético. Dessa maneira, a universidade contribui para o desenvolvimento
econômico, como também com práticas de justiça social. Sob essa óptica, a produ-
ção de conhecimento científico e tecnológico necessita ser dirigida de acordo com
a realidade da população. Assim, a formação precisa ter como referência os valores
da democracia, respeitando a diversidade cultural e as diferenças sociais.

231
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

De acordo com Medeiros Júnior (2004), a responsabilidade social e ética


da universidade representa em ação consciente da sua função enquanto agente
transformador social. No entanto, é necessário que as instituições de ensino su-
perior tenham consolidado projetos priorizando a justiça social. O autor destaca
que as universidades estão gradativamente atentadas em preparar profissionais
socialmente responsáveis, que de certa forma não estão preocupadas somente
com o retorno financeiro, mas em políticas contínuas para aumento do capital
humano.
Pompeu (2011) analisa as ações de responsabilidade social das instituições
de ensino superior como ferramenta capaz de transformar a realidade local, “vi-
sando o desenvolvimento sustentável, por meio da formação de capital humano
e social, por meio de projetos sociais que propiciem a interação entre os conhe-
cimentos local e global e suas respectivas demandas e necessidades” (POMPEU,
2011, p. 36). Para o autor, conforme seu estudo, os resultados obtidos revelam
que as universidades:
i) investem no capital humano, com a oferta de cursos gratuitos de capaci-
tação profissional, baseados na demanda e características da região; ii) pro-
movem a melhoria da qualidade de vida das pessoas que vivem nas
regiões circunvizinhas às instituições; iii) incentivam a criação de em-
presas e de novos negócios, na promoção da inovação e do empreen-
dedorismo; iv) formam profissionais de excelência, comprometidos e
conscientes com os problemas sociais; v) promovem a autoestima
e a credibilidade entre as pessoas da mesma comunidade, isto é,
investem no capital social e vi) tornam-se agentes transformadores e
instrumentos de desenvolvimento local sustentável (POMPEU, 2011, p. 6).

Assim, Pompeu (2011) assevera que a educação retrata uma expressiva


estratégia que pode ser utilizada em benefício da sociedade, com criação de opor-
tunidades. A ação de uma universidade pode ter qualificação ao incorporar co-
nhecimento e pesquisa, possibilitando oportunidades apropriadas à difusão do
aprendizado, fundamentalmente elaborando atividades direcionadas ao desen-
volvimento do capital humano e social. A responsabilidade social da universi-
dade impacta na criação e desenvolvimento de capital humano, capital social e
desenvolvimento local.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma das competências da universidade está na contribuição para formar


cidadãos capazes de praticar a cidadania, princípio fundamental da educação fo-
cada em valores universais. Logo, a responsabilidade social deve contribuir para
a integração da comunidade com o envolvimento dos docentes e dos discentes no
estudo da realidade local em busca de soluções e de práticas para os problemas

232
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

da sociedade.
Outro elemento que agrega competência a responsabilidade social da uni-
versidade é o capital humano. O aumento do conhecimento, baseado na produ-
ção e no gerenciamento da informação, constitui uma das premissas do capital
humano. A responsabilidade social da universidade contribui para o desenvolvi-
mento do capital humano, ampliando competências e capacidades. Por conse-
guinte, a universidade além da propagação do compromisso ético e moral, deve
oportunizar a transformação social, a consciência crítica, a valorização humana
e a interação entre universidade e sociedade.

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234
OS ESTUDOS CRÍTICOS DA BRANQUITUDE E A
POLÍTICA DE COTAS RACIAIS NO BRASIL1
Marisa Fernanda da Silva Bueno2

INTRODUÇÃO

Os Estudos Críticos da Branquitude surgem em função de uma série de


problematizações sobre o racismo estrutural e a sua função estratégica de exclu-
são da população negra dos espaços de poder. Nesse sentido, propõem a aná-
lise do racismo pelo enfoque dos interesses e cumplicidades de pessoas que se
identificam como brancas. Com efeito, a emergência dos Estudos Críticos da
Branquitude ocorre, nos Estados Unidos, como um desdobramento da “Teoria
Racial Crítica” (Critical Race Theory – CRT), que foi um movimento de ativistas e
acadêmicos “empenhados em estudar e transformar a relação entre raça, racismo
e poder” (DELGADO; STEFANCIC, 2001, p. 28).
Nesse contexto, as legislações antirracistas se configuram como uma pos-
sibilidade de transformação e como resultado de um longo processo de demanda
dos movimentos sociais pela sua inclusão e acesso aos direitos sociais (educação,
saúde, trabalho etc.). Na contramão do racismo, a educação foi entendida como
uma ferramenta de resistência e mecanismo através do qual a população negra
pôde ampliar a sua participação política nas redes de poder.
Tendo em vista as premissas constituídas nos estudos da branquitude e da
CRT, a brancura é percebida como uma forma de autoidentificação e processo de
subjetivação, mobilizadora de uma série de privilégios sociais, sejam eles simbó-
licos, objetivos ou subjetivos. Na mesma lógica, o racismo se constitui como um
dispositivo em prol da normalização da brancura e da constituição de privilégios
para aqueles que se definem como brancos. Com as discussões promovidas pela
CRT, especialmente no campo da Educação, o debate público e acadêmico sobre
o exclusivismo branco na Educação Superior e sobre os privilégios da popula-
ção branca brasileira ganham força. A educação, nessa lógica, constitui-se como

1 Este artigo é fruto da pesquisa que realizei no Doutorado em Educação da Universidade de


Santa Cruz do Sul (UNISC) e da tese intitulada “A Emergência do Discurso da Branquitu-
de na Legislação Brasileira: Racismo e Educação”. A pesquisa foi realizada com apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES).
2 Advogada, Doutora em Educação, Universidade de Santa Cruz do Sul. E-mail: marisabue-
[email protected]
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

caminho para os indivíduos tornarem-se sujeitos com garantias de reivindicação,


ou seja, capazes de lutar pela sua inclusão nas políticas públicas e no debate
racial, colocando o racismo “em cheque”, questionando a sua constituição e,
sobretudo, problematizando a forma como o racismo se consolidou como a base
para a organização social, política e econômica no ocidente.
A partir dessas prévias considerações, o objetivo deste trabalho é analisar
o discurso crítico da branquitude na Lei Federal n. 12.711, de 29 de agosto de
2012, que institui o programa de cotas sociais e raciais nas universidades e insti-
tutos federais brasileiros. O movimento de emergência da legislação antirracista
se insere numa perspectiva de reconhecimento de privilégios históricos da popu-
lação branca. A Lei de Cotas tem as condições de possibilidade necessárias para
a sua emergência em função de um longo processo de demanda dos movimentos
sociais que exigiam a participação da população negra no ensino superior, sobre-
tudo, no ensino público superior.

OS ESTUDOS DA BRANQUITUDE E A TEORIA RACIAL CRÍTICA


(CRITICAL RACE THEORY – CRT)

O movimento acadêmico da CRT surgiu nos Estados Unidos, em meados


da década de 1970, após o período de luta pelos Direitos Civis, quando as pau-
tas dos ativistas eram acabar com a segregação racial legitimada pelos Poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário3. Estudiosos de tradicionais universidades
norte-americanas questionavam os reais efeitos do fim da segregação para a po-
pulação negra. Entre as suas análises, percebiam a necessidade de inclusão dos
estudos das relações raciais nas universidades. Com efeito, os ativistas da CRT
problematizavam o fato de os currículos dos cursos de graduação não possuírem
recortes raciais.
Em 1981, tendo em vista as demandas dos estudantes de Direito da
Universidade de Harvard (Harvard Laws School) por estudos direcionados para
temáticas de interlocução entre o direito e a questão racial, o Departamento do
Curso de Direito organizou um workshop com uma abordagem tradicional sobre
esses temas. Como uma forma de “boicote”, um grupo de estudantes e professo-
res promoveu outro curso concomitante para contrapor aquele promovido pelo
departamento da universidade. A temática do workshop paralelo propunha uma
intersecção entre o direito e as questões raciais, com o fim de organizar um nú-
cleo acadêmico de análise e luta contra as estruturas que aprisionavam certas
identidades (como afrodescendentes, mexicanos e asiáticos, por exemplo) em

3 O conjunto de leis que prescrevia a obrigatoriedade da segregação racial no sul dos Estados
Unidos era informalmente chamado de Jim Crow Laws (1876-1965), um regime extrema-
mente demarcador de diferenças raciais. O Movimento dos Direitos Civis derrubou o Jim
Crow (a segregação institucional) somente em 1965.
236
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

espaços hierarquicamente inferiores.


Assim emergiu a Critical Race Theory (CRT) ou Teoria Racial Crítica, a
partir das angústias de intelectuais que lutaram pelos Direitos Civis e experimen-
taram os frutos do período após o fim da segregação racial. Essa experiência lhes
proporcionou questionar como o Direito ainda instrumentalizava as diferenças
raciais e funcionava na prática como instrumento de amparo para a aniquilação
do sujeito negro, justamente por não analisar a temática racial como um instru-
mento de exclusão. É nesse contexto que Angela Harris, professora de Direito,
menciona, no prefácio da obra Critical Race Theory: an introduction (um dos prin-
cipais livros da CRT), que existia somente um Direito, o Direito que era apli-
cado para todos, desconsiderando as individualidades relacionadas a raça, cor,
gênero ou religião (HARRIS, 2001). Os principais intelectuais da formação da
CRT foram Derrick Bell, Kimberlé Crenshaw, Richard Delgado, Mari Masuda e
Patricia Williams. Suas proposições possibilitaram uma nova literatura, cujo ob-
jetivo era estabelecer novos parâmetros jurídicos, cujo centro estava no exame do
critério racial como categoria epistemológica de exclusão, como escreve Adilson
Moreira (2021), no prefácio da obra “Teoria Crítica da Raça: uma introdução”.
A CRT questiona, pois, a Ciência Jurídica e o seu discurso de justiça.
Adilson Moreira, de acordo com essa análise, explica:
por sempre ter sido uma categoria do pensamento jurídico em muitas so-
ciedades liberais, os autores ligados à Teoria Crítica Racial4 afirmam que
a raça cumpre um papel importante na construção de narrativas jurídicas,
sendo que muitas delas têm o papel de negar sua relevância como critério
de categorização social (MOREIRA, 2021, p. 21).

Por isso, é importante reestruturar o Direito a partir de novas epistemolo-


gias, principalmente deslocadas da visão de neutralidade, tendo em vista que os
operadores do Direito são, a rigor, representantes da identidade branca, subjeti-
vados pela estrutura normalizada na brancura. É em função dessa analítica que
se estruturam as possibilidades legais de implementação de políticas públicas,
como as políticas de discriminação positiva.
Após as primeiras reflexões propostas pelos estudiosos da CRT nos Estados
Unidos, outros países passaram a ter grandes núcleos de pesquisa para diversas
áreas de pensamento, como a Educação, os Estudos Culturais, a Sociologia, a
Literatura Comparada, a Ciência Política, a História e a Antropologia.
Richard Delgado e Jean Stefancic (2001) referem os pressupostos da CRT
para deslocar as relações estabelecidas entre raça, racismo e poder:
1) O racismo é estrutural, é um mecanismo participante do jogo das rela-
ções, por isso é difícil de ser extinto. É preciso, portanto, problematizá-lo,
desenvolvendo mecanismos para superar os problemas por ele gerados.
4 Alguns autores brasileiros traduzem Critical Race Theory como Teoria Crítica Racial.
237
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(O rganizadores )

Importante perceber aqui a relação da CRT com a interpretação formal de


igualdade (ou daltônica, como chamado pela CRT): as regras que aplicam
a igualdade com princípios estáticos ou neutros não participam para a mu-
dança na realidade excludente da comunidade negra;
2) Convergência de interesses: o sistema racial serve para dar suporte aos
interesses dos indivíduos que ocupam os espaços de poder, ou seja, as eli-
tes brancas, por exemplo, não têm interesse em erradicar o racismo da
sociedade. Em algumas situações, há a convergência de interesse das eli-
tes com as demandas da população marginalizada e por isso existe a sua
repercussão;
3) O terceiro pressuposto da CRT é que o conceito de raça é pensado em
termos sociais, ou seja, constitui-se numa “categoria” “criada” em deter-
minado momento, manipulada e que será excluída quando for convenien-
te para a sociedade.
O princípio de convergência de interesses, importante reflexão utilizada
pelos teóricos da CRT, é constituído a partir do famoso caso Brown v. Board of
Education (decisão da Suprema Corte, em 1954), cujo desfecho destituiu o prin-
cípio que pregava a expressão “separados, mas iguais” para justificar o direito
de igualdade na sociedade que institucionalizava a segregação racial. Nessa de-
cisão, a Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu o acesso dos negros às
escolas e proibiu, assim, a segregação em escolas púbicas. Derrick Bell, um dos
fundadores da CRT, publicou um artigo acadêmico que foi marco de discussão
do caso jurisprudencial. No texto, Bell propõe uma intersecção entre o Direito
e a Educação ao questionar o porquê de a decisão ter sido tomada naquelas cir-
cunstâncias e quais foram os benefícios da reintegração dos negros nas escolas
frequentadas tradicionalmente por brancos (DELGADO; STEFANCIC, 2001).
Derrick Bell explica os resultados dessas políticas e percebe a falta de participa-
ção dos negros como funcionários e professores nas escolas. Isso evidenciou a
criação de fundos de investimento para as escolas das elites como incentivo à
educação, além de receberam mais visibilidade e propaganda, enquanto que os
impactos para a comunidade negra não foram expressivos (BELL, 1990).

CRT E A EDUCAÇÃO

Após o ano de 1995, as pesquisas dos Estudos Raciais Críticos são direcio-
nadas para a área da Educação: a proposta é analisar a categoria racial e as suas
implicações na aprendizagem e na falta de acesso da população afrodescendente
à educação formal. Viviane Weschenfelder (2018) cita o artigo Toward a Critical
Race Theory of education (Rumo a uma Teoria Racial Crítica na educação), de
1995, como o marco desse movimento intelectual. Os autores do referido artigo,

238
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Gloria Ladson-Billings e William Tate (1995), chamam a atenção para as dife-


renças de desempenho entre os estudantes afro-americanos e os estudantes bran-
cos e mencionam a situação como um fenômeno da racialização da sociedade e
da falta do seu enfrentamento.
Nesse contexto, Viviane Weschenfelder (2018, p. 5) diz: “se o racismo é
constituidor das relações sociais e capaz de promover experiências negativas para
as pessoas não brancas, é porque a raça circula como um elemento marcante na
vida de todas as pessoas”. Se a categoria racial está presente de forma estrutural
na sociedade é mister a sua análise no campo da Educação, considerando o binô-
mio raça e educação (BUENO, 2020). Os currículos, para os estudiosos da CRT,
devem ser organizados considerando a categoria racial e os prejuízos que ela traz
para a vida dos indivíduos (desde a organização curricular até a formação de
professores, por exemplo).
Esses argumentos no campo da Educação estão relacionados ao acesso
igualitário à educação, aos espaços de poder, à mobilidade e ascensão social.
Nesse sentido, Gloria Ladson-Billings (1998) explica que o currículo oficial (tra-
dicional, ou seja, que não é produzido a partir da transversalidade da raça) é um
mecanismo para a manutenção da identidade branca nos espaços de poder. O
currículo escolar pretende, mesmo que simbolicamente, manter a sociedade na
sua organização clássica, estruturada nos princípios iluministas da meritocracia
e neutralidade. Um exemplo é a não inserção da população negra como respon-
sável pelo trabalho e mão de obra do Brasil Colônia nos livros de História do
Brasil, ou seja, há um recurso excludente e estratégico nessa escolha: manter os
negros à margem dos conteúdos, pois assim não se identificam com as histórias
contadas e com os recursos pedagógicos utilizados. Não são, dessa forma, moti-
vados para participar do processo de ensino-aprendizagem e perdem o interesse
pela escola e pela educação.

ESTUDOS CRÍTICOS DA BRANQUITUDE (CRITICAL WHITENESS


STUDIES)

Os Estudos Críticos da Branquitude (Critical Whiteness Studies) surgiram


como um dos desdobramentos da CRT. É uma área de pesquisa cujo centro se co-
loca na “raça” branca ou na identidade branca. Nesse sentido, a atenção é direcio-
nada para a brancura como constituição sociológica e símbolo de poder. Richard
Delgado e Jean Stefancic (2001) explicam que, por muitos séculos, as ciências so-
ciais estavam preocupadas com as comunidades negras, estudando as suas his-
tórias, as suas culturas e as suas perspectivas para o futuro, e os estudos críticos
da branquitude propõem a mudança de foco, ou seja, direcionam o olhar para a
construção da categoria racial branca e suas terríveis implicações na sociedade.

239
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

A partir dessa perspectiva teórica, a brancura é percebida como um ins-


trumento constituído e normalizado, colocado no centro das relações de poder.
A figura do “outro”, não branco, foi relacionada à categoria racial. A brancura,
no imaginário coletivo, é constituída como algo puro e inocente (DELGADO;
STEFANCIC, 2001). Os “outros” são os não brancos, ou seja, os indianos, os
latinos, os asiáticos e os africanos, por exemplo (DELGADO; STEFANCIC,
2001). Estar inserido na categoria da “brancura” é um privilégio e possibilita
uma série de garantias no mundo ocidental, é como um passaporte de livre circu-
lação. Os estudiosos da CRT mostram que o fato de ser identificado como branco
possibilita ao sujeito uma série de vantagens sociais. É nesse sentido que o campo
teórico da branquitude percebe como o “branco” foi constituído como o centro
das relações de poder, possibilitando liberdade e privilégios.
Com efeito, a CRT promove a discussão sobre a constituição da brancura
a partir do homem branco europeu e do seu padrão normativo. É o Iluminismo
e a razão iluminista que funcionam como parâmetro de racionalidade, inclusive
para a formação do humanismo. Vale lembrar que o processo de descolonização
da África ocorreu preponderantemente nos anos 1950, 1960 e 1970 e o mundo
europeu pregava a liberdade, a igualdade e a fraternidade desde a Revolução
Francesa (1789-1799). Então, a liberdade e a igualdade tinham significado so-
mente para o branco normalizado nos preceitos ocidentais, cujo eixo central é o
europeu.
No Brasil, os Estudos Críticos da Branquitude aparecem a partir dos anos
2000. Aconteceu um processo de deslocamento e necessidade de ampliação do
olhar no que se referia às pesquisas acadêmicas sobre o racismo e a constituição
das relações raciais. O berço dos estudos críticos da branquitude no Brasil foi a
Universidade de São Paulo (USP). Na década de 1990, uma pesquisa intitulada
“A força psicológica do branqueamento: um estudo sobre a negritude em São
Paulo”, do Instituto de Psicologia, coordenada pela pesquisadora Iray Carone,
percebeu uma espécie de pressão exercida pela identidade branca: “para que o
negro negasse a si mesmo, no seu corpo e na sua mente, como uma espécie de
condição para se ‘integrar’ (ser aceito e ter mobilidade social) na nova ordem so-
cial” (CARONE, 2014, p. 14). Outra pesquisadora de destaque foi a Edith Piza.
Em 1998, Piza publica um livro sobre o significado de personagens femininas
negras constituídas nos textos de mulheres brancas. As personagens negras eram
marcadas pela categoria racial, enquanto as personagens brancas não estavam
presas a categorização (PIZA, 2005). A análise feita pela autora mostra como a
brancura é normalizada e, por isso, não precisa ser marcada, enquanto o negro é
retratado de maneira estereotipada.
A pesquisadora Maria Aparecida Silva Bento, uma das pioneiras nos estu-
dos sobre a branquitude no Brasil, publica em 2002 a tese “Pactos narcísicos no

240
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder públi-


co”, com o objetivo de compreender a reprodução das desigualdades raciais no
trabalho, a partir de relatos de gestores de recursos humanos de dois municípios
do estado de São Paulo. Ao analisar o discurso dos gestores, ela refere que o pac-
to “narcísico” existe entre os indivíduos brancos, com a intenção de beneficiar os
participantes do mesmo grupo de identificação racial.
O livro “Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e bran-
queamento no Brasil”, organizado por Iray Carone e Maria Aparecida Silva
Bento, publicado pela primeira vez em 2002, é uma referência importante nos
estudos críticos da branquitude e começa a circular academicamente, constituin-
do-se uma importante referência. Liv Sovik, nos anos de 2004 e 2005, escreveu
importantes artigos: “Aqui ninguém é branco: hegemonia branca e média no
Brasil”, “We are family: whiteness in the brazilian media” e “Por que tenho razão:
branquitude, estudos culturais e a vontade da verdade acadêmica”. Ela analisa
como a mídia produz estereótipos favoráveis ao branco e pejorativos aos negros.
Nesses textos, a autora menciona a importância deste novo olhar nos estudos
das relações raciais no Brasil para oxigenar o pensamento produzido sobre essas
questões (SOVIK, 2004).
Esses movimentos acadêmicos e as mudanças discursivas que eles promo-
veram nos espaços públicos de debate provocaram a ambiência necessária para a
emergência da legislação antirracista. As condições de possibilidade marcaram
este período no Brasil, entre a década de 1990 e o início dos anos 2000, como
será analisado a seguir.

POLÍTICA DE COTAS ÉTNICO-RACIAIS NAS UNIVERSIDADES


FEDERAIS BRASILEIRAS – LEI N. 12.711, DE 29 DE AGOSTO DE
2012

A Legislação antirracista brasileira tem um potente poder de transforma-


ção das relações sociais e raciais. A partir de uma série de movimentos e das
condições de possibilidades necessárias para a sua emergência, desde o período
marcado pela constituinte de 1988, o Brasil promoveu uma legislação progressis-
ta em prol do respeito à diversidade étnica, racial e cultural formadora do país.
A Constituição da República Federativa de 1988 representa um novo
tempo legislativo e abre as portas para um arcabouço de leis antirracistas.
Simbolicamente, a constituição é publicada 100 anos após a Lei de 1888, cujo tex-
to instituiu o fim da escravidão formal no Brasil. Nesse contexto, a Constituição
sinaliza para o enfrentamento do racismo e marca efetivamente o fim do discurso
da democracia racial como propaganda estatal brasileira.
É nesse sentido que a Lei Federal n. 12.711, no ano de 2012, expressa

241
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

a mudança de enfoque em termos de estratégias governamentais em relação a


população afrodescendente, incluindo-os no sistema de ensino público e possibi-
litando a circulação de saber.
Historicamente, a população negra foi afastada do acesso às políticas pú-
blicas, sobretudo do acesso à educação. Conforme os dados apresentados pelo
IBGE em 2010 (sobre o ano de 2009), é possível que essa constatação seja ve-
rificada. O indicador sobre a taxa de analfabetismo da população brasileira –
que passou de 13,3%, em 1999, para 9,7%, em 2009, totalizando 14,1 milhões
de analfabetos – refere que o número de pretos e pardos analfabetos é o dobro
do número de brancos, respectivamente, 13,3%, 13,4% e 5,9%, ou seja, 13,3%
dos pretos são analfabetos, 13,4% dos pardos são analfabetos, enquanto somente
5,9% dos brancos são analfabetos (naquele período) (IBGE, 2010).
Esse é um importante indicador que demonstra a desproporcionalidade
em termos de alfabetização da população brasileira. O fato desses dados serem
discutidos na atual conjuntura acadêmica e legislativa sinalizam para uma mu-
dança de discurso, ou seja, há interesse na promoção de políticas públicas para o
equilíbrio do acesso à educação da população brasileira.
No mesmo viés está a Pesquisa Nacional de Perfil Socioeconômico e
Cultural dos(as) Graduandos(as) das Instituições Federais de Ensino Superior
(IFES) de 2018, que apresentou as mudanças que ocorreram de 2003 para 2018
(ANDIFES, 2018). Em 2003 (antes da publicação da lei de cotas de 2012),
59,34% dos alunos das instituições superiores federais eram brancos e 34,16%
negros (pretos e pardos). E em 2018 o percentual de alunos brancos diminuiu
para 43,32% e o de alunos negros subiu para 46,97%.
Após a publicação da lei de cotas ocorreu um significativo e importante
movimento de reestruturação dos alunos das universidades federais, em função
da obrigatoriedade de reserva de vagas para estudantes que tenham cursado o en-
sino médio em escolas públicas e para estudantes que se autodeclarassem pretos
e pardos. O texto da Lei n. 12.7115, de 2012, nesse sentido, estabelece a reserva
de vagas para ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de
ensino técnico de nível médio para alunos provenientes de escola pública e auto-
declarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência. Conforme
disposto no texto legal, no mínimo 50% das vagas das universidades federais de-
vem ser direcionadas aos estudantes que cursaram integralmente o ensino médio
em escolas da rede pública. Seguindo no texto da Lei, dessas vagas, 50% devem

5 A Lei Federal n. 12.711, de 2012, estabelece as condições para ingresso pelo sistema de re-
servas de vagas nas universidades federais e nos institutos federais, seguindo a mesma lógi-
ca: “As instituições federais de ensino técnico de nível médio reservarão, em cada concurso
seletivo para ingresso em cada curso, por turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de
suas vagas para estudantes que cursaram integralmente o ensino fundamental em escolas
públicas”.
242
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

ser reservadas para estudantes cujas famílias tenham renda igual ou inferior a 1,5
salário mínimo (um salário mínimo e meio) per capita. Parte delas é destinada
para candidatos que se declararem pretos, pardos ou indígenas, em proporção,
no mínimo, igual à de pretos, pardos e indígenas da população de cada Estado,
conforme censo do IBGE. A outra parte é reservada para pessoas que estudaram
todo o ensino médio na rede pública e com renda familiar bruta superior a 1,5
salário mínimo per capita. Dessas vagas, reserva-se, no mínimo, o número pro-
porcional à soma de pretos, pardos e indígenas, conforme os dados do IBGE, de
acordo com cada unidade da Federação.
Um dos objetivos da Lei de Cotas é promover mudança nos discursos so-
bre o lugar do negro na sociedade brasileira e reconfigurar a universidade pública
brasileira, marcada até o ano de 2012 pelo exclusivismo da elite branca. Para
que o texto da Lei fosse considerado legítimo foi preciso abandonar critérios
clássicos do Direito Constitucional, como é o caso da igualdade formal, criticada
pela CRT.
O princípio da igualdade formal foi constituído e gestado em função da
ambiência promovida pelas Revoluções Francesa (1789) e Norte-Americana
(1776), pois foi necessário estabelecer um princípio que garantisse a igualdade
perante a lei para abolir os privilégios do antigo regime, que tinha base na linha-
gem e na hierarquia das castas sociais. Joaquim Barbosa Gomes (2003, p. 18)
explica que “essa clássica concepção de igualdade jurídica, meramente formal,
firmou-se como ideia-chave do constitucionalismo que floresceu no século XIX
e prosseguiu sua trajetória triunfante por boa parte do século XX”. Entretanto,
com as complexidades sociais e avanços das sociedades, esse princípio precisou
de novas interpretações, com o fim de não perpetuar as desigualdades existentes
na nova sociedade que se apresentava, principalmente em função da emergência
das pautas identitárias.
Nesse sentido, foi preciso adequar o princípio da igualdade a uma nova
postura interpretativa, que se constituiu no constitucionalismo contemporâneo.
É nessa ótica de análise que se coloca a posição de Luiz Fux, para quem o di-
reito deve ser dinâmico e atuante com o intuito de estabelecer a igualdade de
oportunidades:
A mera proclamação normativa da igualdade não tem qualquer valor sem
a sua implementação fática. Com o tempo, percebeu-se que a Constituição
não poderia mais ser um conjunto de promessas inconsequentes, sendo
imperiosa a sua efetividade social. A transformação da igualdade formal,
de cunho liberal clássico, em uma igualdade material, partiu de uma neces-
sidade ética. (FUX, 2012, p. 109).

Os estudiosos da CRT chamam de daltônica a interpretação do conceito


de igualdade meramente formal, pois a consideram mecânica, justapondo a lei

243
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

ao caso concreto, sem a sensibilidade de olhar para as particularidades de cada


situação e para as vulnerabilidades sociais de cada grupo populacional.
A meritocracia, cujos fundamentos defendem a liberdade individual e es-
tão no centro do liberalismo, é outra ferramenta discursiva para a manutenção da
identidade branca no poder. A hierarquia social é definida para os meritocráticos
em função do mérito individual, que estabelece quem tem mais poder na socie-
dade. Já que não há circulação dos saberes, são os mesmos que têm privilégios e
possibilidades e se perpetuam nos espaços públicos e privados onde o saber e o
poder circulam.
É importante referir, por fim, o artigo 7º da Lei n. 12.711, de 2012, cujo
texto menciona que: “No prazo de dez anos a contar da data de publicação desta
Lei, será promovida a revisão do programa especial para o acesso às instituições
de educação superior de estudantes pretos, pardos e indígenas e de pessoas com
deficiência, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino mé-
dio em escolas públicas” (BRASIL, 2012, art. 7º), ou seja, a lei será revisada em
agosto de 2022 (este ano). Por isso, é preciso especial atenção, pois corre-se o
risco de a lei ser revista, sobretudo na parte relacionada às cotas raciais.
Apesar desse risco e como garantia para a manutenção da política de co-
tas raciais nas universidades federais, é preciso dar atenção para o Decreto n.
10.932, publicado no Diário Oficial da União, no dia 11 de janeiro de 2022, cujo
texto promulga a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação
Racial e Formas Correlatas de Intolerância, aprovada em 2013 na Guatemala,
na Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA). Com esse
Decreto, o Brasil assume definitivamente o compromisso de realizar ações que
promovam a igualdade racial, ou seja, “ações afirmativas” capazes de assegu-
rar o livre exercício das liberdades de pessoas sujeitas ao racismo, buscando a
promoção de condições igualitárias de oportunidades (BRASIL, 2022). O tex-
to da Convenção é incorporado à legislação brasileira com status de Emenda
Constitucional, conforme o parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição Federal.

REFLEXÕES FINAIS

Com as discussões promovidas pela CRT, especialmente no campo da


Educação, o debate público e acadêmico sobre o exclusivismo branco na educação
superior e sobre os privilégios da população branca brasileira ganham força. Para
que a legislação fosse publicada, foi preciso reconhecer a existência de privilégios
para a população branca, normalizada a partir do conceito de brancura. De acor-
do com essa análise, a promulgação da política de cotas, apesar de não nomear
os estudos críticos da branquitude, insere-se numa atmosfera política que percebe
a brancura como um facilitador social, seja ele simbólico (subjetivo) ou material.

244
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

A categoria racial branca se insere no contexto da normalização do pen-


samento discursivo ocidental e do seu centro: a razão universal iluminista. É de
acordo com esse entendimento que Mbembe (2018) refere que a raça e o negro
são sinônimos no imaginário das sociedades europeias. A outra face dessa moe-
da, ou seja, do constructo racial da figura do negro, é a fantasia da construção
simbólica da brancura, “que o ocidente se esforçou para naturalizar e universali-
zar” (MBEMBE, 2018, p. 88).
A partir das considerações e reflexões propostas neste artigo, é possível
compreender a Lei n. 12.711, de 2012, como um movimento de reconhecimento
por parte do legislador brasileiro de pressupostos colocados pela Teoria Racial
Crítica, especialmente pelos Estudos Críticos da Branquitude. Houve a emergên-
cia de uma discursividade que promoveu a abertura para novos olhares e novas
perspectivas teóricas. A partir da possibilidade de reconhecimento de privilégios
da sociedade normalizada pela brancura, o movimento de luta pelos direitos à
educação recebeu amparo legislativo e do debate público, para instituir a política
das ações afirmativas. Embora a lei de 2012 não mencione expressamente o ter-
mo “branquitude”, ela se insere num ambiente político em cuja expressão a bran-
cura é percebida como um facilitador social: simbólico (subjetivo) ou material.
Com efeito, a Lei n° 12.711, de 2012, representa definitivamente um novo
tempo no que se refere à política de enfrentamento do racismo no Brasil. A per-
cepção do racismo como estrutural e constituidor das relações é fundamental
para que seja possível o desenvolvimento das leis antirracistas e de políticas de
discriminações positiva. Além de questionar os preceitos racionais iluministas,
como a igualdade formal e a meritocracia, a legislação antirracista brasileira se
posiciona pela necessidade de inclusão da população afro-brasileira nas novas
narrativas nacionais, como agentes de protagonismo das relações de poder e dos
novos espaços sociais que se constituem.

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247
UM PASSO A MAIS: PENSAR O IMPLEMENTO
DA POLÍTICA DE COTAS NO ÂMBITO DOS
CURSOS DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE
FLUMINENSE NO PERÍODO DE 2020-2021, A
PARTIR DE UMA ABORDAGEM QUALITATIVA
Douglas Souza Guedes1
Tauã Lima Verdan Rangel2

1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS

As ações de cunho afirmativo podem ser compreendidas enquanto um


conjunto de políticas públicas voltadas para o combate das chamadas “distorções
sociais”, que não podem ser vencidas apenas com o decorrer do tempo. Uma
modalidade de ação afirmativa são as cotas nos cursos superiores, incluindo os
de Pós-Graduação Stricto Sensu.
A concepção de justiça e equidade, proposta por John Rawls, exerceu
grande influência sobre as atuais políticas educacionais. Entende-se, a partir da
lógica de Rawls, que para uma sociedade justa possa prosperar, devem existir
oportunidades para que todos possam se desenvolver. A equidade, por sua vez,
faz entender que todos devem ser igualmente tratados na medida de sua igualda-
de e desigualmente tratados na medida de sua desigualdade.
A Lei Federal nº 12.711/12 e a Lei do Estado do Rio de Janeiro nº 6.914/14
representam um importante marco na garantia da reserva de vagas para política
de cotas em âmbito nacional e do Estado do Rio de Janeiro, respectivamente.
É estabelecida então uma breve análise acerca da política de cotas no âmbito
da Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Estadual do Norte Fluminense

1 Bacharel em Direito pela Faculdade Metropolitana São Carlos (FAMESC) – Unidade


Bom Jesus do Itabapoana. Pós-Graduando em Direito Constitucional pela Faculdade Ven-
da Nova do Imigrante (FAVENI) – Unidade Venda Nova do Imigrante, dsouzaguedes@
gmail.com;
2 Pós-Doutor em Sociologia Política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Dar-
cy Ribeiro. Doutor e Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense. Professor do Curso
de Direito da Faculdade Metropolitana São Carlos (FAMESC) – Unidade Bom Jesus do
Itabapoana, [email protected].
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

“Darcy Ribeiro” (UENF), no período de 2020-2021, a partir dos editais refe-


rentes aos processos seletivos e suas previsões quanto à reserva de vagas para o
sistema de cotas.
A metodologia empregada na construção do presente pautou-se na utili-
zação dos métodos científicos historiográfico e dedutivo. No que concerne ao
enfrentamento da abordagem, a pesquisa é dotada de natureza qualitativa e de
cunho exploratório. No que se referem às técnicas de pesquisa empreendidas,
optou-se, devido ao enfrentamento da abordagem, na revisão de literatura sob o
formato sistemático, auxiliada de pesquisa bibliográfica e análise documental, de
maneira secundária. As plataformas de pesquisas estabelecidas como espaços de
consultados foram o Google Acadêmico e o Scielo, a partir de descritores que permi-
tissem a seleção do material com base no critério de incidência e adequação ao
recorte temático proposto.

2 O HISTÓRICO DAS POLÍTICAS AFIRMATIVAS NO CONTEXTO


BRASILEIRO

A Reforma Universitária ocorrida em Córdoba (1918) significou um ver-


dadeiro marco no tocante aos programas de reformas universitárias. No final dos
anos de 1920, começam a ocorrer, no Brasil, uma série de mudanças na educação
superior, mudanças essas provenientes da Reforma de Córdoba. As principais
alterações resultantes do processo anteriormente destacado são aquelas relativas
à autonomia das universidades, a eleição de representantes no âmbito das uni-
versidades, a assistência estudantil, a gratuidade do ensino e outras (AZEVEDO;
BRAGGIO; CATANI, 2018 apud DENTZ et al., 2019, p. 3).
Em âmbito nacional, há algumas décadas, o acesso ao ensino superior era
um privilégio para poucos, com um grande esforço das ditas elites, para manu-
tenção desse cenário. No início do século passado, as lutas dos movimentos es-
tudantis argentinos culminaram num processo que influencia, até os dias atuais,
a realidade da educação brasileira, no que se refere “a democratização do aces-
so das camadas sociais menos favorecidas à educação superior” (DENTZ et al.,
2019, p. 3).
Integram estas camadas, os marginalizados em razão de questões de
cunho étnico/racial, socioeconômicas e etc. Muitos indivíduos se deparam com
uma realidade cruel e excludente com relação ao ingresso nos níveis mais altos
de formação acadêmica, situação que atualmente faz parte da realidade do siste-
ma educacional brasileiro. “As reivindicações para que todos possam prolongar
seus anos de estudo estão na pauta dos movimentos negros, de parte da socie-
dade civil e, mais recentemente, dos programas de ações afirmativas (DENTZ et
al., 2019, p. 3).

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(O rganizadores )

Após anos de reivindicação, fora sancionada a Lei nº 12.711/2012, polí-


tica que busca reservar parte das vagas existentes em cursos superiores das uni-
versidades públicas para estudantes “menos favorecidos” (DENTZ et al., 2019,
p. 3). A Lei 12.711/2012 (ANEXO I) estabelece disposições acerca do “ingresso
nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível
médio”, representando um importante avanço no tocante as chamadas políticas
de cotas (BRASIL, 2012, online).
Após o processo de abolição da escravatura, não fora posta em prática
nenhuma política estatal que amenizasse as mazelas causadas pela escravidão
na vida da população negra. A abolição, embora formalizada, não produziu um
condão capaz de reduzir a marginalização e estigmatização dos negros (LIMA;
TIRADENTES, s.d., p. 5). Com relação às cotas raciais e tendo em vista as con-
sequências de uma abolição tardia da escravatura, não é plausível sustentar que
somente a existência de uma legislação de combate a discriminação e “políticas
universais” bastariam para consolidar um processo de integração da população
negra (LIMA; TIRADENTES, s.d., p. 5).
As chamadas “ações afirmativas” são um conjunto de políticas públicas
estabelecidas pelo Estado ou pela iniciativa privada para que se possam corrigir
distorções sociais, não superadas apenas com o decorrer do tempo. As ações
afirmativas têm como escopo principal a garantia de oportunidades para todos,
e podem ser divididas em três modalidades: “com o objetivo de reverter a repre-
sentação negativa dos negros; para promover igualdade de oportunidades; e para
combater o preconceito e o racismo (BRASIL, 2019, online). Ainda conforme se
extrai de Brasil (2019):
A Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
(SEPPIR) atua em parceria com outros entes do governo e da sociedade
na elaboração, execução e acompanhamento de ações afirmativas em áreas
como saúde, educação, trabalho, juventude e mulheres, entre outras. Em
2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por unanimidade que as
ações afirmativas são constitucionais e políticas essenciais para a redução
de desigualdades e discriminações existentes no país. Vale lembrar que as
políticas de ações afirmativas não são exclusivas do governo. A iniciativa
privada e as organizações sociais sem fins lucrativos também são atores
importantes neste processo, podendo atuar em conjunto, dando suporte, ou
de forma complementar ao governo (BRASIL, 2019, online).

As ações afirmativas estabelecidas no país partem do princípio constitu-


cional da equidade, “que significa tratar os desiguais de forma desigual”. Isto
é, trata-se de estabelecer garantias para aqueles que, por conta da discrimina-
ção e da desigualdade socioeconômica, não tiveram igualdade de oportunidades
(BRASIL, 2019, online). Para entender a importância das ações afirmativas, é
necessário se debruçar sobre o contexto socioeconômico presente em um país,

250
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

dessa forma, o julgamento errôneo acerca das ações afirmativas, é oriundo do


desconhecimento acerca do contexto histórico que culminou numa desigualdade
que precisa ser corrigida por meio de políticas públicas (BRASIL, 2019, online).
Ainda conforme se extrai de Brasil:
Ao debater as cotas para negros nas universidades, por exemplo, é preciso
retornar ao Brasil colonial e perceber como o processo de escravidão criou
desigualdades sociais que são presentes até hoje, mesmo após 127 anos
da abolição da escravidão. A partir de dados estatísticos que demonstram
a diferença entre negros nas universidades comparados com o percentual
desta população no total de brasileiros, o governo comprova a necessidade
de criar uma política para compensar séculos de desigualdades. É assim
que nasce uma política de ação afirmativa. Após a leitura de um diagnósti-
co sócio-cultural histórico, há a comprovação estatística das desigualdades
existentes e da necessidade de reparos. Após o diagnóstico e o planejamen-
to de uma política de ação afirmativa, os gestores governamentais encami-
nham a legislação, monitoram sua aprovação e implementação (BRASIL,
2019, online).

O ano de 2001 foi um marco no reconhecimento das políticas afirmativas,


pois foi quando o Brasil reconheceu internacionalmente, durante a Conferência
de Durban, a existência de um quadro fisiológico de preconceito racial no país,
o que leva, por consequência, a um quadro de profunda desigualdade. No ano
de 2003 é aprovada a Lei 10.639, que estabeleceu enquanto disciplinas compo-
nentes da Educação Básica a “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na
Educação Básica” (NASCIMENTO, s.d., online).
De um ponto de vista histórico, “as políticas públicas brasileiras têm-se
caracterizado por adotar uma perspectiva social”, a partir de medidas assisten-
cialistas e de redistribuição de renda com vista a superar quadros de pobreza,
tendo como base ideológica o princípio da igualdade (MUNANGA, 1996 apud
MOEHLECKE, 2002, p. 203). A partir da redemocratização o processo de
reivindicação de mecanismos para combater as disparidades socioeconômicas
tornou-se mais intenso, o que culminou em uma série de avanços nesse campo
(MOEHLECKE, 2002, p. 203).

3 EQUIDADE, ISONOMIA MATERIAL E A CONCEPÇÃO DE JOHN


RAWLS

A chamada Teoria de Justiça, elaborada por John Rawls, exerce considerá-


vel influência sobre as atuais políticas públicas, sobretudo no que diz respeito às
ações afirmativas. Os ideais liberais traçados por Rawls influenciaram uma série
de políticas afirmativas nos EUA e no Brasil. “Segundo a teoria de Rawls, para
uma sociedade ser considerada justa, faz-se necessária à diminuição das diversas
formas de desigualdades, e, para que isso ocorra, é indispensável à adoção de

251
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(O rganizadores )

ações afirmativas em favor de minorias” (PINHEIRO, 2013, p. 101).


Rawls (2008, p. 28 apud PINHEIRO, 2013, p. 101) afirma que a justiça
deve ser o primeiro objetivos das instituições de cunho social, pois segundo a
sua lógica, em uma sociedade justa “as liberdades entre os cidadãos são iguais à
tomada como estabelecida”, os direitos, uma vez garantidos pela justiça, não se
encontram a mercê do poder ou de meros cálculos matemáticos. Dessa forma,
os ideais de verdade e justiça são tidos enquanto virtudes humanas (PINHEIRO,
2013, p. 101).
O pensamento de Rawls busca se opor ao chamado utilitarismo clássico,
a partir de uma teoria da justiça enquanto equidade. Partindo-se do pressuposto
de que em uma sociedade justa, as oportunidades se estendem a todos para o
desenvolvimento (CARVALHO, 2017, online). Ainda segundo Carvalho:
[...] Rawls parte de duas premissas (princípios) que fundam o alicerce
de seu pensamento. São elas:“Primeira: cada pessoa deve ter um direito
igual ao sistema mais extenso de iguais liberdades fundamentais que seja
compatível com um sistema similar de liberdades para as outras pessoas.
Segunda: as desigualdades sociais e econômicas devem estar dispostas de
tal modo que tanto (a) se possa razoavelmente esperar que se estabeleçam
em benefício de todos como (b) estejam vinculadas a cargos e posições
acessíveis a todos”(CARVALHO, 2017, online).

O princípio número um prevê também direitos e deveres fundamentais.


“Neste o autor tem em mente as leis objetivamente consideradas”. Trata-se de
uma igualdade formal de todos os indivíduos diante da lei. O segundo princípio
abarca a (re)distribuição de renda; dessa forma, trata-se da chamada igualda-
de material no acesso a meios adequados de vida (CARVALHO, 2017, online).
Ghisleni e Spengler, discorrendo acerca do trabalho de Rawls, asseveram que:
John Rawls é influenciado por Kant e Rousseau, de modo que sua teo-
ria sustenta que em uma situação inicial, chamada de posição original, há
igualdade e liberdade para todos os indivíduos e sob tais condições é possí-
vel formalizar um acordo coletivo. Ademais, em sua construção imaginária
de contrato, os homens ignoram o que os demais possuem ou desejam, são
iguais entre si e racionais. Desse modo, sobre esta posição e esta base as
pessoas elegem os princípios que lhes assegurem as maiores possibilidades
vitais, de forma que o sentido moral que têm os homens é a segurança de
que os princípios acordados serão obrigatórios e respeitados. Esta versão
contratual não contém um projeto de sociedade ou forma específica de
governo (GHISLENI; SPENGLER, 2011, p. 7).

No que se referem às políticas educacionais, parte-se do mesmo raciocínio.


Se os indivíduos forem tratados de forma igualitária pelo Estado, as desigual-
dades não são serão suprimidas. Se, por exemplo, prevalecer um mesmo direito
para todos, aqueles que, por fatores socioeconômicos e culturais disporem de
menos oportunidades de estudo e/ou aquisição financeira, ainda estão sujeitos a

252
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

receber menos capital, seja ele qual for. Nesse sentido, uma vez que um estado é
indiferente às diferenças e trata de forma igual os desiguais, os fatores desigual-
dade e iniquidade não são superados (AZEVEDO, 2013, p. 140).
Rawls parte da premissa que as partes envolvidas no sistema de cooperação
social (maneira com que as instituições políticas e sociais interagem) acei-
tam os princípios de justiça, para assim, julgar a eficiência das organiza-
ções, tanto sociais quanto econômicas. No seu entendimento, os princípios
primordiais de justiça constituem o objeto de um acordo original em uma
situação adequadamente definida. Segundo Rawls, a ideia intuitiva de jus-
tiça como equidade considera que as pessoas, por serem racionais, aceitam
a posição original (original position) de igualdade para se associarem, a fim
de promoverem interesses próprios. Para ele, ao se assumir a posição ori-
ginal, imediatamente atinge-se um consenso do que é justo, pois estariam
pressupostos aí princípios primordiais. Trata-se de um conceito hipotético,
voltado a obter um consenso entre indivíduos ideais que exercem funções
representativas. Tal consenso concerne à delimitação de termos equitati-
vos de cooperação social, cujo fim deve ser o de reger a sociedade da qual
esses indivíduos farão parte como cidadãos. A capacidade desses cidadãos
entenderem, aplicarem e atuarem conforme uma concepção pública de jus-
tiça, está implícita no exercício deles de pensamento, do qual, por sua vez,
deriva o senso de justiça (QUINTANILHA, 2010, p. 36-37).

As ações afirmativas na modalidade “cotas” são um conjunto de medi-


das adotadas por um Estado, com escopo de corrigir ou mitigar ao máximo, as
desigualdades de cunho histórico, efetivando mecanismos de igualdade e opor-
tunidades, ou seja, “a justa oportunidade a que se referia Rawls, bem como de
compensar perdas provocadas pela discriminação e marginalização, decorrentes
de motivos raciais, étnicos, religiosos, de gênero e outros” (PINHEIRO, 2013, p.
104).
As ações afirmativas decorrem de um amplo processo de debate acerca do
conceito de equidade, que muitos ainda confundem com a igualdade material,
tratando-se na verdade de uma evolução dos chamados direitos fundamentais,
que limitam os abusos do Estado, e garantem a consagração da igualdade e da
legalidade (MORAES, 2005, p. 1 apud PINHEIRO, 2013, p. 104).

4 POLÍTICAS AFIRMATIVAS NO ÂMBITO DO ENSINO SUPERIOR:


PENSAR O IMPLEMENTO DA POLÍTICA DE COTAS NO ÂMBITO
DA PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU DA UNIVERSIDADE
ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE NO PERÍODO DE 2020-2021,
A PARTIR DE UMA ABORDAGEM QUALITATIVA

A partir de uma perspectiva histórica, observa-se que com o escopo de


estabelecer mecanismos estratégicos de ações de inclusão na educação superior,
ao adotar ações afirmativas para os estudantes em situação de vulnerabilidade

253
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(O rganizadores )

socioeconômica, negros e/ou oriundos da rede pública de ensino, a Universidade


Estadual do Norte Fluminense “Darcy Ribeiro” (UENF) passou a reservar 50%
de suas vagas para estudantes da rede pública de educação do Estado do Rio de
Janeiro, estabelecendo, ainda, que desse percentual, 40% das vagas seriam reser-
vadas para alunos negros e pardos. Essas alterações passaram a vigorar a partir
do processo seletivo 2002/2003, em consonância com o disposto na legislação da
época (NASCIMENTO, 2017, p. 51-52).
No período de 2004 a 2008, os vestibulares da universidade ocorreram sob
a égide da Lei Estadual do Rio de Janeiro nº 4.151/2003, que revogou a legisla-
ção anterior. Ficaria estabelecido, então, um percentual de 45% das vagas para
estudantes carentes, distribuídas da seguinte forma: “20% para estudantes oriun-
dos da rede pública de ensino; 20% para negros; e 5% para pessoas com deficiên-
cia, nos termos da legislação em vigor” (NASCIMENTO, 2017, p. 52). No que se
refere aos Programas de Pós-Graduação stricto sensu da instituição, tem-se que:
[...] encontram-se estruturados em quatro Centros, assim distribuídos:
no Centro de Biociências e Biotecnologia – CBB são oferecidos os PPGs
em Biociências e Biotecnologia (PGBB), Biotecnologia Vegetal (PGBV)
e Ecologia e Recursos Naturais (PPGERN); no Centro de Ciências e
Tecnologias Agropecuárias – CCTA estão os PPGs em 72 Ciência Animal
(CPGA), Genética e Melhoramento de Plantas (PGGMP) e Produção
Vegetal (PGPV). No Centro de Ciências do Homem – CCH estão loca-
lizados os PPGs de Cognição e Linguagem (PGCL), Políticas Sociais
(PPGPS) e Sociologia Política (PPGSP). Por fim, no Centro de Ciência
e Tecnologia – CCT encontram-se os programas em Ciências Naturais
(PGGCN), Engenharia Civil (PPGEC), Engenharia de Produção (PPGEP),
Engenharia e Ciência dos Materiais (PPGECM) e o Mestrado Profissional
em Matemática (PROFMAT), sendo este último um Mestrado Profissional
em Rede Nacional integrante da Universidade Aberta do Brasil. Ainda, a
universidade conta com um PPG lato sensu em Residência em Medicina
Veterinária (NASCIMENTO, 2020, p. 71-72).

Os referidos Programas de Pós-Graduação, bem como seus cursos e au-


xílios, são estruturados e organizados pela “Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-
Graduação – ProPPG/UENF”, que além da parte de orientação e supervisão,
gerenciam as atividades de pesquisa na instituição (NASCIMENTO, 2020, p. 71-
72). Conforme pesquisa datada do ano de 2015, a UENF contava com 307 pro-
fessores (dos quais 75 eram bolsistas do Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), 26 cientistas vinculados a Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e 10 jovens cientistas
da FAPERJ, 1200 alunos de Pós-Graduação com matrícula efetiva e 73 grupos
de pesquisa vinculados ao CNPq (UENF, 2016 apud NASCIMENTO, 2020, p.
71-72).
Esses números consubstanciam a classificação da universidade nos

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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

rankings nacionais da educação superior: a UENF é, desde o ano de 2008, avalia-


da como uma das 15 melhores universidades do país, sendo a melhor do Estado
do Rio de Janeiro nos anos de 2011 a 2013 (UENF, 2016 apud NASCIMENTO,
2020, p. 71-72). Com relação aos Programas de Pós-Graduação, denota-se que
a instituição passou a adotar ações afirmativas a partir do ano de 2014, com o
advento da Lei nº 6.914 (ANEXO II), fora necessário ampliar o número de va-
gas, que passaram de 345 para 492, ou seja, um aumento de mais de 100 vagas
(LIMA, 2017, p. 116-117). Ainda segundo Lima:
Apesar do esforço da universidade, no entanto, o número de inscritos ficou
muito aquém da oferta, com apenas 23 candidatos. Destes, 20 tiveram a
inscrição indeferida por ausência de documentos e três a tiveram deferida.
Ao final, apenas ingressaram na pós-graduação como cotistas, levando em
consideração todos os programas da universidade, dois alunos, que tam-
bém foram ouvidos, com o escopo de identificar de que forma os mesmos
tomaram conhecimento da reserva de vagas e se 117 participaram, de al-
guma maneira, da discussão levantada. Será mantido o sigilo em relação
ao nome desses alunos, eis que requisitado pelos mesmos (LIMA, 2017, p.
116-117).

Passa-se, então, a uma breve análise acerca da política de cotas no âmbito


da Pós-Graduação Stricto Sensu da UENF no período de 2020-2021, a partir dos
editais referentes aos processos seletivos do mesmo período. Haja vista a quanti-
dade significativa de cursos de Pós-Graduação na Instituição, não será possível
esgotar ou discutir com profundidade o que fora proposto, serão apresentados
dados de alguns dos Programas de Pós-Graduação da Instituição.
O Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia Vegetal ofereceu, no pri-
meiro semestre de 2020, 14 vagas para o curso de mestrado, das quais 4 foram
destinadas a reserva de vagas para ações afirmativas. Ainda conforme se extrai
do referido edital, para atender o disposto na Lei nº 6.914/14, 12% das vagas
são reservadas para estudantes negros e indígenas, 12% para aqueles oriundos da
rede pública ou privada de ensino superior e 6% para pessoas com deficiência,
filhos de policiais, bombeiros e inspetores penitenciários “mortos ou incapacita-
dos em razão do serviço” (UENF, 2020, online).
O Programa de Pós-Graduação em Ciência Animal, por seu vez, ofereceu,
no primeiro semestre de 2021, 05 vagas em nível de mestrado e 04 vagas para o
doutorado, das quais 2 (1 MS e 1 DS) foram destinadas a reserva de vagas para
ações afirmativas. Ainda conforme se extrai do referido edital, para atender o dis-
posto na Lei nº 6.914/14, 12% das vagas são reservadas para estudantes negros e
indígenas, 12% para aqueles oriundos da rede pública ou privada de ensino supe-
rior e 6% para pessoas com deficiência, filhos de policiais, bombeiros e inspetores
penitenciários “mortos ou incapacitados em razão do serviço” (UENF, 2021).
O Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem ofereceu, no

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(O rganizadores )

primeiro semestre de 2020, 27 vagas em nível de mestrado e 15 vagas para o dou-


torado. Ainda conforme se extrai do referido edital, para atender o disposto na
Lei Estadual do Rio de Janeiro nº 6.914/14, 12% das vagas são reservadas para
estudantes negros e indígenas, 12% para aqueles oriundos da rede pública ou
privada de ensino superior e 6% para pessoas com deficiência, filhos de policiais,
bombeiros e inspetores penitenciários “mortos ou incapacitados em razão do
serviço” (UENF, 2020, online).
O Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Recursos Naturais ofere-
ceu, no segundo semestre de 2020, 1 vaga. Conforme se extrai do edital entre
mares: “a Reserva de Vagas segundo Lei nº 6914 de 06 de novembro de 2014 não
será atendida por disponibilidade de apenas uma (1) vaga neste edital específico”
(UENF, 2020, online). O Programa de Pós-Graduação em Produção Vegetal ofe-
receu, no segundo semestre de 2021, 20 vagas em nível de mestrado, das quais
10 foram destinadas a reserva de vagas para ações afirmativas. Ainda conforme
se extrai do referido edital, para atender o disposto na Lei Estadual do Rio de
Janeiro nº 6.914/14, 12% das vagas são reservadas para estudantes negros e indí-
genas, 12% para aqueles oriundos da rede pública ou privada de ensino superior e
6% para pessoas com deficiência, filhos de policiais, bombeiros e inspetores peni-
tenciários “mortos ou incapacitados em razão do serviço” (UENF, 2021, online).
Por sua vez, o Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política ofe-
receu, no primeiro semestre de 2020, 15 vagas em nível de mestrado e 15 para
o doutorado, das quais 10 foram destinadas a reserva de vagas para ações afir-
mativas. Ainda conforme se extrai do referido edital, para atender o disposto na
Lei Estadual do Rio de Janeiro nº 6.914/14, 12% das vagas são reservadas para
estudantes negros e indígenas, 12% para aqueles oriundos da rede pública ou
privada de ensino superior e 6% para pessoas com deficiência, filhos de policiais,
bombeiros e inspetores penitenciários “mortos ou incapacitados em razão do
serviço” (UENF, 2020, online).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

As ações afirmativas, e mais especificamente a política de cotas, com-


preendem um conjunto de medidas estabelecidas pelo Estado para corrigir, ainda
que em um processo lento e gradual, as mais diversas formas de desigualdade,
que podem atingir grupos específicos. Esse conjunto de ações decorre de um pro-
cesso de discussão do conceito de equidade, muito confundido com a chamada
igualdade material, mas que é, em verdade, uma evolução dos direitos sociais.
O processo de estabelecimento das políticas de cotas na UENF se aprofun-
dou, sobretudo, após a promulgação das Leis Federal nº 12.711/12 e Estadual
do Rio de Janeiro nº 6.914/14. A Lei 6.214/14 estabelece um percentual de 12%

256
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

das vagas para estudantes negros e indígenas, 12% para aqueles oriundos da rede
pública ou privada de ensino superior e 6% para pessoas com deficiência, filhos
de policiais, bombeiros e inspetores penitenciários mortos ou incapacitados em
razão do serviço, observação que é seguida “a risca” pelos editais dos Programas
de Pós-Graduação da UENF.
Observa-se, então, que os comandos legais supracitados produzem efeitos
práticos que podem ser observados do processo de seleção para os cursos de pós-
-graduação da UENF e de outras universidades do país. Tal previsão represen-
te um avanço significativo no combate ao fenômeno da desigualdade (sob suas
mais diversas faces). No caso específico da UENF, parcela das vagas é reservada
a estudantes cotistas, conforme estabelecido na legislação nacional e estadual, e
salientado por diversos editais da instituição.

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“Darcy Ribeiro”: Edital entre mares para Processo Seletivo de Mestrado. Pro-
grama de Pós-Graduação em Ecologia e Recursos Naturais. 2020. Disponível
em: https://uenf.br/posgraduacao/ecologia-recursosnaturais/wp-content/
uploads/sites/7/2021/02/EDITAL-PPGERN-2020.2-FINAL.pdf. Acesso em
13 mar. 2022.
RIO DE JANEIRO (ESTADO). Universidade Estadual do Norte Fluminense
“Darcy Ribeiro”: Edital para processo seletivo: Mestrado e Doutorado. Pro-
grama de Pós Graduação em Ciência Animal. 2021. Disponível em: https://
uenf.br/posgraduacao/ciencia-animal/wp-content/uploads/sites/5/2020/11/
Edital-2021.1-versao-final-1.pdf. Acesso em 13 mar. 2022.
RIO DE JANEIRO (ESTADO). Universidade Estadual do Norte Fluminen-
se “Darcy Ribeiro”: Edital: Processo Seletivo. Programa de Pós Graduação
em Sociologia Política. 2020. Disponível em: https://uenf.br/posgraduacao/
sociologia-politica/wp-content/uploads/sites/9/2019/10/Edital-de-Sele%-
C3%A7%C3%A3o-Mestrado-e-Doutorado-2020-12.0.pdf. Acesso em 13 mar.
2022.

259
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

ANEXO I - LEI Nº 12.711, DE 29 DE AGOSTO DE 2012


Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições
federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências.

A PRESIDENTA DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional de-


creta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da


Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de gra-
duação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas
para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas
públicas.
Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo,
50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de
famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e
meio) per capita.

Art. 2º (VETADO).

Art. 3º Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art.
1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, par-
dos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em pro-
porção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, par-
dos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação
onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. (Redação dada pela Lei nº 13.409,
de 2016).
Parágrafo único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios
estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser completa-
das por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas
públicas.

Art. 4º As instituições federais de ensino técnico de nível médio reservarão, em


cada concurso seletivo para ingresso em cada curso, por turno, no mínimo 50%
(cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que cursaram integralmente
o ensino fundamental em escolas públicas.
Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste artigo,
50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes oriundos de
famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um salário-mínimo e
meio) per capita.

Art. 5º Em cada instituição federal de ensino técnico de nível médio, as vagas de


que trata o art. 4º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodecla-
rados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da le-
gislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva

260
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unida-


de da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do
IBGE. (Redação dada pela Lei nº 13.409, de 2016)
Parágrafo único. No caso de não preenchimento das vagas segundo os critérios
estabelecidos no caput deste artigo, aquelas remanescentes deverão ser preenchi-
das por estudantes que tenham cursado integralmente o ensino fundamental em
escola pública.

Art. 6º O Ministério da Educação e a Secretaria Especial de Políticas de


Promoção da Igualdade Racial, da Presidência da República, serão responsáveis
pelo acompanhamento e avaliação do programa de que trata esta Lei, ouvida a
Fundação Nacional do Índio (Funai).

Art. 7º No prazo de dez anos a contar da data de publicação desta Lei, será pro-
movida a revisão do programa especial para o acesso às instituições de educação
superior de estudantes pretos, pardos e indígenas e de pessoas com deficiência,
bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em esco-
las públicas. (Redação dada pela Lei nº 13.409, de 2016).

Art. 8º As instituições de que trata o art. 1º desta Lei deverão implementar, no


mínimo, 25% (vinte e cinco por cento) da reserva de vagas prevista nesta Lei,
a cada ano, e terão o prazo máximo de 4 (quatro) anos, a partir da data de sua
publicação, para o cumprimento integral do disposto nesta Lei.

Art. 9º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 29 de agosto de 2012; 191º da Independência e 124º da República.

DILMA ROUSSEFF
Aloizio Mercadante
Miriam Belchior
Luís Inácio Lucena Adams
Luiza Helena de Bairros
Gilberto Carvalho

261
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

ANEXO II - LEI Nº 6914, DE 06 DE NOVEMBRO DE 2014


Dispõe sobre o sistema de ingresso nos cursos de Pós-Graduação,
compreendendo programas de mestrado e doutorado, cursos de
especialização e aperfeiçoamento nas universidades públicas esta-
duais e dá outras providências.

O GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO


Faço saber que a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro decreta e
eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º - Fica instituído o sistema de cotas para ingresso nos cursos de pós-gra-
duação, compreendendo programas de mestrado e doutorado, cursos de espe-
cialização, aperfeiçoamento e outros instituídos no âmbito das universidades
públicas do Estado do Rio de Janeiro, adotado com a finalidade de assegurar
gratuitamente aos graduados o aprimoramento, qualificação e a especialização
profissional, desde que carentes, e atendidas às seguintes condições:

I – 12% (doze por cento) para estudantes graduados negros e indígenas;

II – 12% (doze por cento) para graduados da rede pública e privada de ensino
superior;

III – 6% (seis por cento) para pessoas com deficiência, nos termos da legislação
em vigor, filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares e inspetores de
segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do
serviço.

§1º Entende-se por estudante carente graduado da rede privada de ensino supe-
rior, aquele que, para sua formação, foi beneficiário de bolsa de estudo do Fundo
de Financiamento Estudantil – FIES, do Programa Universidade para Todos –
PROUNI ou qualquer outro tipo de incentivo do governo;

§2º Por estudante carente graduado da rede de ensino público superior entende-
-se como sendo aquele assim definido pela universidade pública estadual, que
deverá levar em consideração o nível sócio econômico do candidato e disciplinar
como se fará a prova dessa condição, valendo-se, para tanto, dos indicadores
sócio econômicos utilizados por órgãos públicos oficiais.

§3° O edital do processo de seleção, atendido ao princípio da igualdade, estabele-


cerá as minorias étnicas e as pessoas portadoras de deficiência beneficiadas pelo
sistema de cotas, admitida a adoção do sistema de autodeclaração para negros e
pessoas integrantes de minorias étnicas, e da certidão de óbito, juntamente com a
decisão administrativa que reconheceu a morte, em razão do serviço, para filhos
dos policiais civis, militares, bombeiros militares e inspetores de segurança e ad-
ministração penitenciária, cabendo à universidade criar mecanismos de combate
à fraude.
262
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

§4º As universidades públicas estaduais, no exercício de sua autonomia, adota-


rão os atos e procedimentos necessários para a gestão do sistema, observados os
princípios e regras estabelecidos na legislação estadual, em especial:

I - universalidade do sistema de cotas quanto a todos os cursos e turnos oferecidos;

II - unidade do processo seletivo, respeitada a ordem de classificação.

Art. 2º - Caso persistirem vagas ociosas depois de esgotados os critérios do inciso


II do artigo anterior, as vagas remanescentes deverão, obrigatoriamente, ser com-
pletadas pelos candidatos não optantes pelo sistema de cotas.

Art. 3º - Fica limitado a 30% (trinta por cento), o total de número de vagas exis-
tentes em cada um dos cursos elencados no caput e na forma dos incisos I, II e
III do artigo 1º (nova redação dada pela Lei nº 6959/2015).

Art. 4º - Fica mantido o procedimento de declaração pessoal para fins de afirma-
ção de pertencimento à raça negra, devendo a administração universitária adotar
as medidas disciplinares adequadas nos casos de falsidade.

Art. 5º - As disposições desta Lei aplicam-se, no que for cabível, a todas as insti-
tuições públicas de ensino superior, mantidas e administradas pelo Governo do
Estado do Rio de Janeiro.

Art. 6º - Aplicar-se-ão as disposições contidas nesta Lei aos cursos oferecidos


em parceria com fundações públicas, privadas ou entidades sem fins lucrativos,
celebrados mediante convênio ou através de subsídios.

Art. 7º - As despesas decorrentes da execução desta Lei correrão à conta de do-
tações orçamentárias próprias.

Art. 8º - Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Rio de Janeiro, em 06 de novembro de 2014.

LUIZ FERNANDO DE SOUZA


Governador

263
A IMPLEMENTAÇÃO DA LEI DE COTAS NA
REDE FEDERAL DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL,
CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA
Maurício Sousa Matos1
Tatyanne Gomes Marques2

INTRODUÇÃO

Neste capítulo, apresenta-se a implementação das cotas nas instituições


da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. Para tanto,
é traçado um retrato da Educação Profissional e Tecnológica, sobretudo com a
criação dessa Rede Federal, é analisada toda a configuração e capilaridade des-
sas instituições educacionais no Brasil. Em seguida, é feito um panorama dos
Institutos Federais e Universidades Federais no Estado da Bahia, com o intuito
de compreender as particularidades do IFBA.
Ao compreender essa dimensão regional em diálogo com uma política
mais ampla de expansão da Rede Federal, situa-se a própria implementação da
Lei de Cotas que implica num maior ingresso de estudantes autodeclarados/as
negros/as, bem como de cotistas negros/as.

A EDUCAÇÃO PROFISSIONAL E TECNOLÓGICA NO BRASIL A


PARTIR DA REDE FEDERAL DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL,
CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

Segundo Pozzer e Neuhold (2019), é com a criação de dezenove Escolas


de Aprendizes Artífices, localizadas em 18 capitais e na cidade de Campos-
RJ, em 1909, que o Estado brasileiro passa a reconhecer e atribuir importân-
cia à educação profissional e tecnológica em âmbito nacional. Essa mudança
nos rumos das políticas públicas educacionais estava atrelada ao contexto do
1 Licenciado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Mestrando em Educação pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Pro-
fessor de Sociologia na Secretaria da Educação do Estado da Bahia (SEC-BA). E-mail:
[email protected]
2 Pedagoga. Doutora em Educação. Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB)
onde compõe a linha de pesquisa em Educação do Campo, Educação de Jovens e Adultos
e Movimentos Sociais do NEPE/UNEB. Professora no Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGED/UESB). E-mail: [email protected]
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

início do século XX, sobretudo da industrialização como estratégia para moder-


nizar o país. Desse modo, a educação profissional e tecnológica acabou sendo
a conversão em política educacional do pensamento industrialista (POZZER;
NEUHOLD, 2019).
Essa oferta formativa estava não só ligada ao contexto das cidades, mas
também orientada por objetivos que tinham por premissa “atingir as populações
pobres [...], atender à demanda por mão de obra e, ao mesmo tempo, contro-
lando-a[s]” (POZZER; NEUHOLD, 2019, p. 27). A ressignificação do ensino
profissional durante a década de 1950 passa por uma tentativa de superar a res-
trição imposta às classes populares de acessar a formação secundária, esta última
direcionada às elites (POZZER; NEUHOLD, 2019). É entre idas e vindas, já
durante a década de 1990, sob o Decreto Federal n° 2.208/1997, que a educação
profissional passa a ser apartada da educação básica, permitindo o ensino pro-
fissionalizante de modo segmentado (BRAZOROTTO; VENCO, 2021), o que
reflete, assim, a separação entre trabalho intelectual e trabalho manual.
O que hoje se compreende por “Educação Profissional Brasileira”3 passa
ao longo do tempo por diversas mudanças, sobretudo, em sintonia com os interes-
ses da divisão de classes do capitalismo que estabelece “para a classe dominante
o direito e o acesso à educação propedêutica e, às camadas segregadas, uma for-
mação voltada para o ingresso imediato no mercado de trabalho (BRYAN, 2008
apud BRAZOROTTO; VENCO, 2021, p. 100). Essa tem sido a constante disputa
em torno tanto das finalidades, quanto do conteúdo da educação profissional no
Brasil, com repercussão também na perspectiva a ser adotada na formação.
Segundo Brazorotto e Venco (2021), a expansão da educação profissional,
destacadamente a partir de 2008 com a Lei n° 11.892, é permeada pela perspec-
tiva da politecnia4, que tem o trabalho, a ciência e a cultura enquanto princípios
educativos. Perspectiva que “visa extrapolar a ideia de educação voltada exclusi-
vamente para a prática profissional, vislumbrando-se uma educação para a vida”
(BRAZOROTTO; VENCO, 2021, p. 103).
De acordo com Costa (2018), a Educação Profissional e Tecnológica (EPT)
nos tempos mais recentes consistiu enquanto política de expansão em uma das
políticas de maiores proporções no âmbito educacional. O que significou um
processo paralelo de “institucionalização” e “reinstitucionalização”, sobretudo,

3 Ver Caires e Oliveira (2016) no livro intitulado “Educação Profissional brasileira: da colô-
nia ao PNE 2014-2024.”
4 Entende-se a politecnia ou a educação politécnica como aquela que associa teoria e prá-
tica numa formação intelectual, manual e corporal que favoreça o pleno desenvolvimento
humano e, assim, possibilite ao sujeito reflexão crítica para superar a alienação decorrente
da repetição sistemática do trabalho simples, forma que não implica construção de co-
nhecimento profícuo para o trabalhador (MANACORDA, 2000 apud BRAZOROTTO,
VENCO, 2021, p. 100).
265
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

das instituições federais na oferta de EPT, pois as “centenárias instituições, espé-


cies de Benjamin Button, que nasceram velhas. Só que com memórias, heranças,
muitos méritos, muitos problemas também” (COSTA, 2018, p. 164).
Com a Lei n° 11.892/2008, que institui a Rede Federal de Educação
Profissional, Científica e Tecnológica (RFEPCT) e criou os Institutos Federais
de Educação, Ciência e Tecnologia (IF), interioriza-se e amplia-se a oferta de
Educação Profissional e Tecnológica (EPT) no país. Portanto, essa nova institu-
cionalidade e engenharia da educação profissional se concretiza a partir da Lei
11.892/2008 (BRASIL, 2008). A nova configuração da Rede Federal, em mais
de um século de existência, passa de 140 unidades de ensino para 644 campi em
2016, distribuídos por 568 municípios. O que implica afirmar que os “Institutos
Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) deram materialidade a este
processo [de expansão], que não só é institucional como também territorial”
(GOUVEIA, 2016, p .2).
Os Institutos Federais “são instituições com características e objetivos bem
mais abrangentes do que aquelas que lhes deram origem” (PAIVA; SOUZA;
OTRANTO, 2016) compõem “um conceito de educação profissional e tecnoló-
gica sem similar em nenhum outro país” (PACHECO, 2008, p. 9) e são definidos,
num amplo espectro no Art. 2º. da Lei n° 11.892/2008, como “instituições de
educação superior, básica e profissional, pluricurriculares e multicampi, especiali-
zados na oferta de educação profissional e tecnológica nas diferentes modalida-
des de ensino” (BRASIL, 2008).
Dessa forma, a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e
Tecnológica oferta da formação técnica integrada ao ensino médio à pós-gradua-
ção. Essa disposição de cursos garante ao jovem iniciar os estudos com a possi-
bilidade de dar continuidade à sua formação intelectual e profissional dentro de
uma Rede que não oferece apenas a formação profissional, mas também uma
formação humana integral e integrada.
De acordo com Leandro Turmena e Mário Azevedo (2017), o Estado en-
tende os IFs a partir da sua contribuição para o processo de modernização e
desenvolvimento do país com a oferta de qualificação e consequente inserção no
mercado de trabalho, sem desconsiderar os arranjos produtivos e os aspectos so-
ciais culturais locais. Com destaque para o papel assumido por essas instituições
no contexto regional em que se inserem, principalmente, do desenvolvimento
local e regional (SILVA, 2014; PACHECO, 2008).
Segundo dados da Plataforma Nilo Peçanha (PNP)5 (2020), em 2019,
5 A Plataforma Nilo Peçanha foi lançada pela Secretaria de Educação Profissional e Tecno-
lógica (Setec) do Ministério da Educação em 2018, a PNP é um ambiente virtual de coleta,
validação e disseminação das estatísticas da Rede Federal de Educação Profissional, Cientí-
fica e Tecnológica no Brasil. Reúne informações sobre as unidades que a compõem, cursos,
corpo docente, discente e técnico-administrativo, além de dados financeiros. Disponível
266
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

a oferta de Educação Profissional e Tecnológica na Rede Federal representa-


va 97,82% com os Institutos Federais; 3,59% com os CEFETs; 1,94% com as
Escolas Técnicas Vinculadas às Universidades Federais e 1,64% com o Colégio
Pedro II. Essa oferta conta com 653 unidades distribuídas por todo o território
nacional em 10.888 cursos e um total de 1.023.303 matrículas da educação bási-
ca à pós-graduação.
Em 2019, a Rede Federal contava, em todo país, com uma estrutura de
38 Institutos Federais, 2 Centros Federais de Educação Tecnológica (em Minas
Gerais e Rio de Janeiro), 1 Universidade Técnica Federal (no Paraná), o Colégio
Pedro II (no Rio de Janeiro) e 24 Escolas Técnicas Vinculadas às Universidades
Federais (MEC, 2019).
O crescimento da Rede Federal é expressivo, sobretudo, nos tempos mais
recentes. Os dados apontam que até o início dos anos 2000 estavam em funcio-
namento 140 instituições e, no intervalo entre 2004 e 2016, foram criadas 504
novas unidades. Portanto, a Rede Federal é quadruplicada em um intervalo curto
de tempo, e tem campi em mais de 10% dos municípios brasileiros (FAVERI;
PETERRINI; BARBOSA, 2018).
Com relação aos campi dos IFs por regiões brasileiras, as políticas públicas
federais, com destaque para a Lei n° 11.892/2008, revela um esforço empreen-
dido no sentido da interiorização e distribuição dessas instituições no território
(LEMOS, 2020). Ainda mais quando o território brasileiro cria demandas edu-
cacionais, pois “há um imperativo territorial na produção da educação” (SILVA,
2014).
Há uma relativa disparidade na distribuição dos campi dos Institutos
Federais por regiões brasileiras6, pois o Nordeste possui 201 campi, o Sudeste 140
campi, o Sul 104 campi, o Norte 69 campi e o Centro-Oeste 66 campi. Segundo
Leonardo Thompson Silva (2018), é possível observar um crescimento signifi-
cativo da Rede Federal, sobretudo, dos Institutos Federais. Tal crescimento é
demonstrado pelo dinamismo nas cidades e regiões onde os institutos têm se
instalado, já que a política de expansão atendeu às cinco regiões brasileiras, ainda
que seja possível identificar concentrações nessa expansão.
De acordo com Silva (2018), a região nordeste é a que mais concentra nú-
mero de campi da Rede Federal, mesmo antes da política de expansão, em virtude
do maior número de estados e por apresentar indicadores sociais e econômicos
em níveis mais baixos que a média nacional. Já a região sudeste foi a região mais

em: http://portal.mec.gov.br/ultimas-noticias/209-564834057/61581-plataforma-abriga-
ra-dados-sobre-a-educacao-profissional-no-brasil. Acesso em 16 jun. 2021.
6 Silva (2018, p. 65,66) demonstra em mapa a evolução espacial da Rede Federal de Edu-
cação Profissional, Científica e Tecnológica no Brasil por fase de expansão até 2016 e em
tabela a evolução da Rede Federal por Unidade da Federação entre 2003 e 2016.
267
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

beneficiada quando observada a expansão dos IFs por estado, a exemplo do esta-
do de São Paulo que passou de 3 unidades para 43 unidades, em decorrência de
sua dinâmica econômica e social de alta densidade populacional, maior concen-
tração comercial, industrial e influência política nacionalmente (SILVA, 2018).
As regiões Norte e Centro-Oeste concentram os menores números de cam-
pi dos IFs. Com destaque para a região Norte que até 2005 não detinha nenhu-
ma unidade da Rede Federal nos estados do Acre e do Amapá. Os estados de
Rondônia, Roraima e Tocantins possuíam apenas uma unidade cada (LEMOS,
2020). A região Norte passou de 15 unidades em 2005 para 66 na última fase
da expansão, e a região Centro-Oeste passou de 11 unidades em 2002 para 66
unidades em 2014, o que representou um aumento de 392,3% no número de
unidades da Rede Federal (LEMOS, 2020). Portanto, as regiões Norte e Centro-
Oeste acumulam um crescimento significativo com relação ao passado recente
da Rede Federal, mesmo distante quantitativamente da região Sul, por exemplo.
Esse processo de expansão compõe a própria gênese da RFEPCT, que
teve de forma central a tarefa de contribuir com o desenvolvimento local e regio-
nal num processo de interiorização de suas unidades (PACHECO, 2011). Essa
expansão, que extrapola as capitais ou grandes centros urbanos, tem na Rede
Federal o potencial de se capilarizar no território nacional e alcançar lugares an-
tes desamparados, o que “se traduz num maior acesso das populações às políticas
públicas educacionais voltadas à educação profissional de base técnica e tecnoló-
gica de nível médio e superior, bem como às licenciaturas” (LEMOS, 2020, p. 7).

PANORAMA DOS INSTITUTOS FEDERAIS E UNIVERSIDADES


FEDERAIS NO ESTADO DA BAHIA

O Estado da Bahia possui um total de 417 municípios onde, nos diferen-


tes territórios de identidade7, podem-se localizar as instituições federais respon-
sáveis tanto pela Educação Profissional e Tecnológica (no caso os Institutos
Federais), quanto pelo Ensino Superior (no caso das Universidades Federais),
ambas ofertantes de educação pública federal. Desconsidera-se aqui a ofer-
ta pelas instituições públicas estaduais, sendo as Universidades Estaduais8 e as
7 Conforme previsto no Art. 2° da Lei Estadual n° 13.214/2014, entende-se por Território
de Identidade a unidade de planejamento de políticas públicas do Estado da Bahia, consti-
tuído por agrupamentos identitários municipais, geralmente contíguos, formado de acordo
com critérios sociais, culturais, econômicos e geográficos, reconhecido pela sua população
como o espaço historicamente construído ao qual pertencem, com identidade que amplia
as possibilidades de coesão social e territorial (BAHIA, 2014). Os Territórios de Identi-
dade baianos podem ser conferidos aqui: http://www.seagri.ba.gov.br/sites/default/files/
mapa_agri_identidade_def.pdf. Acesso em: 16. jun. 2021.
8 As 4 (quatro) Universidades Estaduais baianas estão localizadas em 23 dos 27 territórios
baianos, com oferta de aproximadamente 40 mil vagas, são elas: a Universidade do Estado
da Bahia (UNEB); a Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS); a Universidade
268
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Escolas Estaduais9 responsáveis respectivamente pela oferta de Ensino Superior


e Educação Profissional e Tecnológica no território baiano. Ao focar nas ins-
tituições vinculadas diretamente ao Ministério da Educação (MEC), o intuito
é perceber a interiorização e capilaridade das unidades ofertantes de educação
pública federal na Bahia.
Os Institutos Federais (IFs) na Bahia10 totalizam 36 unidades, sendo divi-
didos entre o Instituto Federal da Bahia (IFBA) com expansão de 5 para 22 campi
e o Instituto Federal Baiano (IFBaiano) com expansão de 4 para 14 campi, ambos
com Reitoria na capital do estado, Salvador (SILVA, 2018).
As Universidades Federais (UFs), tem um total de 20 campi na Bahia,
sendo elas: Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia (UFRB), Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB),
Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), Universidade Federal do Vale
do São Francisco (UNIVASF) e Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Essas duas últimas não são sediadas
no Estado, a UNIVASF possui campi nas cidades de Juazeiro, Paulo Afonso e
Senhor do Bonfim e a UNILAB em São Francisco do Conde.
É possível identificar: i) a presença em oito municípios apenas de
Universidades Federais; ii) a presença em vinte e três municípios apenas de
Institutos Federais; iii) em doze municípios coexistem Universidades Federais e
Institutos Federais; e iv) o município de Valença sedia duas unidades de Institutos
Federais (uma do IFBA e outra do IFBaiano).
A disposição geográfica das UFs e IFs11 demonstra a presença dessas
instituições em todos os territórios baianos. Os Institutos Federais têm uma
maior presença em número de municípios (um total de 36), se comparado com
as Universidades Federais, presentes em 20 municípios baianos. Ao analisar a

Estadual de Santa Cruz (UESC) e a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).


Disponível em: http://escolas.educacao.ba.gov.br/universidadesestaduais. Acesso em: 16.
jun. 2021.
9 A Rede Estadual de Educação Profissional e Tecnológica está presente em todos os ter-
ritórios de identidade baianos, numa abrangência de 121 municípios. Sendo composta
por 33 Centros Territoriais de Educação Profissional, 38 Centros Estaduais de Educação
Profissional, 22 anexos de Centros de Educação Profissional e 92 unidades escolares de
Ensino Médio com oferta de EPT. Disponível em: http://escolas.educacao.ba.gov.br/edu-
cacaoprofissional1. Acesso em: 16. jun. 2021.
10 Segundo Silva (2018), “o IFBA est[á] voltado para o ambiente urbano, com cursos que de-
senvolvem tecnologia para os setores da indústria do comércio e de serviços. Já o IFBAIA-
NO, tem por objetivo principal oferecer cursos de tecnologia para o desenvolvimento agrá-
rio” (SILVA, 2018, p. 78).
11 Confira o mapa produzido com a localização dos campi dos IFs e das UFs no Estado da
Bahia. Elaboração própria, 2021. Disponível em: https://www.google.com/maps/d/u/2/
viewer?mid=1RWnCPLoxKHz4av4LzscZeTGBxqKu9hLI&ll=-13.52013390947286%2C-
-42.04770029999999&z=6.
269
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(O rganizadores )

presença exclusiva dessas instituições, os IFs estão presentes em 23 municípios,


mais que o dobro das UFs que estão em 8 municípios. Sendo que em 12 municí-
pios coexistem UFs e IFs e, no município de Valença12, coexistem um campus do
IFBA e outro do IFBaiano.
Esse mapeamento das instituições federais em geral e dos Institutos
Federais, em particular no estado da Bahia, dialoga com a criação e expansão
dessas novas unidades pautadas pela elevação da oferta de matrículas e inte-
riorização da rede, em estreita sintonia com o contexto regional no qual estão
inseridos (SILVA, 2014).
De acordo com Leonardo Thompson Silva (2014), existe uma assimetria
na difusão dos IFs nas regiões do estado da Bahia, ainda que tenha havido uma
relativa diminuição dessa desigual distribuição conforme as fases de expansão da
Rede Federal, com destaque para o Extremo Oeste Baiano, permanecendo com
1 único campus do IFBA (SILVA, 2014). A partir do dinamismo econômico dos
municípios da região Metropolitana de Salvador e também de maior densidade po-
pulacional, é possível observar a maior aglomeração de campi dos IFs nessa região,
com 9 campi (SILVA, 2014, p. 664). Essa expansão da Rede Federal na Bahia com-
preende: i) a Pré-expansão (até 2002); ii) a 1ª Fase de Expansão (2003 a 2010); iii)
a 2ª Fase de Expansão (2011 a 2014); e a iv) a 3ª Fase de Expansão (2015 a 2016).
A expansão em termos quantitativos da Rede Federal no estado da Bahia13
é inequívoca, sobretudo, em tempos mais recentes. Em 2002, eram 09 Escolas
Técnicas ou Agrotécnicas, de 2003 a 2019 foram implantados 19 novos campi; de
2011 a 2014 mais 5 campi, e de 2015 a 2016 outros 6 novos campi. Esses números
fazem da Bahia o sexto estado em quantidade de institutos federais no Brasil
(SILVA, 2018; PLATAFORMA NILO PEÇANHA, 2020).
Desse modo, é nítida uma política pública federal de interiorização da
EPT, com um apelo territorial/regional e uma dispersão dos investimentos dos
grandes centros urbanos para áreas de cidades pequenas e médias. Esse processo
demonstra ter como objetivo ampliar e democratizar o acesso à educação profis-
sional e tecnológica, bem como contribuir para o desenvolvimento local e regio-
nal, pois “[t]anto no Brasil, quanto no estado da Bahia, percebe-se um processo
de expansão rápido e surpreendente, que modificam, principalmente, o cotidiano
das cidades médias e pequenas” (SILVA, 2014, p. 665).
12 Em 2018, de forma unilateral a Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (SE-
TEC/MEC) anunciou estudos para a unificação dessas instituições, o que foi rechaçado
pela comunidade escolar. Disponível em: http://apub.org.br/nota-do-conselho-superior-
-do-if-baiano-frente-a-ameaca-de-extincao-de-um-campus-de-valenca-na-bahia/. Acesso
em: 16. jun. 2021.
13 Silva (2018, p. 95) apresenta mapa dos Institutos Federais na Bahia, por Mesorregiões,
onde demonstra um desequilíbrio na difusão dos IF’s entre as mesorregiões, pois após as
fases de expansão, as mesorregiões Metropolitana de Salvador (10), Sul Baiano (9) e Centro
Sul Baiano (7) foram privilegiadas em comparação com as outras regiões.
270
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

AS COTAS NA REDE FEDERAL DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL,


CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA

A instituição da RFEPCT, aliada à criação dos IFs pela Lei n° 11.892 em


2008, significou um marco na (re)definição das políticas educacionais brasileiras,
principalmente, de uma ampliação não só de unidades pelo território nacional,
mas também de um aumento do raio e escopo de atuação e da oferta de diversas
modalidades e em diferentes níveis de ensino (LEMOS, 2020). O espraiamen-
to da Rede Federal extrapola as regiões tradicionalmente mais bem-dotadas de
equipamentos e instalações de ensino, a exemplo do Sudeste e Sul do país.
Conforme vimos anteriormente, a expansão e interiorização da EPT ocor-
reram em todo o país, inclusive na Bahia, e mais especificamente no IFBA, insti-
tuição da qual o presente estudo se debruça. Tal crescimento se sintoniza com as
políticas de redução das iniquidades sociais e territoriais, destacadamente, com a
criação dos IFs a partir de mecanismos para a democratização do acesso à edu-
cação profissional de qualidade, em um sistema nacional, e oferta verticalizada
de ensino em todos os níveis de educação, além de programas de permanência.
O processo de expansão é também um processo de inclusão, na medida
que uma nova institucionalidade implica aspectos pedagógicos, concepções de
trabalho e formação, mas também os aspectos políticos que se instauram a par-
tir de uma política de acesso e expansão (SILVA; ELTZ, 2019). Essa dispersão
da Rede Federal, por meio de instituições reconhecidas como de qualidade, nas
periferias das capitais e em regiões mais afastadas dos grandes centros urba-
nos, significa a ampliação das possibilidades de acesso a uma educação gratuita
(MOURA; LIMA FILHO; SILVA, 2015; SILVA; ELTZ, 2019), com foco no
“ensino público gratuito, democrático e de excelência” (PACHECO, 2010, p. 14).
Nesse cenário, é instituída a Lei 12.711/2012 ou Lei de Cotas, em todas as
universidades federais e instituições federais de ensino técnico, com a reserva de
vagas que combina critérios como origem de escola pública, além dos recortes de
renda e cor/raça (este último variável conforme a classificação racial da popula-
ção por unidade federativa feita pelo último Censo do IBGE), e para pessoas com
deficiência14, como consta nos artigos quarto e quinto:
Art. 4º As instituições federais de ensino técnico de nível médio reservarão,
em cada concurso seletivo para ingresso em cada curso, por turno, no míni-
mo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que cursaram
integralmente o ensino fundamental em escolas públicas.
Parágrafo único. No preenchimento das vagas de que trata o caput deste
artigo, 50% (cinquenta por cento) deverão ser reservados aos estudantes

14 Alteração realizada pela Lei nº 13.409, de 28 de dezembro de 2016, com a reserva de vagas
para pessoas com deficiência nos cursos técnico de nível médio e superior das instituições
federais de ensino.
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(O rganizadores )

oriundos de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo (um


salário-mínimo e meio) per capita.
Art. 5º Em cada instituição federal de ensino técnico de nível médio, as
vagas de que trata o art. 4º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno,
por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiên-
cia, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo
igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com
deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a
instituição, segundo o último censo do IBGE (BRASIL, 2012, s/p.)

