Uma Escrita Do Desejo - Clarice Lispector, Elsa Morante, Marguerite Duras
Uma Escrita Do Desejo - Clarice Lispector, Elsa Morante, Marguerite Duras
Uma Escrita Do Desejo - Clarice Lispector, Elsa Morante, Marguerite Duras
º 4
pp. 139 - 149
139
Selma Calasans Rodrigues
1
SPOLJAR, P., Réécrire l’origine...,in: Ecrire, réécrire Marguerite Duras, Lettres modernes
minard, Paris-Caen : 2002, p.90.)
2
KRYSINSKI, Wladimir. «“Subjectum Comparationis”: as incidências do sujeito do
discurso». In: Teoria Literária. Dir. Marc Angenot e al. Lisboa: Don Quixote, 1995.
casa com um diplomata e, a partir de então sua vida será itinerante, nunca estará
no mesmo sítio e nunca se sentirá em casa.
O sentimento de desenraizamento projecta-se, entretanto mais fundo na
autora, o mesmo que me parece encontrar em Duras e em Morante. Primeiro
como ausência de pertença, depois como o estranho, o Unheimlich, em Freud
(1919).
Diz Clarice na crónica «Pertencer» de 1968: «tenho a certeza de que no
berço a minha primeira vontade foi de pertencer. Por motivos que aqui não
importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a
ninguém. Nasci de graça».
Quanto a Duras, foi mais flagrante o sentimento de estrangeira, visto que,
filha de franceses, ela nasce na Indochina, num subúrbio de Saigão. Ela terá
crescido no trópico, com as cores verdes da floresta, e as vozes dos animais na
noite, com a humidade característica, com a lentidão dos dias vazios. Embora
sua mãe se esforçasse, ela não se sentia francesa e, como diz Frédéric Lebelley,
um dos seus biógrafos: «en dehors de la langue, elle ne se reconait pas dans “la
race des blancs”»3. Com 18 anos ela sai da Indochina indo para a França, onde
vai fazer os seus estudos.
Elsa Morante, italiana, filha de mãe de origem judaica, também cedo deixou
a casa paterna e viveu parte da vida, durante a Segunda Grande Guerra, refugiada
aqui e ali da perseguição fascista, com seu marido também famoso escritor,
Alberto Moravia. Exibe o mesmo sentimento de não pertença a meu ver, em
especial, na sua última obra prima Aracoeli, de 1982. A personagem, um
misantropo homossexual italiano, empreende uma viagem mítica à Espanha,
Andaluzia, ou mais propriamente a El Almendral, lugar do nascimento de sua
mãe, Aracoeli. Será ele italiano ou como a mãe o chamava un niño espanhol? A
viagem se faz no imaginário, em busca da memória, com a finalidade de uma
mítica união com a mãe, esse outro de quem (no imaginário) nunca se separou:
E così, adesso (...) mi sono messo sulla strada, in partenza di Milano, per
andare alla ricerca di mia madre Aracoeli nella doppia direzione del passato
e dello spazio. (...) E ancora adesso, per me, cercarla non significava
documentarmi, o raccogliere testemonianze; ma andarmene via di qui,
dietro le tracce del suo antico passagio, come un animale sbandato va
dietro agli odore della própria tana. (AR: 9)4
3
LEBELLEY, Frédérique. Duras ou le poids d’une plume. Paris : Grasset, 1994, p.18.
4
MORANTE, Elsa. Aracoeli. Torino: Einaldi, 1982. (sigla usada: AR)
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Selma Calasans Rodrigues
O estrangeiro o estranho
Este sentimento de ser estrangeiro radica em algo mais íntimo que habita a
obra das escritoras em questão.
O estrangeiro é o outro, é de outro lugar, de outra cultura, de outra fala.
