Colorindo A História - A Literatura Infantil Afro-Brasileira de
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representa na obra uma função metalinguística. É ela quem apresenta o mundo dos
livros, ou seja, Lia é a figuração da própria leitura. É através dela que se abre um
horizonte rico em histórias e onde habitam os povos que dividem ancestralidade com
Preta.
A primeira coisa que ensina Lia – representação figurada da leitura – é que o
conceito de etnia está deturpado em nossa sociedade. Assim, é preciso recuperar a
idéia desta palavra, usada pelos gregos para denominar aqueles povos que não
pertenciam à cidade, os estrangeiros. Ela deve ser encarada como significado de
que existem sociedades diferentes e não inferiores. É aproveitando-se dessas
diferenças que a autora escreve as riquezas culturais africanas.
Já no primeiro capítulo da jornada, a narradora nos lembra um outro
personagem muito importante na disseminação de estórias, o griot – sábio que na
tradição africana guarda consigo os conhecimentos ancestrais da comunidade.
Como guardião da memória coletiva ele tem a responsabilidade de fazer perpetuar
de geração em geração as crenças do seu povo. E a primeira memória trazida pelos
griots em Histórias da Preta são os mitos cosmogônicos que cada etnia africana
acredita ser a explicação da criação do universo.
Para Bárbara Carvalho (1982, p. 24), o mito em obras infantis apresenta um
papel de “fixação de valores paradigmáticos na busca de padrões de
comportamento”. Ele é mais um elemento formador da cultura, é o que Freud chama
de “patrimônio coletivo inconsciente do psiquismo popular”. Assim, o mito guarda
uma memória comum, que possui extrema relevância para ilustrar a tradição, oral ou
narrativa, trazida com os griots.1
É no mundo do mito que se insere também O espelho dourado. O griot
aparece nessa obra como o pescador, figura que habita o imaginário popular como
aquele que cria ou conta histórias. No caso, o nosso pescador acompanha nas
águas dos rios africanos o universo que se criou em torno dos mesmos. Mais uma
vez a autora promove o colorido da África, representando a diversidade como uma
das características do continente onde a grande maioria da população é negra, mas
não são todos iguais.
Feito serpentes, os rios passeiam pelos continentes. E alguns, muito
coloridos, existem sobre a África. Sobre eles, um barco mais colorido ainda. E
dentro dele um pescador. As correntes fluem na terra igual ao sangue nas
artérias que trazem, a energia vital. O Pescador descansa à beira da fonte e,
às vezes, pesca uma história, que é um jeito de se alimentar com as idéias do
lugar. (LIMA, 2003, p. 7).
Jogada a rede, o pescador traz para o texto uma crença achanti de que:
[...] os mortos habitam um mundo que é a imagem espalhada do mundo dos
vivos. Por isso, os antepassados não estão exatamente mortos, mas, sim
invisíveis. O país do lado de lá é igual ao do lado de cá. A diferença é que em
um deles não se consegue acender fogueira. (LIMA, 2003, p. 09)
1 De acordo com a Enciclopédia brasileira da diáspora africana elaborada por Nei Lopes, o griot é um
“termo do vocabulário franco-africano, criado na época colonial, para designar o narrador, cantor,
cronista e genealogista que, pela tradição oral, transmite a história de personagens e famílias
importantes às quais, em geral, está a serviço. Presente sobretudo na África Ocidental, notadamente
onde se desenvolveram os faustosos impérios medievais africanos (Gana, Mali, Songai, etc.), recebe
denominações variadas: digeli ou diali, entre os Bambaras e Mandingas; guésséré, entre os
Saracolés; mambabé entre os Peúles; aouloulé, entre os Tucalores; e guéwel, entre os Uolofes”
(LOPES, 2004, p. 310).
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2 Os dois mundos representados pela lenda são denominados em iorubá por aiê e orum. Na
concepção dada por Nei Lopes o aiê, ou àiyé, “designa o mundo visível, dos vivos, em oposição à
orum” (LOPES, 2004, p.43). Este, por sua vez, seria “na mitologia iorubana, compartimento do
universo onde moram as divindades, em oposição ao aiê, o mundo físico, terreno, material. Segundo
Pierre Verger, ao contrário do que normalmente se pretende para os iorubás, o orum não estaria
situado no céu, mas debaixo da terra. Essa ideia poderia comprovar-se nas oferendas dos orixás,
quando o sangue dos sacrifícios, dentro da tradição mais ortodoxa, é derramado em um buraco
cavado no chão, ao pé do assentamento, e os olhares se voltam para ele e não para o alto.” (LOPES,
2004, p. 500).
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colorido africano), o texto vale-se da memória coletiva que sem tem de uma África
una e, para desmitificar essa mesma ideia, leva ao leitor um conhecimento mais
profundo do continente, formado de dezenas de países que se distanciam entre si.
Assim a ancestralidade comum, montada através da vinda dos negros para o
Brasil, e dos mitos é repartida nas diversas etnias. Primeiro é necessário aproveitar
o que já está consolidado no imaginário popular para, só depois, romper com
conceitos estabelecidos e integrar contextos históricos que ficaram à margem
canônica por muitos anos.
A criança afrodescendente brasileira só poderá “acender a fogueira” a partir
do momento em que se enxergar como parte formadora da sociedade, não como
vítima, mas como colaboradora. Tão importante como denunciar a discriminação é
apresentar ao universo infantil motivos para se interessarem e valorizarem as
culturas africanas. Heloisa Pires faz isso recordando os mitos, ressaltando belezas e
diversidade. A valorização contribui para que a criança possa se identificar com a
literatura e através dela dilacerar estereótipos que foram construídos para ela e não
por ela.
Apesar da lei n° 10. 639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece segundo o
artigo 26-A:
Referências
BRASIL. Lei n° 10. 639/2003, de 09 de janeiro de 2003. Altera a lei n° 9. 394 de 20
de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-brasileira” e dá outras providências. Base da Legislação
Federal do Brasil. Disponível em: <
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm >. Acesso em: 28 mai. 2010.
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2. ed. São Paulo: Edart, 1982.
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Acesso em: 28 mai. 2010.
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______. Literatura e Afrodescendência. In: Literatura, Política, Identidades: ensaios.
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LACAN, Jacques. Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je, in Écrits.
Paris: Ed. du Seuil, 1966.
LIMA, Heloisa Pires. Histórias da Preta. 3. ed. São Paulo: Companhia das letrinhas,
1998. Ilustrações de Laurabeatriz.
______. O espelho dourado. São Paulo: Peirópolis, 2003. Ilustrações de Taisa
Borges.
LOPES, Nei. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. São Paulo: Selo Negro,
2004.
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Mestranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada no Programa de Pós-graduação em
Letras, Estudos Literários, da UFMG.