A implementação da Lei 12.711/2012 significa um aumento das taxas de


escolarização no ensino médio nas instituições federais que ofertam cursos téc-
nicos de nível médio, mas, diferente da experiência de Universidades Federais e
Estaduais com registro de adoção de sistema de cotas raciais, desde pelo menos o
ano de 2003, nos IFs “não se evidenciam registros no campo científico nos perío-
dos que antecedem a aprovação da lei” (FERREIRA; COELHO, 2019, p. 126). De
acordo com Ferreira e Coelho (2019), são raros e recentes os estudos e discussões
em torno da modalidade de ação afirmativa e cotas raciais na Rede Federal em ge-
ral, e nos IFs em particular, o que reitera a importância deste estudo e amplia esse
horizonte na agenda de pesquisas que priorizam os/as sujeitos negros/as.
Ao mesmo tempo, a Lei de Cotas em 2012 determinou uma reserva mínima
de 50% das vagas para acesso às Universidades Federais e instituições federais de
Educação Profissional e Tecnológica, escalonadas até 2016 (12,5% a cada ano).
Segundo o próprio Ministério da Educação (MEC), logo em 2013, primeiro ano
de vigência da referida lei, um total de 34% das Universidades Federais já atendia
à meta de reserva de vagas mínima de 50%, prevista para 2016; e um total de 83%
dos Institutos Federais já atendiam à meta de reserva de vagas mínima de 50%, pre-
vista para 2016 (BRASIL, 2013). Algumas problematizações possíveis para estu-
dos futuros é pensar como essa maior adesão dos Institutos Federais à Lei de Cotas
implicou o acesso, sobretudo de sujeitos negros(as), bem como quais eram os cri-
térios de acesso nessas instituições no período anterior à Lei que carecem de levan-
tamentos, a exemplo das Universidades Federais. Essas últimas com uma maior
tradição na implementação e avaliação das cotas, sobretudo, no ensino superior.
Corrobora para a análise do contexto e das implicações da forma mais célere
como os Institutos Federais aderiram à Lei de cotas, o fato que, após a implementa-
ção dessa Lei que alterou o modelo de acesso nas instituições educacionais federais,
o número de cotistas ultrapassou os 50% das vagas estabelecido pela referida Lei,
portanto, a reserva mínima foi superada na Rede Federal, inclusive com um aumen-
to significativo no acesso de estudantes negros (FERREIRA; COELHO, 2019).
Conforme já comentado, tanto os dados quanto pesquisas sobre o acom-
panhamento da política de cotas ainda são incipientes (FERREIRA; COELHO,
2019; SANTOS; ESCOBAR, 2021). No âmbito da Rede Federal, foi recentemente

272
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

criada a Plataforma Nilo Peçanha (PNP) para divulgação de estatísticas ofi-


ciais, sendo disponibilizados dados referentes aos anos base 2017, 2018 e 2019.
Todavia, somente no último ano – 2019, foi inserida a aba “5.1b Reserva de va-
gas” com informações sobre a Lei n° 12.711/2012 na Rede Federal de Educação
Profissional, Científica e Tecnológica para os cursos técnicos e de graduação
por instituição federal e por campi. A partir disso, são disponibilizados também
o número e o percentual de vagas totais, vagas para ampla concorrência e vagas
da reserva (RI: Renda Inferior - 1,5 salário mínimo; PPI: Preto/Pardo/Indígena;
RS: Renda Superior - 1,5 salário mínimo; PcD: Pessoa com deficiência).
Com base nesses dados da Plataforma Nilo Peçanha (PNP) para o ano de
2019, foi possível identificar um total de 253.150 vagas ofertadas em todos os
campi da Rede Federal entre cursos técnicos (175.321) e de graduação (77.829).
Desse total, 50,61% (128.118) foram de vagas para ampla concorrência e 49,39%
(125.032) foram de vagas para cotas, o que demonstra um relativo equilíbrio.
Com relação às cotas para egressos/as de escolas públicas, são identificadas
na PNP as categorias - e seus agrupamentos - previstos na Lei 12.771/2012 e suas
atualizações, são elas: i) a RI: Renda Inferior (1,5 salário mínimo) com 8,30% das
vagas (21.020); ii) RI-PPI: Renda Inferior e Preto/Pardo/Indígena com 11,65%
(29.481); iii) RI-PcD: Renda Inferior e Pessoa com Deficiência com 2,09 (5.280);
iv) RI-PPI-PcD: Renda Inferior e Preto/Pardo/Indígena e Pessoa com Deficiência
com 2,68% (6.786); v) RS: Renda Superior (1,5 salário mínimo) com 9,28% das
vagas (23.497); vi) RS-PPI: Renda Superior e Preto/Pardo/Indígena com 10,48%
(26.533); vii) RS-PcD: Renda Superior e Pessoa com Deficiência com 2,38%
(6.021); e viii) RS-PPI-PcD: Renda Superior e Preto/Pardo/Indígena e Pessoa
com Deficiência com 2,53% (6.414), conforme ilustra o Gráfico 1.

Gráfico 1: Porcentagem da reserva de vagas nos cursos técnicos e de graduação na Rede


Federal de Educação Profissional e Tecnológica, no ano de 2019

Legenda: RI: Renda Inferior (1,5 salário mínimo); PPI: Preto/Pardo/Indígena; RS: Renda
Superior (1,5 salário mínimo); PcD: (Pessoa com deficiência).
Fonte: Plataforma Nilo Peçanha (2020).

É possível observar um relativo equilíbrio na distribuição das vagas da


Rede Federal, tanto das cotas quanto da ampla concorrência. Nas cotas, as varia-
ções são de até 1,17% com relação à renda (inferior ou superior). Nas vagas de

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(O rganizadores )

Renda Inferior, somente as vagas de a) renda inferior e preto/pardo/indígena e


b) de renda inferior e preto/pardo/indígena e pessoa com deficiência são maiores
em termos percentuais quando comparados com os estratos de renda superior.
As vagas de Renda Superior são maiores quando observado o acesso somente
por a) renda superior e b) renda superior e pessoa com deficiência. Portanto, os
sujeitos cotistas egressos de escola pública que se autodeclaram pretos, pardos,
indígenas e também pretos, pardos, indígenas com deficiência, têm acessado a
Rede Federal em termos proporcionais mais pelo critério de renda inferior.
Em um recorte mais restrito da reserva de vagas no ensino médio inte-
grado na RFEPCT, é possível notar um total de 73.964 vagas nesta modalida-
de no ano de 2019, sendo 48,5% (35.846) das vagas na ampla concorrência e
51,5% (38.118) das vagas nas cotas. A região Nordeste concentra 33% das vagas
(24.384) no ensino médio integrado, a Bahia 7% (4.953) e o IFBA 4% (3.275),
sendo inclusive o IFBA responsável por 66,1% das vagas do ensino médio inte-
grado no estado baiano.
As vagas ofertadas na ampla concorrência no Brasil representam 48,5%;
na região Nordeste 47,7%; na Bahia 41,7% e, no caso do IFBA, 47,9%. As vagas
ofertadas nas cotas no Brasil representam 51,5%; na região Nordeste 52,3%; na
Bahia 58,3% e no IFBA 52,1%, conforme o Quadro 1 demonstra.

Quadro 1: Distribuição das vagas do ensino médio integrado na Rede Federal de Educação
Profissional e Tecnológica, no ano de 2019

Categoria Brasil Nordeste Bahia IFBA


Vagas Edital 73.964 100% 24.384 33% 4.953 7% 3.275 4%
Vagas – AC 35.846 48,5% 11.620 47,7% 2.065 41,7% 1.570 47,9%
Vagas - Cotas 38.118 51,5% 12.764 52,3% 2888 58,3% 1705 52,1%
Vagas – RI 6.787 9,2% 1.501 6,2% 246 5,0% 153 4,7%
Vagas – RI-PPI 9.249 12,5% 3.904 16% 987 19,9% 620 18,9%
Vagas – RI-PcD 1.633 2,2% 434 1,8% 91 1,8% 45 1,4%
Vagas – RI-PPI- 2.030 2,7% 768 3,1% 178 3,6% 63 1,9%
PcD
Vagas-RS 6.508 8,8% 1.557 6,4% 228 4,6% 165 5%
Vagas-RS-PPI 8.112 11% 3.326 13,6% 857 17,3% 525 16%
Vagas-RS-PcD 1.919 2,6% 548 2,2% 125 2,5% 71 2,2%
Vagas-RS-PPI- 1.880 2,5% 726 3% 176 3,6% 63 1,9%
PcD
Legenda: RI: Renda Inferior (1,5 salário mínimo); PPI: Preto/Pardo/Indígena; RS: Renda
Superior (1,5 salário mínimo); PcD: (Pessoa com deficiência).
Fonte: Plataforma Nilo Peçanha (2020).

274
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Esses números demonstram certo equilíbrio na distribuição e organização


da reserva de vagas na RFEPCT. Com relação à Bahia - somatório dos dados
do IFBA e IFBaiano – esse último apresenta um número superior ao mínimo de
50% das vagas para cotas (58,3%). Cabem maiores investigações futuras sobre o
que explica esse cenário, mas é possível afirmar que o modelo de cotas adotado
pelo IFBaiano15 exerce grande influência sobre esse percentual.
Ainda de acordo com esses dados, o Gráfico 2 ilustra a reserva de vagas no
ensino médio integrado da Rede Federal no ano de 2019, para o Brasil, a região
Nordeste, o estado da Bahia e o IFBA, dinâmica essa que pretende demonstrar
a situação geral da RFEPCT e como o Instituto se insere e se posiciona diante
dessa conjuntura.

Gráfico 2: Reserva de vagas no ensino médio integrado da Rede Federal de Educação


Profissional e Tecnológica, no ano de 2019

Legenda: AC: Ampla concorrência; RI: Renda Inferior (1,5 salário mínimo); PPI: Preto/
Pardo/Indígena; RS: Renda Superior (1,5 salário mínimo); PcD: (Pessoa com deficiência).
Fonte: Plataforma Nilo Peçanha (2020).

Foi possível situar com maior precisão a realidade da reserva de vagas na


Rede Federal apenas para o ano de 2019 de modo mais geral, o que já sinaliza para
15 “O Processo de Ingresso de Estudantes do IF Baiano ocorre por meio de três sistemas de vagas:
Ampla Concorrência (25%), Reserva de Vagas para estudantes oriundos de Escolas Públicas
(70%) e Reserva de Vagas para Pessoas com Deficiência (5%)” (IFBAIANO, 2019, p. 5).
275
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

desdobramentos em pesquisas futuras sobre a distribuição das vagas conforme as


regiões brasileiras, os estados e as próprias instituições federais da Rede, na tentati-
va de compreender continuidades e rupturas relativas ao acesso pela Lei de Cotas.
Não há dados disponíveis em série histórica que possam permitir alguma
comparabilidade entre os anos, o que fica restrito nesta análise preliminar ao ano
de 2019, com o indicativo de logo em breve ser publicado essa mesma base de
informações também para o ano de 2020.
O aumento do número de vagas para cotas mais que dobrou na Rede
Federal. Passou de 44.760 em 2013 para 125.032 em 2019 (SANTOS; ESCOBAR,
2021). Desde a implementação da Lei de Cotas, portanto, em um curto período
de tempo, são identificados alguns avanços:
1) o cumprimento da meta da garantia da reserva de 50% das vagas já al-
cançada em 2013 por 83% dos IFETs;
2) a evolução do numero de matrículas dos estudantes negros nos Cursos
Tecnicos de Nível Medio, o que revela o maior acesso desse grupo racial
nesse nível de ensino;
3) o aumento no número de afirmação da identidade dos estudantes negros,
haja vista que no ano de 2013 houve um maior quantitativo de autodecla-
rados como negros, se comparado ao período de 2008 a 2011. Esse aspecto
revela-se como um elemento potencializador dessa ação afirmativa, pois
identificar-se como da raça/cor negra num ambiente muita das vezes “hos-
til”, como o da instituição escolar, significa, sem dúvida, o reconhecimento
das cotas raciais como um dos mecanismos de combate ao preconceito e a
discriminação racial” (FERREIRA; COELHO, 2019, p. 135-6)

Os principais avanços elencados por Ferreira e Coelho (2019) são o 1)


cumprimento da reserva mínima de 50% das vagas por 83% das instituições da
RFEPCT já no primeiro ano de vigência da Lei de Cotas; 2) a evolução do nú-
mero de matrículas dos estudantes negros no ensino médio integrado; e 3) o au-
mento de autodeclarados negros. Esses três aspectos colaboraram para entender
a particularidade das cotas na Rede Federal de Educação Profissional, Científica
e Tecnológica, sobretudo no ensino médio integrado.
Portanto, explorar a forma de acesso - sobretudo pelas cotas - aos cursos
técnicos é também compreender as próprias instituições federais ofertantes de
Educação Profissional e Tecnológica no Brasil. Com destaque aqui para os su-
jeitos negros que se apropriam dessa política de acesso, mas que também são
atravessados por outras dinâmicas institucionais, educacionais, sociais e/ou fa-
miliares para o exercício da permanência e do êxito.
Desse modo, esses avanços observados no acesso de estudantes negros/as
às instituições de educação profissional e tecnológica estão diretamente ligados à
possibilidade da permanência nessas instituições. Logo, “a questão central para
que se tenha êxito na implementação do sistema de cotas configura-se na garan-
tia da permanência do estudante negro nas instituições de ensino” (FERREIRA;
276
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

COELHO, 2019, p. 134). Esse diálogo entre acesso e permanência implica a


trajetória dos estudantes negros na educação profissional e tecnológica.
Esses princípios se entrelaçam com a perspectiva abordada neste capítu-
lo sobre a relação de como a expansão da Rede Federal e, por conseguinte, do
número de matrículas implica o processo de acesso, alterado por força da Lei de
Cotas, com um maior número de estudantes negros/as acessando a educação
profissional e tecnológica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em síntese, compreender a implementação da Lei de Cotas é também


compreender a própria Rede Federal de Educação Profissional, Científica e
Tecnológica, em especial o acesso de sujeitos(as) negros(as) nessas instituições
educacionais altamente capilarizadas pelo território brasileiro, pois o processo
de expansão da Rede Federal, também é um processo de inclusão desses sujeitos,
não sem contradições.
Ao mapear as instituições federais em geral e os Institutos Federais em
particular no Estado da Bahia, foi possível verificar como a expansão implicou
no aumento de matrículas e na interiorização da Rede. Essa expansão e interiori-
zação contribuem para entender a Lei de Cotas nos Institutos Federais, que ade-
riram de imediato em montante superior quando comparados às Universidades
Federais. Ao mesmo tempo nos Institutos Federais ainda são raras e incipientes
as pesquisas sobre o acompanhamento da política de cotas. Foi possível constatar
que os sujeitos cotistas egressos de escola pública que se autodeclaram pretos,
pardos, indígenas e também pretos, pardos, indígenas com deficiência, têm aces-
sado a Rede Federal em termos proporcionais mais pelo critério de renda inferior.
Desse modo, a presença da política de cotas nas instituições educacio-
nais da RFEPCT não deve ser descolada do seu monitoramento e avaliação. O
que se demonstrou frágil e precário na Rede Federal sem quaisquer dados numa
série histórica que permitam uma análise pormenorizada. Ainda são recentes
as ações institucionais que superam esse “silêncio institucional”, a exemplo da
Plataforma Nilo Peçanha com dados sobre a Reserva de Vagas pela Lei de Cotas
a partir de 2019 no âmbito da SETEC/MEC.

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279
MENINAS NA CIÊNCIA: INICIAÇÃO CIENTÍFICA E
LITERATURA NEGRA NO IFMA (2018-2021)
Francisca Márcia Costa de Souza1

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem a pretensão de refletir sobre escrevivência em Conceição


Evaristo (2017; 2016), a partir de estudantes de iniciação científica e tecnológica,
pardas e pretas, do ensino médio integrado ao técnico, no Instituto Federal do
Maranhão (IFMA), Campus Buriticupu, entre 2018 e 2021. Partimos de estu-
dos e pesquisas realizados sobre escritoras negras do Brasil, através de projetos
aprovados institucionalmente em edital de pesquisa da referida instituição. O
nosso intuito foi pensar a ciência e a iniciação científica a partir dos estudos
de raça, gênero e classe, numa abordagem decolonial (EVARISTO, 2017; 2016;
KILOMBA, 2016; BALLESTRIN, 2013; QUIJANO, 2005), partindo das escre-
vivência do coletivo escrita insubmissa de mulheres negras no Brasil.
Iniciamos pela contextualização do Coletivo Escrita Insubmissa de
Mulheres Negras no Brasil. Em 2018, tomando de empréstimos os ensinamen-
tos de Conceição Evaristo (2016), especificamente, na antologia Insubmissas lá-
grimas de mulheres, em que mulheres negras se colocavam em cena para levantar
a própria voz, expressando dores e resistências, instituímos o grupo de estudos e
pesquisas no Instituto Federal do Maranhão, com o intuito de organizar, mobili-
zar e orientar política, cultural e cientificamente estudantes do ensino médio. O
coletivo deu seus primeiros passos em um contexto emblemático para o Brasil e
o mundo, em 2018, marcado pelo cinquentenário de Maio de 1968, “o ano que
não terminou”. Nesse ano ainda tivemos reflexões importantes sobre os 50 anos
de Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 2019), no Chile. Paulo Freire é um dos edu-
cadores mais estudados no mundo, de modo que seu livro Pedagogia do Oprimido
é considerado um dos livros mais indicados por professores universitários de lín-
gua inglesa.
No contexto da luta democrática e antirracista, destacamos os 130 anos de
abolição inacabada da escravatura no Brasil - Lei 3.353, de 13 de maio de 1888, o

1 Mestrado pelo Programa de Pós-graduação em História do Brasil, da Universidade Fe-


deral do Piauí UFPI. Professora do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico pelo Instituto
Federal do Maranhão. E-mail: [email protected].
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

que provocou sérias e oportunas reflexões sobre os problemas da liberdade negra


no pós-abolição; os quinze anos da Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o
ensino da história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas (públi-
cas ou particulares), do ensino fundamental ao ensino médio no Brasil, embora
passados quinze anos após a promulgação, a implementação da lei nas escolas
ainda apresenta grandes desafios; em 04 de março de 2018, Marielle Franco,
mulher negra, lésbica, periférica e parlamentar eleita, foi morta cruelmente, e até
hoje não sabemos quem mandou executá-la. Sua morte ocorreu em um ambien-
te de acirrada disputa eleitoral e polarização política das últimas décadas, e as
eleições se deram pelos discursos racistas, de ódio e de apologia às armas, culmi-
nando com a ascensão à presidência da república de Jair Bolsonaro em 2018, um
político de carreira, do Rio de Janeiro, personagem reconhecido mundialmente
pelos discursos misóginos, racistas e antidemocráticos. Em ato simbólico, foram
distribuídas cerca de 1.000 (mil) placas contra atitude dos candidatos do Partido
Social Liberal (PSL), como mostra a figura 01:

FIGURA 01: Ato simbólico, em nome da vereadora Marielle Franco, contra a atitude dos
candidatos do Partido Social Liberal (PSL), Daniel Silveira e Rodrigo Amorim.

FONTE: Agência Brasil, 2018, s/p.

O Coletivo foi marcado por uma miríade de fatos importantes e desafios


históricos, em que vozes e posicionamentos foram levantados, diante de episó-
dios relacionados a discursos sexistas, práticas racistas, posturas homofóbicas e
machistas de representantes políticos e religiosos e suas reverberações em sala
de aula e na escola. As decisões protofascistas de perseguição à reitores de uni-
versidades, aos movimentos sociais, à população periférica, à juventude negra e
de censura às artes, aos livros, à cultura e ao cinema, num ambiente sufocante
de acirradas tensões e disputas políticas em torno da famigerada “ideologia de
gênero” e “Escola Sem Partido”.
Neste contexto de radicalização do discurso de direita e de acirrada

281
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

polarização política, que encontraram terreno fértil nas mídias sociais, buscamos
abarcar essas questões do ponto de vista do recorte da raça, classe e gênero, pro-
videnciando reflexões a partir da nossa escrevivência com escritoras negras, que,
aliás, paira um grande silêncio sobre elas na escola (DAVIS, 2016; FEDERICI,
2017). Isso oportunizou experiências cientificas em ambientes de educação formal
e não-formal, no âmbito de ciclos de pesquisas institucionalizadas em programas
de bolsas de Iniciação Científica e Tecnológica do IFMA, articulando relações
com o campo da decolonialidade do saber (QUIJANO, 2005), além das transforma-
ções recentes na luta das mulheres e seus limites históricos (PERROT, 2017).
Utilizamos o método indiciário (GINZBURG, 1989), numa abordagem
microscópica, e a descrição densa (GEERTZ, 1989), método de observação e
imersão por dentro do universo estudado. Visando a compreensão e interpreta-
ção dos fenômenos sociais, através da escrita etnográfica, do percurso formativo
de meninas na iniciação científica, perscrutando camadas de sentidos elabora-
dos por elas em torno do universo da pesquisa, evidenciando os desafios e as
possibilidades de fazer ciência feminista (PEIRANO, 1995; OLIVEIRA, 2000).
Os registros de vivência na ciência de meninas foram capturados em diversos
momentos formativos, as fotografias em questão não possuem direitos autorais.
A fotografia não é um mero registro espontâneo do real, mas uma técnica de
construção de narrativas visuais e de sentido, cuja abordagem é da fotoetnogra-
fia, o que pressupõe o mapeamento de significados, o estudo das interações e a
interferência das pesquisadoras no campo do observado (ACHUTTI, 2004). Na
figura 02, temos as meninas realizando a leitura coletiva de obras literárias. As
estudantes são todas cursantes do ensino médio integrado ao técnico à época:

FIGURA 02: Meninas do Coletivo a escrita insubmissa de mulheres negras na Biblioteca


Chico Mendes. Buriticupu, MA, 2020.

FONTE: A autora

282
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Neste terceiro ciclo de jovens pesquisadoras, as autoras trabalhadas foram


Bianca Santana, Ana Paula Maia, Joyce Ribeiro e Carolina Maria. No coletivo,
as meninas se reuniam a cada quinze dias, alternando atividades de ativismo
político e literário na escola, como a produção de cartazes com divulgação da
vida e obra de escritoras negras e exposição fotográfica, bem como realização de
oficina para produção de fanzines e organização de eventos acadêmicos e cientí-
ficos, como mostra a figura 03 abaixo:

FIGURA 3: Oficina de produção de fanzine. Meninas do primeiro ciclo de pesquisa do


coletivo. Buriticupu, MA.

FONTE: A autora.

Partindo dessas experiências, tivemos como propósito apontar alguns ca-


minhos que levaram meninas à ciência e à ampliação da cultura científica de
estudantes do ensino médio, partindo de experiências de pesquisas de iniciação
científica e tecnológica, no contexto em que ainda persistem um complexo hete-
rogêneo e estruturado de padrões que implicam em desvantagens para mulheres
e meninas, permitindo que homens desfrutem do corpo, do tempo e da energia
das mulheres, excluindo-as da cidadania, do direito e da ciência (BIROLI, 2018).
Essa abordagem antirracista e política da ciência reverbera no contexto de
ascensão de grupos de extrema direita ao poder e políticas de ódio e aniquilamen-
to no Brasil; tem a intenção de transformar vozes isoladas de meninas em idade
escolar, em denúncia pública de um sistema de dominação e de desigualdade
que afeta mulheres, pois embora nas últimas décadas, tenha crescido a represen-
tatividade das mulheres nas carreiras acadêmica e científica, o reconhecimento
das demandas políticas de meninas na ciência ainda precisa de agenciamentos
institucionais e escolares (BIROLI, 2018).
Diante dessa compreensão, denunciamos violências rotineiras na vida co-
tidiana das meninas, oferecendo estratégias de luta organizada e a força de expe-
riências compartilhadas, mobilizadas pela escrevivência de meninas na ciência,

283
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

motivada, sobretudo, pela preocupação com a igualdade de gênero na produção


científica e tecnológica em universidades, institutos e escolas. Tudo isso nos faz
pensar formas de segregação e hierarquias científicas que atravessam a Política
de Ciência, Tecnologia e Inovação no Instituto Federal do Maranhão:
Por isso, minha urgência em deixar o meu relato. Gosto de madrugar, de
ser a primeira. Nada me garante que a espera pode me conduzir ao que
quero. Na espera, temo que os dias me vazem entre os dedos. Só quem tem
iamini, primeiramente em si mesmo, se lança pelos caminhos do mundo.
Digo mesmo que o tempo é curto, por isso, desde menina, sempre corri.
Corria pelo caminho, quando ia para escola (EVARISTO, 2016, p.70-71).

Saímos do espaço cativo, agarrando o vento, abraçando oportunidades


e escavando estradas em busca de novos caminhos. Nesta encruzilhada, tam-
bém nos debruçamos sobre a especificidade epistemológica “meninas na ciên-
cia”, apontando a partir da crítica feminista, que, historicamente, a ciência tem
sido um domínio ‘reservado’ aos homens (SANTOS, 2018; BANDEIRA, 2008).
Despontamos nosso trabalho epistêmico e pedagógico libertário, que são postos
em ação para inscrever corpos de meninas no circuito de uma escrita afeita as
práticas de afeto, de visibilidade, de reconhecimento e de poder-saber (HOOKS,
2017; LOURO, 2016; FREIRE, 2019). Tudo isso é urgente, muitas práticas es-
colares ainda precisam ser criadas e incorporadas nas táticas cotidianas de me-
ninas, em prol de uma vida bela, justa e livre de constrangimentos e limitações.

METODOLOGIA

Esta investigação tem como sujeito social meninas na ciência, jovens pes-
quisadores, cuja faixa etária é entre 14 e 19 anos, estudantes de cursos técnicos
integrados ao ensino médio, que participaram do programa de bolsa de iniciação
científica, tecnológica e inovação do IFMA, no Campus Buriticupu, entre 2015 e
2021. Com este recorte temporal, é possível realizar uma investigação situada no
tempo presente, possibilitando estudar acontecimentos políticos e sociais recen-
tes ou distâncias temporais em curso (DELGADO; FERREIRA, 2014).
Neste aspecto, as pesquisas aqui analizadas, refletem esse tempo recente
ou tempo contemporâneo tanto na escolha dos objetos de pesquisa, contempla-
dos nos projetos de iniciação científica, quanto na abordagem teórico-metodo-
lógica dessas investigações. A nossa intenção foi traçar o percurso de iniciação
científica que explora diferentes perspectivas das meninas na ciência. A inquieta-
ção parte dos acontecimentos do passado que, historicamente, têm excluído, si-
lenciado e rebaixados meninas nas carreiras acadêmicas e científica que insistem
no presente. Assim, como meninas veem a ciência? Quais os desafios epistemoló-
gicos da ciência feminista a partir da iniciação científica para meninas enquanto
problema social?
284
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

A nossa intenção é “contar” sobre trajetórias de meninas e suas pesquisas


no Instituto Federal do Maranhao, servindo-se de rastros e pistas, observando
pormenor revelador, à luz de detalhes e servindo-se da investigação detetivesca
(GINZBURG, 1989). Para este estudo, optamos por uma abordagem histórico-
-antropológica na compreensão da complexidade do real, sem perder de vista um
vasto campo de possibilidade que conforma a história da ciência no Maranhão
(OLIVEIRA, 2000). Ainda utilizamos o paradigma indiciário (GINZBURG,
1989); o método etnográfico (PEIRANO, 1995); e a técnica da descrição densa
(GEERTZ, 1989). Para Geertz (1989), cabe a etnografia fazer uma leitura da lei-
tura e o registro do relato, recuperando a interpretação dos “nativos” na pesquisa
de campo, “[...] a etnografia é uma descrição densa. O que o etnógrafo enfrenta
é de fato [...], uma multiplicidade de estruturas conceituais complexas, muitas
delas sobrepostas ou amarradas umas às outras” (GEERTZ, 1989, p.13-41).
Adotamos como estratégias de produção do conhecimento ou etapas de
apreensão dos fenômenos sociais: olhar, ouvir e escrever como atos cognitivos
indispensáveis na articulação da pesquisa empírica com a interpretação de seus
resultados (OLIVEIRA, 2000). Neste aspecto, usamos a linguagem fotográfica2
como a principal forma de escrita narrativa. A abordagem metodológica da fo-
toetnografica, com base em Achutti (2004), propõe uma narrativa fotográfica au-
tônoma em relação ao texto escrito, para narrar as experiências e as vivências de
meninas na ciência, uma maneira de descrever os dados do trabalho de campo,
bem como materializar e organizar o olhar sobre o fenômeno social analisado
(ACHUTTI, 2004) .
Partindo do pressuposto que a história não acontece apenas nos campos
de batalha, a tecitura desta narrativa sobre meninas na ciência, procura recu-
perar gestos, gargalhadas, deboches, ressentimentos, zombarias, esperanças, so-
lidariedades, alegrias, vitórias, rebeldias, lágrimas, cheiros, sabores e o humor
inteligente através de uma história do riso e do escárnio (MINOIS, 2003). Além
disso, a abordagem deste estudo contempla a corrente da história vista de baixo,
com base em Burke (1992) ou história de gente comum, mulheres, operários,
prisioneiros (PERROT, 2017), cujas trajetórias são ignoradas ou mencionadas
de passagem.
Segundo Halbwachs (1990), a memória, além de ser um fenômeno social, é
elaborada coletivamente, submetida às transformações e às mudanças constan-
tes, mas a memória não é apenas constituída de flutuações. Nela, existem pontos
de ancoragem ou marcos ‘imutáveis’, que são pontos comuns ao tempo e ao espa-
ço a que se pertence a rememoradora. Nesta linha de compreensão, Bosi (1979,
p. 30) destaca a memória como ato individual e social:

2 Neste estudo, todas as imagens utilizadas não violam o direito de uso de imagens, obser-
vando a Constituição Federal, artigo 5, inciso X.
285
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(O rganizadores )

Descrevendo a substância social da memória - a matéria lembrada - você


nos mostra que o modo de lembrar é individual tanto quanto social: o gru-
po transmite, retém e reforça as lembranças, mas o recordador, ao trabalhá-
-Ias, vai paulatinamente individualizando a memória comunitária e, no que
lembra e no como lembra, faz com que fique o que signifique. O tempo da
memória é social, não só porque é o calendário do trabalho e da festa, do
evento político e do fato insólito, mas também porque repercute no modo
de lembrar.

A sujeita que recorda não a faz sozinha, pois a lembrança individual an-
cora-se na memória comunitária. A memória social é contituída por lugares, ca-
lendários e eventos, mas também é atravessada por esquecimento. Para Lucília
Delgado e Marieta Ferreira (2014), a relação da memória com a história é proble-
mática porque se dá pela construção do esquecimento. Norra (1993) afirmou que
as sociedades estão condenadas ao esquecimento e a memória é suspeita para
história. O nascimento dos lugares de memória existe porque as lembranças não
são vividas verdadeiramente, restando o sentimento que a memória não expontâ-
nea (NORA, 1993). Além do esquecimento, a memória é constituída de silêncio.
O silêncio sobre o passado é uma forma de resistência porque não leva ao esque-
cimento, transmitindo paciente e cuidadosamente as lembranças em redes dissi-
dentes de amigos e familiares, em uma constante troca entre o vivido e o aprendido
(POLLAK, 1989). Para reter e reforçar cuidadosamente as memórias dissiden-
tes da iniciação científica para meninas, a recordadora precisa considerar esses
pressupostos teóricos-metodológicos para trabalhá-las, à medida que revisitamos
fotografias, atas, relatórios, projetos de pesquisa, textos acadêmicos, anotações e
rabiscos no caderno de campo, notícias publicadas em sites, encontros, reuniões,
pesquisa de campo, seminários, orientações online, juntamente com profissionais
de outras áreas do conhecimento que cooperaram com as pesquias em questão:
O trabalho de enquadramento da memória se alimenta do material
for­necido pela história. Esse material pode sem dúvida ser interpretado
e combinado a um sem-número de refe­rências associadas; guiado pela
preo­cupação não apenas de manter as fron­teiras sociais, mas também de
modifi­cá-Ias, esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em fun-
ção dos combates do presente e do futuro (POLLAK, 1989, p. 9-10).

Por outro lado, fizemos uso de registros escritos e imagéticos, oriundos de


oficinas e minicursos em eventos internos e externos ao IFMA, tomando mais
uma vez de empréstimo do métier das antropólogas. Nosso trabalho de campo
aconteceu em eventos, cursos, viagens, grupo de trabalho/estudo, grupo do what-
sapp, sessão de orientação, em que foi possível escrever no campo e fazer o diário,
ou seja, “anotações que rabiscamos em nossas cadernetas” (OLIVEIRA, 2000,
p. 25). Problematizamos os registros publicados nas agendas acadêmicas indivi-
duais das meninas pesquisadoras e no cronograma de leitura de cada pesquisa.

286
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Por fim, fazemos usos dos materiais produzidos para divulgação científica na
nossa rede social “meninas_na_ciencia_ifma” e dos registros das interações com
os seguidores do instagram.
Na textualização do passado recente sobre experiências de jovens pesqui-
sadoras, a memória (olhar e ouvir) adensaria o repertório de interpretações (es-
crita) dos fatos trazidos do trabalho de campo. Cabendo uma questão: “o que
acontece com a realidade observada no campo quando ela é embarcada para
fora?” (OLIVEIRA, 2000, p. 27). A rigor, a ideia é saber olhar, ouvir e escrever
no sentido de pensar o que é importante no texto etnográfico ao inscrever obser-
vações trazidas de campo (OLIVEIRA, 2000).

DESENVOLVIMENTO OU REFERENCIAL TEÓRICO

Segundo Almeida (2020), as mulheres “compõem boa parte da comuni-


dade científica”. As mulheres superam os homens em número de “doutorado
defendidos por ano” (ALMEIDA, 2020, p. 7). Em nosso país, “é crescentemente
equânime quando se analisa gênero de autores que publicam artigos científicos”,
mas quando se trata de ocupar cargos de poder em instituições de pesquisa e
universidades, as mulheres seguem em desvantagem (ALMEIDA, 2020, p. 7). De
que maneira uma instituição de educação, ciência e tecnologia poderia responder
a esses histórico desafio? Ainda para Almeida (2020), a ciência moderna e seus
avanços estão relacionados aos homens. Um sujeito universal que tende a falar
em nome das mulheres, inclusive, na ciência. Essa percepção da predominância
masculina na ciência não é errônea, mas mesmo diante desse universo desigual,
é interessante trazer luz às grandes contribuições das mulheres e das meninas à
ciência. Enfatizar a abordagem de igualdade de gênero na educação e estudar
como se perpetuam as desigualdades de gênero na ciência.
Esta pesquisa parte das questões de gênero na ciência, a partir do diálogo
com as teorias feministas. Queiroz (2020, p. 19) atualiza este debate e coloca
questões pertinentes para pensarmos: “qual o impacto da presença de mulheres
na ciência e da discussão sobre gênero nos resultados das pesquisa científicas?”
Um dos aspectos apontados pela autora foi que  a incorporação de gênero e
da diversidade étnica-racial em ciência traz benefícios financeiros maiores, além
de favorecer  “inteligências coletivas”, criando um “ambiente para ideias ino-
vadoras”. Ainda para Queiroz (2020, p. 21), não basta incorporar mulheres em
ambientes de predomínio dos homens, “é indispensável  promover mudanças
metodológicas, não há dúvida de que o processo de inclusão tende a trazer novos
olhares para o objeto de análise.
Partindo desse impulso por renovação crítica, nossa utopia é entrelaçar
estudos feministas com teoria pós-colonial ou giro decolonial (KILOMBA,

287
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

2016; BALLESTRIN, 2013; MIGNOLO, 2008; QUIJANO, 2005). A nossa in-


tenção é oferecer “releituras históricas e problematiza velhas e novas questões”
(BALLESTRIN, 2013, p. 89), para entender como a colonialidade do poder afe-
ta a vida de meninas, focando no descentramento das narrativas hegemônicas
sobre ciência (QUIJANO, 2005). O giro colonial expõe situações de opressão,
desigualdade e violência a partir das fronteiras de gênero, classe e raça. No cam-
po da educação em ciência para meninas, a pedagogia engajada ou pedagogia
como prática libertadora abre caminho para romper com ciclos de invisibilidade
(HOOKS, 2017; FREIRE, 2019); no trabalho de encorajamento epistêmico e
político, que valorizam a prática de interligar meninas num sistema dialógico e não
polêmico (FREIRE, 2019), através da partilha de narrativas, correndo todos os
riscos de transformar visões que reforçavam o sistema de dominação através de
uma prática de educação em ciência como resistência (HOOKS, 2017).
Nesse pensamento, Hooks (2017), coloca que a resistência é uma forma
consciente de interagir com discursos e representações dominantes, através da
criação ativa de espaços de oposição analíticas e culturais. Nesta passagem da inge-
nuidade à criticidade, Paulo Freire (2019) adverte que essa prática educativa deve
ser atravessada pela ética, estética, decência, pureza e boniteza. Além disso, exige a
disponibilidade para o novo sem negar a tradição, bem como posiciona-se con-
tra toda forma de preconceito (raça, classe e gênero), assumindo os riscos que
a democracia radical ou pedagogia da democracia exige. Para Freire (2019, p. 37),
“quão ausentes da democracia se acham os que queimam igrejas de negros [...].
A mim me dá pena e não raiva, quando vejo a arrogância com que a branquitude
de sociedades em que se faz isso” (FREIRE, 2019, p. 37).
Neste contexto, sendo a América a primeira identidade da modernidade, é
na ideia de raça que se estrutura a diferença entre conquistadores e conquistados,
situando não-europeus como inferiores, para legitimar a dominação e exploração
e “articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho, de seus recur-
sos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial” (QUIJANO,
2005, p. 117). Por ser estrutural, é preciso “desaprender o racismo para aprender
sobre a colonização e a descolonização e compreender plenamente a necessidade
de criar uma experiência democrática” (HOOKS, 2017, p. 55). Outras fronteiras
ainda mais resistentes são as ciências. Permeadas pelo pensamento colonial, as
configurações do conhecimento ocidental também expõem inúmeras violências
contra mulheres. Nos espaços acadêmicos, lidamos com feridas e traumas colo-
niais (KILOMBA, 2016).
Neste aspecto, Kilomba (2016) utiliza a linguagem para refltir sobre a pala-
vra escrita, relatando sua trajetória de pesquisa entre Lisboa e Berlim. Para tanto,
aponta a dimensão racista da linguagem para discorrer sobre as palavras que
ouviu durante o processo de seleção para bolsa de doutorado, tomando a palavra

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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

escrita como uma forma de denominar as formas de poder que engendram sile-
ciamentos, relegando expressivamente negros e pardos à condição de exóticos ou
não humanos. Ela, tensionando a relação entre raça, gênero e ciência no esforço
intelectual de descolonizar a escrita “eu me torno a oposição absoluta do que o
projeto colonial predeterminou” (KILOMBA, 2016, p. 28). É preciso traçar uma
alternariva política ao conhecimento insubmisso (EVARISTO, 2016).
Neste sentido, ao tratar de suas escrevivências, Kilomba (2016) aceita se
contar. Nos espaços de trocas de vivências, a poética afro-feminista também se
faz pela literatura. Como podemos observar no ato de se autonomear da per-
sonsagem Natalina Soledad, que se desfaz do nome antigo, negando o nome
de batismo, registrado em cartório. A partir dessa ato, ela começa a narrar sua
história em contraposição à masculinidade tóxima e destrutiva do seu pai que
considerava seu nascimento uma fraqueijada3:
Natalina Soledad, tendo nascido mulher, a sétima, depois dos seis filhos
homens, não foi bem recebida pelo para e não encontrou acolhida no colo
da mãe. O homem garboso de sua masculinidade, que, a meu ver, ficava
comprovada a cada filho homem nascido, ficou decepcionado quando lhe
deram a notícia de que o seu sétimo rebento era uma menina. Como po-
dia ser? – pensava ele – de sua rija vara só saía varão! Estaria falhando?
(EVARISTO, 2016, p. 19).

Natalina Soledad não é uma peça de ficção, é um retrado do racismo e da


solidão da mulher negra (RIBEIRO, 2019). Está na linha do esquecimento e do
desprezo que a colonialidade do poder reservou as mulheres (DAVIS, 2016). É
nessa ambiência que meninas pretas e pardas passam a frequentar à escola, “dos
cadernos e dos livros velhos desprezados pela prole masculina, que começa os
estudos, ainda quando cada um precisava de auxílio para suspender as cuecas,
sozinha, ela reconhia suas lições” (EVARISTO, 2016, p. 21). Do mesmo modo,
enfrentando o desprezo e o deboche, meninas na ciência também se depararam
com a discriminação de gênero. Assim, onde estaria a crítica feminista à ciência?
Ela está quando apontamos as causas sociais, culturais e políticas da subordi-
nação, invisibilidade e rebaixamento das mulheres (BANDEIRA, 2008). Além
disso, quando fazemos a sociedade questionar sobre as formas hegemônicas de
racionalização do mundo, quando nos contrapomos ao conhecimento universal
e masculinistaas, cabe a nós restituir às mulheres o lugar de sujeitas de pesquisas
e do conhecimento.

3 Neste ponto, a ficção se confunde com realidade brasileira, borrando a fronteira entre
imaginação e a história, revelando o abismo atual em que o país se encontra.
289
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados deste estudo refletem sobre o trabalho de campo realizado


entre 2015 e 2021, acerca das múltiplas e plurais ocasiões, presenciais ou remo-
tas, de atividades de pesquisa e de orientação científica de meninas. Sem disso-
ciar ensino, pesquisa e extensão, elaboramos, epistemologicamente, formas de
atravessamento entre eles. Neste sentido, observamos que alguns projetos nasce-
ram no ensino para se desdobrar na pesquisa, ou parte da extensão, se metamor-
foseando numa investigação de iniciação científica ou tecnológica. O que não
se altera, via de regra, é o recorte de gênero, raça e classe e a preocupação com
meninas assumindo a liderança na iniciação científica, para abolir um passado
de opressão, silenciamento e solidão:

QUADRO 1: Pesquisas de iniciação científica e tecnológica executadas entre 2018-2021


JOVENS
TÍTULO DA PESQUISA EDITAL
PESQUISADORES
Ana Caroline R. da Silva
Edital Prpgi nº 35/2017 -
Empoderamento feminino: a Gabriella de A.Ferreira
programa institucional vo-
escrita de mulheres negras no Isabel Cardoso Paz
luntário de iniciação cien-
Brasil. Layla Camile C. Lopes
tífica (Pivic) 2017/2018
Thamires B. Araújo
Dicções feministas: corpo, vio-
Edital Prpgi nº 35/2017 -
lência e sexualidade de mulhe-
programa institucional vo-
res beneficiadas com programa Bianca L. Carvalho
luntário de iniciação cien-
Bolsa Família em Buriticupu
tífica (Pivic) 2017/2018.
– MA (2003-2018).
Ana Caroline R. da Silva
Gênero, ódio e democracia: Edital Prpgi nº 03/2018
Cleomara dos S. Barreto
as mulheres plurais em Dilma - Pibic ensino médio
Layla Camile C. Lopes
Rousseff (1947-2018). 2018/2019.
Patrícia Almeida Lima

Anos rebeldes: canção popular


e Juventude no enfrentamento
Edital Prpgi nº 03/2018
ao autoritarismo e ao Conser- Thamires Barbosa Araú-
- Pibic ensino médio
vadorismo, Brasil, década 1960, jo
2018/2019.
e seus desdobramentos nos dias
de hoje.

Edital Prpgi no 132/2018


Marielle Franco entre o passado
– programa voluntário de
e o presente. A Política como Angela Maria R. da Silva
iniciação científica (Pivic)
guerra na eleição 2018 (Brasil).
2018/2019.
Não se nasce, torna-se mu-
lher: mapeando trajetórias de Edital Prpgi nº 132/2018
Gillene P. Prado
escritoras através do coletivo - programa voluntário de
Kethelly S. Camurça
Leia Mulheres cadeira 5 no iniciação científica (Pivic)
Thays Millena C. Alves
Ifma campus Buriticupu (2019- vigência 2018/2019.
2020)”.

290
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Feminismo e empoderamento:
a construção político-literária
Edital prpgi nº 04/2019 Eduarda F. Fontinele
do coletivo “a escrita insubmis-
- Pibic ensino médio Layla Camile C. Lopes
sa de mulheres negras no Bra-
2019/2020. Thays Millena C. Alves
sil” do Ifma campus Buriticupu
(2019).

Água e gênero: um estudo his-


Eduarda F. Fontinele
tórico- antropológico sobre os Edital Prpgi no 04/2019
Gillene P. Prado
impactos da falta de saneamen- - Pibic ensino médio
Ingrid M. de Macedo
to básico na vida das mulheres 2019/2020.
Maria Loise P. Fagundes
em Buriticupu- MA.

Entre papeis e pensamentos:


reconhecer-se mulher negra no Edital Prpgi nº 02/2020
coletivo “a escrita insubmissa de - Pibic ensino médio Thays Millena C. Alves
mulheres negras no Brasil” do 2020/2021.
Ifma campus Buriticupu (2020).

Lidiana N. de Souza
Amor, solidão e revolução: po-
Edital Prpgi nº 02/2020 Jessica Silva de Sousa
liticas arrebatadoras para meni-
- Pibic ensino médio Laisla Vieira dos Santos
nas negras de escolas públicas
2020/2021. Thays Millena C. Alves
de Buriticupu – MA.
Ester S. de Sousa

Arte e ciência: esculpindo tra- Edital Prpgi nº 102/2020


jetórias de meninas na ciência Pibic ensino médio CNPq Lauane de Sousa Melo
(Ifma 2019-2021). 2020 /2021.

Carolinas: “60 anos de quarto Edital Prpgi nº 102/2020


de despejo”. Por uma escola an- Pibic ensino médio CNPq Lazaro Gomes de Sousa
tirracista no Ifma4. 2020 /2021.
FONTE: Elaborado pela pesquisadora. Dados coletados no sistema SUAP/IFMA. 2021.

No quadro, temos as principais pesquisas desenvolvidas sobre gênero, raça


e classe do coletivo. Ao fazer o trabalho de memória, percorremos corredores
escolares cheio de ruídos e risadas. A memória gustativas dos sabores recupe-
rar as oficinas de fanzines realizadas aos sábados, ocasião em que fazíamos um
café delicioso para as meninas. Também tínhamos as ações coletivas de pesquisa
em bibliotecas públicas da região e as viagens cientificas. Através dos vestígios
deste passado, recuperados pelas fotoetnograficas, pudemos contar parte dessas

4 Esta pesquisa é desdobramento do projeto de ensino-extensão “Quarto de despejo”. Uma


peça teatral baseada na obra de Carolina Maria. Coordenada pelas professoras Francisca
Márcia Costa de Souza, Nelma Roland Bógea e Aurine Carvalho. A peça ficou em cartaz
entre 2017 e 2019. Ao longo dos anos, passou por duas renovações no núcleo de atores. A
peça narra a história das Carolinas Escritora, Militante, Trabalhadora e Mãe. A Carolina
Mãe é sempre encenada por um menino, no intuito de provocar o debate de gênero e classe
na literatura negra. Em 2020, por ocasião dos 60 anos do livro “Quarto de despejo: diário
de uma favelada”, realizamos a pesquisa de iniciação científica “Carolinas: 60 anos de
quarto de despejo”, cujo bolsista foi o estudante que atuou como Carolina Mãe na peça
teatral.
291
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

experiências. Ao fazer uso da memória, sabemos que ela carrega potencialidades


estratégicas, porque traz a construção de representações do passado, no jogo que
envolve a reevocação permanente, o trabalho de lembrar, o silêncio e esquecimen-
to, “o esquecimento, quando urdido historicamente, também corresponde a um
enorme poder” (DELGADO, 2014, p. 68). A figura 04 representa a participação
das meninas do Coletivo em evento do dia da mulher:

FIGURA 04: Participação das meninas no Dia Internacional de greve e luta das mulheres –
08 de março de 2020

Fonte: A autora.

O evento alusivo ao dia internacional das mulheres foi último encontro


presencial que tivemos após a suspensão das aulas no Campus Buriticupu, quando
apresentamos as meninas do terceiro ciclo e último ciclo de jovens pesquisadoras
do Coletivo Escrita Insubmissa de Mulheres Negras. Neste dia, elas participaram
de uma mesa-redonda sobre “Meninas na ciência e na literatura”, em que pude-
ram socializar suas leituras das obras escolhidas para aquele ano. Depois disso,
com a suspensão das atividades acadêmicas presenciais no Campus, o coletivo
passou a realizar suas atividades de maneira remota, permanecendo até março
deste ano, quando mantivemos reuniões regulares, participamos de eventos de
diversas instituições e movimentos sociais, organizamos lives, palestras e mesas-
-redondas, atuamos com ativismo digital nas redes oficiais do campus e criamos
o nosso Instagram sobre Meninas na Ciência IFMA.
Por outro lado, algumas meninas acabaram desistindo da escola e tam-
bém do coletivo, pois tiveram que lidar com várias dificuldades, dentre elas, não
se adaptaram ao ensino remoto, não possuíam condições técnicas e materiais
de acesso à internet, celular ou computador, apresentam problemas psicológicos
e emocionais devido ao isolamento social, dificuldades financeiras e perda de
emprego e renda. A desistência da escola também estava relacionada à entrada
no mundo do trabalho, dificultando a conciliação entre estudo e emprego. Além
292
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

disso, o fato de terem contraído a COVID-19, dificultou nosso acesso a elas, pois
se fecharam no ambiente familiar. Apenas recentemente conseguimos rearticu-
lar o coletivo, realizando a nossa primeira reunião com uma das participantes do
terceiro ciclo que permaneceu fazendo seus estudos, inclusive conseguiu ingres-
sar no ensino superior na mesma instituição.
Ao considerar o potencial dessa narrativa, restituímos a visão de meninas
sobre a ciência, recuperando possíveis ângulos do cotidiano da iniciação cien-
tífica já vivido. Sobre imagens, não podemos esquecer que antes do registro,
exista a articulação dos retratados, de modo evidenciar seu melhor ângulo. Em
se tratando da fotógrafa, seu olhar também é calibrado. Em ambos os casos,
é um exercício de memória e abstração e da “ordem do mostrar” e “não do
demonstrar, numa construção de sentido organizada e intencional (ACHUTTI,
2004). Assim, escrevemos com a câmera e inscrevemos nossas impressões sobre
o mundo:

FIGURA 05: Primeira viagem internacional. Apresentação de Memórias e histórias do


coletivo na Argentina. Foz do Iguaçu, PR, 2018.

FONTE: A autora.

Na figura 05, temos o registro da nossa viagem científica internacional.


Na ocasião, possibilitamos a viagem de três estudantes do curso técnico em nível
médio de Análises Químicas, para participarem do V Simpósio Internacional
Encontros etnográficos com crianças, adolescentes e jovens em contextos edu-
cativos, e do II Simpósio Internacional de Investigações qualitativas com par-
ticipação de crianças, adolescentes e jovens, realizados na Argentina. Os even-
tos científicos ocorreram na Facultad de Humanidades Universidad Nacional
del Nordeste (UNNE) Chaco / Corrientes. Foi a primeira vez que estudantes
de ensino médio do Campus Buriticupu participaram de um evento científico

293
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

internacional. 
A aprendizagem em pesquisa é uma conquista diária, constituída de pe-
quenos avanços e pensada de maneira sistemática, integral e interdisciplinar. Ao
buscar formas amplas e inclusivas de aprendizagens, buscamos a consistência e
a originalidade singular própria do entalhe do artista quando encontra a maté-
ria-prima a ser esculpida, numa relação tempo-memória. Esculpir jovens pesqui-
sadores é um conjunto de procedimentos éticos em tempos de reprodutividade
técnica das coisas, numa atitude que valoriza a memória, a oralidade e a expe-
riência-narrativa partilhada entre mestre e aprendiz. Cada gesto impresso na
matéria a ser entalhada significa aprendizagens em pesquisa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste trabalho, evidenciamos caminhos de reconhecimento e visibilidade


de pesquisas atravessadas pelos marcadores de raça, classe e gênero, com a in-
tenção de provocar reflexões sobre o trabalho de orientar meninas na iniciação
à pesquisa e o papel da educação científica em um mundo em transformação.
Analisamos as oportunidades em que elas puderam participar da vida científica,
relatar os momentos que promovemos e encorajamos o encantamento e o des-
pertar pelo universo da ciência, em um trabalho empenhado em elaborar uma
visão nova sobre elas mesmas, trabalhando sua autoconfiança, colocando-as na
perspectiva do poder e não da subalternidade. Com isso, fortalecemos a sua au-
toestima e sua confiança no futuro, mesmo quando insistiram em fazê-las recuar,
especialmente, quando acontecem as manifestações de censura, desconfiança e
desprezo sobre a ciência produzida por meninas e mulheres.
Acreditamos que este trabalho trouxe experiências que estimulam a par-
ticipação de meninas na iniciação científica, apontando condições materiais de
permanecer nas carreiras acadêmicas. O que implica na visibilidade das mulhe-
res na ciência e de suas lutas por igualdade de oportunidade e reconhecimento.
Ainda coloca a ciência sob uma nova perspectiva, que leva ao entendimento de
como a desigualdade de gênero se estrutura em nossa sociedade, impactando
negativamente a diversidade do conhecimento científico produzido no país.
Nosso interesse foi colaborar com a compreensão da persistência de pa-
drões desiguais, injustos e violentos e com caminhos para superação dessas as-
simetrias no campo da ciência para meninas, a partir das questões de gênero,
implicando um campo epistemológico com potencial revolucionário e transfor-
mador do pensamento e da realidade para milhares de meninas, reclamando ex-
periências, memórias e histórias.
As perspectivas futuras do trabalho com meninas apontam para proje-
tos de iniciação científica e tecnológica marcados pelos lugares do silêncio e

294
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

da ausência. O que é suficientemente preocupante, pois ainda não existe o es-


forço em sistematizar e divulgar dados gerais de pesquisa no IFMA, campus
Buriticupu. Em se tratando das pesquisas sobre a temática de gênero, o silên-
cio é ainda mais ensurdecedor, pois não sabemos quais e quantas pesquisadoras
atuam/atuaram na iniciação científica, tecnológica e inovação, bem como não
temos informações suficientes sobre as pesquisas realizadas por elas no decurso
de mais de uma década. Além disso, quando nos debruçamos sobre memórias
e histórias de jovens pesquisadoras, fica ainda mais evidente a lacuna sobre a
visibilidade delas na vida acadêmica e científica da instituição.
A relevância epistêmica, cultural e científica de nossas experiências inter-
disciplinares na escola, é que ela está centrada no recorte de raça, gênero e clas-
se, tornando mais dinâmicas a compreensão crítica da exclusão, desigualdade e
opressão históricas relativas a certos segmentos sociais.
Dessa interação, problematização e diálogo, a nossa intenção foi possi-
bilitar uma formação política, social e cultural ampliada das estudantes. Talvez
seja sintomático, mas estas práticas não são amplamente apoiadas e difundidas,
por isso, experiências como as nossas, deverão ser conhecidas pelas instituições,
oportunizando a discussão de um currículo integrado e marcado por práticas
interdisciplinares, de modo rechaçar a diminuição e o esquecimento de meninas
na ciência, obliteradas experiências como as das mulheres negras e suas obras.
Por fim, é importante compreender e estar atento às ameaças de esvaziamento e
cerceamento de práticas de iniciação científica de formação humanística crítica
e libertadora para meninas.

REFERÊNCIAS
ACHUTTI, Luiz Eduardo Robinson. Fotoetnografia: um estudo de antropolo-
gia visual sobre cotidiano, lixo e trabalho. Porto Alegre: Tomo Editorial: Palma-
rinca, 2004.
AGÊNCIA BRASIL. Após ataques, campanha por placas de Marielle já ar-
recada R$ 28 mil. Rio de Janeiro: publicado em 04 out. 2018. Disponível em:
http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/ 2018-10/apos-ataques-cam-
panha-porplacas-de- marielle-ja-arrecada-r-28-mil. Acesso em 25 mar. 2019.
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Fapesp, mar., ano 21, n. 289, s/p, 2020. 
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BIROLI, Flávia. Gênero e desiguldade. Limites da democracia no Brasil. São

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
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296
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

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297
OS DIÁRIOS DE LEITURA COMO INSTRUMENTO
PARA O LETRAMENTO ANTIRRACISTA:
DIALOGIA E SUBJETIVIDADE
Bruna Carolini Barbosa1

INTRODUÇÃO

Este trabalho é parte de uma pesquisa em nível de doutoramento e visa


a apresentar e discutir parte dos dados obtidos em diários de leitura produzidos
pelas alunas e alunos da disciplina de Leitura e Produção de Textos, no primeiro
ano da graduação em Letras de uma Universidade Pública no Norte do Paraná.
Os diários de leitura (DL) já foram amplamente explorados em sala de aula, nos
mais diversos contextos e segmentos educacionais: desde as séries iniciais até o
ensino superior. Neste último segmento, mais especificamente, os DL são enten-
didos como mediadores de leitura e do conhecimento, auxiliando na formação
acadêmica dos educandos.
No contexto deste trabalho, compreendemos os diários enquanto escrita
de invenção: configuram-se como expressão da dimensão subjetiva da leitura.
Diante disso, o objetivo aqui é analisar, a partir de uma perspectiva dialógica do
discurso, as percepções de professores em formação acerca do livro “Quarto de
Despejo – Diário de uma Favelada”, de Carolina Maria de Jesus.
Compondo um dos gêneros catalisadores de um projeto de Letramento,
que figurou como eixo organizador de práticas de formação em uma práxis de-
colonial, os diários permitem a observação impressões das professoras e dos pro-
fessores em formação em relação a diferentes manifestações sociais do racismo.
Vale mencionar que os diários, alinhados a uma prática cursiva de leitura
(ROUXEL, 2012), são reveladores de subjetividade, ressaltando a relação valo-
rativa sobre os objetos do discurso e com outros discursos pré-figurados. Essa di-
mensão subjetiva emocionalmente valorativa observada nos diários determina o
estilo e composicionalidade do enunciado. Especificamente, analisamos três en-
tradas dos diários sobre as impressões de leitura de três participantes de pesquisa.
Os excertos analisados evidenciam a proposição de que mesmo enunciados

1 Doutora em Estudos da Linguagem pelo Programa de Pós-graduação em Estudos da Lin-


guagem da Universidade Estadual de Londrina – UEL. Docente na Universidade Estadual
do Norte do Paraná – UENP. E-mail: [email protected]
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

que estão distantes em relação ao tempo e espaço são capazes de revelar relações
dialógicas e de sentido (BAKHTIN, 2012), neste caso, sobre o lugar social ocupa-
do pelos corpos negros. As análises e discussões apontam para a potencialidade
dos diários de leitura como estratégia didática para o letramento antirracista.
Inicialmente, estabeleço, brevemente, o perfil metodológico deste trabalho.
Em seguida, apresento as bases teóricas que orientam a pesquisa. Por fim, descre-
vo, discuto e analiso os dados.

METODOLOGIA

A partir de um paradigma qualitativo-interpretativista, este trabalho parte


da premissa de que pesquisador, objeto e sociedade estão imbricados e, portanto,
implicados na pesquisa (DENZIN; LINCOLN, 2006). Inserida no campo da
Linguística Aplicada Crítica, o trabalho não se ocupa da resolução de problemas,
de modo positivista, mas da discussão que visa a criar inteligibilidade em uma
questão em que a linguagem é focalizada (MOITA LOPES, 1996).
Especificamente, são elencadas entradas de diários de três participantes
de uma pesquisa em que foi organizado, conduzido e analisado um projeto de
letramento antirracista. Esse projeto de letramento, integrador de vários eventos
de letramento antirracista, teve como uma de suas estratégias a escrita de diá-
rios de leitura por parte de alunos do primeiro semestre de um curso de Letras
Português, Inglês e suas respectivas literaturas em uma universidade pública no
Norte do Paraná.
Os professores em formação – sujeitos dessa pesquisa – produziram diá-
rios de leitura sobre obras literárias de autoria negra ou relacionadas às questões
étnico-raciais. Tal instrumento de mediação de leitura configurou, no contexto
macro da pesquisa, como um instrumento de coleta de dados. Neste artigo, en-
tretanto, elencamos apenas três entradas de diários nos quais foram registradas
percepções acerca da obra “Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada”, de
Carolina Maria de Jesus.
A seleção do corpus analisado atende ao critério de relevância em relação
aos objetivos centrais deste artigo: analisar, em uma perspectiva bakhtiniana, a
relação dialógica que constitui os discursos e, principalmente, demonstrar o cará-
ter potencial dos diários de leitura como estratégia para o letramento antirracista.
Para isso, transcrevemos os excertos selecionados e atribuímos a eles uma autoria
fictícia, a fim de guardar o anonimato dos participantes.
Iniciamos com uma breve abordagem teórica sobre os conceitos que são
centrais neste trabalho – Linguística Aplicada Crítica, Projeto de Letramento
Antirracista – para, em seguida, realizarmos a discussão e análise dos dados.

299
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

REVISÃO DE LITERATURA

A Linguística Aplicada, campo em que se insere este trabalho, pode ser


historicizada considerando-se três momentos distintos: i) em um primeiro mo-
mento a Linguística Aplicada é entendida como aplicação da Linguística; ii) em
um segundo momento, ocorre a diferenciação da LA da Linguística, quando
começa a inserção de outros campos do conhecimento e, dada a necessidade de
teorização para compreender outros contextos, passa a ser interdisciplinar nos
anos 80, porém mais como uma ideia do que na prática, predominantemente
restrita ao campo de ensino de Inglês – posteriormente, lançando luz à proble-
mática do caráter colonialista da LA (teorias, livros, métodos); iii) a partir deste
terceiro momento, a LA expande sua atuação para outros contextos de pesquisa:
ensino de língua materna, letramentos, outras disciplinas, outros contextos insti-
tucionais. A linguagem é vista como instrumento da comunicação social. A LA
passa a ser vista para além da sala de aula. A linguagem implica a construção do
conhecimento e da vida social, lançam olhar aos usos da linguagem. Aumenta o
campo de atuação e requer interdisciplinaridade para teorizar.
Não objetivo aqui tratar em detalhes dos aspectos de cada uma das fa-
ses, uma vez que, no âmbito da prática desenvolvida nesta pesquisa, ressalto a
relevância da Linguística Aplicada Crítica, a partir da qual é possível construir
compreensão e obter perspectivas para uma formação inicial de professores com-
prometida com a justiça social.
A Linguística Aplicada a partir da qual diálogo busca, em suas pesquisas,
“criar inteligibilidade sobre a vida contemporânea ao produzir conhecimento e,
ao mesmo tempo, colaborar para que se abram alternativas sociais com base
nas e com as vozes dos que estão à margem” (MOITA LOPES, 2006, p. 96).
Ressalto, ainda
a necessidade de ouvir as vozes das periferias ou daqueles que foram ali-
jados dos benefícios da modernidade (os negros, os homossexuais, as mu-
lheres, os povos colonizados etc.), não só como uma forma de produzir
conhecimento sobre eles, mas principalmente pelo interesse em entender
como suas epistemes, desejos e vivências podem apresentar alternativas
para o nosso mundo (MOITA LOPES, 2009, p. 21).

Para construir conhecimento que seja responsivo à vida social, é neces-


sário que se compreenda a LA não como disciplina, mas como área de estudos
como lugar de ensaio da esperança (MOITA LOPES, 2006). Defendo, assim,
uma Linguística Aplicada Crítica que possibilite, por meio de uma agenda inter-
ventiva, repensar as configurações sociais, as vozes e discursos hegemônicos, as
ideologias dominantes e dominadoras. Partindo dessa premissa, busco, em con-
sonância com uma praxiologia decolonial, ressignificar a prática de formação

300
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

inicial de professores, rompendo com o monopólio das metodologias que des-


consideram a subjetividade dos sujeitos e não se desenvolvem considerando os
letramentos situados e vernaculares (BARTON; HAMILTON, 1998). As praxio-
logias podem ser entendidas da seguinte forma:
[...] são nossas epistemologias fundidas com nossas práticas, misturadas
de tal forma que não podem ser expressas senão em uma palavra. O termo
substitui teorias, pois compreendemos que, pelo menos na nossa área, teo-
rias não podem ser dissociadas da prática. Essa é a nossa forma de inter-
pretar o argumento de Freire (2005) de que não há prática sem teoria, nem
teoria sem prática (PESSOA; SILVA; FREITAS, 2021, p. 15).

A efetivação didática dos pressupostos elencados anteriormente deu-se a


partir de um projeto de letramento no contexto de formação inicial de profes-
sores de línguas. O projeto, que visava às práticas antirracistas, teve como uma
das estratégias o registro de percepções de leitura em diários, nos quais os alu-
nos escreviam suas impressões, dúvidas, teciam comentários, dialogavam com os
eventos das narrativas literárias e com suas próprias experiências. Para além da
mediação de conhecimentos específicos, os DL figuraram como um lugar seguro
para a escrita de segmentos autobiográficos.
É importante reiterar que não existe um conjunto de estratégias ou método
de letramento. A formação de professores a partir da perspectiva dos (multi)le-
tramento(s) não segue um passo a passo, mas orienta, criticamente, práticas que
rompam e subvertam o poder hegemônico. O planejamento deixa de centralizar
aqueles conhecimentos voltados a um mero “treinamento” de professores.
Nessa perspectiva, os projetos de letramento apresentam-se como uma
possibilidade de organização do trabalho docente, caracterizando-se como
projetos de trabalho escolar que destacam a centralidade das práticas so-
ciais de letramento no processo educacional e por isso tornam-no eixo
estruturante das atividades […] Os projetos de letramento requerem um
movimento pedagógico que vai da prática social para o “conteúdo” (seja
ele uma informação sobre um tema, uma regra, uma estratégia ou proce-
dimento), nunca o contrário […] não substitui os eixos temáticos nem os
eixos conteudísticos relevantes no trabalho escolar (KLEIMAN, 2010, p.
377-383).

Trata-se de um trabalho complexo em que a flexibilidade é crucial e a


organização prévia e durante o desenvolvimento do projeto são indispensáveis.
O professor precisa considerar não só os usos sociais da escrita na comunidade,
como os impactos e transformações decorrentes das novas tecnologias, além de
ampliar o conjunto de textos que fazem parte da vida do aluno (KLEIMAN,
2007). O conteúdo não é, nessa organização, a centralidade ou o todo, mas parte
de uma formação, que ultrapassa o saber técnico e se propõe a compreensão da
complexidade do tecido social.

301
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

A organização didática via projeto de Letramento pode minimizar as lacu-


nas entre formação docente e seu trabalho em sala de aula:
A formação do professor deve ser encaminhada na perspectiva da aproxi-
mação entre teoria e prática. Aquilo que se realiza no contexto de formação
docente deve se aproximar o máximo possível daquilo que deve ser feito na
sala de aula. [...] como uma organização didática, o projeto de letramento
viabiliza, no contexto de formação docente, uma formação voltada para o
trabalho e para a cidadania (MARQUES, 2016, p. 113-116).

No projeto de letramento conduzido no contexto de formação de profes-


sores no qual foi desenvolvida a pesquisa, o letramento antirracista ocupava a
centralidade das práticas. Como letramento antirracista entendo os eventos de
letramento em que as relações raciais, os racismos e antirracismos são discutidos,
explorados, desvelados. Busca-se, nesses eventos, a compreensão das dimensões
do racismo estrutural e como ele está arraigado nas relações e implicado no nos-
so discurso. Entre outros objetivos, almeja-se romper com o eurocentrismo, com
o brancocentrismo, lançar luz sobre os mecanismos de manutenção da epistême
da branquitude, refletir sobre como, no Brasil, é construída discursiva e social-
mente a categoria raça, o mito da igualdade racial etc.
Uma das etapas do projeto consistia na escolha de uma obra literária de
autoria negra para que realizassem a leitura e registrassem suas impressões.
Neste texto, especificamente, conforme mencionado anteriormente, apresentos
entradas escritas nos diários pelos professores em formação e discuto como o le-
tramento antirracista se efetiva a partir deste instrumento. Com base em Lejeune
(2014), chamamos de “entrada” o texto escrito pelo aluno no diário em um mo-
mento determinado; são os textos que os alunos vão registrando à medida que
realizam a leitura.
A autora Machado (1998) enumera as contribuições do DL: a possibilida-
de de detecção das dificuldades individuais de cada aluno, que poderia ser ajuda-
do de forma mais consistente; a promoção de aprendizado autônomo, o que en-
corajaria os alunos a assumir responsabilidade diante de seu próprio aprendizado
e a desenvolver suas próprias ideias, o que acabaria por promover uma avaliação
crítica dos cursos; o aumento da confiança dos alunos em sua habilidade para
aprender, para trabalhar com material considerado como difícil e para ter insigths
originais; a possibilidade de encorajar os estudantes a estabelecer conexões entre
o conteúdo do curso e a sua própria ação; a possibilidade de o curso se tornar
mais orientado pelo processo, entre outras.
Embora já tenham sido utilizados em outros contextos e para outros fins
– sobretudo os voltados aos objetivos escolares e acadêmicos – (MACHADO,
1998) – aqui os diários de leitura serão compreendidos conforme proposto por
Rouxel (2012): um dos tipos de atividades que oferecem acesso à expressão da

302
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

subjetividade, ou seja, emoções ou pensamentos. A autora denomina atividades


dessa natureza como “escrita de invenção”, pois “permitem observar a existência
de uma relação pessoal com a obra lida e de traços do processo de elaboração
identitária. O leitor exprime suas reações diante do texto e se entrega àquilo que
sente” (ROUXEL, 2012, p. 276).
Em um contexto em que não são considerados os sujeitos, suas expressões
de subjetividades, tais segmentos seriam ignorados, descartados no momento de
intervenção didática, contudo, para uma formação crítica, culturalmente sensível
e decolonial, tais inserções são tão relevantes quanto os registros formais da leitu-
ra. Sobretudo ao que se propôs o projeto de letramento – refletir sobre as relações
étnico-raciais – são justamente esses segmentos de expressão da subjetividade
que possibilitaram eventos de letramento para problematização de alguns discur-
sos que revelavam traços do racismo estrutural (ALMEIDA, 2021).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Elenquei para análise três entradas de diários de leitura transcritas a seguir.


A transcrição, como é possível observar, mantém a escrita dos estudantes, na
integra, sem correções ou inserções. Os nomes colocados nos títulos dos quadros
são, por questões éticas, fictícios, como já mencionado na seção de metodologia.
O registro original é manuscrito; optei pela transcrição a fim de conferir melhor
legibilidade ao texto.
As impressões de leitura são sobre a obra “Quarto de Despejo – Diário de
uma Favelada”, de Carolina Maria de Jesus. Este livro, em formato de diário, re-
trata a vida da autora e de seus filhos, moradores da favela do Canindé. Em seus
registros, ela descreve as dificuldades enfrentadas em meio a pobreza e a fome.
Em sua escrita, Carolina escancara a negligência do poder público em relação
aos sujeitos periféricos, negros e subalternizados.
As entradas aqui apresentadas são de três participantes do gênero femini-
no, possuem entre 19 e 22 anos e são alunas do primeiro semestre do Curso de
Licenciatura em Letras. Todas cursaram a educação básica em escola pública.
Bell e Lélia são a primeira geração da família a ingressar no ensino superior.2
A participante Bell menciona a atualidade da obra, além de apontar a si-
milaridade entre a história de Carolina Maria de Jesus e a história de sua avó.
Fala de modo enfático da emoção ao ler, sobretudo por conta das lembranças que
a leitura suscitou:

2 Dados obtidos por meio de formulário socioeconômico respondido pelos participantes da


pesquisa.
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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Quadro 1 – Entrada do diário da participante Bell

Quem lê percebe com tristeza que, mesmo tendo sido escrito na década de 1950, este
livro não perde sua atualidade [...] o mais impressionante é que esse livro não foge da
atual situação que muitas famílias negras e periféricas passam e como essas famílias lutam
para ter seu sustento a cada dia. [...] A cada página que eu lia, eu me emocionava. Me
emocionava ainda mais quando Carolina relatava que estava com fome e que não tinham
comida para os filhos. Isso me lembra da minha família. Minha avó também era negra e
teve 7 filhos [...] minha avó sofreu bastante nesse aspecto. Pois ela deixava de comer para
deixar para os filhos. Então, Carolina me lembrou muito minha avó.
Fonte: diário de leitura da participante da pesquisa

Lélia fala sobre a dificuldade em ler a obra devido a sua temática – fome,
pobreza. Expressa a tristeza e o impacto que sentiu e que, mesmo não tendo pas-
sado por igual situação, não pôde deixar de pensar sobre a atualidade da obra:

Quadro 2 – Entrada do diário da participante Lélia

Uma obra de difícil leitura talvez seja mais uma obra real que se passa o dia a dia da
pobreza. Me senti triste ao ler essa obra, o ano passado eu li, esse ano reler essa obra foi
ainda mais impactante, porque vi coisas que não tinha visto antes, momentos da Carolina
expressões dela a voz gritante que recorria dentro dela que ela expressava de uma maneira
tão linda com as palavras dela, com o suor ela falava de tudo e todos, da montanha russa de
sentimentos, dela sendo a personagem principal (juntamente com a fome) e com a luta para
conquistar o pão. Eu nunca passei fome nem nada semelhante mas ler sobre isso sobre esse
peso da fome amarela, fez ver como muitas das vezes sou egoísta e não penso na realidade
em si, esse diário vai de 1955 a 1958, mas lendo ele nos vemos como a sociedade vem sendo
espremida nos dias de hoje, principalmente a sociedade pobre e negra.
Fonte: diário de leitura da participante da pesquisa

Angela conta sobre a emoção e indignação ao ler a obra, bem sobre como,
até então, não havia parado para pensar sobre as condições precárias nas quais
vivem as pessoas como a autora. De modo mais generalista, afirma que Carolina
Maria de Jesus representa todas as mulheres negras periféricas:

Quadro 3 – Entrada do diário da participante Angela

No livro a autora descreve com clareza a vida dela como uma mulher periférica e também
as dificuldades das outras pessoas. Essa obra me causou tanta emoção, quanto me deixou
indignada com a situação pelo fato de eu nunca ter parado para pensar muito bem em que
condições vivem essas pessoas [...] Nesta obra notei também que além de ser a história de
uma mulher negra com uma vida difícil, mas representa todas as mulheres periféricas, e
levanta a questão da extrema pobreza e criminalidade das favelas.
Fonte: diário de leitura da participante da pesquisa

Na escrita em primeira pessoa, está marcada a presença do “eu que escre-


ve”, está implicada a subjetividade, observada não apenas por meio dos elemen-
tos linguísticos que apontam para a o enunciador, mas pela própria materialidade
discursiva que coloca em diálogo a vida de Carolina Maria de Jesus e a própria

304
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

vida das participantes da pesquisa.


Ao escreverem suas impressões, as participantes da pesquisa retomam
eventos de suas próprias vidas e os colocam em diálogo com os episódios da vida
de Carolina Maria de Jesus. Tais impressões ora aproximam-se em uma relação
de semelhança – como no caso da participante Bell – ora distanciam-se em um
olhar de alteridade, em que se estabelece o eu e o outro – como observamos nas
escritas das participantes Lélia e Angela.
Independentemente da relação de proximidade ou distanciamento entre os
relatos autobiográficos da autora e dos relatos autobiográficos das participantes,
é possível verificar o ato reflexivo em relação à realidade periférica de uma mu-
lher negra. É justamente nessas fissuras do discurso em que opera o letramento
para as questões étnico-raciais; na mediação desse olhar para uma realidade em
que coexistem realidades, narrativas, experiências, vidas. No caso deste projeto,
as mediações eram feitas em círculos de leitura, em que discutíamos a obra e as
questões raciais trazidas pelos participantes e observadas nos diários.
A impressão registrada no diário é reveladora de uma percepção social
acerca da classe, da raça, do gênero e instaura um espaço dialético entre o leitor
e a obra, entre o leitor e a sociedade, entre o leitor e ele mesmo e, por que não,
entre o leitor e sua formação para a docência. A partir desse espaço confinado
na página do caderno, mas aberto à discussão, à problematização dos sentidos,
o professor formador pode atuar – criticamente e conscientemente – para uma
formação antirracista.
No caso das entradas aqui apresentadas, as questões raciais são explicita-
das pelas participantes da pesquisa e a partir delas, durante o projeto, em outro
evento de letramento, iniciou-se um diálogo. Contudo, nem todos os participan-
tes notavam ou elencavam em seus registros, reflexões sobre a temática e, nesse
caso, a ausência também configurava como um marcador importante, pois era a
partir da ausência que o diálogo com os participantes era iniciado; a não presen-
ça, o não lugar também são plenos de sentido, uma vez que refletem a própria
invisibilidade social em relação aos corpos negros.
Uma outra possibilidade de mediação se apresenta quando Angela afirma
que Carolina Maria de Jesus representa todas as mulheres negras periféricas. Um
trabalho de pesquisa e criação de um portfólio de mulheres negras periféricas
e suas histórias oportunizaria a reflexão sobre como as identidades negras são
múltiplas, diversas e que, comentários que as reduzem a uma identidade fixa,
precisam ser superados.
Como é possível verificar por meio da leitura das entradas dos diários, há,
nas impressões registradas, a menção à atualidade em relação aos acontecimen-
tos relatados por Carolina Maria de Jesus. A análise vai ao encontro da proposi-
ção bakhtiniana de que enunciados distantes em relação ao tempo e espaço, que

305
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

nada sabem um do outro, são capazes de revelar relações dialógicas e de senti-


do (BAKHTIN, 2012). Essa constatação evidencia o exercício de análise social
realizado pelas participantes. Tal análise é, também, um marcador com grande
potencial ao letramento antirracista, já que, a partir dele, pode-se ampliar essa re-
flexão e análise, por meio de pesquisas fundamentadas em dados estatísticos que
evidenciam o racismo estrutural e institucional na contemporaneidade, inclusive
nos espaços em que esses sujeitos circulam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho apresentou uma pequena parte de uma pesquisa desenvolvida


em nível de doutoramento: o projeto de letramento, elaborado, aplicado e analisa-
do no contexto de formação inicial de professores de línguas em uma Universidade
Pública. Neste artigo, especificamente, foram apresentadas e analisadas três entra-
das de diários de leitura produzidos por três participantes de pesquisa.
Os diários de leitura foram, durante o projeto de letramento, um dos ins-
trumentos de mediação para o letramento antirracista, além de, no âmbito me-
todológico, servir à coleta de dados. A seleção dos dados aqui analisados deu-
-se em virtude da relevância em relação aos objetivos apresentados na seção de
introdução.
A reflexão aqui realizada possibilita a percepção de três aspectos funda-
mentais: a relevância dos projetos de letramento no contexto de formação de
professores, uma vez que aproximam teoria e prática, em uma perspectiva crítica
e para a ação social; o caráter indispensável do letramento antirracista na forma-
ção de professores, já que é preciso abrir espaços de diálogo, análise e aprofun-
damento sobre as diferentes manifestações do racismo, sobre como as relações
sociais são atravessadas pelas relações de poder e racializadas, bem como sobre
como o racismo é construído discursivamente; por fim, a efetividade dos diá-
rios como um meio de expressão da subjetividade e como elemento disparador
para discussão com base nos marcadores que são observados nas impressões de
leitura.
Os diários possibilitaram uma incursão à subjetividade dos professores em
formação inicial; não foram, portanto, um mero instrumento para a apropriação
de conhecimentos acadêmicos. Para o professor formador, o diário é um instru-
mento com grande potencial para práticas mais significativas, uma vez que, por
meio dele, é possível estabelecer uma proximidade com o sujeito e não apenas
com o aluno, apartado de sua(s) identidade(s).

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2021.

306
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

BAKHTIN, M. (Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem.13. ed. Trad.


M. Lahud; Y. F. Vieira. São Paulo: Hucitec, 2012.
BARTON, D. & HAMILTON, M. Local literacies: reading and writing in one
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DENZIN, N. K.; LINCOLN, S. O planejamento da pesquisa qualitativa: teo-
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KLEIMAN, A. B. Letramento e suas implicações para o ensino de língua ma-
terna”. Signo, vol. 32, nº 53, Santa Cruz do Sul, p. 1-25, dez., 2007.
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práticas não escolares de letramento para o letramento escolar. PERSPECTI-
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GERHEIM, Jovita Maria Gerheim Noronha (Org). Belo Horizonte: UFMG,
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ROUXEL, A. Práticas de leitura: quais rumos para favorecer a expressão do
sujeito leitor? Cadernos de Pesquisa, v.42, n. 145, p. 272-283, jan./abr. 2012.

307
Unidade II

DIÁLOGOS, DESAFIOS E
SUAS PERSPECTIVAS
PRIMÓRDIOS E BASES DA ESCRAVIDÃO NEGRA
NO OCIDENTE: POVOAMENTO DA TERRA,
IGREJA CATÓLICA E PORTUGAL
Manuel Alves de Sousa Junior1

INTRODUÇÃO 

Os historiadores costumam dividir a história do ocidente em cinco pe-


ríodos: a pré-história vai dos primórdios da humanidade, por volta de 200 mil
anos a.C. (antes de Cristo) até a invenção da escrita, cerca de 5 a 4 mil anos a.C.,
quando se inicia a Idade Antiga que termina com a queda do Império Romano
em 476 d.C. (depois de Cristo); a partir deste ano, inicia-se a Idade Média, que
termina com a conquista de Constantinopla pelos Otomanos em 1453, quando se
inicia a Idade Moderna, que seguiu até o início da revolução francesa em 1789.
A idade contemporânea iniciou nesse período e segue até os dias atuais. Vale
salientar que a pré-história, ou seja, o período que veio antes da história, também
possui suas subdivisões (EBC, 2015). 
Como podemos observar, grandes eventos humanos são utilizados para,
didaticamente, dividir os períodos estudados pela história que, enquanto ciência
humana, é um processo contínuo e não acontece de forma estática, ou seja, é
um processo dinâmico dos humanos sobre a face da Terra. Essa divisão e os
seus efeitos não acontecem em todos os momentos ao mesmo tempo. Ao citar a
historiadora Lilia Schwarcz, Mariane (2020) diz que a intelectual afirma que a
pandemia da COVID-19 é considerada por alguns historiadores, como um gran-
de evento e que poderá ser considerada como o evento de virada para o século
XXI. A crise sanitária mundial pode ainda ser o início de uma nova era histórica,
visto que seus efeitos e reverberações, possivelmente, mudarão as sociedades e
ditarão novas regras, como ocorreram em todas as outras transições entre as de-
mais idades históricas. 
Entender esses períodos, ajuda a entender a escravidão negra no ocidente,
visto que os seus primórdios e seus desdobramentos percorrem diversos períodos
históricos. O objetivo deste artigo é entender diversas vertentes e cenários, em

1 Biólogo, Historiador, MBA em História da Arte, Doutorando em Educação pela UNISC,


Professor do IFBA campus Lauro de Freitas, Membro do Grupo de Pesquisa Identidade e
Diferença na Educação e do Observatório de Biopolítica. E-mail [email protected]
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

que a América e o Brasil foram formados, e de que forma a escravidão negra


surgiu e se consolidou como uma grande instituição causando efeitos em todo o
ocidente. 
Para tanto, este artigo está dividido em 3 seções. Inicialmente, entende-
remos de que forma ocorreu a migração humana pré-histórica pelo planeta e a
chegada dos povos originários no local que hoje chamamos de Brasil. Na sequên-
cia, entenderemos como a Igreja católica iniciou suas atividades e se consolidou
como a maior potência religiosa ocidental e suas relações com a escravidão ne-
gra. Depois, precisamos entender as razões e condições que fizeram de Portugal
um pioneiro no processo das chamadas grandes navegações e o início do tráfico
negreiro.

VIDA HUMANA NA AMÉRICA ANTES DA CHEGADA DOS


EUROPEUS 

Existem várias hipóteses para a chegada dos humanos às terras que hoje
chamamos de América. Existe a suspeita que ocorreram diversas migrações em
momentos diferentes e não apenas uma única diáspora, além de movimenta-
ção humana para a América2 desde 100 mil anos atrás. A hipótese mais aceita
e atualmente comprovada, relata que ocorreu a cerca de 16-15 mil anos atrás,
quando os humanos pré-históricos teriam atravessado os cerca de 80 quilôme-
tros do Estreito de Bering entre os atuais Rússia e Alaska (Estados Unidos da
América) e, a partir daí, conquistando toda a América. Antes disso, existiam
grandes blocos de gelo bloqueando a passagem de humanos e grandes animais, e
com o fim da última Era Glacial, cerca de 18 mil anos atrás, começou o aqueci-
mento global, com o derretimento das grandes geleiras, sendo possível explorar
um novo local. Também existem hipóteses plausíveis de que alguns povos te-
riam atravessado o oceano migrando através das ilhas da Oceania pelo Oceano
Pacífico, como pode ser observado na figura 1 (HARARI, 2016):

2 Cumpre salientar que nesse período não podemos chamar as referidas terras de América,
o que seria um anacronismo. Do mesmo modo, outros territórios ainda não eram renome-
ados com as configurações atuais, porém, chamaremos com os nomes da geopolítica atual
para facilitar o entendimento do leitor.
310
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

FIGURA 01: Possíveis rotas migratórias do ser humano pré-histórico

FONTE: Naquet-Vidal; Bertin, 1990.

Os homens e mulheres pré-históricos eram nômades até o início da re-


volução agrícola que começou cerca de 12-10 mil anos atrás. A transição para
o cultivo de vegetais e domesticação de animais também não foi uniforme. Por
exemplo, trigo e bodes foram domesticados por volta de 9.000 a.C: “alguns ani-
mais e sementes como camelos e castanhas-de-caju, foram domesticados ainda
mais tarde, mas em 3.500 a.C. a principal onda de domesticação havia chegado
ao fim” (HARARI, 2016, p. 87). O mesmo autor afirma que descobertas arqueo-
lógicas indicam momentos diferentes para a revolução, que se iniciou onde hoje
conhecemos como Turquia, por volta de 9.000 a.C. e nas regiões conhecidas
atualmente como os estados estadunidenses do Alabama e Geórgia, por volta de
2.000 a.C. 
Até então, os povos autóctones destas terras eram caçadores e coletores,
viviam algumas semanas em um mesmo local, consumindo a alimentação dis-
ponível. Quando os alimentos passavam a ser escassos para as pessoas presentes
na comunidade, eles migravam para outro local, e assim, viviam no nomadismo,
possivelmente, até perceberem que sementes descartadas davam origem a novas
plantas e que poderia ser possível a agricultura.
Com esta, veio também a domesticação de animais e o desenvolvimento
da pecuária rudimentar. Estes movimentos não foram uniformes em todo o glo-
bo e nem com todas as plantas e animais ao mesmo tempo (HARARI, 2016). Até
os dias atuais seguimos com os processos de domesticação, como por exemplo,
as Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANC), que passaram a ser cultiva-
das e amplamente difundidas a poucos anos. 

311
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Desse modo, podemos entender que antes da chegada dos europeus


na América, estas terras já eram amplamente povoadas. Estudos relatam que
existiam entre 1 e 8 milhões de indígenas quando os portugueses chegaram.
Distribuídos em diversas etnias diferentes, constituindo, inclusive, impérios nos
Andes na América do Sul e nas Américas central e do Norte (Incas, Maias e
Astecas). Estudos da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), apontam para 3
milhões de pessoas, em mais de 1000 povos diferentes no Brasil. Em 1650, esti-
ma-se que eram cerca de 700 mil e chegaram a apenas 70 mil em 1957. O censo
do IBGE de 2010 contabilizou 817.963 indígenas, sendo 502.783 na zona rural e
315.180 nos centros urbanos, distribuídos em 305 etnias diferentes e falando 274
línguas diferentes (excluindo as línguas originárias de outros países) (SOUSA,
2021; BRASIL, 2010).
O próprio termo “índio” é uma construção conceitual histórica e atual-
mente tem sido rechaçado pela comunidade indígena, por ter sido um termo
cunhado por Cristóvão Colombo, ao achar que tinha chegado às índias na Ásia,
chamando seu povo de índio. Mesmo depois da certeza que estava no Novo
Mundo, o termo continuou sendo utilizado indiscriminadamente para se referir
aos povos originários, unificando-os como um único povo. O termo, no entanto,
assumiu um significado mais complexo, pois “os povos que antes eram discrimi-
nados por esse termo hoje se identificam como tal, construindo sua identidade
cultural a partir dele” (SILVA; SILVA, 2015, p. 222). Hoje em dia, em que pese
essa identidade cultural, muito preferem não mais serem chamados de índios,
mas sim de indígenas, povos originários ou povos autóctones. 
Entender essa dinâmica e contexto dos povos indígenas, é importante para
entender o cenário que os europeus encontraram no Brasil e na América quando
chegaram por estas terras e começaram a conquista e ocupação do território.
Algumas reflexões emergem ao entender um pouco sobre a dinâmica desses po-
vos: os povos indígenas possuem história? Como se comportaram com a chegada
dos europeus? Como se deu o extermínio/genocídio indígena?

A RELAÇÃO DA IGREJA CATÓLICA COM A ESCRAVIDÃO


NEGRA NO OCIDENTE

A religião Católica nasceu pequena e na clandestinidade, dentro do Império


Romano. Ela passou por um todo um processo que começou com poucos adep-
tos e foi crescendo e angariando seguidores que se reuniam às escondidas, devido
à proibição de outras crenças. Estima-se que Jesus Cristo tenha nascido no ano
zero ou no ano 6 d.C. Nesse tempo, a palavra era passada de boca em boca, o
número de fiéis crescia, sobretudo, levando esperança pelo Cristo Salvador para
os doentes e acometidos por pestes. Por volta do ano 60, o governo do Imperador

312
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Nero determinou a perseguição e morte aos cristãos. Em torno do ano 200, o nú-
mero de cristãos era grande, mas ainda praticando os rituais na clandestinidade,
visto que a Roma antiga era politeísta e não admitia uma religião baseada em um
único Deus. No ano 313, o Imperador Constantino acabou com a perseguição
aos cristãos. Ele próprio se converteu ao cristianismo e a religião passou a ter
mais liberdade. Em 325, mais de 300 bispos reunidos fixaram a data da Páscoa,
o domingo como dia de descanso dos cristãos, dando início às leis canônicas e
formulando a organização católica, além de iniciar as construções das primeiras
igrejas. Em 380, o Imperador Teodósio tornou o catolicismo como uma religião
oficial do Império Romano. Em 476, o Império Romano do Ocidente sucumbiu
diante das invasões bárbaras e, com o início da Idade Média, a Igreja e os novos
Estados formados passaram a ter estreita relação entre si, o que fortaleceu cada
vez mais a Igreja Católica ao longo dos quase mil anos do período medieval
(BLAINEY, 2012).
No final do medievo e início da Idade Moderna, com o início da escravi-
dão negra no ocidente, a Igreja emitiu diversos documentos papais que legitima-
vam o novo regime escravista. Com o passar dos anos, diversos papas passaram
a condenar a escravidão. Os estudos dizem que a Igreja não teve escravos, apesar
de atuar em diversos estados que possuíam negros cativos, produzir documentos
que apoiavam a escravidão e atuar ativamente no batismo de escravizados, para
tentar amenizar as mazelas da mudança de vida de homens e mulheres arranca-
dos de suas comunidades em África. 
Na Idade Média, a cartografia de Ptolomeu relegou à África e aos seus
habitantes as piores regiões do planeta, ratificado posteriormente pela teoria ca-
mita. Numa espécie de mitologia bíblica, onde reinou a ideia de que Noé, o res-
ponsável pela arca que salvou os animais no dilúvio, povoou o mundo com seus
filhos. Jafé, o primogênito, povoou a Europa com seus descendentes, os filhos de
Sem povoaram a Ásia, e mais ao sul, tomando como referencial a Europa, lógi-
co, ficava “o continente negro e monstruoso, a África. Suas gentes descendentes
de Cam, o mais moreno dos filhos de Noé” (NORONHA, 2000, p. 681). 
Cam foi amaldiçoado por flagrar o pai, Noé, bêbado e nu, após a come-
moração do sucesso com a sua arca no dilúvio. Pinar (2008, p. 16) afirma que
podem existir duas explicações para a punição e maldição sofrida por Cam e
seus descendentes “... ou Cam violou a antiga proibição israelita contra olhar
para o corpo do pai. A segunda resposta é que Cam violou seu pai sexualmen-
te.”. Assim, os seus descendentes deveriam ser punidos e se tornar escravos dos
descendentes dos seus irmãos. Os devotos dessa teoria camita tiveram problemas
com a conquista da América, já que Noé não tinha mais filho que pudesse ter
povoado o Novo Mundo. Michelangelo, ao representar o livro de Gênesis da
Bíblia no teto da Capela Sistina, pintado como afresco de 1508 a 1512, colocou 9

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(O rganizadores )

quadros principais, dentre eles está A embriaguez de Noé, justamente representan-


do o mito fundador da Maldição de Cam (SOUSA JUNIOR; SOBRAL, 2021),
como se observa na figura 02:

FIGURA 02: Representação da Embriaguez de Noé no teto da Capela Sistina pintado por
Michelangelo

FONTE: Vieira, 2016

Sousa Junior e Sobral (2021) afirmam que, por intermédio do afresco ci-
tado, a Igreja ajudou a legitimar a escravidão negra no ocidente em um tempo
em que novas terras eram “descobertas” e precisavam de mão de obra para o
trabalho. Nessa época, as lavouras de cana de açúcar já estavam veementes nas
ilhas atlânticas portuguesas. Ao analisar a figura 2, os autores refletem sobre o
agricultor na imagem e 
percebe-se que trata-se de um lavrador, o que pode significar que o artista
estava associando o pecado de Cam a sua futura destinação, qual seja, o
trabalho pesado, exaustivo, como condenação pelo erro cometido. Outro
detalhe que não passa despercebido é que a composição aponta majorita-
riamente para esse indivíduo, os braços de dois dos personagens da cena
apontam para a direção do lavrador. Parece, enfim, que a mensagem é de
que Cam, o filho negro, traidor, violador das tradições e costumes, e toda
a sua descendência, merece ser relegada à submissão e ao trabalho manual
de lavrar a terra (SOUSA JUNIOR; SOBRAL, 2021, p. 404).