Do ponto de vista da psicanálise, entretanto, o estrangeiro é o eu, é o real do
sujeito: «Não o eu unitário, coerente, idêntico a si mesmo —, mas o eu pensado
em sua condição paradoxal — dividido discordante, diferente de si mesmo —
tal como de uma vez por todas o poeta nos ensinou: “Eu é um outro.”»5 Todos
aqui reconhecem a expressão do jovem Rimbaud que, ao propor o poeta
moderno como voyant, revela a inutilidade da noção de um eu inteiro, autor
absoluto e dono da sua verdade.
O conceito de estranho é um dos mais férteis na obra de Freud. O estranho
é o Unheimlich: em alemão a palavra explica o conceito: Heimlich é o familiar,
com o prefixo negativo Un-. O estranho é provocado pela aparição no real de
alguma coisa que traria de volta à memória algo íntimo: o não familiar que foi
familiar um dia, mas terá sido recalcado e só vem à tona através das formações
do inconsciente (na linguagem por acto falho, no sonho etc). Isto acontece quando
algo na vida do sujeito leva-o a actualizar aquele sentimento.
É preciso conceber o retorno do familiar recalcado como de uma falta
tornada estranhamente outra. Estamos então no terreno do desejo. Sendo o
desejo a fonte do Unheimlich, compreendemos que o segredo íntimo está no
«outro» do desejo do sujeito dividido6.
A escrita caleidoscópica de Duras, de Lispector e de Morante metaforiza
um segredo íntimo, metaforiza o desejo.
O que foi o arrebatamento (ravissement) de Lol V. Stein (Marguerite
Duras), senão o encontro de seu «fantasma» no baile do Casino? Lol V. Stein
uma jovem nascida numa família burguesa, aos dezanove anos está noiva de
5
KOLTAI, Caterina (org). O estrangeiro. São Paulo: Escuta/Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo, FAPESP, 1998, citado por ROSEMBAUM, Yudith. «No território das
pulsões». Texto apresentado no Colóquio Clarice Lispector (Departamento de Teoria Literária e
Literatura Comparada Da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da USP. Vide Bibliografia.
6
O desejo tem a ver com a «castração simbólica», a partir do facto de sermos seres falantes,
inseridos na Cultura, portanto, estarmos sujeitos à Lei. O Nome-do-pai é suposto ser quem
transmite a Lei da Cultura, a proibição do incesto, o corte. Esta lei impõe um limite ao gozo e rompe
com a omnipotência ilusória, ou seja imaginária, no sujeito humano. Este deve internalizar a perda
do objecto pela formação do fantasma, que não é senão a representação imaginária do objecto
perdido. Lacan representa o fantasma pelo algoritmo $& a: sujeito dividido se une e se afasta
(poinçon &) de a, objecto causa do desejo. Quanto a a, diz Lacan que esse objecto é sempre
metonímico: voz, olhar, seio, excremento...
Do desamparo às epifanias
A escrita se faz com o corpo, daí sua pulsação, seu ritmo pulsional, sua
respiração singular, diz a escritora Ruth Brandão8. A rebeldia das palavras, suas
7
DURAS, Marguerite. A ausência de Lol V. Stein. Trad. José Vieira de Lima. Lisboa: Difel, 1964.
BRANDÃO, Ruth Silviano. «O limo, o cristal e o sopro das palavras». Revista A prática
8
Ensaios 143
Selma Calasans Rodrigues
Sei, é ruim segurar minha mão. É ruim ficar sem ar nessa mina desabada
para onde eu te trouxe sem piedade por ti, mas por piedade por mim. Mas
juro que te tirarei vivo daqui – nem que eu minta, nem que eu minta o que
meus olhos viram. Eu te salvarei desse terror onde, por enquanto, eu te
preciso. (PSGH, 98)10
[...]
— Dá-me a tua mão. Porque não sei mais do que estou falando. Acho
que inventei tudo, nada disso existiu! Mas se inventei o que ontem me
aconteceu — quem me garante que também não inventei toda a minha
vida anterior a ontem? (PSGH:101).