Ainda no século XV, duas encíclicas papais, Dum Diversas e Romanus


Pontifex, davam direito aos reis de Portugal de despojar e escravizar eternamente
os maometanos, pagãos e povos pretos em geral (OLIVA, 2003). A Dum Diversas,

314
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

por exemplo, é uma bula papal dirigida a D. Afonso V de Portugal e publicada


em junho de 1452 pelo Papa Nicolau V. Através desta Bula, o Papa afirma
[…] nós lhe concedemos, por estes presentes documentos, com nossa
Autoridade Apostólica, plena e livre permissão de invadir, buscar, capturar
e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimi-
gos de Cristo, onde quer que estejam, como também seus reinos, ducados,
condados, principados e outras propriedades […] e reduzir suas pessoas à
perpétua escravidão, e apropriar e converter em seu uso e proveito e de seus
sucessores, os reis de Portugal, em perpétuo, os supramencionados reinos,
ducados, condados, principados e outras propriedades, possessões e bens
semelhantes (GELEDÉS, 2009).

Na bula Romanus Pontifex de 1455, o papa Nicolau V formulou a primeira


justificativa evangélica do tráfico negreiro. Considerava-se justos o comércio e a
posse de negros, visto que muitos deles tornavam-se cristãos. Os brancos acredi-
tavam que pelo menos estavam ajudando a salvar a alma dos negros, ou seja, o
tráfico negreiro carregava o indivíduo de uma vida pior para uma vida menos ruim
ao lado do Deus Salvador (ALENCASTRO, 2000). Apoiados nesses documentos,
os reis de Portugal e Espanha promoveram uma verdadeira devastação na África,
causando genocídios e escravizando milhões de negros ao longo dos anos. 
No imaginário europeu, reforçado por viajantes, missionários e aventu-
reiros que seguiam para o sul, em direção à atual Linha do Equador, discorrem
a presença de “Monstros, terras inóspitas, seres humanos deformados, imorali-
dades, regiões e hábitos demoníacos” (SOUSA JUNIOR; SOBRAL, 2021, p.
405). A cor negra, típica dos habitantes do sul onde estavam os africanos, passou
a ser associada à escuridão, ao mal e ao inferno onde estavam as criaturas das
sombras, não por coincidência, o diabo relatado nos tratados de demonologia era
quase sempre negro (DEL PRIORI; VENÂNCIO, 2004). Para a crença cristã eu-
ropeia, os negros eram pagãos, ou seja, possuíam outra fé, adoravam demônios e
seres do mal enquanto negavam o Cristo Salvador católico. Assim, as religiões de
matriz africana eram completamente rechaçadas e os brancos europeus deveriam
levar a salvação através da fé católica para estes homens e mulheres, sendo essa
a missão do catolicismo. 
Entender a dinâmica e o poder que a Igreja Católica exerceu no mundo,
sobretudo, medieval e moderno, é de fundamental importância para compreen-
der também a sua relação com o processo de escravidão atlântica. Superada essa
etapa, precisamos refletir um pouco sobre a importância de Portugal no pionei-
rismo da escravidão moderna, tema da próxima seção. 

O PIONEIRISMO PORTUGUÊS E SUA RELAÇÃO COM A


ESCRAVIDÃO MODERNA
A presença romana na Península Ibérica iniciou-se em 218 a.C. Em 409,

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(O rganizadores )

os primeiros invasores germânicos se instalaram na região. Com a desagrega-


ção do Império Romano do Ocidente, em 476, vários pequenos reinos surgi-
ram e se estabeleceram nos antigos territórios romanos. A presença muçulmana
governando a região, começou em 711 e só foram expulsos completamente da
Península em 1492, com a retomada de Granada no sul da Espanha, último re-
duto muçulmano a ser reconquistado pelos cristãos (FERREIRA; DIAS, 2016). 
Com o passar dos anos, surgiu o Condado Portucalense, por volta do ano
868, a partir da cidade de Portucale, junto à foz do rio Douro. O Condado passou
a conquistar as áreas ao redor das margens do rio que, mais tarde, passariam a
fazer parte de Portugal. Provavelmente, em 1096, D. Henrique de Borgonha, um
cavaleiro francês, assumiu o comando do Condado e morreu em 1112. Somente
em 1127 que D. Afonso Henriques, o herdeiro de D. Henrique, conseguiu assu-
mir o trono e, em 1139, ocorreu a reconquista da região da Península Ibérica, que
estava tomada pelos árabes muçulmanos, sendo fundado o Reino de Portugal
com D. Afonso Henriques sendo o primeiro rei (FERREIRA; DIAS, 2016). 
Desse modo, pode-se afirmar que Portugal foi um dos primeiros países
modernos, senão o primeiro, a se constituir como nação. Em 1297, o país es-
tabilizou suas fronteiras, já similares às atuais. Durante toda a idade média, o
país tentou, por diversas vezes, sem sucesso, expandir-se para outros territórios
em diversas batalhas. Assim, com a Europa em diversos conflitos de terras e no
início de uma grande expansão comercial, Portugal não teve outra saída a não
ser se lançar ao mar. 
A partir de 1419, Portugal deu início às grandes navegações que saíam
explorando e conquistando novas terras. Madeira e Porto Santo, em 1419/1420;
Açores a partir de 1427; Cabo Bojador (Atual Saara Ocidental) em 1434; Cabo
Verde em 1444; Rio Gâmbia em 1455; Arquipélago de Cabo Verde, a partir de
1456; Rio Zaire em 1484; Cabo da Boa Esperança (Atual África do Sul) em 1488;
Moçambique em 1498; Calicute nas Índias em 1498; atual Brasil em 1500; Terra
Nova, no atual Canadá, em 1500, e assim por diante.
Cada vez mais os navegadores iam reconhecendo os mais diversos terri-
tórios, sobretudo ao sul, até que Vasco da Gama conseguiu contornar a África
e chegar na Ásia em 1500. A busca para uma rota alternativa para as Índias era
necessária, já que o trânsito pelo Mediterrâneo estava fechado para os cristãos
pelos árabes. O Norte também foi explorado, a exemplo do atual Canadá. Nessas
conquistas, os navegadores exploravam as terras, buscavam metais e pedras pre-
ciosas, investigavam para ver o que as terras possuíam e o que fosse de valor
para a coroa portuguesa (FERREIRA; DIAS, 2017). Contingentes de escravos já
eram gerados nas batalhas travadas na Península Ibérica, como afirma Schwartz
(1988, p. 23) “a guerra intermitente, porém contínua, entre muçulmanos e cris-
tãos na península ibérica criava prisioneiros e cativos para ambos os lados e, com

316
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

isso, era uma fonte constante de escravos”. 


Em uma dessas viagens lideradas pelo navegador, Antão Gonçalves, em
1441, foram sequestrados dois mouros (muçulmanos) na costa africana e levados
à Portugal. Meses depois, os navegadores portugueses voltaram para devolver os
sequestrados e receberam como resgate 10 escravizados negros e um pouco de
ouro, ou seja, era o início de um ótimo negócio para os europeus: a escravidão
negra a partir do tráfico negreiro (FERREIRA; DIAS, 2017).  Assim, se iniciava
o tráfico de escravizados negros a partir da expansão portuguesa, pela costa da
África, à procura de ouro, especiarias e riquezas. Ainda em 1441, o primeiro na-
vio negreiro chegou em Lisboa e, em mais 3 anos, já estava formada uma empre-
sa exclusiva para esse fim; a Companhia do Algarve. O tráfico negreiro começou
a abastecer a mão de obra das ilhas atlânticas, onde a cana de açúcar já começava
a ser plantada. 
Em 1448 já eram mais de mil negros escravizados somente em Portugal.
Em 1551, a população de Lisboa era composta de cerca de 100 mil habitantes;
10% formada por escravizados negros (SCHWARTZ, 1988). Estava consolida-
do o tráfico de escravizados negros no ocidente, uma verdadeira instituição que
durou 447 anos até 1888 com a abolição da escravidão no Brasil, último país do
ocidente a libertar seus escravizados.

ALGUMAS REFLEXÕES 

Discutir sobre Portugal e a Igreja Católica é fundamental para entender-


mos como se deu o processo da escravidão moderna no ocidente. É importante
ressaltar que a escravidão existe desde a antiguidade, quiçá da pré-história. No
entanto, ela era ocasionada por despojo de guerra, como acontecia na própria
Península Ibérica, nas guerras de reconquista, devido ao pagamento de dívi-
das ou conquista de territórios. A escravidão era figura marcante no Império
Romano, já a escravidão étnica passou a ser uma novidade na modernidade. 
Cumpre salientar, que o início do tráfico mercantil de escravos foi impul-
sionado pelo capitalismo que estava iniciando na humanidade que, com a revo-
lução industrial, motivou a Inglaterra a impor suas sanções e pressionar pelo tér-
mino da mesma escravidão, já que pessoas livres e trabalhadoras geravam mais
lucros para o escoamento da produção industrial que seguia à todo vapor.
A escravidão negra no ocidente foi uma instituição forte e violenta que
marcou a história ocidental. Após o pioneirismo português, com o passar das dé-
cadas e séculos, outras nações também seguiram este caminho, como por exem-
plo, Inglaterra, Dinamarca, Holanda e até mesmo as 13 colônias britânicas que
posteriormente viraram os Estados Unidos da América.

317
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(O rganizadores )

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318
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

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319
PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO MÉDICO,
RAÇA E DOENÇAS NO NORDESTE ESCRAVISTA
Bárbara Barbosa dos Santos 1

NOS ENGENHOS; NAS RUAS; NOS CONSULTÓRIOS E NAS


CIRURGIAS

As províncias da Bahia e Pernambuco que desde o período colonial figu-


ram com destaque a região que hoje denominamos de Nordeste, permaneceram
ao avançar do século XIX, tendo a produção açucareira como importante ativi-
dade econômica, pilar das sociedades escravistas, proprietárias de significativos
números de escravizados (VERSIANE; NOGUERÓL, 2016).
A pujança do açúcar forjou estruturas que repercutiram nas complexida-
des sociais, próprias desta localidade do império, que associada a efervescência
de ideias liberais e científicas (PARRON, 2015), fazem destas duas províncias
ambiências férteis para compreendermos as confluências entre raça, saúde e
escravidão.
Nos interessa sublinhar que a anatomia cativa foi incorporada como obje-
to e alvo do ensino e prática médica. As reflexões em torno das moléstias de es-
cravizados, frutos do intenso desgaste orgânico pelo trabalho forçado, passaram
a entrar na agenda de pesquisa dos agentes das ciências médicas.
Ao solucionar uma problemática dos senhores proprietários de gente, es-
tavam os clínicos, numa via de mão dupla, mobilizando aliados no processo de
institucionalização da profissão e legitimação de suas terapêuticas farmacológi-
cas e cirúrgicas. Tudo isto a título de “devolução da utilidade” dos escravizados
aos seus proprietários, que não perderiam, com a cura dos cativos enfermos, o
investimento que fez ao adquiri-los.
Nos oitocentos, operam intensas transformações nas dinâmicas da escravi-
zação no Brasil, gerada por fatores como a lei do ventre livre, o crescimento das
campanhas abolicionistas e os rescaldos das insurreições ocorridas nas quatro
primeiras décadas, que modularam as relações de poder entre senhores e cativos,
soma-se a isto as ressignificações da interferência do Estado na instituição da
escravidão.

1 Doutoranda no programa de história das ciências e saúde da Casa de Oswaldo Cruz (PP-
GHCS/COC/FIOCRUZ). Bolsista CAPES. [email protected].
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Rompendo com consensos anteriores, a historiografia dedicada a análises


mais profundas em torno da economia brasileira, numa perspectiva atlântica,
apresenta que não houve uma estagnação da economia açucareira no Nordeste,
durante o século XIX. Mas há uma coexistência da produção cafeeira e sacarina,
ambas alimentadas pelo tráfico africano e posteriormente com a proibição, pelo
tráfico interno.
Isto viabiliza entrever que neste século a mão de obra escravizada perpetua
a ocupar um lugar estratégico e fundamental, sobretudo porque ocorre uma reto-
mada do mercado sacarino internacional com “o declínio da indústria açucareira
em São Domingos e nas Antilhas Britânicas” (LUNA, KLEIN, 2010, p. 89). O
que se configura é uma alta demanda por escravizados, forças motrizes, tanto
para as novas lavouras de exportação, quanto para o mercado interno, para além
das plantations.
Nesse ínterim, a diminuição da participação de escravizados na população
das províncias da Bahia e Pernambuco2, somado ao apego cultural e dependên-
cia econômica da escravidão pela elite e camadas médias brasileiras, conjugam
as formas como o corpo negro, exposto a escravização, é examinado pelos pro-
prietários, pelo Estado e pela elite científica, médicos e juristas. Gomes, Pimenta
e Viana, argumentam que os
Saberes sobre o corpo do trabalhador escravizado permitiriam maior con-
trole da força de trabalho a ser explorada bem como determinar causas
e tratamentos de enfermidades que, em muitos dos casos, produziam um
número significativo de mortes, o que se tornara efetivamente preocupação
a partir do fim do tráfico transatlântico em 1850 (GOMES; PIMENTA;
VIANA, 2020, p. 16).

É importante salientar que a utilização da mão de obra cativa não se res-


tringe a lavoura, neste cenário de alta exigência por escravizados, também coad-
juvava os processos de formação e ocupação das capitais como troncos urbanos
(ALGRANTI, 1988; CHALHOUB, 1990; 1996; GOMES, 1995; REIS, 2019;
CARVALHO, 2003). Copiando a corte, Recife e Salvador refletia a busca pela
modernidade, ao passo que cultivava um velho costume do passado, a escravidão.
A vida na urbe sugeria outras necessidades, e para o suprimento destas,
os braços cativos também foram recrutados, neste outro modelo de cativeiro en-
contramos escravizados dedicados ao comércio e a prestação dos mais variados
serviços, de transporte a alimentação. A documentação oficial, as memórias de
viajantes, os anúncios de jornais e periódicos médicos, dão conta da presença
massiva de homens e mulheres, trabalhadores escravizados urbanos e como tais

2 Na Bahia a participação de cativos na população declinou de 13,3% em 1819, para 11,1%


em 1872, neste mesmo processo Pernambuco apresenta uma queda de 8,8% em 1819 para
5,9 em 1872, ver LUNA, KLEIN, 2010, p. 92).
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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

desenvolvendo moléstias próprias de suas atividades, compatíveis com o ambien-


te que estas cidades proporcionavam e virando alvo dos grupos preocupados com
o embelezamento e salubridade destes espaços.
Na chave das experiências de adoecimento e cura da população escravi-
zada, no Brasil, compreender onde estavam sendo mobilizadas suas forças de
trabalho, torna-se essencial, uma vez que a atividade e até o modelo de escravizar
interferiam diretamente na incidência de determinadas enfermidades, na assis-
tência prestada pelos senhores e na autonomia quando o assunto era a busca pela
cura (KARASCH, 2000; EUGENIO, 2009; FALCI, 2004, BARBOSA, 2014).
Os usos e abusos da mão de obra escravizada urbana, tanto em Salvador
como no Recife, não deixa negar que esses trabalhadores geravam comodidade
para os citadinos e lucro aos seus senhores, que viviam de alugar suas jornadas
no ganho, os explorando muitas vezes em dupla jornada. Não eram raros os
casos em que ganhadores perfaziam o sustento integral de seus proprietários,
a produtividade gerada pelos saberes e fazeres destes trabalhadores, na maio-
ria africanos, extrapolavam as linhas do ambiente doméstico dos seus donos
(CARVALHO, 2003).
O comércio local baiano e recifense, que também absorvia os africanos
libertos, era basicamente sustentado pelos cativos de ganho, assim como também
o comércio voltado para o exterior, eles participavam intensamente do escoa-
mento de mercadorias que chegava nos portos, no abastecimento interno de água
e/ou alimentos, no transporte de carga e pessoas, na entrega de recados, nas ruas,
nos saveiros, nos trapiches, nos armazéns de secos e molhados e até na indústria,
o que corrobora com a ideia de que no Nordeste, assim como no Sul, a diver-
sificação da produção econômica utilitária da mão de obra escrava promovera
desdobramentos para urbanização, industrialização e modernização de serviços
(SARAIVA; ALMICO; 2020).
O protagonismo paradoxo da classe dos ganhadores, os faziam essenciais
ao mesmo tempo em que suas figuras, seus corpos, suas feridas e gritos eram
indesejáveis para elite, o Estado por sua vez , que nessa modalidade de escravi-
dão urbana atuava como braço senhorial nas ruas, no controle de escravizados
que passavam a maior parte do tempo longe das vistas dos proprietários, nas
tentativas de expulsar os remanescentes africanos, beneficiava-se na obtenção de
receitas a cada arrocho fiscal sobre estes trabalhadores.
A ponto de estourar um importante movimento em 1857 dos ganhadores,
como narra João José Reis, que de maneira inédita e pacífica paralisaram suas
atividades e com elas o comércio soteropolitano. A greve atingiu em cheio a
classe senhorial e praticamente toda população livre de Salvador (REIS, 2019,
p. 17), quadro que nos permite perceber a capilaridade da mão de obra escravi-
zada nas ambiências urbanas da Bahia e Pernambuco, também dependente dos

322
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

aguadeiros e saveiristas, como aponta (CARVALHO, 2003).


No campo e na cidade essa gente trabalhava, pagava impostos, resistia,
mas também e adoecia. O preto africano Domingos nos mostra com o próprio
exemplo, carregador de cadeiras, contando 33 anos em 1867, talvez fruto do trá-
fico ilegal, foi recebido na enfermaria São Fernando3.
Na descrição do caso, publicado Gazeta Médica da Bahia, o médico dei-
xou escapar que ele chegou carregado numa rede, talvez por seus companhei-
ros, também africanos do ganho, não teve direito nem ao transporte de urgên-
cia na cadeirinha, seu instrumento de trabalho e popular meio de transporte da
Salvador daqueles dias.
Com febre alta e o pulso batendo 120 vezes por minuto, o africano tinha
língua árida e pele seca, como bem descreveu o médico Pires Caldas. A presença
deste caso, sobre um africano, em um periódico médico do alcance da Gazeta
Médica baiana corrobora com o que a historiografia vem apontando sobre a
evidente relação entre a escravidão e a produção do conhecimento médico, este
aspecto foi examinado em pesquisas referente as realidades rurais e urbanas do
Rio de Janeiro (LIMA, 2011; BARBOSA, 2014; PIMENTA, 2016; SAMPAIO,
2019).
Nos interessa dar relevo não apenas a utilização dos corpos negros em pe-
riódicos médicos no Nordeste dos anos oitocentos, mas salientar as possibilida-
des de em raias paralelas com a historiografia, percebermos como a raça, saúde
e escravidão se intercruzam na produção do conhecimento médico em Recife e
Salvador dos oitocentos.

AS DOENÇAS, RAÇA OU CONDIÇÕES DE VIDA

Os anais da medicina pernambucana ilustram as aspirações e detalhes do


debate em torno dos novos caminhos que a medicina deveria trilhar nesta região.
Na primeira edição percebemos como os discursos entrelaçam-se com a questões
ligadas a escravização e a raça.
Nos discursos dos médicos Paiva, Serpa e Teixeira, encontramos vestígios
de como o corpo negro era compreendido na medicina pernambucana, da déca-
da de 1840 do oitocentos. Percebemos claramente a reafirmação dos conceitos
racistas de uma origem africana para as doenças presentes no Brasil; africanos e
seus descendentes são vistos como vetores da transmissão das moléstias para os
indivíduos de outras etnias4.
Chama atenção a insistência com a qual a raça aparece como eixo
3 Gazeta médica da Bahia, 1867, ed. 0001, p. 288- 290 – Aneurisma no terço superior da
artéria femoral esquerda, rotura consecutiva do vaso, laqueação na ilíaca externa, gangrena
no tumor, morte autópsia e reflexões.
4 Annaes da medicina Pernambucana, 1842, ed. 00001, p. 33.
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(O rganizadores )

norteador das discussões pelos médicos da província ainda na década de 1840.


É importante dar relevo a este viés interpretativo, que permeia as explicações re-
produzidas por estes agentes sobre as doenças, isto é um dos vértices das relações
entre a medicina, raça e a escravidão.
Todavia, não podemos dizer que estas ideias eram seguidas por todos os
médicos pernambucanos, como resposta e contestação aos textos publicados no
jornal da sociedade pelos três médicos supracitados, o também médico, Pedro
Dornelas, publica sete perguntas e as responde, refutando todas as ideias anterio-
res sobre diferenças raciais e doenças. Um ponto de inflexão neste discurso, é a
posição do médico quanto a sugerida origem africana da bouba.
Da pergunta “Se esta moléstia é oriunda d’ África, e foi d’ali exportada para
a América”? Dornellas busca desconstruir os conceitos racistas que atrelavam a
bouba, a presença africana em Pernambuco. A princípio ele questiona a afirma-
tiva de que, os negros transportaram para o Brasil a doença em questão, sem que
fosse problematizada a possibilidade de esta doença já ter sido endêmica, antes
mesmo do tráfico negreiro. Para o médico, atribuir a bouba ao povo africano no
Brasil, tratava-se de um equívoco, mesmo com a omissão da preexistência desta
enfermidade na história e nos raríssimos tratados de moléstias da América.
Na costura do seu argumento, o médico dar relevo ao fato de que em
sua época, muitos dermatologistas dedicaram-se aos estudos sobre as doenças de
pele, mas não teve notícia de médicos que saíram da Europa à América, antes
da introdução dos africanos para estudar as doenças endêmicas, muito menos
que tais pesquisadores, tenham ido nas tribos indígenas observar as doenças que
reinam nestes povos.
Segue sinalizando o médico, a baixa incidência de bouba entre africanos,
que habitam em localidades mais urbanas, nas capitais e vilas em todo o império.
Para ele, mesmo quando estes indivíduos eram acometidos pela doença, não
ocorria por infecção direta, mas de maneira constitucional, por “herança” ao
nascer. Por outro lado, é apontada uma diferenciação dos quadros nosograficos
em comparação com os africanos que habitavam as zonas rurais.
Nestas localidades, segundo seu ponto de vista, os africanos eram atin-
gidos de modo mais acentuado pela bouba, mas não por estes terem trazidos
consigo tal doença, do seu continente de origem, mas por nestes espaços, estes in-
divíduos serem submetidos às condições de vida que favoreciam a disseminação
da moléstia, situação que segundo o autor, qualquer ser humano estaria passível
a contrair toda a sorte de enfermidades independente da raça.
O contrário porem se observa nas fazendas, ou em outros gêneros de esta-
belecimentos onde eles se achão reunidos, e destinados ao rigoroso traba-
lho campestre , mal nutridos, e entregues a todos os gêneros de infecções;
origem ,a meu ver, deste mal , assim como de outros, a que estão sujeitos

324
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

não somente os negros, como toda e qualquer raça, ou espécie humana,


quando exposta aos mesmos agente insalubres, como confirmam a expe-
riencia e o raciocínio: e se não encontra na raça branca grande número
de boubentos reunidos, é porque não vivem centenares deste para sempre
reunidos , e expostos às mesmas condições , como acontece a raça africana.
Foi sem dúvida essa multiplicidade d’ Africanos constantemente afetados
em qualquer território americano, que se ache, que deu lugar a persuasão
ainda hoje conservada, que esse mal é oriundo d’ África (ANNAES DA
MEDICINA PERNAMBUCANA, 1843, p. 35)5.

Sobre as evidências que para Dornellas eram comprobatórias de suas


ideias, sobre as incoerências entre a incidência de boubas e a presença de africa-
nos, a despeito das péssimas condições de vida e trabalho às quais eram subme-
tidos. Ele usa das experiências de viajantes e pessoas que residiram por longos
períodos em vários países africanos, que não atestam a existência de nativos na-
quele continente acometidos pelo mal boubático.
Além disso ressalta sua prática de clínico na cidade do Recife onde atua-
ra desde de 1833, e deixa entrever que assim como nas províncias do sudeste,
conforme é atestado pela historiografia, em Pernambuco, os senhores donos
de escravos conseguiam contratar médicos para o tratamento de enfermidades
em seus cativos, quando ele afirma não ter encontrado escravizados acometi-
dos pela doença bouba, mesmo nas casas com muitos escravos que atendeu.
Categoricamente assevera “As razões pois que acabo de expender me forção a di-
zer contra a opinião de eruditos escritores, e respeitáveis práticos, que a moléstias
bouba não é oriunda da Africa nem foi d’hai exportada” (PESSOA, 1843, p. 35).
Este posicionamento de Pedro Dornellas Pessoa (1843), para além de
curiosa, tangente em relação às ideias racistas do oitocentos, sedimentada na
culpabilização do povo africano escravizado pelo aparecimento de enfermida-
des, nos informam sobre as péssimas condições de vida e trabalho a que eram
submetidos os cativos em Pernambuco, fontes geradoras das morbidades. Em
seu discurso, o médico a todo momento diferencia estas condições de sobrevida
dos cativos que viviam nas áreas mais urbanizadas frente aos que habitavam nos
engenhos.
Sinalizando que a lavoura oferecia um ambiente mais propício à difusão
das enfermidades infecciosas, na qual os cativos seriam submetidos a trabalhos
extenuantes, a falta de higiene e péssimos regimes alimentares. No entanto nos
troncos urbanos a vida destes escravizados não era um mar de rosas, pelo contrá-
rio, experimentavam a precariedade constantemente no trabalho, na habitação,
na alimentação e na segurança (KARASCH, 2000; SANTOS, 2020).

5 As edições dos Annaes da Medicina Pernambucana (1842 a 1844) podem ser acessados
pelo site da hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, disponível no seguinte endereço:
http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=819166&pasta=ano%20184&pes-
q=&pagfis=35
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(O rganizadores )

A segunda questão que pode ser levantada do discurso do médico é a re-


lação intrínseca da prática da medicina e o corpo escravizado. Fica evidente,
nesta fala de PESSOA (1843) como as vivências patológicas dos cativos eram
mobilizadas pela prática da medicina e transformavam-se em produção científica
à medida que eram divulgadas no periódico médico.
Compreendemos estes jornais produzidos por estas agremiações médicas
do século XIX, como instituições científicas constituídas (FERREIRA, 1996).
Esta percepção é uma valiosa contribuição da história das ciências a este debate,
que oferece ferramentas para enxergarmos a importância que os tão disponíveis
corpos, atravessados pelos cativeiros, tiveram para a trajetória das ciências mé-
dicas no Brasil. Os inúmeros experimentos cirúrgicos e farmacológicos presen-
tes, tanto nos Annaes da Medicina Pernambucana, quanto na Gazeta Médica da
Bahia, são exemplos acabados disto e merecem serem aprofundados pela nossa
historiografia.
Na terceira edição publicada em 1843, encontramos o discurso do se-
cretário da Sociedade de Medicina de Pernambuco, o médico José Joaquim de
Moraes Sarmento6. Em tom de balanço, expõe um relatório que fez das pautas
discutidas pela agremiação, segundo ele esse exercício visava, entre outras coisas,
prestar notoriedade às “lucubrações científicas” e reafirmar o papel dos médicos
na sociedade e poder público oitocentista pernambucano.
O que se configura em especial neste relatório sobre os temas tratados, é
que a saúde da população escravizada aparece realmente na órbita da medici-
na oitocentista pernambucana, mesmo antes do fim do tráfico. Quadro que nos
deixa entrever a centralidade das condições de saúde do corpo cativos para a
exploração, a mão de escrava perfazia elemento imprescindível para a dinâmica
econômica, apoiada na produção açucareira e outras atividades produtivas do
mercado interno. Podemos interpretar o exposto, entendendo que as preocupa-
ções com a saúde dos escravizados acabava funcionando como elemento para
legitimar o discurso médico, que visava influenciar vários âmbitos da sociedade,
vista a pulverização da mão de cativa.
Por exemplo, se ocuparam os clínicos pernambucanos com enfermidades
do perfil nosográfico dos escravizados sensíveis ao tráfico negreiro, isto é, as
doenças que afligiam os escravizados durante a travessia ao Brasil e permanência
no país. Os Anais da medicina de Pernambuco apresentam as “ophthalmias”
como uma doença recorrente entre os cativos e que no ano de 1843, apresentava-
-se com sintomas mais intensos dos que eram identificados na conjuntivite, e nes-
te quadro de gravidade, muitos foram os indivíduos na condição de escravos que
tiveram sua a visão comprometida, com perda total ou padecendo aos sintomas
da doença por longos períodos.
6 Annaes da medicina Pernambucana, 1843, ed. 00003, p. 9.
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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Sobre estes males, os médicos citam a utilização para o combate à mo-


léstia, que inutilizavam tantos cativos, as sangrias locais, os colírios líquidos e
refrigerantes brandamente adstringentes. Mas o emprego destas terapêuticas se
fazia inoperante, situação que transparece no desabafo: “Não obstante o mal se tem
mostrado em a maioria dos casos tão intenso e cruel que zomba de tudo e nada o debela, e
o indivíduo perde a vista para sempre” (MAVIGNIER, 1843, 174).

OLHARES SOBRE RAÇA E MEDICINA NO OITOCENTOS

A presença de escravizados e libertos em periódicos médicos, e as pro-


blemáticas que são sugeridas a partir de tal constatação, embora ainda tenham
tímida inserção na historiografia da saúde e escravidão brasileira. Incorre em
interessantes questionamentos, tais como a utilização dos corpos negros em ex-
perimentos cirúrgicos e farmacológicos; as relações entre medicina e interesses
senhoriais; e o próprio conhecimento médico produzido sobre e para as popula-
ções cativas.
Ocorre que a reflexão e esforço interpretativo da categoria raça nos estudos
de casos ou debates publicados nesses periódicos, tais como o que demonstramos
anteriormente envolvendo o médicos Dornelas, tornam-se também um dos im-
portantes flancos para uma análise mais ampla, do que se configurou as margens
borradas entre as ciências médicas oitocentistas e o sistema escravista brasileiro.
Dois posicionamentos que antes de antagônicos, se fazem complementa-
res são bastante visitados em nossa historiografia sobre o assunto, e pavimentam
nosso exame sobre as maneiras heterógenas com as quais a raça poder vista em
função do binômio medicina e escravidão nas realidades brasileiras. Um se dá
pelos argumentos do historiador Marcos Chor Maio, e outro do também histo-
riador Sidney Chalhoub.
O século XIX marca além da institucionalização da medicina, efervescen-
tes transformações no bojo do sistema escravista, ao passo que se projetava um
novo ordenamento econômico, com a inserção do Brasil no jogo capitalista do
mundo Atlântico. Ao pensar tal contexto, Hebe Mattos (2009) observa que em
várias sociedades escravistas, indiferente aos sistemas políticos adotados, a prá-
tica de escravizar gente se fez perpetuar com instituições e princípios modernos.
Estes funcionaram com efeito a legitimar a escravização, gerando o pa-
radoxo da modernidade escravista. Em nosso país, conforme salienta Mattos
(2009), as discussões sobre identidade nacional trouxeram necessariamente a re-
boque a raça para a ordem do dia, já que existia significativa presença de “gente
de cor” requerendo cidadania, talvez nossa particularidade em relação a outras
sociedades escravistas como os EUA, por exemplo.
Se a raça era uma questão urgente entre os intelectuais, na esfera da

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(O rganizadores )

medicina, como ela reverberou? Figura para o debate a interpretação de Marcos


Chor Maio (2010) no trato das imbricações entre raça e medicina no século XIX.
O contraponto proposto pelo autor, relativiza uma orientação marcadamente ra-
cista e classista dos médicos no oitocentos.
Embora no “polifônico campo médico da segunda metade do século XIX”
existisse espaço para determinismos raciais e críticas a miscigenação, para Chor
Maio (2010), é necessário repensar uma preponderância das ideologias raciais
tanto na produção do conhecimento médico quanto na prática da saúde pública.
No lugar delas, segundo o autor, haveria mais um alinhamento com o ideário
neohipocrático (eixo norteador da medicina da época) que apontava para o dis-
tanciamento de “explicativas de natureza racial” para as moléstias.
Porém, o determinismo climático-racial de Dundas não encontrou contra-
partida entre seus colegas brasileiros, que mantiveram a crença no paradig-
ma médico-ambientalista até o fim do século XIX, como veremos adiante.
Continuaram a creditar a ‘imunidade relativa’ dos negros à febre amarela
ao meio ambiente, à aclimatação. Eles estavam mais atentos às péssimas
condições sanitárias nos principais centros urbanos (MAIO, 2010, p. 59).

Trazendo à baila as ideias que creditavam a aclimatização a causa das


doenças, o que se põe em tela, é que destoando do pessimismo ao qual o Brasil
estaria condenado, segundo o determinismo racial, os médicos “ofereceram,
assim, soluções originais para a compreensão das epidemias que devastavam os
trópicos”, com destaque para os médicos que compuseram a escola tropicalista
na Bahia, que estariam empenhados em mobilizar a medicina nas realidades
próprias daquela província, incluindo assim as moléstias entre cativos.
Em contrapartida, Sidney Chalhoub (1996) segue outro viés interpreta-
tivo, de como a raça foi incorporada pela saúde pública e pensamento médico,
sobretudo, a partir da década 1870. E argumenta tal quadro na análise sobre a
febre amarela, doença cujo protagonismo se configurou em dois momentos dis-
tintos do oitocentos 1850 e 1870, quando se ver sobre tal enfermidade o sinônimo
de impasse político e econômico, fazendo emergir a “contínua interdependência
entre pensamento médico e ideologias políticas e raciais”.
Sendo africanos e seus descendentes “imunes” a tal moléstia, e brancos
as principais vítimas, a febre seria empecilho para o projeto de branqueamento
e atenuação da presença do elemento negro na demografia brasileira, que teria
a imigração europeia grande trunfo. No ponto de vista de Chalhoub (1996) o
encontro da raça como objeto imperativo na discursões, intensificadas pela emer-
gência da febre amarela, no seio político, estaria atrelado ao momento particular
da instituição da escravidão.
No qual, conforme se avizinhava a abolição e necessidade de substituição
da mão de obra, atuaram deliberadamente médicos e aparelhos da saúde pública

328
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

no ideal de embranquecimento. Essas ações, embora não explícitas, estabelece-


riam na prática um maior empenho do poder provincial em debelar a febre e uma
certa negligência no trato da tuberculose, enfermidade que teria como principais
vítimas a população negra por exemplo.
Ponto este questionado por Chor Maio (2010) que sublinha primeiro que a
tuberculose incidia sobre toda a população, longe de ser uma doença de negros,
estaria mais associada a péssimas condições de vida e salubridade, e que a saúde
pública não era um braço uno do poder provincial a contar os baixos investimen-
tos na pasta, citando José Murilo de Carvalho.
Chalhoub (1996) traz para o debate os cenários da década de 1870, a es-
cravidão, o tráfico, a abolição e a emergência da raça enquanto problemática na
conjuntura da substituição dos braços negros escravizados por mão de obra eu-
ropeia imigrante. Observa-se que “a resposta relativamente limitada do governo
imperial à febre amarela noS anos 1850” não estaria associada a um incipiente
conhecimento da moléstia ou formas de combatê-la.
Mas se deve ao fato de que era recente o término definitivo do tráfico, as
fazendas cafeeiras estavam abastecidas de mão de obra negra escravizadas que
desenvolviam a forma benigna da doença. No surto subsequente, quando há a
necessidade e incentivos a imigração, se percebe que os imigrantes brancos são as
principais vítimas, ai então a febre amarela passa ser enxergada como problema
de saúde pública, incitando conforme sublinha Sidney, em intervenções mais
efetivas sobre cortiços e discursos de agentes da saúde, como Perreira Rego, asso-
ciando a febre amarela à escravidão.
Se naquele capítulo sobre a febre amarela na obra Cidade febril, Chalhoub
(1996) alertava os pesquisadores imbuídos das problemáticas em torno da ideolo-
gia racial no Brasil, de que “a aparente ausência de uma terminologia racial ela-
borada não significa a ausência de significações raciais”. No posfácio que escre-
veu a convite da Chão editora, de um dos principais documentos sobre a Febre
Amarela no século XIX, história e descrição da febre amarela epidêmica, produzido
por um grande personagem dos eventos epidêmicos da corte, neste século, José
Pereira Rego, o Barão do Lavradio.
Ao leitor é descortinado como a categoria raça estava presente nos debates
médicos mais do que se poderia pensar. É bem verdade que Chor Maio (2010) já
criticava tal alerta, asseverando que a raça habitava mentes e corações pensantes,
inclusive no que concerne à imigração chinesa. Mas permanecendo em seu po-
sicionamento Chalhoub mostra a partir dos Annaes Brasilienses de Medicina e do
periódico O Filantropo que contava com redatores médicos da corte, como a febre
amarela foi racializada na “insistência em torno de especulações sobre a existên-
cia de características fisiológicas que apoiassem a noção de que havia diferenças
inatas entre negros e brancos” assim como ocorre em outras praças escravistas

329
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(O rganizadores )

como nos EUA.


Ao se debruçar novamente sobre a temática da febre amarela no Brasil
oitocentista, o autor não abandona suas impressões de que com a acirramento
das tensões que envolviam a escravidão e imigração europeia fez da doença um
impasse político e ideológico.
Em nossa percepção, Chalhoub (2020) concentra-se em mostrar como de
fato, os discursos sobre raça se fizeram mais presentes a partir da década de 1860
e isto fica muito evidente pela trajetória de posicionamento de Perreira Rego, que
a princípio embora reconhecesse os navios negreiros como potenciais veículos da
doença, não atribuía diretamente a moléstia reinante ao elemento negro, e depois
em textos aos anais brasilienses de medicina na década de 1880 parece adotar de
maneira mais clara a interpretação racializada da enfermidade.
Esse texto do barão do Lavradio parece articular as linhas gerais daqui-
lo que seria posteriormente conhecido como teoria do embranquecimen-
to, prevendo -se o desaparecimento paulatino dos negros na população
brasileira por meio do cruzamento com os brancos numa situação de-
mográfica modificada, proporcionada pela imigração europeia massiva
(CHALHOUB, 2020, p. 306).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O diálogo com os argumentos esquadrinhados por estes autores, aponta


que embora seja a raça uma categoria de análise humana superada pela biologia,
no âmbito das ciências sociais parece estar cada vez mais viva e requerida para se
diagnosticar fenômenos em nossa sociedade.
Pelo menos no que se refere às imbricações entre raça, doenças e medici-
na, assistimos ainda em nossos dias maior vulnerabilidade das populações ne-
gras a determinadas doenças, a pandemia de 2020 evidenciou como as péssimas
condições de trabalho, habitação e alimentação vivenciadas por esta parcela po-
pulacional os tornaram principais vítimas do vírus, essa triste realidade deita
raízes em nosso passado escravista (KODAMA, PIMENTA, 2020).
Este debate historiográfico também nos oferece valiosas balizas para com-
preendermos diferentes realidades e inflexões que envolve medicina, escravidão
e raça nos oitocentos, distantes da corte. Nosso percurso curso até aqui foi para
expor que a despeito de considerações anteriores de nossa historiografia, houve
uma significativa produção do conhecimento médico e uma afinidade de interes-
ses entre clínicos e proprietários em função do corpo negro cativo. Neste roteiro
as discussões sobre raça gravitaram não de maneira heterogênea, como pudemos
observar o médico Dornela apresenta em 1843 argumentos contrários a raciali-
zação da bouba e a sua origem africana.
Concordamos que não se deve absorver integralmente o conceito de

330
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

medicalização nos oitocentos, ou um articulado aparelhamento do Estado a fim


do controle biológico, como propõe Maio (2010). Da mesma forma que fazemos
coro com as percepções de (CHALHOUB, 2020; KODAMA, 2008), a partir dos
periódicos médicos nas províncias da Bahia e Pernambuco, na perspectiva de que
a raça orientou as interpretações sobre o corpo negro e suas enfermidades, exem-
plos acabados disto, estampam vários estudos de casos por nós examinados, nos
quais a raça foi aventada como eixo analítico, sugerindo significados raciais e
sociais para determinadas doenças, num período em que o corpo negro cativo
tornava-se arena de múltiplos interesses e conflitos.

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333
BIO-PERSPECTIVAS (1938):
EDUCAÇÃO EUGÊNICA DURANTE O
DECLÍNIO DA EUGENIA NO BRASIL
Manuel Alves de Sousa Junior1
Angelo Tenfen Nicoladeli2

INTRODUÇÃO

A eugenia surgiu no final do século XIX na Inglaterra e, aos poucos, foi


ganhando a intelectualidade de diversas nações do mundo, principalmente, no
ocidente. No Brasil, a ciência de Galton, como também ficou conhecida, ga-
nhou destaque nas primeiras décadas do século XX, com auge nos anos 1920 e
início dos anos 1930, chegando a figurar, inclusive, na Constituição Brasileira de
1934. Diversos médicos e outros intelectuais brasileiros foram defensores da eu-
genia, tendo como destaques o farmacêutico e médico, Renato Kehl e o escritor
Monteiro Lobato, dentre outros. No final dos anos 1930 as premissas eugênicas
já estavam em declínio no Brasil, sendo sacramentada com a revelação dos hor-
rores causados pela Alemanha nazista da Segunda Guerra Mundial.
Nesse sentido, o objetivo deste artigo é abordar como a eugenia, por meio
de processos educativos, ainda se mantinha presente no livro Bio-Perspectivas, de
Renato Kehl, lançado em 1938, momento em que, a então ciência eugênica, já
estava em declínio no país. Para isso, dividimos o artigo em três seções: na pri-
meira faremos uma breve análise sobre a eugenia no mundo e no Brasil; na se-
guinte, abordaremos a educação eugênica como meio de disseminação dos ideais
eugênicos no país e, por último, faremos a análise do livro supracitado, buscando
trechos que colaborem com a discussão.

1 Biólogo, Historiador, Doutorando em Educação pela UNISC, Professor do IFBA campus


Lauro de Freitas, Bolsista CAPES/PROSUC modalidade 2. Membro do Grupo de Pesqui-
sa Identidade e Diferença na Educação, do Observatório de Biopolítica e do NEABI/IFCE
Umirim. E-mail: [email protected]
2 Licenciado em Ciências Biológicas pela UFSC, Mestrando em Educação Científica e Tec-
nológica (PPGECT/UFSC), Bolsista CAPES/PROEX, Professor Substituto de Ciências
na EEB Dom Jaime de Barros Câmara em Florianópolis. Membro do Grupo de Pesquisa
Discursos da Ciência e da Tecnologia na Educação (DICITE). E-mail: angelonicoladeli@
hotmail.com
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

EUGENIA NO MUNDO E NO BRASIL

A eugenia, segundo a historiadora Nancy Stepan (2005), foi um movimen-


to científico e social que se baseava em uma suposta nova compreensão das leis
da hereditariedade humana e que propunha o aprimoramento constante da com-
posição hereditária das raças nacionais, seja incentivando os indivíduos “aptos”
a se reproduzirem, ou impedindo os “inaptos”.
Dessa forma, construir o homem perfeito através do melhoramento racial
foi um objetivo de mais de 30 nações que queriam se firmar na sociedade mun-
dial (ADAMS, 1990). Com esse propósito, milhões de pessoas foram mortas em
todo o mundo ao longo da história, além de segregadas, mutiladas, esterilizadas
e impedidas de formar famílias (DIWAN, 2007). Para Sousa Junior (2022, p.
2), “o caso alemão foi, sem dúvida, um dos mais conhecidos. O nazismo e seus
produtos serviram de inspiração para diversos governantes pelo mundo”, mesmo
após a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, é importante enfatizar que o caso
alemão não representa a diversidade de programas eugênicos que circularam pe-
los cinco continentes.
O historiador Mark Adams (1990, p. 217-219), ao investigar os movi-
mentos eugênicos pelo mundo, estabeleceu quatro grandes mitos sobre a com-
preensão da eugenia: (1) o primeiro, de que a eugenia foi um movimento único,
coerente e, principalmente, anglo-estadunidense, com um conjunto específico de
objetivos e crenças comuns; (2) o segundo mito é que a eugenia estava intrinseca-
mente ligada à genética mendeliana, algo que também se caracteriza como falso,
uma vez que na tradição latina, o movimento eugênico teve uma forte influência
do neolamarckismo; (3) o terceiro, por sua vez, é acreditar que a eugenia era uma
pseudociência, o que não faz sentido histórico, já que grande parte dos eugenis-
tas eram reconhecidos cientistas em suas áreas de atuação, de modo que o mo-
vimento eugênico também se reproduzia por meio de práticas científicas como
a publicação em periódicos, organização de eventos e sociedades científicas; (4)
já o quarto e último mito se refere ao seu aspecto político, pois, frequentemente,
a eugenia é vista como essencialmente “reacionária”. No entanto, vale destacar
que a eugenia se aliou tanto a projetos reacionários e conservadores, quanto a
projetos comunistas, anarquistas e liberais, além de movimentos feministas.
A eugenia, como um movimento socio-científico, teve início no final do sé-
culo XIX com Francis Galton e, posteriormente, circulou nos cinco continentes,
ganhando contornos característicos em cada país onde se desenvolveu. Como
afirma Vanderlei de Souza (2008, p. 163), a eugenia se caracteriza exatamen-
te “[...] devido a essa capacidade camaleônica de servir aos diferentes projetos
ideológicos”. A eugenia se utilizou do debate científico no campo da biologia
para tentar legitimar uma suposta inferioridade de alguns grupos em detrimento

335
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

de outros, e, desse modo, flertou com diversas outras ciências para ajudar nessa
legitimação.
O melhoramento humano era uma das medidas eugênicas, atuando “sobre-
tudo nas ações de cunho repressivo, às populações pobres, aos enfermos, negros
e mulatos, indivíduos com deficiências físicas, doentes mentais, imigrantes de na-
cionalidades consideradas inferiores, viciados e infratores” (BONFIM, 2017, p.
89). Genética, anatomia, fisiologia, psicologia, antropometria, história, geologia,
arqueologia, etnologia, geografia, antropologia, direito, estatística, política, eco-
nomia, biografia, educação, economia, sociologia, religião, genealogia, psiquia-
tria, cirurgia e testes mentais, foram algumas das outras áreas, além da biologia,
que a eugenia buscou referências, como evidencia uma imagem do 2° Congresso
Internacional de Eugenia em New York, que ocorreu em setembro de 1921 simul-
taneamente com a Segunda Exposição Internacional de Eugenia (Figura 01):

FIGURA 01: Símbolo do 2° Congresso Internacional de Eugenia em 1921

FONTE: University of Missouri, 2011.

Dessa forma, a eugenia, através da elite intelectual adepta, marcou di-


versas ações, instituições e eventos no Brasil e no mundo, como conferências
públicas, pesquisas, literatura, periódicos e livros, congressos e eventos diversos,

336
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

ligas e sociedades e concursos eugênicos, por exemplo. Em diversos locais do


mundo, inclusive no Brasil, a eugenia foi consolidada de tal modo que chegou a
figurar como política pública e legislação em áreas como saúde, educação, políti-
ca migratória, higiene social e sanitarismo (BONFIM, 2017). Neolamarckismo,
Mendelismo e Darwinismo foram algumas teorias com embasamento científico
utilizadas pelos eugenistas brasileiros.
No Brasil, a eugenia não gerou um consenso, eram diversas vertentes, o
que ajudou a tornar a experiência ímpar no país. Não existiu uma prevalência na
escolha do referencial teórico, na definição de propostas ou métodos mais ade-
quados para se atingir o melhoramento humano no país (STEPAN, 2005). Essa
divisão entre a comunidade eugênica do Brasil ficou bastante evidente durante a
realização do 1° Congresso Brasileiro de Eugenia, que ocorreu no Rio de Janeiro
no ano de 1929.
De forma geral, dois grupos de eugenistas se sobressaíram no congresso,
de um lado os que concordaram com as ideias racialistas defendidas por Renato
Kehl; de outro, nomes como Roquette-Pinto, Fróes da Fonseca e Belisário Penna,
que contestavam tal defesa. Para esse segundo grupo, de críticos de Kehl, era ne-
cessário desconstruir essa imagem preconceituosa que sentenciava o povo brasi-
leiro a uma suposta inferioridade. Na visão desses eugenistas, o povo brasileiro
precisava ser educado e não substituído (SOUZA, 2019). Para Monteiro Lobato,
Renato Kehl e outros tantos eugenistas da elite intelectual do Brasil nas primeiras
décadas do século XX, a morte ou a não reprodução dos não brancos, atuava
como uma lógica do Racismo de Estado para Foucault (2005), onde a morte (ou
desaparecimento) de uns era em prol de uma melhor vida de outros. A morte da
raça ruim, da raça impura, dos degenerados, era em nome da vida da raça pura,
para uma melhor vida do corpo social como um todo. Assim, diversos artifícios
foram utilizados para alcançar tais objetivos, como massacres, genocídios, exter-
mínios, esterilizações etc.
Depois de 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, a eugenia e ex-
perimentos nazistas vieram a conhecimento público mundial, e então, a palavra
“eugenia” e seus conhecimentos foram completamente condenados, de forma
que a palavra foi expurgada da ciência e do debate público (DIWAN, 2007). No
decorrer dos anos 1960, os ideais foram sendo dissipados gradualmente até que
nos anos 1980 as discussões retomaram com o desenvolvimento das técnicas
de reprodução assistida e Projeto Genoma Humano, sendo então chamada de
neoeugenismo (STEPAN, 2005).

EDUCAÇÃO EUGÊNICA

Uma das formas que a eugenia utilizava para propagar os seus ideais era

337
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

através da educação. Os processos de educabilidade atuavam em várias frentes,


como propagandas publicitárias, reportagens em periódicos, revistas, jornais, li-
vros e diversos outros meios utilizados pela intelectualidade brasileira.
Na constituição federal brasileira de 1934, no artigo número 138, uma das
incumbências da união, estados e municípios seria estimular a educação eugêni-
ca (BRASIL, 1934). Jerry Dávila, historiador que estudou a história da educação
no Brasil e suas relações raciais, aponta que “[...] o projeto da escola pública uni-
versal no Brasil é inseparável da história da eugenia” (DÁVILA; CARVALHO;
CORRÊA, 2016, p. 230). Para Dávila (2006, p. 12), pelo menos duas gerações
de médicos, cientistas sociais e educadores defendiam que o projeto da escola
pública universal poderia embranquecer a nação “liberando o Brasil do que eles
imaginavam como a degeneração de sua população”. Por um lado, as reformas
educacionais da época abriram espaço para parcelas da população que foram
historicamente esquecidas; por outro, alunos pobres, principalmente negros e
mestiços, eram tratados de forma diferente, compreendidos como problemáticos,
doentes e mal adaptados (DÁVILA, 2006).
As escolas passaram a se comportar como clínicas que curariam os ma-
les nacionais. “Em um extremo, a negritude significava o passado [...] A bran-
cura encarna as virtudes desejadas de saúde, cultura, ciência e modernidade”
(DÁVILA, 2006, p. 25). Especialmente após a Revolução de 1930, as escolas
públicas levaram uma visão eugênica, nacionalista e branqueadora às comunida-
des mais pobres e racialmente mistas (DÁVILA, 2006, p. 33). Como evidencia
Dávila:
na década de 1939 o treinamento formal de professores em todo o Brasil
incluía, proporções variáveis, disciplinas colaboradoras da eugenia, como
a sociologia, a psicologia, a higiene, a educação física e a puericultura
- ciência do tratamento pré e pós-natal tanto da criança quanto da mãe
(DÁVILA, 2006, p. 55).

O embranquecimento da população através da diluição das pessoas racia-


lizadas com pessoas mais brancas, era a meta de muitos intelectuais naquela épo-
ca e a educação eugênica atuou nesse sentido. O interesse dos educadores estava
centrado em aperfeiçoar a raça, de modo a “criar uma ‘raça brasileira’ saudável,
culturalmente europeia, em boa forma física e nacionalista” (DÁVILA, 2006,
p. 21). Ainda para esse autor, grande parte da intelectualidade acreditava que
os pobres e não brancos eram degenerados, em sua grande maioria, porém, essa
degeneração “poderia ser revertida por meio de aperfeiçoamentos científicos na
saúde e na educação”.
O papel da educação era central no projeto de nação eugênica defendido
no Brasil (ROCHA, 2011). Através dela, os indivíduos eram ensinados quanto
aos seus papéis na sociedade e à sua contribuição com o coletivo. Além disso, a

338
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

educação formava e construía uma concepção de normalidade e de corpo a ser


alcançado. Papéis de gêneros eram bem separados e definidos. Existia o lugar do
homem e o lugar da mulher. A família era uma instituição que carregava uma
alta importância na constituição da nação perfeita, eugenizada e higienizada.
Nancy Stepan (1990, p. 119), por sua vez, ao se referir à eugenia brasileira, cita
um texto do eugenista britânico, Trounson, de 1931, no qual ele escreve que
atritos na família, educação sexual e exames e certificados pré-matrimo-
niais parecem ser os assuntos de maior interesse para os eugenistas brasilei-
ros, enquanto a genética e a seleção natural e social são bastante negligen-
ciadas; a perspectiva é mais sociológica do que biológica (STEPAN, 1990
apud TROUNSON, 1931, p. 236, tradução livre).

Essa análise deixa ainda mais nítida a importância da educação para os


eugenistas brasileiros, principalmente a educação sexual. A eugenia compreen-
dia a reprodução humana não como uma atividade individual e como resultado
da sexualidade humana, mas como uma responsabilidade coletiva e produtora
de boa ou má hereditariedade (STEPAN, 2005).
Em outras palavras, a educação sexual eugênica deveria impedir que a
má hereditariedade se estabelecesse por meio da prescrição e normatização de
comportamentos sexuais ‘saudáveis’. Ora promovendo a regeneração da raça,
ora evitando a degeneração da espécie: era nessa chave que trabalhavam os euge-
nistas em suas propostas de educação sexual. Por exemplo, no volume número
24 (1930), do Boletim de Eugenia, a educação sexual foi praticamente a única
temática tratada na edição (STEPAN, 1990; NICOLADELI, BRASIL, 2021).
Esse fenômeno fica mais nítido quando o analisamos a partir das lentes
foucaultianas. A sexualidade, para esse autor, está exatamente na encruzilhada
entre o homem-corpo e o homem-espécie, ou seja, depende tanto da disciplina
quanto da regulamentação (FOUCAULT, 2005, p. 300). O homem-corpo é o
indivíduo que expressa sua sexualidade ao longo de uma vida. O homem-espécie
são as sucessivas gerações produzidas por meio de práticas sexuais. Ora, tanto
para a eugenia quanto para a educação sexual, ambos são fonte de reflexão e
prescrição.
No fundo, a sexualidade acabou se tornando muito importante no século
XIX e, fundamentalmente, no século XX, pois, de um lado emerge como com-
portamento corporal que deve sofrer controle disciplinar em um âmbito indivi-
dual, na forma de vigilância permanente; de outro, a sexualidade demonstra sua
importância por seus efeitos procriadores que dizem respeito não somente ao
indivíduo, mas à população (FOUCAULT, 2005, p. 300). Foucault ainda chama
atenção para o fato de que educação sexual específica da criança fundamenta um
dos pilares do que ele chama de tecnologia do sexo (FOUCAULT, 1999, p. 109).
A medicina, com a fisiológica sexual das mulheres como principal objetivo,

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

e a demografia, com o planejamento dos nascimentos, formam os outros dois pi-


lares. Nas palavras de Foucault “[...] a medicina das perversões e os programas
de eugenia foram, na tecnologia do sexo, as duas grandes inovações da segunda
metade do século XIX” (FOUCAULT, 1999, p. 111). A partir desses diálogos,
podemos refletir sobre as formas que a eugenia se valia da educação para con-
quistar seus princípios e novos adeptos. A seguir, trazemos a análise do livro Bio-
Perspectivas de Renato Kehl publicado em 1938.

ANÁLISE DE BIO-PERSPECTIVA DE RENATO KEHL (1938)


O farmacêutico e médico Renato Kehl (1889-1974) foi o principal defen-
sor e difusor da eugenia no Brasil. Ele escreveu dezenas de livros sobre assuntos
diversos como envelhecimento, psicologia, filosofia, casamento e escolha de par-
ceiros, doenças e também sobre eugenia e, subliminar ou explicitamente, sobre
educação eugênica (SOUZA, 2019).
Mesmo em livros com outras temáticas, a eugenia acabava sendo citada
com entusiasmo. Kehl foi um dos fundadores da Sociedade Eugênica de São
Paulo (SESP), em 1918, junto com Arnaldo Vieira de Carvalho, sociedade pio-
neira na América Latina. Foi também fundador do “Boletim de Eugenia”, pe-
riódico que circulou de 1929 a 1933, sendo a primeira publicação brasileira espe-
cializada na propaganda eugênica. Foi também presidente da Comissão Central
Brasileira de Eugenia e figurou com algum destaque no Congresso Brasileiro de
Eugenia em 1929 (BONFIM, 2017).
O livro Bio-Perspectivas foi publicado por Renato em 1938 por encomenda
da Livraria Francisco Alves, parceira do autor por muitos anos. O livro surge
como um dicionário filosófico, prefaciado por Monteiro Lobato, outro entusiasta
da eugenia no cenário nacional que já traz nuances eugênicas no seu texto intro-
dutório do livro ao afirmar que as máquinas estão
substituindo progressivamente os “homens-braço”, os “homens-mão”,
deixam cada vez maior número de ”sem-trabalhos”. Salvar-se-ão, natural-
mente, alguns elementos de maior valia; os demais sucumbirão. Como se
sabe, durante os últimos anos as escórias humanas se têm acumulado em
consequência do desrespeito ás leis naturais. Não tem havido desbastamen-
to suficiente ou eliminação seletiva em regra. Os incapazes, os doentes e os
anormais de várias ordens acumulam-se de modo assombroso, nas prisões,
nas penitenciárias, nos manicômios, nos bairros da miséria (KEHL, 1938,
p. 16).3

A máxima da biopolítica foucaultiana traz o “Fazer Viver e Deixar

3 Ficam evidentes nas citações diretas erros ortográficos, acentuações inexistentes no acordo
ortográfico dos países de língua portuguesa atual e outras formas de grafia presentes na
obra original, hoje considerada uma fonte histórica primária.
340
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Morrer”. Fazer viver os bons, os aptos, os saudáveis, os de raça pura, os ilibados,


e fazer morrer os degenerados, os pobres, os disgênicos, dentre outros. Em 1976,
portanto 2 anos depois da morte de Renato Kehl, no curso Em Defesa da Sociedade
no Còllege de France, Foucault disse que, a “morte do outro não é simplesmente a
minha vida, na medida em que seria minha segurança pessoal; a morte do outro,
a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, ou do anormal), é o
que vai deixar a vida em geral mais sadia; mais sadia e mais pura” (FOUCAULT,
2005, p. 305). Na verdade, tudo o que Kehl gostaria de ler. Certamente, caso es-
tivesse vivo, o eugenista seria um entusiasta da biopolítica.
Além disso, Lobato ainda cita diretamente a eugenia no prefácio do livro,
ao evidenciar a relação desta ciência com Kehl e sua parceria com ele: “fanático
que já era êle da Eugenia - ou da aplicação da ciência para melhorar o mau ani-
mal humano - procurou-me com proposta para editar em volume tais artigos e
prefaciá-los” (KEHL, 1938, p. 17). Ao longo do livro, Kehl cita, algumas vezes,
uma diferença entre os homens, chamando alguns de vulgares em detrimento ao
“homem superior”, como no verbete Adaptação.
Já no verbete Aristocracia são relatados os três tipos possíveis de aristocra-
cia: a nobreza, a competência e a sabedoria, sendo todas como “dons de pedigree,
isto é, só se adquirem e se transmite por hereditariedade.” (p. 32, grifo do autor).
Em Educação, o dicionário faz uma analogia do homem superior em “ninguém
pode esperar grande luz de uma simples lamparina, mesmo quando transborde
de azeite” (p. 60), demonstrando que não existiria salvação civilizada para de-
terminadas pessoas. Em Moralidade e Necessidade, o autor fala novamente sobre o
afastamento de alguns do convívio social para o melhoramento da sociedade, ao
afirmar “como se verifica entre os elefantes do Ceilão e da India, o afastamento
dos maus, dos intratáveis, dos inadaptáveis às “leis do grupo”, é condição precí-
pua a todas as coletividades” (KEHL, 1938, p. 134).
No verbete Amor, ao relatar sobre as afinidades eletivas, chama a eugenia
de “ciência nova da regeneração humana” como uma tentativa de resgate da
eugenia, aliás, que Kehl continuou tentando ao longo de sua vida. Ao falar sobre
Civilização, o autor trata a eugenia como saída para um mundo melhor, ao relatar
que “obedecendo aos preceitos da ultra-eugenia, a racionalização formará aos
poucos a humanidade de ‘indivíduos-personalidades’ equilibradas, conscientes
de deveres para consigo, para com a espécie.” (p. 40). Candiotto afirma que a
verdade
[...] é produzida pela articulação entre práticas heterogêneas, ou melhor,
entre práticas discursivas (o efetivamente dito, a materialidade do discurso,
o acontecimento de dizer é uma prática, uma prática discursiva) e práticas
não-discursivas (CANDIOTTO, 2006, p. 69).

É justamente estas práticas discursivas sobre eugenia que o autor busca


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(O rganizadores )

em seus livros para tentar produzir uma verdade, ainda que a eugenia já estivesse
em declínio no fim dos anos 1930. O autor ainda afirma que o discurso carrega
um teor de verdade, ou do que já foi verdade há pouco tempo, tentando “pro-
duzir efeitos de poder estatuindo regras para o governo das pessoas, dividindo-
-as, examinando-as, adestrando-as, sujeitando-as.” (CANDIOTTO, 2006, p. 70).
Candiotto (2006, p. 71) ainda fala em uma desvinculação do “entendimento da
verdade como extensão e difusão do poder, permanecendo entre eles um jogo
irredutível em termos de articulação e de resistência”. Foucault (2013) defen-
dia que existem dois tipos de história sobre a verdade: uma interna, formal; e
outra exterior, ligada ao fazer da história. Era assim que os eugenistas tentavam
difundir os seus princípios, através da credibilidade que os discursos científicos
possuíam já naquela época.
Quando pensamos em produção de verdades, também podemos pensar
na condução de condutas, outro tema abordado por Foucault em suas obras. O
teórico fala que
esta palavra – “conduta” – se refere a duas coisas. A conduta é, de fato, a
atividade que consiste em conduzir, a condução, se vocês quiserem, mas é
também a maneira como uma pessoa se conduz, a maneira como se deixa
conduzir, a maneira como é conduzida e como, afinal de contas, ela se
comporta sob o efeito de uma conduta que seria ato de conduta ou de con-
dução (FOUCAULT, 2008, p. 255).

Voltando à análise da educação eugênica no livro utilizado como fonte pri-


mária para esta pesquisa, ao falar sobre a diversidade brasileira no verbete Homo
sapiens, Kehl (1938, p. 86-87) diz
Examinando um grupo de homens, não se notam, a rigor, dois, regular-
mente belos e robustos; a grande maioria é fisicamente mais ou menos
disforme, e todos fisionomicamente dissemelhantes. E’ facil destacar um
indivíduo entre mil; já o mesmo não se dá entre os animais, cuja semelhan-
ça é notável, não se evidenciando grandes diversidades nem tantas aberra-
ções morfológicas.

Em Homem Mediano, a eugenia é colocada em pauta como a salvação para


melhoramento da humanidade, de modo a aumentar a quantidade de homens
bons e ótimos, diminuindo por sua vez a proporção de homens maus e péssimos,
nesse verbete o autor diz
E’ bem possível que entre 1.000 indíviduos fossem encontrados, então 7
tipos diferentes, assim distribuídos: 10 ótimos; 80 superiores; 200 bons; 360
regulares; 260 maus; 80 inferiores; 10 péssimos.
Esta distribuição foi feita tomando por base os estudos de Galton sôbre as
qualidades de uma população. Pela seriação acima, as menores cifras se
acham nos extremos e a maior no centro; o tipo médio prepondera sobre
todos os demais. A humanidade, como se sabe, acha-se apoiada na media-
nidade e não nos expoentes, nem mesmo quando ótimos. A eugenia visa
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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

elevar o nível da medianidade, afim de que mais alto se torne o nível dos
bons, dos muito bons e dos ótimos, enquanto mais raros se apresentem os
maus, os muito maus e péssimos (KEHL, 1938, p. 109).

Este trecho dialoga com Foucault, quando o filósofo francês fala sobre
biopolítica onde afirma
quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais
os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em
relação à espécie, mais eu - não enquanto indivíduo, mas enquanto espé-
cie - viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar’
(FOUCAULT, 2005, p. 305).

Como uma forma de educação eugênica, Kehl (1938) cita no verbete


Influencias Ancestrais que os homens devem
Lembre-se, então, que você representa um anel de uma longa cadeia here-
ditária; que os caracteres físicos, psíquicos e mentais que lhe são próprios,
tais como o talhe, a corpulência, a côr dos cabelos e olhos, a vivacidade es-
piritual, as aptidões, a inteligência, foram transmitidos segundo leis fixas e
que diversos caracteres, normalmente correlativos ou ligados nas linhagens
puras, podem misturando-se a linhagens bastardas ou degeneradas, formar
combinações desharmônicas, dar nascimento a entes feios, desequilibrados
ou doentes; - lembre-se então de que compete a cada um de nós zelar pelo
nosso patrimônio, do qual somos apenas depositários efêmeros, pois que
ele pertence, em última análise, a uma das muitas linhagens que constituem
o gênero humano, de cuja cadeia somos simples elos (KEHL, 1938, p. 113).

Em Pecado Original, o livro traz uma narrativa mitológica sobre a dege-


neração da “raça de ouro”, como se refere à raça pura, como um castigo pela
abertura da caixa de Pandora em que teve como “consequência: os males, os
sofrimentos, as doenças derramaram-se pelo mundo; a “raça de ouro” degene-
rou e não houve Deus que evitasse o prosseguimento da desgraça. O castigo foi
tremendo e irremediável.” (KEHL, 1938, p. 147). O discurso racial fica evidente,
quando em Perfectibilidade, Kehl fala que não se pode negar que a perfeição hu-
mana evolui constantemente e que a relação entre escravizadores e escravizáveis
ocorre graças à seleção natural e aos domínios de inteligência, da riqueza e do
mando. Foucault (2005) fala do racismo com uma perspectiva biopolítica e que
foi através da emergência do biopoder que o racismo passou a ser inserido nos
mecanismos de Estado. O teórico afirma que os que sofrem racismo estão dentro
do “Deixar Morrer”. O deixar morrer de alguns se faz para o bem viver de ou-
tros, quanto mais deixar alguns morrerem, mais outros viverão e compara esse
processo a uma guerra, no sentido de que “para viver, é preciso que você mas-
sacre seus inimigos” (FOUCAULT, 2005, p. 305). Para Kehl (1938), em Seleção
Negativa, a culpa dos maus que espalham desassossego, a dor, a desordem e a
morte a partir de calúnia, vilania, traição e crueldade; a culpa da maldade, “a

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(O rganizadores )

despeito dos esforços religiosos, educativos e punitivos” (p. 158) que se sobrepõe
à piedade e ao altruísmo como uma sobreposição anti-natural, anti-social e anti-
-humano ocorrem
por culpa do artificialismo reinante nos agrupamentos humanos. Como
todos têm o mesmo direito à vida, os fracos, os débeis mentais, os dege-
nerados, vivem, procriam, multiplicam-se sob a proteção de favores que,
muitas vezes, são negados aos fortes, aos inteligentes - em suma, aos ver-
dadeiros esteios de perpetuação melhorada da espécie. Da seleção negativa
resulta que a maldade se multiplica na proporção da inferioridade física, da
fraqueza mental e da decadência moral, enquanto as qualidades ótimas se
reduzem, nas mesmas proporções (KEHL, 1938, p. 158-159).

Paradoxalmente, ao mesmo tempo em que o autor aborda tais questões


eugênicas e de raça, de morte e desaparecimento dos degenerados, também abor-
da na obra temas filosóficos e sentimentais como a obra propõe, como no Amor
que o autor afirma que: “para o fisiologista, o amor reduz-se a uma necessidade
física com reflexos psíquicos, cuja satisfação é determinada pela presença, em
excesso, de certos hormônios na circulação” (KEHL, 1938, p. 30-31). Assim, a
obra traz temas diversos e em contra senso aos princípios eugênicos ao abordar
sobre Amizade, Fé e Crença, Vida, dentre outros. Como em Deus, que Kehl afirma
Para mim Deus é o abstrato, o incognoscivel, o mistério; é o sentimento de
insignificância de cada um de nós diante da imensidade cósmica; é o infi-
nito que não compreendemos; é o movimento, é a luz, é o som, é a eletrici-
dade; é, em suma, a vida e a vibração de ions, de atámos, de moléculas, na
insignificância aparente de uma ameba ou no complexo de um metazoário.
Deus é tudo, é nada, é vida, é morte; Deus, para mim, é indefinível, inexpri-
mível, e como tal o deixo à margem das minhas preocupações ideológicas
(KEHL, 1938, p. 56).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A eugenia à brasileira ocorreu também a partir de processos educativos


e viveu seu auge na década de 1920, até meados da década de 1930, quando
passa a entrar em declínio. Os intelectuais eugenistas foram então mudando suas
biografias ou apenas negavam que outrora apoiaram a então ciência eugênica.
Renato Kehl, principal difusor da eugenia no país, seguiu defendendo tais ideais
até sua morte em 1974, e o livro Bio-Perspectivas, publicado em 1938, é um belo
exemplo de sua atuação. Com uma proposta de ser um dicionário filosófico, traz
preceitos eugênicos em diversos de seus verbetes, tanto explicitamente, quanto a
partir de mensagens subliminares de comportamento social, por exemplo.

REFERÊNCIAS
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344
QUESTÕES RACIAIS
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346
QUESTÕES RACIAIS NO BRASIL:
UMA ANÁLISE DOS TERMOS DISCRIMINAÇÃO,
PRECONCEITO E RACISMO
Daniel Bergue Pinheiro Conceição1
Márcia Cristina Gomes2

INTRODUÇÃO

A sociedade brasileira ainda convive com os sinais do regime escravista,


pois, muitos dos\as descendentes negros\as passam por situações de racismos,
discriminação e preconceitos. Muito embora estes sejam negados por determi-
nadas pessoas na tentativa de mascarar tais problemas sociais, vislumbrando de-
monstrar que no Brasil as ações de desenvolvimento foram concretizadas com
democracia e harmonia social para todos\as os\as que aqui vivem (CHAUÍ,
2000 apud VIANA, 2015).
No entanto, em seus estudos, a pesquisadora Passos (2012), ao problema-
tizar as diferenças e desigualdades que recaem sobre a população negra, constata
que estas desigualdades são “graves, múltiplas e afetam a capacidade de inserção
da população negra na sociedade brasileira em diferentes áreas, comprometendo
o projeto de construção de um país democrático e com oportunidades para to-
dos” (PASSOS, 2012, p. 138).
Nesta direção, entendemos que na sociedade brasileira a presença de de-
terminados termos e conceitos precisam ser trabalhados e discutidos criticamen-
te nos espaços educacionais formais, nesse caso, na escola pelos\as professores\
as, assim como pelos\as interessados\as nas questões raciais no Brasil. Pois, sa-
bemos que muitas teorias, as quais versam sobre as relações raciais no país, por

1 Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE\UEMA) e Licenciado


em Pedagogia pela Universidade Estadual do Maranhão. Integrante do Grupo de Pesquisa
Questões Educacionais: desigualdade, inclusão e diversidade nas perspectivas socioeconô-
mica, étnico-racial e de gênero - GEDDIN/UEMA. E-mail: danielbergue-pc@hotmail.
com.
2 Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pro-
fessora do Departamento de Educação e Filosofia e do Programa de Pós-graduação em
Educação da Universidade Estadual do Maranhão. Coordenadora do Grupo de Pesquisa
Questões Educacionais: desigualdade, inclusão e diversidade nas perspectivas socioeconô-
mica, étnico-racial e de gênero - GEDDIN/UEMA. E-mail: marciacrisgomes@hotmail.
com.
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

vezes estão condicionadas a interpretações diferentes que não ajudam a melhorar


a realidade da população negra.
Para o desenvolvimento deste artigo foi necessário nos debruçar sobre fon-
tes bibliográficas e documentais, as quais fundamentaram e corroboraram para a
construção desta análise e estudo, assim como terminologias e marcos históricos
que já foram discutidos pelos movimentos negros\as brasileiros\as, e que tonifi-
cam a necessidade de discussão da temática étnico-racial nos espaços educacio-
nais formais.
Em face disso, o presente artigo tem como objetivo geral analisar termos
construídos historicamente, assimilados e perpetrados a partir das relações so-
ciais no Brasil. Para aprofundar este debate de modo a questionar este estudo
e incomodar os/as indivíduos sociais, apresentaremos e discutiremos as termi-
nologias como raça, racismo e preconceito, pois estão sempre presentes quando
o problema em questão se refere à realidade social e educacional da população
negra brasileira e esse fato justifica a necessidade da análise e apresentação destes
diferentes significados e sua importância para este artigo.
Como referências bibliográficas, trouxemos aspectos conceituais trabalha-
dos por Anchieta (2008), Dias (2017), Gomes (2005), Munanga e Gomes (2016),
dentre outros\as. O eixo teórico-metodológico de análise está fundamentado nos
pressupostos históricos-crítico para a compreensão da realidade social e, em par-
ticular do\a negro\a no contexto da sociedade brasileira.
Este artigo está dividido em seções. Iniciamos pela introdução, seguida
da metodologia, desenvolvimento e a considerações finais apresentando impres-
sões, recomendações e sugestões para a ampliação da inserção do presente estu-
do nos espaços educacionais formais referente às questões que recaem sobre a
população negra.

METODOLOGIA

Realizar uma pesquisa social não é uma tarefa fácil. Conforme Onofre
(2014), em seu estudo no campo das questões raciais no Brasil, para se alcançar
sucesso na pesquisa, o\a pesquisador\a precisa ficar atento aos procedimentos
essenciais para um bom estudo.
Conforme o supracitado autor:
Na pesquisa, alguns requisitos são imprescindíveis para sua efetivação. O
êxito do estudo depende de como o pesquisador encara sua investigação a
partir dos questionamentos que surgem e também da relação que estabe-
lece com a realidade empírica. O pesquisador precisa ser curioso, indagar,
relacionar os achados do campo com a teoria, confrontar seu saber com as
novas proposições que vai elaborando com base no diálogo entre teoria e
campo empírico (ONOFRE, 2014, p. 108-109).

348
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Ainda nesta direção, corroboramos que é indispensável examinar com um


olhar investigativo teorético as referências que tratam sobre o tema, por estar
relacionado e tratar-se também de uma pesquisa bibliográfica e documental a
qual se encontra no campo das ciências sociais em particular das relações raciais.
Ao nos referirmos à pesquisa bibliográfica, Gil (2010) reforça que esta é
organizada “com base em material já publicado. Tradicionalmente, esta moda-
lidade de pesquisa inclui material impresso como livros, revistas, jornais, teses,
dissertações e anais de eventos científicos” (GIL, 2010, p. 50).
Ainda nesta linha de exposições, destacamos que utilizamos pesquisas do-
cumentais, pois são fontes com informações excepcionais, o que ratifica a com-
preensão da temática deste artigo. Ademais, este tipo de pesquisa é utilizado nas
ciências sociais e constitui um dos delineamentos mais importantes no campo da
história (GIL, 2010).
Dessa maneira, o percurso metodológico também dialoga com a perspec-
tiva de Minayo (2007), posto que a abordagem escolhida foi a qualitativa, visto
que se responderá a questões muito particulares no âmbito nas ciências sociais,
com um nível de realidade que não pode ser quantificado, ou seja, a autora citada
trabalha com o universo de significados, motivos e percepções.

DESENVOLVIMENTO

No Brasil, vários termos e conceitos estão presentes nos discursos popula-


res. Estes são perpetuados de geração em geração fazendo parte do cotidiano das
pessoas. O problema é que tais termos influenciam as relações sociais e dificul-
tam a existência e sobrevivência de alguns grupos étnico-raciais no país. Desta
maneira, devido a necessidade de uma análise reflexiva e crítica, apresentamos
esta discussão com autores e autoras que desenvolvem estudos no campo das
relações raciais no Brasil.
Iniciando tais apontamentos, Anchieta (2008) traz o conceito de racismo
como sendo uma expressão mais ampla e abrangente, pois dentro deste termo
está presente o preconceito, a discriminação e outras ações negativas dirigidas a
um grupo racial ou étnico. Além disso, é importante enfatizar que o conceito de
racismo difere-se do conceito de raça. Raça é um conceito biológico, que envolve
conjuntos de aspectos que diferenciam uma determinada espécie (ANCHIETA,
2008).
Dias (2017) argumenta que o conceito de raça é um sinônimo de subes-
pécie que caracteriza-se pela existência de linhagens diferentes de uma classe da
natureza. Mediante essa afirmação, raça é a subdivisão biológica de uma espécie
aparada pela distinção genética.
Dias (2017), por sua vez, explana sobre o termo racismo, o qual equipara-se

349
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

à discriminação racial negativa, aquela na qual o sujeito pratica distinções sob


critérios de hierarquização entre raças ou até mesmo etnias. Neste mesmo senti-
do, Munanga e Gomes descrevem que:
O racismo é um comportamento, uma ação resultante da aversão, por ve-
zes, do ódio, em relação a pessoas que possuem um pertencimento racial
observável por meio de sinais, tais como cor de pele, tipo de cabelo, for-
mato de olho etc. Ele é resultado da crença de que existem raças ou tipos
humanos superiores e inferiores, a qual se tenta impor como única e verda-
deira. Exemplos disso são as teorias raciais que serviram para justificar a
escravidão no século XIX, a exclusão dos negros e a discriminação racial
(MUNANGA; GOMES, 2016, p. 179).

Sobre a terminologia “discriminação”, encontramos em Dias (2017, p.


83), a seguinte definição “uma prática de separar, fazer distinção de algo ou
alguém, do meio pelo qual se apresenta em razão de suas particularidades”.
Assim, tratando-se de tal prática entre seres humanos, a discriminação mostra-se
na separação de homens ou mulheres em razão de características que lhes são
próprias. Do mesmo modo Munanga e Gomes (2016) apresentam a discrimina-
ção como distinguir, diferenciar e discernir. Assim, a discriminação é a revelação
do preconceito em sua amplitude que por meio de sua materialização impõe
limites sobre determinados grupos sociais.
Anchieta (2008) explana a discriminação da seguinte forma: primeiramen-
te na redução ou diminuição do\a outro\a, logo em seguida, diminuído\a e cate-
gorizado\a em uma única possibilidade de explicação, uma única forma possível
de olhar, pensar, perceber e ajuizar esse indivíduo diferente.
Já o preconceito, por sua vez, pode ser compreendido como um concei-
to precipitado ou uma opinião desenvolvida sem reflexão prévia. Sobre isso,
Anchieta expõe que:
Pode-se definir preconceito como uma indisposição, um julgamento prévio
negativo que se faz às pessoas estigmatizadas por estereótipos, formando
julgamento a priori, um carimbo que se coloca em indivíduos ou grupos
que, uma vez carimbados, ficam marcados e passam a ser avaliados não
pelas suas reais qualidades, mas pelo rótulo que receberam (ANCHIETA,
2008, p. 36).

Mantendo este pensamento, Gomes (2005) aponta que o preconceito é um


entendimento prévio e negativo sobre os\as participantes de um grupo racial,
religioso ou étnico. Esse julgamento é inflexível ao ser sustentado sem levar em
consideração fatos que o contestem, pois trata-se de conceitos e opiniões forma-
das antecipadamente sem maior conhecimento dos fatos. Logo, o preconceito
está diretamente ligado às pessoas, grupos sociais e suas concepções internas.
Zilá Bernd (1994) citada por GOMES (2005) afirma que o sujeito precon-
ceituoso fecha-se a determinada opinião, não aceitando o outro lado dos fatos o

350
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

que, consequentemente, impede esse sujeito de ter acesso a uma possível abertura
para entendimento maior e mais aprofundado da questão, o que, segundo esta in-
vestigadora brasileira, poderia levar o indivíduo a reavaliar seu modo de pensar.
Gomes (2005) relata que a atitude preconceituosa não nasce com o indiví-
duo. Ela é construída dentro da sociedade. Ou seja, não se nasce preconceituoso,
torna-se e aprende-se em sociedade a ter preconceito, dado que todo o sujeito
cumpre uma longa trajetória de socialização, sendo esta iniciada no ambiente
familiar, transcorrendo pela vizinhança, escola e outros espaços coletivos.
Trazendo as ideias trabalhadas para os dias atuais, nota-se que o racismo
não desapareceu. Hoje, ele apresenta-se de duas formas: individualmente e ins-
titucionalmente. Ambas estão integradas na sociedade brasileira. No primeiro
caso, Anchieta (2008) afirma que o racismo apresenta-se através de atos discrimi-
natórios praticados por indivíduos contra indivíduos, podendo ainda atingir altos
níveis de violência tais como agressões, destruição de bens e assassinatos. Na
segunda forma, as práticas discriminatórias são sistemáticas e fomentadas pelo
Estado e apresentam-se implicitamente ou não. Conforme considera Borges, que:
Elas se manifestam sob a forma de segregação no espaço urbano parti-
cularmente na escola e no mercado de trabalho. Manifestam-se também
em manuais escolares, livros, filmes e novelas de televisão que retratam de
maneira inadequada as minorias étnicas ou os grupos raciais menospreza-
dos. Sem dúvida, os mais terríveis atos de racismos institucionalizado são
a perseguição sistemática e o extermínio físico (genocídio, ‘limpeza étnica’
e tortura) (BORGES, 2002 apud ANCHIETA, 2008 p. 39).

Por conseguinte, como fundamentado os conceitos aqui expostos, enten-


demos que preconceito, discriminação e racismo precisam ser enfrentados, pois
ainda estão presentes na sociedade brasileira e são fenômenos sociais. Ao longo
do tempo passou-se a acreditar em uma harmonia social, criando-se um mito que
vivemos numa democracia racial3.
Ao referir-se à democracia racial, Petrônio Domingues, em síntese histó-
rica, a descreve como:
[...] Uma distorção do padrão das relações raciais no Brasil, construído
ideologicamente por uma elite considerada branca, intencional ou invo-
luntariamente, para maquiar a opressiva realidade de desigualdade entre

3 O entendimento acerca da democracia racial nos concede fazer um delineamento não so-
mente como mito, ou seja, como construção cultural, mas também como colaboração,
aceitação ou acordo político, uma ideologia condescendida implicitamente para explicar a
relação dos\as negros\as na sociedade de classes do Brasil. (GUIMARAES, 2006).
Abdias do Nascimento em O Genocídio do Negro Brasileiro, critica os efeitos causados
pela ideologia da democracia racial colocada sobre toda sociedade maiormente a popula-
ção afro-brasileira. Segundo o autor, a democracia racial foi idealizada por Gilberto Freyre
fundador do chamado Luso-tropicalismo, que idealizou um Brasil sem raças e problemas
raciais. Esta expressão se apoiou com as chamadas ciências históricas. (NASCIMENTO,
1980).
351
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

negros e brancos. Havia, no Brasil, os elementos para a fabricação ideológi-


ca do mito da democracia racial. Desde o período colonial, passando pela
época do Império, a classe dominante foi treinada a ver os negros como
seres inferiores, mas, simultaneamente, aprendeu a abrir exceções para al-
guns indivíduos negros e mulatos (DOMINGUES, 2005, p. 118).

Soma-se a este raciocínio, Nascimento (1978), citado por Domingues


(2005), relata que levantou-se no Brasil a conceituação de democracia racial,
onde, segundo este, pretos\as e brancos\as viviam em perfeita consonância,
gozando de iguais oportunidades de existência. Existência essa que pretendia
constituir uma igualdade racial tornando-se o maior motivo de orgulho nacional.
No entanto, o autor supracitado, em seus pressupostos, nos propõe que
devemos compreender a democracia racial como uma metáfora perfeita para de-
signar o racismo estilo brasileiro não tão evidente como o racismo que se insti-
tuiu nos Estados Unidos e nem autenticado como o apartheid da África do Sul;
porém, eficientemente institucional nos níveis oficiais do governo como controle
social (DOMINGUES, 2005).
Somada a isto, conforme Gomes (2005) tem-se o discurso que fortifica o
“Mito da Democracia Racial”, que faz com que a população e o Estado brasi-
leiro desviem o olhar, não contemplando as barbáries praticadas contra a popu-
lação africana no Brasil e seus progenitores, o que, segundo a supracitada pes-
quisadora, impede veementemente uma atuação contundente do Estado para a
superação do racismo.
Em resumo Gomes (2005) aponta que:
O mito da democracia racial poder ser compreendido, então, como uma
corrente ideológica que pretende negar a desigualdade racial entre bran-
cos e negros no Brasil como fruto do racismo, afirmando que existe entre
estes dois grupos raciais uma situação de igualdade de oportunidades e de
tratamento. Esse mito pretende, de um lado, perpetuar estereótipos, pre-
conceitos e discriminações construídos sobre esse grupo racial (GOMES,
2005, p. 57).

Efetivamente, não podemos adotar a dialética do mito, de que todas as


raças e/ou etnias que existem no Brasil vivem em perfeita harmonia social em
condição de igualdade, com as mesmas oportunidades e tratamentos, pois esse
mito carrega propósitos antagônicos, os quais são: negar a discriminação racial
contra negros\as no Brasil e, também, propagar a perpetuação de estereótipos,
preconceitos e discriminações sobre esse grupo racial (GOMES, 2005).
Na verdade, como afirma Pacheco (2008), a discriminação, o preconcei-
to e o racismo não se apresentam apenas contra os\as negros\as e seus afrodes-
cendentes. No entanto, estes sofrem ainda mais caso seu poder aquisitivo seja
baixo. Logo, as oportunidades, sejam elas culturais, políticas, econômicas, não
são as mesmas entre brancos\as e negros\as.

352
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Nesse sentido, os movimentos sociais, em especial o Movimento Negro\a,


passaram a reivindicar por políticas públicas no âmbito de ações afirmativas,
como a inserção da temática racial e a história e cultura negra e africana nos
espaços educacionais formais, bem como as cotas para negros nas universidades
públicas brasileiras, acreditando na possibilidade de amenizar as desigualdades
enfrentadas pelas minorias que sofrem com uma exclusão histórica marcada de
preconceito, discriminação e racismo.
Ainda nesta mesma linha de considerações, vale aludir neste artigo as im-
portantes contribuições do Movimento Negro4 para a garantia de direitos, igual-
dade e melhores condições de vida para a população negra, tal como acesso aos
diversos setores sociais.
A despeito disso, Dias (2017) afirma que a partir de 1910 passou a existir
no Brasil uma pequena imprensa que se dedicava a fazer divulgação de eventos
sociais da população negra, como o “O Bandeirante e O Menelik”. Essas publi-
cações passaram a tomar uma atitude mais impetuosa na luta pela compreensão
do negro a partir de 1918, quando o racismo existente na sociedade passou a ser
denunciado.
Tal explicação vem ao encontro do que diz Domingues (2007) quando
refere-se aos jornais publicados por negros como um meio para tratar das suas
próprias questões. Passando a ser uma imprensa negra que conseguiu, à época,
coligar um grupo significativo de pessoas para trabalhar no combate ao precon-
ceito de cor.
Domingues (2007) considera que esses jornais:
Enfocavam as mais diversas mazelas que afetavam a população negra no
âmbito do trabalho, da habitação, da educação e da saúde, tornando-se
uma tribuna privilegiada para se pensar em soluções concretas para o pro-
blema do racismo na sociedade brasileira. [...] as páginas desses periódicos
constituíram veículos de denúncia do regime de “segregação racial”, que
incidia em várias cidades do país, impedindo o negro de ingressar ou fre-
quentar determinados hotéis, clubes, cinemas, teatros, restaurantes, orfana-
tos, estabelecimentos comerciais e religiosos, além de algumas escolas, ruas
e praças públicas (DOMINGUES, 2007, p. 105).

Dias (2017) também destaca outro marco importante na historicidade da


luta dos\as negros\as por direitos no Brasil: a Frente Negra Brasileira (FNB),

4 Domingues (2007) aponta que o movimento negro organizado começou 1930, por meio
da Frente Negra Brasileira sendo retomado décadas depois, com o Movimento Negro Uni-
ficado, no final dos anos 1970. Mediante esse fato se percebe que o movimento negro con-
temporâneo acumula experiência de gerações, sendo herdeiro de uma memória de luta que
atravessou praticamente todo o período republicano.
O movimento negro se construiu com dinamismo, por vezes reelaborado devido à cada
conjuntura histórica. As pautas de luta do movimento negro partiam da integração do
negro na sociedade, bem como da erradicação do racismo na sociedade brasileira.
353
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

idealizada para atuar como organização de reivindicação dos direitos e cidada-


nia dos\as negros\as. A FNB em 1936 tornou-se partido político, no entanto foi
extinta com o Estado Novo no período Vargas em 1937.
Após esse período renasce a Frente Negra Brasileira e, com ela, a primeira
Convenção do Negro Brasileiro. Em 1944 é criado o Teatro Experimental Negro
por Abdias do Nascimento, tendo como objetivo a valorização do/a Negro/a
como artistas e protagonistas de suas próprias peças. Em 1949, é fundada, no Rio
de Janeiro, a União dos Homens de Cor.
Em síntese, no final dos anos 70, Dias (2017) menciona que vários grupos
de negros\as começaram a se organizar, dando maior destaque ao Movimento
Negro Unificado, que foi fundado em 1978, em São Paulo. Este movimento ob-
jetivou-se em protestar contra a discriminação praticada sobre a população negra
e ainda protestar contra a morte de dois operários negros pela polícia (DIAS,
2017, p. 109).
Acerca deste movimento, corroborando com Dias (2017), Munanga e
Gomes (2016) aponta que durante este ato público ocorreu a unificação de vá-
rias organizações negras, dando origem ao Movimento Negro Unificado, que fi-
cou conhecido como MNU, tornando-se uma das principais entidades negras da
atualidade por possuir um caráter de reconhecimento e atuação nacional, por sua
luta contra a discriminação racial, recomendando propostas para a superação do
racismo no ambiente educacional formal, bem como por sua atuação dentro dos
partidos da esquerda brasileira.
Por certo, além do MNU, hoje existem entidades que atuam e lutam incan-
savelmente contra o preconceito racial e racismo, pela consciência negra, identi-
dade religiosa, pelo reconhecimento das áreas e comunidades quilombolas, pela
inclusão do/a negro/a no mercado de trabalho, como também em instituições
de Ensino Superior.
Ressaltamos, que os elementos apontados neste artigo servem para refor-
çar a temática racial e fulcral apresentada neste estudo, abordando alguns fatos
aqui expostos, no qual o objetivo é reafirmar a importância da necessidade de
analisar-se os termos presentes na sociedade e que recaem sobre a população
negra brasileira. Nisto, reforçamos que não pretendemos de maneira alguma es-
gotar a discussão nestes apontamentos.
No entanto, a exclusão do/a negro/a, como vimos até aqui, é proce-
dente de um processo extremamente segregador e opressor, que deixou seque-
las as quais ainda permeiam na sociedade contemporânea. Em outras palavras
Anchieta (2008) comenta que:
O processo de exclusão do negro [...] é histórico, vem se arrastando ao
longo do tempo; sem nos darmos conta naturalizamos alguns pensamen-
tos que nos contaminaram por herança histórica como a inferioridade do

354
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

negro, sua inteligência e capacidade (ANCHIETA, 2008, p. 35).

Na verdade, percebemos esses pensamentos preconceituosos em discursos


e brincadeiras pejorativas que ganham espaço por meio de indivíduos que afir-
mam-se não-racistas, porém concebem ser natural proferir que:
- Negro bom é negro de alma branca;
- A situação está preta!;
- Apesar de negro, ele é legal, é gente boa;
- Tinha que ser preto;
- Não faça serviço de preto;
- É negra, mas é bonita;
- Negrinha, Neguinho;
- Preta, Pretona, Negona;
- Cabelo duro, seco, cabelo ruim;
- A ovelha negra da família;
- Mão preta, mão suja;
- Inveja branca/ Humor negro.

Desta forma, tais expressões revelam teores racistas que permeiam as rela-
ções sociais, uma vez que este conteúdo é reforçado e reproduzido no inconscien-
te da população brasileira, impregnado em todos os espaços coletivos. Conforme
Coqueiro (2008), os termos relacionados a/o negro/a:
[...] Vem carregado de conotação negativa. Denegrir significa tornar ne-
gro, logo, o termo negro sugere que isso é ruim. [...] estes nos mostram
problemas, expressões que se incorporam no cotidiano das sociedades, que
naturalizam o que não deve ser naturalizado, banalizam situações que não
devem ser banalizadas, inferiorizam pessoas e os lugares que estas ocupam
nos grupos sociais (COQUEIRO, 2008, p. 22).

Cabe citar aqui o texto da música Identidade, do cantor e compositor brasi-


leiro Jorge Aragão da Cruz, na qual, em seus fragmentos, retrata o preconceito,
discriminação e as diárias injustiças sociais que sofrem a população negra no
Brasil por meio de um racismo mascarado e velado que está presente e toma
espaço nas mais variadas instâncias coletivas:
Elevador é quase um templo
Exemplo pra minar teu sono
Sai desse compromisso
Não vai no de serviço
Se o social tem dono, não vai...
Quem cede a vez não quer vitória
Somos herança da memória
Temos a cor da noite
Filhos de todo açoite
Fato real de nossa história
Se o preto de alma branca pra você
É o exemplo da dignidade
Não nos ajuda, só nos faz sofrer
355
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Nem resgata nossa identidade (ARAGÃO, 1992).

Visto que tal música não expõe uma letra simples, pelo contrário, apresen-
ta-se de forma muito complexa. Entende-se que o compositor, ao se referir me-
taforicamente na primeira estrofe, que o elevador é quase um templo, ele retrata
o impedimento e restrição para o uso do elevador, como se ele fosse sagrado,
afirmando que o racismo existe.
Por conseguinte, Aragão (1992) traz a seguinte reflexão: o sujeito negro/a
ao ceder a vez, ou melhor, ao desistir de usar o elevador social, estaria deixando
de lado sua vitória já conquistada graças à luta e resistência de seus antepassa-
dos; sustentando ao mesmo tempo que o negro da atualidade tem uma responsa-
bilidade histórica de luta e resistência.
Outro ensinamento que o compositor traz é o branqueamento do/a ne-
gro/a como uma forma de desvalorizá-lo/a e diminuí-lo/a ao mesmo, pois o au-
tor explana que por fora, ou melhor, a aparência do/a negro/a é “ruim”, todavia,
por dentro é uma “boa” pessoa. Neste sentido, é observado, como bem colocado
na letra supracitada, o preconceito velado, o qual por sua vez não ajuda a popu-
lação negra, pelo contrário, preconceituosamente apaga a identidade racial dos/
as negros/as brasileiros/as.
Ainda trabalhando sobre a identidade do\a negro\a, ressaltamos que essa
cruzou a cultura, o corpo, a religião. Logo, caso o sujeito não se compreenda
como negro\a, isso impede a construção da sua identidade. Esta, quando re-
lacionada às particularidades fenotípicas e físicas do\a negro\a, torna-se um
processo doloroso, já que o sujeito está indo contra um padrão estabelecido de
acordo com a ideologia da classe dominante. Por isso, é imprescindível trabalhar
a identidade para que os\as negros\as reconheçam-se como negros\as.
Nota-se ainda a valorização da memória coletiva, tal como o reconheci-
mento cultural que influenciou na formação do povo brasileiro, a qual carrega
consigo influências de vocábulos originários da população negra como também
as vestimentas, culinária e a musicalidade.
Vale ressaltar a imensa importância e contribuição de todos os termos e
pontos abordados, pois definir-se terminologias como discriminação e preconcei-
to, torna possível a compreensão do atual cenário social em que vivemos. Assim,
as exemplificações corroboram para a afirmação de que o racismo não desapare-
ceu, apenas encontra-se disfarçado em um discurso à brasileira, o qual contribui
para a existência de desigualdades sociais e educacionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluída a análise proposta neste artigo, cabe tecer algumas considera-


ções sobre a temática explanada. Pensar na realidade da população negra no

356
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Brasil é falar que muito ainda precisa ser feito para a superação das desigualda-
des, bem como para a garantia e efetivação de direitos sociais e educacionais. É
preciso rever as gritantes desigualdades que se encontram enraizadas na socieda-
de contemporânea, a qual convive com os frutos de um processo segregador, que
por muito tempo deixou a população negra à margem dos direitos básicos para
sua sustentação e existência.
Para a problematização e reflexão dos termos aqui trabalhados sugerimos
que os\as professores e professoras trabalhem no espaço educacional formal com
os\as estudantes a história real da população negra brasileira, não colocando-os/
as em uma posição de subalternidade, e sim como protagonistas de sua história.
Com o aprofundamento da pesquisa bibliográfica e documental foi possí-
vel perceber e constatar que as dificuldades para a população negra são históricas
e apresentam-se em todos os setores da sociedade. Mesmo diante de leis que
amparam essa população, com vistas à redução das desigualdades, o preconceito
e a discriminação ainda convivem de forma mascarada em meio à sociedade.

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357
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(O rganizadores )

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358
RACISMO ESTRUTURAL, FAVELIZAÇÃO
E MEIO AMBIENTE: A PRIVAÇÃO DO ACESSO
AO MEIO AMBIENTE URBANO ECOLOGICAMENTE
EQUILIBRADO E A FRAGILIZAÇÃO DO
MOSAICO DA CIDADE1
Welington Cipriano da Silva2
Tauã Lima Verdan Rangel3

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Em linhas iniciais, ao se analisar a formação das cidades brasileiras, fa-


z-se necessário se refletir acerca de duas variáveis que se repetem nos médios e
grandes centros urbanos, quais sejam: segregação socioambiental e o direito à
moradia. Como é cediço, o racismo ambiental, neste contexto, se eleva como
desdobramento dos processos sociais históricos específicos envolvidos nas rela-
ções de poder e incluídos no atual modelo de gestão. Assim, grupos sociais, de
maneira tradicional, contribuem para o domínio de alguns em detrimento de
outrem, agravando a precarização do direito à moradia e o robustecimento da
favelização.
Ao problematizar o contexto histórico de formação da sociedade brasilei-
ra, denota-se que diversos grupos sociais são espaços racializados por natureza.
Como reação a tal perspectiva, em diversos campos acadêmicos, novos debates
são apresentados e colocam em xeque a própria concepção de tolerância étnica
e democracia racial, enquanto discursos fortemente propagados. Tais óticas nor-
malizadoras eclipsaram, de fato, o problema estrutural e que se agrava, quando

1 Capítulo de livro vinculado ao Projeto de Iniciação Científica “Desenvolvimento econômi-


co, injustiça ambiental e marginalização social da população invisibilizada no município de
Bom Jesus do Itabapoana”.
2 Graduando do Curso de Direito da Faculdade Metropolitana São Carlos – FAMESC.
E-mail: [email protected];
3 Professor orientador. Pós-Doutor em Sociologia Política da Universidade Estadual do
Norte Fluminense. Mestre e Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade
Federal Fluminense. Coordenador do Grupo de Pesquisa “Faces e Interfaces do Direito,
Sociedade, Cultura e Interdisciplinaridade no Direito” – vinculado à Faculdade Metropo-
litana São Carlos (FAMESC) – Bom Jesus do Itabapoana-RJ; Professor Universitário, Pes-
quisador e Autor de diversos artigos e ensaios na área do Direito. E-mail: taua_verdan2@
hotmail.com;
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

se coloca em debate a concepção de acesso ao ambiente urbano e ao direito à


moradia, enquanto direito fundamental.
Neste viés, a discussão sobre justiça ambiental pode ter um impacto pro-
fundo ao se pensar em políticas públicas, práticas industriais e regulamentações
relevantes. A análise da injustiça ambiental é uma tentativa de desenvolver uma
estratégia que promove a distribuição eficiente, sustentável e equitativa de resí-
duos ambientais, sem que isso implique na perpetuação de círculo vicioso, cuja
mola propulsora é a vulnerabilidade de grupos sociais em relação a outros que se
beneficiam do trânsito nas arenas decisórias.
Assim, a atual política, seguida pelos operadores econômicos e pelo
Estado, não é a mais adequada do ponto de vista ambiental, como também não
o é a partir de perspectivas sociais. Como consequência, pode-se afirmar que
uma das marcas do desenvolvimento urbano no Brasil é a falta de planejamen-
to. O êxodo intensivo das áreas rurais, observado nas últimas décadas, acabou
afetando os centros urbanos, de modo sem precedentes. Tal contexto agravou o
desequilíbrio ambiental, que causou e continua a gerar alta demanda humana,
logo, a forma como se desenha o acesso à cidade, aos seus equipamentos e ao
meio ambiente urbano ecologicamente equilibrado é preocupante.
A metodologia empregada na construção do presente pautou-se na utili-
zação dos métodos historiográfico e dedutivo. O primeiro método científico teve
como incidência estabelecer recorte do princípio da dignidade da pessoa huma-
na, a partir de uma evolução jurídico normativa em volta deste. No que concerne
ao segundo método, aplicou-se em razão do recorte temático proposto. Ainda no
que concerne ao enfrentamento da temática científica, a pesquisa se enquadra
como qualitativa. A técnica de pesquisa principal utilizada foi a revisão de litera-
tura sob o formato sistemático. Ademais, em razão da abordagem qualitativa em-
pregada, foram utilizadas, ainda, a pesquisa bibliográfica e a análise documental.

O MEIO AMBIENTE URBANO ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO:


POR UM DIREITO À CIDADE?

A existência das cidades é o resultado de vários processos de aglomeração


humana com as mais diversas características e origens. Assim sendo, as primeiras
cidades datam de 3.500 a.C. na área dos rios Tigre e Eufrates. De outro modo,
a urbanização é um fenômeno contemporâneo que surgiu apenas em meados
do século XIX, em especial devido à revolução industrial ocorrida na Europa
(SILVA, 2006 apud GONÇALVES, 2017). A urbanização está associada ao fe-
nômeno da concentração urbana em que a população das cidades cresce mais do
que a rural (GONÇALVES, 2017).
A perspectiva da continuidade do desenvolvimento da urbanização, no

360
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

século XXI, a partir das cidades, continuará sendo os locais da nova configu-
ração econômica e financeira na era pós-industrial (GONÇALVES, 2017). De
acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD),
em 2015, a maior parte da população brasileira, 84,72%, vive em áreas urbanas
(IBGE, 2015). Já 15,28% dos brasileiros vivem em áreas rurais e o processo de
urbanização teve início na década de 1930, com destaque para a década de 1960
avança e transforma o país territorialmente, socioeconomicamente, culturalmen-
te é ambiental (FERNANDES, 2002 apud GONÇALVES, 2017).
No que se refere à ausência de planejamento urbano, denota-se o agrava-
mento da injustiça ambiental e do perfil populacional afetado. Logo, é possível
listar as deficiências na estrutura dos serviços de saneamento básico, acesso à saú-
de e educação, bem como serviços de transporte etc. Além disso, há problemas
gerados devido ao comprometimento ambiental que esse padrão de urbanização
impõe, o que diminui, ainda mais, a qualidade de vida dos residentes em áreas
urbanas, especialmente residentes nas metrópoles brasileiras (GONÇALVES,
2017).
A partir da declaração ratificada na Conferência de Estocolmo, de 1972, o
Brasil ressaltou a importância do tema, com o expresso reconhecimento do aces-
so ao meio ambiente ecologicamente equilibrado na redação do artigo 225 da
Constituição Cidadã, içando-o ao status de direito fundamental (NASCIMENTO,
2021). Sendo, portanto, a temática de suma importância para o atual quadro
jurídico de proteção do meio ambiente, podendo citar a Lei nº 6.938/81, que
instituiu a Política Estadual de Meio Ambiente (PNMA). Ademais, ainda como
desdobramento da temática no plano legal, podem-se citar a Lei nº 7.347/85,
que trata das competências do Ministério Público para a propositura de ação
civil pública de responsabilidade por danos causados ​​ao meio ambiente e a Lei
nº 9.605/98, que definiu e puniu as condutas criminosas contra o meio ambiente
(NASCIMENTO, 2021).
Dentre as autoridades públicas responsáveis por atuar em prol da proteção,
preservação e conservação do meio ambiente, destaca-se a atuação do Ministério
Público, pois é aquele que verifica e fiscaliza. Contudo, aqui, é relacionado ao
fato dele receber as manifestações de interesse local e ambiental, tomando as
medidas e providências necessárias para minimização daquele problema (SILVA
NETO; SILVA, 2009). Ocorre que, muito vezes, quando essa demanda chega
até as outras autoridades públicas, em razão da burocracia, há uma demora que
prejudica mais ainda aquele problema, fazendo com que medidas mais amplas e,
por vezes, incapazes de solucionar a questão sejam tomadas tardiamente (SILVA
NETO; SILVA, 2009).
A Lei nº 6.938/81 introduziu, em seu artigo 3º, inciso I, o conceito de
meio ambiente como sendo um conjunto de condições, leis, influências e

361
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

interações entre físicas, químicas e biológicas que permite, protege e governa a


vida em todas as suas formas inesquecível a contribuição para as causas ambien-
tais (BRASIL, 1981). Além disso, foi instituída pela PNMA, no art.14, § 1°, o
instituto da responsabilidade objetiva em decorrência do dano ambiental.
Art. 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal,
estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preser-
vação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação
da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:
§ 1º - Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o po-
luidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou
reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua
atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade
para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados
ao meio ambiente (BRASIL, 1981)

O recurso do meio ambiente, referido no artigo 225 da Constituição, é


considerado como bem de uso comum do povo, o que significa a proibição cons-
titucional da livre disposição dos direitos inerentes à propriedade. Isto é, há cer-
ceamento a desfrutar, dispor e destruir os bens ambientais, o que, desta forma,
permite entendê-lo como um bem de interesse difuso, categoria que corresponde
à distinção existente entre bem público e privado (SILVA NETO; SILVA, 2009).
Contudo, é conferido um regime jurídico diverso que se exterioriza ao
manter a qualidade do meio ambiente. Além disso, os bens ambientais também
podem ser classificados em bens macro e bens micro. O primeiro são os produtos
caracterizados pela qualidade ambiental, flora, fauna, paisagens, já os micros
bens são caracterizados pela disponibilidade limitada, mantendo a qualidade do
meio ambiente e é, por isso, que possuem um cuidado de interesses dispersos
(SILVA NETO; SILVA, 2009). Como expõe José Afonso da Silva:
O proprietário, seja pessoa pública ou particular, não pode dispor da quali-
dade do meio ambiente a seu bel-prazer, porque ela não integra sua dispo-
nibilidade. Veremos, no entanto, que há elementos físicos no meio ambien-
te que também são susceptíveis de apropriação privada, como o ar, a água,
que são, já por si, bens de uso comum do povo. Por isso, como a qualidade
ambiental, não são bens públicos nem particulares. São bens de interesse
público, dotados de um regime jurídico especial, enquanto essenciais à sa-
dia qualidade de vida e vinculados, assim, a um fim de interesse coletivo.
(SILVA, 2006, p.56 apud SILVA NETO; SILVA, 2009)

O Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, após 11 anos de debate e nego-


ciações, apresenta como princípios da política urbana uma relação direta entre
eles e os princípios da dignidade humana. Com a sanção do Estatuto da Cidade,
o direito a uma cidade passa a ser visto, sob o ponto de vista ambiental, como
ecologicamente sustentável para a vivência das pessoas, bem como afigura como
direito fundamental e relacionado diretamente ao ideário de desenvolvimento

362
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

sustentável (HAMMARSTRÖN; CENCI, 2013).


A urbanização tem relação direta com o meio ambiente. A urbanização
significa que as pessoas e as atividades produtivas estão concentradas em um es-
paço limitado, o que inevitavelmente terá um impacto coordenado e duradouro
sobre o meio ambiente. Apesar de outras atividades, como agricultura, pecuária,
mineração e produção de energia, também impactam agressivamente no meio
ambiente, a urbanização e seu impacto ambiental de forma concentrada além do
limite das áreas urbanas merecem uma análise especial. Em um mundo cada vez
mais urbanizado, o ritmo das regiões também está acelerando para as pessoas
mais pobres do planeta, a maioria dos impactos ambientais mais importantes
nasceu na cidade, segundo os criadores do conceito de pegada ecológica, agri-
cultura e o consumo de alimentos é o maior contribuinte para o fardo ecológico
humano (JATOBÁ, 2011).
Por outro lado, as cidades, também, apresentam o maior risco de desastres
e com ele a chance de ser atingido é maior, condições de impacto da urbanização
são fatores naturais na ocorrência de desastres ambientais, e isso é devido à urba-
nização, a possibilidade de sua destruição aumentou. Condições instáveis ​​agra-
vam, ainda mais, esses riscos para grupos desfavorecidos socialmente, a vulne-
rabilidade dos desastres ambientais aumentou devido à injustiça ambiental e no
contexto de crescente desigualdade social (CEPAL, 2008 apud JATOBÁ, 2011).
A vulnerabilidade social urbana é uma função relacionada a um determinado
grau de exposição de um grupo social de risco (JATOBÁ, 2011).
Isso pode ser inferido da autoridade pública uma variedade de poderes-
-deveres, o primeiro e mais importante é criar programas que buscam incentivar
a cidadania e consolidar a democracia, a formação de cidadãos cientes de seu
papel como parte do processo evolutivo nacional em que se relaciona com o meio
ambiente o papel explicativo do Estado por meio da educação ecológica (SILVA
NETO; SILVA, 2009).
O uso e ocupação do solo urbano, conflitos socioambientais, injustiça e
exclusão, onde os interesses, pressões e disputas associadas a ocupação dessas
regiões como a terra e os recursos disponíveis. Ao mesmo tempo, vivem no mes-
mo ambiente da “cidade” baixos padrões de vida, conflitos etc. E ocupações em
áreas frágeis e de alto padrão de vida e consumo. Representando, portanto, dese-
jos e interesses diferentes em um único ambiente, não se esquecendo de política
ambiental originada de estresse e tensão no ambiente (COSTA; BRAGA, 2002
apud SALLES; GRIGIO; SILVA, 2013, p. 5).
A péssima qualidade de vida imposta a esses povos, consequência dessas
agressões acometidas á o meio, autores como Costa e Braga (2002 apud SALLES;
GRIGIO; SILVA, 2013, p. 4) discutindo esses atritos com o meio ambiente e o
meio urbano como;

363
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

O campo de conflitos estruturado em torno da questão urbano-ambiental


caracteriza-se por uma dinâmica intrincada de relações e disputas de poder
que produz diferentes matrizes discursivas sobre cidade e meio ambiente
e gera importantes limites à formulação e legitimação de diretrizes de po-
lítica ambiental (COSTA; BRAGA, 2002, p. 4 apud SALLES; GRIGIO;
SILVA, 2013, p. 5).

Pode-se observar os problemas e efeitos desse processo de evolução, po-


dendo ser citados: Desmatamento para construção de edifícios e ocupações ir-
regulares e sem restrições, falta de infraestrutura básica e instalações sanitárias
inadequadas, desigualdade social, especulação imobiliária, fragilidade e deterio-
ração do sistema natural. Há, portanto, um problema com a eliminação de resí-
duos sólidos, abastecimento de água, publicidade excessiva e comunicação visual
(poluição visual), movimento populacional, descarga de esgoto a margem de rios
e nascentes, aumento da frota de carros, destruição de propriedades históricas e
culturais, emissões de particulados, poluição sonora, redução da flora e da fauna,
conflitos, economia social pífia, etc (SALLES; GRIGIO; SILVA, 2013).

RACISMO ESTRUTURAL E FAVELIZAÇÃO: A AUSÊNCIA DO


ESTADO NA CIDADE PERIFÉRICA E A VIOLAÇÃO À DIREITOS
FUNDAMENTAIS

Em 2018, no 30º aniversário da Constituição Federal Brasileira, a lei de


abolição da escravatura completou 130 anos e, até hoje, as pessoas que vivem
em periferias, favelas e assentamentos ainda não têm os direitos constitucionais
garantidos pelo Estado, e a desigualdade continua no abismo (EMERGÊNCIA
POLÍTICA, 2021). O direito à vida é a garantia básica prevista no artigo 5º da
Constituição Federal, embora haja uma garantia, na prática ainda possui um risco
e meios de manter a qualidade de vida desses povos racializados. Especialmente
nos subúrbios, ao resistir às constantes violações de direitos nos territórios peri-
féricos, começou a surgir a iniciativa de questionar tais atitudes que afrontam à
sobrevivência daquela gente, que criou vozes e instituições políticas, e construiu
uma ponte para que os coletivos “marginalizados” e esquecidos obtivessem direi-
tos (EMERGÊNCIA POLÍTICA, 2021).
Devido à impossibilidade de obter direitos, grupos que estiveram no espa-
ço de tomada de decisão e de poder não têm um extenso histórico de participação
de sujeitos periféricos. Assim, o domínio desses grupos de poder tem produzido
planejamento e priorização de certas áreas não periféricas, e investimento em
políticas públicas que não mudarão a redução da desigualdade. Para tanto, nessa
perspectiva, não deve falar apenas de “ausência do país”, mas de ausência de
políticas públicas do país, porque a ausência é a escolha de quem está no poder
(EMERGÊNCIA POLÍTICA, 2021).

364
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Um dos maiores obstáculos para resolver este problema é o fato de que


cientistas e atores sociais nacionais e estrangeiros continuam a subscrever o mito
da democracia racial. Aludido mito frequentemente é usado para desacreditar
ações tanto que grande parte da sociedade brasileira nega a existência de racis-
mo. Especialistas de organizações, no entanto, concluíram que os negros, neste
país, são as maiores vítimas de homicídio, têm a menor escolaridade, têm os
menores salários, têm a maior taxa desemprego, têm menos acesso à saúde, bem
como são aqueles que morrem mais cedo e têm uma participação menor no
Produto Interno Bruto (PIB) (LOUREIRO, 2018).
São os negros que mais ocupam as prisões e ocupam menos cargos, outro
ponto importante para se destacar é a violência policial contra jovens afro-bra-
sileiros sendo muito preocupante e, para organismos internacionais, a polícia
é responsável por manter a segurança pública, mas o racismo institucional, a
discriminação e a cultura da violência levam a práticas com perfil raça, tortura
e humilhação (RODRIGUES, 2021). Essa ausência sistemática, planejada há
muitos anos pelo poder econômico e pelo status quo natural do apartheid, ajuda a
manter a urgência diária da população periférica, o tempo que pertence à política
é o tempo de sobreviver (EMERGÊNCIA POLÍTICA, 2021).
A situação periférica dos moradores das áreas de aglomeração, favelas e
“quebradas” é uma das principais diretrizes para os profissionais que adminis-
tram essas emergências. Sendo assim, o fortalecimento dessa identidade política
coletiva é uma das formas de criar integração, que propõe outra dinâmica do
espaço de decisão e substitui a ausência de planos nacionais, esses atores não
toleram mais abusos, condenam violações e criam tal presença (EMERGÊNCIA
POLÍTICA, 2021).
O racismo sistemático e estrutural é um tópico atual e cotidiano, que, ain-
da, é bastante controverso e complexo, como também de inegável importância
social, política, econômica e jurídica na sociedade brasileira. Desta feita, ao de-
senvolver e usar o conceito de “racismo institucional” para promover a políti-
ca igualdade racial, que surgiu, no final dos anos 1960, associada a contextos
pós-coloniais de empoderamento e a (re)definição de entidades políticas negras
em cobertura transnacional. Comparativamente, nos Estados Unidos, a temática
aparece na arena da luta pelos direitos civis e políticos e com a implementação
de uma política de ação afirmativa (LOUREIRO, 2018).
O racismo institucional, conforme definido pelos autores, condena as es-
truturas brancas a poderem e a criar as condições políticas para o estabelecimento
de estruturas de poder negro. Autores se referem ao racismo como a tomada de
decisões e a política com base na raça, a fim de subordinar o grupo racial e man-
tê-lo sob controle (LOUREIRO, 2018). Esse padrão discriminatório está presente
nos inúmeros obstáculos observados pela CIDH (Comissão Interamericana de

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(O rganizadores )

Direitos Humanos) para que essas pessoas conquistem e exerçam seus direitos,
em particular no que diz respeito à participação efetiva nos espaços democráti-
cos, ao acesso ao mercado formal de trabalho e à participação nos espaços geren-
ciais do setor privado empresarial.
Em temas voltados para a saúde e para a educação de alta qualidade,
acesso à moradia digna, bem como acesso efetivo à justiça, a CIDH (Comissão
Interamericana de Direitos Humanos) observou, com particular, preocupação
a violência sistêmica perpetrada por funcionários do Estado. Para tanto, conce-
de-se especial atenção para aqueles vinculados a instituições policiais e sistemas
de justiça baseados em padrões de perfil racial para criminalizar e punir afrodes-
cendentes (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS,
2021).
Dessa forma, a distribuição da morte como uma ação organizada do po-
der estatal, topografias militarizadas nas quais gerações começaram a se sociali-
zar por meio da experiência do sepultamento precoce de seus pares. O vocabu-
lário de homicídios e massacres, na formação da experiência de negros, desde a
infância, em territórios de guerra, e a necropolítica que dirigem um conjunto de
categorias e empreendimento racializados e racistas. Assim sendo, tal contexto
é o que define o programa político que percorre narrativas televisivas, espalha o
medo da comercialização da paz social e faz parte de um amplo leque de ativi-
dades legitimadas pela ideia de guerra, incluindo contra outras populações, sob
outro espectro de guerra, os chamados efeitos colaterais (OLIVEIRA; RIBEIRO,
2018, p. 37-40).
Em igual sentido, a seletividade da política de drogas proibitivas é um
exemplo de instrumento de sustentação do conjunto de injustiças que resultam
de um regime perverso regido por uma economia de violência que continua fun-
cionando. Os homicídios, no Brasil, nos últimos quinze anos, registraram um
aumento mais do que os mesmos crimes nos oito países sul-americanos somados
e mesmo todos os assassinatos registrados no mesmo período nos 28 países da
União Europeia(GEPeSP). Cerca de 56% de todos os assassinatos dizem res-
peito a jovens com menos de 29 anos, 71% dos quais são negros (OLIVEIRA;
RIBEIRO, 2018 p. 37-40).
Além disso, não existe um sistema de produção de dados seguros sobre as
circunstâncias dessas mortes, as condições de avaliação da ocultação das mor-
tes por homicídio e a quantidade delas em decorrência de ação policial dire-
ta ou indireta. Os resultados da luta contra o crime organizado e o tráfico de
drogas criminalizam, ainda mais, as relações sociais em territórios “periféricos”
inteiros, em que as forças de segurança atuam de forma mais ostensiva, utilizan-
do principalmente a violência. Além da corrupção flagrante de seus agentes, o
que cria um sentimento de insegurança na sociedade no geral, a par de que a

366
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

qualquer momento por um motivo alheio poderá ter a sua existência ameaçada
(OLIVEIRA; RIBEIRO, 2018, p. 37-40).

MEIO AMBIENTE URBANO E RACISMO ESTRUTURAL: PENSAR


A PRIVAÇÃO DO ACESSO AO MEIO AMBIENTE URBANO
ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO COMO TENSIONAMENTO
DAS RELAÇÕES SOCIAIS

O conceito de “racismo institucional” foi um grande passo progressista em


termos de relacionar-se com o estudo das relações raciais. Primeiro, mostra que
o racismo vai além do âmbito da ação individual e, em segundo lugar, enfatiza a
dimensão do poder como elemento constitutivo das relações raciais, não apenas
o poder de uma pessoa de uma raça sobre a outra, mas um grupo sobre o outro,
algo possível quando há controle direto ou influência indireta de certos grupos
no aparato institucional (RIBEIRO; ALMEIDA, 2019, p. 30).
No entanto, ainda existem alguns problemas que são verificados nas ins-
tituições que recriam as condições de estabelecimento e manutenção da ordem
social. Então, é possível falar em um racismo institucional, ou seja, a imposição
de regras e padrões racistas por parte da instituição estão de alguma forma re-
lacionados com a ordem social que procura proteger? (RIBEIRO; ALMEIDA,
2019, p. 31).
Em apertada síntese, o racismo é o produto da própria estrutura social,
isto é, da maneira “normal” como as relações são criadas nos contextos políti-
co, econômico, jurídico e até mesmo familiares. Seria uma patologia social, não
colapso institucional já que o racismo é estrutural. Comportamento individual e
processos institucionais segregadores, vêm de uma sociedade onde o racismo é a
regra e não a exceção (RIBEIRO; ALMEIDA, 2019, p. 33).
O racismo é parte do processo social que está por trás dos indivíduos e
parece-lhes uma herança de tradição maldita. Medidas para reduzir o racismo
individual e institucionalmente tornam-se necessárias refletir sobre mudanças
profundas nas relações sociais, políticas e econômicas. As instituições são apenas
a materialização da estrutura social ou uma forma de socialização em que o ra-
cismo é um dos ingredientes orgânicos, tratando a pesquisa de forma mais direta,
existem instituições racista porque a sociedade é racista. (RIBEIRO; ALMEIDA,
2019, p. 34).
Quanto ao racismo ambiental, seria difícil defini-lo com base em o próprio
conceito de racismo, mas para chegar a um acordo fundamentado sobre o assun-
to, buscaram-se fundamentos teóricos em diversas disciplinas a fim de chegar a
um conceito desenvolvido sobre o assunto. (BARROS, 2019, p.51) O tema, agora
transportado da geografia para o desenvolvimento urbano, tem responsabilidade

367
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

por unir teorias de diferentes áreas em torno do problema a população que se


conecta para entender relações e conflitos sobre espaço e poder que levam ao
racismo ambiental, envolvendo o Estado, o território e o espaço público para
interpretar os mecanismos de um poder que cobre questões que diferenciam pes-
soas e lugares (BARROS, 2019, p. 52).
Localizada em áreas urbanas, em morros e margens de rios sem ou com
infraestrutura mínima, habitada por pessoas pobres de origem étnica, principal-
mente preto. Contudo, não é uma das tarefas mais difíceis de entender a olho nu,
a cor da pele humana e comprovar a afirmação com dados estatísticos que sem-
pre traz aquele dado alarmante sobre a cor que predomina no sistema prisional
brasileiro (BARROS, 2019, p. 52).
Nesse sentido, é legitimado por forças militares, judiciais e governamen-
tais, que diferentes aspectos do racismo estão surgindo, incluindo o racismo am-
biental que se ergue desde práticas políticas que afetam diretamente os negros
até questões estruturas políticas e culturais, estruturadas por estados, já mencio-
nados nessa pesquisa (BARROS, 2019, p. 54). Além disso, tal questão ser vista
sobre os mais pobres e privados de grupos étnicos a energia cai desproporcional-
mente, a maioria dos riscos ambientais são socialmente induzida, seja no proces-
so de extração de recursos naturais ou na disposição resíduos no meio ambiente
(ACSELRAD et al., 2009, p. 12 apud BARROS, 2019, p. 54).
As interações dos humanos entre si e com o meio ambiente, incluindo
questões naturais e biológicas que afetam as populações (como epidemias, ta-
xas de natalidade e mortalidade, doenças), tornaram-se políticas e decisórias, ou
seja, fatores não apenas populacionais. (ABREU, 2013). Para Michel Foucault:
[...] trata-se de um conjunto de processos como a proporção dos nascimen-
tos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população,
etc. São esses processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade que,
justamente na segunda metade do século XVIII, juntamente com uma por-
ção de problemas econômicos e políticos [...], constituíram, acho eu, os
primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle dessa biopolítica
(FOUCAULT, 2005, p. 289 apud ABREU, 2013, online).

Atualmente, em território brasileiro, além da chantagem do ponto de vista


de condições socioeconômicas e de trabalho, isso pode ser verificado nos locais
em que as populações estão sujeitas a maiores pressões ambientais. Assim, os in-
divíduos e as empresas, também, se beneficiam de outros elementos que influen-
ciam a decisão da população a se revoltar ou não contra tais empreendimentos.
Conforme o conceito de responsabilidade social corporativa se espalha, visto que
muitos agentes industriais eles estão localizados em áreas empobrecidas, as enti-
dades econômicas procuram em troca da população, por exemplo, construção de
creches, escolas e centros de saúde (ALMEIDA; PIRES; TOTTI, 2015).

368
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Então, esses serviços essenciais estão em risco, visto que o Estado não os
tornou capazes de desenvolvê-los nessas comunidades. Pelo contrário, os funda-
mentos do movimento, a fim de avaliar se determinados conceitos, após a ade-
quação, podem ajudar a analisar a problemática do ambiente sociopolítico bra-
sileiro, a partir dele, se atentar às peculiaridades (ALMEIDA; PIRES; TOTTI,
2015).
Apesar dos diferentes processos de colonização, é certo que o Brasil estava
sob forte influência política e legal dos Estados Unidos, após a Independência co-
lonial. Sendo assim, os grupos ambientais negros da América do Norte surgiram
das organizações comunitárias já estabelecidas, como a Igreja e outras formas
de associações, voluntários que optaram por enfrentar a discriminação racial e a
injustiça social (ALMEIDA; PIRES; TOTTI, 2015).
Os discursos dos movimentos ecológicos, principalmente norte-america-
nos, mostraram, inicialmente, uma tendência a se concentrar quase que exclusi-
vamente na proteção de espaços naturais e de espécies animais e vegetais. Sem
embargos, o tratamento conferido ao homem foi de um perigoso predador que
deve ser mantido afastado dos recursos ou simplesmente como outra espécie,
desprovida de qualquer tipo. De uma perspectiva diferente, a natureza emerge
como uma questão de boa governança, equação de recursos, em sociedades desi-
guais, grupos racialmente discriminados e populações de baixa renda em suma,
grupos vulneráveis ​​e marginalizados suportam o maior fardo de danos ambien-
tais causados pelo
​​ desenvolvimento (SILVA, 2012).
O desenvolvimento de um crescimento econômico desigual é propício a
problemas ambientais e culturais que afetam diretamente os povos marginaliza-
dos que vivem com a degradação ambiental progressiva em busca de meios de
sobrevivência, bem como as populações tradicionais que prosperam sem opor-
tunidades de emprego. Assim, um modelo que une terra e economia, caracteri-
zadas pelo desenvolvimento de uma monocultura, principalmente de eucalipto,
que requer reservas abundantes de água e nutrientes, causando o esgotamento do
solo (SILVA, 2012).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da abordagem apresentada, denota-se que o modelo econômico


atual gera injustiças em uma sociedade baseada na lógica colonial e imperialis-
ta, o que agrava as questões envolvendo o desnível social, no tocante ao acesso
aos direitos fundamentais, e normaliza o racismo ambiental. O aspecto racial
do problema é frequentemente negligenciado por causa de outros parâmetros e
problemas vistos como mais urgentes, como o acesso ao emprego e o combate às
desigualdades sociais. Contudo, o que não se pode ignorar é que, de acordo como

369
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

desenvolvimento da sociedade brasileira, o acesso à cidade e ao meio ambiente


urbano se tornou ainda mais agravado, o que influenciou, de maneira direta,
para que questões sociais emergiram e a marginalização de grupos racializados
ganhasse contornos normalizados.
Para investigar a injustiça ambiental, é necessário realizar pesquisas que
levem em consideração o grau de igualdade geográfica e a presença da hiperperi-
feria no país. De igual modo, é, também, imperativo que notícias e pesquisas so-
bre danos ambientais levem em consideração o fator racial das populações mais
atingidas. Neste aspecto, os conflitos ambientais ocorridos nos centros urbanos
não são os últimos problemas a serem enfrentados em uma agenda política guia-
da por interesses econômicos; ao contrário, aludidos problemas têm se tornado
cada vez mais intensos e se projetam pelos mais diversos âmbitos, reclamando
uma abordagem complexa e multifacetada.
Assim, o debate que envolve a concepção de racismo estrutural perpassa,
historicamente, no processo de fortalecimento das classes hegemônicas e que
constituíram a elite brasileira. Repensar a temática, a partir de uma lente mais
crítica, traz à baila a favelização e o comprometimento do acesso ao meio am-
biente urbano ecologicamente equilibrado como desdobramentos de uma políti-
ca que institucionaliza e replica a fragilização do tecido social.

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372
DA ELABORAÇÃO SIMBÓLICA À PRÁTICA
DISCRIMINATÓRIA: O RACISMO
INSTITUCIONAL E ESTRUTURAL
Anselma Garcia de Sales1
Airton Pereira Junior2

INTRODUÇÃO

O entendimento da discriminação racial e do racismo requer uma busca


às raízes históricas, a fim de que compreendamos de que forma esses conceitos
se manifestam na atualidade de forma tão intensa ao ponto de serem respalda-
dos pela institucionalidade pública ou privada. Iniciemos então essa busca his-
tórica a partir da abordagem simbólica fornecida pela herança judaico-cristã,
em que a gênese do racismo estaria na narrativa bíblica sobre a descendência
de Noé.
Nesse relato mitológico fornecido pelas sagradas escrituras, os filhos do
patriarca, Jafé, Sem e Cam, seriam os ancestrais da raça branca, amarela e ne-
gra, respectivamente. Consta no primeiro livro do Pentateuco que Noé, ao ser
desrespeitado pelo seu filho Cam, amaldiçoou este ascendente da raça negra
com a sina de que seus descendentes seriam escravizados pelos descendentes
de seus irmãos pertencentes a outras raças. Daí, a partir dessa maldição, al-
guns sistemas ideológicos e políticos explicam e endossam o racismo contra os
negros.
Desse modo, diversos conflitos que se originaram motivados pela diferen-
ça entre as raças encontraram seu fundamento nessa simbologização3 oferecida
pela bíblia e, à medida que a história avança, essa visão racista se sofistica para
justificar a tomada de territórios e a subjugação de povos. Assim aconteceu na

1 Doutora em Letras pelo Programa de Estudos Árabes, da Faculdade de Filosofia Letras e


Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. (FFLCH-USP).
2 Mestre em Educação na Área de Educação e Psicologia, da Faculdade de Educação da
Universidade Estadual de Campinas (FE-UNICAMP).
3 Estabelecemos uma diferença entre uma realidade simbólica, que o ser humano reconhece
como sendo de sua criação, e uma representação simbológica. Esta última se refere a uma
reformulação pelo imaginário de um conjunto de símbolos que passam a formar uma nova
realidade que já o ser humano não reconhece como sendo de sua própria autoria. (WED-
DERBURN, 2007, p.180)
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

instituição da escravidão negra a partir do século XVI, cujos efeitos ainda se fa-
zem presentes sob o formato de outras formas de subjugação forçadas, represen-
tadas perfeitamente na atualidade pela violência policial, de acordo com o que
a banda O Rappa expressa “Todo camburão tem um pouco de navio negreiro”4.

O RACISMO INSTITUCIONAL
O racismo manifesta-se como um julgamento prévio motivado por uma
visão de mundo coletiva como também na prática discriminatória propria-
mente dita. À primeira forma de manifestação do racismo denominamos pre-
conceito, já a que se refere à ação de segregar é chamada de discriminação
racial (MUNANGA, 2004). No entanto, quando essa prática discriminatória
é exercida por instituições públicas ou privadas a denominamos de racismo
institucional.
Assim, o racismo institucional compreende um sistema de tratamento de-
sigual baseado na raça cuja operação é exercida por organismos públicos e priva-
dos que negligenciam serviços ou impedem o acesso equitativo de determinados
grupos raciais a direitos fundamentais.
O conceito de racismo institucional foi elaborado pelos militantes do
Partido Panteras Negras, Stokely Carmichael e Charles Hamilton, em 1967: “A
falha coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado e profissio-
nal às pessoas por causa de sua cor, cultura ou origem étnica” (CARMICHAEL;
HAMILTON, 1967, p. 4).
Contudo, o racismo institucional é atestado pelos movimentos sociais, ins-
titutos de pesquisa públicos e privados e órgãos governamentais que produzem
indicadores que apontam disparidades motivadas pela raça constatadas nos seto-
res de saúde, educação, segurança pública, acesso à cultura, saneamento básico,
representatividade política dentre outros.
Há ainda outros fatores, como gênero, classe social e orientação sexual,
por exemplo, que se somam à raça, provocando na dinâmica social outros tipos
de vulnerabilidade. Para essa adição de fatores que atuam juntamente com o ra-
cismo institucional damos o nome de interseccionalidade, conceito proposto pela
intelectual americana Kimberly Creenshaw:
A associação de sistemas múltiplos de subordinação tem sido descrita de
vários modos: discriminação composta, cargas múltiplas, ou como dupla
ou tripla discriminação. A interseccionalidade é uma conceituação do
problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas
da interação entre dois ou mais eixos de subordinação. Ela trata espe-
cificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão

4 O RAPPA. Todo camburão tem um pouco de navio negreiro. O Rappa. São Paulo. Warner
Music, 1994.
374
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas


que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes
e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações
e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais ei-
xos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento
(CREENSHAW, 2002, p. 177).

A interseccionalidade permite compreender as diversas variáveis ineren-


tes ao racismo institucional, de modo a desvendar a complexidade das práticas
discriminatórias e a partir destas permitir a elaboração de mecanismos efetivos
de combate às iniquidades, que se traduziram em políticas públicas e dispositi-
vos legais que visam à correção das disparidades decorrentes da raça somadas a
outros fatores.
Mencionaremos a seguir exemplos de racismo institucional constata-
dos na área da saúde, segurança pública e educação bem como os meios ins-
tituídos pelo estado para combater as desigualdades raciais inerentes a esses
setores.

OS EFEITOS DO RACISMO INSTITUCIONAL NA SAÚDE DA


POPULAÇÃO NEGRA

A atuação do racismo institucional sobre a saúde da população negra pode


ser atestada através do reconhecimento das barreiras pessoais, familiares e estru-
turais que impedem o acesso e a utilização permanente dos serviços de saúde
relativos à prevenção e tratamento de enfermidades.
Os critérios familiares e pessoais relacionam-se aos hábitos de vida e à
cultura de assumir atitudes preventivas ou reparadoras no âmbito da saúde. Já
as barreiras estruturais compreendem critérios financeiros, educacionais, territo-
riais e políticos que impedem o acesso de negras e negros aos serviços básicos e
complexos de saúde.
Os autores Cooper, Hill e Powe (2002) desenvolveram um modelo esque-
mático com o objetivo de auxiliar a análise e a consequente intervenção acerca
das barreiras restritivas impostas à comunidade negra no quesito saúde (figura
1). Desse modo, a partir desse modelo, são reconhecidas as falhas de distribui-
ção, organização e a adequação dos serviços de saúde com recorte racial e a
respectiva necessidade de intervenção e formulação de políticas públicas para
a correção das iniquidades constatadas nessa relação entre raça e sistema de
saúde.

375
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(O rganizadores )

Figura 1 – Barreiras e mediadores da atenção em saúde para equidade racial e étnica, 2002.

Fonte: COOPER, HILL E POWE, 2002.

Apesar de os mecanismos de análise do racismo institucional na área da


saúde terem sido desenvolvidos por intelectuais e institutos de pesquisa, a cons-
tatação efetiva desse problema surge dos movimentos sociais organizados que
demandaram fora das instituições políticas públicas para suprimir as dificuldades
que a população negra enfrenta há muito tempo no acesso à saúde.
Assim, a partir da organização de grupos de trabalho e conferências para
tratar da temática, foi instituída uma Política Nacional de Saúde da População
Negra fundada sob as seguintes bases:
• Produção do conhecimento científico – organização do saber disponível
e produção de conhecimentos novos, de modo a responder a dúvidas per-
sistentes e dar consequência à tomada de decisões no campo da saúde da
população negra.
• Capacitação dos profissionais de saúde – promoção de mudanças de
comportamento de todos os profissionais da área de saúde, através da for-
mação e treinamento adequados para lidar com a diversidade da sociedade
brasileira e com as peculiaridades do processo saúde/doença da população
negra.
• Informação da população – disseminação de informação e conhecimento
sobre potencialidades e suscetibilidades em termos de saúde, de modo a
capacitar os afrodescendentes a conhecer seus riscos de adoecer e morrer,
e facilitar a adoção de hábitos de vida saudável e a prevenção de doenças.
• Atenção à saúde – inclusão de práticas de promoção e educação em saú-
de da população negra nas rotinas assistenciais e facilitação do acesso em
todos os níveis do sistema de saúde (Sistema das Nações Unidas, 2001, p.
8, apud WERNECK, 2016, p. 538).

Como recorte dentro da temática da saúde da população negra, a análise


de estudos acerca da saúde da mulher negra aponta para uma dimensão intersec-
cional na qual se constatam vulnerabilidades provocadas pelo racismo que são

376
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

ainda maiores, no que se refere ao acesso e à forma como os serviços de saúde


são aplicados às mulheres negras.
Um desses estudos, realizado por um grupo de pesquisadores da
Universidade de Brasília (UnB), analisou a política Rede Cegonha instituída pelo
Ministério da Saúde em 2011. Essa política abrange uma iniciativa multidiscipli-
nar que garante às mulheres o acesso ao planejamento reprodutivo e à assistência
permanente em ações relativas à saúde de mães e crianças, buscando garantir a
segurança no atendimento desde o pré-natal até o parto e nascimento. Assim,
através da ouvidoria ativa desde programa, o estudo fez um levantamento dos
dados relativos à raça/cor, em que foram considerados apenas os partos ocor-
ridos de março a dezembro de 2012. Desse modo, esse levantamento constatou
diferenças no acesso e no atendimento:
Na assistência ao pré-natal, as mulheres de raça/cor preta/parda tiveram
maiores proporções de gravidez não planejada e de utilização da rede públi-
ca, e menores proporções no número de consultas preconizado pela Rede
Cegonha, de internações por complicações na gravidez no SUS; proporção
menor recebeu informações sobre o parto normal e informações sobre o
local do parto. Na assistência ao parto, elas encontraram mais dificuldades
quando procuraram atendimento no primeiro serviço de saúde, esperaram
mais tempo para serem atendidas, foram as que menos tiveram acompa-
nhantes na hora do parto e tiveram mais partos normais. Embora nem to-
dos esses dados indiquem piores condições (por exemplo, serem usuárias
do SUS, ou proporção maior partos normais), é importante constatação de
que há diferenciais por raça/cor na assistência. Proporção menor com o
número de consultas preconizado pode ser reflexo da desigualdade socioe-
conômica; proporção menor com informações sobre parto normal e local
de parto pode refletir rotinas dos serviços e não sinais de discriminação,
assim como a peregrinação e maior tempo de espera. Todavia, a maior
dissonância dos dados com as diretrizes encontra-se na assistência ao parto
(THEOPHILO et al, 2018, p. 3511-3512)

Diversos outros estudos têm apontado que o cruzamento de fatores como


renda, trabalho, saneamento e escolaridade se refletem diretamente na saúde da
mulher negra (IPEA, 2011). Constata-se, portanto, o quanto são importantes
políticas de saúde específicas que considerem a abordagem interseccional entre
gênero e raça, como mecanismo de correção das desigualdades.
Apesar dos avanços relativos à organização social e a consequente for-
mulação de políticas públicas sobre a temática da Saúde da População Negra,
intensas mobilizações sociais e institucionais necessitam ser feitas diante do sis-
temático desmonte do estado promovido pela extrema-direita, assumidamente
racista, que assumiu o poder no país a partir de 2019.
Desde o golpe jurídico-parlamentar que depôs a presidenta Dilma
Rousseff, em 2016, retrocessos na área de saúde, segurança pública, educação
e economia vêm sendo sentidos pela classe trabalhadora e, especificamente, a
377
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

população negra têm sido alvo do sucateamento mais intenso das políticas so-
ciais, cujos efeitos a atingem sob a forma de desemprego, perda do poder aqui-
sitivo, diminuição da cobertura de saúde por parte do estado, e, sobretudo como
alvo preferencial da violência do estado, tanto sob o formato de encarceramento
quanto pelo seu extermínio.

SEGURANÇA PÚBLICA E POPULAÇÃO NEGRA

Os dados relativos à segurança pública têm apontado nos últimos anos um


intenso aumento no número de homicídios da população negra e jovem. Esses
mesmos dados também apontam uma diminuição nessa vitimologia quando
considerada a população branca (figura 2).

Figura 2 – Taxas de homicídios de negros e não negros a cada 100 mil habitantes dentro
destes grupos populacionais – Brasil (2007-2017)

Fonte: ATLAS DA VIOLÊNCIA 2019, p. 49.

A negação à população negra de uma política de segurança pública que


cumpra sua missão efetiva de proteger o cidadão é resultante, sobretudo, da cri-
minalização dos territórios em que há um número expressivo de negras e negros,
atingindo preferencialmente a população jovem negra.
O jovem negro, enquanto alvo preferencial da violência policial, é visado
por conta de uma simbologia de base colonial que associa corpos negros ao pe-
rigo, à criminalidade e à promiscuidade, necessitando, segundo essa estereotipa-
gem, de um corretivo social e moral:
O objetivo do discurso colonial é apresentar o colonizado como uma po-
pulação de tipos degenerados com base na origem racial de modo a jus-
tificar a conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução
[...]. Portanto, apesar do “jogo” no sistema colonial que é crucial para seu
exercício de poder, o discurso colonial produz o colonizado como uma

378
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

realidade social que é ao mesmo tempo um “outro” e ainda assim inteira-


mente apreensível e visível (BHABHA, 2003, p. 111).

No que se refere ao território, constata-se o racismo institucional na pre-


sença intensiva, sobretudo nas periferias das grandes cidades, do que se conven-
cionou chamar de Estado Penal. De acordo com esse conceito, políticas letais de
segurança pública são justificadas como forma de contenção dos efeitos “proble-
máticos” da pobreza, em que a necessidade de controle dos excluídos se torna
fundamental à manutenção da ordem, segundo Marielle Franco:
Misturar a complexidade do Estado, objeto de disputa por diversos atores,
a um cenário marcado por políticas inacabadas, de atendimentos precários
em toda a rede de assistência social, a uma tecnologia criminal pautada na
guerra, é um resultado perfeito para a construção de um ambiente favorável
ao crescimento e fortalecimento do Estado Penal. Modelo que atua para
além do aspecto repressivo, ao ser combinado com o conjunto de fatores
promovidos pela etapa neoliberal, que criou outro ambiente de controle,
adequado para ser implementado e reproduzido com sutilezas e interfaces
para o controle dos chamados “pobres problemáticos”. É isto que está em
jogo.
Na substituição de políticas sociais que apostem em investimentos no cam-
po dos direitos, abre-se uma política que fortalece o Estado Penal, com
o objetivo de conter os que se encontram à margem ou “excluídos” do
processo, formados por uma quantidade significativa de pobres e negros,
cada vez mais colocados nos guetos das cidades (FRANCO, 2014, p. 40-41)

O Estado então, transforma-se em uma máquina de guerra contra a po-


pulação periférica, alvo do extermínio e refém do conflito territorial que diaria-
mente vítima trabalhadores, crianças e moradores, agindo também esse Estado
Penal na condenação à morte de bandidos e “supostos” criminosos que se encon-
tram em permanente confronto com os agentes da lei. A essa atuação do Estado
Mbembe (2016) denomina de Necropolítica:
Mecanizada, a execução em série transformou-se em um procedimento
puramente técnico, impessoal, silencioso e rápido. Esse processo foi, em
parte, facilitado pelos estereótipos racistas e pelo florescimento de um ra-
cismo baseado em classe que, ao traduzir os conflitos sociais do mundo
industrial em termos raciais, acabou comparando as classes trabalhadoras
e os “desamparados pelo Estado” do mundo industrial com os “selvagens”
do mundo colonial (MBEMBE, 2016, p. 129.)

A Necropolítica e o Estado Penal representam as novas formas de escra-


vidão moderna, constatada também, para além dos indicadores de extermínio
da juventude negra, no sistema prisional, em que o Brasil nos últimos três anos
alcançou de quarta para a terceira posição entre a maior população carcerária
do mundo que, assim como a violência policial, atinge prioritariamente jovens
negros, como se observa na figura 3:

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Figura 3 – Raça e Idade da População Carcerária no Brasil.

Fonte: LEVANTAMENTO NACIONAL DE INFORMAÇÕES PENITENCIÁRIAS,


2019, p. 30-32.

A principal política pública federal para prevenção e diminuição da violên-


cia entre a juventude periférica era denominada de Juventude Viva, no entanto,
nos últimos anos, com a ascensão do conservadorismo no Brasil, essa política foi
substancialmente enfraquecida com a quase total eliminação do aparato institu-
cional que garantia a sua viabilização. Assim, dada a dificuldade de operação
dos Conselhos de Juventude e a impossibilidade de aplicação do Estatuto da
Juventude, a juventude negra e periférica continua engrossando as tristes estatís-
ticas de morte e encarceramento.
Assim, diante desse desmonte das políticas efetivas de segurança pública
que cedem lugar à necropolítica, vão aumentando exponencialmente os casos de
homicídios de jovens negros provocados pelo estado. O homicídio do jovem João
Pedro, de 14 anos, ocorrido em 18 de maio de 2020 no Rio de Janeiro, causou
uma perplexidade mundial, dada a irregularidade da ação policial. O jovem foi
alvejado por tiros disparados por policiais que invadiram sua casa sob a alegação
de que bandidos haviam adentrado no local. Além da morte de João Pedro ter
ocorrido dentro de sua própria casa, os policiais levaram o corpo do adolescente
no helicóptero da corporação sem dar informação alguma à família, que só con-
seguiu encontrá-lo após 18 horas de sucessivas buscas em hospitais e necrotérios.
O caso João Pedro, e infelizmente tantos outros que ocorreram antes e
após esse assassinato, demonstra o despreparo do estado no combate à crimina-
lidade ao mesmo tempo em que comprova a disposição letal que a polícia possui

380
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

em atingir os corpos negros que não se encontram seguros nem mesmo dentro
de suas próprias residências.

EDUCAÇÃO E POLÍTICAS PARA AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Outro campo em que o racismo institucional se faz muito presente é a


área educacional, em que pese a legislação acerca da inclusão da temática étni-
co-racial no ensino e na formação de professores (Lei 10.639/03), ainda é muito
presente o apagamento dessa temática bem como sua distorção, manifesta atra-
vés de práticas pedagógicas preconceituosas influenciadas por visões de mundo
racistas.
Assim, essas práticas reprodutoras do racismo muitas vezes são difíceis
de serem identificadas como também punidas pela instituição escolar, uma vez
que se sustentam numa sistemática cultura de discriminação que faz da escola
o espelho da sociedade, ao reproduzir de maneira “natural” sua compreensão
embranquecida de mundo. Desse modo, o currículo, os conteúdos e os sujeitos,
professoras e professores, desconsideram nas práticas pedagógicas a diversidade
étnico-racial (FEITOSA, 2012).
Esse apagamento se traduz naquilo que CARNEIRO (2019) define como
epistemicídio, que é a negação do conhecimento produzido pelos grupos subme-
tidos à dominação, na qual se nega também a possibilidade de esses membros se
constituírem enquanto sujeitos de conhecimento, uma vez que estão aprisiona-
dos a um permanente instrumento de dominação e controle em função de sua
raça/etnia.
Contudo, o epistemicídio promove também o apagamento e o silencia-
mento da percepção da tensão racial existente na sociedade e na escola, fato que
torna a abordagem do preconceito e do racismo muito limitada, impedindo desse
modo a formação de uma visão crítica sobre a temática por parte das crianças
(CAVALLEIRO, 2003).
Desse modo, as práticas pedagógicas racistas têm como resultado a exclu-
são do estudante negro da escola, já que este, ao ser submetido aos mecanismos
brandos e aparentemente discretos que levam ao fracasso escolar (descaso, repe-
tência e sanções disciplinares) se torna alvo preferencial da inconsistência e da
insensibilidade do tratamento da desigualdade racial no ensino (ROSEMBERG,
1987). Essa exclusão ainda se faz muito presente nos dados de evasão do Ensino
Médio, que impactarão os dados que apontam a presença de jovens negras e
negros no Ensino Superior, que em comparação com a presença de estudantes
brancos, se constata metade de estudantes negros nesse nível de ensino, confor-
me demonstra a figura 4 abaixo:

381
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Figura 4: Jovens de 18 a 24 anos no Ensino Superior.

Fonte: IBGE: Síntese de Indicadores Sociais, 2019, p.23.

Por essa razão, o objetivo primordial da Lei 10.639/03 é propiciar que


no âmbito da educação haja o reconhecimento das contribuições que africanos e
afrodescendentes promoveram ao repertório de conhecimentos que compuseram
a cultura brasileira, assim, além da necessidade de formação de professores para
que incluam no ensino a perspectiva das africanidades, a educação das relações
étnico-raciais também se propõe a incluir a discussão sobre o racismo e seus efei-
tos nas relações sociais:
Não podemos acreditar numa relação de causa e efeito entre o preceito le-
gal e a realidade social e educacional. Por mais avançada que uma lei possa
ser, é na dinâmica social, no embate político, nas relações de poder, no co-
tidiano da escola e do currículo escolar que ela tende a ser concretizada ou
não. E, no caso do Brasil, a realidade social e educacional é extremamente
complexa, conflituosa, contraditória e marcada pela desigualdade social e
racial. Para que o conteúdo dessa lei se efetive, será necessário que a igual-
dade social e o respeito às diferenças se transformem em práticas efetivas,
em mudanças visíveis, e numa postura ética e profissional dos educadores
de todo e qualquer pertencimento étnico-racial (GOMES, 2006, p.33).

Como medida para aplicação da lei 10.639/03, em 2009 foi instituído


o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana, que estabeleceu diversas ações relativas ao ensino e
formação de professores na temática. No entanto, o Plano é falho ao não propor
metas efetivas para a implementação das Diretrizes Curriculares:
O Plano atribui responsabilidades e competências e também resgata o ar-
cabouço legal que embasa a educação das relações étnico-raciais. Entre as
atribuições do governo federal, o plano estabelece diversas ações.

382
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Uma questão importante para se realizar qualquer avaliação sobre as ações


que versam sobre educação das relações étnico-raciais é que nenhum dos
instrumentos legais que estabelecem a atuação federal instituiu uma meta
que definisse a partir de qual momento a implementação da educação das
relações étnico-raciais será cobrada ou avaliada.
Dessa forma, não há no referido plano um horizonte com parâmetros de
implementação, ou um prazo para que todos os professores estejam aptos
a ministrar o conteúdo, ou ainda uma estimativa para que todos os livros
comprados pelas escolas tenham esses conteúdos (NEGREIROS, 2017, p.
84)

Apesar da não definição de metas específicas relativas ao tempo e ao con-


teúdo do ensino e da formação de professores, diversos editais foram lançados
pelo governo federal, entre os anos 2004 a 2015, no intuito de fomentar progra-
mas de formação e produção de conteúdo sobre a temática, ficando a maior par-
te da execução desses programas a cargo da SECADI (Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão), órgão do Ministério da
Educação. Prefeituras e algumas unidades federativas também lançaram progra-
mas para implantação das Diretrizes Curriculares, porém cada uma delas definiu
sua própria linha de ação.
Contudo, a mais evidente impossibilidade de continuidade da aplicação
da Lei 10.639/03 foi a recente extinção da SECADI (por meio do Decreto nº
9.465, de 2 de janeiro de 2019) e o aparelhamento ideológico conservador da
Fundação Cultural Palmares, importante órgão federal que atuou na produção
de conteúdos temáticos formativos, como o projeto “A Cor da Cultura”.
Algumas iniciativas governamentais e outras mantidas pela sociedade civil
e universidades para formação de professores e produção de material na temática
das relações étnico-raciais ainda existem, no entanto, a maior parte delas sem
o respaldo efetivo do estado, contribuindo para que o racismo institucional no
âmbito da educação não seja combatido.

RACISMO ESTRUTURAL E DISCRIMINAÇÃO HISTÓRICA


O racismo institucional, entretanto, consiste numa forma de racismo pra-
ticada pelas instituições que estabelecem entraves para que negras e negros aces-
sem direitos fundamentais.
Sendo assim, é possível afirmar então, que o racismo institucional ocorre
por ser o racismo um fenômeno estrutural, ou seja, é inerente ao funcionamento
político e econômico da sociedade de forma inquestionável. Desse modo, não se
configura como uma anomalia ou “doença social”, o racismo “simplesmente” se
apresenta em todas as formas de relações sociais contemporâneas que estabele-
cem hierarquias de acordo com a raça.

383
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou


seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, eco-
nômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem
um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos in-
dividuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo
racismo é regra e não é exceção. O racismo é parte de um projeto social
que ocorre “pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição”.
Nesse caso, além de medidas que coíbam o racismo individual e institucio-
nalmente, torna-se imperativo refletir sobre mudanças profundas nas rela-
ções sociais, políticas e econômicas (ALMEIDA, 2019, p. 50).

Desse modo, considerando que o racismo materializa-se nas estruturas


econômicas e políticas da sociedade, determinando assim seu funcionamento, é
possível, por isso, afirmar que o racismo estrutural se apresenta como um proces-
so político e um processo histórico.
Como processo político pressupõe-se que o racismo depende do sistema
político para o exercício do poder que irá subjugar determinado grupo racializa-
do. Assim, a formação desse sistema político encontra suas bases na constituição
primordial da sociedade brasileira, cuja estrutura colonial, a fim de garantir sua
manutenção e funcionamento, lançou mão de instrumentos repressivos através
da força e da elaboração simbólica de ideais de inferiorização. Desse modo, a
violência física contra indígenas e negros foi sistematicamente reforçada por uma
ideologia que estabelecia que a diferença entre colonizador e colonizado corres-
pondia às determinantes de superioridade e inferioridade:
A desvalorização do negro colonizado não se limitará apenas a esse racis-
mo doutrinal, transparente, congelado em idéias, à primeira vista quase
sem paixão. Além da teoria existe a prática, pois o colonialista é um ho-
mem de ação que tira partido da experiência. Vive-se o preconceito cotidia-
namente. Conjunto de condutas, de reflexos adquiridos desde a primeira
infância, valorizado pela educação, incorporou-se o racismo colonial tão
naturalmente aos gestos, às palavras, mesmo as mais banais, que ele parece
constituir uma das mais sólidas estruturas da personalidade colonialista.
Neste sentido, o esforço constante do colonizador em mostrar, justificar
e manter, tanto pela palavra quanto pela conduta, o lugar e o destino do
colonizado, se parceiro no drama colonial, garante, portanto, o seu próprio
lugar na empresa. Ora, a análise da atitude racista revela três elementos
importantes já presentes no discurso pseudocientífico justificador que aca-
bamos de ver: descobrir e pôr em evidência as diferenças entre colonizador
e colonizado, valorizá-las, em proveito do primeiro e em detrimento do
último e levá-las ao absoluto, afirmando que são definitivas, e agindo para
que assim se tornem (MUNANGA, 1988, p. 12).

Nesse sentido, seria impraticável o “racismo reverso”, uma vez que grupos
submetidos à dominação daqueles que detém o poder não possuem condições
objetivas de controlar os sistemas político e econômico que estruturam o racismo.
O racismo é um processo político. Político porque, como processo sistêmico

384
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

de discriminação que influencia a organização da sociedade, depende de


poder político; caso contrário seria inviável a discriminação sistema de
grupos inteiros. Por isso, é absolutamente sem sentido a ideia de racismo
reverso. O racismo reverso seria uma espécie de “racismo ao contrário”, ou
seja, um racismo das minorias dirigido às maiorias. Há um grande equí-
voco nessa ideia porque membros de grupos raciais minoritários podem
até ser preconceituosos ou praticar discriminação, mas não podem impor
desvantagens sociais a membros de outros grupos majoritários, seja direta
ou indiretamente. Homens brancos não perdem vagas de emprego pelo fato
de serem brancos, pessoas brancas não são “suspeitas” de atos criminosos
por sua condição racial, tampouco têm sua inteligência ou sua capacidade
profissional questionada devido à cor da pele. (ALMEIDA, 2019, p. 52-53)

Já a apresentação do racismo como processo histórico extrapola a dimen-


são econômica e política, uma vez que é resultante de uma elaboração social
historicamente determinada. Assim, a formação histórica condiciona a forma
como os sistemas econômicos e políticos serão estruturados segundo as hierar-
quias raciais vigentes; sendo estas determinantes para “orientar” de que maneira
as instituições da sociedade, sejam elas públicas ou privadas, adorarão atitudes
diferenciadas para distintas realidades sociais. Este é o caso das diferentes classi-
ficações raciais existentes nos Estados Unidos e no Brasil, cujos critérios distin-
tos determinam o funcionamento dessas sociedades em termos de estratificações
enviesadas pela raça:
Os diferentes processos de formação nacional dos Estados contemporâ-
neos não foram produzidos apenas pelo acaso, mas por projetos políticos.
Assim, as classificações raciais tiveram papel importante para definir as
hierarquias sociais, a legitimidade na condução do poder estatal e as estra-
tégias econômicas de desenvolvimento. Demonstra isso a existência de dis-
tintos modos de classificação racial: no Brasil, além da aparência física de
ascendência africana, o pertencimento de classe é explicitado na capacida-
de de consumo e na circulação social. Assim, a possibilidade de “transitar”
e direção a uma estética relacionada à branquitude, e manter hábitos de
consumo característicos da classe média, pode tornar alguém racialmente
“branco”. O mesmo não acontece nos Estados Unidos, cujo processo de
classificação racial no bojo do processo de formação nacional conduziu o
país a uma lógica distinta no que se refere à construção identitária. A one
drop rule, que significa “regra de uma gota de sangue”, faz com que aqueles
com “sangue negro” sejam assim considerados. São formas distintas de
racialização, de exercício do poder e de reprodução da cultura, mas que
demonstram à exaustão a importância das relações raciais para o estudo da
sociedade (ALMEIDA, 2019, p. 56-57)

Portanto, de acordo com Almeida, a abordagem da questão racial torna-se


imprescindível para a compreensão da estrutura e do funcionamento da socie-
dade, sobretudo no que se refere aos discursos produzidos pela ideologia que,
ao naturalizar a raça e o próprio racismo, fomentam as práticas discriminatórias
vigentes nas relações sociais.
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(O rganizadores )

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A naturalização do racismo, como já ressaltamos, é decorrente de uma


ideologia racista que atribui às pessoas negras determinadas asserções acerca de
sua condição política e econômica desfavorável. Um exemplo disso é a expli-
cação dada à pouca representatividade negra nos espaços de comando ou nas
profissões liberais, explicação que atribui essa sub-representatividade à escassa
possibilidade de negras e negros ascenderem socialmente via educação, ou seja,
como a população negra tem menos acesso à educação de qualidade logo ela
terá mais dificuldades para galgar espaços de poder através de uma boa formação
escolar e depois universitária.
No entanto, tal explicação é insuficiente uma vez que desconsidera os
motivos pelos quais negras e negros não obtêm a ascensão social pelo caminho
“democrático” do conhecimento acadêmico. Daí, reside então o fato de que essa
impossibilidade se deve justamente à estrutura racista, sobretudo, a do sistema
educacional brasileiro, que confere desvantagens à pessoa negra desde a educa-
ção infantil.
Essa desvantagem é decorrente do fato de que o sistema escolar materia-
liza através de suas práticas a ideia da meritocracia, segundo a qual somente
aqueles que se esforçam conseguem vencer as dificuldades encontradas no pro-
cesso de escolarização. Assim, essa ideia do esforço pessoal nega o racismo e
contribuiu para a manutenção das desigualdades raciais, uma vez que a noção de
meritocracia reforça as disparidades raciais e dificulta a ação política para corre-
ção das distorções, sobretudo por parte do estado (ALMEIDA, 2019).

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388
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS:
PONDERAÇÕES SOBRE IDENTIDADE E
MEMÓRIA DA POPULAÇÃO NEGRA BRASILEIRA
Domingos Dutra dos Santos1
Guilherme Aguiar Gomes2
Wraydson Silva Sousa3

INTRODUÇÃO

Partindo das temáticas previstas na Lei Federal 10.639/2003, que nos di-
reciona ao ensino e inclusão do estudo da História e Cultura Afro-brasileira, este
trabalho investiga a relação entre Educação e Relações Étnico-raciais enfatizan-
do a construção da identidade da população negra. Para isso, tomamos por base
que a Educação e as Relações Étnico-raciais apresentam-se como ações sócio-e-
ducacionais de assistência direto à população afrodescendente, principalmente
por meio da promoção de políticas de ações afirmativas e pedagógicas dentro da
Educação básica.
Diante disto, é importante destacar que o Brasil é um país caracterizado
historicamente pelas relações e tensões entre europeus, africanos, os primeiros
habitantes deste território e os seus descendentes. É uma nação com grandes
recursos naturais, culturais e produção de riqueza, entretanto, essa riqueza não
apenas é insuficientemente distribuída, como também a diferentes grupos são
alocados espaços de discriminação e marginalidade em distintos setores: educa-
ção, saúde, trabalho, habitação, dentre outros, implicando diretamente nos pro-
cessos de construção de identidades coletivas e individuais.
Conservando as marcas da sociedade colonial escravista, ou aquilo que

1 Mestre em História pela Universidade Estadual do Maranhão; Integrante do Núcleo de


Pesquisa e Extensão sobre África e o Sul Global (NeÁfrica). E-mail: dutradomingos09@
gmail.com.
2 Graduando em História pela Universidade Federal do Maranhão, Bolsista de Iniciação de
Científica sob orientação do Prof. Dr. Alexandre Guida Navarro; Integrante do grupo de
estudo: Camelot – Grupo de Estudo em História Medieval (UFMA); E-mail: GuilhermeA-
[email protected].
3 Graduado em Filosofia pela Universidade Federal do Maranhão; Especialista em Língua
Portuguesa e Filosofia pela Faculdade Venda Nova do Imigrante; E-mail: wraydsonss@
gmail.com.
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

alguns estudiosos designam como “cultura senhorial” (CHAUÍ, 2013), a forma-


ção social brasileira é marcada pela composição hierárquica do espaço social
que determina a forma de uma sociedade fortemente verticalizada em todos os
seus aspectos: nela, as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas na
relação entre um superior, que manda, e um inferior que obedece.
Desse modo, consideramos que, se por um lado existiram as senzalas, os
capitães de mato, os chicotes, a cozinha da casa grande, as leis de repressão à po-
pulação negra, à sua cultura e manifestações religiosas, além de outros mecanis-
mos de subordinação e exploração; por outro lado, muitos negros e negras edifi-
caram os quilombos, não apenas como um espaço de luta pela liberdade, mas de
construção da identidade, dignidade e humanidade na luta contra a tentativa de
lhes impor a condição de objetos. Portanto, as análises desta pesquisa possuem
fundamento em reflexões no que consiste as questões étnico-raciais como um
ponto determinante dentro no processo de acerca da identidade e memória das
populações negras brasileiras.

EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E A LEI FEDERAL


10.639

A Educação das Relações Étnico-raciais configura-se como uma ação


educacional de atendimento direto à demanda da população afrodescenden-
te, por meio da oferta de políticas de ações afirmativas e pedagógicas inscritas
na Educação Básica. Pode, ainda, ser entendida como políticas de reparações,
reconhecimento e valorização da história do povo negro, cultura e identidade
associadas ao contexto de aprendizagem escolar. Esse serviço é composto por
proposição de conteúdo curricular de abrangência das dimensões históricas, so-
ciais e antropológicas inerentes à realidade brasileira, através de ações de refor-
mulação pedagógica que possam ressignificar o processo de aprendizagem dos
estudantes, sobretudo da população negra, por meio do reconhecimento identi-
tário e da valorização sociocultural. No âmbito social, a Educação das Relações
Étnico-raciais atua como estratégia de combate ao racismo e às violências de
caráter epistemológico.
Ciente das desigualdades e discriminação que atingem a população negra,
convicto de sua função mediadora entre o Estado, sistemas de ensino e deman-
das da população na sua diversidade social, étnico-racial, o Conselho Nacional
de Educação (CNE) interpretou as determinações da Lei nº 10.639/2003, que in-
troduziu na Lei nº 9.394/1996 – das Diretrizes e Bases da Educação Nacional – a
obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. E, ao
orientar a execução das referidas determinações, colocou, no cerne dos posicio-
namentos, recomendações, ordenamentos e educação das relações ético-raciais.

390
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Dessa forma, configurou uma política curricular que toca o âmago do convívio,
trocas e confrontos em que têm-se educado os brasileiros de diferentes origens
étnico-raciais, particularmente descendentes de africanos e de europeus, com ní-
tidas desvantagens para os primeiros (HENRIQUES, 2005, p. 12).
Em 9 de janeiro de 2003, a Lei Federal 10.639, sancionada pelo então
presidente Lula, determinava a inclusão do estudo da “História e Cultura Afro-
Brasileira” nos currículos das redes de ensino brasileiras. No ano seguinte, o
Conselho Nacional de Educação aprovou as “Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana”. Além disso, foram promovidas alterações
na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que passou a contar
com mais dois artigos, transcritos a seguir, que impactam direta e indiretamente
o ensino de História.
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino mé-
dio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da História e Cultura
Afro-Brasileira e indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
Parágrafo 1º  - O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá
diversos aspectos da História e da Cultura que caracterizam a formação
da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o
estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos
indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o ín-
dio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições
nas áreas social, econômica e política, pertinentes à História do Brasil.
(Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
Parágrafo 2º - Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira
e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o cur-
rículo escolar, em especial nas áreas de educação Artística e de Literatura e
História Brasileiras. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como
‘Dia Nacional da Consciência Negra’. (Incluído pela Lei nº 10.639, de
9.1.2003) (BRASIL, 1996).
Desde o início da vigência da Lei nº 10.639, em 2003, a temática afro-bra-
sileira se tornou obrigatória nos currículos do ensino fundamental e médio. No
entanto, a maioria dos alunos ainda não conhece a contribuição histórico-social
dos descendentes de africanos ao país. A Lei torna obrigatória a inclusão do
ensino da História da África e da Cultura Afro-Brasileira nos currículos, deven-
do ser compreendida como uma vitória das lutas históricas empreendidas pelo
Movimento Negro em prol da educação.
Assim, a introdução dos estudos de História da África nos meios acadêmi-
cos e escolares brasileiros não representa apenas um acerto de contas com uma
malfadada consciência europeia acerca da exploração do continente africano nos
últimos séculos. Muito menos para diminuir a culpa dos dominadores por suas
práticas escravistas. O conhecimento da História da África é condição para o
391
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

entendimento da formação da sociedade brasileira e a continuidade das lutas e


resistências dos povos da África e dos africanos escravizados. Além de represen-
tar a esperança na construção de uma educação para a diversidade.
O processo de educar as relações entre pessoas de diferentes grupos Étnico-
Raciais tem início com mudanças no modo de se dirigirem umas às outras, a fim
de que desde logo se rompa com sentimentos de inferioridade e superioridade,
se desconsiderem julgamentos fundamentados em preconceitos, deixem de se
aceitar posições hierárquicas forjadas em desigualdades raciais e sociais.
Segundo Regina Claro (2012) a ausência de estudos sobre África e os afro-
descendentes contribuiu para a criação de uma série de estereótipos que dificul-
tou a construção de uma identidade positiva sobre as nossas origens e permitiu
a formulação de hipóteses preconceituosas e desinformadas, criando uma profu-
são de ideias equivocadas e reforçando uma visão eurocêntrica acerca do passa-
do, além disso, a autora ressalta ainda que:
O conhecimento da História da África é condição para o entendimento da
formação da sociedade brasileira. As tecnologias, costumes, culturas, estru-
turas políticas, econômicas e sociais trazidas pelos africanos não são devi-
damente reconhecidos e integrados à História do Brasil. Nossa formação,
via de regra, apresenta-se reduzida a uma extensão da história europeia
com pinceladas exóticas das culturas indígenas e africanas. Os famigera-
dos capítulos denominados contribuições da cultura africana (capoeira, fei-
joada, samba, música, candomblé), atestam este reducionismo (CLARO,
2012, p. 09).

Esse reducionismo é decorrente das errôneas interpretações da legislação


e da ausência de formação dos professores, onde surgiram diversas publicações
resgatando a África e os afrodescendentes no Brasil. O ensino de História por
sua vez, paulatinamente vem incorporando, a partir de então, essas novas abor-
dagens. Entretanto, os livros didáticos passaram a tratar, no ensino de História,
o assunto numa perspectiva diferenciada, ora ressaltando os aspectos cruéis e
desumanizantes da escravidão, ora negando a História da África esquecendo a
heterogeneidade cultural, econômica e política do continente.
A Base Nacional Comum Curricular4 (BNCC) foi adotada como
4 A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), conforme expresso em sua terceira e de-
finitiva versão publicada em abril de 2017 e cuja introdução segue aqui ipsis litteris, “é um
documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de apren-
dizagens. essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e mo-
dalidades da Educação Básica. Aplica-se à educação escolar, tal como a define o § 1º do
Artigo 1º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei nº 9.394/1996), e
indica conhecimentos e competências que se espera que todos os estudantes desenvolvam
ao longo da escolaridade. Orientada pelos princípios éticos, políticos e estéticos traçados
pelas Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Básica (DCN), a BNCC soma-se aos
propósitos que direcionam a educação brasileira para a formação humana integral e para
a construção de uma sociedade justa, democrática e inclusiva” (BRASIL, BNCC, 2017, p.
07). A homologação da BNCC para educação infantil e ensino fundamental pelo Conselho
392
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

documento delineador. A BNCC É responsável por uma perspectiva de aprendi-


zagem que associa a compreensão de objetos de conhecimento ao desenvolvimen-
to de habilidades e competências. Sendo a Base Nacional Comum Curricular5 o
documento que define as aprendizagens essenciais a que todos os alunos devem
ter direito ao longo da Educação Básica.
A BNCC recupera dos Parâmetros Curriculares Nacionais a percepção da
alteridade, problematizando a ideia do outro para a construção de história brasi-
leira marcada pela diversidade.
A inclusão dos temas obrigatórios definidos pela legislação vigente, tais
como a história da África e das culturas afro-brasileira e indígena, deve ul-
trapassar a dimensão puramente retórica e permitir que se defenda o estudo
dessas populações como artífices da própria história do Brasil. A relevância
da história desses grupos humanos reside na possibilidade de os estudantes
compreenderem o papel das alteridades presentes na sociedade brasileira,
comprometerem-se com elas e, ainda, perceberem que existem outros re-
ferenciais de produção, circulação e transmissão de conhecimentos, que
podem se entrecruzar com aqueles considerados consagrados nos espaços
formais de produção de saber (BRASIL, 2017, p. 401).

A BNCC e os currículos estão afinados com os marcos legais na busca por


equidade na educação. A equidade leva em conta também a variedade de cultu-
ras constitutivas da identidade brasileira. E, além disso, reconhece a diversidade
de experiências que os alunos trazem para a escola e as diferentes maneiras que
eles têm de aprender.
Na BNCC o processo de ensino e aprendizagem da História no Ensino
Fundamental – Anos Finais está pautado por três procedimentos básicos, a saber:
1. Pela identificação dos eventos considerados importantes na história do
Ocidente (África, Europa e América, especialmente o Brasil), ordenando-
-os de forma cronológica e localizando-os no espaço geográfico.
2. Pelo desenvolvimento das condições necessárias para que os alunos se-
lecionem, compreendam e reflitam sobre os significados da produção, cir-
culação e utilização de documentos (materiais ou imateriais), elaborando
críticas sobre formas já consolidadas de registro e de memória, por meio de
uma ou várias linguagens.
3. Pelo reconhecimento e pela interpretação de diferentes versões de um
mesmo fenômeno, reconhecendo as hipóteses e avaliando os argumentos

Nacional de Educação (CNE) ocorreu dia 20 de dezembro de 2017 (BRASIL, 2017, p. 350)
5 A BNCC está respaldada em um conjunto de marcos legais. Um deles é a Constituição
de 1988, que, em seu Artigo 210, já determinava que: “serão fixados conteúdos mínimos
para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos
valores culturais e artísticos, nacionais e regionais”. Outro marco é a Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (Lei n. 9.394/1996), que no Inciso IV de seu Artigo 9, afirma
que cabe à União em colaboração com Estados, Distrito Federal e Municípios, estabelecer
competências e diretrizes que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo
a assegurar formação básica comum.
393
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

apresentados com vistas ao desenvolvimento de habilidades necessárias


para a elaboração de proposições próprias (BRASIL, 2017, p. 416).

O primeiro procedimento implica o uso de uma forma de registro de me-


mória cronológica, constituída por meio de uma seleção de eventos históricos
consolidados na cultura historiográfica contemporânea. A cronologia deve ser
pensada como um instrumento compartilhado por professores de História com
vistas à problematização da proposta, justificação do sentido (contido no sequen-
ciamento) e discussão dos significados dos eventos selecionados por diferentes
culturas e sociedades. O ensino de História se justifica na relação do presente
com o passado, valorizando o tempo vivido pelo estudante e seu protagonismo,
para que ele possa participar ativamente da construção de uma sociedade justa,
democrática e inclusiva.
Ademais, segundo o material de divulgação do PNLD 2020, desde 1981,
o mais destacado dos movimentos sociais de defesa dos direitos das populações
negras no Brasil já reivindicava a inserção da História da África e dos afro-bra-
sileiros nos currículos escolares, o que, por si só, evidencia sua importância nas
conquistas posteriores envolvendo legislação e Estado. Nas décadas seguintes, o
Movimento Negro manteve-se ativo e, juntamente com seus aliados da sociedade
civil, conseguiu uma grande conquista em 2003, quando, coroando uma luta de
décadas, foi promulgada a Lei n. 10.639/2003, que tornou obrigatório o estudo
da história e cultura afro-brasileira (BRASIL, 2019).
A Lei n. 11.645/2008 modificou a Lei n. 10.639/2003 e acrescentou a
obrigatoriedade de também se estudar história e cultura dos povos indígenas no
Ensino Fundamental e Médio das escolas públicas e particulares. as leis 10.639 e
11.645 são resultados da luta dos movimentos sociais por igualdade racial e uma
educação antirracista ao evidenciarem que o estudo da matriz afro e indígena é
fundamental à construção de identidades e evidencia “uma antiga reinvindica-
ção dos movimentos indígenas e negros pelo “direito à história”. O estudo dessas
temáticas contribui para a educação voltada à tolerância e ao respeito ao “outro”
e, assim sendo, é indispensável a toda população brasileira, seja ela indígena,
afro-brasileira ou não.
Vale ressaltar também que os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs,
publicados em 1996, já indicavam uma política educacional voltada para o reco-
nhecimento da pluralidade cultural, fator este que contribuiu para o estabeleci-
mento das Diretrizes curriculares nacionais para a educação da relações étnico-
-raciais e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Contudo
ainda temos um currículo engessado, fechado as possibilidades de uma real histó-
ria da África e das sociedades africanas, conteúdos essenciais para compreender
nossas origens afrodescendentes. A Educação das Relações Étnico-Raciais deve
partir do embasamento da história das sociedades africanas, que estão pautadas
394
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

ontologicamente em dois conceitos – tempo e história. É preciso conhecer e usar


a história contada pelos próprios afrodescendentes e africanos.

EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E AS POLÍTICAS


PÚBLICAS

O ensino das Relações Étnico-Raciais trouxe para a escola o debate an-


tropológico sobre o negro, tema que só passou a ganhar destaque no século XIX
com o processo de abolição da escravatura, que teve início em 1850, com a proi-
bição do tráfico negreiro, avançou com a Lei do Ventre Livre, em 1871, seguida
pela Lei dos Sexagenários, em 1885, e, finalmente, com a abolição da escravidão,
em 1888. Nesse contexto, a população negra passou a representar um problema
para as elites brancas.
A Educação das Relações Étnico-Raciais traz para a sala de aula a política
social que discute a miscigenação, o silenciamento e ocultamento dos negros,
6

as desigualdades e a violência que reverbera da colonização até os dias atuais.


A política social não deve ser analisada sob estruturas rígidas, baseadas em bi-
narismos ou desistoricização como se fossem meras maquinações de um Estado
capitalista maquiavélico ou, em sentido contrário, de conquistas absolutas da
classe trabalhadora e dos movimentos sociais.
Com a execução das políticas públicas de marca social, o Estado é apre-
sentado como neutro, protegendo os mais necessitados, e garantindo direitos so-
ciais para compensar a deficiência dos indivíduos que não conseguem competir
no mercado e/ou se inserir nas relações sociais capitalistas, garantindo igualdade
de oportunidades e protegendo o cidadão. Para tanto, o Estado capitalista busca-
ria – como características dessas políticas sociais – garantir o mínimo necessário,
assentado no indivíduo, na eliminação de barreiras ao acesso de direitos, na livre
escolha e, como princípio: a universalidade, ou seja, todos iguais perante a lei, mes-
mo sabendo que são desiguais em outros critérios: social, habitacional, educa-
cional, etc. Por essa razão, “A universalidade protetora revela-se discriminatória,
pois vale também para os favorecidos” (FALEIROS, 2009, p. 50).
A política social tem interlocução com as contradições do Estado capitalis-
ta e seus diferentes contextos, bem como com a dinâmica contraditória das clas-
ses sociais e distintos interesses, tanto no interesse das classes dominantes quanto
nas demandas das classes subalternas. O Estado, portanto, se age na reprodução do

6 Nesta perspectiva, conforme Faleiros (2009) A análise da política social implica, assim,
metodologicamente a consideração do movimento do capital e, ao mesmo tempo, dos mo-
vimentos sociais concretos que o obrigam a cuidar da saúde, da duração da vida do traba-
lhador, da sua reprodução imediata e a longo prazo. É necessário considerar também as
conjunturas econômicas e os movimentos políticos em que se oferecem alternativas a uma
atuação do Estado.
395
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

capital, também atua na esfera da ação dos movimentos sociais, qual seja: na re-
produção da força de trabalho. As funções do Estado (repressivas, ideológicas e eco-
nômicas) assumem formas institucionais e se materializam em políticas sociais,
expressando as contradições entre Estado e sociedade civil. Assim sendo, as po-
líticas sociais governamentais expressam contradições, pois na media em que as
esferas de poder buscam remediar os problemas oriundos das relações sociais,
também procuram intervir para mitigar as lutas sociais (GORENDER, 1985).
As políticas públicas sociais do Estado, assim sendo, devem ser pensadas
no conjunto do capitalismo, de seu movimento, suas contradições e conjunturas
históricas, bem como das especificidades territoriais. Elas têm ocupado lugar es-
tratégico cuja função, entre outras, tem sido reproduzir as relações sociais e de
produção no capitalismo. No processo de formação dos Estados capitalistas, as
teorias econômicas liberais consideravam o mercado como o espaço de satisfa-
ção das necessidades sociais. Aos que não conseguiam se inserir no mercado de
trabalho e nas relações sociais mercantilizadas restava, de um lado, toda uma le-
gislação repressiva; e, de outro lado, a assistência por meio de caridade, cuja fina-
lidade era tratar a malandragem, a mendicância e vagabundagem. Em oposição
a isso, as lutas e movimentos sociais são, também, responsáveis pelas mudanças
nas condições de vida dos trabalhadores. Portanto:
As políticas sociais conduzidas pelo Estado capitalista representam um re-
sultado da relação e do complexo desenvolvimento das forças produtivas e
das forças sociais. Elas são o resultado da luta de classes e ao mesmo tempo
contribuem para a reprodução das classes sociais.
Esta contradição é dissimulada pelas ideologias humanistas, progressistas
ou liberais, que apresentam estas medidas como instrumentos de igualda-
de social, de melhoramento do bem-estar, de igualdade de oportunidades
(FALEIROS, 2009, p. 46, destaque nosso).