9
LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995 (sigla
usada PSGH): GH é a única personagem e é a narradora do romance. Ela apela para um tu inexistente
na narrativa, com quem logo o leitor se identifica: uma mão. A narrativa é circular, pois começa après
coup, depois da experiência vivida na véspera, responsável por uma metamorfose da personagem:
ela havia perdido uma «terceira perna», aquela mesma que «me impossibilitava de andar mas que
fazia de mim um tripé estável» (PSGH, p. ) […] «O que eu era antes não me era bom. Mas era desse
não-bom que eu havia organizado o melhor: a esperança» indaga-se o que fazer com aquela visão, e
decide «criar o que aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível.» […] Falarei
nesta linguagem sonâmbula que se eu estivesse acordada não seria linguagem (PSGH, p.25). O
primeiro passo da «paixão» de GH dá-se quando ela (uma arquiteta, mulher de classe média alta)
entra no quarto da empregada que havia deixado o emprego, depois de ali ter permanecido seis
meses. GH decide arrumar esta parte da casa. Sua expectativa era de que estivesse suja, desarrumada.
Ao contrário ao abrir a porta depara-se com uma quadrilátero de luz. Nestas paredes iluminadas
uma representação: um grafite que era uma paródia dela mesma, feito pela empregada. A visão
contraria o que pensava, a sua onipotência, e precipita-a numa busca arqueológica de si mesma. O
segundo passo da «paixão», a epifania, se dá a partir da visão de uma barata dentro do armário da
empregada o que suscita uma reflexão, é como se aquela visão desorganizasse o seu quotidiano,
normalmente organizado em equilíbrio e beleza. Vai até o fim na experiência, pois no «escrínio o
faiscar de glória, o segredo escondido. O segredo mais remoto do mundo, opaco, mas me cegando
com a irradiação de sua existência simples» (PSGH, p.139-140). A partir daí a personagem segue até
penetrar no inferno da matéria viva, abandonando toda a esperança, como Dante ao penetrar na
porta do inferno. (cf. RODRIGUES, Selma Calasans, 1996).
10
Desamparo: Hilflosigkeit em Freud é constitutivo do sujeito humano. «[...] Foi assim que
se criou um cabedal de ideias, nascido da necessidade que tem o homem de tornar tolerável seu
desamparo, e construído com o material das lembranças do desamparo de sua própria infância e da
infância da raça humana». O futuro de uma ilusão (1927). FREUD, S. El porvenir de una ilusión .
Trad. minha (1948: 1277, v. I)
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Selma Calasans Rodrigues
— Mamá, mamá
— Sono io, mi vedi?
( In verità scorgo — o pretendo scorgere — apena una sorta di minusculo
sacco d’ombra. La voce strappata, mista di risa cortissime, somiglia a un rantolo
futile di animale).
— Sí. Mi hai sentito?
— Sì. Ma che fatica raggiungerti — raccattare quell’ultimo ínfimo resíduo
d’energia viva nella mia poca polvere — e produrla in questa forma senza forma
— che poi dovrò pagarla — ogni forma è una merce che costa.
[...]
L’intelligenza si dà per capire. E a me si è data ma io non capisco niente.
E non ho mai capito e non capirò mai niente.
— Ma, niño mio chiquito, non c’è niente da capire. (AR: 307-308)
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Este artigo faz parte do projecto «A escrita Literária e o Fluxo do Inconsciente: Estudo
Comparativo de três Escritoras: Elsa Morante, Marguerite Duras, Clarice Lispector» da
responsabilidade de : Rita Ciotta Neves, Selma Calasans Rodrigues, Zlatka Timenova.
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Selma Calasans Rodrigues
BIBLIOGRAFIA TEÓRICA
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Mais exactamente « Je pense où je ne suis pas, donc je suis où je ne pense pas ».
LACAN (L’instance da la lettre dans l’inconscient. Ou la raison depuis de Freud », 1957). 1970 : 277.
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