Cabe, nesse sentido, pensar nas funções ideológicas que as políticas so-
ciais imprimem no Estado Capitalista. Uma dessas funções é assinalar o grupo
alvo das políticas sociais pelo critério da anormalidade. Isto é, sugere-se que àque-
les que não conseguem ter uma vida normal garantindo sua existência e bem-
-estar, por meio do trabalho e, inserido nas relações capitalistas, são fracassados
(FALEIROS, 2009). Acaba- se culpando o indivíduo e determinados grupos so-
ciais que se tornam responsáveis pelo seu fracasso socioeconômico. Ao mesmo
tempo em que estigmatiza, escamoteia as condições de exploração e opressão,
bem como o contexto histórico que está por trás da desigualdade que os atinge.
Em se tratando de Brasil, esse tipo de assertiva é bem precisa quando abordamos
a questão racial, como veremos nas páginas a frente. Antes, trataremos das rela-
ções entre capitalismo, questão social e racismo como fatores fundamentais na
determinação das políticas sociais públicas.
Desde o nascimento do Capitalismo que convivemos com a violência, por
396
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

que o Capitalismo é violento. Como disse Marx (2013, p. 821): “[...], lançaram
mão do poder do Estado, da violência concentrada e organizada da sociedade
para impulsionar artificialmente a transformação do modo de produção feudal
em capitalista”. Nesse processo, Marx (2013, p. 829-830) enfatiza: “Se o dinhei-
ro, [...], vem ao mundo com manchas naturais de sangue numa de suas faces, o
capital nasce escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés”.
Numa perspectiva histórica, a escravidão faz parte daquele quadro geral
de tratamento cruel imposto às classes desfavorecidas, das rigorosas leis
feudais e das impiedosas leis dos pobres, e da indiferença com que a classe
capitalista em ascensão estava “começando a calcular a prosperidade em
termos de libras esterlinas e [...] se acostumando com a ideia de sacrificar
a vida humana ao deus do aumento da produção” (WILLIAMS, 2012, p.
32).

Com esse motivo, o capitalismo não apenas impor-se-á como uma forma-
ção socioeconômica de acumulação e reprodução do capital – como demonstrou
Marx (2013) – mas, também, como imposição de um modelo cultural e civiliza-
tório considerado superior. A expansão europeia vai ser apresentada como um
fenômeno que ocorre sobre povos que não tem capacidade para gerir suas rique-
zas e sua vida, como também, regiões pouco povoadas à espera dos europeus.
Cabe, portanto, ratificar que durante vários séculos a Europa empreendeu um
processo de dominação política, econômica e cultural sobre diversas regiões do
mundo. Tanto o colonialismo, a partir do século XV, quanto o imperialismo ou
neocolonialismo do século XIX deixaram marcas profundas que permanecem na
contemporaneidade em continentes como a África, América e Ásia.
Uma dessas marcas que predomina no imaginário das populações é a vi-
são histórica produzida pelos europeus. Segundo Curtin (1982), por exemplo, a
África foi acusada de não possuir uma história original, pois era um continente
habitado por uma raça inferior. Nessa perspectiva, segundo as potências euro-
peias e seus intelectuais, não possuíam e não constituíam uma civilização. O
Imperialismo do século XIX, com efeito, faz parte desse processo de roedura do
continente africano que se inicia no século XV, com o colonialismo e tráfico de
escravizados, e tem como um dos marcos a conferência de Berlim – entre os anos
1884 e 1885 – caracterizada pela partilha da África entre as potências imperialis-
tas europeias e a consequente ocupação militar, política e econômica.
Ironicamente, como denunciou Marx (2013), o início de todo esse pro-
cesso de violência, exploração e opressão – material e simbólica – ocorreria
em nome da extensão da civilização e humanização ao continente africano.
Afirmando que estavam levando o progresso material e espiritual ao povo da
África, bem como lutando pelo fim do tráfico de escravizados, os europeus em-
preenderam toda sorte de controle político e econômico visando à ampliação de

397
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(O rganizadores )

seus lucros e diminuição das tensões sociais na própria Europa. Como destacou
Eric Hobsbawm:
A partir do momento em que o grande imperialista Cecil Rhodes observou
em 1895 que, para evitar a guerra civil, era preciso se tornar imperialista, a
maioria dos observadores se conscientizou do assim chamado “imperialis-
mo social”, isto é, da tentativa de usar a expansão imperial para diminuir
o descontentamento interno por meio de avanço econômico ou reforma
social, ou de outras maneiras (HOBSBAWM, 1998, p. 105).

A África foi, sem dúvida, o continente mais afetado pelo imperialismo eu-
ropeu e alicerçado na doutrina dos três Cs – Comércio, Cristianismo e Civilização
– a burguesia europeia, com o apoio da Igreja (Católica e Protestante), e dos
Estados Nacionais ocupou direta e indiretamente o continente africano em bus-
ca de riquezas, ostentação e alívio as suas tensões internas. Por esse motivo,
Hobsbawm (1998) afirma da impossibilidade de separar as razões econômicas
para a invasão dos territórios coloniais, da ação política e dos discursos necessá-
rios para a legitimação.
A conquista colonial tornou-se um símbolo do desenvolvimento capitalis-
ta, das potências europeias e de sua riqueza. Seus luxos foram sustentados a base
de muita violência e exploração da África e de seus habitantes. Esse processo, em
essência, pouco diferenciou da época do Colonialismo, como nos alertou Eric
Williams (2012) quando o doce do açúcar nas xícaras de café e chá dos europeus,
bem como o prazer do tabaco, só foi possível graças ao vermelho do sangue afri-
cano, tingindo os oceanos ao redor do mundo, em especial, no Atlântico Negro
por meio de seu símbolo maior: o navio negreiro (GILROY, 2001).
As consequências desse processo foram brutais não apenas para o conti-
nente africano, mas para todos os povos da diáspora. Hobsbawm (1998, p. 110
- 124) destaca alguns desses impactos da expansão capitalista sobre as outras
partes do globo:
I. O impacto econômico do Imperialismo foi significativo, mas, é claro, o
que ele teve de mais significativo foi sua profunda desigualdade;
II. O que o Imperialismo trouxe às elites efetivas ou potenciais do mundo
dependente foi, portanto, essencialmente a ocidentalização;
III. O mais poderoso legado cultural do imperialismo foi uma educação em
moldes ocidentais para minorias de vários tipos;
IV. No século XIX os não-europeus e suas sociedades eram crescente e geral-
mente tratados como inferiores, indesejáveis, fracos e atrasados, ou mesmo
infantis;
V. O exótico se tornou crescentemente parte da educação cotidiana dos eu-
ropeus, como na literatura juvenil, revistas.

Nesse contexto, o Imperialismo empreendeu segundo Serrano e Waldman


(2007) um massacre cultural gigantesco. Para se ter uma ideia, Angola no ano

398
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

da independência possuía 97% da população analfabeta; Moçambique 98%; en-


quanto Guiné-Bissau 99%. Ou seja, a ocupação imperialista na África pouco
ou nada fez em termos de desenvolvimento dos países africanos, pelo contrário,
como afirmam Parada, Meihy e Mattos (2013) o Imperialismo europeu dese-
nhou um mapa artificial da África, que mais tarde seria, também, o substrato
para inúmeras guerras civis; estabeleceram a divisão do mundo entre centro e
periferia, civilizados e bárbaros; desestruturaram a economia africana e a torna-
ram complementar, especializada e predatória; além disso, desestruturaram os
modos de produção existentes por meio da imposição do estatuto da propriedade
da terra, imposto indígena, cultivo e trabalho forçado. Em paralelo, as ideologias
do Imperialismo – racismo, cristianismo e darwinismo social – fizeram do conti-
nente africano um espaço de barbárie, primitivismo e criminalidade.
Para Dussel (2009) o centro e o norte da Europa são responsáveis pela cria-
ção de categorias que, no fim das contas, ocultam os processos de dominação da
exterioridade europeia: orientalismo, ocidentalismo eurocêntrico e a existência de
um sul europeu. Fora a Europa industrializada, tudo tinha ficado no passado, na
rota do progresso e do desenvolvimento. A partir desse lugar e tempo determina-
do, a África, a América Latina e seus povos, por exemplo, perdem suas condições
históricas e seu devir. A modernidade, nessa forma de interpretar a história e o
mundo, nasce e é difundida a partir da centralidade europeia.
Hegel é um dos expoentes dessa história, que não consegue enxergar his-
toricidade e formas de pensamento nos outros continentes, principalmente no
africano. Hegel em sua Filosofia da História posiciona-se firmemente contra a pos-
sibilidade dos africanos produzirem história ou serem capazes de se desenvolver,
provocar mudanças ou criar e difundir educação (DUSSEL, 2009; LANDER,
2005). Não é mera coincidência de que no período de vida de Hegel (1770-1831),
a Europa tenha intensificado “a exploração real, moderna e científica da África e
começaram assim a lançar os fundamentos de uma avaliação racional da história
de das realizações das sociedades africanas” (FAGE, 2011, p. 9).
Seguindo o raciocínio deste autor, a chamada filosofia moderna do centro-
norte da Europa, e o sistema capitalista de produção, não podem ser dimensio-
nados sem uma análise do século XVI e da produção do ser colonial como antítese
da civilização europeia. A modernidade, a civilização é o contraponto ao mundo
bárbaro dos povos e regiões a serem conquistadas, em nome da cristandade e da
cultura dominante. Ainda conforme Dussel (2009, p. 322) a Europa do século
XVI em diante – e uma parte significativa das Ciências Sociais e Humanas –
não se fará a pergunta se tem o direito de dominar outros povos ou regiões.
Lander (2005, p. 25) esclarece que “Somente sobre a base [...] de um conheci-
mento descorporizado e descontextualizado – é concebível esse tipo muito particular
de conhecimento que pretende ser des-subjetivado”. A conquista – travestida de

399
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

descobrimento – irá impor-se como uma verdade natural, inevitável à própria


história da humanidade: “A acumulação originária do capital, da modernidade,
tinha começado a sua expansão destruidora com sistema-mundo depredador”.
Vê-se então que Guamán, como Karl Marx, organiza a sua estratégia ar-
gumentativa seguindo o mesmo princípio que o crítico de Trier: colocar o
que pretende ser cristão numa contradição performativa evidente entre os
seus actos perversos e os actos éticos prescritos pelo próprio cristianismo
(DUSSEL, 2009, p. 330).

Assim sendo, a partir das argumentações de Maldonado-Torres (2009),


afirmamos que existe – desde o século XVI – uma articulação nevrálgica entre
raça, capitalismo e expansão atlântica. Este autor caracteriza esse processo – ci-
tando Aníbal Quijano – como sendo a expressão da Colonialidade do poder. Essa
forma de poder, tipicamente moderna, conecta formação racial, controle do tra-
balho, Estado e produção do conhecimento.
Neste viés, o racismo dentro deste movimento histórico, é condição fun-
dante da exploração capitalista; é ideologia e prática construída para sedimen-
tar a dominação européia sobre outros povos e continentes. O racismo cons-
trói-se com o tráfico de escravizados e se sedimenta com o Imperialismo e o
Neocolonialismo. Portanto, racismo e capitalismo são faces de uma mesma
moeda, alimentando-se de suas potencialidades destrutivas para se fortalecer.
Entendemos, dessa forma, que a luta pela construção da identidade étnico- racial
e contra o racismo é fundamental para se combater a exploração capitalista e
unificar a lutas dos trabalhadores(as) brasileiros(as). Como destacamos, raça e
classe se articulam. Como bem explica Williams (2012, p. 34): “A escravidão não
nasceu do racismo: pelo contrário, o racismo foi consequência da escravidão”.
E escravidão e o tráfico de escravizados foram essenciais para a consolidação do
capitalismo, a exploração de classe e as desigualdades raciais.
Conforme Santos (2012), a classificação de seres humanos serviria, [...],
como uma das tecnologias do colonialismo europeu para destruição de povos
nas Américas, da África, da Ásia e da Oceania. Logo, a questão social não pode
ser compreendida sem o entendimento desse processo de acumulação primitiva
de capital. Contudo, como temos assegurado em nossas análises, a constituição
do Capitalismo e seus impactos na formação da pobreza e da desigualdade, bem
como as políticas de Estado e a questão social, não podem ser desveladas sem a
conexão vital com as relações de classe, raça e gênero.
A questão social7 nasce com o modo de produção capitalista, e deve ser

7 Iamamoto (2001) afirma que para entender a questão social é preciso a compreensão das
diferentes formas assumidas pelo mundo do trabalho, em contextos históricos diversos e
perpassados pela luta de classes e projetos políticos societários divergentes. A questão so-
cial, nesse sentido, tem sua gênese vinculada às relações de produção capitalista e a fabrica-
ção da exploração, pobreza e desigualdades sociais na classe trabalhadora.
400
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

pensada no interior dessa lógica. Existem, no entanto, diferentes determinantes


da questão social – raça e gênero, por exemplo – que não podem ser ignoradas na
medida em que temos diferentes territorialidades e estágios de desenvolvimento
capitalista. Mas, como dito, não se deve pensar as políticas sociais apenas por
suas funções de dominação, mesmo ideológicas, pois se corre o risco de cair
num maquiavelismo vazio “[...] a política social é uma gestão estatal da força de
trabalho articulando as pressões e movimentos sociais dos trabalhadores com as
formas de exploração exigidas pela valorização do capital e pela manutenção da
ordem social, [...]” (FALEIROS, 2009, p. 64).
Observa-se que a política social deriva do poder do estado, logo se sabe
que determina o funcionamento da sociedade e o lugar de pertencimento de cada
cidadão. Bem como de onde se origina a exploração do trabalhador, a desigual-
dade, a violência e a infundada construção identitária da população.
Na mesma linha é o raciocínio de Tomaz Tadeu da Silva (2008), no texto
A produção social da identidade e da diferença: “identidade e diferença são o resul-
tado de atos de criação linguística que significa dizer que elas são criadas por
meio de atos de linguagem”. Nesta perspectiva o autor nos afirma que tanto a
identidade quanto a diferença são construções a partir da linguística e “como
ato linguístico, a identidade e a diferença estão sujeitas a certas propriedades
que caracterizam a linguagem em geral. Por exemplo, segundo o linguista suíço
Ferdinand de Saussure, a linguagem é, fundamentalmente, um sistema de dife-
renças” (SILVA, 2008, p. 02).
A linguagem está sempre à nossa volta, sempre pronta a envolver nossos
sentimentos e ações em relação ao outro. Para Tomaz Tadeu a identidade e a
diferença não podem ser compreendidas, pois, fora dos sistemas de significação
nos quais adquirem sentido. Não são seres da natureza, mas da cultura e dos
sistemas simbólicos que a compõem. Reafirmando o pensamento de Saussure
“os elementos - os signos - que constituem uma língua não têm qualquer valor
absoluto, não fazem sentido se considerados isoladamente” (SILVA, 2008, p. 24).
Desse modo, os indivíduos são constantemente postos em relação um com
o outro. A pós-modernidade revelou a alteridade como elemento constituinte
do sujeito. O indivíduo é moldado diante da diferença, num processo de aproxi-
mação e distanciamento, por isso não é possível crer em identidades estáveis e
consolidadas, fechadas:
as identidades são construídas por meio da diferença e não fora dela. Isso
implica o reconhecimento radicalmente perturbador de que é apenas por
meio da relação com o Outro, da relação com aquilo que não é, com preci-
samente aquilo que falta, com aquilo que tem sido chamado de seu exterior
constitutivo, que o significado “positivo” de qualquer termo – e, assim, sua
“identidade” – pode ser construída (HALL, 2011, p. 110).

401
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

A relação entre sociedade e a questão da identidade provoca em estudos


Hall alguns questionamentos, tais como “Onde está, pois, a necessidade de mais
uma discussão sobre a identidade? Quem precisa dela?”. Segundo Hall têm-se
delineado, em suma, no contexto da crítica antiessencialista das concepções ét-
nicas, raciais e nacionais da identidade cultural e da “política da localização”,
algumas das concepções teóricas mais imaginativas e radicais sobre a questão da
subjetividade e identidade (HALL, 2011, p. 103).
Com o tráfico dos negros africanos tivemos uma hibridização das identi-
dades, que se constituem à semelhança de um mosaico cultural. Assim, no atual
cenário:
A identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado ou
representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou
perdida. Ela tornou-se politizada. Esse processo é, às vezes, descrito como
constituindo uma mudança de uma política de identidade (de classe) para
uma política de diferença (HALL, 2006, p. 21).

A identidade se apresenta, portanto, como um processo permanente in-


fluenciado pelas culturas nacionais e modelado pelos processos globalizadores,
calcado na provisoriedade e instabilidade, transformando-se a cada momento. A
complexidade da questão da identidade, conforme demonstrado, revela a teia in-
tercultural e transnacional que envolve a identidade e interfere em sua formação.
Os autores demonstram que a identidade deve ser pensada dentro do panorama
social pós-moderno:
A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de
processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no mo-
mento do nascimento. [...] Ela permanece sempre incompleta, está sempre
“em processo”, sempre “sendo formada”. [...] Assim, em vez de falar da
identidade como uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e
vê-la como um processo em andamento. A identidade surge não tanto da
plenitude da identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas
de uma falta de inteireza que é preenchida a partir de nosso exterior, pelas
formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros (HALL,
2006, p. 38-9).

Com a instabilidade das identidades na pós-modernidade Hall julga mais


adequado a utilização do termo identificação. O termo, portanto, apresenta-se
mais exato para traduzir a condição das identidades pós-modernas, permanen-
temente sujeitas a interações e influências exteriores - sociais e culturais -, como
um processo em andamento, algo eternamente em fase de acabamento:
A identificação é, pois, um processo de articulação, uma suturação, uma
sobredeternimação, e não uma subsunção. [...] E uma vez que, como num
processo, a identificação opera por meio da différence, ela envolve um tra-
balho discursivo, o fechamento e a marcação de fronteiras simbólicas, a
produção de “efeitos de fronteiras” (HALL, 2011, p. 106).
402
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

O processo de formação das identidades é discursivo, pois é no plano do


discurso que as diferenças são estabelecidas e as posições sociais do sujeito são
determinadas e assumidas. Nesse sentido, as identidades são lidas como “pontos
de apego temporário às posições-de-sujeito que as práticas discursivas constroem
para nós.
É no plano do discurso e das interações sociais e culturais que a iden-
tidade ou a identificação é destacada e compreendida como um processo, e é
qualificada como aberta, flexível, dúctil, híbrida, móvel, conforme já ressaltado.
Considerada no plano discursivo, a identidade significa um ponto de encontro, o
nó que une os diversos discursos e práticas culturais a que os sujeitos estão expos-
tos e que os interpelam, convocando-os para que assumam seus lugares sociais
(HALL, 2011, p. 111-112).
A identidade também é uma construção da linguagem, o discurso inten-
sifica a construção identitária. Souza (2014) afirma que é necessário, portanto,
pensar a identidade inserida no campo semântico da provisoriedade, do não aca-
bado, do indefinido no sentido de não enquadrável numa moldura delimitadora,
pois está em processo sempre, em fase de acabamento e aperfeiçoamento: é a
obra que nunca se encerra.
Observa-se assim, que a relação entre memória e identidade ocorre devido
a construção discursiva da identidade, pois é preciso revolver o passado para
narrar-se, para construir uma identidade, para constituir-se como sujeito diante
do outro e posicionar-se dentro do grupo. Esse, portanto, é o ponto que liga iden-
tidade à memória e torna possível a afirmação de Candau de que “a memória é
a identidade em ação” (SOUZA, 2014. p. 08).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

À guisa de conclusão, compreendemos que as identidades são constru-


ções discursivas que dependem de outros dois conceitos, a saber – Memória e
História. É por meio da linguagem que o homem se constrói socialmente, sua
identidade é fruto da sua memória e das relações de alteridade existentes no dis-
curso. Assim, percebemos o processo de representação dos africanos como uma
construção arbitrária, fragmentada e estereotipada.
A História da África e da História dos afrodescendentes não é trabalhada e
discutida no sentido de valorização e de construção de fronteiras entre os africa-
nos e os outros povos, entre o presente e o passado, entre os vivos e os ancestrais.
É preciso desconstruir essa representação de que a introdução da Educação das
Relações Étnico-raciais é apenas um acerto de contas com a desditosa consciên-
cia europeia acerca da exploração do continente africano.
É preciso valorizarmos as singularidades das memórias africanas

403
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

afrodescendentes. É preciso trazer a identidade para o discurso e é a memória


que o faz na medida em que permite que o sujeito narre a si mesmo. E aqui res-
saltamos como é difícil ouvir e aceitar a construção identitária do povo negro,
mestiço e descendente. Os negros têm necessidade de contarem suas memórias,
de seguirem seus hábitos culturais e se autoafirmarem, no entanto, a padroniza-
ção hegemônica é arbitraria.
A identidade dos povos afrodescendentes brasileiros será mais completa e
fiel quando o discurso levar em consideração as concepções de tempo e mitologia
africana, quando se reconhecer o lugar de fala e a relação com a ancestralidade,
bem como não negligenciar as desigualdades sociais que os cercam e a ausência
de políticas públicas. Pois diferente do que se é apresentado em muitas historio-
grafias os povos africanos e afrodescendentes têm sim história, têm sua educação
que desde a antiguidade era transmitida por via oral.

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405
CULTURA NEGRA, PATRIMÔNIO E RACISMO:
QUILOMBO DA PEDRA DO SAL
Thamires da Costa Silva1

INTRODUÇÃO

O Quilombo Pedra do Sal está situado no pé do Morro da Conceição, no


Bairro da Saúde, na Zona Portuária do Rio de Janeiro. São aproximadamente 9
hectares de área, idealizados por famílias descendentes de negros escravizados,
oriundos da Bahia e da África. O Quilombo está inserido numa região conhecida
como Pequena África, que recebeu esse nome por Heitor dos Prazeres (1898-
1966), um poeta, músico, artista e precursor do samba carioca.
A Pequena África é um espaço, símbolo de luta e resistência da população
afro-brasileira, pois nesse local se reuniam terreiros, quilombos, abrigos, uma ver-
dadeira rede de auxílio para a população negra escravizada e liberta, durante o
século XVIII e XIX. Um exemplo disso, era a casa de candomblé de João Alabá2,
que reunia a população negra para a prática religiosa e a casa de Tia Ciata3 onde
ocorriam rodas de samba.
É primordial entender a história do Quilombo da Pedra do Sal, desde a sua
fundação como um quilombo urbano, bem como a situação atual da região e as
dificuldades e lutas territoriais enfrentadas pelas famílias, até o reconhecimento
da região como um quilombo pela Fundação Cultural Palmares. Outro ponto
importante, são as reformas urbanas que ocorreram, em função da Olimpíada
(2016) e Copa do Mundo (2014) na região portuária do Rio de Janeiro, e de
que forma essas alterações urbanas afetam a população. De acordo com Pereira
(2019), o quilombo representa uma das primeiras tomadas de consciência da po-
pulação negra a respeito de um processo de opressão racializado. O povo negro
sofre com o racismo no Brasil, desde o início do processo de diáspora africana4,

1 Mestranda em Estudos Culturais, Memória e Patrimônio, na Universidade Estadual do


Goiás. Arquiteta e Urbanista concursada efetiva no Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional. Especialista em Cidades, Políticas Públicas e Movimentos Sociais.
2 Babalorixá do terreiro de Candomblé que ficava situado na rua Barão de São Félix, no
bairro da Saúde, Zona Portuária do Rio de Janeiro.
3 Hilária Batista de Almeida(Santo Amaro da Purificação, 1854 — Rio de Janeiro, 1924) foi
cozinheira, empreendedora e mãe de santo.
4 Consiste na imigração forçada de africanos, durante o tráfico transatlântico de escraviza-
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

por isso se torna importante compreender as definições e discussões teóricas


acerca do que é um quilombo e as legislações que amparam os quilombos, para
que seja possível entender as relações de racismo e resistência no Quilombo da
Pedra do Sal.

BREVE HISTÓRIA DA PEDRA DO SAL

Um local central e ícone para a luta quilombola é a Pedra do Sal que foi
o berço do samba carioca e das primeiras escolas de samba carnavalescas da
cidade do Rio de Janeiro. Sambistas como Donga (1890-1974), João da Baiana
(1887-1974), Pixinguinha (1897-1973) e Heitor dos Prazeres (1898-1966) se reu-
niram na Pedra do Sal para compor, ensaiar e promover encontros. Curi e Paiva
(2017, p. 65), apontam que o primeiro registo fonográfico brasileiro, composto
por Donga, em 1908, foi feito na Pedra do Sal, a canção conhecida como “Pelo
telefone”.
A região é fortemente marcada por três elementos. Um deles são as ativi-
dades portuárias. O outro, a presença, desde o século XVIII, de praticantes
de religiões de matriz afro-brasileira, sendo a Pedra do Sal o local onde sur-
giram os primeiros terreiros da cidade. E também pela criação dos primei-
ros ranchos carnavalescos do Rio. Esses eram frequentados por figuras de
expressão nacional do samba, como João da Baiana e Donga (CORRÊA,
2016, p. 02)

Antes dos sucessivos aterros que a região portuária sofreu, as águas da


Baía de Guanabara chegavam até às margens do que, hoje, é o Quilombo da
Pedra do Sal. Inclusive, esse nome foi dado à região, pois a pedra era utilizada
para secar e vender sal; antes a área era conhecida como Prainha:
A história da presença negra no lugar remonta à época em que toda a re-
gião era conhecida como Prainha, que era também o nome dado à pedra.
Até meados do século XVIII, o local ainda não tinha sido aterrado. Ficava
próximo ao mar e era habitado por pescadores e salineiros (CORRÊA,
2016, p. 03).

De acordo com Corrêa (2016, p. 03), durante o século XVIII, haviam


muitos trapiches na região da Pedra do Sal, além de casas comerciais, fazendo
com que a região conhecida pelo seu isolamento físico, por causa dos Morros
da Conceição e da Providência, passasse a interagir mais com o resto da cidade.
Marquês do Lavradio, que era o Vice-Rei e Capitão Geral de Mar e Terra, deci-
diu que o entorno da Pedra do Sal seria o local ideal para executar o comércio de
africanos escravizados, que não mais chegariam na Praça XV, junto com pessoas
brancas e livres da alta sociedade. Assim, foi destinado um espaço específico para

dos. Eram utilizados navios conhecidos como tumbeiros (navios negreiros) para o transpor-
te da população negra escravizada.
407
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

receber os negros escravizados vindos da África, que ficou conhecido como Cais
do Valongo.
Estima-se que entraram somente nos anos de 1811 e 1831, pelo Cais
do Valongo, aproximadamente 500 mil a 1 milhão de escravizados (PAULA;
HEREDIA, 2018). De todos os africanos escravizados que entraram no Brasil,
mais da metade ingressou pela cidade do Rio de Janeiro. Consequentemente,
no início do século XIX, a cidade do Rio de Janeiro era constituída por 60% a
70% de africanos escravizados e libertos (NASCIMENTO et al., 2018). A Pedra
do Sal, que anos mais tarde se tornou um quilombo reconhecido pela Fundação
Palmares, era um espaço de abrigo e resistência para a população negra, tanto es-
cravizada como liberta, um local de moradia, de práticas religiosas, de capoeira,
enfim de cultura negra.
Em 1830, a Pedra do Sal sofreu um corte para que fosse criada a Rua
Nova de São Francisco da Prainha, que anos mais tarde se tornou Rua da Saúde
e, hoje, Rua Sacadura Cabral. Como forma de preservar a memória e identida-
de negra carioca, no ano de 1984, a Pedra do Sal foi tombada provisoriamente
pelo Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (INEPAC). Essa certificação pre-
liminar foi feita pelo secretário de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, Darcy
Ribeiro. Em 1987, a Pedra do Sal foi tombada definitivamente pelo instituto, com
o auxílio de laudos antropológicos feitos pelo Instituto Histórico e Geográfico do
Rio de Janeiro e pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Segundo Corrêa
(2016, p. 02), “pela primeira vez no Brasil, um local conhecido historicamente
como espaço de oferendas aos Orixás foi tombado”.
No ano de 2006, o Quilombo da Pedra do Sal foi reconhecido como tal,
pela Fundação Cultural Palmares, através da Portaria n° 02 de 17 de janeiro
de 2006. Desde 2009, toda segunda-feira, acontecem rodas de samba que unem
moradores e turistas na região. Segundo Curi e Paiva (2017), a população local é
receptiva às rodas de samba que acontecem na região, pois muitos vendem bebi-
das e alimentos durante os shows.
O quilombo da Pedra do Sal emergiu de um contexto de discussão sobre
os significados e os usos do patrimônio histórico e cultural negro inscrito
na zona portuária do Rio de Janeiro e reconhecido oficialmente a partir
do tombamento da Pedra do sal, em 1987, como patrimônio material do
Estado do Rio de Janeiro. Defende a manutenção e o revigoramento de
uma memória afro-brasileira na área, marcada pelo samba, pelo candom-
blé e pelo trabalho negro no porto, e tem como objetivo visibilizar um pa-
trimônio cultural imaterial herdado de seus antepassados escravos e africa-
nos, um dos mais importantes grupos formadores da sociedade e cultura
brasileiras (MATTOS; ABREU, 2010, p. 15).

É importante destacar o longo processo de luta e disputa pela terra que


ocorreu no Quilombo da Pedra do Sal. Desde o reconhecimento em 1987, como

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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

patrimônio pelo INEPAC, a Venerável Ordem Terceira de São Francisco da


Penitência (VOT) alega ser proprietária de alguns terrenos na região (BARBOSA,
2010). Para comprovar a posse, apresentou documentos da época do Império
que alegavam propriedade. A VOT alega que o terreno foi herança do padre
Francisco da Motta, em 1704. De acordo com Mattos e Abreu (2010), após o
reconhecimento da comunidade quilombola, os aluguéis geridos e cobrados pela
VOT sofreram um aumento considerável. Esse aumento também se justificou em
função dos investimentos na região portuária.
Desde o início dos anos 2000, durante o governo do prefeito César Maia,
a região portuária sofreu com “ameaças sistemáticas de despejos em função dos
projetos de revitalização urbanística no bairro” (BARBOSA, 2010, p. 07). A
partir dessas propostas de revitalização, foi que os terrenos na Pedra do Sal se
valorizaram e ocorreu o conflito com a VOT, o que só reforça a importância do
reconhecimento da região como um quilombo, a fim de garantir a permanência
não só física, mas também simbólica da cultura afro-brasileira na zona portuária
carioca.
O Projeto Porto Maravilha teve como objetivo a requalificação da
zona portuária do Rio de Janeiro, sendo resultado de uma Operação Urbana
Consorciada, criada pela Lei Municipal n° 101 de 2009. As reformas do Porto
Maravilha visavam os megaeventos que aconteceram nos anos seguintes, a Copa
do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Essas alterações urbanas, tanto
de traçado, com desvios e alargamentos de ruas, com as desapropriações, pou-
co trouxeram benefícios para a população local, que sofreu com a especulação
imobiliária.
De acordo com Curi e Paiva (2017, p. 67), somente após anos da roda de
samba semanal acontecer, juntamente com as reformas do Porto Maravilha, que
a prefeitura tomou a iniciativa de apoiar o evento, com a instalação de banheiros
públicos no local. Os responsáveis pela roda de samba veem com desconfiança o
apoio da Prefeitura Carioca, em função de divergências políticas.

QUILOMBO E SUAS DISCUSSÕES TEÓRICAS

Segundo Anjos (2006, p. 46), “a palavra quilombo tem origem na lín-


gua banto e se aproxima de termos como: habitação, acampamento, floresta e
guerreiro. Na região central da Bacia do Congo, significa ‘lugar’ para estar com
Deus”. Já para Abdias Nascimento (2002), quilombo não é sinônimo de escravo
fugido, vai muito além dessa definição rasa. Quilombo é reunião fraterna e livre,
solidariedade, convivência, comunhão existencial. Para o autor, os quilombos
são a representação de uma fase do progresso humano e sócio-político em termos
de igualitarismo econômico.

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Os quilombos são uma forma de resistência e recusa à submissão aos tra-


balhos forçados, exploração, violência e crueldade impostas pelo regime escra-
vocrata. Já para Corrêa (2016, p. 02), as terras de quilombos são “territórios
étnico-raciais com ocupação coletiva baseada na ancestralidade, no parentesco
e em tradições culturais próprias’’. Os quilombos não eram isolados economica-
mente e, muitas vezes, nem fisicamente do resto da sociedade. De acordo com
Gomes (2012, p. 376), “para várias regiões há evidências de como escravos e
quilombolas faziam circular produtos de sua economia agrária”. O autor ainda
ressalta que existiam relações econômicas entre fazendeiros e quilombolas, como
por exemplo, o Quilombo de São Benedito do Céu, situado em Manaus que con-
seguia comercializar sal e ferramentas com escravos e lavradores locais.
Com ou sem a conveniência e omissão de determinados fazendeiros, alguns
quilombolas, além de realizarem trocas mercantis, pernoitavam nas senza-
las ou acampavam nas próprias terras de grandes fazendas. (...) Algumas
fazendas podiam ser classificadas como um verdadeiro quilombo não só
porque seus escravos mantinham contatos com os quilombolas, mas tam-
bém pela insubordinação cotidiana e pressão aos senhores. Por exemplo:
por mais autonomia, ditando o tempo do trabalho nas lavouras, cultivando
roças, comercializando produtos e realizando batuques e festas religiosas
com maior frequência (GOMES, 2012, p. 377).

Alguns quilombos como o de Palmares, localizado no estado de Alagoas,


era tão grande e organizado que reunia aproximadamente 20 mil habitantes, qua-
tro gerações de famílias. Obviamente, esses locais eram alvos de perseguições e
invasões. Os quilombos rurais e urbanos possuem um princípio em comum, que
é o de insubordinação. De acordo com Carril (2006), os quilombos rurais se or-
ganizam em função de questões ambientais e da conquista pela terra, enquanto
nos quilombos urbanos os arranjos são feitos em torno da música, da arte e da
dança. Isso não quer dizer, que no caso do Quilombo da Pedra do Sal, que é um
quilombo urbano, não ocorra a luta pela terra, mas percebe-se a grande influên-
cia da música, especificamente o samba, para a comunidade local.
A vida nos quilombos também era uma forma daqueles corpos negros se
reconhecerem como sujeitos e não como coisa ou mercadoria. A localização
estratégica dos quilombos fazia com que, segundo Pereira (2019), esses espaços
ficassem afastados do alcance de controle social e jurídico. Com isso, os habi-
tantes eram capazes de vivenciar experiências coletivas não só de moradia, mas
também de atividades como colheita, caça, práticas religiosas, práticas musicais
e outras:
Os quilombolas fugiam para as zonas, territorialidades não dominadas, nas
quais pudessem ser reconhecidos como sujeitos, ainda que fosse apenas o
reconhecimento entre “os seus”, os “iguais”, em razão de as suas subjeti-
vidades terem sido renegadas pelo sistema escravocrata que os tratava não

410
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

apenas com desprezo, mas com sadismo (PEREIRA, 2019, p. 52).

O Quilombo da Pedra do Sal é um lugar de memória (NORA, 1993). De


acordo com o autor, consiste em um local onde um grupo social pode ancorar
suas lembranças individuais e coletivas, tornando-os portos seguros em meio a
insegurança social e psicológica, cada vez mais presentes com a aceleração da
vida urbana e a globalização cultural:
A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos, está em perma-
nente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, in-
consciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e
manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações
(NORA, 1993, p. 09).

O quilombo vai além das delimitações físicas, mas também engloba a me-
mória e história da comunidade quilombola, isso é a história viva e vivenciada
diariamente no território. É muito comum que as comunidades quilombolas se-
jam absorvidas pelas mudanças e crescimento das cidades, o mesmo pode acon-
tecer com os quilombos rurais. No caso do Quilombo da Pedra do Sal, a bata-
lha pela terra com a Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência,
não enfraqueceu a luta da comunidade pelo espaço físico de seus ancestrais, isso
significa que nem mesmo as mudanças e pressões urbanas afetam a identidade
quilombola da população:
A quilombagem representava a experiência histórica de tomada de cons-
ciência acerca da luta pelos direitos à liberdade e à igualdade, bem como
a afirmação de um território dominado pelo comunitarismo da negritude,
dada a tradição libertária das populações escravizadas (PEREIRA, 2019,
p. 62)

LEGISLAÇÕES E A PROTEÇÃO DOS QUILOMBOS

Durantes anos, os quilombos sofreram um processo muito comum quan-


do associado a outros patrimônios negros, que foi o apagamento, silenciamento
e tentativa de esquecimento, principalmente, por parte do Estado e dos órgãos
de preservação. A contribuição da população afro-brasileira foi essencial para a
construção da nação, não podendo ser ignorada ou esquecida em prol de uma
memória nacional branca e imigrante. Os territórios quilombolas, sejam os ru-
rais ou urbanos, são locais de luta, resistência e merecem ser preservados, como
símbolos da cultura negra.
A Constituição Federal de 1988, considerada constituição cidadã, é um
marco para a proteção dos quilombos, pois seu artigo 215, garante a proteção
a todos e o pleno exercício dos direitos culturais, além do acesso às fontes da
cultura nacional, bem como o apoio e incentivo e a valorização e a difusão das

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

manifestações culturais. O artigo inclui ainda as manifestações populares indí-


genas e afro-brasileiras, e das de “outros grupos participantes do processo civili-
zatório nacional” (BRASIL, 1988). Além disso, garantiu ainda que não explici-
tamente, a proteção dos quilombos, uma vez que são manifestações da cultura
afro-brasileira.
O artigo 216 da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) define o
patrimônio cultural brasileiro como os bens de natureza material e imaterial, seja
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à “identidade, à ação,
à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira” (BRASIL,
1988). É essencial destacar o inciso quinto deste artigo que diz: “Ficam tomba-
dos todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos
antigos quilombos”, observa-se a grande relevância que os quilombos adquirem
na CF/1988:
No sentido acima, para a Constituição Federal, o processo de resistência à
escravidão foi elevado à mesma importância que qualquer outro evento his-
tórico da memória nacional, tratando-se, aliás, da única hipótese de tomba-
mento determinada no próprio texto constitucional, decorrendo daí a razão
de proteção de todos os documentos e sítios detentores das reminiscências
históricas dos antigos quilombos, os quais estiveram em um “não lugar
jurídico” de esquecimento e “não decisão” durante um século, inaugurado
pela Abolição da escravidão, em 1888, e encerrado pela Constituição de
1988 (PEREIRA, 2019, p. 65).

Outro dispositivo legal primordial para ressaltar é o artigo 68, dos Atos
das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), promulgado em outubro
de 1988, que diz: “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que es-
tejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o
Estado emitir lhes os títulos respectivos”. O Decreto 4887, de 20 de novembro
de 2003, que regulamenta os procedimentos para identificação, reconhecimento,
delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes de
comunidades dos quilombos de que trata o artigo 68 da ADCT.
É importante frisar que a autodeterminação é o aspecto principal para de-
finição dos quilombos, de acordo com o Decreto 4887/2003, pois “os grupos
étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica pró-
pria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralida-
de negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (BRASIL,
2003). Assim,
a partir da Constituição de 1988 e, sobretudo, do Decreto 4887/2003, ob-
serva-se uma radical ampliação do conceito de quilombo, que deixa de se
restringir aos locais de concentração de escravos fugidos para designar gru-
pos que desenvolvem em territórios próprios práticas de resistência, preser-
vação e reprodução de modos de vida (LOUREIRO, 2014, p. 215).

412
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

O Decreto 4887/2003 também salienta a importância e função do


Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, administrado
pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA): a “identificação, reconhe-
cimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas pelos remanes-
centes das comunidades dos quilombos, sem prejuízo da competência concorren-
te dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios” (BRASIL, 2003). Segundo
Corrêa (2016, p. 02), esse trabalho tem gerado um grande acervo de dados, re-
gistrando de maneira inédita um arcabouço de manifestações e características
dos quilombos nos períodos escravocrata e pós-escravocrata. O INCRA também
emite relatório técnico aos órgãos e entidades relacionadas ao processo de reco-
nhecimento quilombola, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Nacional
(IPHAN), o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis (IBAMA), a Fundação Cultural Palmares e outros. De acordo com
o artigo 6 do Decreto 4887/2003, a comunidade remanescente de quilombos
tem participação garantida em “todas as fases do procedimento administrativo,
diretamente ou por meio de representantes por eles indicados” (BRASIL, 2003).
Neste ponto, o INEPAC tem um papel essencial para a proteção do
Quilombo da Pedra do Sal, que em 1987, como já dito, foi tombada definitiva-
mente pelo INEPAC, como o “testemunho cultural mais que secular da africani-
dade brasileira, espaço ritual consagrado e o mais antigo monumento vinculado
à história do samba carioca.” (INEPAC, 1987). No ano de 2006, o Quilombo da
Pedra do Sal foi reconhecido como tal, pela Fundação Cultural Palmares.
Em 2018, o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (IRPH) iniciou as
pesquisas para declarar o Quilombo da Pedra do Sal como um Bem Cultural de
Natureza Imaterial, a ser inscrito no Livro de Registro dos Lugares. Essa medida
está garantida pelo Decreto 44.705/2018, que foi assinado pelo prefeito Marcelo
Crivella. É importante destacar que anteriormente Crivella havia vetado a pro-
posta de autoria do vereador Fernando William, argumentando que a proteção
dos bens de natureza imaterial são atribuição do Poder Executivo e não da prefei-
tura, de modo que a população, militantes e a comunidade acadêmica reagiram
a essa decisão.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), desde
sua criação no ano de 1937, privilegiou os bens de natureza material, relacio-
nados a herança europeia da população brasileira, como por exemplo, igrejas
católicas, casas de câmara e cadeia, conjuntos arquitetônicos e urbanísticos. Essa
fase inicial do IPHAN ficou conhecida como fase heroica. Os bens relacionados
à cultura negra foram, durante anos, negligenciados, sendo o primeiro terreiro
tombado somente no ano de 1984, após mais de 40 anos de existência do ins-
tituto. O Terreiro Casa Branca do Engenho Velho fica situado em Salvador, na
Bahia, e foi inscrito nos livros do Tombo Histórico e Arqueológico, Etnográfico

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

e Paisagístico, após muita luta e uma votação acirrada do Conselho Consultivo5.


O tombamento desse terreiro abriu portas para que outros bens relaciona-
dos à herança negra saíssem da invisibilidade. Em 1986, a Serra da Barriga onde
estava situado o antigo Quilombo dos Palmares, foi tombada. Segundo Oliveira
(2019, p. 06), os dois bens citados foram protegidos no contexto de democrati-
zação do Brasil, “marcado por um intenso o processo de mobilização política
reivindicação histórica dos movimentos sociais negros na busca pelo reconheci-
mento e valorização da herança africana e símbolos da afirmação da identidade
afro-brasileira”.
Os anos 2000 marcaram um grande avanço para o IPHAN no reco-
nhecimento de patrimônios negros, pois foi criado o Programa Nacional do
Patrimônio Imaterial (PNPI), instituído pelo Decreto 3.551/2000, que institui o
Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem o patrimônio
cultural brasileiro. Essa normativa contribuiu para o aumento dos bens culturais
afro-brasileiros registrados, como por exemplo o Jongo no Sudeste, a Capoeira, o
Samba de Roda do Recôncavo Baiano, o Complexo Cultural do Bumba-meu-Boi
do Maranhão e outros:
Esses reconhecimentos representam a inclusão via tombamento ou regis-
tros das referências da cultura afro-brasileira no conjunto de patrimônio na-
cional. A adoção da noção de referência cultural, a instituição do Registro
e do Inventário, a ampliando da participação social, permitiu a inclusão de
expressões e referências da produção cultural de grupos a bem pouco tempo
excluídos no campo de estudo e das políticas de públicas de patrimônio cul-
tural, apontam para avanços históricos, políticos e culturais significativos
no país. Entretanto, a permanência a separação do patrimônio em material
(tangível) e imaterial (intangível) funciona como mais um obstáculo para
melhor compreensão das complexidades e dinâmicas que caracterizam as
referências culturais afro-brasileiras (OLIVEIRA, 2019, p. 09).

Percebe-se um avanço por parte do IPHAN no acautelamento de bens de


natureza imaterial relacionados à cultura negra. Entretanto, a mesma postura
não se repete com os bens de natureza material, principalmente, os quilombos.
Somente dois quilombos são protegidos pelo IPHAN; a Serra da Barriga (1986),
local onde estava situado o Quilombo dos Palmares, e o Quilombo Ambrósio
(2002). De acordo com Pereira (2019, p. 68), há poucos processos administra-
tivos, 21 (vinte e um) no total, relacionados ao tombamento de quilombos, ao
passo que existem milhares de comunidades quilombolas certificadas ou em pro-
cesso de certificação pela Fundação Cultural Palmares.
[...] o que parece atestar, efetivamente, que os “quilombos históricos”, os

5 Trata-se de um órgão colegiado de decisão máxima do IPHAN, criado para avaliar ques-
tões associadas ao patrimônio material e imaterial, como por exemplo decidir pelo tomba-
mento ou registros dos bens.
414
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

quais devem ter reconhecida a sua patrimonialidade, nos termos do art.


216, § 5o, da CF, correspondem a um número bem menor do que os “qui-
lombos contemporâneos”, previstos no art. 68 do ADCT (PEREIRA,
2019, p. 68).

Pereira (2019, p. 69) ainda destaca o fato da Constituição Federal não vin-
cular o reconhecimento e a inclusão da territorialidade dos quilombos contempo-
râneos, que o artigo 68 do ADCT faz referência, à patrimonialidade dos antigos
quilombos. O campo da luta pelo o que é ou não considerado patrimônio, ainda
é regido pela forte influência das políticas de tombamento para o patrimônio ma-
terial, o que reflete na pouca quantidade de quilombos acautelados pelo IPHAN.
Pereira (2019, p. 69) aponta a “obsessão do tombamento” que contribui para
“uma cegueira de outras formas de proteção que o próprio sistema jurídico pro-
porciona e a uma centralidade em mãos da entidade federal de proteção, que
acaba sobrecarregada”.

RACISMO E AS RELAÇÕES DE RESISTÊNCIA NO QUILOMBO

De acordo com o dicionário Michaelis (2022), o racismo é uma teoria ou


crença que cria uma hierarquia entre raças, pode ser também uma doutrina que
acredita que uma nação, vista como superior tem o direito de dominar outras.
Também consiste no preconceito exagerado contra pessoas de raças diferentes,
normalmente consideradas inferiores. Considera ainda uma atitude hostil em
relação a certas categorias de indivíduos. Almeida (2020, p. 32) aponta que o ra-
cismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como elemento
principal, sendo a sua manifestação feita de forma consciente ou inconsciente,
resultando em desvantagens ou ainda, privilégios para indivíduos do grupo do-
minante. O racismo durante anos, teve amparo científico e jurídico, para justifi-
car uma suposta superioridade branca:
Pois o racismo ilustre teve pesadas conseqüências, foi provedor e legitima-
dor de várias doutrinas políticas agressivas, atentatórias aos valores demo-
cráticos da sociedade moderna, funcionou, em resumo, como ideologia,
isto é, uma lógica de intervenção no social, a qual, além do mais, desempe-
nhou um papel político fundamental na grande reestruturação que estava
tendo lugar na Europa nas últimas décadas do século XIX (SILVEIRA,
1999, p. 89).

Silveira (1999, p. 89-90) afirma que o racismo europeu ganhou força como
uma teoria durante a construção das organizações científicas. O racismo era uma
forma objetiva de enxergar e encarar o mundo, oficialmente reconhecida, como
parte de “um sistema respeitável de valores que influenciou significativamente
as políticas colocadas em ação pelas classes governantes”. Diversos cientistas e
juristas criaram teorias para justificar a suposta superioridade do homem branco,

415
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

como por exemplo Carolus Lineu6, no livro Systema Naturae (1735) no qual cria
uma divisão entre quatro tipos de raça humana, sendo o homem branco dotado
das melhores característica e o homem negro das piores.
O homem branco foi assim apresentado: “Sangüíneo, ardente; cabelos lou-
ros, abundantes; olhos azuis; leve, fino, engenhoso; usa roupas estreitas;
é regido pelas leis”. Os demais, é claro, ganharam notas mais baixas. O
asiático foi apresentado como melancólico, severo, fastoso e avaro, “regido
pela opinião”. O americano seria vermelho, bilioso, teria cabelos negros,
lisos e abundantes, narinas amplas, queixo quase imberbe; “teimoso, ale-
gre, erra em liberdade; pinta-se de linhas curvas vermelhas; é regido pelos
costumes”. O africano, sempre mais perseguido, teria por sua vez cabe-
los crespos, lábios grossos, pele oleosa e nariz simiesco; seria “indolente,
de costumes dissolutos (...) vagabundo, preguiçoso e negligente (...)regido
pelo arbítrio” (SILVEIRA, 1999, p. 99).

De acordo com Silveira (1999, p. 101), outro exemplo de cientista racista


seria o químico e geólogo Georges Leclerc, conhecido como conde de Buffon,
que propagava que os negros não tinham imaginação, que rejeitavam o progres-
so e a mudança, limitando-se a imitar servilmente seus antepassados, sendo os
homens negros incapazes de cultivar e se dedicar a plantação nos locais onde
habitavam.
A única vantagem dos africanos sobre os americanos, segundo a versão
buffoniana, é que os negros seriam capazes de escapar da sua eterna pre-
guiça e indolência... para cercar as mulheres. Contudo morreriam jovens,
mergulhados desde muito cedo na esbórnia, esgotando-se rapidamente em
virtude da sua exorbitante atividade sexual (SILVEIRA, 1999, p. 101).

Ainda é possível comentar que Caspar Lavater acreditava ser possível


identificar as qualidades de um indivíduo pela sua fisionomia. Segundo Silveira
(1999, p. 102), Lavater dizia que “a pele escura era tida pela fisiognomonia como
signo de uma alma pervertida, enquanto a pele clara conotava um caráter no-
bre”. Diversos outros teóricos tentavam justificar o racismo baseado em uma
suposta ciência. O racismo científico foi superado, mas o preconceito racial as-
sumiu outras faces com o passar dos anos. No Brasil, foram mais de 300 anos de
escravidão e violência contra as pessoas negras, sendo a criação dos quilombos
uma tomada de consciência e luta contra a opressão e racismo que os escraviza-
dos sofriam.
A discriminação racial brasileira é mascarada e sutil, diferente do racismo
que acontece nos Estados Unidos que é claro e consistente. No Brasil, segun-
do Domingues (2005, p. 116), a democracia racial significa um sistema racial
desprovido de qualquer barreira legal ou institucional para a igualdade racial, e
desprovido de preconceito ou discriminação. A verdade é que no Brasil não há

6 Foi botânico, zoólogo e médico sueco.


416
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

essa suposta democracia racial que Gilberto Freyre defendia em seu livro Casa-
Grande & Senzala (1933), o que ocorreu foi a tentativa de embranquecimento da
população para apagar não só os traços físicos da população negra, mas também
seus hábitos, crenças e histórias:
Devemos compreender “democracia racial” como significando a metáfo-
ra perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não tão óbvio vomo
o racismo nos Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da
África do Sul, mas institucionalizado de forma eficaz nos níveis oficiais
do governo, assim como difundido e profundamente penetrante no teci-
do social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade de país
(NASCIMENTO, 2016, p. 111).

A democracia racial não passa de um mito, e o racismo que antes se jus-


tificava de forma científica e jurídica, no século XXI, é encarado por Almeida
(2020, p. 20-21) como estrutural, pois o racismo é um elemento que faz parte
da organização econômica e política da sociedade, “uma manifestação normal
de uma sociedade e não um fenômeno patológico ou que expressa algum tipo
de anormalidade”. De acordo com Pereira (2019, p. 51), os quilombos foram as
insurgências à colonialidade, “um contraponto de resistência ao racismo cultural
que contribui para o ocultamento da memória e da história da população negra”.
Preservar e reconhecer os remanescentes dos quilombos é uma luta e um ato de
resistência constante contra as tentativas de apagamento da cultura negra, por
isso é essencial ressaltar e propagar a trajetória do Quilombo da Pedra do Sal.

CONCLUSÃO

Os quilombos são locais de resistência territorial, cultural, social e até mes-


mo religiosa, representam a subversão ao colonialismo e ao racismo sofrido pela
população negra. O Quilombo da Pedra do Sal e sua história não podem ser
apagados ou esquecidos, pois narram não só a vida da população negra que ha-
bitava a região, lutando contra a escravidão e o racimo, mas também é o berço do
samba carioca e local onde surgiram as primeiras escolas de samba e primeiros
terreiros de candomblé carioca.
Preservar o Quilombo da Pedra do Sal é essencial para que futuras ge-
rações possam revisitar a longa história de resistência dessa comunidade, que
representa a luta da população negra no Brasil, uma luta por liberdade, do corpo
físico, como das práticas culturais e religiosas. Por isso, é tão importante o reco-
nhecimento dado pela Fundação Cultural Palmares em 2006, após uma longa
batalha pela propriedade da terra com a Venerável Ordem Terceira.
Outras legislações amparam o Quilombo da Pedra do Sal até o seu reco-
nhecimento definitivo, como o tombamento da Pedra do Sal, em 1987, a pró-
pria Constituição Federal de 1988, nos seus artigos 215 e 216, além do artigo
417
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68, dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o Decreto


4.887/2003 e o Decreto 44.705/2018, todos esses dispositivos legais contribuí-
ram para a preservação do bem.
O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional pouco avançou
na proteção dos quilombos, existindo somente dois quilombos tombados e diver-
sos processos de propostas de tombamentos negadas. A proteção do patrimônio
negro é negligenciada, em prol da construção de uma história brasileira branca
e de origens europeia. O maior avanço no acautelamento de bens de origem
afro-brasileira se deu com o patrimônio imaterial, como o registro das rodas de
capoeira, das matrizes do samba do Rio de Janeiro, o ofício das baianas de aca-
rajé e outros.
Para combater o racismo estrutural, além das consequentes desigualdades
e violências que a população negra sofre, é fundamental que a memória e a histó-
ria do Quilombo da Pedra do Sal e de tantos outros espalhados pelo Brasil, sejam
preservados, pois são símbolos de resistência do povo negro, comprovando que a
democracia racial brasileira é somente um mito. Reconhecimento e preservação
são os primeiros passos para uma reparação histórica com a população negra e a
construção de uma sociedade antirracista.

REFERÊNCIAS
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Editora Jandaíra, 2020.
ANJOS, R. S. A. dos. (Pesq.). Quilombolas: tradições e cultura de resistência.
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BARBOSA, Diana. Quilombolas Urbanos Pedra do Sal e Sacopã/ RJ : Ter-
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421
POLÍTICA DE AÇÃO AFIRMATIVA:
UMA ARGUIÇÃO BASEADA NA
EXPERIÊNCIA DE UM QUILOMBOLA
Fábio José Brito dos Santos1

INTRODUÇÃO

As políticas afirmativas de quilombolas nas universidades públicas no


Brasil ainda não são um direito garantido especificamente em legislação, sendo
que essa mesma ação é estabelecida apenas em cursos de graduação, deixando a
população dos quilombos na maioria das vezes sem acesso a um dos princípios
universitários que é a pesquisa. Entre muitos debates e discussões no parlamento
brasileiro, o projeto de lei diverge opiniões, sendo muito mal-visto pela bancada
conservadora em sua maioria absoluta, rachando ideologicamente as concep-
ções étnicas raciais.
Apesar da ausência dessas políticas, muitas instituições e programas de
mestrados e doutorados atualmente aderiram as ações afirmativas para quilom-
bolas, principalmente nas ciências humanas nos últimos anos, mas claro isso
representa apenas uma parcela mínima de universidades, sendo que muito se pre-
cisa avançar na construção de uma diversidade e representatividade dos grupos
minoritários, por conseguinte esses espaços necessitam de um perfil heterogêneo2.
O desprovimento de grupos vindouros dos quilombos se dão exclusiva-
mente pelo difícil acesso no ingresso dos programas stricto sensu, em virtude dos
processos rigorosamente seletivos, com critérios e etapas que de certa forma não
correspondem à realidade dessa população. Outra razão influente nessa exclusão
são os fatores econômicos sociais, longitude dos quilombos do campus univer-
sitário, uma vez que as instituições em síntese não são de fatos descentralizadas
suficientemente.

1 Graduado em Pedagogia - Faculdade Kurios (FAK); Professor atuante na educação básica;


Especialista em Alfabetização e Letramento - Faculdade Intervale; Mestre em Educação
(FCU). E-mail: [email protected]
2 Diferentes estruturas, funções, distribuições e características físicas, psicológicas, compor-
tamentais e sociais.
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

AS DIFICULDADES DE ACESSO AOS PROGRAMAS STRICTO


SENSU NAS UNIVERSIDADE PÚBLICAS

Historicamente no Brasil, o acesso às universidades nunca foi algo fa-


cilmente assegurado pelas populações tradicionais, visto que, mesmo as popula-
ções urbanas que estão em situações vulneráveis, ou seja, as periferias e favelas
das grandes cidades e capitais sofrem comumente essas dificuldades de acesso.
Entretanto, com a população quilombola é muito mais complicado, de manei-
ra que essas comunidades se localizam em territórios distantes dos complexos
universitários.
Diante disso, esses grupos vêem o ensino e a pesquisa como uma reali-
dade quase que impossível, ou melhor, longe de uma ação concreta, pois requer
toda uma logística de funcionamento, sendo que muitos não conseguem nem
concluir uma graduação, muito menos ter oportunidade de ingressar em cursos
de mestrado e doutorado.
Os cursos de pós-graduação stricto sensu 3público no Brasil ainda é
muito concorrido e seletivo, com critérios extremamente complexo, tendo como
princípio a produção acadêmica e cientifica como parâmetro regente em todas
os ingressos. Deste modo, os alunos quilombolas possuem escassez de acesso a
ferramentas básicas como internet, materiais didáticos atualizados, bibliotecas
e entre outros bens comuns, que dificulta diretamente a criação e construção de
publicações, participações e alinhamento para o currículo do indivíduo em si.
Nestes casos, já podemos imaginar que os candidatos que usufruem des-
tas ferramentas com mais precisão levam longa vantagens aos demais, natural-
mente é um resultante do abismo da desigualdade social, que deixa suas marcas
radicalmente pelas classes sociais de menor poder aquisitivo.
Ao longo dos anos muito se tem discutido por essas razões, e até mesmo
algumas atitudes se tem tomadas, para que possa reparar esses efeitos do sistema
falho que vivenciamos, principalmente no egresso de quilombolas, assim como
de indígenas, criando processos seletivos especiais ou com normas mais justas. É
neste sentido que Oliven (2009) afirma que apesar de avanços e reformulações,
as universidades públicas permanecem ainda muitos seletivas e indiretamente
excludentes, com estudantes em sua maior parte oriundos de classe média e altas
de grande poder financeiro, de cor branca e majoritariamente egressos de esco-
las com ensino básico e cursinhos do setor privado, com altas mensalidade de
investimento.
É fato que não precisamos de muito rodeio para concluir que os alu-
nos brancos, ou de classes não baixas são os mais presentes nos cursos de

3 Compreende-se exclusivamente aos cursos de mestrados e doutorados, alinhado direta-


mente com a pesquisa acadêmica, com titulação e diplomação.
423
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

pós-graduação das universidades federais e estaduais do nosso país, da forma


que também membros de comunidades tradicionais como quilombolas detém
baixíssimas participação como ingressantes nos programas disponibilizados.
A partir dessa problemática tida como um ato exclusivo, estudado e com
comprovações de pesquisadores principalmente de ciências sociais, que gerou
debates dentro das universidades, de como fazer uma reparação de equidade, que
pudessem corrigir ou pelo menos reduzir essas desigualdades, tida como uma
dívida histórica, envolvendo luta, discussões, movimentos e até mesmo a pressão
popular por partes das minorias.
Conforme as colocações de Moehlecke (2002, p. 203), define a ação afir-
mativa como:
Uma ação reparatória/compensatória e/ou preventiva, que busca corrigir
uma situação de discriminação e desigualdade infringida a certos grupos
no passado, presente ou futuro, através da valorização social, econômica,
política e/ou cultural desses grupos, durante um período limitado. A ênfa-
se em um ou mais desses aspectos dependerá do grupo visado e do contex-
to histórico e social (MOOEHLECKE, 2002, p. 203).

Com este conceito, temos a clareza de como essas políticas são de grande
essencialidade para a inclusão das minorias oprimidas, que se encontram secu-
larmente longe de acessos básicos educacionais, visto que ocasionado também
por um sistema econômico que não valoriza os mais necessitados, consegue em-
purrar essa parcela valorosa de cidadãos longe dos direitos amparados na cons-
tituição, e regidos pelos documentos oficias como por exemplo a LDB4 (Lei de
Diretrizes e bases das Educação – 1996).
Não se pode deixar de mencionar que muitas visões políticas, de aspec-
tos direitistas e conservadores sempre se puseram divergentes a política de cotas,
tornando-os como antagonistas na luta por um acesso mais cabível e prezando
pela justiça social, como bandeira de luta e sonhos. Essas contradições e confron-
tos com a proposta de estabelecimentos de políticas afirmativas em ingressos de
mestrados e doutorados, consequentemente dificultam uma legislação específica
que estabeleça e determine essas reservas para quilombolas e demais grupos.
Na atualidade temos um projeto de lei na câmara federal que institui as
cotas para esses fins a nível nacional, porém o texto se encontra ainda em trami-
tação, que certamente levará um período ainda extenso para aprovação perma-
nente, no momento temos em vigor apenas uma legislação que estipula cotistas
para cursos de graduação e de ensino técnico de nível médio em instituições
federais.

4 Lei que define e regulariza a organização da educação brasileira com base nos princípios
da constituição federal, conhecida também como lei Darcy Ribeiro.
424
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Portanto, algumas instituições por si próprias estipulam uma legislação


interna, ampliando as políticas de ação afirmativas para grupos como: quilom-
bolas, indígenas, travestis e transexuais, negros e ciganos, sendo que esses grupos
podem variar de acordo com o estabelecimento.
Segundo Rosemberg (2013) A criação de ações afirmativas em cursos
de pós-graduação foi incentivada pela Fundação Carlos Chagas (FCC) e pela
Fundação Ford (FF) por meio de duas iniciativas: o Programa Internacional
de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford, também conhecido como
International Fellowship Program (IFP), criado em 2001; e o Programa de
Dotações para Mestrado em Direitos Humanos no Brasil, criado em 2003.
Ambos são considerados as primeiras iniciativas de inclusão de candidatos per-
tencentes a grupos sub representados na pós-graduação.
Percebemos o quanto essa idealização de uma justiça social educacional
é recente, que também como esses movimentos que vieram também do exterior
e se instalaram de muitas vezes involuntariamente, também conseguiram feitos
que refletem hoje em dia, como uma questão emergente racial.
De acordo com uma afirmação de Carvalho (2006) assegura que a
Universidade do Estado da Bahia (UNEB) foi a primeira instituição de ensino
superior pública a estabelecer, em 2002, uma política de ação afirmativa voltada
para a entrada de negros e indígenas em cursos de pós-graduação, temos a insti-
tuição hoje como pioneira nacional nessa prática de inclusão e abertura para as
populações que devemos ter uma atenção própria.
Uma conquista que para os grupos vulneráveis é considerado tardia, mas
que trouxe grandes reflexões para que outras universidades repensassem suas
políticas de inclusão, rompendo barreiras que se perpetuam secularmente, entre-
tanto podem serem superadas. Citamos Moehlecke (2002) diz que a política de
cotas para ingresso nas instituições de ensino superior federais pode ser enten-
dida como uma política compensatória que visa incidir sobre a diminuição de
desigualdade.
Até 2021, de acordo com o Jornal Folha de São Paulo, apenas 29 univer-
sidades públicas no Brasil tinham regulamentados cotas na pós-graduação, vale
ressaltar que essas é uma amostra de um universo de 108 universidades públicas
brasileiras. Conforme esses dados podemos refletir o quanto essa discussão ainda
é prematura nesses âmbitos de educação.
As instituições que já regulamentaram essas políticas inclusivas, são tidas
como grandes modelos para as demais, consideradas por muitos pesquisadores
como visionárias nesse aspecto. Assim Ribeiro e Schlegel (2015) compactuam de
um estudo demonstrando que, apesar de o acesso à universidade ter se democra-
tizado e do aumento expressivo do número de pretos e pardos no ensino superior,
isso não ocorreu de forma igual em todas as carreiras: áreas menos valorizadas

425
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

pelo mercado de trabalho, tais como Humanidades e Ciências Sociais Aplicadas,


incluíram mais do que o restante das outras.
A citação indireta nos dá uma margem de como os próprios cursos e pro-
gramas universitários possuem cor, classe social e endereço. Ou melhor, os cur-
sos tidos como menos remunerados, são ingressados em sua maioria esmagadora
por pessoas de raça preta e indígena, são de classes mais baixas e pobres, moram
nas periferias, comunidades e aldeias.
Não deixaremos também de salientar, que mundo a fora se vem usufruin-
do dessas ações de inclusões raciais, Moehlecke (2002) aborda em seus estudos
que as experiências de ações afirmativas apresentam significativas variações
conforme seu desenvolvimento em termos de países (EUA, países da Europa
Ocidental, Índia, Malásia, Austrália, Canadá, Nigéria, África do Sul, Argentina,
Cuba, dentre outros), formas (ações voluntárias, de caráter obrigatório, ou uma
estratégia mista; programas governamentais ou privados; leis e orientações a par-
tir de decisões jurídicas ou agências de fomento e regulação), públicos a que se
destinam (minorias étnicas, raciais, gênero, entre outros), áreas de abrangência
(mercado de trabalho; sistema educacional; e representação política), bem como
diversos desenhos de suas práticas através de percentual de vagas proporcional
ou não; e, por fim, em termos de taxas e metas.

O QUE ESPERAR DOS QUILOMBOLAS COMO PESQUISADORES?


E POR QUE A LUTA É INDISPENSÁVEL?

Não se pode esconder, que com essa parcela de pesquisadores oriundo de


comunidades tradicionais, que é o caso dos quilombolas, é nada mais justo que
uma democratização da pesquisa para o contexto universitário e científico, de
forma que os saberes vindo desses grupos são essenciais para temáticas de todas
as áreas de conhecimento, mais ajustadas ainda em programas com linhagens
voltadas as artes, religiosidade, antropologia, e entre outras que classificam os
quilombos como celeiros intercultural.
Outro ponto importante como campo de pesquisa, são os movimentos
sociais que são oriundos de dentro das comunidades quilombolas, que trazem
um paradigma de luta e resistência, influente também na conquista de direitos e
conquistados ao longo de décadas, tais como a cotas raciais e bolsas de estudos,
que devem a essas pressões populares, que saiu do interno comunitário e chegou
nas discussões da academia, tomando um espaço de muito requinte.
Partindo dessa premissa, Brito (2011) classifica esses movimentos como
fator decisivo desses alcances para essas comunidades, afirmando a seguinte co-
locação de modo que:
Quando se trata de refletir sobre o desenho de alternativas, é preciso

426
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

considerar o papel ativo e legítimo desempenhado pelos mais diversos mo-


vimentos sociais, com base em seus mecanismos de mobilização e pressão
sobre o poder público e a sociedade, de modo a reconhecer a legitimidade
de suas ações no sentido de reorientar as prioridades políticas e orçamen-
tárias do Estado. Ou seja, não se pode pensar os efeitos redistributivos do
“capital social gerado pelo Estado” sem considerar que esse capital se cons-
trói a partir do reconhecimento e do respeito às reivindicações dos movi-
mentos sociais enquanto atores políticos (BRITO, 2011, p. 121).

É com essas faturações de lutas, que quilombolas passam também a serem


visto como ferramentas de pesquisas, ou melhor, explica-se que se uma classe de
pessoas cobra e exige uma causa, consequentemente este mesmo grupo pode ser
considerado como um potencial nessa causalidade que tanto defende, resultando
em pesquisadores empenhados e com destaques em suas comprovações e estu-
dos, garantindo cada vez mais a permanência desses indivíduos.
O valor da ciência não se entrelaça apenas na qualidade de quem a pro-
duz, mas também está vincula com os problemas reais de onde se pesquisa, na-
turalmente as comunidades tradicionais trazem para universidade não apenas os
seus problemas, mas também comprovações conciliadas com as recomendações
evidenciadas no seus estudos, carregando seus anseios como bandeira de resis-
tência e popularidade para o universo acadêmico, concepções essas que foram
silenciadas no decorrer de séculos, mas só atualmente vem ocupando o espaço
que também é seu com propriedade e formalidade na academia.
Na presença dos quilombolas como parte integrante da sociedade intelec-
tual, passamos a perceber a relevância da comunidade sociocultural para o reco-
nhecimento de uma identidade erudita e culta, que muitas vezes ainda é margi-
nalidade por um preconceito embutido principalmente pelos locais frequentados
e inseridos socialmente, conceituado como espaços regredidos e desimportantes
para uma certa categoria de pessoas.
Em seus estudos mais recentes Salvadori (2011) desenvolve seu raciocínio
sobre as formas de tomadas de espaço, que afere os grupos sociais em suas for-
malidades de serem reconhecidos:
Os indivíduos e os grupos sociais somente podem formar a sua identida-
de quando forem reconhecidos intersubjetivamente. Esse reconhecimento
ocorre em diferentes dimensões da vida: no âmbito privado do amor, nas
relações jurídicas, e na esfera da solidariedade social. Essas três formas
explicam a origem das tensões sociais e as motivações morais dos conflitos
(SALVADORI, 2011, p. 189-190).

O conflito sempre parte de uma necessidade, essa ocupação podemos


comparar com a defesa dos quilombolas nas universidades, visto muitas vezes
como desimportantes por uns, mas insubstituíveis pela maioria dos universitá-
rios, assim também com as docências na academia.

427
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Deve-se afirmar que também as imposições sofridas por esses pesquisado-


res quilombolas, não parte apenas externamente das universidades, mas também
de alunos e pesquisadores ingressantes dos programas, assim como absurdamen-
te de professores que vão contramão aos processos seletivos especiais e a própria
cotação de alunos com vagas direcionadas exclusivamente por esse público.
São essas razões que os movimentos, assim como os próprios pesquisado-
res tem por obrigação defender a causa de maneira coletiva, mesmo com o fato
de interferência dentro da própria instituição, que certamente dificulta e enfra-
quece esse debate de inclusão com os quilombos.
Segundo Manzine-Covre (2002) afirma que dessa forma é preciso urgente-
mente que “os homens de uma sociedade se mantenham como cidadãos à medi-
da que partilham as mesmas normas e podem lançar mão delas para se defender.
Constituição violada significa cair na tirania e no arbítrio dos que têm poder
econômico e político” (MANZINE-COVRE, 2002, p. 18).
A constituição assim como a legislação oficial, devem ser cumpridas, mes-
mo que especificamente não possuem em muitos casos, assim como a política
afirmativa de pós-graduação stricto-sensu, que não há uma lei regida que de-
termine esse acesso, é necessário que tenha exigência, dentro e fora da política
institucional.
Sobre essas questões norteadores Nogueira (2008) considera essas deman-
das da seguinte forma:
A democratização do acesso à educação superior não é uma mera amplia-
ção das vagas, partindo do princípio de que a democratização requer que
camadas sociais mais desfavorecidas obtenham acesso à universidade. A
democratização não se refere apenas a níveis sociais. O acesso à universida-
de democratiza-se quando aumenta o acesso das camadas desfavorecidas e
também ao ingressarem indígenas, pardos e negros (apud MACIEL, 2014,
p. 29).

Podemos esperar que com pesquisas mais abertas a problemas da popula-


ção vulnerável, que na verdade é a maioria mais completa da sociedade, resul-
taremos em uma democratização da educação superior, mesmo que de maneira
gradual, mas que avanços precisam ser tomados não só pela iniciativa institucio-
nal, mas certamente pela atitude essencial dos quilombolas.
Para Gomes (2001) explica abertamente sobre as introduções dessas polí-
ticas de cotas, certificando que:
As ações afirmativas tem a função de: Induzir transformações de ordem
cultural, pedagógica e psicológica, visando a tirar do imaginário coletivo
a ideia de supremacia racial versus subordinação racial e/ou de gênero;
coibir a discriminação do presente; eliminar os efeitos persistentes (psi-
cológicos, culturais e comportamentais) da discriminação do passado,
que tendem a se perpetuar e que se revelam na discriminação estrutural;

428
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

implantar a diversidade e ampliar a representatividade dos grupos mino-


ritários nos diversos setores; criar as chamadas personalidades emblemáti-
cas, para servirem de exemplo às gerações mais jovens e mostrar a elas que
podem investir em educação, porque teriam espaço (GOMES, 2001 apud
MORAES, 2013, p. 35).

O autor cita o espaço ocupado por essas populações, como uma conquista
constante, sendo que as gerações de hoje podem ser resultado de uma dívida
histórica que o Brasil possui com essas comunidades, é fato que nada é suficiente
para mudar a história ou tornar menos sofrida. A discriminação e o preconceito
sofrido não podem ser resumidos apenas como atitudes sociais, mas sim institu-
cionais, quando a nossa presença incomoda ou é rejeitada.
Neves (2010) assegura em seu discurso uma linguagem importante, fazen-
do a seguinte reflexão:
Saber se as cotas são um meio eficaz de combater as desigualdades, ou ao
contrário, se elas apenas vão criar outras, vai se tornar um a questão central
do debate. Um ponto de clivagem será o reconhecimento do preconceito
racial como um elemento gerador ou não das desigualdades, o que poderia
ser sintetizada na seguinte questão: os negros são discriminados por que
são negros ou por que são pobres? (NEVES, 2010, p. 24).

Há muitas colocações que as cotas raciais só servem para reproduzir mais


preconceitos, fazendo das universidades como verdadeiras indústrias de segrega-
ção. Não podemos compactuar com essas ideias distorcidas, de maneira que as
mesmas foram introduzidas com viés de oportunizar grupos que tiveram ou tem
um histórico de baixa participação ao longo dos anos, sendo comprovadas por
números quantitativamente verídicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Consideramos que neste trabalho se debruçamos sobre os problemas mais


complexos referentes às políticas de ações afirmativas para quilombolas, diri-
gindo-se especificamente com as dificuldades de acessos aos programas de pes-
quisas, condições socioeconômicas, lutas e conquistas para uma inclusão deste
grupo enquadrado como minorias oprimidas ao longo de séculos, que mesmo
em tempos democráticos esse espaço ainda é tido como exclusivo num sentido
mais amplo, onde nega-se indiretamente a inclusão destes grupos.
Os parâmetros de ingressos ainda são desleais com esses indivíduos, não
correspondendo com a autenticidade do modo geral, carregando culpas de modo
indiretos, ocasionando em um perfil caracterizado como elitista, segregando a
sociedade de maneira formal.
Em conclusão, se atesta que o objetivo deste estudo se tornou alcança-
do, devido ao comprometimento com os fatos mencionados no decorrer do

429
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

desenvolvimento efetivos dos argumentos. Recomendamos que se tenha políticas


públicas funcionais, que reconheça a essencialidade de indivíduos provenientes
de comunidades quilombolas, que com todas as dificuldades impostas e sofridas
por razões distintas, tem seus espaços saqueados pela classe dominante.

REFERÊNCIAS
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Brasil. In: Paidéia, Belo Horizonte, a. 8, n. 11, p. 113-125, 2011. Disponível em:
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Caxias do Sul(UCS). v. 16. n. 1. Caxias do Sul, RS: Educs, 2011.

430
SANGUE RUIM: UMA ANÁLISE
DO PRECONCEITO RACIAL
EM HARRY POTTER
Gabriel Felipe da Silva1

SANGUE RUIM

Mais um ano se passa e Harry chega ao segundo ano na escola de magia


e bruxaria de Hogwarts, ele não vê a hora do ano letivo começar e reencontrar
seus amigos, mas se depara com alguns impasses. A narrativa de Harry Potter e a
Câmara secreta apresenta três cenas de puro preconceito que leva o leitor a refletir
sobre essa temática.
O ano letivo começará e os alunos precisam comprar o material escolar,
nenhum lugar é melhor que o beco diagonal2. O trio bruxo vivencia uma situação
de claro preconceito ao esbarrar com o Draco Malfoy dentro de uma livraria, e
o bruxo lhes dirige a seguinte frase: “Imagino que seus pais vão passar fome um
mês para pagar todas essas compras” (ROWLING, 1998, p. 42). Draco, por ser
oriundo de uma família de sangue puro e rica, sente-se superior a todos e tenta
humilhar quem não faz parte da alta sociedade, todavia isso não é uma caracte-
rística apenas do filho, o pai, Lucio Malfoy, é tão repugnante quanto ele.
– Muito trabalho no Ministério, ouvi dizer – falou o Sr. Malfoy. – Todas
aquelas blitzs. Espero que estejam lhe pagando hora extra! Ele meteu a
mão no caldeirão de Gina e tirou, do meio dos livros de capa lustrosa de
Lockhart, um exemplar muito antigo e surrado de um Guia da transfigura-
ção para principiantes.
– É óbvio que não – concluiu o Sr. Malfoy. – Ora veja, de que serve ser
uma vergonha de bruxo se nem ao menos lhe pagam bem para isso? O Sr.
Weasley corou com mais intensidade do que Rony e Gina.
– Nós temos ideias muito diferentes do que é ser uma vergonha de bruxo,
Malfoy. – Visivelmente – disse o Sr. Malfoy, seus olhos claros desviando-se

1 Mestrando em Educação e Cultura contemporânea – UNESA, Pós-graduado em Teoria


da Literatura - Focus. Bacharel e Licenciado em Letras – UNESA, Pós-graduando em Es-
tudos linguísticos e literários - IFRJ. Pós-graduando em Língua Portuguesa - UERJ.
2 Beco Diagonal é uma área bruxa de compras empedrada localizado em Londres, Inglater-
ra atrás de um pub chamado o Caldeirão Furado. Dentro do beco há uma variedade de res-
taurantes, lojas e outras atrações. Todos os itens da lista de Hogwarts podem ser comprados
no Beco Diagonal. O beco é completamente escondido do mundo trouxa, sendo fora dos
limites deste. É muito grande em área e essencialmente o centro da Londres bruxa
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

para o Sr. e Sra. Granger, que observavam apreensivos. – As pessoas com


quem você anda, Weasley... e pensei que sua família já tinha batido no
fundo do poço (ROWLING, 1998, p. 43).

O ano letivo começa e Potter precisa praticar quadribol3. Ao dirigir-se


para o campo, encontra com o time da Sonserina e é informado que não pode-
rá praticar. Draco, o novo apanhador da Sonserina, debocha dos jogadores da
Grifinória por usarem vassouras básicas, diferente da Sonserina que ganhou do
pai dele nimbus 2001; a vassoura mais rápida e cara do momento.
Sete cabos polidos, novos em folha, e sete conjuntos de letras douradas, for-
mando as palavras Nimbus 2001, reluziam sob os narizes dos jogadores da
Grifinória, ao sol do amanhecer. – Último modelo. Saiu no mês passado –
disse Flint displicente, tirando um grão de poeira da ponta de sua vassoura
com um peteleco. – Acho que bate de longe a série antiga das 2000. Quanto
às velhas Cleansweep – e sorriu de modo desagradável para Fred e Jorge,
que seguravam esse tipo de vassoura –, varram o placar com elas. Nenhum
dos jogadores da Grifinória conseguiu pensar em nada para dizer naquele
instante. Draco exibia um sorriso tão grande que seus olhos frios estavam
reduzidos a fendas (ROWLING, 1998, p. 68).

Rony e Hermione procuram saber o que está se passando, Draco interpela


e tenta expulsar os dois dali, contudo a dupla não recua e Draco, como sempre,
usa do seu preconceito para conseguir o que quer.
– Ninguém pediu sua opinião, sua sujeitinha de sangue ruim – xingou ele.
Harry percebeu na hora que Draco dissera uma coisa realmente ofensiva,
porque houve um tumulto instantâneo em seguida às suas palavras. Flint
teve que mergulhar na frente de Draco para impedir que Fred e Jorge se
atirassem contra ele. Alícia gritou com voz aguda: – Como é que você se
atreve! – E Rony mergulhou a mão nas vestes, puxou a varinha e gritou: –
Você vai me pagar! – E apontou a varinha, furioso, para a cara e Draco, por
baixo do braço de Flint (ROWLING, 1998, p.68).

O trio corre para a cabana de Hagrid e conta o que aconteceu:


– Malfoy chamou Mione de alguma coisa, deve ter sido muito ruim porque
ele ficou furioso.
– Foi ruim – disse Rony, rouco, erguendo-se, lívido e suado, até a superfície
da mesa. – Malfoy chamou Mione de sangue ruim, Hagrid... Rony tornou
a sumir debaixo da mesa e um novo jorro de lesmas caiu.
Hagrid pareceu indignado. – Ele não fez isso!
– Fez sim – confirmou Mione. – Mas eu não sei o que significa. Percebi que
era uma grosseria muito grande, é claro...”
– É praticamente a coisa mais ofensiva que ele podia dizer – ofegou Rony,
voltando.
– Sangue ruim é o pior nome para alguém que nasceu trouxa, sabe, que não
tem pais bruxos. Existem uns bruxos, como os da família de Malfoy, que se

3 O Quadribol é o esporte mais praticado entre os bruxos. Uma espécie de futebol em que os
bruxos jogam montados em vassouras voadoras.
432
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

acham melhores do que todo mundo porque têm o que as pessoas chamam
de sangue puro” (ROWLING, 1998, p. 71).

Fica notório que os mais diversos tipos de preconceitos são presentes na


literatura, seja em uma obra infantojuvenil, como é a nosso objeto de análise, seja
em outros gêneros literários. Dessa maneira, é possível observar que o preconcei-
to começa desde criança, não porque ela seja ruim ou má, mas ela é influenciada
pelo meio em que vive. Ora, não é incomum vermos crianças da educação infan-
til se recusando a brincar com um colega negro ou chamar de cabelo duro por
exemplo. O meio que cerca essas crianças, assim como teve o poder de fazê-las
serem intolerantes, do mesmo modo pode reverter essa situação. A criança é um
ser puro e que pode ser moldado para o bem ou para mau.
Desse modo, o preconceito étnico-racial é crime, conforme a Lei Nº 7.716,
de 5 de janeiro de 1989. Podemos definir como qualquer aversão a pessoas de
outras raças. Uma das manifestações mais explícitas do que é preconceito étnico-
racial é o racismo, que se caracteriza como inferiorização de alguém de acordo
com a raça. Quando excluímos alguém por ser branco, negro, índio, cigano, asiá-
tico, estamos nos comportando como criminosos e intolerantes, de acordo com a
constituição federal brasileira e o código penal isso é crime.
De acordo com a taxonomia biológica, só existe espécie humana.
Diariamente usamos a palavra raça para definirmos seres humanos negros, asiá-
ticos, embora seja usado largamente ao redor do mundo, esse termo é errado.
A taxonomia biológica vai de reino até espécie, não existindo raça. Para Bove
(2020), em reportagem publicada pela BBC Word Services, todos os seres huma-
nos pertencem a uma única raça. A reportagem mostra que os cientistas con-
tribuíram para a disseminação da ideia de que a raça branca e europeia seria
superior ao restante. Gomes (2001, p. 85 apud ANDRADE; SOUSA, 2014, p.
2), coloca que “raça é entendida como um conceito relacional que se constitui
histórica, política e culturalmente”. Em complemento a essa ideia, Turner (2000,
p. 121) diz que:
Preconceitos são crenças a respeito de membros de um grupo étnico iden-
tificados segundo suas qualidades indesejáveis. Pense em epítetos étnicos
e as conotações que carregam, como claros indicadores de crenças pre-
conceituosas ‘nego’, ‘carcamano’ ‘polaco’, ‘baiano’, ‘japa’, e assim vai.
Crenças preconceituosas são, portanto, uma parte notável da cultura de
todas as sociedades (TURNER, 2000, p. 121).

No enredo, Harry, Rony e Hermione caminham por um dos corredores


do castelo e se deparam com uma gata petrificada (congelada), na parede tem
uma mensagem escrita com sangue que diz: “A câmara secreta foi aberta, inimi-
gos do herdeiro... cuidado” (ROWLING, 1998, p. 84). O corredor rapidamente
lotou de alunos e professores, entre eles, o menino Malfoy, ao se deparar com a

433
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(O rganizadores )

mensagem lê em voz alta com o olhar direcionado para Hermione com um tom
de ameaça e deboche. Hermione e seus amigos ficaram desconfiados, e dali em
diante pensaram que o menino da Sonserina seria o herdeiro da câmara e matará
todos os sangues ruins.
Harry, Rony e Mione estavam sozinhos no meio do corredor, e os estudan-
tes que se empurravam para ver a cena macabra se calaram. Então alguém
gritou em meio ao silêncio. – Inimigos do herdeiro, cuidado! Vocês vão ser
os próximos, sangues ruins! Era Draco Malfoy. Ele abrira caminho até a
frente dos alunos, seus olhos frios muito intensos, seu rosto, em geral páli-
do, corara, e ele ria diante do gato pendurado imóvel (ROWLING, 1998,
p. 84).

O preconceito com bruxos, que não têm sangue puro, é tão grande que não
basta querer humilhá-los, escravizá-los, o desejo é matá-los. Vemos isso todos os
dias, pessoas sendo mortas por serem gays, por serem negras, por serem muçul-
manas ou por estarem em situação de rua. Existe uma intolerância para deter-
minados grupos sociais e isso pode ser combatido pelos mais variados setores da
sociedade, dentre eles, a escola.
Nesse sentido, o ambiente escolar é uma instituição formada pela cida-
dania, de forma que o preconceito começa a ser combatido nela, ensinando e
mostrando aos estudantes o que é e como lutar. O Brasil, por ser um país multir-
racial, extremamente miscigenado, deveria ter o menor dos índices de preconcei-
to racial, mas isso não acontece. Em uma pesquisa, feita pelo G1, em 2018, que
contou com a participação de 27 países, o Brasil aparece em 07° lugar como o
país mais intolerante, empatado com Estados Unidos da América (EUA) e Reino
da Espanha (ES).
Embora exista uma diversidade cultural gigante, é visível que a escola ain-
da não se sente confiante para lidar com situações de preconceito. É comum que
os indivíduos se deparam com diversas histórias de bullying em seu dia a dia.
Paulatinamente, os números têm reduzido, isso se dá por estarmos numa época
de forte influência digital e vivermos a cultura do cancelamento.
Cancelar uma pessoa virou uma prática usada por muitos nas redes sociais
nos últimos anos, e “cultura do cancelamento” foi eleito como o termo
do ano em 2019 pelo Dicionário Macquarie, que todos os anos seleciona
as palavras e expressões que mais caracterizam o comportamento de um
ser humano. Uma pessoa ser cancelada significa que ela fez ou disse algo
errado, que não é tolerado no mundo de hoje, em que muitas pessoas passa-
ram por essa desconstrução social. Algumas pessoas, no entanto, possuem
vivências diferentes e não conseguiam enxergar seus erros antes de terem
sido rechaçadas na internet, sendo então essa punição uma maneira de
educar (ROSA, 2021, p. 1).

O conde de Gobineau foi o principal teórico relacionado às teorias racistas.

434
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Sua obra, Ensaio Sobre a Desigualdade das Raças Humana (1855), lançou as bases da
teoria arianista (e do Lord das Trevas), que considera a raça branca como a única
pura e superior às demais, tomada como fundamento filosófico pelos nazistas,
adeptos do pangermanismo.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LEI nº 9.394 (BRASIL,
1996), obriga a inclusão do ensino das relações étnico-raciais, ensino da cultura
e história Afro-brasileira, Africana e Indígena, bem como garante igual direito às
histórias e culturas que fazem parte da sociedade brasileira. Essa obrigatoriedade
é uma decisão política, com reflexo pedagógico. Além de garantir o ensino e o
acesso ao tema, é preciso valorizar as mais diversas culturas que compõe nossa
sociedade.
No mundo bruxo, o que temos próximo disso é o Fundo de Apoio à
Liberação dos Elfos (F.A.L.E), que visa garantir direitos básicos aos elfos tais
como salário, descanso, férias, alimentação adequada e sobretudo respeito. Os
elfos são tratados como verdadeiros escravos, totalmente subordinados às famí-
lias que estão ligados, trabalham sem parar e sem qualquer remuneração, além de
serem agredidos fisicamente. Assim como no mundo real, é necessário a criação
de alguma lei que garanta e puna os intolerantes.
Diante da suspeita de Draco ser o herdeiro, Rony e Harry tomam uma
poção para ficarem com a aparência dos amigos de Draco e o preconceito é mais
uma vez visto.
Em atraso, Harry e Rony forçaram uma risada, mas Draco pareceu satis-
feito; talvez Crabbe e Goyle sempre fossem lentos para entender as coisas.
– São Potter, o amigo dos sangues ruins – disse Draco lentamente. – Ele
é outro que não tem espírito de bruxo, ou não andaria por aí com aquela
Granger sangue ruim metida a besta. E tem gente que acha que ele é o her-
deiro de Slytherin! (ROWLING, 1998, p.128).

Vemos em diversas cenas a necessidade de reafirmar a origem mestiça dos


outros. Tom Riddle, conhecido como Lord Voldemort, o bruxo das trevas mostra
seu ódio e preconceito ao adjetivar a mãe de Harry como sangue ruim.
– Assim termina o famoso Harry Potter – disse a voz distante de Riddle.
– Sozinho na Câmara Secreta, abandonado pelos amigos, finalmente der-
rotado pelo Lord das Trevas que ele tão insensatamente desafiou. Você vai
voltar para a sua querida mãe de sangue ruim em breve, Harry... Ela com-
prou para você mais doze anos de vida..., mas Lord Voldemort acabou por
vencê-lo, como você sabia que ele faria (ROWLING, 1998, p. 180).

O cômico é que muitas das pessoas que praticam o preconceito contra


algum grupo ou classe, direta ou indiretamente, fazem parte dele. Ora, os brasi-
leiros, por exemplo, têm sangue negro correndo nas veias, e muitos são racistas.

435
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(O rganizadores )

Hitler pregava a supremacia ariana e não era sangue puro, não era ariano4, o
mesmo acontece no mundo bruxo, Lord Voldemort que deseja dizimar todos os
“sangues ruins”, era “sangue ruim”.
E, tirando a varinha de Harry do bolso, ele escreveu no ar três palavras cin-
tilantes: TOM SERVOLEO RIDDLE. Em seguida, agitou a varinha uma
vez e as letras do seu nome se rearrumaram: EIS LORD VOLDEMORT.
– Entendeu? Era um nome que eu já estava usando em Hogwarts, só para
os meus amigos mais íntimos, é claro. Você acha que eu ia usar o nome no-
jento do meu pai trouxa para sempre? Eu, em cujas veias corre o sangue do
próprio Salazar Slytherin, pelo lado de minha mãe? Eu, conservar o nome
de um trouxa sujo e comum, que me abandonou mesmo antes de eu nascer,
só porque descobriu que minha mãe era bruxa? Não, Harry, criei para mim
um nome novo, um nome que eu sabia que os bruxos de todo o mundo um
dia teriam medo de pronunciar, quando eu me tornasse o maior bruxo do
mundo (ROWLING, 1998, p.177).

O PRISIONEIRO DE AZKABAN E O PRECONCEITO NA IDADE


MÉDIA

O livro Harry Potter e o prisioneiro de Azkaban, narra o terceiro ano do pro-


tagonista na escola de magia e bruxaria de Hogwarts. Nas primeiras páginas do
romance, Potter está lendo um livro sobre a história da magia em que a autora
menciona sobre a queima de bruxas no século XIV:
Os que não são bruxos (mais comumente conhecidos pelo nome de trou-
xas) tinham muito medo da magia na época medieval, mas não tinham
muita capacidade para reconhecê-la. Nas raras ocasiões em que apanha-
vam um bruxo ou uma bruxa de verdade, a sentença de queimá-los na
fogueira não produzia o menor efeito. O bruxo, ou bruxa, executava um
Feitiço para Congelar Chamas e depois fingia gritar de dor, enquanto sentia
uma cocegazinha suave e prazerosa (ROWLING, 1999, p. 11).

Nesse trecho do livro, vemos que trouxas eram mortos por serem consi-
derados bruxos. Uma infelicidade que matou diversas pessoas por puro precon-
ceito; oriundo da igreja. Qualquer pessoa que vivia à revelia das regras impostas
pela igreja católica, era passível de ser vista como bruxa. Percebe-se que a autora
teve o cuidado de pesquisar o tema e introduzi-lo à obra ficcional de maneira
satírica. Ora, como relatado no livro, um trouxa que captura um bruxo de ver-
dade, não tem poder para matá-lo. Diversos trouxas inocentes foram mortos por

4 Hitler acreditava que os arianos eram um povo de grandes feitos e que foram mortos pelo
reino de Atlântida. Isso é pura fantasia. De fato, os arianos existiram, mas foi um povo
que viveu 3.000 a.C no oriente médio e parte da Índia. São considerados como um povo
pré-histórico por alguns cientistas. A fantasia criada por Hitler de homens fortes, altos, in-
teligentes, brancos, olhos azuis não existe, os arianos foram um grupo linguístico formado
por pessoas com características totalmente diferente dessas, ainda que fossem como Hitler
dizia, obviamente ele não era descendente deles, foi um grupo que existiu na pré-história.
436
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

serem considerados bruxos, haja vista que tinham algum problema de saúde ou
simplesmente questionavam as regras impostas pela igreja.
Na era medieval, houve a chamada a caça às bruxas, quando um dos epi-
sódios mais conhecidos foram os julgamentos ocorridos na cidade de Salem;
uma cidade na costa norte do estado de Massachusetts, localizado nos Estados
Unidos da América. O que a maioria não sabe, é que a caça às bruxas teve pro-
porções muito maiores na Europa medieval. Estima-se que 50 mil pessoas foram
julgadas e condenadas à morte por prática de bruxaria e foram mortas por quem
deveria pregar o amor, respeito e tolerância: Igreja. No século XV foi escrito o
Malleus Maleficarum, mais conhecido como Martelo das Bruxas, uma espécie de
livro que explicava sobre bruxaria. Segundo o manual, uma das características
de uma bruxa era a vontade exacerbado por sexo, o que chamamos hoje de nin-
fomania (EHRENREICH; ENGLISH, 1984 apud NASCIMENTO, 2018).
Isso tudo ocorreu por uma misoginia, em que a igreja criou esse mito por
conta de mulheres que não atendiam as expectativas religiosas ou políticas da épo-
ca. Grande parte das acusações eram contra mulheres viúvas, pobres e sozinhas.
Dado a dificuldade da época, elas faziam remédios com ervas e outros produtos
naturais e isso era visto como uma prática sobrenatural; portanto, abominável.
A intolerância e falta de conhecimento nessa época era tão grande, que mulheres
muito bonitas e que gerassem excitação num poderoso, era considerada bruxa.
Se fosse idosa, feia, bonita demais, deficiente física já era motivo suficiente para
ser considera bruxa. Bruxa, ou tem pacto com o demônio (EHRENREICH;
ENGLISH, 1984 apud NASCIMENTO, 2018).
As bruxas não surgiram espontaneamente, mas foram fruto de uma cam-
panha de terror, realizada pela classe dominante. Poucas dessas mulheres real-
mente pertenciam à bruxaria, porém, criou-se uma histeria generalizada na po-
pulação, de forma que muitas das mulheres acusadas passavam a acreditar que
eram mesmo bruxas e que possuíam um “pacto com o demônio”, como expresso
por Eherenreich e English (1984 apud NASCIMENTO, 2018).

O CÁLICE DE FOGO E A SEGREGAÇÃO SOCIAL

Famílias pobres, quando conseguem acesso a ambientes caros, o precon-


ceito, ainda que indireto, acontece. As pessoas se sentem vigiadas, como se não
pertencessem àquele lugar, o desconforto acaba atrapalhando a diversão da fa-
mília, de forma que são discriminadas diretamente. Há alguns anos youtubers5
fazem experimentos sociais em que vão a lojas, shoppings elitistas e gravam o pre-
conceito sofrido por estarem vestidos com roupas mais humildes para o padrão
da localidade.

5 Refere-se às pessoas que trabalham elaborando vídeos para a plataforma do YouTube.


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A Record, rede de televisão aberta brasileira, através do programa


“Conexão Repórter”, que foi ao ar no dia 19 de março de 2018, fez um experi-
mento social com duas atrizes: uma branca e uma negra. A atriz negra foi em
uma loja e pediu algumas roupas, a vendedora entregou as peças mais caras da
loja e entregou peças sujas para serem experimentadas, além de questionar no
que o marido da atriz trabalhava. Já a atriz branca teve um atendimento diferen-
te, recebeu roupas limpas e com valores mais baixos do que apresentado a atriz
negra, o que tez parecer a vendedora quisesse diminuir a atriz negra, apresentan-
do peças mais caras e que, talvez, não pudesse pagar.
O preconceito em ambientes de alto padrão é claro. Obviamente, a vende-
dora é de uma classe social menos favorecida e, provavelmente, não teria condi-
ções de comprar as peças mais caras do local em que trabalha. Tendo a arte como
uma representação da realidade, algo parecido acontecer no mundo bruxo quan-
do a família Weasley, juntos de Harry e Hermione, vão ao jogo de quadribol.
No quarto ano de estudos bruxos, Harry vai com Hermione e a família
Weasley para o tornei mundial de quadribol. Ao chegar no local e se acomo-
darem, encontraram com os Malfoy, que são bruxos puro sangue e ricos. Sem
perder a oportunidade, Malfoy lança um comentário desdenhoso para o Arthur
Wesley, questionando o que ele teve que vender para poder estar ali:
– Meu Deus, Arthur – disse ele baixinho. – Que foi que você precisou ven-
der para comprar lugares no camarote de honra? Com certeza sua casa não
teria rendido tudo isso, não?
Fudge que não estava prestando atenção, comentou: – Lúcio acabou de
fazer uma generosa contribuição para o Hospital St. Mungus para Doenças
e Acidentes Mágicos. Está aqui como meu convidado.
– Que... que bom – disse o Sr. Weasley com um sorriso muito forçado
(ROWLING, 2000, p. 57).

Ao longo da narrativa, temos uma cena em que Malfoy diz para Hermione
não o encostar. “– Quer um, Granger? – Perguntou Malfoy, oferecendo um dis-
tintivo a Hermione. – Tenho um monte. Mas não toque na minha mão agora,
acabei de lavá-la, sabe, e não quero que um sangue ruim a suje.” (ROWLING,
2000, p. 152).
Um caso que aconteceu há cerca de três anos, mas só foi divulgado em
meados de 2020, foi o racismo praticado contra o filho do casal André Marinho e
Drika Marinho. O pai relata que o filho, há cerca de seis meses, encontrava-se de-
sanimado e triste. O genitor imagina que poderia ser algo relacionado a racismo
e bullying. Segundo relatos publicados na página do Facebook de Drika Marinho,
a mãe da criança, no dia 1º de junho de 2021, em uma conversa com o filho, o
menino relata que uma colega da escola o interpelou, porque ele quase encostou
nela dentro do transporte escolar e ela tinha nojo de negros e não aceitaria que
ele encostasse nela, mesmo que isso acontecesse por um balanço do veículo no
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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

trajeto até à escola.


Esse tipo de preconceito, além de encontrar-se na vida real como mencio-
nado, e na literatura, também se encontra em obras cinematográficas. Na série
americana “Greys’ Anatomy”, na sua 4° temporada, episódio 09, nomeado de
CRASH INTO ME, um paramédico sofre acidente e Miranda Bailey, mulher
negra, vai examiná-lo, de modo que ele recusa atendimento e diz querer um mé-
dico homem. Ela chama o chefe de cirurgia Dr. Richard Webber, também negro,
quando o homem vira e o vê, diz querer um médico diferente, Richard pensa por
alguns segundos e congela, diz a Miranda que o paramédico quer um médico
branco, não quer mãos negras tocando nele. Alguns minutos depois descobrimos
que o homem tem uma suástica tatuada no abdômen. Por fim Dra. Bailey opera-
-o e salva a vida do nazista.
George O’malley, interno do hospital disse depois da cirurgia para o ho-
mem o seguinte:
Uma mulher negra salvou sua vida e teve que pagar caro em sua vida pes-
soal. Na próxima vez que estiver olhando sua tatuagem e pensando como
os homens brancos são melhores que todo mundo, lembre-se disso. Porque,
aqui entre nós? Se eu estivesse sozinho naquela sala de operação, é pro-
vável que estivesse morto. E já que falamos de nossos sistemas de valo-
res, eu acredito que, se estivesse morto, o mundo seria melhor (GREYS
ANATOMY, 2008).

O ENIGMA DO PRÍNCIPE: A INTOLERÂNCIA MATA

O sexto ano da escola bruxa é desenvolvido numa grande narrativa, cheia


de detalhes e acontecimentos importantes. A volta do Lord das Trevas está con-
firmada, a escola conta com a ajuda de aurores6 para a proteção da instituição.
Uma cena um pouco cômica é quando o elfo, cujo nome é monstro, se dirige
a Hermione de forma desrespeitosa, corroborando mais uma vez a tese de que
pessoas que sofrem intolerância também a praticam. Os elfos são escravizados
por famílias bruxas há séculos e, no caso de monstro, mesmo sendo vítima de
preconceito, não perde tempo em praticar, o que corrobora mais uma vez o que
foi dito no capítulo anterior, pessoas que sofrem preconceito também o praticam.
Sobre isso, é narrado o seguinte trecho:
– A Sangue Ruim está falando com o Monstro, o Monstro vai fingir que é
surdo...
– Cai fora – mandou Harry com rispidez, e Monstro fez uma última reve-
rência profunda e desaparatou.
– É melhor você ir dormir um pouco também, Dobby (ROWLING, 2005,
p. 307).

6 No universo da saga Harry Potter, os autores são espécies de policiais, investigadores do


ministério. Em outras palavras, são caçadores de bruxos das trevas.
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(O rganizadores )

Próximo ao fim da narrativa, o livro traz uma cena em que Draco Malfoy
está prestes a matar o diretor da escola e, como sempre, não deixa passar a opor-
tunidade de ser intolerante.
Tirei também a ideia de envenenar o hidromel da Sangue Ruim da Granger,
ouvi quando ela disse na biblioteca que o Filch não era capaz de reconhecer
poções...
– Por favor, não use essa palavra ofensiva na minha presença – pediu
Dumbledore. Malfoy deu uma gargalhada desagradável.
– O senhor ainda se incomoda que eu esteja dizendo “Sangue Ruim” quan-
do estou prestes a matá-lo? – Incomodo-me (ROWLING, 2005, p. 397).

Malfoy não mata o diretor, Snape assume o papel de assassino e desfere


a maldição imperdoável “avada kedavra”, matando Alvo Dumbledore, o maior
bruxo de todos os tempos. Nessa cena, podemos ver que mesmo pessoas pode-
rosas podem ser vítimas do preconceito e até mesmo mortas. Dumbledore foi
assassinado para que Voldemort pudessem ascender no mundo mágico e iniciar
o movimento para escravizar os bruxos mestiços. Martin L. King não era bruxo,
tampouco um político poderoso, mas tornou-se conhecido pela luta dos direitos
civis nos Estados Unidos, foi o homem mais jovem da história a ganhar o prêmio
Nobel da paz. Assim como Dumbledore, King lutava pela igualdade e fim do
preconceito, sobretudo, o preconceito racial. Foi aclamado e adorado pelo povo,
dado que lutava contra o fim da intolerância, pregando o amor e sendo totalmen-
te contra a qualquer protesto que envolvesse violência.
No entanto, assim como na ficção, King foi cruelmente assassinado.
Coincidência ou não, King foi morto através de uma conspiração, que alguns
dizem ter sido criada pelo governo americano, nada muito diferente do antigo
diretor de Hogwarts que, como já mencionado, foi assassinado por uma cons-
piração de bruxos das trevas. Como dizia King “A escuridão não pode expulsar
a escuridão; apenas a luz pode fazer isso. O ódio não pode expulsar ódio; só o
amor pode fazer isso”
Deve-se ter cuidado com as leis, o que Voldemort fez quando chegou a
poder era legal, tendo em visto ele ter mudado diversas leis. O que Hitler fez
na Alemanha era legal, a segregação ocorrida nos estados unidos era legal, ter
negros como escravos era legal. A legalidade de uma coisa não significa que o
objeto dela é moral ou correto, só olhar para a história e verá que o conceito de
correto e legal favoreceu e, de certa forma, ainda favorece pessoas brancas e ricas.
Segundo dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE, 2016), há favorecimento de brancos em relação aos negros e
pardos. Mais da metade da população brasileira é composta por negros e pardos,
todavia esses dois grupos são a minoria em universidades e em cargos de alta
responsabilidade, negros, por exemplo, representam apenas 17% dos mais ricos

440
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

em solo brasileiro, mesmo sendo maioria.

REDUÇÃO DO PRECONCEITO ATRAVÉS DE HARRY POTTER

Vezzali et al. (2014), publicaram um estudo intitulado de “The greatest ma-


gic of Harry Potter: Reducing prejudice” (A maior mágica de Harry Potter: Reduzir
o preconceito) no Jornal de Psicologia Social Aplicada. O objetivo do estu-
do era analisar a influência da saga Harry Potter na redução do preconceito.
Participaram do estudo 34 alunos de ensino fundamental de uma escola italiana,
e depois, participaram 117 alunos de ensino médio de uma outra escola, sendo 71
participantes entre 18 e 44 anos do Reino Unido, todos estudantes universitários.
Os participantes do primeiro grupo, que gostavam de Harry Potter, tam-
bém tenderam a simpatizar com imigrantes e até mesmo querê-los como vizi-
nhos. Os participantes do segundo grupo foram questionados sobre a comuni-
dade lesbicas, gays, bissexuais, transsexuais (LGBT) e, novamente, aqueles que
simpatizavam com a saga bruxa, mostraram-se solidários com a causa LGBT. O
último grupo fora questionado sobre os refugiados de outros países, os que gos-
tavam de Harry Potter mais uma vez mostraram opiniões mais positivas que os
que não gostaram. Diante disso, conclui-se que a saga pode influenciar os leitores
a serem mais tolerantes e empáticos, uma vez que antes da leitura dos livros os
participantes mostraram-se mais intolerantes e após a leitura não.

ANÁLISE DE DADOS: O QUE PENSAM OS LEITORES DA SAGA

O levantamento de dados foi realizado pelo autor, através do formulário


google. Foram coletadas respostas de uma amostra não probabilística por conve-
niência, composta por 975 pessoas de diversas regiões do Brasil e de outros paí-
ses, como Portugal, Angola, Canadá, Venezuela. Do total de participantes, 87%
eram do gênero feminino, 12,1% do gênero masculino, e o restante se identificou
de outra forma. Em relação a faixa etária dos participantes, 28,8% possuíam
entre 18 e 25 anos, 24,7% até 18 anos, 17,6% entre 30 e 35, 16,9% entre 25 e 30
anos. Os gráficos referentes aos dados apresentados e discutidos a seguir encon-
tram-se podem ser solicitados ao autor.
Quando questionados como conheceram a obra de J.K Rowling, 46,4%
disseram ter sido através dos filmes, 20,8% através dos livros, 9,8% por familia-
res, o restante conheceu por outros meios. É interessante ressaltar que, uma par-
cela dos participantes, 9,2%, disseram ter sido impedidos ou sofrido preconceito
por assistir Harry Potter (HP), por conta da religião dos pais, uma vez que a saga
conta sobre um menino bruxo e considerados por religiosos como maligno e
demoníaco, o que não é verdade. A bruxaria relatada, por exemplo, na Bíblia ca-
tólica e protestante, nada tem a ver com o mundo mágico criado pela autora J.K.
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(O rganizadores )

A revista Superinteressante, publicada mensalmente pela editora abril, fez


um relato sobre as teorias da conspiração a respeito da saga Harry Potter, a repor-
tagem, de autoria de Scarioni, foi feita em 2005 e atualizada em 2016. Em 2005,
seis dos sete livros já haviam sido publicados no Brasil e a saga era um sucesso.
Não se iluda, caro leitor, com as aparências. Aquele singelo bruxinho de
óculos, que vem encantando milhões de crianças e adolescentes no mun-
do inteiro, pode representar um verdadeiro perigo. Algumas correntes re-
ligiosas e paranoicas de plantão já soaram o alarme vermelho aos pais: a
história de Harry Potter não passa de um plano muito bem bolado que pre-
tende levar nossas crianças à prática da bruxaria e do satanismo. Tem mais.
Parece que o sucesso estrondoso da saga faz parte de um plano educacional
pilotado pela ONU, a Organização das Nações Unidas, para acabar de vez
com os valores morais e éticos da nossa sociedade, estabelecendo a chama-
da Nova Ordem Mundial, uma espécie de cultura global pagã, comandada,
obviamente, pelos Estados Unidos (SGARIONI, 2005).

Dentre os participantes, 93,4% disseram ter assistido todos os filmes, 56%


disseram ter lido todos os livros, 4% disseram ter lidos apenas alguns dos livros.
Isso confirma a grande popularidade dos livros e dos filmes de Harry Potter tanto
no Brasil como no mundo.
Pode-se notar que além de popular, os filmes e os livros em questão, con-
quistaram o gosto de uma geração inteira. Isso pode ser observado já que, 73,2%
responderam que se sentem representados pela obra e 82,2% dos participantes
desejam que, além da nova franquia, “Animais Fantásticos”, devem haver outras.
E ainda, 78,9% dizem querer que Harry Potter seja falado nas escolas e 67,8%
dizem que obras tidas como “best-sellers” devem ser abordadas no ensino.
Quando indagados sobre a influência de Harry Potter sobre o preconceito
na sociedade, 71% respondeu que sim, HP influencia positivamente; 14,5% res-
ponderam que talvez influencie; e 14,5% acreditam que não influencia. Sobre o
grau dessa influencia, 17,7% dizem que HP tem uma influência altíssima, 35.2%
que a influência é alta, 29,4% que é média, 6,5% que é baixa e, por fim, 7,2%
dizem que é irrelevante.
Sobre a relevância da obra na vida dos leitores, 91% dos participantes res-
ponderam que a saga teve grande importância em suas vidas. E ainda nesse con-
texto, 90,1% dos participantes, consideram HP como um clássico da literatura
contemporânea, 94,9% disseram ter assistido e lido as obras mais de uma vez,
e uma parcela bem considerável, 78,3% disseram ter menos de 18 anos quando
tiveram contato pela primeira vez com a obra, idade em que o caráter e a con-
cepção de mundo dos indivíduos ainda estão em formação. Portanto, podem ter
sofrido grande influência dessa obra, confirmando mais uma vez a popularidade
da obra nesse público.
Sobre a capacidade da saga Harry Potter de envolver os leitores

442
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

emocionalmente e fazer com que eles desenvolvam mais empatia, observou-se


que 60,3% disseram ser mais tolerantes após contato com a obra, 34,8% acre-
ditam que não houve mudança e 4,8% disseram, em controvérsia, serem mais
preconceituosos após contato com HP.
Numa análise qualitativa, foi perguntado se a literatura teria a importân-
cia de curar traumas. Foram selecionadas três respostas que serão transcritas de
maneira fiel e garantindo o anonimato:
“Com certeza. A literatura foi fundamental para que eu pudesse superar
a dislexia, as obras de Tolkien e J. K. Rowling me fizeram ter paixão pela
literatura e criou em mim o hábito da leitura. Hoje sou professor e mestre
em Geografia graças ao poder transformador da literatura.”

“Não acredito que cure, mas acalma tempestades internas. Na infância e


adolescência eu sofri muito bullying (sendo que na época o termo nem
mesmo existia), os livros eram meu refúgio, sempre gostei da sensação
de me perder em um universo diferente e esquecer dos meus problemas.
Mesmo hoje, aos 30 anos, eu ainda me escondo nas páginas de livros, óbvio
que não resolve nada, mas é um respiro para clarear a mente e pensar em
alternativas para superar o que quer que seja.”

“O mundo anda tão intolerante. Ler Harry Potter nos leva ao mundo má-
gico, onde Harry vence o mal sem matar ninguém. Ou seja, podemos me-
lhorar o mundo dando mais soluções do que críticas.”

A respeito da proposta principal dessa pesquisa, que foi relacionar a in-


fluência da saga Harry Potter no combate ao preconceito, observou-se uma ten-
dência de reafirmação das hipóteses de que as situações retratadas ao longo dos
livros e filmes contribuem e despertam sentimentos maiores de empatia naqueles
que acompanharam a história, favorecendo assim a quebra do preconceito estru-
turado na sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em virtude dos fatos apresentados e confirmados, pode-se concluir que a


saga Harry Potter, da escritora britânica J.K Rowling, teve um papel fundamen-
tal na formação de leitores, bem como na formação social, crítica e psicológica
desse público. Conforme os dados publicados, os leitores da obra mostraram-se
mais tolerantes, empáticos e preocupados com questões sociais como racismo,
intolerância religiosa, xenofobismo, homofobia dentre outras manifestações de
preconceito.
Dessa forma, a saga é uma literatura juvenil, uma obra clássica da con-
temporaneidade, pois mesmo após mais de duas décadas de seu lançamento, a
obra continua viva, e sempre tendo o que dizer. Ensinando sobre perseverança,
amor, cuidado, amizade e superação, sabendo que a obra é classificada como
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(O rganizadores )

infantojuvenil podemos ver a importância desse tipo de literatura.


Como dito outrora, dentro da academia, tem-se um grande preconceito
com obras desse gênero. Espera-se que a leitura do meu trabalho possa contribuir
para desmitificar a ideia de que literatura que vende muito não tem conteúdo e
não deve ser levada as salas de aula do ensino básico, muito menos do ensino
superior. Harry Potter, Crepúsculo, Alice no país das maravilhas, os contos dos
irmãos Green, Chapeuzinho vermelho, Joãozinho e Maria, Branca de neve e
Cinderela são obras que têm muito a dizer e a ensinar.
Por fim, o mundo mágico criado por J.K Rowling, como analisado no
decorrer do texto, apresenta um universo cheio de questões sociais envolvidas,
sobretudo o preconceito racial. De acordo com os dados analisados, pode-se afir-
mar que a obra impactou diretamente na diminuição do preconceito e aumento
de empatia do público leitor. Ainda conseguiu-se corroborar a importância da
literatura infantojuvenil na formação dos jovens leitores e mostrar a importância
e complexidade dessas obras. Dessa maneira, talvez, o preconceito que assola a
academia diminua e a literatura chegue a mais pessoas.

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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

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445
PAI JOÃO VAI MORRER:
TRISTEZA E ESCRAVIDÃO NA POESIA
DE JORGE DE LIMA
Livramento Fernanda de Lima Araújo1
Claudenice da Silva Souza2

INTRODUÇÃO

Abordagens referentes ao debate étnico-racial têm tido evidências com


desdobramentos nas estruturas curriculares e práticas pedagógicas brasileiras.
Do ponto de vista educacional brasileiro, discutir sobre esse assunto é essencial,
já que estamos diante do inevitável fato de sermos uma nação heterogênea e mis-
cigenada. A escravidão, por exemplo, raiz de muitos de nossos problemas ligados
a questões étnico-raciais, é um tema relevante ainda nos dias de hoje, por fazer
parte de nossa história como uma mancha.
A literatura, como faceta artística e humana, nos oferece um amplo acer-
vo de obras que trazem como tema essa abominável realidade: a escravidão dos
negros no Brasil colônia. Destarte, autores como Castro Alves, Luís Gama,
Joaquim Nabuco, por exemplo, tematizam essa questão de maneira vultosa.
Dentre muitos autores, escolhemos o poeta Jorge de Lima, nascido no século
XIX, para observarmos de que forma o texto literário retrata essa temática. Em
seu livro Poemas Negros, publicado em 1947, o poeta apresenta um leque de poe-
mas que em evidenciam a dor e o sofrimento vividos pelos escravos.
Dessa forma, este trabalho se justifica pela importância que a literatura
atribui à experiência histórica da escravidão. Sinalizamos que nossa pesquisa não
se configura como uma sequência didática ou proposta educativa para a sala de
aula, mas sim como sugestão reflexiva para os docentes que quiserem trabalhar o
presente tema em suas turmas a partir da leitura de poemas.
Este trabalho está organizado da seguinte maneira: primeiramente,

1 Licenciada em Letras-Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Campina Grande


(UFCG). É professora de Redação e Literatura na rede privada de ensino em Picuí-PB.
E-mail: [email protected].
2 Mestre em Ensino de Literatura e formação de leitores pelo Programa de Pós-Gradua-
ção em Linguagem e Ensino da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). É
professora efetiva de Língua Portuguesa na rede estadual de ensino em Picuí-PB. E-mail:
[email protected].
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

fazemos uma reflexão acerca da escravidão no Brasil ao levantarmos questões a


respeito de seu surgimento, as tarefas que os escravos desempenhavam e as for-
mas de torturas que sofriam. Em seguida, apresentamos o poema “Pai João” e
tecemos comentários acerca de como Jorge de Lima lida com o tema nos versos.

UMA EXPLANAÇÃO SOBRE A ESCRAVIDÃO NO BRASIL

Ao refletirmos a respeito da escravidão precisamos, obrigatoriamente,


considerar que os negros foram retirados de seus países de origem. Ademais,
ao chegarem aqui, passaram por grande sofrimento para se adequar a uma nova
cultura, a novas pessoas, e, principal e tristemente, a uma nova e massacrante
realidade: a perda da liberdade. Quando estamos em nossa pátria, os princípios,
a família, as regras e o trabalho dizem muito a respeito de quem somos, porém se
isso muda de forma abrupta, como é o caso dessas pessoas que foram arrancadas
de seu continente, começamos a nos questionar sobre a identidade e as nossas
referências. Indagar a respeito de tais questões surge, justamente, como uma con-
sequência desta problemática chamada escravidão no Brasil.
Com relação a isso, Mattoso (1990) explica que os negros, ao se desloca-
rem para cá, passaram por uma dessocialização do seu indivíduo, ou seja, eles
haviam sido retirados de seu meio social, de suas famílias, de seu clã. Ao serem
obrigados a trabalhar de modo não remunerado, acabaram se transformando
em mercadoria para os proprietários. Tendo em vista esse fato, podemos dizer
que, como consequência, eles passaram por uma reconstrução da personalidade.
Foi no novo meio no qual se encontravam que buscaram uma identidade com
as relações de subserviência obrigatórias com o seu senhor, bem como com as
famílias as quais serviram. Vale salientar que, além dessas relações, existia ainda
a convivência com outras pessoas – muitas vezes de etnias diferentes da sua, que
também foram escravizados.
A personalidade social dos escravos se desdobrou de duas maneiras prin-
cipais, como destaca Mattoso (1990): uma que tinha a ver com os vínculos eco-
nômicos, afetivos e religiosos com a comunidade escrava a qual começavam a
pertencer desde sua chegada e a outra que era, obrigatoriamente, a relação com
seus senhores, aos quais deviam obediência, fidelidade e humildade. Nesse pon-
to, chamamos atenção para o termo utilizado: senhor, pronome de tratamento
que demonstra a subserviência e a maneira pela qual deviam se referir a seus
donos numa relação hierárquica.
Ademais, além da forma de tratamento, outras coisas lhes foram impostas
como, por exemplo, aprender a língua portuguesa, aceitar e crer em uma nova
religião e se adaptar ao trabalho escravo. Isso tudo se convertia em tarefas indis-
pensáveis que deviam compor a identidade dos escravos, a mercadoria humana

447
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

que enriquecia os bolsos dos senhores.


A demanda dessas pessoas vindas de vários lugares da África (Sudão,
Líbano, Congo, entre outros) cresceu aos poucos e se tornou essa mancha na
história. Para sermos mais exatas a respeito, de acordo com Rodrigues,
a escravidão negra no Brasil é, pois, contemporânea da sua colonização.
Somente ela guardou, nos primeiros tempos, a feição portuguesa de fenô-
meno secundário, limitado ao serviço doméstico. Surgiu como problema
brasileiro quando, faltando o índio que sucumbia ou era protegido pelos
jesuítas, e começando a escassear os braços para a lavoura e, mais tarde,
para o trabalho das minas, se criou um comércio de escravos direto, entre a
nova Colônia e a África (RODRIGUES, 2010, p. 20).

Como cita o autor, por falta de mão de obra tornou-se necessário, em ple-
no desenvolvimento do país, a busca por auxílio. Para tal, a escravização nasceu
como forma eficiente de sanar o desfalque de trabalhadores presentes nas lavou-
ras e demais lugares que necessitassem.
Os negros compunham a economia da colônia brasileira agindo através de
seus esforços em campos cafeeiros, canaviais e demais ou sendo o próprio produ-
to de comércio. Ao fim, “mais não eram do que simples máquinas ou instrumen-
tos de trabalho” (RODRIGUES, 2010, p. 21), que favoreciam o crescimento de
capital para seus donos através da força bruta que podiam oferecer.
Em um documento da Biblioteca Nacional (1988), há a opinião de André
João Antonil, jesuíta do século XVI aqui do Brasil, sobre a importância dos ne-
gros para a existência dos engenhos: “os escravos são as mãos e os pés do senhor
de engenho, porque sem eles no Brasil não é possível fazer, conservar e aumentar
a fazenda, nem ter engenho corrente” (p. 9). Ou seja, havia uma consciência
geral da relevância e utilidade do trabalho realizado por eles. É tanto que os
senhores chegavam a usar das escravas como reprodutoras a fim de perpetuar a
mão de obra humana de que dispunham. Nesse sentido, conseguiam a partir de
seu produto usufruir ainda mais e gerar o aumento de trabalhadores escravos.
Sendo assim, podemos afirmar que talvez chegasse uma época em que já não era
mais necessária a compra, pois o produto era feito dentro das senzalas, nos matos
ou em qualquer lugar que fosse. As mulheres negras eram verdadeiras fábricas
humanas.
Como sabemos, serviços domésticos e urbanos, agricultura e ofícios eram
os pontos de trabalhos dos negros, de modo geral. Aqueles que ficavam no cam-
po trabalhavam para aquilo que era o próprio sentido da colonização, de acordo
com o documento da Biblioteca Nacional (1988). Ou seja, a exportação da cana-
-de-açúcar, de produtos como café, fumo, algodão e também, como não poderia
deixar de mencionar, a extração de metais preciosos que, com certeza, dava di-
nheiro aos senhores, enriquecendo-os cada vez mais. Os que eram considerados

448
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

de ofício moíam a cana e preparavam o açúcar, dentre outras funções como a


olaria e a sapataria, etc.
Em consonância com o documento, “no século XIX, não foram poucos os
escravos que trabalharam como operários em nossas primeiras fábricas” (p. 9),
estes eram tidos como de ofício. Os escravos do campo ou domésticos, como o
nome já indica, faziam praticamente todos os serviços das casas-grandes e das
casas do meio urbano também, que consistiam em, por exemplo, retirada de lixo,
carregamento de água, transporte de fardos pesados de um lugar para outro e,
absurdamente, deslocamento de seus senhores em redes, cadeiras e palanquins.
Jorge de Lima, autor que escolhemos para analisar essa temática, exem-
plifica bem em um de seus poemas a função de escravo doméstico comentada
acima. Em “Maria Diamba”, há a figura de uma mulher que apanhava demais
e para que não continuasse a sofrer os maus tratos que vinha passando “falou
que sabia fazer bolos”. Sua saída é encontrar uma função na qual pudesse servir
para que assim lhe diminuíssem ou cessassem as brutalidades com ela cometi-
das. Então, pretendendo uma saída para o sofrimento, ela vê a possibilidade de
ir para a cozinha. Junto a isso, ela serviu ainda para outros propósitos que o eu
lírico não especifica. Inferimos, com isso, que a ideia que o autor quis trazer é a
da servidão ao homem branco e a noção de trabalho para o outro numa relação
hierárquica em que aquele que serve está obrigatoriamente abaixo.
Além dessas delimitações das funções, o documento nos mostra ainda ou-
tras, como negros de ganho e de aluguel. Aqueles podiam ir em busca de trabalho
nas ruas desde que dividissem o que ganhassem com seus donos e estes eram
alugados para desempenhar diversos serviços. Obviamente, quem ficava com o
dinheiro eram os donos.
Outrossim, o documento relata que, em épocas de safra, nas lavouras de
exportação e nas minas, os negros trabalhavam cerca de dezesseis horas por dia.
Tanto a quantidade exorbitante de esforço físico quanto a exposição ao sol escal-
dante eram mortais para a saúde e a produtividade deles. Como se isso tudo não
fosse suficientemente cruel, os negros escravizados viviam em senzalas, amon-
toados, condicionados a um ambiente deplorável para as condições humanas,
sem tratamento para as doenças3 que adquiriam em decorrência justamente das
habitações subumanas nas quais eram obrigados a ficar.
Somado a tudo isso, existiam, ainda, as formas de punição que os proprie-
tários impunham aos seus escravos. Em face do exposto, é possível percebemos
o quão extrema foi essa objetificação, tendo em vista que o senhoril detinha ta-
manha posse sobre os negros que se sentia no direito de lhes infligir formas de

3 Por causa das habitações precárias em que viviam, os negros eram “frequentemente ví-
timas de doenças que se tornavam endêmicas, como a tuberculose, disenteria, tifo, sífilis,
verminose, malária” (BIBLIOTECA NACIONAL, 1988, p. 10).
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(O rganizadores )

torturas, humilhando-os com açoites no tronco em lugares públicos, colocando


neles máscaras de flandres fechadas atrás da cabeça com um cadeado, queiman-
do-os com ferro em brasa, entre outras. As justificativas para cometer tais atos
variavam desde, por exemplo, tentar uma fuga ou não realizar o trabalho no
tempo devido.
Conforme explana Mattoso (1990), os castigos não eram tão constantes e
nem ocorriam com a mesma intensidade sempre, sendo mais comuns nas lavou-
ras, relacionados com faltas gravíssimas que porventura cometessem. Os casti-
gos, como dissemos acima, iam de açoites, marcas a ferro quente, imobilização
no tronco até, impiedosamente, esmagamento de dedos e corte de orelhas a fim
de machucá-los para que assim eles tivessem medo e não incorressem nos mes-
mos erros. De acordo com a autora, embora os castigos acontecessem, o inte-
resse maior dos donos de escravos não era maltratar sua mão de obra, pois isso
poderia afetar diretamente a produtividade em seus engenhos, que era o que de
fato lhes interessava. Os senhores donos de escravos não tinham como objetivo
maior fazer sofrer seus objetos de lucro, não queriam perder sua mercadoria, pois
seriam prejudicados economicamente.

REPRESENTAÇÃO E SIMBOLISMO HISTÓRICO NO POEMA


PAI JOÃO
O poema que servirá de base para a compreensão da maneira como Jorge
de Lima aborda a temática da escravidão é “Pai João”, pertencente à obra Poemas
Negros, publicada em 1947. Neste livro, há uma série de poemas que protagoni-
zam os negros e os sofrimentos vivenciados por eles aqui no Brasil de uma forma
extremamente aguda. Sobre isso, Bosi (2000) deixa claro que o poeta é o percus-
sor da significação histórica atribuída às suas obras, mesmo que ele possa não ter
total consciência de como esse processo se dá. Desse modo, os versos retratam
a trágica realidade dos negros como escravos, ou seja, torna-se além de literário
um registro histórico.
A seguir, o poema na íntegra.
Pai João

Pai João secou como um pau sem raiz.


Pai João vai morrer.
Pai João remou nas canoas
Cavou a terra.
Fez brotar do chão a esmeralda,
Das folhas - café, cana, algodão.
Pai João cavou mais esmeraldas
Que Pais Leme.

450
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

A filha de Pai João tinha peito de


Turina para os filhos de Ioiô mamar:
Quando o peito secou a filha de Pai João
Também secou agarrada num
Ferro de engomar.
A pele de Pai João ficou na ponta
Dos chicotes.
A força de Pai João ficou no cabo
Da enxada e da foice
A mulher de Pai João o branco
A roubou para fazer mucamas.
O sangue de Pai João se sumiu no sangue bom
Como um torrão de açúcar bruto
Numa panela de leite.
Pai João foi cavalo pra os filhos de Ioiô montar
Pai João sabia histórias tão bonitas que
Davam vontade de chorar.

Pai João vai morrer.


Há uma noite lá fora como a pele de Pai João.
Nem uma estrela no céu.
Parece até mandinga de Pai João.

Jorge de Lima, in Obra completa

Como vemos, o poema é escrito em versos livres, sem rimas e apresenta


uma espécie de narrativa sobre Pai João. Esse senhor representa os negros como
um todo e faz relembrar a crueldade infligida ao povo escravizado. Além disso,
é possível ver, atrelada aos versos, que não somente esse homem foi vítima, mas
também seus familiares foram utilizados para servir de todas as formas possíveis
àqueles que se consideravam seus donos.
Aos poucos, as informações vão sendo apresentadas pelo eu lírico acerca
do escravo. A forma como ele é chamado indica que essa era a maneira como ele
era conhecido entre os demais escravos, o que pode significar uma figura prote-
tora e relevante para os seus. No entanto, essa importância que lhe era atribuída
pelo seu povo não foi respeitada pelos opressores brancos, tendo em vista que
eles viam apenas a sua utilidade enquanto um serviçal e nada além disso.
No texto poético, vemos que o negro trabalhou muito e, por isso, “secou
como um pau sem raiz”. Sabemos que os negros trabalhavam até perderem suas
vidas, ou seja, até seus corpos não suportarem mais o excessivo esforço que fa-
ziam. De acordo com o documento da Biblioteca Nacional (1988), a vida útil de
trabalho deles era torno de sete a dez anos. Os trabalhos tiravam as forças dos
escravos, o que fazia com que eles perdessem a durabilidade – tendo em vista
451
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

que eram considerados meros objetos. Mesmo que não morressem muito cedo,
eles passavam a não ter mais a mesma vitalidade depois de um tempo. Pai João
representa essa realidade, em que já não era possível ter vigor para a vida e ele
havia secado, pois havia sido sugado pelos anos de trabalhos forçados.
No segundo verso, está dito que ele vai morrer, algo esperado diante do
modo desumano como vivia. Ao dizer isso, o eu lírico faz um tipo de previsão na
qual observa seus dias de trabalhos brutos e exaustivos. Isto é, as consequências
para o uso excessivo e abusivo do escravo causaram o desgaste extremo e o leva-
riam à morte iminente. A partir do terceiro verso, é apresentado tudo o que fez
enquanto podia para seus patrões, desde remar em canoas até cavar terras e fazer
“brotar do chão esmeralda”. Assim, pelas ações descritas no poema, Pai João
era tido como uma espécie de faz-tudo4. A definição dicionarizada do termo ci-
tado tem a ver com a existência de múltiplas habilidades. No entanto, chamamos
atenção para o fato de, na realidade escravocrata, não haver a possibilidade de
desenvolvimento ou escolha dessas habilidades, pois os escravos não tinham a
opção de desempenhar ou não determinado labor.
Os escravos trabalhavam em minas na retirada de metais preciosos.
Relembrando a divisão do trabalho demonstrada pelo documento da Biblioteca
Nacional (1988), percebemos que Pai João era escravo do campo e que lá desem-
penhava as mais diversas funções, todas que rendiam lucro para o seu senhor.
Agora, no entanto, estava prestes a morrer sem ser levada em consideração toda
a riqueza que gerou para os outros e nunca para si mesmo. Durante toda a vida,
ele teve utilidade para tudo, menos para ter direito nem mesmo de usufruir eco-
nomicamente de seu trabalho para sobreviver.
Essa realidade era comum aos negros que viviam no Brasil colônia. Dessa
forma, o texto de Jorge de Lima tem um viés fortemente voltado para a socieda-
de, o que nos faz compreender que a poesia possui, além do veio artístico, um ca-
ráter de registro. Assim, vale trazer para a discussão a seguinte reflexão de Bosi:
Ora, o “tempo” a que remete o discurso, o tempo das mediações predicati-
vas, é um tempo originalmente social. Social porque intersubjetivo, social
porque habitado pelas múltiplas relações entre pessoa e pessoa, pessoa e
coisa. E social, em um plano histórico maior, isto é, determinado, de cada
vez, por valores de família, de classe, de status, de partido, de educação, so-
bretudo de educação literária, de gosto. O tempo histórico é sempre plural:
são várias as temporalidades em que vive a consciência do poeta e que, por
certo, atuam eficazmente na rede de conotações do seu discurso (BOSI,
2000, p. 142).

Ao dizer isso, o autor explana a respeito da relação entre o discurso e as


questões sociais que o permeiam, isto é, tudo o que é proferido, seja de modo

4 De acordo com o dicionário Caldas Aulete (2004, p. 366), Faz-tudo significa: Pessoa que tem
múltiplas habilidades e que pode explorá-las, ou não, profissionalmente.
452
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

falado ou escrito, possui uma ligação estreita com o momento em que se realiza.
Vejamos que Bosi (2000) cita inúmeras vezes o vocábulo “social”, dando ênfase
ao fato de que o que é dito está relacionado com o meio no qual é produzido e
reproduzido. Destarte, o poema de Jorge de Lima é também um discurso social
na medida em que afirma mais uma vez sobre o sofrimento e a objetificação de
um povo. Embora saibamos sobre a escravidão nos livros didáticos e através das
mídias, no poema a questão ganha ainda mais força pela maneira como o poeta
sensibiliza nos sensibiliza enquanto leitores.
Os versos finais da primeira estrofe dizem: “Pai João cavou mais esmeraldas /
Que Pais Leme”. A figura histórica citada foi um grande barão dono de muitas
terras. A alusão significa que, mesmo um homem rico como Pais Leme tendo
obtido ao longo da vida muitas riquezas advindas de pedras preciosas como a
que é citada no texto, não se equipara à quantidade de esmeraldas que foram
mineradas através das mãos do personagem do qual estamos falando. Torna-se
importante pensar que enquanto o negro escravizado dava sua saúde para extrair
minerais valiosos, sem usufruir absolutamente nada de seu trabalho, quem cres-
cia financeiramente era seu dono, sem se preocupar com as consequências de
seus abusos para com seus cativos.
A segunda estrofe fala a respeito da filha de Pai João, nela eu lírico tece o
que seria a breve história da negra sem denominação. O primeiro fato apresenta-
do diz respeito ao seio da filha do escravo, pois ao dizer que eram feitos “turina
para filhos de Ioiô mamar” há a visão animalesca da serventia. Turina é um adje-
tivo que classifica vaca de leite, e a personagem foi utilizada para esse fim, como
um bicho de ordenha para alimentar os filhos de seu dono, o que a fazia perder
gradativamente as próprias forças.
Pelo que foi constatado no poema, houve uma espécie de reaproveitamen-
to5 da escrava, o que nos parece ainda mais cruel: se não serve mais para uma
função, tem de servir para outra. Ao cessar o leite em seu seio materno, ela foi
remanejada para ser engomadeira, até secar também, ou seja, mesmo que esgo-
tadas as suas forças era preciso fazer algo.
No décimo quarto verso, o eu lírico volta a falar do pai da negra. Dessa vez
com uma visão ainda mais atroz da tortura: “A pele de Pai João ficou na ponta
/ Dos chicotes”. Vemos neste verso uma das formas de agressão que os negros
sofriam, que inclusive, explanamos no primeiro tópico deste trabalho, a partir
das contribuições de Mattoso (1990) acerca das punições dadas.
Pai João tinha consciência do quanto é doloroso ter a pele arrancada por
um chicote, assim como sabia o quão terrível era perder a vitalidade na foice e

5 Ao dizermos “reaproveitamento”, levamos em consideração os tratamentos que eram da-


dos aos escravos. Quanto eles não tinham serventia para determinada função que lhes era
atribuída, logo eram remanejados para outra, de modo mudo duro, cruel.
453
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(O rganizadores )

na enxada. Além de ter sido retirado dele sua pele, foi também afanado de si sua
companheira, como podemos ler nos versos seguintes: “A mulher de Pai João
o branco / A roubou para fazer mucamas”. Nitidamente, o verbo roubar indica
o desrespeito pelo povo negro, mais uma vez tratado como objeto dentro do
poema.
Novamente, chamamos atenção para a escolha lexical no poema: o verbo
fazer indica a forma grotesca para que foi usada, reproduzir mucamas, fazer no-
vas mulheres para serem também usadas, criando, assim, um ciclo infindável de
abuso. Não tinha relevância o fato de ela ser esposa de um outro homem, pois
este era negro e escravo, então isso lhe tirava o direito de ter uma esposa, e ela
de ter um esposo. Como meros produtos de seus proprietários, as mulheres eram
usadas como animais reprodutores, de acordo com o documento da Biblioteca
Nacional (1988).
Encaminhando-se para o final da segunda estrofe, Jorge de Lima aborda
ainda outra problemática a respeito das consequências da escravidão: O sangue
daquele pobre homem se esvaiu no do branco, que era considerado bom. Através
da figura de linguagem comparação, vemos a seguinte analogia: o sangue do pre-
to é comparado ao “torrão de açúcar bruto” e o sangue do branco a uma panela
de leite.
Ou seja, a imagem retrata de modo claro a pequenez do escravo como
sendo jogado na imensidão e poder dos homens brancos. Para corroborar com
a discussão acerca da visão apresentada pelo eu lírico, podemos trazer a contri-
buição de Bosi (2000, p. 136): “As palavras concretas e as figuras têm por destino
vincular estreitamente a poética a um preciso campo de experiências que o texto
vai tematizando à proporção que avança”. Em vista disso, podemos compreen-
der que o poema constrói uma representação simbólica para uma experiência so-
cial claramente comprovada pela história. Assim, essa construção tem o poder de
nos sensibilizar ainda mais tendo em vista a veracidade da criação significativa e
imagética. Atrelado a isso, podemos entender essa relação comparativa enquanto
fato de o negro se extinguir no meio do povo branco enquanto este continua a
sua trajetória escravista. A força do homem negro desmanchou-se, pois sucum-
bira diante dos muitos trabalhos que precisou realizar para dar dinheiro ao seu
senhor.
Os últimos versos agregam um tom ainda mais tristonho ao poema.
Quando é dito que o senhor escravo foi usado como brinquedo pelos filhos do
seu dono, não há como não pensar em sua própria filha. Enquanto estava sendo
sugada e aproveitada até sua última gota de vida – referimo-nos ao fato de que
ela servia de ama de leite, fato exposto no início do poema, Pai João contava aos
filhos de Ioiô belíssimas histórias que davam vontade de chorar. Pai João tinha o
dom de fazer tudo, menos o de fazer as pessoas reconhecerem o seu coração e o

454
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

seu valor como ser humano, assim como aqueles que o maltratavam.
A última estrofe traz uma espécie de aviso a respeito do escravo: “Pai João
vai morrer”. Como é de se esperar por qualquer pessoa que passe por tanto des-
gaste físico e emocional, o pobre senhor não aguentou. Para marcar a sua morte
o céu tingiu-se com sua cor, não havia lua para iluminar, apenas uma estrela que
o representava, como se estampasse eternamente nos olhos de quem a visse sua
marca aqui na terra enquanto escravo, enquanto ser humano escravizado – pri-
mordialmente – por seu semelhante.
Ao chegarmos ao final da leitura do poema, sentimo-nos comovidos pela
triste trajetória do negro Pai João. Ademais, é como se o texto nos despertasse
para o fato de que essa história de vida não pertenceu somente a esse homem
em particular, mas sim a todo um povo do qual foi tirado tudo. É certo que “A
literatura desconcerta, incomoda, desorienta, desnorteia mais que os discursos
filosófico, sociológico ou psicológico porque ela faz apelo às emoções e à em-
patia” (COMPAGNON, 2009, p. 50). Por isso, pelo que vimos, Jorge de Lima
representou, através do personagem, todos aqueles que sofreram de igual modo
nas mãos dos brancos. A partir da voz do eu lírico nos damos conta das cruelda-
des que foram praticadas, e chegamos, de maneira empática, a nos envergonhar
pelas atrocidades cometidas pelos nossos semelhantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A verossimilhança encontrada nos poemas de Jorge de Lima é explícita e


pesarosa. Seus versos nos mostram histórias de dor, sofrimento e humilhação ar-
raigados da mais pura realidade que perpassou nossa herança cultural. Louvável
é a posição do poeta diante dos seus escritos ao retratar com tanta avidez a his-
tória dos negros. Pai João, peça fundamental do nosso estudo, representa uma
nação que foi retirada brutalmente de sua terra mãe para viver situações degra-
dantes para qualquer ser humano em um lugar que não lhes pertencia. Pai João
morreu no poema, assim como os seus descendentes, porém permanecerá vivo
em nossa memória.

REFERÊNCIAS
AULETE, Caldas. Minidicionário contemporâneo da língua portuguesa.
Atualização do Banco de Palavras, Conselho dos Dicionários Caldas Aulete,
editor responsável Paulo Geiger, apresentação Evanildo Bechara. Rio de Janei-
ro: Nova Fronteira, 2004.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Companhia das Letras,
2000.
BRASIL, Ministério da Cultura. Fundação Nacional Pró-Leitura. Para uma

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(O rganizadores )

história do negro no Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1988. 64 p.


COMPAGNON, Antoine. Literatura para quê? Tradução Laura Taddei Bran-
dini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
LIMA, Jorge de. Obra poética. Edição completa em um volume, organizada
por Otto Maria Carpeaux. Rio de Janeiro: Editora Getúlio Costa, 1829.
MATTOSO, Katia M. de Queirós. Ser Escravo no Brasil. São Paulo: Brasilien-
se, 1990.
RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil [online]. Rio de Janei-
ro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010.

456
TERREIROS DE CANDOMBLÉ NÀGÓ E A
PRESERVAÇÃO DA LÍNGUA YORÙBÁ:
USOS E DESCRIÇÃO LINGUÍSTICA
Jobson Jorge da Silva1
José Emanuel Sebastião da Silva Pereira2
Àlábíyí Pereira (nome social)

INTRODUÇÃO

Baseados na análise diacrônica da realidade social brasileira, quanto à for-


mação sociocultural, observamos as diversas contribuições africanas para a cons-
trução da identidade cultural brasileira. Desse modo, apontamos objetivamente
para as contribuições linguísticas que caracterizam o português falado em nosso
país como uma língua multicultural e diversa contendo influências de várias cul-
turas, entre elas as africanas (RIBEIRO, 1996).
Nessa perspectiva, entendemos que, conforme Menezes e Santos (2017),
os fenômenos linguísticos oriundos de línguas africanas pertencem, majoritaria-
mente, a uma esfera social que é valorizada nos Terreiros de Candomblé, como
também no campo artístico-cultural, entretanto, em contextos que não perten-
çam ao entretenimento, o uso de variantes gramaticais e lexicais é questionada.
Nesse sentido, consideramos relevante a análise crítica dos sistemáticos apaga-
mentos que as línguas africanas vêm sofrendo ao longo da história brasileira.
Tendo em vista os estudos sobre as influências do Yorùbá na formação
da concordância tanto nominal, quanto verbal do Português falado no Brasil,
o presente estudo se debruça sobre as terminologias e palavras adicionadas ao
vocabulário dos/as brasileiros/as, além de influências na fala e na construção
gramatical de frases (MENEZES; SANTOS, 2017). Assim, é possível afirmar
que há algumas palavras de origem Yorùbá em nossa língua utilizadas pelos/as
falantes.
Desmudar as palavras de origens africanas que foram incorporadas
pela língua portuguesa e apagadas quanto a sua origem é contribuir para uma

1 Licenciado em Letras. Mestrando em Educação na Universidade de Pernambuco. Carpina-


-PE. (81) 9.9182-2158. [email protected].
2 Psicólogo. Mestrando em Educação na Universidade de Pernambuco. Limoeiro-PE. (81)
9.9664-5167. [email protected].
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(O rganizadores )

educação antirracista. É um caminho para a reflexão crítica sobre o racismo


estrutural existente na sociedade (ALMEIDA, 2018) contra as influências afri-
canas, a valorização das contribuições culturais e especialmente linguísticas no
Português brasileiro e a conscientização da preservação dessas influências a par-
tir das instituições democráticas.
A partir dessa breve contextualização linguística, apontamos para a ob-
servação histórica dessa língua em nosso país e a relação dela com a variante do
Português lusitano falada nos territórios brasileiros. Após isso, especificamente,
para as contribuições linguísticas do Yorùbá na língua e pontualmente da relação
dessa língua com a religiosidade caracterizada como principal espaço de sobrevi-
vência e resistência diante do cenário de apagamento e invisibilização do Yorùbá
a partir do racismo estrutural, institucional e religioso existente na dinâmica so-
cial brasileira.
Este trabalho tem como principal objetivo apresentar as influências das
línguas africanas na constituição do Português brasileiro, especificamente como
a língua Yorùbá se mantém preservada nos espaços de resistências africanas no
Brasil, os Terreiros de Candomblé. Para isso buscou-se realizar uma pesquisa
qualitativa a partir de uma revisão bibliográfica em materiais físicos e virtuais, a
partir do uso dos marcadores descritos no início deste texto, que corroboraram
com a relevância deste estudo, bem como a verificação do Yorubá como uma lín-
gua viva em nosso país, ainda que restrita às práticas religiosas dos Terreiros de
Candomblé que têm influenciado nas culturas musicais, artísticas, dentre outros.
Dessa forma, busca-se contribuir com a efetivação da lei 10.639/03.

CONTRIBUIÇÕES LINGUÍSTICAS E APONTAMENTOS HISTÓRICOS

A partir da observação dos fatos históricos e da consulta às produções re-


levantes, quanto às influências do Yorùbá e das culturas e línguas africanas no ter-
ritório brasileiro, apontamos para Bagno (2016, p. 25) ao argumentar que, “para
o estudo da formação do português brasileiro, o conhecimento da história da
escravidão é fundamental e incontornável”.
Os elementos africanos sem dúvida são responsáveis por muitas das ca-
racterísticas gramaticais específicas do Português brasileiro, características que
tornam nossa língua diferente não só do Português lusitano como também das
demais línguas da família românica e até, em alguns casos, das demais línguas
da família indo-europeia.
A problemática da relação entre as línguas africanas e o Português do
Brasil, no século XX, colocou-se desde os anos 30, como uma discussão preocu-
pada com uma identidade nacional e linguística. Desde o começo, buscou-se evi-
denciar a participação dessas na constituição da variante brasileira do português.

458
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Esse debate desenvolveu-se em dois planos independentes, o linguístico e o ideo-


lógico, prolongando assim as preocupações nascidas por ocasião da independên-
cia do Brasil em 1822 (BONVINI, 2009).
Tratava-se, na época, de marcar a diferença entre o Brasil e Portugal. A
ideologia nacionalista orientou então os estudos linguísticos na direção da pes-
quisa dos elementos diferenciadores, engendrados pela presença das línguas in-
dígenas e africanas, considerando as contribuições indígenas, inicialmente, mais
importantes do que as africanas. Os intelectuais da nova nação deveriam traba-
lhar na descoberta dessa especificidade e, a despeito do fato de que a maioria
deles não era linguista ou estava pouco preparada para essa tarefa, seus trabalhos
tiveram uma grande ressonância nos meios acadêmicos (BONVINI, 2009).
A partir da discussão promovida, anteriormente, quanto às línguas africa-
nas, é possível vários desdobramentos para estudos desde as influências africanas
no Português brasileiro, à hipótese da crioulização3 do Português do Brasil em
contato com as línguas africanas, aquilo que Lélia Gonzalez (1988) definiu en-
quanto “pretuguês”. “Estudar uma língua sob a perspectiva histórica é, antes de
tudo, compreendê-la não como um todo contínuo e homogêneo, mas sim como
uma entidade viva, vista em múltiplas perspectivas.’’ (SILVA, 2014, p. 2).
Assim, pressupõe considerar os sucessivos enquadramentos passados, a
fim de entender as suas características atuais como frutos de diversos mecanis-
mos e em constante mutação. Assim sendo, os caminhos historicamente per-
corridos pelo português no Brasil, as línguas do contato, as próprias situações
do contato em si, devem ser vistas como condições para o estabelecimento das
feições discursivas, sintáticas, morfológicas e fonético-fonológicas apresentadas
pela língua atual.
Ainda segundo afirma Bagno (2016, p. 25), “os[as] escravizados[as] tam-
bém trouxeram para o Brasil línguas do grupo oeste-africano, entre as quais o
Iorubá’’.
Por causa do ‘’prestígio’’ adquirido pelos cultos religiosos do candomblé,
trazidos para o Brasil, e mais especificamente para a Bahia, muita gente
acredita, erroneamente, que é o iorubá a língua que melhor representa a
africanidade do nosso povo. No entanto, a contribuição do iorubá ao por-
tuguês brasileiro é bastante restrita, quase toda pertencente ao domínio da
religião (BAGNO, 2016, p. 25).

A partir do discutido, apresentamos algumas expressões recorrentes nas


religiões de matrizes africanas que caracterizam as contribuições da cultura
Yorùbá no Português brasileiro.

3 Processo de mistura das línguas e ordenação popular à variante com influências explícitas
das línguas africanas.
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Quadro 1 - Vocábulos Yorùbá e africanos nas religiões de matriz africana

TERMOS
SIGNIFICADO
YORÙBÁ

Muitos candomblecistas entendem os Òrìṣà como forças da natureza; outros,


como Deuses ligados a essas forças. Para Santos (1986), alguns autores sustentam
que os Òrìṣà são ancestrais divinizados, chefes de linhagens ou de clãs africanos
Òrìṣà
que, por meio de atos excepcionais durante suas vidas, transcenderam os limites
de sua família ou de sua dinastia, passando a ser cultuados por outros clãs até se
tornarem entidades de culto nacional.

Ìyálòrìṣà (literalmente, a mãe que cuida dos Òrìṣà, mais conhecida como mãe
Ìyálòrìṣà
de santo).

Bàbálóriṣà Pai de santo com funções semelhantes às da Ìyálòrìṣà.

Abíyán Aquele ou aquela que participa do terreiro, mas não é iniciado ou iniciada.

Àṣèṣè Nome dado ao ritual realizado quando morre um filho ou filha de santo.

Olóyè Uma pessoa que possui um título, um cargo no candomblé.

Cargo no candomblé, a pessoa com essa função toca os atabaques nos rituais,
Ògá
além de desempenhar outras funções extremamente importantes no terreiro.

Histórias africanas, que o Bàbálórìṣà ou Ìyálòrìṣà conta para ensinar os mais


Ìtàn
jovens ou futuros iniciados/as.

Fonte: CAPUTO, 2015.


No Brasil, o idioma Yorùbá se manteve presente pela tradição nas rezas,
cantigas, e saudações usadas no Candomblé de, origem nàgó, religião de origem
africana praticada pelos/as negros/as escravizados/as. É perceptível o funciona-
mento, implícito a esse processo sociolinguístico de uma geração de lideranças
afro-religiosas que permaneceu a toda variedade de perseguições e é possuidora
de uma linguagem litúrgica de base africana, cujo conhecimento é difusor de
aproximação e ascensão na hierarquia sociorreligiosa do grupo, porque nela se
qualifica guardada a noção maior de segredo dos cultos.
Na perspectiva os espaços onde são professadas as religiões de matrizes
africanas, no Brasil, perpassam o modelo, que seria reducionista, de apenas
um templo religioso, mas podem ser considerados como grandes arcabouços
de preservação do legado ancestral africano. São museus vivos que utilizam do
sincretismo como ferramenta de resistência e preservação dos valores africanos
e, atualmente, executam os rituais sacros realizados em língua materna Yorùbá
(CARNEIRO, 1951; CASTRO, 1968).
Isso corrobora com as diferenças existentes entre o Português de Portugal e
o falado no Brasil, essa mudança habitual consiste no contato direto e permanente

460
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

aportes lexicais africanos na estrutura linguística que é proveniente do Português


lusitano implantado no Brasil (CASTRO, 1968). O que provocou mudanças não
apenas no idioma atual, mas no campo da música brasileira, MPB, pagode, sam-
ba, que por sua vez, é considerada um meio de divulgação, em razão de muitos
dos seus/suas compositores/as serem membros/as ou simpatizantes das comu-
nidades afro-religiosas.
Emerge uma grande riqueza linguística, resultante de mais de três séculos
da escravatura, que, incontestavelmente, teria influências no modo de falar
do país. Assim, um dos maiores grupos vendidos do continente africano
para o Brasil corresponde aos sudaneses, cujo idioma é o iorubá, podendo,
também, ser denominados de nagô, bajubá ou pajubá, sendo ele o mais
falado nos terreiros de candomblé do país (CRUZ, 2016, p. 17).

INFLUÊNCIA DO YORÙBÁ FALADO NOS TERREIROS DE


CANDOMBLÉ NO COTIDIANO BRASILEIRO

Conforme aponta Flor (2017) é sabido que durante a diáspora africana


diversos grupos étnicos foram trazidos forçadamente para o Brasil, os sudaneses,
guinenos-sudaneses muçulmanos e bantus, todos os que influenciaram na forma-
ção da sociedade brasileira, seja pela cultura, vestimentas, filosofias e linguagem,
aqui terá como foco uma etnia sudanesa chamada de Yorùbá. Embora existam
algumas divergências, alguns estudos supõem que os Yorùbá-nàgó foram trazidos
num quantitativo maior que os outros devido aos conhecimentos que detinham e
aos diversos conflitos territoriais africanos.
Os africanos formaram uma gigantesca rede de interações sociais no
Brasil, reforçada pelos quilombos (FURTADO; PEDROZA; ALVES, 2014).
Hoje os quilombos são em sua maioria urbanos reconhecidos enquanto Terreiros
de Matrizes Africanas, ou simplesmente, de candomblé. Foram nestes espaços
onde as culturas africanas se preservaram em sua totalidade, perfazendo locus de
resistência e combate ao sistema opressor colonizador (COSTA, 2016), contudo
o foco deste trabalho será na linguística, especificamente, a de origem YORÙBÁ.
O que antes era a língua materna passou, com a utilização do português,
a ser um código, onde só era utilizado em rituais religiosos ou para passar in-
formações secretas, devido a proibição de falarem a língua materna africana.
Contudo, esse repassar de informações transformou-se numa ferramenta de re-
sistência, mecanismo de preservação oral “Nàgó”, lê-se nagô, (outra maneira de
se reportar aos povos advindos da terra YORÙBÁ, especificamente provenientes
do reino de Oyó (atual estado da Nigéria), que formaram uma das maiores levas
de africanos trazidos para o Brasil).
Conforme traz Xavier (2010) o povo africano está pautado em sua orali-
dade e no poder desta na transmissão do conhecimento. A oralidade possui um

461
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

teor que perpassa o epistemológico, abarcando um valor sagrado, sagrado este


que não se resume ao conceito teológico ocidental do religioso. A palavra para o
povo Yorùbá representa mais que um significante, ultrapassando o simbolismo da
utilização da palavra pelos ocidentais. Um único termo pode estar carregado de
diversos simbolismos e informações que ampliam o real significado ou intenção
da palavra, potencializando o seu poder de expressão simbólica.
É comum no dia a dia das casas de candomblé presenciar-se o uso do
idioma Yorùbá, não apenas em suas práticas ritualísticas, mas também ao se re-
ferir a coisas, emoções e objetos do cotidiano. Adentrando cada vez mais nesse
universo fantástico das influências yorubanas na constituição da sociedade brasi-
leira, vê-se vários termos linguísticos nagôs sendo utilizados normalmente, sem
ao menos as pessoas terem a consciência de estarem utilizando termos de um
outro idioma. Por muitas vezes algumas expressões de uso Nàgó são tidas como
gírias regionais.
Na Bahia evidencia-se muito no hábito diário o uso dos termos Nàgó, nos
espaços de candomblé e artísticos, e isso é uma grande demonstração da influên-
cia africana na culturalidade. O que independe de estarem, as pessoas, ligadas
aos terreiros de candomblé. Quem já ouviu os termos baianos do: ‘e aê pai’, ‘e
aê mãe’, precisa compreender que muito embora pai e mãe sejam palavras por-
tuguesas, a sua utilização dentro desse recorte linguístico se remete às questões
culturais Nàgó, e isso perpassa o fenômeno das gírias regionais.
Quem já não ouviu a expressão ‘está tudo odára’ (escrito pela forma fo-
nética de falar) é uma maneira de se dizer que está tudo se encaminhando ou
simplesmente que está tudo bem. O ‘ó paí’ não é apenas uma (re)construção do
termo ‘olha pra aí’, mas a utilização de padrões de informação linguística Nàgó
que tem o mesmo significante. Poder-se-ia redigir várias páginas falando sobre
estas estruturas linguísticas que ainda são erroneamente traduzidas como gírias
ou formas erradas de falar.
Embora não seja esse o objetivo central desse trabalho, é impossível não
verificar a presença do mecanismo racista do apagamento cultural que tenta a
todo momento desvalorizar, descredibilizar e invisibilizar as diversas contribui-
ções culturais advindas dos povos africanos. Por isso é tão importante que tra-
balhos como este ajudem a reforçar os valores culturais linguísticos yorubanos
na didática brasileira e corroboram com a minimização dos preconceitos não
apenas linguísticos, mas também étnico-raciais.
Outra expressão comum de se ouvir é uma das formas de se dizer sim
dentro da cultura nagô, é o termo “hún-hún” (se pronuncia: um rúm), que tem
a sua pronúncia fonética nasalizada, talvez por isso não seja considerado como
uma palavra. Muitas palavras da líingua Yorùbá têm a mesma escrita, contudo a
forma oral de serem pronunciadas muda todo o significado, por isso vale reforçar

462
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

que a forma de pronunciar muda também a adequação do termo no cotidiano.


Vale salientar que nem todas as palavras de origem Yorùbá têm uma tradu-
ção literária para o português, todavia é realizada uma interpretação do seu uso
no cotidiano. Segundo Beniste (2011) “hun” é uma palavra que pode ser usada
em diversos contextos que vai depender da forma tonal utilizada. Pode-se trazer
como exemplo o “hun” que exprime desagrado, o “hún” que exprime sim, o
“hùn’ que exprime desconfiança, resmungo, “hún” que exprime coceira e “hun”
que exprime punição. Isto demonstra uma única sílaba que embora não tenha
uma tradução literária, possui significados que dependem da maneira com que
é expressa.
Ainda sobre o arcabouço linguístico dos Terreiros de Candomblé, têm-se
vários termos utilizados no cotidiano dos templos que também são levados ao
dia a dia dos seus adeptos. A exemplo do termo ‘eré’ (lê-se erê), linguisticamente
‘brincadeira’ (BENISTE, 2011) deixou se ser a representação para o estado infan-
til do transe religioso, para tornar-se sinônimo popular de criança, mesmo sendo
o termo Yorùbá para crianças ser outro.
Uma das comidas que é bastante conhecida da cultura afro-brasileira é
o acarajé, prato típico da gastronomia do candomblé que consiste em porções
de massa de feijão fradinho, cebola e sal frito no azeite de dendê Lody (1998).
Contudo a apropriação linguística distorceu o significado da frase que se trans-
formou em palavra no Brasil. Ou seja, acarajé deriva da frase àkàrà n jẹ, que
significa comer acará. Assim, dizer que vai comer acarajé implica literalmente
falar - comer comer acará (àkàrà: bola de fogo).
Ainda sobre essas possíveis transformações, ou quiçá, distorções dos sig-
nificantes, tem-se a palavra dúdú do yorubá que pode ser traduzido ao português
como preto/a (BENISTE, 2011), contudo tornou-se apelido para Eduardo e em
algumas regiões é o nome do geladinho, sacolé, picolé de saquinho, dindin, den-
tre outros conforme região. Esse mesmo dúdú não pode nem deve ser utilizado
em expressões brasileiras que exprimem sinônimo de coisas ruins, como “o gato
preto” ou “a coisa está preta”. Lembrando que preto e negro, embora sinônimos
são termos com utilização distintas na língua Nàgó.
Outra informação interessante é sobre os gêneros de classificação masculi-
na e feminina da língua Yorùbá, onde muitos substantivos e adjetivos são unifor-
mes e não variam conforme a classificação acima mencionada. Demonstrando
traços nítidos de uma linguagem com padrões inclusivos (SILVA; GOUVEIA,
2009) mesmo antes do despontar das discussões sobre não sexismo nas acade-
mias. Desta maneira podemos compreender que diversos termos podem ser uti-
lizados para homem ou mulher, assim como diversos nomes próprios são bisse-
xuados. Assim como se pode verificar na palavra ọmọ, lê-se omó, que significa
filho/a.

463
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(O rganizadores )

Vai ser comum encontrar nos Terreiros de Candomblé homens e mulheres


que possuem o mesmo orúko, lê-se orukó, (‘nome próprio’ do povo Yorùbá que
no Brasil tornou-se sinônimo de nome religioso, o que também não deixa de
ser). Estes nomes próprios não possuem uma classificação de gênero masculino
e feminino definida. Como o orúko Odetayó, o caçador traz alegrias; Oguntobi,
Ogun é grande. Neste último exemplo vê-se que mesmo o nome Ogun que repre-
senta uma divindade masculina do panteão Yorùbá (orixá) pode ser utilizado em
ambos os sexos humanos.
A língua Yorúbá que se mantém viva através da reverberação das práti-
cas dos Terreiros de Candomblé alcançam outras territorialidades ao influen-
ciar costumes e novas construções linguísticas, como o pajubá que conforme
aponta Oliveira (2019) é o dialeto que (re)significa as identidades da população
LGBTQIA+. Contudo, este dialeto mescla termos yorubás em consonância com
a utilização de termos do tronco linguístico bantu, como o idioma kibundo e
kikongo4.
Dentre os diversos ebós (magias, encantamentos e oferendas que têm como
intuito a transformação) existentes na cosmovisão nagô a palavra se destaca
como o maior de todos os ebós, por transmitir, repassar e expandir a energia vital
daquilo que se almeja que é materializado no desejo que se está conduzindo até
o outro. O conhecimento apreendido através da palavra, ou seja, transferido pela
linguagem, é considerado como ebó epistemológico, sem o qual nada acontece.
Ebó este que não se resume a palavras soltas, mas está condensado nos
oríkì que são conjuntos de versos poéticos destinados para ocasiões específicas
dentro dos Terreiros de Candomblé (OGBEBARA, 2006). Estes também podem
ser recitados ou cantados, onde independentemente da forma expressada possui
como intuito a transmissão do axé, da energia que se propaga a partir da emana-
ção da linguagem verbalizada (JAGUN, 2015).
Todavia, sem querer esgotar as discussões, é necessário evidenciar que o
campo linguístico Nàgó ultrapassa o padrão ocidental/acadêmico de língua-idio-
ma-escrita, pois dentro da cultura africana a linguagem está em todas as ações
humanas que incluem olhares, gesticulações, danças, músicas, toques musicais
(com ou sem letra) e até mesmo o silêncio para o povo Yorùbá, aqui traduzido
como povo de terreiro, também é comunicação. O que perpassa o conceito de
repassar o conhecimento para fenômeno extra-sensorial da transmissão do axé
(energia vital).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

São várias as influências das matrizes africanas na formação cultural da

4 Idiomas do tronco linguístico bantu.


464
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

sociedade brasileira que estão presentes em diversos âmbitos como na culinária,


ética, educação, arquitetura, musicalidade, religiosidade, dentre outros, mas tam-
bém no idioma e no modo de falar do Português brasileiro. Falar sobre esta te-
mática é essencial para a preservação do legado ancestral, bem como ferramenta
essencial de atuação na luta antirracista.
Embora ainda existam muitos entraves, é imprescindível resgatar e utili-
zar de fontes africanas reconhecendo-as enquanto estruturadoras das estruturas
sociolinguísticas brasileira. Perfazendo uma contribuição acadêmica que traz
aportes epistemológicos que possibilitam a verificação e, quiçá, favorece o enfra-
quecimento das estruturas que secularmente promovem o apagamento das con-
tribuições ancestrais não europeias que invisibilizam e inferiorizam os subsídios
estruturais linguísticos africanos.
Não distante, mas este trabalho constitui uma ferramenta de empodera-
mento étnico-racial, não apenas por trazer à tona a temática, mas também por ter
sua constituição por dois autores negros, sendo um deles descendente e profess-
sante da cultura Yorùbá. Afirma-se a respeitabilidade ao lugar de fala dos atores
sociais ao ocupar os espaços devidos da construção dos saberes epistêmicos que
os são próprios.
Sem cessar as discussões sobre o assunto, fazer a verificação da inserção
cultural africana no contexto social brasileiro, o que demonstra o quanto é in-
coerente uma sociedade que se utiliza, em grande escala, de conteúdos trazidos
pelos africanos, continuar sendo racista, negando as bases e influências culturais
e linguísticas. Dessa maneira surge outro assunto que é a apropriação cultural
que indevidamente apaga os valores étnicos basilares e estruturantes da cultura
praticada, mas isso serão páginas para outra publicação.
Contudo, vale salientar que os termos da língua Yorùbá não podem nem
devem ser compreendidos numa perspectiva apenas ocidental, pois como exem-
plo, um bom dia para os brasileiros é apenas um bom dia, mas para o africano
a palavra ou a frase é composta por mais significados do que o que o termo
representa. Além da organização escrita, há estruturas que envolvem o tonal, o
intencional, o simbólico e ainda mais a energia vital transmitida na utilização e
propagação de cada palavra. O axé é o princípio dinâmico que atua na movimen-
tação, compartilhamento e construção do conhecimento.
No mais, as diversas contribuições do povo Yorùbá têm influenciado cons-
tantemente as dinâmicas sociais dentro e fora dos Terreiros de Candomblé,
motivando também a culinária e musicalidade brasileira. Sendo os Terreiros de
Candomblé os espaços vivos de preservação da língua e da cultura Yorùbá na
atualidade. Este debate contribui de maneira concisa para o campo acadêmico
proporcionando e corroborando com a efetivação da lei 10.639/03.

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(O rganizadores )

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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

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467
SWING E ARMAS: A REPRESENTAÇÃO DO NEGRO
EM COAL BLACK AND DE SEBBEN DWARFS (1943)
Inajara Barbosa Paulo1

O DESENHO ANIMADO E O RACISMO

Para entender as origens do racismo nos desenhos animados, é preciso


notar que a animação estadunidense é herdeira direta dos espetáculos dos teatros
de menestréis. O Minstrel show era um espetáculo teatral que reunia quadros cô-
micos, de dança e música, muitas das vezes com atores e atrizes brancos caracte-
rizados como negros, com rostos pintados de tinta preta e lábios contornados de
vermelho para realce, os blackface.
Seus personagens principais sempre eram baseados em um estereótipo fan-
tasioso de rebeldia ou recusa ao status quo do papel de um escravo ou negro livre
na sociedade estadunidense. Esse tipo de show se tornou famoso nos Estados
Unidos após a Guerra Civil, tendo o declínio em 1910, sendo “substituído” pelos
espetáculos Vaudeville.
Uma das principais evidências imagéticas do legado blackface nos desenhos
animados é que seus protagonistas, aqueles que ainda representam a indústria,
como o Mickey Mouse, Gato Félix, Pernalonga, são ministreis.
Figura 1: Mickey Mouse

Fonte: Mickey’s Mellerdrammer (1933).

1 Doutoranda em história, linha de pesquisa Cultura e Poder, da Universidade Federal do


Paraná. Mestre em história, Linha Arte, memória e narrativa, pela Universidade Federal do
Paraná. E-mail: [email protected]
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Esses personagens não só partilham o uso das luvas brancas e sorrisos pin-
tados em realce, eles também compartilham a resistência as regras e conformida-
des e, assim como os menestréis, ele é uma “força rebelde” criada pelas próprias
forças normativas e de dominação que ele resiste (SAMMOND, 2015).
Os estudos sobre animação pouco se aprofundam nesse “problema das
origens” da animação, que é rico em práticas de racismo, misoginia e homofobia,
talvez por receio de que o campo de estudo, relativamente recente, seja legado à
segundo plano, comparando ao status dos de história do cinema, caindo, mais
uma vez, na máxima em relegar a animação como “coisa de criança”. Enquanto
a imagem do negro no cinema é problematizada e recebe uma atenção especial
dos estudiosos da Hollywood clássica, a categoria dos desenhos animadas é igno-
rada ou menosprezada (LINDVALL; FRASER, 1998). A iconografia do negro
nas animações, ou sua representação indireta, talvez deva ao fato que, como o
escritor Peter Noble (1937, p. 26) salientou, “apesar de seu poder de sobrevivên-
cia, os desenhos animados são uma ameaça pequena a cultura negra”.
O humor dos desenhos do início do século também seguia uma tradição
do teatro de variedades, carregado dos “clássicos” arquétipos do negro na men-
talidade estadunidense, como o africano selvagem, o escravo feliz, o músico de
talento natural, o comedor de frango frito ou melancia, a mucama atrevida, o
mentalmente inferior e o supersticioso (LINDVALL; FRASER, 1998).
No manual de técnicas de desenho How to draw funny faces, o autor alega
que:
As pessoas de cor são bons objetos e assunto para desenhos de ação; são co-
mediantes de nascença e muitas vezes assumem atitudes ridículas ou dizem
coisas com a intenção de serem engraçados. O cartunista gosta muito de
brincar com o gosto do homem de cor por roupas chamativas, melancias,
galinha, jogo de dados, medo de fantasmas, etc (MATTHEWS, 1928, p.
26).

A Hollywood clássica contava com esse sistema de representações simpli-


ficadas em forma de estereótipos apresentados em seus produtos, especialmente
nos segmentos de comédia. Eram facilmente assimilados pelo público, e uma fór-
mula de sucesso, especialmente para MGM e WB. A Warner Bros., por exemplo,
se firmou no mercado como um grande estúdio ao lançar seu primeiro filme fa-
lado em 1937, estrelado por um judeu comediante fantasiado de negro interpre-
tando um menestrel em um musical. Particularmente as animações da Warner
levavam essa fórmula ao máximo de exagero e pouco respeito, sem distinção ou
respeito a homens ou mulheres. Mostrar misericórdia a homens, mulheres, japo-
neses, alemães, índios ou negros seria negar a própria natureza da animação: a
sátira (LINDVALL; FRASER, 1998).

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

SWING CARTOONS E WARNER BROS PRÉ-GUERRA

A popularização do Jazz e da cultura popular afro permitiu, especialmente


durante a década de 1930, uma nova abordagem por parte dos desenhos anima-
dos. Em poucos anos após o advento do som no cinema, os desenhos animados
começaram a aparecer com títulos como The Jazz fool pela Disney em 1929, Jazz
Mad pela Terrytoons em 1931, Congo Jazz pela Warner Bros, Harman e Ising em
1930, entre outros (GOLDMARK, 2005).
Mesmo os desenhos que ostensivamente celebravam o jazz, recorriam ao
uso de imagens estereotipadas e conceitos raciais. Numa associação fantástica
com a ideia de que o novo ritmo era uma “música da selva”, os animadores
construíram uma imagem violenta e sexualizada de bairros negros que se torna-
ram referência do jazz, como o Harlem, em Nova York, criando um cenário de
desenhos animados com temática racista urbana, em contraponto aos desenhos
com estereótipos do sul dos EUA.
Este novo estereótipo atendia aos anseios e conflitos da modernização do
país e de sua cultura, uma “ponte” do imaginário social do século XX e o a re-
sistência ao novo (KLEIN, 1993). Até então na cultura racista estadunidense, a
maioria dos arquétipos do negro eram produtos da concepção que a cidade do
Norte fazia sobre os problemas do sul. Era uma versão mais “abrandada”, feitas
para casar harmoniosamente com as trilhas sonoras de ragtime e jazz.
Os negros dos desenhos-musicais da década de 1930 eram exibidos como
primitivos e humildes, dançarinos naturais, calmos e confiáveis (leia-se preguiço-
sos e pouco imaginativos, incapazes de trabalhar na indústria ou se encaixar na
vida urbana) (KLEIN, 1993). Em especial, nos desenhos produzidos na Warner
Bros., as representações dos negros, em específico estrelando desenhos na sel-
va, mostram a face mais ofensiva do estúdio, estreladas pelo personagem Buddy,
onde sua “humanidade” era afirmada sempre em comparação com os canibais
africanos ou animais da selva com feições negras. O maior exemplo da natureza
cruel de suas animações já se apresenta nos títulos, como em Buddy’s Negro Freak
Show.
Apesar de suas caricaturas ofensivas e temas controversos, a Warner Bros.
se apresentava ainda com uma aura progressista entre os demais estúdios, com a
incorporação da música, comédia e cultura afro-americana.

COAL BLACK AND DE SEBBEN DWARFS: REPRESENTAÇÃO, HOME


FRONT E RACISMO

Entre a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra até o final do


conflito em 1945, a proporção de desenhos animados com assuntos relativos a
guerra chegou a marca de 70% da percentagem, somando todos os estúdios. Em
470
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

1943, todos os grandes estúdios tinham algum contrato com as forças armadas
para produção de animações, incluindo a Warner Bros. Todo animador do es-
túdio tinha em mãos algum projeto ligado, direta ou indiretamente, ao esforço
de guerra, instruções para uso de armas e tanques a séries como Private SNAFU.
Esta série, feita exclusivamente para o entretenimento dos militares, era caracte-
rizada pelo ritmo frenético das sequências de ação, violência e humor ácido, que
faziam sucesso entre os GIs2 e mostrou que o que fazia sucesso entre as forças
armadas poderia, salvo restrições da censura, ser mimetizado para as salas de
cinema do Home front3. Além do gosto pelo estilo de animação mais acelerada,
os soldados tinham um apreço especial por desenhos com piadas racistas ou
estereótipos raciais. Em comparação ao período antes da guerra, o número de de-
senhos de negros era maior, com “negros preguiçosos” e piccaninnies4 misturados
com “japas” de dentes grandes e nazistas com pescoço de buldogue.
Aparentemente, lutar contra o conceito de “raça superior” dos nazistas fa-
ziam com que piadas sobre a raça negra fossem mais frequentes entre os soldados
(KLEIN, 1993). O autor complementa:
Isto fazia parte de uma catarse explosiva, uma projeção e alívio de algo (...)
de ver as piadas de plantações novamente, ou dos sorridentes zootsuiters.
Muitas das mesmas tensões que tornavam piadas anárquicas engraçadas
para os militares, também faziam dos estereótipos negros um motivo de
riso. Talvez fosse, uma resposta ao crescente número de negros que muda-
ram para as grandes cidades, se tornando uma presença visível, ou a ida de
unidades negras para lutar na Europa (KLEIN, 1993, p. 188).

Um dos mais notáveis desenhos produzidos neste período foi o curta Coal
Black and de sebben dwarfs (1943), da Warner Bros. Para sua paródia com o grande
sucesso do estúdio rival, Branca de neve e os sete anões (1937) da Disney, Bob
Clampett5 trouxe a ideia de fazer uma versão do conto ao estilo swing cartoon,
afinal, o oposto de Snow White seria a Coal Black. Ao invés de uma trilha bucólica
e clássica, o curta seria um espetáculo de jazz. O desenho não tinha a intenção de
ser uma metáfora da vida do negro, somente uma grande anarquia, uma versão
sarcástica e sexualizada do filme da Disney. Uma releitura moderna e vibrante,
onde a história se move e tem suas piadas ditadas pela trilha sonora.
A intenção do diretor é que o curta fosse o mais “autêntico” possível, por

2 G.I, abreviação de Government Issue, General Issue ou Ground Infantry, é um termo utilizado
para se referir aos soldados do exército ou da força aérea dos Estados Unidos, bem como
itens gerais de equipamento.
3 Trad.: Frente doméstica. Definição dada as atividades de produção da população civil em
tempos de guerra.
4 Termo pejorativo usado nos EUA e Canadá para se referir a crianças negras e mestiças.
5 Robert (Bob) Clampett foi um diretor, produtor, compositor e animador, famoso por sua
obra na Warner Bros.
471
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

isso levou seus desenhistas e roteiristas para um clube de música negra em Los
Angeles para que os mesmos observassem a vida noturna (GOLDMARK, 2005).
Uma característica singular desta animação, graças a essa musicalidade
emprestada pelo jazz, é que as falas dos personagens são ritmadas, quase can-
tadas, uma espécie de jive-speak, muitas vezes sendo absorvidas pela trilha sono-
ra, que mescla músicas populares (do catálogo de repertório de direitos autorais
retidos pela Warner Bros.) com músicas do esforço de guerra (GOLDMARK,
2005).
O desenho animado conta com uma junção de vários estereótipos para
compor seu quadro de personagens e, assim, uma representação social do negro
estadunidense. Coal Black and de sebben dwarfs se utiliza da construção imagéti-
ca baseada em arquétipos raciais para assim montar uma representação social
e racial. Ciro Flamarion Cardoso (2000) diz que as representações sociais são
construídas a partir de representações mentais examinadas no nível individual.
Segundo o autor, “as representações mentais constituem a matéria prima das
representações sociais” (CARDOSO, 2000). Esta formulação nos ajuda a com-
preender a importância do senso comum, do cotidiano das pessoas e dos grupos
os quais elas pertencem. O conceito ajuda a entender como os indivíduos em
seus grupos sociais constroem, interpretam configuram e representam o mundo
em que vivem (SANTOS, 2011).
O primeiro estereótipo a ser apresentado nesta animação é a Mammy em-
balando uma criança negra, de costas para a câmera e olhando para lareira, num
cenário barroco similar ao jogo de luz e escuridão do longa do estúdio rival. O
arquétipo da senhora negra, muitas vezes uma senhora idosa ou gorda, neste
desenho aparece como uma senhora corpulenta e trejeitos semelhantes a atriz
Hattie McDaniel6, é quem nos apresenta a história da Coal Black. A Mammy é
o símbolo da escrava doméstica, sábia e conselheira, com amor e zelo mater-
nal pelos filhos de seu senhor, logo recebendo a confiança dos mesmos. Ela é a
personagem que nos introduz a história e nos guia até o castelo da rainha mal-
vada que, segundo a narradora, era tão má quanto era rica e tinha de tudo. Para
ilustrar tanto sua maldade e riqueza, a animação mostra o “estoque” de pneus,
sacos de açúcar e de café que ela tem estocado. Durante os anos de guerra tais
itens controlados pelo racionamento de esforço de guerra, ou por conta de serem
produtos importados ou por prioridade de abastecimento das tropas. Ao manter
um estoque tão grande desses itens, mostra não só a riqueza, como a maldade e
falta de patriotismo da rainha má.

6 A atriz Hattie McDaniel ficou mundialmente famosa pelo papel de Mammy em ... E o
vento levou, em 1939, que lhe rendeu o Oscar de melhor atriz coadjuvante em 1940.
472
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Figura 2: o estoque de riquezas da Rainha má em Coal black and de sebben dwarfs

Fonte: Coal black (1942)


Em seguida nos é apresentado a rainha má, que se encontra sentada entre
suas riquezas, com uma garrafa de Gin e uma caixa de doces da marca Chattanooga
Chew-Chews7. Sua agressividade e porte masculinizado pode a caracterizar como
o arquétipo da Sapphire, a antagonista da Mammy, uma mulher negra agressiva
e dominadora, que maltrata seu parceiro e seus filhos, sendo responsável pelos
problemas estruturais das famílias negras. Embora a rainha pode ser precursora
de outro estereótipo que ficará popular nas décadas seguintes, a Welfare Queen,
a mulher negra que frauda ou engana o governo para manter uma vida de luxo.
Apesar de seus bens materiais, a rainha deseja a seu espelho um príncipe
como par, e tem seu desejo realizado: Prince Chawmin chega em seu carro chama-
tivo e roupas vibrantes. Seu porte alto e esguio, com dentes de ouro e dados no
lugar dos incisivos superiores (alusão a tendência dos negros para jogos de da-
dos), se apresenta como o arquétipo do Mandingo. Quando se trata dos estereóti-
pos negros, geralmente os associados a homens tendem a tirar a sua sexualidade
para tornar-se socialmente aceito, como o servo fiel, bright child (mesmo que o
termo se refere a crianças prodígio na música ou dança, era usado para adultos
que sabiam o seu lugar na sociedade) ou o velho Uncle Tom, mas o Mandingo era
um símbolo da virilidade perigosa do homem negro. Associado ao jazz e jogos
de azar, o “príncipe encantado” desta fábula pode ter as características físicas
almejadas como par, mas não se encaixa no perfil de par romântico ideal.

7 Alusão ao nome da música Cattanooga Choo-Choo, gravada por Benny Goodman e sua
orquestra em 1941.
473
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Figura 3: O “príncipe encantado”.

Fonte: Coal black (1942)

Apesar do personagem ser um fruto do desejo atendido da rainha, o prín-


cipe se encanta com So White, nome da Coal black, uma jovem negra que can-
ta blues enquanto lava roupa. A personagem, apesar de ser apresentada como
protagonista, é uma representação do estereótipo da Jezebel, a garota negra má
que, apesar da pele negra, tem feições e figura de uma mulher europeia, o que a
encaixa em um ideal de beleza próximo ao ideal. A Jezebel preenche os requisitos
para a sua objetificação sexual, e ela usa de seus atrativos, consciente ou incons-
cientemente, para conseguir o que quer (JEWELL, 1993). So White sempre se
salva de situações de perigo por conta de seus atributos físicos. Ela é resgatada de
seu estado de servidão para a rainha por conta da atração física que o príncipe
apresenta por ela e, quando ela é sequestrada por um bando de assassinos de
aluguel contratados por sua madrasta, ela se livra de seu destino por uma série de
favores sexuais que ficam ocultos ao expectador, somente sugeridos ao aparecer
os personagens com os rostos cobertos por marcas de batom.
Livre de seus supostos algozes e longe da proteção de seu príncipe, Coal
Black se vê sozinha em uma floresta, até ser abordada pela versão de Bob Clampett
dos sete anões: uma série de anões negros, com feições de pickaninnies desajeita-
dos, entretanto, uniformizados como militares. Apesar da falta de organização,
quando começam a cantar You’re in the army now8, os anões se apresentam em
linha, de forma militar, e param em posição de continência para So White, que os
retribui com beijos.
8 Canção popular escrita por Isham Jones em 1917 e muito recorrente em desenhos anima-
dos ou comédias sobre forças armadas.
474
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Figura 4: Os sete anões prestando continência para So White.

Fonte: Coal black (1942)

Agora, sob proteção dos sete anões do exército, a protagonista se junta ao


esforço de guerra, preparando refeições para o esquadrão, usando um pequeno
quepe militar, e permanece ao lado das tendas em um fogão a lenha, onde passa-
ria seus dias fritando ovos e costelas de porco também para os soldados famintos
(COAL BLACK, 1943). Mesmo com sua estética sexualizada, a princesa assume
um papel matriarcal e protetor semelhante ao da Mammy, tomando conta com
seus dotes característicos de uma boa mulher negra (cozinhar bem) para contri-
buir com as forças armadas. A entrada de mulheres para as forças armadas ainda
era algo recente, a lei que aprovava a criação da WAAC9 fora aprovada em maio
de 1942, e nesta lei a porcentagem permitida de negras era de 10%. Das mulheres
afrodescendentes que conseguiam passar em todo o processo, muitas delas ainda
tinham que enfrentar a discriminação em forma de delimitação de trabalhos,
onde muitas delas eram designadas, independente da formação acadêmica, para
serviços como lavanderia, cozinha e limpeza. E nas propagandas, a ideia era a
representação da força maternal da mesma, de forma devotada e esperançosa,
cuidando dos soldados como filhos (HONEY, 1999).
O desenho agora sai da perspectiva civil e entra numa atmosfera de home
front, onde qualquer ataque a So White seria um ato de guerra. Para concluir seu
plano de matar a mocinha, a rainha resolve dar cabo de seu plano pessoalmente.
Disfarçada como mascate, aparece no acampamento militar e oferece uma maçã
para a protagonista, que após comer, cai em seu sono mortal como sua equivalen-
te caucasiana da Disney. Entretanto, a ação da rainha foi contra um membro das

9 Women’s Army Auxiliary Corps


475
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

forças armadas, e enfim os pequenos soldados tem sua chance de entrar em ação.
Mesmo com uma performance jocosa, os anões soldados são uma representação
do estereótipo The bright child, o que inclui crianças negras abaixo dos oito anos,
em sua maioria comediantes, atores ou músicos. Seis dos anões tem suas feições
baseadas em pessoas famosas: os seis primeiros são baseados no pianista e come-
diante Fats Waller, o sexto é uma caricatura do comediante Stepin Fetchit, conhe-
cido em seu período pelos papéis de negros preguiçosos (LINDVALL; FRASER,
1998). Um homem negro pode permanecer dentro desse arquétipo mesmo após
chegar à idade adulta se não for uma ameaça ao Status Quo (PIETERSE, 1992).
Essa imagem é um dos exemplos de negro que são socialmente aceitos e louva-
dos na cultura popular, e ao se colocar como soldados, mesmo que tenham mais
um tom circense do que demonstrar real importância como membros das forças
armadas, os sete anões são os heróis deste curta. Clampett dá aos negros o status
de soldados, mas tira a sua relevância ao coloca-los como um esquadrão preso
em suas barracas (LINDVALL; FRASER, 1998).
Para provar seu valor e protagonismo, a cena final da animação mostra a
So White desfalecida, cercada pelos anões que, como medida extrema, chamam
o príncipe para desperta-la com um beijo. Com a promessa de dar o seu especial
Rosebud10, Chawmin desfere seu beijo na princesa que continua imóvel. Após vá-
rias tentativas que o levam a exaustão, um dos anões resolve ele mesmo beijar So
White, que desperta e o toma em seus braços.

Figura 5: So white toma em seus braços o anão salvador.

Fonte: Coal black (1942)

10 Referência ao mistério central do filme Cidadão Kane (1941), de Orson Welles.


476
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

O príncipe não pode ser o protagonista desta história, ele demonstrou co-
vardia em situação de perigo e não demonstra contribuir de forma ativa para o
esforço de guerra. Uma princesa precisa de um herói, e no caso de uma donzela
em perigo em tempos de guerra, este herói está nas forças armadas, pois a “ma-
gia” que salva a So White de seu destino final é um segredo militar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Coal Black and de sebben Dwarfs traz a luz a construção imagética do negro
em uma sociedade em mobilização de guerra, uma pequena amostra de uma
sociedade que, ao mesmo tempo fixa seu papel como mensageira e paladina da
liberdade e igualdade entre os homens, mas que encontra em seu seio, profundas
divisões sociais baseadas no mito racial de superioridade do WASP11. Sua pró-
pria formação e valores morais baseados no princípio de supremacia branca, co-
loca até mesmo os seus inimigos europeus de forma mais elogiosa. A prova disto
é a completa ausência de menção ao nazismo neste curta, pois a miscigenação,
mesmo que seja somente em termos de compartilhar a tela, não era vista com
bons olhos pelo Código Hays12. Colocar em tela pessoas brancas em situação de
inferioridade, mesmo que por conta de sua ideologia, seria algo impensável.
Mesmo com o conhecimento e experiência negativa de construções ima-
géticas e as consequências que elas produzem na sociedade, ainda surgem novos
mitos para definir o outro como inferior e eles são largamente veiculados pela
indústria cinematográfica. E, ao trazer a luz estudos sobre estas animações, po-
demos traçar como o campo de batalha não era resumido somente aos campos
da Europa ou ilhas do Pacífico, mas as salas de cinema e as mentes de cada cida-
dão ou militar, e que mesmo que os inimigos declarados fossem os japoneses e
os nazistas, o negro ainda tinha sua representação mais ofensiva que os demais.
Mesmo que não fosse intenção por parte de Bob Clampett ou de sua equi-
pe trazer uma visão ofensiva do negro, este desenho animado é uma alegoria ao
racismo institucional estadunidense vendido como um produto de consumo pela
cultura de mídia. Para o negro, o campo de batalha não seria somente o front
europeu, africano ou asiático, seria ter a sua representação utilizada de forma
pejorativa para espetacularizar seu cotidiano para as massas brancas.
O campo de batalha não é um lugar físico, é um mundo de representações
onde os negros só são vistos como objetos sexuais, cozinheiras e bufões, fazendo

11 É o acrônimo inglês White, Anglo-Saxon and Protestant usado para designar a parcela da so-
ciedade americana, em sua maioria elite, de ascendência britânica e de religião protestante.
Este grupo é apontado como detentor do domínio histórico sob as instituições financeiras,
acadêmicas, culturais e legais dos EUA.
12 Código Hays ou Motion Picture Production Code foi uma série de normas aplicadas aos filmes
e desenhos animados produzidos entre 1930 e 1968.
477
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(O rganizadores )

papel de ridículo para entretenimento de sua plateia, seja civil ou militar.

REFERÊNCIAS
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rus, 2000, 9-29.
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https://www.dailymotion.com/video/x2n48p2. Acesso em: 21 nov. 2020.
COAL Black and the Seben Dwarfs. Direção de Robert Clampett. Produção
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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

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PIETERSE, Jan Nederveen. White on black: images of Africa and blacks in
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479
O NOVO NEGRO E O RADICALISMO DO HARLEM:
UMA INTRODUÇÃO A AFRICAN BLOOD
BROTHERHOOD (1919-1924)
Luan Kemieski da Rocha1

INTRODUÇÃO

A manchete é “Negros incitados por uma ordem secreta – a African


Blood Brotherhood suspeita de provocar o motim de Tulsa” – Gazeta Diária
de Arkansas, 05 de junho de 19212. Nas primeiras duas décadas do século XX,
Tulsa, Oklahoma, estabeleceu uma comunidade negra no distrito de Greenwood
(JOHNSON, 1998). Uma comunhão composta, em sua maioria, por trabalhado-
res (zeladores, jardineiros, motoristas, cozinheiras, empregadas domésticas etc.)
e um corpo social que ostentava empreendimentos, locais de entretenimento e
uma cena cultural fluorescente.
Tudo isso mudou quando Dick Rowland, um engraxate local, foi acusado
de assediar uma mulher branca enquanto estava no elevador. Rowland foi preso
e encarcerado no Tribunal do Condado. Logo após, supremacistas brancos co-
meçaram a se organizar em frente ao Tribunal com o objetivo de linchamento do
menino de 17 anos.3 Quando os residentes locais negros souberam desse propósi-
to, 75 homens armados, em sua maioria, veteranos da Primeira Guerra Mundial,
montaram guarda do lado de fora do local, para proteger Rowland. Irritados com
a situação, os brancos locais desencadearam uma onda de violência que ceifou
centenas de vidas negras (MAKALANI, 2011). Quando se espalhou a notícia de
que alguns meses atrás, veteranos negros haviam organizado um “posto” local

1 Mestrando em História pela Universidade Federal do Paraná. Professor de História na


rede Estadual do Paraná Email: [email protected]
2 Disponível em < https://www.newspapers.com/clip/5342205/african-blood-bro-
therhood/ >.
3 Ao colocar que supremacistas brancos se organizaram com o objetivo de linchamento, é
necessário complexificar esse debate. Embora o massacre tenha uma evidência de “ciúmes”
cultivada pela ideologia supremacistas branca, “Negros estão vindo roubar seus empre-
gos!”, a questão se aprofunda com a inserção do debate sobre terras e a própria História de
massacres e do racismo nos EUA. A imprensa na época, como vemos na manchete acima,
também corroborou com a violência fomentada. Os interesses empresarias de uma burgue-
sia branca também se tornou pretexto para tentativas de grilagens. Portanto, o debate não
se fecha apenas em linchamentos.
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

de uma organização, chamada African Blood Brotherhood (ABB), e que este


alojamento foi criado com o propósito de defender a comunidade negra, a ABB
foi lançada ao centro das atenções “intensamente agressivos em seu caráter”,
“alimentando a fome de revolta entre os negros”, dizia o New York Times para
representar a irmandade (BERGIN, 2016, p. 46).
A African Blood Brotherhood foi uma organização secreta de libertação
do povo negro, radical4, fundada em 1919, pelo jornalista imigrante caribenho,
Cyril Valentine Briggs, em Nova York. O historiador Minkah Makalani caracte-
riza-a como a primeira organização radical dos EUA desde o pós-emancipação
(MAKALANI, 1996, p. 2). Ela foi liderada por intelectuais-ativistas, afro-caribe-
nhos e afro-americanos no Harlem, que basearam suas experiências coletivas em
formações socialistas e nacionalistas negras para articular uma tendência política
distinta daquela que se encontrava em sua conjuntura.
Este capítulo tem como objetivo, apresentar de maneira introdutória, a for-
mação dessa organização, considerando algumas problemáticas que devem ser
levantadas para nortear nosso texto. Como vimos, é uma organização composta
e liderada por afro-caribenhos, portanto, eram imigrantes.
Torna-se necessário abordarmos um pouco essa imigração, pois os seus
integrantes estavam inseridos nesse contexto. Como se deu a imigração desses
afro-caribenhos para os EUA? Quais eram a bagagem teórico-política que trou-
xeram consigo? Por se caracterizar como uma organização pouco conhecida, se
faz necessário apresentar os indivíduos que a comportam. Quem eram os sujeitos
integrantes dessa comunidade? Quais foram suas influências? Em que contexto
se encontraram quando chegaram ao país? Quais foram suas impressões sobre
o local? E por que decidiram criar uma organização radical de libertação negra?
Para trabalhar com a imigração caribenha, utilizaremos como principal
autor, Winston James e seu livro Holding Aloft Banner: Caribbean Radicalism in
Early Twentieth-Century America, um clássico do assunto. E para entendermos

4 Radical aqui, no sentido de ser uma entidade que buscava mudanças na ordem social a
nível profundo, exigindo o desmantelamento do sistema vigente. Portanto, não acreditavam
em medidas parciais ou reformistas de mudança na ordem. Nesse sentido, o radicalismo
negro é composto por diversas camadas e agentes. Acomodando anticapitalistas como: so-
cialistas, comunistas, praticantes de outras vertentes do marxismo; assim como anticapita-
listas não marxistas, tais quais anarquistas, anarcossindicalistas; variantes do nacionalismo
negro, abolicionismo, garveyismo, pan-africanismo etc. O caso particular da ABB repre-
senta o radicalismo negro marxista, embora ela tenha tido um período de existência relati-
vamente curto (1919-1924), se tornou uma das bases, do desenvolvimento do radicalismo
negro na década de 1930/1940 e o seu ressurgimento dinâmico no Movimento dos Direitos
Civis e Black Power na década de 1960 e 70. O radicalismo negro marxista da ABB busca
trazer no seu programa e em suas ações a ideia de raça e classe através da combinação de
elementos do marxismo com a ideologia da primazia racial enquanto categoria de análise
da situação dos negros (MATTOS, 2018, p. 146), com a intenção de guiar o movimento
libertário negro para a constituição de um Federação Negra global ou à uma revolução
proletária Pan-Africanista.
481
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(O rganizadores )

um pouco mais da African Blood Brotherhood, aproveitamos os trabalhos de


Minkah Makalani, o autor mais recente que se debruça sobre a organização.
Essas são algumas questões que buscam ser respondidas.

AS PECULIARIDADES DA IMIGRAÇÃO AFRO-CARIBENHA

O Caribe é uma região do continente americano formado pelo Mar do


Caribe, suas ilhas e os Estados Insulares. Uma série de desenvolvimentos, pro-
cessos e eventos entrelaçados desencadearam e sustentaram um enorme êxodo
das ilhas durante o final do século XIX e início do XX. Por trás da imigração
Caribenha, está uma longa história de colonialismo, acompanhada da escravidão
e da economia do açúcar (JAMES, 2020, p. 33).
Entre esses países que colonizaram a região, se destacam Espanha, Grã-
Bretanha, França, Holanda, entre outros, moldando a economia do local em be-
nefício próprio. As ilhas do Caribe foram anexadas, povoadas por conquistadores
e por povos africanos escravizados. Sua sociedade nativa (Aruaques e Caraíbas)
foi subjugada e dizimada. O historiador Winston James (2020, p. 33), diferencia
a sociedade caribenha, que viria a existir com a colonização, de outros países co-
lonizados, especialmente, na América do Sul. Para ele, a população originária do
Caribe não formaria uma base colonial, ou seja, a população aborígene não era
apenas conquistada, mas também extinguida. A sociedade caribenha era, então,
totalmente nova com a colonização.5
No início do século XX, o mundo passava por transformações, e com o
Caribe não era diferente. Uma penetração cada vez mais acentuada do capital
estava em andamento. Um aumento no nível de pobreza e uma ampliação da
desigualdade econômica participava do processo (HOBSBAWM, 2016). Nesse
período, Cuba e Porto Rico caem sob tutela dos EUA: “os Estados Unidos trans-
formarão o mar Caribenho em um lago americano”6 (JAMES, 2020, p. 34, p.
tradução nossa)
Baseado em complexas transformações, alguns pontos se apresentam
como os possíveis motivos da imigração caribenha para a américa do nor-
te. Primeiro, uma crise na indústria açucareira do caribe britânico em regiões
como Barbados, São Cristóvão e Nevis e Jamaica. Segundo James (2020, p. 41),
enquanto em 1820, a região produziu cerca de 56% da média anual de 331.000
toneladas de açúcar, na primeira década do século XX, contribuiu com apenas
11% de 2.217.000 toneladas. Ao passo que, Cuba, no período, se tornava a líder

5 Em relação a colonização britânica, suas colônias no Caribe formariam uma complexa


relação naquilo que ficou conhecido como metrópole-satélite, metrópole-colônia. Como
parte do Império, aqueles inseridos dentro das colônias eram vistos como britânicos, mas
da mesma forma que – como colônias – eles eram, por definição, marginais, estrangeiros.
6 The United States had transformed the Caribbean sea into a de facto American lake.
482
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

no processo.
Outro ponto é a precariedade do trabalhado. Na Jamaica, por exemplo, o
governo colonial, em 1911, deu fim aos concursos públicos, afetando principal-
mente, a população negra de conseguir um emprego. Tais acontecimentos aju-
dariam a radicalização dos indivíduos inseridos dentro da sociedade caribenha.
Além disso, adiciona-se o desemprego e os baixos salários como elementos que
corroboraram com a imigração.
Somando-se a política colonial, a economia em crise e outros fatores que
não são possíveis de se explorar no texto devido a sua extensão, temos a região
geográfica do Caribe, que tem se confrontado com os desafios do meio ambien-
te que incluem erupções vulcânicas, terremotos, secas, tsunamis, furacões7. Os
grandes furacões serviram para estruturar sociedades, e, em grande parte da his-
tória caribenha, isso implicou um impacto em suas principais instituições, escra-
vidão e plantation (SCHWARTZ, 2007, p. 37-38). Os efeitos das catástrofes na-
turais são profundamente mediados por relações sociais, econômicas, políticas8 e
também contribuíram para o êxodo.
Em 1900, os caribenhos começaram a imigrar para os EUA, principalmen-
te Nova York, de maneira mais acentuada, estabelecendo-se em Manhattan e no
Brooklyn. Em 1920, a porcentagem de negros nascidos no Caribe e que viviam
na cidade, atingiu um pico de 33% em relação ao total de negros na megalópole
(MAKALANI, 2011, p. 25).
Nesse contexto, qual era a bagagem teórica-política que esses caribenhos
tinham quando chegaram aos EUA? James coloca diversas características que,
inclusive, ajudaram a ascender uma cultura radical nesses indivíduos. Essas ca-
racterísticas são as políticas anteriores e a experiência organizacional que tive-
ram no Caribe, junto a quebra de uma consciência majoritária9; uma vasta expe-
riência anterior em viagens e na imigração; um status de proteção nos EUA (em
relação aos indivíduos do Caribe Britânico), em que eram vistos como sujeitos
da Coroa Britânica; um menor apego a fé cristã e às igrejas cristãs; e uma relação
educacional geralmente fora do alcance de afro-americanos (JAMES, 2020, p.
52).

7 Alguns exemplos são a erupção do vulcão de Monte Péele na Martinica em 1902 e a erup-
ção do vulcão Soufrière em São Vincente, 1902; o terremoto da Jamaica em 1697; o furacão
de São Calisto II que atingiu as ilhas caribenhas em 1780. Ver: SCHWARTZ, Stuart B. Os
furacões e a formação das sociedades caribenhas. Revista USP. N. 71, p. 28-43, 2007.
8 Os mecanismos à disposição para lidar com suas consequências e, assim, a capacidade de
suportar as forças destrutivas da natureza também são condicionadas pelo poder e recursos
que alguém possui.
9 Consciência majoritária no sentido de que os imigrantes caribenhos estavam acostumados,
pela maior parte do tempo, a viver em um mundo em que eles constituíam a maioria da
população. Quando vieram para os EUA, essa lógica se inverteu, e a interação com a popu-
lação branca - muitas vezes com o racismo - levou alguns deles a atividade política radical.
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(O rganizadores )

Em relação a experiência organizacional dos afro-caribenhos antes da che-


gada ao novo país, podemos exemplificar Wilfred Adolphus Domingo, que viria
a se juntar a ABB, e Marcus Garvey, que eram membros de uma organização
protonacionalista chamada The National Club. Também temos Samuel Haynes,
que deixou Belize após liderar um grande movimento de protestos na capital de
seu país, em 1919. Claude McKay, John Sydney de Bourg, Charles Petioni e mui-
tos outros, estavam radicalizados antes da chegada a América do Norte.
Além disso, a 1º Guerra Mundial também ajudou no radicalismo dessa
população imigrante, pois enfrentaram o racismo em suas divisões de combate.
Entre os radicalizados, estavam ex-membros do Regime das Índias Ocidentais
Britânicas que serviram na Europa e no Oriente Médio durante a Grande Guerra:
“quaisquer ilusões que esses soldados tivessem sobre seu britanismo antes de
irem para a “pátria-mãe” foram rapidamente dissipados pelo racismo contun-
dente imposto a eles por soldados e oficiais britânicos brancos (JAMES, 2020, p.
53, tradução nossa)10.
Uma relação semelhante aconteceu com os afro-americanos.11 Com o en-
gajamento de afrodescendentes na guerra, o que os afro-americanos esperavam,
através do reconhecimento de seus serviços prestados ao país, era um processo
de inclusão plena, o alcance de uma cidadania e a diminuição da segregação e do
racismo local. Entretanto, o que se viu foi a transposição das Leis Jim Crow para
o serviço militar. Seu resultado prático foi a criação de acampamentos militares
específicos para afrodescendentes, a manutenção do racismo, dos linchamentos,
além de confrontos étnicos entre os veteranos da guerra e supremacistas brancos
(SILVA, 2019, p. 154-157).
Dentre esses sujeitos que migravam aos EUA, uma série de jovens, ho-
mens e mulheres, radicalizados, iriam para o Harlem, não apenas com o objetivo
de ganhar na vida, mas também participar de organizações que lá existiam. A
Universal Negro Improvement Association (UNIA), de Marcus Garvey, tinha
papel importante nesse quesito, muitos migraram para contribuir com o projeto
do ativista. Mas não só a organização de Garvey, como também partido comu-
nista dos Estados Unidos na época. Ademais, antes e depois da abolição da es-
cravatura, os caribenhos viajaram amplamente - uma experiência não confinada
à intelectualidade, mas abrangendo todas as classes, especialmente, os trabalha-
dores qualificados.
Desse modo, muitos imigrantes caribenhos que foram para os Estados

10 Any illusions that these soldiers had about their Britishness before going to the “Mother
Country” were quickly dispelled by the headspinning racism meted out to them by white
fellow-British soldiers and officers alike.
11 Ver: SILVA, Matheus Cardoso da. Do antirracismo local ao antifascismo global: A trans-
nacionalização do movimento negro nos EUA entre as duas guerras mundiais. Revista
Eletrônica da ANPHLAC. N. 27, p. 144-184, Ago/Dez. 2019.
484
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Unidos haviam viajado para outros lugares antes de sua chegada. Um número
substancial trabalhou no Canal do Panamá; alguns em plantações de banana
no centro da América; outros em plantações de açúcar em Cuba, Porto Rico
e República Dominicana. Muitos tinham uma experiência internacional ainda
mais ampla, viajando para lugares como Índia e China. Outros viveram por um
tempo na África Ocidental, Oriente Médio e até mesmo na Europa. Serviram
no exército britânico no Egito, Iraque e Palestina durante a Primeira Guerra
Mundial. Garvey, por exemplo, viveu e trabalhou por vários anos na Europa e
América Central antes de viajar para Nova York. Muitos desses caribenhos via-
jados desenvolveram uma perspectiva internacionalista pan-africanista, através
da interação com pessoas negras de diferentes países, através da observação da
condição oprimida comum da humanidade negra ao redor o mundo12 (JAMES,
2020, p. 69).
Outra característica em relação aos caribenhos foi o seu acesso à educa-
ção e a realização educacional. O historiador coloca que, em 1923, 98,6% dos
imigrantes que entraram no país, eram alfabetizados. Em comparação com os
negros dos EUA, entre o período de 1920 e 1930, 27,4% dos afro americanos
eram analfabetos (JAMES, 2020, p. 73). Em conjunto a isso, para o intelectual,
os afro-caribenhos tinham uma paixão cultural pela leitura (a palavra escrita) e
a oralidade (palavra falada). A aprendizagem do livro e a educação em geral,
foram os recursos necessários para a mobilidade social ascendente - a aquisição
de empregos de colarinho branco e entrada nas profissões. O conhecimento era,
em um sentido muito concreto, um capacitor vital para aqueles sem dinheiro13
(JAMES, 2020, p. 73).
Um aspecto final de suma importância para a radicalização dos imigrantes
caribenhos foi a configuração da raça e racismo nos EUA. A presença de negros
com pele clara entre os imigrantes radicais era significativa, o próprio líder da
ABB, Cyril Briggs, se encaixa nessa questão; quando vieram para os EUA, sua
posição social foi categorizada como negro: “a posição intermediária - colorido,
mulato, miscigenado, entre outro - que eles tinham nas ilhas do Caribe foi abo-
lida nos EUA, sendo colocados em uma categoria indiferenciada de “negro”14

12 Vale ressaltar que muitos imigrantes também eram marinheiros e, por conta da natureza de
seu trabalho, experienciaram diversos contextos.
13 Aqui é necessário aprofundarmos em um ponto. Cedric Robinson contrapõem a perspec-
tiva educacional de James, para o escritor de “Black Marxism”, a relação com a educação
no Caribe estava ligada a chave do colonialismo. Enquanto James caracteriza o “amor pela
leitura”, Robinson dá destaque as imposições dos impérios coloniais para a formulação do
radicalismo negro. Para o historiador, os impérios britânicos e franceses, de forma muito
consciente, procuraram nutrir uma classe de funcionários disposta e capaz de governar, in-
fluenciar as relações caribenhas em nome da ordem imperial. A leitura de Robinson precisa
ser levada em conta também quando apresentado essa questão.
14 The intermediary position—colored, mulatto, mixed, or the like—which they held in the
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(O rganizadores )

(JAMES, 2020, p. 69, tradução nossa).


Nesse sentido, o intelectual e ativista W.E.B., Du Bois, nos relembra a con-
dição do negro nos EUA pós-emancipação, com os seus conceitos de “véu” de
“dupla consciência”. Para o autor, a sociedade norte-americana estaria estrutura-
da ao redor desses dois fenômenos. O véu seria a representação do racismo que,
por sua vez, impede o negro de ver o mundo através de seus olhos, no qual ape-
nas lhe é permitido uma consciência de si através do outro (branco). Peguemos
como exemplo, os shows ministreis e a prática dos blackfaces, como também as
próprias leis Jim Crow e o racismo mais explícito, ou o mais velado e estrutural.
Já a dupla consciência viria como consequência e intimamente ligada ao véu,
seria a cisão do ser, na qual ele é visto, ou como um negro, ou um cidadão, um
humano. Essa divisão não se resumiria à existência do ser negro, mas também
caracterizaria a identidade do branco (DU BOIS, 2021, p. 22-23). O branco só
é branco com esse mundo cindido. Essa dialética é como uma roda dentro da
roda dos brancos: atrás do véu existem outros problemas, porém, parecidos de
ideais, de líderes e de liderados, de servidão, de pobreza, de ordem e subordina-
ção, embora, permeados por esse véu. Isso levaria à noção de linha de cor que o
historiador exemplifica em uma passagem hipotética de um estrangeiro visitando
o sul dos EUA:
Um observador casual em visita ao Sul a princípio não vê a linha.
Adentrando mais profundamente no Cinturão Negro, começa a notar uma
maior frequência de rostos escuros, mas fora isso os dias passam preguiço-
sos, o sol brilha forte e este pequeno mundo parece feliz e contente como
qualquer outro que já conheceu. Inclusive, sobre a questão maior - o pro-
blema do negro - ele ouve tão pouco que parece até haver uma conspiração
pelo silêncio [...] Mas, se permanecer por tempo o suficiente, vem o desper-
tar. De forma lenta, mas constante, seus olhos começam a notar as sombras
da linha de cor [...] De maneira silenciosa e inexorável, vê que o mundo
ao seu redor flui em duas grandes correntes: ambas correm sob o mesmo
sol, contudo ao final se dividem e tomam uma enorme distância. Isso tudo
acontece de forma discreta; nenhum erro é cometido, e caso ocorra algum
o braço ágil da lei e da opinião pública entre em ação no mesmo instante
(DU BOIS, 2021, p. 199-200).

Essas relações aparecem em circunstâncias coloniais e estão em diálogo


com toda uma estrutura complexa de formação da modernidade, construção
essa que não é possível se aprofundar no texto. Contudo, resgatando Mbembe,
um dos elementos dessa modernidade é a construção da alcunha “negro”. Para
o filósofo, o substantivo teve como função três princípios: a atribuição, a inte-
riorização e a subversão. Primeiro, designando-os como um gênero particular;
segundo, pessoas que, por sua aparência física, seus usos, costumes e maneiras de
estar no mundo, foram colocadas como testemunhos da diferença em seu estado
islands was abolished in America, collapsed into an undifferentiated “Negro” category.
486
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

natural; e, terceiro, por serem apresentados como evidências do diferente, repre-


sentavam, até o extremo do caricatural, o princípio de exterioridade, consequen-
temente, só poderiam existir sob o elo da separação (MBEMBE, 2018, p. 92).
Em segundo lugar, temos a continuidade da segregação legalizada, o caso
Plessy v. Ferguson e as Leis Jim Crow são um exemplo disso. Acompanhando a
análise da professora de Direito Cheryl I Harris, os Estados Unidos utilizaram-se
da lei para transformar a identidade racial branca, que já vinha desde a escravi-
dão, para uma forma de propriedade15. A autora nos lembra que a construção da
identidade branca e da ideologia racial está intimamente ligada com a evolução
e expansão do sistema de escravidão por posse16. Em meados de 1680, os pri-
meiros códigos da escravidão começavam a aparecer, surgindo uma identidade
racial ligada ao status social: a identidade racial negra marcava quem era sujeito
a escravidão; enquanto a identidade racial branca delimitava aquele que era livre,
ou ao menos não era escravo. A escravidão tornava-se assim uma instituição,
que colocava pessoas como formas de propriedade que poderiam ser vendidas,
trocadas, herdadas etc. Por causa dessa relação, a branquitude manifestava-se
como um escudo contra a escravidão, uma linha de proteção e demarcação. Ter
a identidade racial branca era crucial, virando também uma forma de proprieda-
de, pois a propriedade de ser branco garantia as características dos direitos dos
humanos livres.
Em linhas gerais, são algumas das características que os afro-caribenhos
trouxeram consigo quando foram aos Estados Unidos. Os membros da ABB es-
tavam inseridos nesse contexto, porém, ao chegarem no novo país, tiveram suas
próprias particularidades. Agora, apresentaremos um pouco desses indivíduos.

A FORMAÇÃO DA ABB

O intelectual Henry Louis Gates (1988, p. 132) coloca o Movimento do


Novo Negro no contexto em que acabamos de descrever: The “New Negro”, of
course, is only a metaphor. Uma metáfora que começa a acreditar que seu “su-
cesso” depende fundamentalmente da autonegação de si, um afastamento do
“Velho Negro”, aquele que não é humano, aquele caracterizado pela memó-
ria da escravidão negra. Pelo registro de um “Novo Negro” (GATES, 1988, p.
132). Esse é o contexto em que muitos dos intelectuais do Movimento do Novo
Negro como Booker T. Washington, W. E. B. Du Bois, Jesse Max Barber, Marcus
Garvey, Arturo Schomburg, Alain Locke, Langston Hughes e os intelectuais da
organização responsável pelo periódico que buscamos apresentar, a African Blood

15 Propriedade no sentido de direitos pelo qual alguma coisa pertença a alguém.


16 Quando um indivíduo adquire direitos de posse sobre o outro. São pessoas tratadas como
propriedade por completo, para serem vendidas e compradas.
487
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(O rganizadores )

Brotherhood (ABB), estavam inseridos e para o qual apresentaram respostas, atra-


vés de suas particularidades. Daremos destaque ao seu fundador e líder, Cyril
Valentine Briggs, devido a extensão que o texto se propõe.
Nascido da ilha de São Cristóvão, foi filho de Mary M. Huggins, uma
mulher negra, e Louis E. Briggs, um supervisor de plantação branco. Com uma
aparência fenotipicamente branca, aproveitou-se da educação colonial, tendo
contato com a teoria radical desde jovem. Quando trabalhou em uma livraria, se
deparou com os discursos de Robert Green Ingersoll que o ajudou a fomentar um
anti-imperialismo em suas reflexões. Chegou a Nova York em 1905, com dezes-
sete anos. Como muitos imigrantes, se defrontou com uma realidade racial dife-
rente da que estava acostumada. Apesar de “parecer branco”, Briggs “optou” por
confrontar a realidade de ser negro nos EUA17. Ao invés de tentar ser membro de
diversas organizações no Harlem, o são-cristovense buscou a prática jornalística,
trabalhando para a Amsterdam Review em 1912, quando em 1915 passou para
uma revista de notícias dedicada a empresas negras na cidade de Nova York,
chamada Coloured American Review. Em seu primeiro editorial disse que os
empresários negros deveriam se comprometer aos interesses dos trabalhadores
negros, ao invés do lucro, o que chamou a atenção de Hubert Harrison no qual
teve contato. Briggs saiu da revista logo após seu segundo artigo, muito provavel-
mente, por sua postura radical (MAKALANI, 2011, p. 73).
Desse modo, em 1917, a organização cultural nacionalista chamada
Hamitic League of the Word (HLW) foi criada. Briggs era um de seus funda-
dores, sendo ponto chave para sua vida, pois entrou em contato com diversos
intelectuais do Harlem como John Edwar Bruce, Arthur Schomburg, Augusta
Warring, Anselmo Jackson, como também foi importante para sua análise social
na promoção do orgulho racial. Porém, suas aspirações começaram a divergir
da associação, entre elas, estava sua perspectiva política que começava a destoar
da visão da liga. Um exemplo é a noção de autodeterminação. Briggs, acompa-
nhando um debate que já existia na época, acreditava que os negros nos EUA
formavam uma nação dentro de outra nação. Assim, acreditava que o racismo
era uma característica fundamental para a sociedade estadunidense e para seu
poder imperialista. Escrevendo em resposta ao presidente da época, Woodrow
Wilson, que acabara de lançar seus quatorze pontos para alcançar a paz mundial
após a Grande Guerra, Briggs relatou:

17 Uma prática que os negros com características fenotipicamente brancas realizavam nos
Estados Unidos, era o da “passabilidade”. Termo utilizado para descrever uma pessoa de
cor que, para escapar da segregação racial, buscava “passar-se” por branca. Briggs não
optou por esse caminho, pois, segundo Makalani (2011, p. 61) era uma prática incomum
no Caribe, além de que isso proporcionaria um distanciamento de sua mãe a da população
afro-caribenha qual tinha contato no novo país.
488
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Pode a América exigir que a Alemanha desista dos poloneses e a Áustria


dos eslavos, enquanto ainda mantém os mais severos laços intelectuais, mo-
rais, políticos, industriais a favor da escravidão, sob uma nação com mais
de dez milhões de pessoas, que ocupam em sua maioria os Estados do
Sul... Com que moral de autoridade ou justiça pode o presidente Wilson
exigir que oito milhões de belgas sejam libertados durante seu primeiro
mandato, quando até o presente momento ele não levantou um dedo por
justiça e liberdade a mais de DEZ MILHÕES de pessoas de cor, uma nação
dentro de uma nação, uma nação oprimida e segregada, que é digna como
qualquer outra de um acordo justo ou na sua falta, a existência de uma
política se separação 18(BRIGGS, 1918 apud MAKALANI, 2011, p. 67,
tradução nossa).

Briggs teve contato com Harrison no período em que o último estava dei-
xando o Partido Socialista da época19, por volta de 1917. E foi nesse período
também que começou a dialogar com outros radicais que vieram do partido,
como Richard B. Moore, Otto Huiswoud, Grace Campbell, W.A. Domingo, A.
Phillip Randolph, Frank Crosswaith etc20. Em 1918, começa a publicar o jornal
The Crusader, que no futuro viria a ser o principal meio de divulgação da ABB.
O Partido Socialista da época também estava à mercê das próprias con-
tradições da conjuntura, e essas incompatibilidades fizeram com que os seus
integrantes negros a deixassem. Entre elas, estava o racismo dos próprios inte-
grantes e a redução do problema da raça à mera fachada da exploração de classe.
Harrison foi o principal sujeito que desafiou esse reducionismo. Vendo o racismo
como algo enraizado no capitalismo, observou que a exploração de classe e a
raça estavam ligadas de maneira orgânica e extremamente complexa, de modo
que instigou o partido a “levar a sério o problema da linha de cor” e dar aos Afro-
Americanos uma visão de igual importância da raça como da classe. Um movi-
mento da classe trabalhadora liderada por socialistas teria que organizar os traba-
lhadores negros e apoiar explicitamente as lutas afro-americanas (MAKALANI,
2011, p. 33). Apesar dessa disputa, ela não foi o suficiente para mudar as suas
estruturas do partido, sendo assim, esses intelectuais negros buscaram sua saída.
Com isso, os indivíduos buscaram um novo passo e decidiram seu próprio
programa para tratar a opressão racial e a exploração de classe em conjunto. Isso

18 Can America demand that Germany give up her Poles, and Austria her Slavs, while Ame-
rica still holds in the harshest possible modern bonds of moral, intellectual, political and in-
dustrial bondage a nation of over ten million people, who occupy in the majority several of
the Southern States.... With what moral authority or justice can President Wilson demand
that eight million Belgians be freed when for his entire first term and to the present moment
of his second term he has not lifted a finger for justice and liberty for over TEN MILLION
colored people, a nation within a nation, a nationality oppressed and jim-crowed, yet wor-
thy as any other people of a square deal or failing that, a separate political existence.
19 Socialist Party of America (SPA)
20 Todos esses encontraram Harrison em sua formação política e receberam influências
(MAKALANI, 2011, p. 38).
489
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se materializou na People’s Educational Forum (PEF), em 1917; um grupo de


estudos público que ocorria nos domingos e que debatia as particularidades de
sua conjuntura através da chave de análise da raça junto ao marxismo. Este gru-
po fazia a leitura das obras clássicas de Marx e Engels, patrocinavam encontros,
debates e leituras de textos21, de modo que era utilizada para discutir a utilidade
do socialismo para a comunidade negra e desafiar o histórico da SPA.
Dentro dessas análises, que são pioneiras no que viria a ser a ABB futura-
mente, estava a necessidade de levar o debate organizacional para lugares fora do
eixo norte e industrial, dando foco em trabalhadores agrícolas; deveria se conde-
nar explicitamente a injustiça racial e os linchamentos; dar aos negros maior vi-
sibilidade em suas publicações; encorajá-los a entrar em organizações socialistas
e lutar para admitir trabalhadores negros em sindicatos; explicar como os negros
se beneficiariam do socialismo; a necessidade de dar suporte a atividades inde-
pendentes de radicais negros como a PEF; assim como afirmar a libertação negra
(MAKALANI, 2011, p. 47). Muitas das perspectivas desses intelectuais tinham
influência do que estava acontecendo no exterior, principalmente a Revolução de
Outubro de 1917 e o surgimento da URSS.
As preocupações de Lenin, as ações preconizadas pela Internacional
Comunista, somadas às ideias da Revolução de Outubro, contribuíram
para que as proposituras do movimento comunista russo reverberassem
em outras partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos da América, na
África (LOPES, 2017, p. 85).

Convencidos de que o Partido Socialista não daria um passo adiante acer-


ca da questão racial, viram diante de seu olhos o capítulo que ficou conhecido
como “Red Summer”, quando entre o final de 1918 e final de 1919, dez grandes
conflitos raciais ocorreram nos Estados Unidos, dezenas de confrontos menores
e cerca de 100 linchamentos de negros foram observados. Algumas das cidades
que ocorreram os embates foram, Charleston, Carolina do Sul (maio de 1919);
Longview, Texas (julho de 1919); Bisbee, Arizona (julho de 1919); Knoxville,
Tennessee (agosto de 1919); Washington, D.C. (julho de 1919); Chicago, Illinois
(julho de 1919); Phillips County, Arkansas (outubro de 1919) etc. Centenas de
mortes foram contabilizadas, em sua grande maioria negros22 (KRUGLER, 2015,
p. 16). James, dentro daquelas características que os afro-caribenhos encontra-
ram quando chegaram aos EUA, relata que o que mais os chocou, foram os
massacres raciais (JAMES, 2020, p. 81). Esses fatos radicalizaram ainda mais mi-
litantes negros, que agora buscavam pela autodefesa armada. Com os membros
21 Algumas das personalidades mais famosas que participaram do Forum foram W.E.B. Du
Bois, o antropólogo Franz Boas, ativistas políticos nacionalistas, líderes sindicais e socialis-
tas como Elizabeth Gurley Flynn e Algernon Lee.
22 Para saber mais ver: KRUGLER, David F. 1919, the year of racial violence: how African
Americasn fought back. New York: Cambridge University Press, 2015
490
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

da ABB não foi diferente. Aliados a uma bagagem teórica de radicalismo junto
a uma militância comunista, os confrontos raciais que eclodiram levaram Cyril
Briggs a organizar a autodefesa negra. O poema de Claude Mckay “If We Must
Die”, representa bem esse sentimento:
If we must die, let it not be like hogs
Hunted and penned in a inglorius spot,
While around us bark the mad and hungry dogs,
Making their mock a tour accursed lot.
If we must die, oh, let us nobly die,
So that our precious blood may not be shed
In vain; then even the monsters we defy
Shall be constrained to honor us, though dead!
Oh, kinsmen! We must meet the common foe;
Though far outnumbered, let us still be brave,
And for their Thousand blows deal one death-blow!
What though before us lies the open grave?
Like men we’ll face the murderous, cowardly pack,
Pressed to the wall, dying, but fighting back!23
(MCKAY, 1919, p. 441).

Dessa forma, na edição de outubro de 1919, do periódico “The Crusader”,


nasceria a “African Blood Brotherhood pela redenção e libertação africana”
(BRIGGS, 1919, p. 495). O historiador Robert Hill (1987, p. 77) elenca seus prin-
cipais objetivos: 1) a liberdade de raça; 2) a equidade de raça – política, econô-
mica, social; 3) a promoção do auto respeito racial; 4) a oposição organizada e
intransigente para a Ku Klux Klan; 5) um front negro unido; 6) o desenvolvimen-
to industrial; 7) salários maiores, menos horas de trabalho e melhores condições
de vida para os trabalhadores negros; 8) educação; 9) e a cooperação com outras
pessoas negras e com os trabalhadores brancos com consciência de classe.
Contudo, com o seu nascimento, surgem mais perguntas. Percebemos no
The Crusader um anúncio modesto para uma organização com tais ambições po-
líticas. Não houve publicidade em fóruns do Harlem, nenhum banner ou imagem
que a representasse, não apareceu no sumário do periódico, nem mesmo foi sina-
lizado na página de conteúdo. Ao invés disso, aparece silenciosamente na página
27. Por que um anúncio tão discreto? Como se organizaram para alcançar tais
objetivos? Como se apropriaram da produção jornalística? Como organizaram

23 Se temos que morrer, que não seja como porcos/Caçados e acuados em um lugar ingló-
rio/Enquanto a nossa volta latem os cães raivosos e famintos/Zombando de nosso nosso
amaldiçoado destino/Se temos que morrer, oh, que seja de forma gloriosa/Para que não se
derrame nosso precioso sangue/Em vão; assim até mesmo os monstros que desafiamos/
sejam obrigados a honrar-nos se estivermos mortos/Oh, irmãos! Devemos enfrentar nosso
mesmo inimigo!/Apesar de sermos em menor número, sejamos corajosos/E contra seus
mil golpes revidemos com um só mortal!/Que importa se a tumba aberta nos aguarda?/
Enfrentemos como homens a assassina e covarde matilha/E, contra a parede, morramos,
porém lutando. (Tradução nossa)
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(O rganizadores )

a autodefesa armada? Etc. São perguntas que podem ser exploradas em outras
ocasiões.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente capítulo buscou apresentar, de maneira introdutória, a forma-


ção da African Blood Brotherhood. Vimos a necessidade de trabalharmos em
conjunto com a imigração caribenha para os Estados Unidos, pois foi de grande
importância para o desenvolvimento de um radicalismo negro no país, tanto teo-
ricamente quanto de maneira prática, com a criação de organizações e grupos de
estudos por exemplo.
Dentro dessa perspectiva, alguns elementos principais apareceram quando
falamos da formação da ABB: a experiência organizativa que os caribenhos ti-
nham em sua terra natal e trouxeram consigo quando foram para os EUA; o cho-
que em relação a configuração de raça quando chegaram ao novo país; a influên-
cia da Primeira Guerra Mundial e suas quebras de expectativas; as dinâmicas que
ocorriam no exterior, em especial a Revolução Russa e o surgimento da URSS; o
encontro com a teoria marxista na figura de Hubert Harrison e a Socialist Party
of America; a complexidade do racismo nos Estados Unidos, apresentado na
segregação Jim-Crow e principalmente nos massacres raciais.
Nesse sentido, a ABB surgia com o objetivo de defender a população negra.
Vendo as contradições existentes na época, assumiu a tarefa de teorizar e aplicar
uma luta pela libertação. Acredita-se que a importância histórica da ABB se es-
tende além da sua existência formal como uma organização, ela está envolvida
na longa história do movimento de libertação negra, se apoiando no conceito de
continuidade histórica de Beatriz Nascimento. Contribuindo à sua maneira, para
o desenvolvimento de um radicalismo que poderia ser visto futuramente. Assim,
esse artigo buscou introduzi-la e abrir novas possibilidades de debates acerca da
organização e dos primórdios do movimento negro nos Estados Unidos para
serem exploradas por outros futuramente.

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diais. In: Revista Eletrônica da ANPHLAC, n.. 27, p. 144-184, ago.-dez. 2019

494
O DISCURSO DE ÓDIO RACIAL NOS EVENTOS
DESPORTIVOS: UMA ANÁLISE À LUZ DO DIREITO
FUNDAMENTAL À LIBERDADE DE EXPRESSÃO
Eloy Pereira Lemos Junior1
José Arthur Figueiras Deolino2

INTRODUÇÃO

A sociedade brasileira caracteriza-se pela diversidade de cultura, identi-


dade e personalidade de seus cidadãos, frente aos diferentes assuntos que são
apontados e discutidos por meio dos debates, redes e mídias sociais, televisivas,
rádios, jornais e demais veículos de comunicação e informação que se encontram
disponibilizados para os cidadãos como meio de se manterem informados sobre
a cultura, sociedade e política (MATTOS, 2013).
A liberdade de expressão que caracteriza um Estado Democrático de Direito
é expressa de maneira clara na sociedade brasileira. Todos os cidadãos possuem o
direito de manifestar as suas opiniões, o que é considerado um avanço no pensa-
mento social, em razão da livre comunicação e expressão (BENTO, 2016).
Discute-se sobre todos os assuntos que são abordados na sociedade, per-
mitindo a participação ativa dos sujeitos sociais como contribuintes para o de-
senvolvimento da sociedade e do país. As ações que são originárias da troca de
informações, opiniões e formação de novos conceitos que propiciam a mudança
de comportamento, de pensar e observar as transformações que ocorrem cotidia-
namente na sociedade (MATTOS, 2013).
No entanto, evidencia-se que, em relação às discussões realizadas e às ma-
nifestações em estádios de futebol, constata-se a presença do discurso de ódio mo-
tivado por fatores como preconceito, discriminação racial, intolerância religiosa,
homofobia, divergências políticas, que contribuem negativamente para que ocor-
ram desentendimentos entre os indivíduos acarretando consequências até mesmo
extremas impulsionadas pela não aceitação das opiniões diferentes daqueles que

1 Doutor em Direito pela UFMG com Pós-Doutorado em Direito Empresarial (PUC/MG).


Mestre. Especialista pela Universidade de Lisboa. Professor de Pós-Graduação e Gradua-
ção. Pesquisador e advogado. Fundação Universidade de Itaúna. [email protected].
2 Mestre em Direito pela Universidade de Itaúna/MG, Brasil. Pós-Graduado em Direito
Penal e Processual Penal pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. Fundação Universi-
dade de Itaúna. [email protected].
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

defendem posições muito radicais (EZEQUIEL; CIOCCARI, 2017).


O direito fundamental à liberdade de expressão é protegido em todas as
democracias liberais, uma vez que, trata-se da liberdade de opinião e de pensa-
mentos que favorece a identidade dos indivíduos evidenciando as suas capaci-
dades e habilidades para a sua participação ativa no processo de transformação
social (POTIGUAR, 2009).
Porém, salienta-se que, em meio à liberdade de expressão, o discurso do
ódio racial também se manifesta promovendo o agravamento das relações pes-
soais que abalam a sociedade, ocorrendo a vitimização difusa de incontáveis
indivíduos pertencentes a algum grupo racial. Sendo assim, surge a seguinte in-
dagação: Quais os limites do direito fundamental à liberdade de expressão no
Estado Democrático de Direito face ao discurso de ódio?
O objetivo geral do estudo visa analisar os limites da liberdade de expres-
são no tocante ao discurso do ódio racial. Os objetivos específicos buscam de-
finir o discurso de ódio; caracterizar a ocorrência do discurso de ódio no meio
desportivo; dissertar sobre os limites da liberdade de expressão na medida que a
conduta caracteriza um delito.
Justifica a escolha do tema o arcabouço protetivo referente a não discrimi-
nação racial no âmbito nacional e internacional e os frequentes atos e expressões
que caracterizam discurso de ódio nos estádios de futebol. Apesar de toda legis-
lação protetiva, estas não são capazes de reprimir o discurso de ódio nos eventos
desportivos, sob um possível exercício de um direito fundamental. Nesse contex-
to propõem-se analisar a dicotomia acerca dos limites da liberdade de expressão
e manifestações que caracterizam discurso de ódio racial.
A estrutura do estudo apresenta-se em um primeiro momento esta intro-
dução com o breve contexto sobre o tema abordado, o problema de pesquisa, o
objetivo geral e os objetivos específicos, bem como a justificativa para o desen-
volvimento do artigo.
Em um segundo momento apresenta-se a conceituação dos temas abor-
dados, salientando a análise da liberdade de expressão como um direito demo-
crático; o discurso de ódio nos estádios de futebol e a limitação da liberdade de
expressão com fincas de preservar direitos fundamentais dos grupos raciais.
Por fim, são apresentadas as considerações finais e as referências que emba-
sam o artigo ressaltando os diferentes autores que contribuem para a fundamenta-
ção do tema por meio de seus estudos que abordam a mesma temática proposta.

O DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE DE EXPRESSÃO

A liberdade de expressão é um direito incondicional de todos os indiví-


duos que se encontram sob um Estado Democrático de Direito, pois permite o

496
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

reconhecimento dos pensamentos e conhecimentos dos indivíduos em razão de


suas oportunidades de expressarem as suas opiniões e conhecimentos sobre dife-
rentes assuntos que são debatidos na sociedade e que permitem a participação de
todos os indivíduos (FRIGO; DALMOLIN, 2017).
Para Meyer-Pflug, a liberdade de expressão:
[...] engloba a exteriorização do pensamento, ideias, opinião, convicções,
bem como de sensações e sentimentos em suas mais variadas formas, quais
sejam, as atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação.
Diz respeito à expressão de qualquer concepção intelectiva (MEYER-
PFLUG, 2009, p. 66).

Faz-se fundamental o entendimento de que, a liberdade em si é um dos


principais aspectos referentes à dignidade humana, pois permite que o indivíduo
passe a ser reconhecido por sua participação efetiva na sociedade com a sua con-
tribuição ativa em razão de seus pensamentos, de suas práticas, de suas ideias que
podem ou não serem acatadas pela maioria.
Nos dizeres de Machado:
O direito à liberdade de expressão constitui o direito mãe a partir do qual
as demais liberdades comunicativas foram sendo autonomizadas, tendo em
vista responder às sucessivas mudanças tecnológicas, econômicas e estru-
turais relevantes ao domínio da comunicação. [...] nesta acepção o direito
à liberdade de expressão apresenta-se como elemento fundamental e cons-
titutivo da personalidade humana, com importantes refracções em todos
os momentos, domínios e modos do seu desenvolvimento (MACHADO,
2002, p. 416).

A liberdade de expressão ou liberdade de pensamento e/ou de informação


consiste na atividade intelectual através da qual o homem exerce uma faculdade
de espírito, que lhe permite conceber, raciocinar ou interferir com o objeto even-
tual, exteriorizando suas conclusões mediante uma ação (LEITE, 2010).
No ordenamento jurídico, a liberdade de pensamento não configura como
sendo de interesse do Direito, uma vez que, o pensamento é livre e reconhecido
como uma condição abstrata, interna do indivíduo, e que não possui transcen-
dência social (LEITE, 2010).
Sendo assim, para o Direito, a relevância da liberdade de expressão volta-
-se para a externalidade deste pensamento, que pode atingir outros cidadãos em
sua dignidade humana, comprometendo a sua identidade frente à sociedade, o
que é considerado um fator negativo e passível de rigores jurídicos por infringir
os direitos dos cidadãos.
A liberdade de expressão é considerada um direito fundamental, protegido
pela ordem constitucional e relevante para o Estado Democrático de Direito, por
apresentar limitações frente a outros direitos fundamentais que, em conjunto,
configuram-se como o respaldo da liberdade social que todo cidadão possui e que
497
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

deve ser respeitado (LEITE, 2010).


Bulos, no tocante a direito fundamentais, expressa que:
[...] destaca-se art. 5º, IX versa: é livre a expressão da atividade intelectual,
artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou
licença. A liberdade de expressar o pensamento, por atividade intelectual,
artística e científica e de comunicação, compactua-se a democracia, im-
plantada sobre a égide do Estado de Direito, consagrado a partir de 05 de
outubro de 1988. Por isso, a censura ou a licença para exteriorizar concep-
ções, nos campos da ciência, da moral, da religião, da política, das artes,
etc, é inadmissível (BULOS, 2003, p. 142).

Dessa maneira, compreende-se o aspecto referente à liberdade de ex-


pressão como sendo um princípio fundamental do indivíduo, resguardado pela
Constituição da República de 1988 e garantido pelo Direito, quando esta liberda-
de for tolhida ou mesmo negada, cabendo os rigores da lei para garantir o direito
de todo e qualquer cidadão. Sendo assim, compreende-se que, a liberdade de
expressão é considerada o livre pensar, e, por isso, não pode ser impedida de ser
exercida (PEREIRA, 2018).
No entanto, ressalta-se que a sua externação por meio de atos e motivação
a discriminação, preconceitos, violência é severamente punida, uma vez que fere
a dignidade humana no que tange o respeito as suas convicções ideológicas, cul-
turais e políticas (BULOS, 2003).
A garantia dos direitos e princípios fundamentais dos cidadãos é expressa
como sendo um princípio aplicado a todos os países que têm como princípio a
democracia e a liberdade, sendo ressaltado o aspecto da relevância da dignidade
humana, o que justifica o entendimento de que, a liberdade de expressão em
concordância com o ordenamento jurídico brasileiro, só é preocupante quando
se externaliza de forma a prejudicar o outro (BENTO, 2016).
A liberdade de expressão é assegurada por tratados internacionais, desta-
cando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos,
dos quais o Brasil é signatário. Em se tratando do Brasil, o direito de expressão
que se apresenta como o principal argumento contra o discurso de ódio é ampa-
rado pela Constituição Federal, embasando-se em direitos e deveres coletivos e
individuais, bem como em razão da comunicação, da informação e da expressão,
garantindo assim, a liberdade de todos os sujeitos em apresentarem as suas po-
sições, comportamentos, ideias e conceitos de forma que não agrida a dignidade
humana, e, nem impõe os seus pensamentos à sociedade de maneira arbitrária
(STROPPA; ROTHENBURG, 2015).
No próximo tópico, será trabalhado o conceito de discurso de ódio, na
perspectiva de diversos autores, bem como será abordada a caracterização do
referido discurso em documentos normativos.
498
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

A CARACTERIZAÇÃO DO DISCURSO DE ÓDIO

O termo correspondente ao discurso do ódio pode ser compreendido como


sendo aquele que ataca as outras pessoas em razão de fatores como raça, nacio-
nalidade, identidade religiosa, gênero, de sua orientação sexual ou em razão de
seu pertencimento a quaisquer outros grupos identificados por uma característi-
ca distintiva moralmente arbitrária (EZEQUIEL; CIOCCARI, 2017).
O discurso de ódio é compreendido como sendo a expressão do pensa-
mento que desqualifica, humilha e inferioriza os indivíduos e grupos sociais, o
que motiva a discriminação contra os indivíduos, o seu comportamento, suas
ideias, suas atividades, desencadeando a separação da sociedade em razão do
surgimento de sentimentos que indicam a separação de ideologias, o que não é
considerado um fator positivo para a evolução da sociedade de maneira coletiva
(FREITAS; CASTRO, 2013).
O discurso de ódio é caracterizado por meio de dois elementos básicos, os
quais são identificados como sendo a discriminação e a externalidade (MATTOS,
2013).
É uma manifestação segregacionista, baseada na dicotomia superior
(emissor) e inferior (atingido) e, como manifestação que é, passa a existir quando
é dada a conhecer por outrem que não o próprio autor. A fim de formar um con-
ceito satisfatório, devem ser aprofundados esses dois aspectos, começando pela
externalidade. A existência do discurso do ódio, assim toda expressão discursiva,
exige a transposição de ideias do plano mental (abstrato) para o plano fático
(concreto). Discurso não externado é pensamento, emoção, ou ódio sem discur-
so; e, não causa dano algum a quem porventura possa ser seu alvo, já que a ideia
permanece na mente de seu autor. Para esse caso, é inconcebível a intervenção
jurídica, pois a todos é livre o pensar (SILVA et al., 2011).
Quando uma pessoa dirige um discurso de ódio a outra, a dignidade é
vulnerada em sua dimensão intersubjetiva, no respeito que cada ser hu-
mano deve ao outro. Mas não só isso. No caso do discurso odiento, vai-se
além: é atacada a dignidade de todo um grupo social, não apenas a de
um indivíduo. Mesmo que este indivíduo tenha sido diretamente atingido,
aqueles que compartilham a característica ensejadora da discriminação, ao
entrarem em contato com o discurso odiento, compartilham a situação de
violação. Produz-se o que se chama de vitimização difusa. Não se afigura
possível distinguir quem, nominal e numericamente, são as vítimas. Aquilo
que se sabe é que há pessoas atingidas e que tal se dá por conta de seu
pertencimento a um determinado grupo social (SILVA et al., 2011, p. 449).

Outra forma referente ao discurso de ódio é identificada como sendo a


interpelativa da lei, ou seja, quando chamamos os outros de maneira injuriosa,
ou seja, quando a interpelação é dirigida de maneira direta a um indivíduo. Neste
sentido, o discurso de ódio pode ser inflamado em decorrência da não aceitação
499
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

do sujeito da expressão a ele dirigida, o que requer, neste sentido, o entendimento


de que, passa a ser uma injúria que se incorpora à identidade do sujeito. Ou seja,
em relação à construção da identidade do sujeito sobre o prisma do discurso de
ódio, compreende-se que, “a lei pode, então, me chamar, e eu posso não ouvir,
mas o nome no qual sou chamado e do qual não tomo conhecimento ainda assim
constituirá minha identidade social como sujeito” (SALIH, 2012, p. 55).
Neste sentido, faz-se relevante comentar que a principal característica que
define o discurso do ódio refere-se ao fato da sua capacidade de infringir a dig-
nidade humana, uma vez que, tende a destacar injúrias e calúnias que têm por
objetivo o desgaste do sujeito frente à sociedade, a qual aduz valores e conceitos
para a formação da identidade do sujeito (BENTO, 2016).
O discurso difamatório prejudica o status social do indivíduo, o que tam-
bém influencia em relação a sua condição humana frente à sociedade, a qual
utiliza a sua escolha de aceitar ou não o que é salientado pelo discurso realizado
(EZEQUIEL; CIOCCARI, 2017).
Um fato a ser esclarecido em relação ao discurso de ódio configura-se em
razão de sua condição de ofender a dignidade humana, destacando negativa-
mente o sujeito como meio de motivar reações contrárias às suas atitudes e com-
portamentos, o que o desloca à margem da sociedade, quando este passa a ser
ignorado por ela, ou o coloca no centro como sendo o alvo de todos os ataques
em decorrência de sua não aceitação (SILVA et al., 2011).
Os autores do discurso de ódio são contribuintes diretos do aumento da
violência que é detectada na sociedade. A estimulação ao negativo, ao destaque
sobre a intolerância, discriminação, preconceitos que se encontram em meio a
sociedade são motivados por meio dos discursos que têm por finalidade conven-
cer os cidadãos de que, o sujeito que é atacado é realmente o causador de todas
as divergências que se apresentam em razão de sua participação na sociedade
(SILVA et al., 2011).
Assim, o principal argumento contra a criminalização do discurso de ódio
é a defesa da liberdade de expressão, a qual precisa ser compreendida como sen-
do um direito garantido pela Constituição da República e uma das mais destacá-
veis característica de um Estado Democrático (EZEQUIEL; CIOCCARI, 2017).
Dessa maneira, compreende-se o aspecto de que, o discurso de ódio é
aquele em que o autor busca denigrir a imagem do indivíduo por meio de suas
expressões que impulsionam o ódio, propiciando a adesão de outros cidadãos,
acarretando consequências que são identificadas como sendo negativas para a
sociedade, em razão do aumento da violência e da separação que vem sendo
percebida na comunidade.
No próximo tópico será trabalhado o discurso de ódio racial no meio des-
portivo, em especial, nos estádios de futebol.

500
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

DISCURSO DE ÓDIO RACIAL NO ESTÁDIOS DE FUTEBOL

O discurso de ódio racial é o mais presente nos eventos desportivos, e pode


ser definido como expressões que humilham e inferiorizam indivíduos perten-
centes a determinado grupo racial. São manifestações segregacionais com intuito
de desqualizar a raça negra, aumentando o sentimento de malevolência pela co-
munidade sob o argumento de uma raça branca superior.
Tal argumento de superioridade da raça branca criou rótulos de imagens
e/ou estereótipos a serem seguidos pelos sujeitos, estereótipos que a socie-
dade elege e que são geradoras de preconceitos. Subsistiram representa-
ções relativas à cor e às diferenças raciais forjadas no tempo da escravidão,
como por exemplo, a afirmação de inferioridade mental, moral ou social
do negro em relação ao branco (COSTA, 2010, p. 14).

O termo popular racismo pode ser denominado como “o sistema que afir-
ma superioridade de um grupo racial sobre os outros, pregando, em particular, o
confinamento dos inferiores numa parte do país (segregação racial)” (SANTOS,
1984, p. 10).
Nos dizeres de Carvalho “racismo consiste na convicção de uma superio-
ridade de uma raça em relação às demais, estando a ela normalmente associados
atitudes e comportamentos preconceituosos e discriminatórios dirigido às raças
consideradas inferiores” (JESUS et al., 2014, p. 38).
Apesar de todo arcabouço protetivo no sistema jurídico nacional e inter-
nacional, percebe-se de forma cristalina discursos de ódio nos estádios futebolís-
ticos, mormente os discursos pejorativos raciais. Frequentemente tem sido noti-
ciado nas mídias e redes sociais, bem como são objeto de demandas judiciais, os
discursos de ódio através de manifestações singulares como, “macaco”, canções
entoadas de cunho discriminatório, até mesmo o lançamento de objetos durante
a partida para desqualificar um grupo racial.
O contexto de um discurso de ódio em um evento desportivo é mais amplo
que alguma desqualificação ou humilhação individualizada. O discurso de ódio
não atinge apenas o atleta, dirigente ou torcedor diretamente, mas fere a digni-
dade de todo um grupo racial, demais profissionais, torcedores, telespectadores,
ocorrendo o fenômeno da vitimização difusa, pois atinge um número imensurá-
vel de pessoas pertencentes àquele grupo.
A Carta Política de 1988 trouxe como objetivo fundamental da República
Federativa do Brasil nos termos do art. 3º, inciso IV a promoção do bem de to-
dos, sem preconceitos de origem, raça sexo, cor, idade e quaisquer outras formas
de discriminação. No mesmo contexto, repudia o racismo como um dos princí-
pios os quais regem as relações internacionais da Nação (BRASIL, 1988).
A Constituição Cidadã elegeu nos títulos de direitos e garantias

501
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

fundamentais, mormente no art. 5º da Constituição da República de 1988, o


princípio da igualdade substancial entre os indivíduos, proibindo qualquer tipo
de distinção. Ainda elencou a inafiançabilidade e imprescritibilidade da prática
do racismo nos termos do inciso XLII do art. 5º “a prática do racismo constitui
crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”
(BRASIL, 1988).
No tocante aos mecanismos protetivos quanto a discriminação racial, te-
mos a Lei n. 12.288/10, a qual institui o Estatuto da Igualdade Racial, que tem
por escopo garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunida-
des, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à
discriminação e às demais formas de intolerância étnica (BRASIL, 2010).
O citado Estatuto pormenoriza o termo de discriminação racial ou étnico-
-racial como:
toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor, des-
cendência ou origem nacional ou étnica que tenha por objeto anular ou
restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições,
de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, eco-
nômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou
privada (BRASIL, 2010).

Além da proteção em caráter geral, tem-se institutos protetivos específicos


no tocante a discriminação nas atividades desportivas, como a Lei 10.671/03 que
dispõe sobre o Estatuto de Defesa do Torcedor e o Código Brasileiro de Justiça
Desportiva. No Estatuto do Torcedor encontra-se dispositivos preventivos em
relação a violência no esporte em caráter geral, contudo carece de dispositivos es-
pecíficos em relação às discriminações ocorridas no meio desportivo (BRASIL,
2003).
Em contrapartida o Código Brasileiro de Justiça Desportiva no capítulo
das infrações contra a ética desportiva, elenca um rol de sanções administrativas
referentes a atos discriminatórios:
Art. 243-G. Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, rela-
cionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade,
condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:
PENA: suspensão de cinco a dez partidas, se praticada por atleta, mesmo
se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspen-
são pelo prazo de cento e vinte a trezentos e sessenta dias, se praticada por
qualquer outra pessoa natural submetida a este Código, além de multa, de
R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).
§ 1º Caso a infração prevista neste artigo seja praticada simultaneamente
por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de
prática desportiva, esta também será punida com a perda do número de
pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, indepen-
dentemente do resultado da partida, prova ou equivalente, e, na reincidên-
cia, com a perda do dobro do número de pontos atribuídos a uma vitória no
502
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

regulamento da competição, independentemente do resultado da partida,


prova ou equivalente; caso não haja atribuição de pontos pelo regulamento
da competição, a entidade de prática desportiva será excluída da competi-
ção, torneio ou equivalente.
§ 2º A pena de multa prevista neste artigo poderá ser aplicada à entidade
de prática desportiva cuja torcida praticar os atos discriminatórios nele ti-
pificados, e os torcedores identificados ficarão proibidos de ingressar na
respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de setecentos e vinte dias.
(BRASIL, 2010)

Na esfera criminal, o discurso de ódio nos estádios futebolísticos pode ca-


racterizar a injúria racial prevista no artigo 140 §3º do Código Penal: “se a injúria
consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem
ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência” (BRASIL, 1940),
caso a ofensa seja direcionada e individualizada. Caso a intenção seja desqua-
lificar e discriminar a raça negra ocorra no contexto geral poderá caracterizar o
tipo penal de racismo contido na Lei n. 7.716/89 nos termos do art. 20 “Praticar,
induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou
procedência nacional” (BRASIL, 1989).
Tobar e Lima diferenciam os citados tipos penais:
O crime de injúria qualificada - artigo 140 §3º do CP protege a honra
subjetiva de qualquer pessoa em relação ao sentimento que ela tem a
respeito de seus atributos físicos, intelectuais e morais, etc., e consiste
na ofensa irrogada pelo agente com a intenção de desqualificar a vítima
em virtude de sua raça, etnia, religião, cor, ou pelo fato de ser idosa
ou portadora de deficiência. Por expressa previsão legal a ação penal
somente é iniciada por vontade do ofendido, sendo inadmissível a re-
tratação configurada, muitas vezes, pelo simples pedido de desculpas.
Trata-se de injusto culpável prescritível e afiançável (TOBAR; LIMA,
2015, p.157).

Já o racismo previsto no artigo 20 da Lei nº 7.716/89 alarga o campo


de proteção penal tutelando o tratamento igualitário entre as pessoas e
ainda: “Proíbe, assim, o induzimento e a incitação, bem como a práti-
ca da discriminação ou preconceito relativo à raça, cor, etnia, religião
ou procedência nacional de qualquer pessoa. Tem-se um crime inde-
pendente da vontade da vítima para início da persecução penal e que,
por imperativo constitucional, é considerado imprescritível e, também,
inafiançável nas hipóteses de prisão em flagrante (TOBAR; LIMA,
2015, p.174).
Diante da prática cotidiana do discurso do ódio sob possível justificante do
exercício do Direito Fundamental à Liberdade de Expressão no próximo tópico
serão analisados quais os limites deste Direito Fundamental face a caracteriza-
ção do discurso de ódio.

503
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

4. A LIMITAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À LIBERDADE


DE EXPRESSÃO FACE A CARACTERIZAÇÃO DO DISCURSO DE
ÓDIO

A liberdade de expressão passa então ser utilizada em toda a sua máxima,


por meio da abertura dos meios de comunicação, principalmente em se tratando,
na atualidade, das redes e mídias sociais, os cidadãos alcançaram o poder de ex-
pressar as suas ideias e opiniões de forma cada vez mais expansiva, alcançando
diferentes regiões e promovendo a abertura da discussões que mobilizam a massa
para a reivindicação de seus direitos para a continuidade de uma sociedade ca-
racterizada por um Estado Democrático Brasileiro (PEREIRA, 2018).
Na atualidade, a liberdade de expressão está fundamentada no uso ilimi-
tado das redes e mídias sociais, onde ocorre uma transformação em relação a
comunicação por expandir de maneira agilizada o fluxo de informações que per-
correm o mundo globalizado (PEREIRA, 2018).
Desde a década de 1990, a internet vem sendo considerada um instru-
mento em destaque de aproximação entre as diferentes sociedades, além de ser
um veículo de informação por possibilitar o acesso às notícias em tempo real,
evidenciando assim, o acompanhamento do que acontece na sociedade brasileira
e no mundo, com maiores possibilidades de abertura de discussões (PEREIRA,
2018).
Para tanto, não se pode deixar de comentar, que existem leis e normas que
regularizam as atividades das redes sociais, justamente para garantir os direitos
dos cidadãos frente aos princípios relacionados à dignidade humana, proteção
em relação a imagem, a perseguições, discriminações e preconceitos, que fazem
parte da garantia e proteção dos princípios fundamentais dos cidadãos, e, que, é
de cunho jurídico (LEITE, 2010).
O ordenamento jurídico brasileiro tipifica criminalmente a prática do dis-
curso de ódio, em razão da prática de discriminação por meio de punições esta-
belecida pela Lei n. 7.716/89 e Código Penal Brasileiro.
Outrossim, não há que se falar em prática de discurso de ódio sob o ar-
gumento do exercício do direito constitucional de liberdade de expressão, pois
discursos preconceituosos não limitam a liberdade de expressão, mas sim violam
direitos fundamentais, na medida que práticas racistas não se amoldam sob a
égide da liberdade de expressão (OMMATI, 2014).
Esclarece o tema José Emílio Medauar Ommati:
Assim, fica claro que a Constituição de 1988, ao proibir o racismo, não
pretendeu proibir o discurso de ódio, enquanto discurso prévio, até por-
que não se pode proibir previamente qualquer discurso ou proferimento.
Pretendeu, sim, proibir discursos racistas depois de publicamente proferi-
dos. Em outras palavras, a proibição de racismo se dá quando se comprova

504
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

publicamente que houve a prática do racismo, enquanto violação da igual-


dade de todos (OMMATI, 2014, p. 102).

Para tanto, faz-se relevante o entendimento de que, em um Estado


Democrático de Direito, a garantia e proteção dos indivíduos devem ser respei-
tadas, sendo os infratores punidos com o que se estabelece na lei que rege o país,
desencadeando a discussão sobre a necessidade de haver o entendimento sobre
o respeito à diversidade que caracteriza a sociedade atual. Assim sendo, a carac-
terização de um país que respeita os seus cidadãos e garante a todos o direito da
liberdade de expressão, mas também protege todos que são atacados, discrimina-
dos em razão do discurso de ódio (PEREIRA, 2018).
Exprime Fernandes:
[...] para a doutrina dominante, falar em direito de expressão ou de pensa-
mento não é falar em direito absoluto de dizer tudo aquilo ou fazer tudo
aquilo que se quer. De modo lógico-implícito a proteção constitucional não
se estende à ação violenta. Nesse sentido, para a corrente majoritária de
viés axiológico, a liberdade de manifestação é limitada por outros direitos
e garantias fundamentais como a vida, a integridade física, a liberdade de
locomoção. Assim sendo, embora haja liberdade de manifestação, essa não
pode ser usada para manifestação que venham a desenvolver atividades ou
práticas ilícitas (antissemitismo, apologia ao crime etc.) (FERNANDES,
2011, p. 279).

Portanto, a liberdade de expressão e o discurso de ódio tratam-se de um


tema a ser debatido em razão do limite existente entre a liberdade e os limites do
ordenamento jurídico, promovendo a ordem da sociedade, por meio da aplicação
da lei para a garantia dos direitos e princípios fundamentais (SILVA et al., 2011).
Em especial os discursos raciais nos eventos desportivos, onde se percebe
que mesmo diante da ponderação do direito à liberdade de expressão e de tantos
dispositivos normativos protetivos em relação a discriminação racial, tais dispo-
sitivos não conseguem a efetividade necessária capaz de assegurar a dignidade
humana dos grupos raciais no país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após a realização do estudo foi possível refletir sobre a liberdade de ex-


pressão e o discurso de ódio racial, evidenciando que o pensamento é livre, mas
a sua externalização necessita ser analisada sob o direito com o objetivo de ga-
rantir a proteção de grupos raciais em relação aos princípios fundamentais dos
garantidos pela Constituição Federal de 1988.
O termo correspondente ao discurso do ódio pode ser compreendido como
sendo aquele que ataca as outras pessoas em razão de fatores como raça, nacio-
nalidade, identidade religiosa, gênero, de sua orientação sexual ou em razão de

505
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

seu pertencimento a quaisquer outros grupos identificados por uma característi-


ca distintiva moralmente arbitrária.
Os autores do discurso de ódio nos eventos desportivos são contribuintes
diretos do aumento da violência nos estádios. A estimulação ao negativo, ao
destaque sobre a intolerância, discriminação, preconceitos que se encontram em
meio a sociedade são motivados por meio dos discursos que têm por finalidade
convencer os cidadãos de que, o sujeito que é atacado é realmente o causador
de todas as divergências que se apresentam em razão de sua participação na
sociedade.
A liberdade de expressão é um direito incondicional de todos os indiví-
duos que se encontram sob um Estado Democrático de Direito, pois permite o
reconhecimento dos pensamentos e conhecimentos dos indivíduos em razão de
suas oportunidades de expressarem as suas opiniões e conhecimentos sobre di-
ferentes assuntos que são debatidos na sociedade e que permitem a participação
de todos os indivíduos.
O discurso de ódio racial remete ao entendimento de que, os pensamen-
tos e ideias são pejorativos e negativos, convencendo aos indivíduos sobre con-
cepções que ferem os direitos de liberdade, ocasionando perseguições e a perda
do limite de respeito, o que deve ser restringido por meio da aplicação das leis
como garantia de manter a ordem social que é crucial para a convivência entre
os cidadãos.
Sobre cingir a liberdade de expressão face ao discurso de ódio em um
Estado Democrático de Direito, constatou-se tal possibilidade, pois não seria ra-
zoável promover a liberdade de expressão, ferindo a dignidade de grupos raciais.
Deste modo, a garantia e proteção dos indivíduos deve ser respeitada, sendo os
infratores punidos com os rigores da lei, desencadeando a discussão sobre a ne-
cessidade de haver o entendimento sobre o respeito à diversidade que caracteriza
a sociedade atual, as quais são fundamentais para o exercício da democracia.
Por conseguinte, considerou-se que, o discurso de ódio desencadeou a re-
flexão sobre o aspecto dos limites em relação às diferentes reações que os cida-
dãos podem expressar, ressaltando que os limites das ações são julgadas pelo
Direito, que ao mesmo tempo reconhece que a sua competência não se esta-
belece em relação a liberdade de expressão uma vez que se trata de uma ação
abstrata, mas sim, na concretização destes pensamentos, que podem acarretar o
descumprimento das normas que garantem os princípios da dignidade humana e
dos direitos fundamentais garantidos pela democracia de qualquer grupo racial.

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508
RELAÇÃO ENTRE LINGUAGEM, BRANQUITUDE,
RACISMO E EXPLORAÇÃO DE TRABALHADORAS
DOMÉSTICAS NEGRAS E PERIFÉRICAS NO BRASIL:
O CASO MADALENA GORDIANO
Robson Batista Moraes1
Amanda Santiago Souza Melo2

INTRODUÇÃO

O presente artigo é resultante de uma pesquisa documental, de cunho qua-


litativo, e possui um caráter indisciplinar (MOITA LOPES, 2006). Está inserido
no campo epistemológico da Linguística Aplicada, e na grande área dos estudos
da linguagem. Dito isso, o artigo visa revelar a relação direta entre linguagem,
branquitude, racismo e exploração do trabalho doméstico de mulheres negras e
periféricas no Brasil, tendo como base principal o acontecimento que ganhou
grandes repercussões na mídia nacional, sobre o caso da trabalhadora doméstica
negra, Madalena Gordiano, que fora explorada durante décadas pela família de
um professor universitário racialmente branco, de classe média, na cidade de
Patos, no Estado de Minas Gerais.
O caso da trabalhadora doméstica, Madalena Gordiano, não é um caso
isolado em um país pós-escravocrata como o Brasil, mas é apenas uma das evi-
dências de que o racismo é um sistema histórico de negação de diretos que, se por
um lado gera inúmeros privilégios econômicos e simbólicos ao segmento racial
branco, por outro produz diversas desvantagens e prejuízos históricos à comu-
nidade negra, e, sobretudo, às mulheres racialmente negras e periféricas que se
encontram na base da pirâmide social.
O racismo à brasileira precisa ser compreendido para além de sua acepção
individualista, ou seja, o racismo não é somente uma violência pontual dire-
cionada a pessoas negras (ALMEIDA, 2018). Para além de se entender que o
racismo é uma agressão – física ou verbal – pessoal, ele é antes de tudo estrutu-
ral, porque é um elemento central, estrutural e estruturante de todas as relações

1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Linguística pela Universidade Federal de


Santa Catarina – UFSC.
2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura pela Universidade Fede-
ral da Bahia – UFBA.
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(O rganizadores )

sociais no Brasil, e é inegavelmente “o grande responsável por todo atraso moral,


social e político no país” (SOUZA, 2021, p. 7).
No dizer de Souza (2021), o racismo criou o Brasil porque historicamente
ele assumiu o controle do processo de dominação social, econômico, político,
e surge como manipulação das necessidades mais básicas das pessoas negras e
outros grupos historicamente perseguidos. Desse modo, ele destrói o reconheci-
mento social e a autoestima de todos aqueles/as que necessitam dela para levar
uma vida digna. Ainda para o mencionado autor, a luta contra o racismo é uma
luta de vida e de morte para todos aqueles que estão envolvidos, e deve interessar
igualmente a todos, não somente às pessoas racialmente negras.
Por conseguinte, cabe sublinhar que o racismo antinegros é parte da estru-
tura e da cultura brasileira, e incide sempre contra pessoas que possuem traços
fenotípicos (estética) de pessoas racialmente negras e aquelas adeptas de religiões
de matriz africana. Ou seja, ele é multidimensional porque, para além de ser indi-
vidual e estrutural, é também institucional, isto é, “o racismo institucional opera
de tal forma que coloca os sujeitos brancos em uma clara vantagem em relação a
outros segmentos racializados” (KILOMBA, 2019, p. 78).
Portanto, o racismo institucional é a própria supremacia branca instalada e
assumindo o controle dos rumos das instituições brasileiras. Em outras palavras,
“o racismo institucional se refere a um padrão de tratamento seletivo e desigual
nas operações cotidianas tais como em sistemas e agendas educativas, mercado-
rias, mercado de trabalho, justiça criminal, universidades etc.”, produzindo sem-
pre vantagens aos brancos em detrimento dos negros e indígenas (KILOMBA,
2019, p. 78).
Sob esse ângulo, convém ressaltar que o racismo institucional é um tipo
complexo e menos evidente, todavia não menos violento e danoso para os gru-
pos raciais não brancos. Isso quer dizer que o racismo institucional se refere ao
estabelecimento de normas, imposições, omissões e parâmetros extremamente
discriminatórios baseados no critério segregador da raça. Além disso, vale pon-
tuar que, devido ao racismo estrutural, pessoas racialmente brancas ocupam os
cargos de maior prestígio nas instituições públicas e privadas, e recebem altas
recompensas salariais no país. Isso significar dizer que, mesmo de forma questio-
nável, as grandes decisões dos rumos do país são tomadas única e exclusivamen-
te por pessoas brancas, com raras exceções.
O termo racismo dialoga com a construção do conceito de branquitude.
Dito isso, o branco precisa ser libertado de sua branquitude e o negro de sua ne-
gritude, pois a identidade racial encarcera e nega ao indivíduo os benefícios da
condição humana. Ou seja, a identidade racial oportuniza condições de alcance
a benefícios e direitos ou os retiram (CARDOSO, 2010). Para além disso, a teoria
antirracista, de modo geral, enfatiza o oprimido, deixando de lado o opressor.

510
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

A opressão também é um problema daquele que oprime. Para Cardoso (2010),


temos que deixar de ser pesquisadores que somente analisam o “problema do
negro”, para teorizar sobre relações sociais. Assim:
De modo breve gostaria de dizer que as pesquisas sobre a branquitude ao
focar o branco em suas pesquisas, não propõem que se negligenciem as pes-
quisas a respeito da negritude, e sim, chamam atenção e procuram preen-
cher uma lacuna nas teorias das relações sociais. Portanto, esses teóricos
estão de acordo com Albert Memmi ao considerar necessário retratar o
opressor e o oprimido (CARDOSO, 2010, p. 5).

Os Estados Unidos são pioneiros nos estudos sobre raça e racismo. Na


década de noventa, eles mudaram o seu enfoque, dando oportunidade a novos
temas, como “Os Estudos Críticos sobre a Branquitude”. Outros países também
se debruçaram sobre essa temática, como por exemplo, Brasil, África, Austrália
e Inglaterra. No Brasil, os estudos da branquitude datam do presente século.
Apesar dos primeiros estudos dessa temática serem reportados aos Estados
Unidos, alguns autores mais antigos foram relevantes para a reflexão sobre a
identidade racial branca (CARDOSO, 2010).
Du Bois, primeiro negro americano a possuir uma graduação em Harvard
e um doutorado em Berlim, publicou, em 1935, um livro em que analisou a
classe trabalhadora branca norte-americana do século XIX em comparação ao
trabalhador negro. Ele concluiu que os trabalhadores brancos, ao se apropriarem
do racismo, também usufruem dos benefícios, como acesso a bens materiais e
simbólicos. Em contrapartida a essa situação, os negros não acessam seus direi-
tos, muito menos alguns privilégios.
Du Bois também publicou um livro de nome “As Almas do Povo Branco”.
Esse livro marcou uma virada epistemológica, no sentido de que foi considerado
um dos primeiros a retratar o branco pelo olhar do pesquisador negro, ou mais
especificamente, de um sociólogo negro que também sofre as consequências da-
nosas do racismo. Portanto, esse livro marca o estudo não mais do negro pelo
olhar do branco, mas o branco pelo olhar do negro. Também pode ser conside-
rado um dos primeiros estudos a contribuir com a teorização da branquitude
(SCHUMAN, 2012).
Franz Fanon, filósofo e psiquiatra negro também pensou a identidade ra-
cial branca. Em 1952, ele publicou seu livro de grande sucesso “Peles Negras,
Máscaras Brancas”. Nesse livro, Fanon teorizou sobre a subjetividade do colo-
nizado e do colonizador. Assim, os negros poderiam não aceitar a sua cor, a sua
imagem, firmando um “pacto” com a teoria do branqueamento. Por conseguinte,
as máscaras brancas seriam a rejeição dos fenótipos dos negros. Esse importante
teórico considerava o racismo não como uma manifestação individual, mas uma
construção coletiva e cultural (SCHUMAN, 2012).

511
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

Alberti Memmi publicou, em 1957, um livro denominado “Retrato do


colonizado precedido do retrato do colonizador”. Nesse livro, ele descreve as
consequências da colonização tanto para o colonizador, como para o coloniza-
do. Ele analisa tanto aqueles que se apropriam da colonização como agentes de
opressão quanto aqueles que são oprimidos por ela. Nesse ínterim, seus estudos
se aproximaram dos estudos da branquitude (SCHUMAN, 2012).
Guerreiro Ramos foi considerado o primeiro sociólogo brasileiro a ques-
tionar os estudos sobre o negro. Dessa forma, ele questionou o uso do negro
como objeto de estudo, e não como sujeito. Ele também foi precursor ao analisar
o branco como objeto de análise sociológica (SCHUMAN, 2012). Assim, nas
palavras de Ramos:
Há o tema do negro e há a vida do negro. Como tema, o negro tem sido,
entre nós, objeto de escalpelação perpetrada por literatos e pelos chamados
“antropólogos” e “sociólogos”. Como vida ou realidade efetiva, o negro
vem assumindo o seu destino, vem se fazendo a si próprio, segundo lhe têm
permitido as condições particulares da sociedade brasileira. Mas uma coisa
é negro tema; outra coisa é negro-vida. O negro tema é uma coisa exami-
nada, olhada, vista, ora como ser mumificado, ora como ser curioso ou de
qualquer modo como um risco, um traço da realidade nacional que chama
a atenção. O negro-vida é, entretanto, algo que não se deixa imobilizar;
é despistador, proteico, multiforme, do qual na verdade, não se pode dar
versão definitiva, pois é hoje o que não era ontem e será amanhã o que não
é hoje (Ramos, 1957, p. 171).

Como vê-se no trecho, as teorias aqui apontadas sobre o branco, não


retiram o mérito das pesquisas sobre o negro, nesse sentido, os negros estão em
desvantagem nas relações raciais, portanto precisam de mais investigações. O
objetivo dos estudos citados foi preencher as lacunas das pesquisas sobre as re-
lações raciais (SCHUMAN, 2012). Entretanto, definir epistemologicamente o
conceito de branquitude é desafiador.
Para tanto, a branquitude é uma construção sócio-histórica, ela é uma das
produções do racismo, em que sujeitos brancos possuem privilégios materiais
e simbólicos em relação aos negros (SCHUMAN, 2012). Ela também é uma
posição, um lugar social, de onde a pessoa branca vê os outros e se vê. Um local
relativamente confortável, de quem pode atribuir ao outro aquilo que não atribui
a si. Portanto, enquanto alguns privilégios sociais são garantidos para as pessoas
brancas, direitos sociais básicos são negados aos negros.
O conceito de branquitude é complexo, isso porque, não podemos pen-
sar em branquitude sem nos referirmos a lexias como etnia, cor, cultura e raça.
Schuman (2012) afirma que a depender do país, região e história, a construção da
identidade branca pode mudar. Ou seja, não é algo homogêneo e determinado em
todo o mundo, mas construído com base no contexto sócio-histórico de cada país.

512
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Para além disso, a constituição da branquitude também não é determinada


pela genética, ela é fundamentada na posição e nos lugares sociais que os brancos
ocupam. Além de variar conforme a cultura e a localização geográfica. Assim,
uma pessoa identificada como branca no Brasil pode não ser assim reconhecida
em outro local.
A ideia de raça também perpassa o conceito de branquitude, nas palavras
de Schuman (2012). Ela está presente em vários campos da vida social, tais como
nas distribuições de recursos e poder, nas identidades coletivas, nas formas cultu-
rais e na constituição do sujeito na sociedade. Contudo, apesar do Brasil destacar
a miscigenação racial, como pertencente à identidade nacional, as desigualdades
raciais são a base para o racismo e a discriminação social.
Ainda em concordância com Schuman (2012), no Brasil, o termo raça
ainda é um tabu, visto que o racismo mostra o contrário da idealização da iden-
tidade nacional brasileira fruto da mistura de povos como algo positivo e harmô-
nico. As desigualdades raciais e sociais vão de encontro à ideia de harmonia e
igualdade entre os brancos, negros e seus descendentes.
Dessa forma, o contexto multirracial brasileiro propicia mediações bastan-
te diferenciadas para a constituição de sujeitos e, portanto, para a subjetivi-
dade de brancos e não brancos. A marca dessa diferença e dessa desigual-
dade perpassa toda a socialização de tais indivíduos, na casa, na escola,
na rua, e todos os espaços públicos são marcados pela supervalorização
da branquitude e pela preferência do branco em relação ao não branco
(SCHUMAN, 2012, p. 14).

O branco, além de produzir o racismo, ele também mantém a estrutura


racializada. Nesse sentido, a assimetria do acesso aos direitos sociais básicos sus-
tenta todo o sistema de manutenção de privilégios. Esse mecanismo de produção
de desigualdades sociais e raciais asseguram aos brancos a ocupação de posições
mais altas na hierarquia social, sem que eles se sintam privilegiados por isso.
Portanto, as desigualdades de oportunidades e de direitos da população negra
estão diretamente relacionadas à vantagem e identidade racial do branco, assim
como o mito da democracia racial está diretamente relacionado ao alívio que os
brancos sentem em relação aos negros. Eles, geralmente, isentam-se da culpa pe-
las desigualdades sociais e raciais que atingem a população negra (SCHUMAN,
2012).
Por fim, as discussões sobre as faces e operacionalização do racismo mul-
tidimensional brasileiro é importante para desvelar o racismo antinegros e des-
naturalizar à figura da empregada doméstica que é historicamente imposta às
mulheres negras e periféricas. Nessa senda, convém questionar: por que histori-
camente a maioria das trabalhadoras domésticas brasileiras são mulheres negras
e periféricas? Por que na sua grande maioria os exploradores dessas trabalhadoras

513
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

domésticas são homens e mulheres brancas/os de classe média ou alta? Quais fo-
ram as circunstâncias históricas que compeliram as mulheres negras e periféricas
à função de trabalhadoras domésticas? Qual o papel da educação no processo
de emancipação das trabalhadoras domésticas negras? Eis aqui algumas questões
pertinentes a serem problematizadas no decorrer deste texto.

O CASO MADALENA GORDIANO PROPRIAMENTE DITO E A


EXPLORAÇÃO DE TRABALHADORAS DOMÉSTICAS NEGRAS E
PERIFÉRICAS POR FAMÍLIAS BRANCAS DE CLASSE MÉDIA

De acordo com notícias extraídos de sites como El Pais e UOL do Brasil,


Madalena Gordiano tinha uma irmã gêmea e mais sete irmãos. E ainda com
apenas oito anos de idade, Gordiano bateu à porta de uma professora branca,
pedindo-lhe comida, e a mulher prometeu ajudá-la e “adotá-la”. Sua mãe aceitou
a proposta devido à situação de vulnerabilidade econômica em que se encontra-
vam. O mais curioso é que a professora nunca matriculou Madalena em uma
escola formal (GORTÁZAR, 2021; RABELO, 2020).
Segundo informações retiradas do site El Pais, a rotina de Madalena
Gordiano, assim como é a de muitas mulheres negras e periféricas, era lavar pra-
tos e roupas, passar, limpar pó, cozinhar, varrer a casa, arrumar cama e organizar
a casa da família da professora Maria das Graças Milagres Rigueira, sem receber
sequer salário mínimo, décimo terceiro salário, folga semanal remunerada e go-
zar de férias remuneradas durante cerca de quatro décadas (GORTÁZAR, 2021).
Essa mulher negra e periférica, vítima da escravização moderna, estava
sendo explorada, sem dias de folgas, em pleno século XXI, pela família abastada
de uma professora racialmente branca, dentro de um apartamento em Patos de
Minas, no Estado de Minas Gerais. Conforme relataram os procuradores que
faziam a investigação do caso, a trabalhadora doméstica Madalena foi resgatada
no dia 27 de novembro de 2020, com o aspecto de uma mulher muito envelhecida
e com muita dificuldade para se expressar (GORTÁZAR, 2021).
Conforme noticiado pelo El País e diversos veículos de comunicação bra-
sileiros, o inferno vivido pela trabalhadora Madalena é um exemplo extremo
das heranças negativas deixadas pela escravização negra, que durou mais de
três séculos no país. O Brasil foi o último dos países das Américas a “liber-
tar” formalmente os escravizados negros, que foram trazidos à força da África
para trabalharem como mão de obra barata nas fazendas e casas de famílias
racialmente brancas. As mulheres negras africanas escravizadas eram utiliza-
das como amas de leite e mucamas na casa grande. Nessa direção, devido à
persistência do racismo, o trabalho doméstico continua sendo uma realidade
presente na vida de uma parcela significativa das mulheres negras e periféricas

514
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

brasileiras (GORTÁZAR, 2021).


A narração da história exarada pelo El País aponta que essa referida famí-
lia branca tradicional não só explorou o trabalho doméstico de uma mulher ne-
gra e periférica, como também a usavam como uma fonte de renda. Desse modo,
ainda quando Madalena tinha aproximadamente 20 anos, a família Milagres
Rigueira obrigou-a a casar com um parente da família que tinha 78 anos, propor-
cionando-lhe uma pensão de cerca de R$8.000,00 (oito mil reais). Pensão essa
recebida pela família respeitável na aparência, mas só entregavam migalhas para
trabalhadora Madalena, que herdou a pensão de morte sem nunca ter nem se-
quer convivido maritalmente com o falecido e ex-combatente militar na Segunda
Guerra Mundial (GORTÁZAR, 2021).
De acordo com o UOL e o El País, a pensão que por direito deveria ser da
trabalhadora Madalena Gordiano, era utilizada para pagar a mensalidade do
curso de medicina de uma filha branca da Família. O relato da história da tra-
balhadora Madalena Gordiano é um verdadeiro exemplo daquilo que Kilomba
(2019) classifica de “resgate a cena colonial”, e revela de forma bastante didática
um clássico exemplo do racismo estrutural brasileiro e os arranjos promovidos
pela branquitude para manter intocáveis os seus privilégios econômicos e simbó-
licos. Afinal, a filha branca da família Rigueira podia ter o direito a cursar medi-
cina e, no futuro, tornar-se médica, porém Madalena Gordiano teve sua infância
roubada, e sequer teve o direito de ser matriculada e devidamente alfabetizada
em uma escola pública (GORTÁZAR, 2021; RABELO, 2020).
O caso de Madalena Gordiano explica a real finalidade do racismo à bra-
sileira (TELLES, 2003). O racismo deve ser compreendido como um processo
histórico que tem a ideia de raça como um fator meramente político utilizado
para segregar e justificar a dominação, exploração econômica e humilhação do
grupo racial negro, de outros grupos racializados e historicamente perseguidos
(ALMEIDA, 2018). O racismo é uma ideologia, mas é indubitavelmente uma
prática recorrente e ainda muito naturalizada no Brasil. Vale destacar que, assim
como no episódio sofrido por Gordiano, a mídia expõe frequentemente que no
Brasil afora, há centenas de mulheres negras e periféricas que sofrem racismo e
exploração por parte de famílias racialmente brancas.
No ideário racista, as pessoas negras são vistas como “diferentes” devido
a sua cor de pele e traços fenotípicos como tonalidade da pele, cabelos crespos,
nariz alargado, lábios carnudo, etc. Mas não é só isso. O racismo opera anti-
negros com base na origem social, cultural e/ou pertença religiosa. No Brasil,
por exemplo, é muito mais provável que um negro adepto de religião de matriz
africana sofra mais racismo do que uma pessoa oriunda de outras religiões, ainda
que ambas sejam negras.
Com base no relato de Madalena é explícito perceber que o racismo é uma

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(O rganizadores )

relação de poder, ou seja, é a junção do preconceito e do uso/abuso do poder que


forma o racismo (KILOMBA, 2019). Posto isso, Souza (2021) “define o racismo
como toda forma de amesquinhar, humilhar e desprezar o oprimido, convencen-
do-o de sua própria ‘inferioridade’” (2021, p. 132). O caso de Madalena com-
prova nitidamente essa humilhação, pois o racismo animaliza e não considera a
humanidade de pessoas racialmente negras.
Ainda no que diz respeito a história de Madalena, e como se não bastasse,
ela foi entregue a outro membro da família Rigueira, o veterinário e professor
universitário, Dalton Milagres Rigueira, que a explorava de diversas formas e
também lhe negou o direito de frequentar uma escola formal. Parece que a escola
exerceu um papel importante para a vida do professor e de sua família, menos
para a da trabalhadora doméstica negra.
A história de Madalena revela e expõe explicitamente um caso violento
de operação do racismo estrutural brasileiro e evidencia uma das faces da bran-
quitude brasileira de classe média, que se manifesta com “novas” roupagens e
com resquícios do sistema colonial. Além disso, escancara a naturalização da
exploração do trabalho infantil de crianças negras. Em suma, muitas pessoas
equivocadas ainda acreditam que é melhor colocar crianças negras para traba-
lhar em troca de moradia e comida, que deixá-las morrendo de fome. Esse é um
discurso cruel e racista.
Informações do site El País apontam que a irmã gêmea de Madalena tam-
bém trabalhava como doméstica com outra parte dessa mesma família bran-
ca, porém ao menos recebia um salário mínimo justo. Em resumo, o racismo
vem oprimindo mulheres negras e periféricas mesmo depois do pós-abolição no
Brasil. Isso só confirma que a dita “abolição dos escravizados” foi uma grande
farsa. Tanto que o 13 de maio de 1888 (“Dia da Abolição”) nunca foi comemo-
rado pela comunidade negra brasileira, e sim o dia 20 de novembro, em menção
a morte de Zumbi dos Palmares, em 1695 (GORTÁZAR, 2021).
É um consenso entre diversos estudiosos de que, no período pós-abolição,
o Estado Brasileiro criou políticas de incentivos para atrair a mão de obra de
imigrantes europeus brancos com incentivos e distribuição de terras objetivando
embranquecer a sociedade brasileira. Só que o plano de embranquecimento não
deu certo no Brasil porque os negros resistiram e ainda resistem através dos qui-
lombos, irmandades, coletivos e da força dos movimentos negros.
À vista disso, enquanto os imigrantes brancos receberam vantagens por
parte do Estado Brasileiro, os povos negros foram entregues à própria sorte, sem
qualquer tipo de atenção pública por parte do mesmo Estado Brasileiro. E até
hoje, de certo modo, com algumas exceções, a grande parte dos povos negros
continuam sendo postos em segundo plano pela maioria dos gestores políticos
brasileiros.

516
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Em relação aos brancos, e com raras exceções, os negros brasileiros con-


tinuam recebendo os piores salários, são os principais alvo de morte letal pela
polícia; ocupam altos índices de desempregos, vivem menos, são a maioria dos
encarcerados e a sua grande parcela está à margem da sociedade. Além disso, no
período da pandemia do novo coronavírus (COVID 19), a primeira vítima do
coronavírus foi uma trabalhadora doméstica negra e periférica que trabalhava
desde os 13 anos, no estado do Rio de Janeiro. Os negros foram os mais contami-
nados por não terem o direito de fazer quarentena, e os que mais morreram por
COVID 19 no Brasil.
O episódio de Madalena Gordiano, submetida ao trabalho análogo à
escravidão tomou grandes proporções nas mídias e gerou grande comoção no
país. Em Salvador, aconteceu um caso semelhante em que uma trabalhadora do-
méstica negra do interior da Bahia, pulou do terceiro andar de um apartamento
para fugir das constantes humilhações e violências físicas comedidas pela patroa.
Após a denúncia da empregada, outras ex-empregadas também se posicionam e
denunciaram episódios de violências cometidas pela agressora, a patroa morado-
ra de um bairro de classe média em Salvador.
Madalena Gordiano dormia em um minúsculo “quarto de empregada”,
sem janela, sem ventilação e nenhum conforto. Não tinha televisão, muito menos
telefone celular com internet, e poucas roupas masculinas para vestir. No Brasil,
muitos arquitetos ainda projetam casas e apartamentos para famílias de classe
média e alta com o conhecido “quarto de emprega”, ou “Quarto de Despejo”
– fazendo uma referência à escritora negra Carolina de Jesus – um resquício do
sistema colonial que persiste na sociedade hodierna. O quarto de empregada é
um nítido exemplo do racismo ainda impregnado na sociedade, e ele é projetado,
sobretudo, para mulheres negras e periféricas.
Segundo informação do El País, Gordiano foi finalmente resgatada devido
à denúncia anônima realizada por um vizinho morador do seu prédio. A traba-
lhadora doméstica era totalmente impedida de manter diálogo com os vizinhos,
talvez porque a família temesse que o crime viesse à tona. Nesse sentido, os mo-
radores desconfiaram de que Gordiano estava passando por dificuldades e opres-
sões porque ela colocava bilhetes por baixo das portas dos vizinhos. Mesmo com
dificuldades na escrita, e com letras trêmulas no bilhete, ela solicitava dinheiro
para comprar produtos de higiene pessoal (GORTÁZAR, 2021).
Diante do exposto, o professor universitário Diego Milagres Rigueira e sua
mãe foram acusados de manter Madalena Gordiano em situação de trabalho aná-
logo à escravidão, porém, ao serem questionados, eles explicaram que a trabalha-
dora doméstica “era como se fosse da família”. Esse discurso é muito utilizado
por famílias brancas e de classe média no Brasil, como pretexto para mascarar o
racismo e a exploração de trabalho doméstico de mulheres negras e periféricas.

517
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

O professor Diego Rigueira e sua mãe, também professora, alegaram que


não matricularam Gordiano na escola porque consideravam que não seria bené-
fico para a trabalhadora doméstica. É interessante como a escola não traria be-
nefícios para a trabalhadora negra, mas a pensão forjada pela “família de bem”
Rigueira, servia para custear o curso de medicina da filha branca da família. Esse
discurso revela o egoísmo dessa família e o racismo que se configura na negação
de direitos básicos fundamentais para pessoas racialmente negras.
A matéria sobre o caso veiculada no El País afirma que nos últimos 25 anos
mais de 55.000 (cinquenta e cinco mil) brasileiros foram resgatados de condições
semelhantes à escravidão, dentre esses, 12 trabalhadoras domésticas. A escravi-
zação negra, de certa forma, continua operando no Brasil com outras faces, e
na maioria dos casos, pessoas racialmente brancas são as potenciais agressoras
(GORTÁZAR, 2021).
No entendimento do Ministério Público do Trabalho (MPT), os investiga-
dos Dalton e Valdirene Rigueira devem pagar indenização à Madalena Gordiano
por danos morais e materiais. O acordo firmado previu pagamento de verbas sa-
lariais e rescisórias por 14 anos de trabalho prestado pela trabalhadora doméstica
e com base no salário mínimo mensal de R$ 1.045,00. Dito isso, ficou definido
entre as partes que os 13° salários, 1/3 de férias, aviso prévio remunerado, multa
de FGTS e indenização por trabalho em finais de semana e feriados vão entrar
no acordo. O combinado acordo tinha a finalidade de evitar que os acusados re-
petissem a conduta de submissão de outras trabalhadoras domésticas a condição
similar à escravidão. Ademais, os acusados sofreram sanções criminais por man-
terem durante anos uma trabalhadora doméstica negra e periférica em condições
análogas à escravidão (GORTÁZAR, 2021).
Por fim, o cativeiro de Madalena Gordiano terminou graças a denúncia
anônima de um vizinho que não foi conivente com a situação. Dessa forma,
Gordiano foi encaminhada pela justiça para um abrigo de mulheres no qual ela
passou o natal. Dessa maneira, assim que puder, ela se reunirá com os amigos
dos quais passaram por situações semelhantes à dela.

A RELEVÂNCIA DA LINGUAGEM NO CASO DE MADALENA


GORDIANO E DISCUSSÃO.

A língua/linguagem sempre exerceu um papel crucial para o estabele-


cimento da comunicação entre pessoas e povos na sociedade. No período do
“descobrimento”, a língua foi amplamente utilizada pelos invasores brancos por-
tugueses para exercerem o processo de catequização, dominação linguística e
cultural sobre os povos indígenas brasileiros (NUNES, 1996).
Em nome de uma moral cristã, a língua portuguesa foi utilizada pelos

518
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

missionários portugueses para “instruir” os indígenas, desconsiderando a língua,


a memória, os conhecimentos e as tradições culturais dos povos tradicionais bra-
sileiros. Em suma, a língua foi usada de maneira estratégica e consciente para
promover o processo de colonização e dominação do poder europeu branco so-
bre os povos indígenas no Brasil (MORAES, 2005).
Cabe sublinhar que o contato inicial entre as pessoas e a língua ocorre no
ambiente familiar – em casa. O meio familiar é um ambiente propício para a for-
mação linguística antes mesmo de estabelecermos contato com a escola formal
e nos depararmos com a outra modalidade da língua padrão. É em casa que as
crianças começam a esboçar de forma natural as primeiras palavras na sua língua
materna, mas, por vezes, a escola tenta considerar que a variante da língua que
falamos em casa é errada. A língua ensinada na escola é apenas uma forma pos-
sível de realização dos usos da língua nas práticas sociais e não a forma exclusiva
de usá-la.
Estudos sobre a relação entre a linguagem, raça, classe social, sexualida-
de, gênero etc., têm recebido amplo destaque no campo da sociolinguística va-
riacionista e mais recentemente na Linguística Aplicada (LA) brasileira. Moita
Lopes (2013) aponta que, nas últimas duas décadas, a LA tem tentado elaborar
novos conhecimentos que tangenciam questões relativas à língua/linguagem em
simbiose com raça, racismo, branquitude, estrato social e política em múltiplos
contextos.
O caso da trabalhadora doméstica Gordiano aqui problematizado é im-
portante para se perceber acerca dos usos da língua/linguagem nas práticas so-
ciais e de como isso pode ser libertador para pessoas pertencentes aos grupos his-
toricamente subalternizados, como as mulheres negras e periféricas. No exemplo
de Gordiano, a língua/linguagem escrita, exerceu um papel preponderante para
o seu processo de libertação, pois a situação em que ela vivia só ganhou destaque
nacional após o seu pedido de ajuda feito ao vizinho mediante a escrita de um
bilhete.
Conforme pode ser visto na figura 1, do bilhete abaixo, apesar de ser ne-
gado a Madalena Gordiano o direito de passar pelos bancos da escola na sua
infância e, portanto, pelo processo natural de alfabetização escolar, ela possui
letramentos, o que foi fulcral para que ela escrevesse um bilhete e fosse bem en-
tendida pelo vizinho, o leitor que recebeu o escrito por debaixo da porta de casa.
Mesmo Gordiano não dominando a dita norma padrão da língua portuguesa, ela
se fez entendida, e isso foi o necessário para sua emancipação de uma situação
análoga à escravidão.

519
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(O rganizadores )

Figura 1: Bilhete escrito pela trabalhadora doméstica Madalena Gordiano

Fonte: Rabelo (2020).

Nessa direção, a professora Ana Lúcia Souza (2016) discute concernente


ao conceito de letramentos de reexistência na educação dos negros no Brasil,
como sendo uma categoria epistemológica importante para se compreender so-
bre os processos de letramentos extraescolares pelo quais passam o segmento
racial negro. A autora alude:
[...] letramentos de reexistência implica considerar as práticas de letra-
mentos desenvolvidas em âmbito não escolar, marcadas pelas identidades
sociais dos sujeitos nelas envolvidos, e além disso, considerar os aspectos
que afetam o histórico do letramento da população negra no Brasil e que
influenciam as trajetórias pessoais de usos sociais da linguagem (SILVA,
2016, p.70).

Os letramentos de reexistência elencados por Souza (2016), dialogam


com a história de Gordiano, pois a trabalhadora doméstica negra está inserida
no grupo social daqueles que a autora denomina de “metáfora do funil”, ou
seja, “quanto mais se avança nos anos de estudo, menos negra fica a educação”
(SOUZA, 2016, p. 69). Em outros termos, parte-se do pressuposto de que Souza
chegou a essa conclusão por compreender que o racismo sistêmico brasileiro, o
qual se fundamenta do critério da raça, é historicamente o principal responsável
por segregar os negros do acesso e permanência ao sistema escolar – educação
básica e superior.

520
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

É importante ressaltar que Madalena Gordiano, assim como muitas mu-


lheres negras e periferias, não se tornou trabalhadora doméstica por opção, mas
por imposição social, e por ter seus direitos sociais violados desde a infância. Em
suma, a exploração do trabalho infantil é uma realidade que atinge mais as famí-
lias negras brasileiras, o que lhes causam consequências danosas intergeracionais
e privações de diversos acessos sociais e bens de consumo. O caso de Gordiano é
um típico exemplo do racismo à brasileira que não poupa nem mesmo as crian-
ças negras e periféricas.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, “os ne-
gros – pretos e pardos representam 52% da população nacional e também somos
a maioria que vivem os piores índices sociais, quando se trata de renda média per
capita, níveis de desemprego e níveis de escolarização” (SOUZA, 2016, p. 69).
Esses dados evidenciam as abissais discrepâncias sociais existentes entre negros
e não negros no Brasil e explicam o motivo pelo qual muitas mulheres negras
se submetem a trabalhos precarizados. Contudo, as trabalhadoras domésticas
negras sempre resistiram e lutam constantemente por melhores condições de tra-
balho e por diretos de reconhecimento.
Ramos (2018) explica em sua dissertação, “Como se fosse da família”: o tra-
balho doméstico na assembleia nacional constituinte de 1987/1988, que o trabalho do-
méstico no país é um dos resquícios do processo da escravização negra brasileira,
ou seja, é um trabalho que muitos sujeitos brancos, sobretudo (mulheres brancas)
se desonera de fazer porque é um trabalho ainda explorado, estigmatizado, bra-
çal e mal remunerado.
Ramos (2018) expõe que o trabalho doméstico tem cor, classe, sexo, gêne-
ro e endereço certo no Brasil. O trabalho doméstico é historicamente realizado
por mulheres negras, periféricas, e aquelas que não tiveram acesso ao direito
de escolarização em tempo normal. Compete destacar que, em muitos casos, o
trabalho doméstico é a única saída de subsistência para as mulheres negras. Isso
ocorre porque há pouquíssimas ações de políticas públicas que promovam a in-
serção dessas mulheres em outros postos no mercado de trabalho.
Pessoas que têm limitação no uso da língua materna, sobretudo da língua
escrita na norma padrão, dificilmente conseguem lograr sucesso no mercado de
trabalho. Nesse sentido, a limitação de alguns sujeitos no que tange à limitação
do uso da língua pode fazer com que eles sejam facilmente influenciados e con-
trolados por quem domina as diferentes variedades de uso da língua.
No exemplo em tela, os patrões brancos tiveram acessos aos processos de
escolarização e letramento no período adequado, e isso contribuiu para que eles
ascendessem socialmente. Portanto, com exceções, as pessoas que possuem mais
acessos aos altos níveis de escolarização têm mais possibilidades de conquista-
rem melhores empregos e altos salários nas sociedades capitalistas. Entretanto,

521
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

as oportunidades de acesso não são iguais para todos, o que contribui ativamente
para o aumento das desigualdades sociais e a dominação de um grupo sociorra-
cial sobre o outro.
Portanto, é urgente que os movimentos sociais negros juntamente com
a sociedade civil reivindiquem mais acesso à educação pública, gratuita e de
qualidade à população negra e indígena. Ademais, que cobrem aos governantes
a ampliação de políticas de ações afirmativas – dentre elas, as cotas –, que opor-
tunizem o acesso e a permanência dos negros, negras e indígenas no sistema es-
colar nacional. Posto isso, por via da educação, as populações negras, sobretudo
as mulheres negras e periféricas poderão galgar melhores condições de vida e
dignidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Objetivando tentar responder às perguntas suscitadas na introdução do ar-


tigo, vale ressaltar que a maioria das mulheres negras e periféricas desenvolvem a
função de trabalhadoras domésticas, primeiramente porque o racismo brasileiro
é um sistema político e social de negação de direitos, e que hierarquiza humani-
dades com base no critério da raça. Segundo, porque o racismo vem conferindo
vantagens econômicas e simbólicas a pessoas racialmente brancas em detrimento
das negras e indígenas. Em razão disso, pessoas brancas, com algumas exceções,
conseguem ter mais acessos à educação de boa qualidade e, consequentemente,
à ocupação de melhores postos de trabalho.
Em terceiro, uma série de processos sócio-históricos como, por exemplo,
o pós-abolição que não garantiu efetivamente os direitos sociais dos negros e
os deixou em situação de vulnerabilidade social, sem acesso à educação, sem
direito à propriedade privada, saúde pública etc. Nesse sentido, de certa forma,
o passado da sociedade brasileira se confunde com o presente, e ainda há poucas
políticas públicas de ações afirmativas efetivas que busquem reverter definitiva-
mente esse cenário social.
Portanto, o acesso à educação ainda na infância é muito importante para
a formação social e crítica de todos os cidadãos. Além disso, a educação oportu-
niza que as pessoas saibam se comunicar em diferentes contextos e situações. O
acesso ao conhecimento e o pleno domínio de um língua materna/estrangeira na
modalidade escrita e oral é fundamental para que as pessoas possam ter maiores
condições, destaque social e, sobretudo, alcançar melhores colocações no merca-
do de trabalho.
Por fim, a questão a se colocar é: por que mesmo após mais de 130 anos
da abolição da escravatura as mulheres negras e periféricas ainda continuam sen-
do a maioria das trabalhadoras domésticas no Brasil? Talvez porque o racismo

522
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

antinegros e a exploração de trabalhadoras negras e periféricas sejam lucrati-


vos para muitas famílias racialmente brancas e descompromissadas com a luta
por equidade social no País. Todavia, os movimentos negros seguem denun-
ciando e lutando para que a democracia brasileira se estenda a todos e todas
indiscriminadamente.

REFERÊNCIAS
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Letramento, 2018.
CARDOSO, C. Lourenço. Branquitude acrítica e crítica: supremacia racial e o
branco antirracista. In: Revista Latinoamericana de cienciassociales, niñez y
juventude. V. 8, 2010. p. 607-630.
GORTÁZAR, N. Galarraga. Caso de Madalena, escrava desde os oito anos,
expõe legado vivo da escravidão no Brasil: Exemplo extremo do pacto social
racista que perdura no país no século XXI, Madalena Gordiano foi empregada
doméstica de uma família abastada durante quatro décadas sem remuneração
ou férias. São Paulo, 14 jan. 2021. Disponível em: https://brasil.elpais.com/
internacional/2021-01-14/madalena-escrava-desde-os-oito-anos-expoe-caso-ex-
tremo-de-racismo-no-brasil-do-seculo-xxi.html. Acesso em: 20 fev. 2022.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano.
Tradução de Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogá, 2019.
MOITA LOPES, Luiz Paulo. Gênero, sexualidade, raça em contextos de letra-
mentos escolares. In: MOITA LOPES, L.P. (ORG). Linguística Aplicada na
modernidade recente. São Paulo: Parábola. 2013. p. 227- 247.
MOITA LOPES, Luiz Paulo. Por uma Linguística Aplicada Indisciplinar. São
Paulo: Parábola Editorial, 2006.
NUNES, J. H. “Constituição do cidadão brasileiro: discursividade da moral em
relatos de viajantes e missionários”. In: GUIMARÃES, E.; ORLANDI, E. Lín-
gua e cidadania: o português do Brasil. Campinas: Pontes. 1996. p.19-30.
RABELO, Thiago (ed.). Como vivia a mulher que passou 38 anos sob condi-
ção análoga à escravidão. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/
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Acesso em: 26 fev. 2022.
RAMOS, Gabriela Batista Pires. “Como se Fosse da Família”: O trabalho
doméstico na Assembleia Nacional constituinte de 1987/1988/. 2018, p. 170f.
Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Direito.
Salvador.
RAMOS, Alberto Guerreiro. A introdução crítica a sociologia brasileira. Rio
de Janeiro: Andes, 1957.
SCHUCMAN, L. V. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”:

523
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(O rganizadores )

Raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana. 2012. 160 F.


Tese (Doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia). São Paulo:
Universidade de São Paulo, Instituto de Psicologia.
SOUZA, Ana Lúcia Silva. Linguagem e Letramentos de Reexistência: exercí-
cios para reeducação das relações raciais na escola. In: Linguagem em foco:
Revista do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da UECE, v.
8, n. 2, p. 67-76, 2016. Disponível em:<http://www.uece.br/linguagememfo-
co/index.php/edicao-atual/43577-2016. Acesso em: 20 de Fev. 2022.
SOUZA, Jessé. Como o racismo criou o Brasil. Rio de Janeiro: Estação Bra-
sil, 2021.
TELLES, Edward. E. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica.
Tradução de Nadjeda Rodrigues Olsen. Rio de Janeiro: Relume-Dumará/Fun-
dação Ford, 2003.

524
ERÊ.JPG – INFÂNCIA, NEGRITUDE E
REPRESENTAÇÃO: FOTOGRAFIAS SOBRE
CRIANÇAS NEGRAS NO RECÔNCAVO BAIANO
Fernanda de Souza Santos1

O ponto de partida desta reflexão é fazer uma apresentação do projeto


“Erê.jpg”, fruto de uma discussão proposta pelo grupo de pesquisa Nyemba2 em
2015, coordenado nesse período pela professora Cristiane Souza Santos pela
Universidade da Integração da Lusofonia Afro-Brasileira - (UNILAB). Recordo
que a professora Cristiane estava apresentando um acervo fotográfico compos-
to por imagens relativas à trajetórias de negros(as) na América Latina entre as
décadas de 1950-1960 em paralelo com imagens de negros em contextos africa-
nos, cujos objetivo era analisar as relações histórico-culturais a partir do jogo de
imagem em justaposição3 buscando mostrar os valores históricos e a contribuição
positiva do negro em conexão. Neste mesmo encontro foram apresentados o fo-
tógrafo e arte-educador, Lázaro Roberto, além dos fotógrafos e etnólogos Pierre
Verger e Sebastião Ribeiro Salgado, cujas obras me tocaram profundamente, ge-
rando-me uma descentralidade e inflexão. Senti que por muitos anos meus olhos
estavam vendados sob uma ótica que nos obrigam a negar, recusar e anular a
presença do sujeito negro como possibilidade atingível de admiração.
Recorri a algumas memórias, fotografias e ensaios, identificando que ig-
noravam pessoas negras no enquadramento visual e estético das imagens realiza-
das. Quando avistava algum sujeito negro compondo o enquadramento visual,
realizava hard cut.4 Reconheci a partir desse processo que o racismo traz consigo

1 Fernanda de Souza Santos. Bacharela em Humanidades (2016) pela UNILAB - São Fran-
cisco do Conde - Ba atualmente graduanda do curso de Licenciatura em História pela
UNILAB, São Francisco do Conde - Ba e Mestranda em História Social pela UFBA, cujas
pesquisas são na área de Teorias Pós-Coloniais e decoloniais no campo de estudo sobre
cultura, identidade e representação e relações raciais no Brasil. Atualmente desenvolve sua
pesquisa de Mestrado pelo PPGH-UFBA sobre a produção e conhecimento de autoria
indígena no contexto da Lei 11.645\08. E-mail: [email protected]
2 O grupo Nyemba realizava pesquisas, estudos e reflexões sobre diferentes processos e expe-
riências sociais vivenciadas em múltiplos contextos no Brasil e no continente africano que
contribuem para apontar proximidades e distanciamentos entre esses diferentes universos,
bem como, que contribuem para construir novas proximidades e dissolver distanciamentos.
3 Conjuntos de imagens que exprime uma mesma ideia em planos separados
4 Hard cut (também chamado de Corte Direto, Corte Seco, Corte Simples, ou ainda Corte
Propriamente Dito).
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uma condição: a obliteração da sua autoimagem, obriga-lhe de fazê-lo inexistir,


desaparecer enquanto representação, sob destruição de sua própria humanidade.
O racismo e a violência racista, me impossibilitaram por muito tempo de produ-
zir um olhar e pensamento positivo ou uma conduta natural de aceitação profun-
da: a identidade, o corpo, o desejo de ser ou torna-se negro. Como nos aponta a
psicanalista Neusa Souza
Saber ser negra é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identi-
dade, confundida em suas perspectivas submetidas a exigências, compelida
a expectativas alienadas. Mas é também, e sobretudo, a experiência de
comprometer-se a resgatar sua história e recria-se em suas potencialida-
des (SOUZA, 1983, p. 18, Grifo meu).

Uns dos caminhos no resgate da minha autoestima começou pelo interes-


se em entender a negritude e os seus desdobramentos em diálogo e em contra-
posição ao valores eurocêntricos, onde colocava minha identidade em questão,
subordinando-a ao colonialismo e colonialidade em poder5, buscando traçar um
discurso e práticas concretas de afirmação acerca de mim e dos valores ances-
trais, com a tomada de consciência de ser negro.
O projeto “erê.jpg” é fruto destas inquietações e transcendências. O acer-
vo é composto por quarenta fotografias majoritariamente de crianças negras no
contexto do Recôncavo Baiano, exceto três imagens que foram realizadas no ter-
ritório quilombola João Rodrigues Reis6, em Ilhéus - Sul da Bahia. Quando
iniciei o projeto, o objetivo era fotografar as experiências de crianças negras, in-
vestigando através da fotografia de que modo elas interagiam entre si, com sua
comunidade e como elas se enxergavam no mundo. O intuito era apresentar o
modo como a experiência da negritude se apresenta a partir das imagens e expe-
riências infantis, dialogando tais elementos com a ancestralidade, a memória e
a relação comunitária negra no campo do pertencimento cultural e identitário,
buscando subverter os olhares e dispositivos negativos de representação das co-
munidades negras residentes de bairros periféricos a partir das narrativas apre-
sentadas nesses contextos com as fotografias dos “erês” (crianças em yorubá).

5 Aníbal Quijano descreveu sobre a “colonialidade do poder”, o autor buscou retratar his-
toricamente o que isso significou nas relações de superioridade\inferioridade de uma raça
em detrimento da outra. O discurso baseado na diferença, classificou, reduziu e codificou
as identidades sociais individuais nos demais contextos colonizados.
6 As imagens fazem parte do acervo da Cooperativa dos Produtores Orgânicos do Sul da
Bahia (Cabruca).
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QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Figura 1: São Francisco do Conde, Bahia, Brasil. Fonte: A autora, 2015.

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Figuras 2 e 3: Santo Amaro, Bahia, Brasil. Fonte: A autora, 2016.

Nesse sentido, a fotografia, como as representadas nas figuras 1, 2, 3 e 4,


tornou-se instrumento de comunicação e interação entre elas, sempre que termi-
nava de fotografar eu apresentava a imagem com a seguinte pergunta: “você se vê
como uma criança bonita?” Quando eu não obtinha resposta, a pergunta era re-
formulada: “você consegue se vê no seu amigo?”, “o que vocês têm incomum?”.
As respostas apresentadas na fala das crianças eram a partir da negação e auto
ódio, mas não de forma elaborada. Existia uma subjetividade, por meio da brin-
cadeira e da zombaria, o jogo de anulação - o racismo internalizado revelava a
baixa autoestima e a separação diante de seu semelhante. Em Olhares negros: raça
e representação, Bell Hooks (1992) relatou que pessoas negras foram ensinadas a
se veem como se faltasse algo ou fossem inferiores, que os impactos do racismo
afetam coletivamente a maneira de olharmos uns aos outros.
No prefácio “Da cor ao corpo: a violência do racismo”, escrito espe-
cialmente para o livro “Torna-se negro: as vicissitudes da identidade do negro

528
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

brasileiro em ascensão social” de Neusa Santos Souza (1983), o autor Jurandir


Freire Costa7 destacou que:
A violência racista subtrai do sujeito a possibilidade de explorar e extrair do
pensamento todo o infinito potencial de criatividade, beleza e prazer que
ele é capaz de produzir. O pensamento do sujeito negro é um pensamento
que se auto-restrige. Que delimita fronteiras mesquinhas à sua área de ex-
pansão e abrangência, em virtude do bloqueio imposto pela dor de refletir
sobre a própria identidade. (SOUZA, 1983, p. 10).

Em 2017 realizei um levantamento de desenhos animados que incluía per-


sonagens negros para criança dos 5 aos 12 anos. A pesquisa era extensão do
projeto ere.jpg, para criação de um cinema itinerante para crianças nesta faixa
etária. Rememorei alguns desenhos que fizeram parte da minha geração (1990-
2000) e que incluíssem personagens negros. A pesquisa em questão me fez identi-
ficar estereótipos de subalternidades e desumanização em boa parte dos enredos.
Os personagens negros carregavam em suas narrativas, experiências traumáticas
de representação, animalização, não-humanidade, não-pertencimento e princi-
palmente de sofrimento. Um exemplo, em Doug Funnie (1991), encontramos a
presença da personagem Paty Maionese. A personagem passa a maior parte da
narrativa como se não fosse auto suficiente na presença do personagem Doug,
um adolescente branco, sonhador, e admirado por todos. O status quo da bran-
quitude que, quando não sabe lidar com o mundo real composto por divergências
e diferenças, fica preso na sua própria fantasia tentando mudar tudo a seu favor à
partir de crônicas que escreve em seu diário.
Doug é apaixonado por Paty Maionese, à qual vive uma dicotomia, ao
se deparar com as complexidades de ter um relacionamento interracial. Doug
idealiza uma relação com a Patty, e a personagem está sempre à sua disposição,
apática aos problemas que ambos enfrentariam juntos, submissa a todo instante
à relação. Ao retornar à realidade, Doug nunca consegue verbalizar o sentimento
por ela, e sua relação com Paty Maionese é construída pelo distanciamento em
relação à representação de si ao sujeito amado. Paty Maionese, não compreende
por que o Doug haja “estranho” em sua presença, gerando uma crise de iden-
tidade. O racismo cria fronteiras, desigualdades, diferenças, desenraizamento,
discriminação e estrutura uma imagem distorcida alienadora do sujeito negro,
através de discursos perversamente construídos acerca da sua própria imagem.
Nesse sentido, propor um diálogo com narrativas de crianças negras por uma
ordem de representação e visibilidade positiva, dialogando com território, corpo-
reidade, ancestralidade e identidade negra, é confrontar experiências traumáticas
coloniais, que ao longo da história definiram corpos e experiências de negros em

7 COSTA, Jurandir Freire. Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.
(Texto inicialmente publicado como prefácio ao livro “Tornar-se negro”, de Neusa Souza.
529
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

imagens construídas a partir da desigualdade e da diferença, expressa através do


feio, do ruim, do sujo e do exótico. Entretanto, se faz necessário narrativas em
oposição a este modelo, a partir de mediações para estimular o surgimento de ou-
tros olhares, e representações, seja de forma individual ou coletiva a favor de uma
feição real, fundadas em interesses comuns e transformadores. É preciso romper
com o espelho narcísico desenhado pelo Ocidente, que ao longo da história de-
turpou nossas imagens para sobrepor seu eu, constituído pelo ego individual da
hegemonia europeia ou ocidental.
Por isso, no empenho político de uma prática de ensino decolonial, se faz
necessário um pensar nagô: dessa forma torna-se possível ir ao encontro à nos-
sa própria imagem, assim como Oxum8, que ao carregar o abebé (espelho) na
mão. Desperta a consciência de refletirmos nossa autoimagem, fazendo possuir
consciência identitária e ancestral, em contrapartida do espelho ocidental que
construiu nossa imagem com narrativas de ódio, negação e depreciação. Se olhar
perante ao abebé de Oxum é encarar nossa real forma a favor de uma negritude
sem os filtros da lógica narcisista universalizante, que torna possíveis os encon-
tros, encantos e cuidados, ao mesmo tempo que possibilita enfrentar e transgredir
fronteiras de opressão, dominação e controle (DIAS, 2020). As fotografias dos
erês, são reflexões de uma consciência justa e totalizante na afirmação positiva
das imagens de negros e negras na sociedade brasileira.

CONTRA NARRATIVAS VISUAIS NO ENSINO DA HISTÓRIA,


PERCEPÇÕES E DESLOCAMENTOS

O estudo sobre a fotografia vem tomando forma significativas no ensi-


no da história, possibilitando discussões e perspectivas do uso da imagem como
fonte de ensino-aprendizagem. Nesse sentido, a fotografia torna-se documento
reflexivo de análise, estudo e produção de conhecimento para o historiador. Essa
concepção da fotografia como documento histórico, ou ainda a ampliação de
outros documentos como fonte de escrita histórica, surge nas primeiras décadas
do século XX na chamada Nova História.9

8 Oxum é uma divindade do rio de mesmo nome que corre na Nigéria, em Ijexá e Ijebu.
Oxum é chamada de Íyálóòde (Yalodê), título conferido à pessoa que ocupa o lugar mais
importante entre todas as mulheres da cidade. Além disso, ela é rainha de todos os rios e
exerce seu poder sobre a água doce, sem a qual a vida na terra seria impossível (VERGER,
2002, p. 174).
9 O movimento historiográfico denominado “Nova História” (Nouvelle Histoire), surgiu em
meados do século XX. O termo abrange a tentativa de explicar as formas que a história es-
tava sendo historicizadas, narrada, explicitada no campo de análise e estudo, em contrapar-
tida a estrutura tradicional que centrava o estudo da história somente com fontes escritas.
A nova história vai criar métodos e alternativas para novas descobertas para desenvolver
narrativas plurais dos acontecimentos históricos, políticos, culturais e sociais. Com usos de
diversas fontes para escrita e percepções históricas. A fotografia é um exemplo disso, ela
530
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

No entanto, o que não se discute na realidade é que a fotografia tornou-se


ferramenta científica na segunda metade do século XIX e início do século XX,
nos estudos antropológicos, científicos e literários, serviu como elemento cons-
trutivo na materialização da subalternidade de sujeitos racializados. Ao longo de
dois séculos foram disseminados retratos baseados na diferença, servindo como
dispositivos de representação de um grupo dominante sobre a aparência de su-
jeitos não hegemônicos. A fotografia, desse modo, criou um tipo racial10: “índios”,
“negros” e “mestiços” como sistema de representação, cada grupo representado por
meio do olhar eurocentrado adquiriu uma apresentação subjetiva no imaginário
social global, demarcado pela violência colonial, cumpriu um papel significativo
na produção de documentos coloniais, interpelando a formação do ser, do saber
dos grupos categorizados.
A fotografia vai ganhando outras formas e significados conforme o tempo
e espaço histórico. No século XX com as inúmeras transformações sociais no
campo da dinâmica de consumo e modernização, por razões dos avanços tecno-
lógicos, a fotografia no período colonial e anos iniciais do pós-colonialismo, era
instrumento significativo ao olhar do colonizador, cuja tecnologia empregada
corroborava com a deturpação e obliteração da imagem de pessoas não brancas.
A fabricação da película de impressão fotográfica, passou a calibrar uma colori-
metria pautada apenas em sujeitos brancos, não se interessando pela diversidade
e tons de pele de outros sujeitos que foram classificados racialmente. A socióloga
e fotógrafa Lorna Roth (2016), relata que nas décadas de 1940 a 1970:
A fotografia era incapaz de captar as nuances. Sem se dar conta de possí-
veis falhas na tecnologia, os fotografados eram levados a crer que o proble-
ma estava no seu tom de pele. Os resultados impactaram negativamente
durante décadas a autoestima das pessoas e a relação com sua autoimagem
(ROTH, 2016).

Já para o pesquisador André Bueno:


A história da fotografia é o resultado de pesquisas científicas e experimen-
tais realizadas por várias pessoas, a partir de estudos de processos da luz,
fenômenos óticos e químicos. O desejo de fixar uma imagem atrelado ao

serve como fonte de análise, pois é um documento que se aproxima na apresentação das
realidades para narrar um acontecimento. Os pais fundadores desse conceito são os histo-
riadores Lucien Febvre (1870-1956) e Marc Bloch (1886-1944).
BURKE, Peter. Abertura: a nova história, seu passado e seu futuro. In: ______. A escrita
da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. p. 7 - 37. Disponível em: https://
etnohistoria.fflch.usp.br/sites/etnohistoria.fflch.usp.br/files/Burke_Nova_Historia.pdf.
Acesso em fev. 2022.
10 Segunda a pesquisadora Maria Feldheus, o “tipo racial, portanto, é uma imagem abstra-
ta que se materializa numa visualidade: a fotografia de tipo racial. Esta, por sua vez, con-
tribui para a naturalização do uso da violência contra os corpos racializados, sendo sua
própria produção um ato de agressão. Disponível em: https://livrosdefotografia.org/arti-
gos/24169/fotografia-tipos-raciais-e-antropologia. Acesso em fev. de 2022.
531
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

conhecimento sobre a sensibilidade química é o que estimulou a existên-


cia da fotografia (BUENO, 2017, p. 01, grifo meu).

A legitimidade das percepções acima traça dois caminhos de conhecimen-


tos necessários: primeiro, de compreender a exclusão de sujeitos de cor na indús-
tria fotográfica com desdobramento do século e segundo, a existência da imagem
como resultado de experiências e estudos científicos. O que me interessa aqui
não é adentrar sobre história da fotografia, mas traçar um diálogo de entendi-
mento sobre como a ciência ou qualquer invenção ligada a ela, sempre colocou
em juízo os corpos negros, sobretudo fundamentalizando inúmeras ideias racis-
tas ou pensamento de aniquilamento de sujeitos negros, seja de forma material
e imaterial de sua existência. O jogo da matriz eurocêntrica caminha em sentido
duplo: classificação e deformidades, pois, o que não se faz refletir no que lhe con-
cerne, aproxima, une, é codificado, degenerado e violentado. Dessa forma, “a
perspectiva eurocêntrica [...] opera como um espelho que distorce o que reflete”
(QUIJANO, 2005, p. 129). Logo, a invenção ficcionalizada do Outro, molda-se
para legitimação do “eu” “ideal”, que não passa de uma construção com base
na dinâmica de relações de dominação colonial. Que ao longo da história de sua
existência nula as diversidades e universalidades dos sujeitos de cor.
Nesse viés podemos considerar a fotografia como imagem/documento
que materializa visões de mundo, estabelecendo linguagens cognitivas no cam-
po social, político, cultural e histórico, como se observa na figura 4. Seguindo
essa reflexão a respeito da fotografia, evidenciando-a tanto como fonte quanto
como objeto, proponho uma discussão a partir do estudo de imagem sobre como
é possível um diálogo sobre representação e práticas de saberes decoloniais do
ensino da história. Tendo em vista a discussão acima, busco a partir de uma
prática de ensino decolonial, pensar a fotografia como ferramenta de libertação
para construir pontes possíveis de diálogo, relações e proximidades para e com
sujeitos negros/a e interessados/as no engajamento de uma pratica antirracista
e decolonial na história.

Figura 4: São Francisco do Conde, Bahia, Brasil. Fonte: A autora, 2017.

532
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

OKUTÁ DE OURO - ME VEJO, LOGO ME LIBERTO:

Uma vez tentei fotografar o espírito (erê) no corpo da matéria (sujeito) no


ritual que acontecia no Terreiro de nação Ketu, localizado na cidade de São
Francisco do Conde - Bahia. Quando de repente fui intervida pelos erês
(Pedra, Pérola, Machadinho, Pena, Raio de Sol e Cobrinha), espíritos co-
nhecido como mensageiros do Orixá. Ibeji ou erê - da família yorubá- são
espíritos de crianças que têm sua vida interrompida por circunstância de
alguma calamidade no aiye (terra). Eles disseram que não se arriscariam a
deixar serem fotografados. Desliguei a câmera e sentei próximo a eles per-
guntando por quê. Eles, respondendo de modo lúdico, típico das crianças,
diziam ter medo de ficarem presos no “olho mágico”, de “desaparecer”, ou
de virarem bichos, que uma vez presos jamais seriam capazes de libertar-se.

O diálogo acima me fez refletir como distribuímos imagens acerca de nós


e dos outros, há muitas questões que perpassam a raça, a identidade e o jogo de
representação, no ponto de vista estético, cultural e social. Bell Hooks (1992, p.
93) nos lembra que há “muitas questões que continuam confrontando como ne-
gros - baixa autoestima, intensificação do nilismo e do desespero, raiva e violên-
cias reprimidas que destroem nosso bem-estar físico e psicológico”. Contudo, a
autora nos chama atenção para lidar com esses imaginários e violências geradas
pela opressão racista, a partir de uma consciência crítica e uma educação colo-
cando a teoria como prática libertadora, para uma possibilidade de cura, auto
recuperação e libertação coletiva.
Seguindo essa reflexão usar a fotografia como ferramenta socioeducativa,
a qual transita entre o material e imaterial, é uma possibilidade para construção
de outros imaginários na formação de sujeitos acerca de si e do outro, o processo
aqui é tornar a imagem como processo de libertação do olhar racista. O pres-
suposto é de uma mudança tanto epistemológica quanto de projeto de socieda-
de, como evidenciam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
e Africana, instituídas pelo Parecer CNE/CP nº 03, de 2004. Possibilitar uma
discussão a respeito das diferenças e diversidades precisam ser aplicadas a novas
cosmovisões do mundo, e de nós mesmo nos indagando: “a quem pertence a fo-
tografia” e “quem tem direito sobre ela” (RIBEIRO, 2021). Nesse sentido, como
tal questionamento nos encontra, confronta e afeta?
Segundo Barreiro, Carvalho e Furlan (2018), o exercício de transformação
no âmbito escolar precisa ser praticado a partir de dois conceitos de vertente filo-
sófica - afeto e afecção11- para construção de potencialidades no campo do ensino
e aprendizagem, dispondo a arte como ferramenta educacional, qual dialogue

11 “A afecção representa um estado momentâneo do corpo, ao passo que o afeto é a pas-


sagem de um estado a outro, é uma transição (transitio).”. (BARREIRO; CARVALHO;
FURLAN, 2018, p. 520).
533
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

nos campos de formação educativo do ser e do saber de cada sujeito. Conforme


os autores, a experiência estética desencadeada pelo uso da arte é uma forma de
aumentar essa potência afetiva e transformadora. Nesta perspectiva, a fotografia
torna-se instrumento de linguagem para novos ensinamentos e cosmovisão de
mundo, abrindo sentidos no campo cognitivo, a partir de uma afirmação de uma
negritude positiva.
No projeto ere.jpg, as fotografias representam o rompimento das ausên-
cias, a favor de uma pratica pedagógica de ensino não hegemônica que descoloni-
za metodologias, do mesmo modo como foi realizado pela professora Zelinda de
Barros ao fundar um Calendário Negro em 201512, assim como Luiz Rufino no
seu livro Exu: pedagogia das encruzilhadas (RODRIGUES JUNIOR, 2017)13.Ainda
pensando uma prática arte-educativa como lugar de cura e afeto, podemos citar
Sandra Petit (2015), que forma a partir do corpo, mente e espírito novas formas
de romper com as mentalidades e padrões expostos no âmbito de ensinamento
escolar. “Compreendendo que os mecanismos institucionais e educacionais dire-
cionam os olhares de profissionais da educação apenas para as imagens progra-
madas para serem aceitas e reconhecidas’’ (RIBEIRO, 2021).
Pensar novas ferramentas para o ensino curricular de história é se compro-
meter com a promoção de uma educação mais justa e igualitária que atenda os
anseios historicamente colocados pelos grupos subalternizados, é trilhar cami-
nhos que criem diálogos diretos na busca de uma educação antirracista que pro-
duza e faça circular novas ideias e façam partícipes da história aqueles e aquelas
que efetivamente a contaram e cantaram para as gerações seguintes. É compro-
meter-me também com a formação docente a partir de novas linguagens e novas
epistemologias para o ensino de história ou Epistemologias do Sul, para falarmos
com Boaventura Santos, para quem as Epistemologias do Sul são um conjunto
de práticas cognitivas e de critérios de validação do conhecimento a partir das
experiências dos grupos sociais que têm sofrido sistematicamente as injustiças
perpetradas pelo colonialismo. Ele explica que esse Sul não é o geográfico, mas o
Sul sociológico, das marcas coloniais, das injustiças e opressões em que o Sul foi
impedido de nomear a si mesmo e as suas experiências.
A partir da decolonialidade, precisaremos pensar a partir das linguagens -
incluindo as artísticas, como aqui apresentado - e das categorias de pensamento
tornadas ausentes dos fundamentos dos pensamentos ocidentais, em vistas de
propor alternativas para a construção de novos olhares e percepções acerca dos

12 O Calendário Negro hmenageia personalidades importantes para a cultura negra no Brasil


e no mundo. Disponivel em: < https://www.facebook.com/calendarionegro>
13 Em “Exu: pedagogia das encruzilhadas”, Rufino torna Exu sujeito de linguagem, que
adentrou as escolas rompendo com os parâmetros coloniais de educação a favor de um
ensino transgressor.
534
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

corpos, identidades, memorias e fazeres negros em contingencia local, nacional


e mundial em diáspora. Ere.jpg é um lugar de observação para infâncias e a
possibilidade de construção de outros lugares de reconhecimento para pesquisa
que orientará outros passos e caminhos possíveis os que relacionam ensino da
História e a historiografia com a fotografia.

REFERÊNCIAS
BARREIRO. Mateus Freitas, CARVALHO. Aloso Bezerra, FURLAN. Marta
Regina. A arte e o afeto na inclusão escolar: potências e o pensamento não re-
presentativo. In: Revista Childhood e Philosophy. Rio de Janeiro, Ago. 2018.
Disponível em: https://philpapers.org/rec/BARAAE-6. Acesso em: 05 mar.
2022.
BUENO, André. A história da fotografia e reflexões para um olhar em seu
tempo. Publicado em: Abr. 2017. Disponível em: http://pontosdevista.org/
Content/Upl/Arquivo/cbead0db-2b1e-4d9f-a6f8-523739d4352a.pd. Acesso
em: 05 mar. 2022.
DIAS, Luciana de Oliveira. Reflexos no Abebé de Oxum: por uma narrativa
mítica insubmissa e uma pedagogia transgressora. In: Revista Articulando e
construindo saberes. Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, Goi-
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PETIT, Sandra Haydée. Pretagogia: Pertencimento, Corpo-Dança Afroances-
tral e Tradição Oral Contribuições do Legado Africano para a Implementação
da Lei Nº 10.639/03. Fortaleza: EdUECE, 2015.
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Plano Nacional das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
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Africana, Brasília: SECAD; SEPPIR, junho, 2009. Ipea. Retratos da desigual-
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RIBEIRO, Luciana. As minhas fotografias. Revista Zum. Publicado em: 26 de
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RODRIGUES JUNIOR, Luiz Rufino. Exu e a Pedagogia das Encruzilhadas.
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535
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

ROTH, Lorna. Olhando para Shirley, a norma definitiva: equilíbrio de cores,


tecnologias de imagem e equidade cognitiva. Disponível em: https://www.ne-
xojornal.com.br/expresso/2016/04/08/Como-a-ind%C3%BAstria-da-fotogra-
fia-determinou-que-o-%E2%80%98normal%E2%80%99-%C3%A9-a-pele-bran-
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SOUZA, N. S. Tornar-se negro: As vicissitudes da identidade do negro brasi-
leiro em ascensão social. Rio de Janeiro, RJ: Graal, 1983.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás. Salvador: Corrupio, 2002.

536
INJUSTIÇA HÍDRICA E VULNERABILIDADE SOCIAL:
A PANDEMIA DA COVID-19 NO ÂMBITO DAS
COMUNIDADES MAIS VULNERÁVEIS -
A DIGNIDADE EM VERTIGEM1
Welington Cipriano da Silva2
Anysia Carla Lamão Pessanha3
Tauã Lima Verdan Rangel4

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Falar sobre o ambiente natural é falar sobre o mundo social, o debate am-
biental é necessariamente um debate político, os conflitos ambientais refletem
crises sociais e econômicas, pois não são apenas consequência da chamada natu-
reza descontrolada. Ao contrário, a natureza em geral e os recursos naturais em
particular são desigualmente apropriados, controlados e explorados por diversos
grupos e atores sociais. Da mesma forma, os riscos ambientais não são distribuí-
dos uniformemente ou são compartilhados de forma justa por todos os membros
da população, a poluição não é um problema democrático e a escassez de água é
um problema entre classes.
As crises ambientais não podem ser analisadas separadamente e

1 Capítulo de livro vinculado ao Projeto de Iniciação Científica “Desenvolvimento econômi-


co, injustiça ambiental e marginalização social da população invisibilizada no município de
Bom Jesus do Itabapoana”.
2 Graduando do Curso de Direito da Faculdade Metropolitana São Carlos – FAMESC.
E-mail: [email protected].
3 Mestranda vinculada ao Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Sociologia Polí-
tica da Universidade Estadual do Norte Fluminense. Especialista Lato Sensu em Direito
Ambiental pela Universidade Cândido Mendes (UCAM)/Instituto Prominas (2017-2019);
Bacharela em Direito pela Faculdade Metropolitana São Carlos campus Bom Jesus do
Itabapoana-RJ, integrante do grupo de pesquisa “Faces e Interfaces do Direito: Sociedade,
Cultura e Interdisciplinaridade no Direito”. E-mail: [email protected].
4 Professor orientador. Pós-Doutor em Sociologia Política da Universidade Estadual do
Norte Fluminense. Mestre e Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade
Federal Fluminense. Coordenador do Grupo de Pesquisa “Faces e Interfaces do Direito,
Sociedade, Cultura e Interdisciplinaridade no Direito” – vinculado à Faculdade Metropo-
litana São Carlos (FAMESC) – Bom Jesus do Itabapoana-RJ; Professor Universitário, Pes-
quisador e Autor de diversos artigos e ensaios na área do Direito. E-mail: taua_verdan2@
hotmail.com.
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(O rganizadores )

isoladamente dos conflitos e contextos socioeconômicos. Os conflitos ambientais


resistem e refletem crises dotadas de elevada complexidade e que, não raramente,
trazem à tona o agravamento da injustiça social, o que reverbera no ambiente
natural e construído. A natureza também é um ambiente produtivo, ou seja, está
sujeita às interpretações, representações e produções humanas, é uma produção
social para compreender as causas e as consequências dos conflitos ambientais,
inclusive aqueles que estão relacionados à água, é necessário desenvolver uma vi-
são capaz de decifrar tanto a distribuição desigual do capital quanto os discursos
e paradigmas ideológicos que sustentam essa distribuição.
A necessidade de uma análise abrangente das questões ambientais e de
justiça social está no cerne das lutas dos movimentos de justiça ambiental na
América Latina nas décadas de 1990 e 2000 no contexto da Declaração das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992, os atores es-
tão tentando politizar as discussões sobre proteção ambiental, problematizando
novos “discursos ecológicos” de entidades como o Estado, empresas e organis-
mos internacionais. Baseados em um argumento técnico e de neutralidade, esses
atores defendem a compatibilidade do crescimento econômico com a conserva-
ção da natureza, tornando suas propostas mais verdes e falando da importância
de estimular o “desenvolvimento sustentável”.
Seguindo essa linha de pensamento, este artigo tem como objetivo analisar
se a gestão comunitária da água é um modo de abastecimento que pode alterar
essa distribuição desigual de recursos e amenizar conflitos ambientais, este artigo
analisará diferentes visões sobre o envolvimento da comunidade na gestão de um
recurso específico: a água. Com base nas questões levantadas, buscar-se-á discu-
tir questões relacionadas à justiça hídrica e governança ambiental participativa.
A metodologia empregada na construção do presente pautou-se na uti-
lização dos métodos historiográfico e dedutivo. O primeiro método encontra
aplicabilidade na compreensão do movimento de justiça ambiental e seus des-
dobramentos no campo brasileiro. Já o segundo método foi utilizado a fim de
promover um exame a respeito da temática central estabelecida no presente.
Ademais, a pesquisa, no que concerne ao seu enfrentamento, enquadra-se como
dotada de natureza qualitativa.
No que se referem às técnicas de pesquisa, em razão da natureza estabele-
cida para a abordagem, foram empregadas a revisão de literatura, sob o formato
sistemático, e a pesquisa documental. Como plataformas utilizadas, foram esta-
belecidas, a partir de descritores previamente usados, buscas nas plataformas do
Scielo e do Google Acadêmico.

538
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

O MOVIMENTO DE INJUSTIÇA AMBIENTAL EM DELIMITAÇÃO:


UM PASSO A MAIS, A INJUSTIÇA HÍDRICA

Para entrar na discussão das definições conceituais sobre áreas hidrosso-


ciais, em vez disso, forneça uma breve definição de ser entendido como território
nesses estudos, vai enfatizar esse território, tratando-se de poder, mas não apenas
de poder, política tradicional (dominação), mas com poder em um sentido mais
simbólico, como apropriação. (TADEU; SINISGALLI, 2019). Nesse conceito, o
território está imerso em relações a dominação/apropriação e desenvolve-se no
“continuum”. E como um continuum de território ele deve trabalhar em muitos das
suas próprias manifestações, levando em consideração a diversidade de forças e
entidades que o constroem (HAESBAERT, 2004 apud TADEU; SINISGALLI,
2019).
Devido a isso, torna-se possível analisar e compreender como as imagens
questionadas e as suas materializações buscando contribuir para a compreensão
diferenciação territorial em seu contexto espacial e temporal, caracterizado por
muitos atores com interesses divergentes e seus projetos hidrossocial (HOMMES
et al., 2016; HOMMES; BOELENS, 2017 apud TADEU; SINISGALLI, 2019).
Do conceito de territórios hidrossocial, também é possível ampliar o entendi-
mento de como essas disputas visam à consolidação de seus limites, formas de
organização social e natural e controle para um propósito específico, relaciona-
do a uma escala espacial específica (HOOGESTEGER; VERZIJL, 2015 apud
TADEU; SINISGALLI, 2019). E, com base nisso, este artigo visa investigar
como os atores articulam estratégias multi-escala para exercer mais controle so-
bre água no território.
A pobreza é uma condição determinada historicamente por disposições
sociais, há preocupação com a “medição” quantitativa da pobreza sem com-
preender suas origens e reprodução, portanto sua definição não pode se basear
unicamente em dados estatísticos relativos a renda e poder de compra, mas tam-
bém deve levar em conta as dimensões políticas e sociais a que está vinculada
(SANTOS, 2009 apud FRACALANZA; JACOB; EÇA, 2021). Nesse sentido,
a pobreza não pode ser vista como um simples estado de privação econômica,
mas sim, e principalmente como um modo de vida que combina o social, o eco-
nômico, a cultural e apolítica (SANTOS, 2009 apud FRACALANZA; JACOB;
EÇA, 2021).
As grandes metrópoles brasileiras atuam como polo de atração de po-
pulações migrantes, localizadas principalmente no Sudeste: São Paulo, Rio de
Janeiro e Belo Horizonte - neles a industrialização e urbanização criaram opor-
tunidades de emprego para migrantes, especialmente em setores de construção,
transporte e indústria. (FRACALANZA; JACOB; EÇA, 2021). Segundo Mello

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

e Novais (1998 apud FRACALANZA; JACOB; EÇA, 2021), na década de 1950.


No Brasil, 8 milhões de pessoas migraram para as cidades, uma década depois
esse número subiu para 14 milhões, em três décadas o número total de pessoas
que migraram do campo para as cidades foi de 39 milhões. Com o advento da
globalização e a crescente demanda por mão de obra para sustentar fluxos de
produtos e serviços, os movimentos migratórios continuam até hoje, causan-
do deslocamento massivo de regiões carentes para centros urbanos do Sudeste.
(SASSEN, 2004 apud FRACALANZA; JACOB; EÇA, 2021)
O ciclo da pobreza está recriando o crescimento econômico e não o acom-
panha desenvolvimento social onde seria responsável apenas pelo crescimento
da riqueza bruta, sem levar em conta sua distribuição na sociedade (SANTOS,
2009 apud FRACALANZA; JACOB; EÇA, 2021). Assim sendo, denota-se que
grupos sociais que são economicamente desfavorecidos quando alocados em es-
paços moradores de cidades excluídas são mais vulneráveis ​​porque não têm aces-
so a consumo, educação e saúde de alta qualidade, moradia legal, segurança ur-
bana e infraestrutura (SEN, 2008; HOGAN et al., 2001 apud FRACALANZA;
JACOB; EÇA, 2021).
A alocação desses espaços é comumente associada a regiões de alto risco
ambientais, como margens de rios, barragens e encostas, que, por apresentarem
características de áreas “protegidos” são retirados do mercado imobiliário for-
mal e representam a única alternativa habitacional para grupos de exclusão so-
cial (HOGAN et al., 2001 apud FRACALANZA; JACOB; EÇA, 2021). Afora
o exposto, a própria dinâmica da metrópole empurra os pobres e migrantes
para áreas distantes dos centros econômicos e de serviços (SASSEN, 2004 apud
FRACALANZA; JACOB; EÇA, 2021).
Nesse sentido, muitos dos problemas sociais e ambientais decorrem da
política desenvolvimento baseado unicamente no crescimento econômico como
único meio de promoção justiça social, negligenciando os direitos individuais dos
cidadãos à qualidade de vida e acesso a bens ambientais básicos, como ar puro e
água tratada (SEN, 2008 apud FRACALANZA; JACOB; EÇA, 2021). A injus-
tiça no contexto do desenvolvimento humano se manifesta de forma perversa e
negativa para os pobres, liberdade de acesso a recursos para comer, ser saudável,
viver no lugar certo, têm educação de alta qualidade e trabalho decente e não
têm acesso a recursos como água potável (SEN, 2008 apud FRACALANZA;
JACOB; EÇA, 2021).
Ainda nesta linha, a lacuna populacional no acesso à água pode ser con-
siderada um caso de injustiça ambiental onde grupos socioeconomicamente ex-
cluídos e de baixa renda sofrem com problemas ambientais decorrentes da água
em condições de qualidade inferior ou mesmo em quantidades menores do que
aquelas que mais contribuem para o consumo de bem comum (FRACALANZA;

540
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

FREIRE, 2015).
A necessidade de compartilhar a água entre todos, além de imprescindí-
vel, está relacionada ao conceito de desenvolvimento sustentável, pois leva em
consideração aspectos de justiça ambiental e social. Nesse caso, seria uma ques-
tão de melhor distribuição de água entre as gerações atuais, ou seja, uma questão
intergeracional de desenvolvimento sustentável. Consequentemente, é importan-
te que a população em dificuldades disponha de água em padrões qualitativos
e quantitativos suficientes para atender às suas necessidades (FRACALANZA;
FREIRE, 2015).
Deve-se notar, portanto, que em situações de escassez é importante que as
populações sejam orientadas e tratadas de forma igualitária para que seu acesso à
água não seja prejudicado, para que não haja conflitos entre os usuários de água
por exemplo, abastecimento industrial e doméstico (FRACALANZA; FREIRE,
2015).
E, ainda, garantir uma distribuição mais justa da água entre a população
de forma mais ampla, sem comprometer o acesso à água das populações de baixa
renda. Nesse caso, o conceito de gestão, mais do que o conceito de gestão, pode
levar em conta aspectos que estão relacionados aos conflitos: ao invés de tentar
eliminá-los, a gestão é buscar a gestão de conflitos, em consonância com o proje-
to coletivo (DINIZ 1999, p. 197 apud FRACALANZA; FREIRE, 2015).
Além da má distribuição que não pode ser aceita como “justificativa” por
sem acesso à água porque há países com menos recursos do que o Brasil que não
conseguem lidar com isso tão frequentemente, luta com problemas de gover-
nança em que o governo está envolvido, iniciativa privada e cidadãos. Cada um
tem sua parcela, maior ou menor, de culpa nas crises de água que ocorreram nos
últimos anos (THEODORO; TYBUSCH, 2017).
Portanto, em combinação, no geral, com mudando o regime de chuvas e
desmatamento, a gestão ineficaz está deslocando o eixo da aparente abundân-
cia de água no país pela falta de acesso quantitativo e qualitativo a ela. Desta
forma, o contexto é complementado, é claro, com variáveis ​​em casos especí-
ficos, crises água no país, cujos efeitos locais muitas vezes irradia para outros
Estados-Membros, e até mesmo realmente, para todo o Brasil (THEODORO;
TYBUSCH, 2017).
No que diz respeito à justiça ambiental, entendida em sentido material,
como acesso a comunidades de vida sustentável (HERVÉ ESPEJO, 2010, p. 11
apud THEODORO; TYBUSCH, 2017) e suas origens sociais, é adequado ex-
plicar que esse movimento, ao contrário do que foi considerado injusto as con-
dições dadas a eles, surgiu em 80 nos Estados Unidos, com ênfase no combate
ao racismo ambiental (THEODORO; TYBUSCH, 2017). Até então, mesmo
sem tal nomenclatura, poderia ser encontrado sustentando outras lutas sociais

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(O rganizadores )

quando foi internacionalizado, em face do discurso de subcontaminação contido


no Memorando Summers, ganhou adaptações resultantes das diferenças sociais
de cada país (THEODORO; TYBUSCH, 2017).
No passado, as regiões habitadas pelas classes de renda mais baixa não
eram atendidas por empresas sanitárias que priorizam investimentos em mais ci-
dades nobres e valorizadas, onde a garantia do retorno financeiro era “certa”. os
grupos excluídos, devido à sua sensibilidade socioeconômica, buscavam “meios”
alternativas” a eles, como conexões secretas em redes de abastecimento, usam
destinação inadequada de poços artesianos e destinação inadequada de esgoto,
em vez disso, colocar em risco a saúde dessas populações e a integridade do meio
ambiente, consolidando o ciclo das injustiças socioambientais (FRACALANZA;
JACOB; EÇA, 2013, p. 22-25 apud THEODORO; TYBUSCH, 2017).

PANDEMIA DA COVID-19 E OS INFLUXOS SOBRE AS COMUNI-


DADES MAIS VULNERÁVEIS

As crises são eventos internamente desiguais. Alguns grupos são natural-


mente mais sensíveis, ao passo que outros não têm recursos para se proteger.
Além disso, o tratamento e a solidariedade recebida por alguns é invariavelmente
diferente da recebida por outros. Por esses motivos, a desigualdade tende a au-
mentar em tempos de crise. Essa ampliação da desigualdade raramente é inova-
dora e geralmente resulta da erradicação das desproporções que caracterizavam
a sociedade já antes da crise (BARROS; MACHADO, 2020, p. 25).
Nesse sentido, grupos que vivenciam maior pobreza no cotidiano têm
maior probabilidade de sofrer de COVID-19. Por exemplo, dados coletados pelo
Departamento de Saúde da Cidade de Nova Estado de York que os bairros ur-
banos mais pobres são mais atingidos do que não necessariamente pelo número
de casos, mas por um índice de gravidade maior, levando em consideração as
demais fraquezas relacionadas ao acesso a recursos para tratamento ou outros
comorbidades que já afetam essa população (PIRES et al., 2020 apud BARROS;
MACHADO, 2020, p. 26).
Pensando nas fragilidades da população negra vulnerável significa com-
preender as persistentes desigualdades sociais no Brasil, principalmente consi-
derando o racismo estrutural que está se configurando na sociedade. Essas desi-
gualdades indicam desvantagens no mercado de trabalho, distribuição de renda,
habitação, educação, saúde, violência e representação políticas (IBGE, 2019
apud FIOCRUZ, 2020) que impactam a população negra em comparação com
a população branca.
A população negra está sofrendo com a pandemia de forma devastadora,
principalmente pela dificuldade de acesso às políticas públicas (PASSOS, 2020,

542
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

apud FIOCRUZ, 2020). Como medidas preventivas relacionadas à higiene são


discutidas, favelas e subúrbios não têm acesso a saneamento básico. Não é à toa
que a incidência de mortes se deve à pandemia que deteriora-se de forma dife-
rente nas regiões mais pobres das cidades e apresenta sua ocorrência excepcio-
nalmente fatal mais alta na população discriminada, estudada dentro peneira de
puro-sangue. Estudo recente sobre mortes relacionadas com COVID-19 classifi-
cadas de acordo com o critério raça/cor no Espírito Santo (FORDE; FORDE,
2020 apud FIOCRUZ, 2020) é revelado que a taxa de mortalidade na população
negra é o dobro do encontrado entre os brancos.
A partir de dados coletados pelo Centro de Operações e Inteligência
Doutor em Saúde (NOIS), da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC - RJ), observa-se mais da metade dos óbitos negros internados em unida-
des de saúde brasileiras, com sintomas graves de síndrome respiratória aguda
e confirmação COVID-19, 29.933 hospitalizações concluídas foram avaliadas
na pesquisa (com cura ou morte). Taxa de mortalidade de pacientes registrados
como negros (54,8% de 8.963 hospitalizados) foram maiores do que aqueles re-
gistrados como brancos. (37,9% de 9988 pacientes hospitalizados) (FIOCRUZ,
2020).
O novo coronavírus teve um grande impacto em nossa sociedade, apesar
dos esforços iniciais de combate à pandemia, não há articulação política entre en-
tes federados e negligência governamental criminal o governo federal estava for-
jando uma crise epidemiológica sem precedentes com os retornos infelizmente
ainda são incertos. Enfrentando a necessidade de isolamento há uma crise social
chegando, uma grande crise socioeconômica. (SALVADOR; GONÇALVES;
BASTOS, 2020).
O atual cenário de pandemia COVID-19 destaca o processo de exacerba-
ção das manifestações da questão social expressas em milhões de trabalhadores
informais no Brasil porque são atores privados de direitos trabalhistas. Essa si-
tuação já estava piorando por sucessivas perdas no acesso aos direitos sociais,
tornando cada vez mais precárias as atividades desenvolvidas nos diversos seto-
res informais, no caso de esta posição tem como objetivo, resumidamente, vin-
culá-la ao script ambiente. Consequências da pandemia COVID-19, bem como
isolamento existem muitas situações diferentes e agravantes para conter o contá-
gio, a sensibilidade social e destacando aqui também condições sociais desiguais
(SALVADOR; GONÇALVES; BASTOS, 2020).
O impacto econômico da crise de saúde provavelmente afetará a renda
familiar média, exacerbando a expansão da acessibilidade econômica de algu-
mas famílias e de instalações de água e saneamento. A redução do fluxo de cai-
xa combinada com a pressão dos orçamentos municipais pressionará as finan-
ças dos serviços públicos e a continuidade da prestação de serviços básicos. O

543
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

desafio é garantir a receita da concessionária e manter os custos de investimento


e manutenção, garantindo ao mesmo tempo em que as famílias que não podem
pagar recebam os serviços (OCDE, 2020).
O mito da democracia racial, difundido e aceito na sociedade Brasileiro,
é usado para esconder a violência contra a população negra e indígena: A narra-
tiva da lei como universal de que “todos são iguais perante a lei” máscara todas
as diferenças na criação de narrativas sobre igualdade de acesso aos sistemas de
justiça. A matriz liberal burguesa do constitucionalismo assim como o direito
moderno é incapaz de responder aos processos reais de desumanização (PIRES,
2018a, p. 467 apud GOMES; OLIVEIRA, 2020, p. 60).
Agora, em tempos de pandemia, ouvimos muito sobre o vírus não escolha
suas vítimas, pois isso pode afetar qualquer pessoa, independente de raça ou
classe social. Contudo, é mesmo real? Interpretações precipitadas sobre este as-
sunto são muito perturbadoras para nós porque as pessoas não sentem os efeitos
de uma pandemia da mesma forma, acreditamos que o equipamento da morte
tem cor, mas era desprezado na maioria dos debates da COVID-19 (GOMES;
OLIVEIRA, 2020, p. 60).
Entendemos que biologicamente não podemos dizer que o vírus escolhe
raça, mas social e materialmente sim. Existe resistência do governo abrindo da-
dos e debates racistas sobre o assunto, é assim que eles preferem discuta os dados
da falsa ideia de democracia racial e mantenha-a quieta não parece perturbar,
portanto, reconhecer que o mito da democracia racial e a ideia a falta de racismo
no Brasil também pode ser vista na resistência o Ministério da Saúde divulgará
dados racistas sobre a pandemia, somente entendendo o racismo como estrutura
social é possível promover discussões jurídicas abrindo dados raciais no número
de óbitos pela doença (GOMES; OLIVEIRA, 2020, p. 61).

CENÁRIO PANDÊMICO E INJUSTIÇA HÍDRICA EM DIÁLOGO:


RACISMO AMBIENTAL E URBANO SOBRE OS MAIS POBRES

Com a aprovação da Lei nº 9.433 em 1997, a gestão de recursos hídricos


do Brasil deu início a uma nova fase, a política nacional de recursos hídricos,
que inclui princípios inovadores para a gestão de recursos hídricos: gestão de
bacias hidrológicas e ferramentas para outorga, gestão e faturamento de planos.
É importante destacar que dada à necessidade de integrar medidas legais, jurí-
dicas, institucionais, administrativas, técnicas e de organização social, este novo
quadro relacionado com as questões hídricas do país enfrenta vários desafios de
implementação (GARJULLI, 2003 apud CEREZINI, 2021).
O Brasil sempre se esforçou para fornecer água para diversos usos em dife-
rentes regiões do país. Contudo, esse desafio foi agravado pelos cenários cada vez

544
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

mais frequentes e complexos de escassez de água nos centros urbanos, contami-


nação de corpos d’água, seca na região Nordeste, além de enchentes (ANA, 2014
apud CEREZINI, 2021). Em conjunto com o Ministério do Desenvolvimento
Regional (MDR), desenvolveu o Plano Nacional de Segurança da Água (PNSH),
fortalecendo o quadro institucional de planejamento, implantação, operação e
manutenção da infraestrutura hídrica estratégica do país. Este plano é um ins-
trumento básico de tomada de decisão neste sentido, cuja natureza é essencial
para garantir o abastecimento de água para as necessidades humanas e da ativi-
dade econômica, bem como para reduzir os riscos associados às secas e às cheias
(ANA, 2019 apud CEREZINI, 2021).
Ações para fortalecer a segurança hídrica é o principal desafio que deve
ser superado pelo Brasil, um país com características continentais e grandes dife-
renças regionais, visíveis em um território de 8,5 milhões de km2 e mais de 200
milhões de habitantes (ANA, 2019 apud CEREZINI, 2021). Portanto, fortalecer
a segurança da água é aspecto fundamental para proporcionar melhor qualidade
de vida à população, além de gerar empregos e aumentar a renda, o que contri-
bui para a redução das desigualdades regionais (ANA, 2019 apud CEREZINI,
2021). No entanto, um ponto importante a se considerar é que a implantação de
infraestrutura por si só não garante o desenvolvimento regional, o que requer um
entendimento das diferentes dimensões que compõem uma visão sistêmica da
segurança hídrica, incluindo aspectos sociais, econômicos, ambientais e outros
de cada região (CEREZINI, 2021).
Sobre a importância da água para a saúde e muito se sabe sobre a vida no
planeta, o que é também não há dúvida de que é um componente essencial dos
ecossistemas. sobreposição mapas com diferentes indicadores de desigualdade
social em oposição a indicadores de desigualdade social, acesso e qualidade da
água revelam forte compatibilidade entre eles. Observe que não representa uma
novidade e também o reconhecimento mundial do papel decisivo da água na li-
beração direta e indireta de grande número de patologias; e no condicionamento
da mortalidade em geral, especialmente mortalidade infantil, na grande maioria
dos países em desenvolvimento. No entanto, o despertar da água como direitos
humanos básicos e preocupação junto com a promulgação de leis que visam a
proteção qualidade e acesso a este elemento natural, por meio das políticas públi-
cas, esses são os últimos problemas (AUGUSTO et al., 2012).
As questões éticas estão na vida cotidiana na maioria das comunidades
quando em no mesmo território, alguns têm água em quantidade e qualidade
suficientes e para muitos estar tão indisponível. Essas desigualdades incluem o
privilégio de fornecer água para projetos de interesse público questionável. No
agronegócio, alguns exemplos são: aqueles que aplicam irrigação pesada em re-
giões semiáridas; monocultura de eucalipto; progresso da soja no cerrado e no

545
M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

desmatamento e erradicação da floresta amazônica; e o uso de agrotóxicos em


áreas perto de fontes de água. Como fazer cumprir o direito à saúde, se a quali-
dade da água está longe da maioria da população? A profunda reforma é preciso
pensar “político” no país ou melhor definindo, construindo um pacto social que
vá além do utilitarismo e pragmatismo prevalecentes (AUGUSTO et al, 2012).
A redução das formas de apropriação do mundo material a respostas adap-
tativas aos constrangimentos do meio não permite captar em sua integrali-
dade o conteúdo político, portador de projetos, presente nos conflitos que
tensionam os modos hegemônicos pelos quais se distribuem as distintas
formas sociais no espaço (ACSELRAD, 2004, p. 17).

A gestão da água no país tem sido vista historicamente como uma solução
eficaz para o problema da injustiça da água e, para tanto, o Estado e as agências
de cooperação internacional propuseram a concessão de direitos individuais de
propriedade como uma iniciativa capaz de resolver conflitos e guerras pela água.
Por trás dos programas de propriedade (variável simbólica) está a noção de que a
água deve ter um proprietário rastreável para ser trazida ao mercado, água sendo
um bem comerciável. Nesta linha, “o mercado se apresenta como a entidade cer-
ta para regular seu uso eficiente e para que o mercado tenha sucesso, é necessário
estabelecer direitos sobre a água claramente definidos e exigíveis, preferencial-
mente privados e transferíveis” (BOELENS et al., 2011, p. 17 apud CÁCERES;
MAIA-RODRIGUES, 2019).
As formas locais e tradicionais de gestão da água são geralmente vistas
como obstáculos ao uso ‘eficiente’ dos recursos, os direitos coletivos, bem como
os costumes locais relacionados à gestão da água, são considerados ilegais ou
simplesmente ignorados pela legislação que corresponde às categorias dominan-
tes do que é o direito à água e do que a água (in) justiça hídrica. Para muitas
comunidades locais na América Latina, os direitos à água não equivalem a di-
reitos de propriedade, e a justiça hídrica não é necessariamente o que a lei prevê
(CÁCERES; MAIA-RODRIGUES, 2019).
Por muitas décadas, o escopo conceitual do meio ambiente tem sido dis-
cutido, em uma perspectiva limitada, entendeu-se que não integravam o conceito
de meios agentes ambientais não naturais e feitos pelo homem, excluindo o meio
ambiente, ambiente artificial, trabalho e cultura. Por outro lado, doutrina e julga-
mentos superiores, a partir da Constituição de 1988, passaram a considerar esse
conceito “Macro” do meio ambiente. Lei nº 6.938 / 81 no art. 3, e que institui
o meio ambiente como: “o conjunto de condições, leis, influências, alterações e
interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida
em todas as suas formas” (BRASIL, 1981).
O Ministro Celso de Mello (STF, 1995), durante a votação do mandato
Segurança 22164-SP, definiu o ambiente como:

546
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

Um típico direito de terceira geração que assiste, de modo subjetivamente


indeterminado, a todo o gênero humano, circunstância essa que justifica a
especial obrigação - que incumbe ao Estado e à própria coletividade - de
defendê-lo e de preservá-lo em benefício dos presentes e futuras gerações
(STF, 1995, online)

Trazendo a análise da professora Selene Herculano (2006, p. 02 apud


ALMEIDA; SALIB, 2018) a o sobre as diferenças de tratamento entre pessoas
com um padrão social mais desfavorecido disse:
O mecanismo pelo qual sociedades desiguais destinam a maior carga
dos danos ambientais do desenvolvimento a grupos sociais de trabalha-
dores, populações de baixa renda, grupos raciais discriminados, popula-
ções marginalizadas e mais vulneráveis. (HERCULANO, 2006, p. 02 apud
ALMEIDA; SALIB, 2018, online)

Dado que a segregação social é um produto do racismo, ela vem com ela
injustiça social. Existe uma aproximação conceitual entre racismo ambiental e
injustiça ambiental Justiça social, por outro lado, é a busca por um tratamen-
to justo, independentemente de raça, cor, nacionalidade ou renda em relação a
desenvolvimento, implementação e aplicação de políticas, regulamentos e regu-
lamentação ambiental (HERCULANO, 2006 apud ALMEIDA; SALIB, 2018).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em linhas finais, quando o debate da injustiça hídrica começa a afetar não


somente o dia-a-dia da população, mas também a sua qualidade de vida no geral,
torna-se fundamental questionar o início do problema ou buscando uma solução
mais direta na pesquisa, trazer uma análise histórica do embate entre Estado e
pessoas racializadas e esquecidas pelos entes competentes do poder. Outro ponto
a se destacar ainda no tema de injustiça hídrica, é como o problema continua
afetando um núcleo as margens da cidade, trazendo uma insegurança acerca do
seu elemento básico de sobrevivência: a água.
Além das atrocidades relacionadas, a pandemia de Covid-19 também foi
exposta de forma mais implacável àqueles que tentaram encobrir e suprimir as
múltiplas desigualdades e interferências que existiram na história do país ao lon-
go dos anos. Nesse caso, a população historicamente negligenciada, a população
com baixa proteção ao emprego e a população sem acesso total a serviços de
saúde a preços acessíveis são as mais atingidas, em especial aquelas com maior
risco de morte.
Desta feita, a ineficácia da política de recursos hídricos tem levado à re-
dução da qualidade de vida e até mesmo da expectativa de vida das populações
menos assistidas. Fazem as intervenções públicas parecerem mais focadas na eli-
minação da desordem urbana do que na prestação de serviços sociais e bem-estar

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M anuel A lves de S ousa J unior | T auã L ima V erdan R angel
(O rganizadores )

coletivo. Se o espaço urbano foi inventado e criado, mesmo que fosse pelas mãos
de liberais, e, no caso do Brasil, pela elite, o espaço urbano pode ser reimaginado
e transformado. É necessário pensar uma cidade mais inclusiva, mesmo que este-
ja constantemente fragmentada, deve-se colocar na pauta do debate que o direito
à cidade requer esforço coletivo e a formação de direitos políticos coletivos para
que possamos buscar a concretização e implementação de processos e a promo-
ção da democratização dos direitos sociais.

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QUESTÕES RACIAIS
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cenário. [S.l.]: Mórula Editorial, 2020. Disponível em: https://morula.com.br/
wp-content/uploads/2020/06/ParaAlemDaQuarentena.pdf. Acesso em: 08
nov. 2021.
TADEU, Natalia Dias; SINISGALLI, Paulo Antônio Almeida. Escalas da in-
justiça hídrica: estudo de caso em Ilhabela – Litoral Norte de São Paulo. Dis-
ponível em: file:///C:/Users/Cipriano/Downloads/Escalas_da_injustica_hi-
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THEODORO, Marcelo Antonio; TYBUSCH, Jerônimo Siqueira. Direito Am-
biental e Socioambientalismo. Florianópolis: CONPEDI, 2017. Disponível
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549
POSFÁCIO
[...] Mas eu, Senhor!... 
Eu triste abandonada 
Em meio das areias esgarrada, 
Perdida marcho em vão! 
Se choro... bebe o pranto a areia ardente; 
talvez... p’ra que meu pranto, ó Deus clemente! 
Não descubras no chão… [...] 

Basta, Senhor! 
De teu potente braço 
Role através dos astros e do espaço 
Perdão p’ra os crimes meus! 
Há dois mil anos eu soluço um grito... 
escuta o brado meu lá no infinito, 
Meu Deus! Senhor, meu Deus!!... 
(Castro Alves, Vozes d’África)

Apesar de serem produzidos no século XIX, os versos da célebre poesia


“Vozes d’África”, de Castro Alves, ainda se apresentam como testemunhas da
contemporaneidade, e emolduram com bastante precisão, a temática que envol-
ve as questões raciais e os seus desdobramentos nos mais diversos segmentos da
sociedade brasileira. Atualmente, não se propaga a defesa da abolição da escra-
vatura enquanto uma prática econômica e política, que caracterizava o modelo
brasileiro, responsável por uma mão de obra alijada de direitos e reduzida à con-
dição de propriedade da elite nacional. 
As trincheiras da defesa estão alicerçadas em eliminar as consequências do
modelo escravocrata brasileiro e que implicou no estabelecimento de um contex-
to exploratório de múltiplas perspectivas e cujos desdobramentos ainda podem
ser presenciados. É o cenário das desigualdades sociais, econômicas e de acesso
a oportunidades que se multiplicam a partir de um racismo estrutural e “norma-
lizado” pelas elites no discurso meritocrático e na (re)produção de concentração
de riqueza na mão de poucos e agravamento da condição das etnias historica-
mente exploradas.
O mito da democracia racial, sobretudo na obra de Gilberto Freyre, na obra
Casa Grande e Senzala, foi responsável por subtrair da escravidão as consequências
nefastas produzidas. O mito conferiu, de outra maneira, uma ótica de que não
se tratou de um mecanismo tão duro e cruel, e de que teria ocorrido a partir de
uma relação harmoniosa entre os senhores e a população escravizada. Ora, sob
QUESTÕES RACIAIS
E ducação , P erspectivas , D iálogos e D esafios

a bandeira do processo de culturalização e miscigenação, pensado, sobretudo,


durante o período da modernidade brasileira, enquanto construção dos últimos
setenta anos, serviu para atenuar e, não raramente, ofuscar a perspectiva de po-
larização envolvendo os mais diversos grupos étnicos que convergiram para a
formação da sociedade brasileira
Ora, houve o esmaecimento artificial das tensões que implicaram na con-
centração de renda, de capital político e econômico para uma elite brasileira
branca, ao passo que renegou as demais etnias à marginalização, à periferização
e à ausência de oportunidades para ocupação de espaços públicos e representati-
vos. A construção de uma agenda de resgate das dívidas históricas, políticas afir-
mativas e de inclusão, promoção da isonomia material e social e desconstrução
da institucionalização do racismo se dão de maneira recente e estão vinculados
ao desafio de repensar a falácia contida no mito estabelecido como verdade plas-
mada acerca da democracia racial.
Sensíveis a tais aspectos, os autores que colaboraram para a construção
deste livro. A partir de olhares múltiplos, experiências diversificadas e inquie-
tações científicas, abordaram a temática com a complexidade que se exige. As
questões raciais estão, e, por muito tempo, continuarão na pauta do dia; por-
quanto refletem, na história nacional, o percurso e as tentativas, em grande parte,
bem-sucedidas de normalização da exploração dos invisibilizados e dos emude-
cidos a partir do aparato estatal. Ressignificar a democracia racial passa, imperio-
samente, pelo reconhecimento dos débitos históricos a serem solvidos e, ainda ao
processo de lutas, de conquistas e de manutenção dos espaços a serem ocupados
para tais grupos e a construção de discursos que ultrapassem o plano teórico e re-
tórico, alcançando a realidade e promovendo mudanças significativas, relevantes
e capazes de assegurar que a democracia racial seja, no contexto brasileiro, uma
realidade e não mais um eufemismo…

Tauã Lima Verdan Rangel


Estudos Pós-Doutorais em Sociologia Política (UENF)
Doutor e Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais (UFF)
Professor Universitário vinculado ao Curso de Direito da 
Faculdade Metropolitana São Carlos (FAMESC)

551
SOBRE OS ORGANIZADORES

Manuel Alves de Sousa Junior

Doutorando em educação na UNISC e Mestre em Bioenergia pela UniFTC


Salvador (2011), Possui graduação em Licenciatura em Ciências Biológicas
pela Universidade Católica do Salvador (2002), graduação tecnológica em
Segurança do Trabalho pela UNIASSELVI (2016), Graduação em Licenciatura
em História pela UNIJORGE (2020), MBA em História da Arte pela Estácio
(2020) e Especialização em Análises Clínicas pela UCSal (2004). Atualmente
é servidor público efetivo como professor do Instituto Federal de Educação,
Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA) campus Lauro de Freitas/BA. Possui ex-
periência na docência do ensino superior no IFBA, e em diversas Instituições
de Ensino Superior privadas, tendo atuado também na docência em diversos
cursos técnicos e outras modalidades, sobretudo no IFBA, além de cursos de
Formação Inicial e Continuada e cursos de extensão. No IFBA tem plena atua-
ção em ensino, pesquisa, extensão e gestão. Possui capítulos de livros, artigos
publicados em periódicos e também diversas publicações em eventos. Membro
do Grupo de Pesquisa CNPq/UNISC Identidade e Diferença na Educação e do
Observatório de Educação e Biopolítica - OEBIO. Membro do NEABI - IFCE
campus Umirim.
Tauã Lima Verdan Rangel

Estudos Pós-Doutorais desenvolvidos no Programa de Pós-Graduação Strictu


Sensu em Sociologia Política da Universidade Estadual do Norte Fluminense
(UENF), em 2019-2020 e 2020-2021. Doutor (2015-2018) e Mestre (2013-2015)
em Ciências Jurídicas e Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia
e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista Lato Sensu
em Direito, nas seguintes áreas: Direito Constitucional (2019-2020); Direito do
Consumidor (2019-2020); Direito da Infância, da Juventude e do Idoso (2019-
2020); Direito Administrativo (2016-2018); Direito Ambiental (2016-2018);
Direito de Família (2016-2018); e Práticas Processuais, Processo Civil, Processo
Penal e Processo do Trabalho pelo Centro (2014-2015). Especialista Lato Sensu
em Docência e Gestão do Ensino a Distância (2019-2020) e Gestão Educacional
e Práticas Pedagógicas (2017-2018). Bacharel em Direito (2007-2011). Integrante
do Grupo de Pesquisa Direitos Fundamentais e Vice-Líder do Grupo de Pesquisa
em Pessoas com Deficiência e Inclusão Social/UFF e do Grupo de Pesquisa em
Política Criminal/UFF. Coordenador do Grupo de Pesquisa Faces e Interfaces
do Direito: Sociedade, Cultura e Interdisciplinaridade no Direito, vinculado à
Faculdade Metropolitana São Carlos/campus de Bom Jesus do Itabapoana-
RJ. Autor dos livros: Escritos Jurídicos em tempos de Pandemia (Editora Iole,
2022); Escritos Jurídicos sobre Vulnerabilidade (Editora Iole, 2022); Direito em
Emergência (volume 2) (Editora Pimenta Cultural, 2021); Escritos Jurídicos so-
bre Sexualidade (Editora Iole, 2021); Escritos Jurídicos sobre Direitos Humanos
(Editora Iole, 2021); Escritos Jurídicos sobre Meio Ambiente (Editora Iole, 2021);
Escritos Jurídicos sobre Segurança Alimentar (Editora Iole, 2021); Escritos
Jurídicos em Tempos de Covid-19 (Editora Iole, 2020); Direito em Emergência
(Editora Pimenta Cultural, 2020); Segurança Alimentar e Nutricional na Região
Sudeste (Editora Bonecker, 2019); e Fome: Segurança Alimentar e Nutricional
em pauta (Editora Appris, 2018). Coordenador da coleção “Novos Temasde
Direitos Humanos Fundamentais” (volumes 1, 2 e 3), lançados pela Editora
Clássica (2022). Coordenador da coleção “Direitos Humanos Fundamentais em
Pauta” (volumes 1, 2, 3, 4 e 5), lançados pela Editora Edições e Publicações
(2021). Organizador, do livro Debates sobre Direitos Humanos Fundamentais
(volume 03), lançado pela Editora Gramma, em 2017.

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