Emerson No Brer Evi Sad A
Emerson No Brer Evi Sad A
Emerson No Brer Evi Sad A
São Paulo
2017
EMERSON NOBRE DA SILVA
São Paulo
2017
À Anita e Armando
Agradecimentos
(Fausto, 2013:328).
Resumo
Esta dissertação está centrada no estudo da iconografia da cerâmica
marajoara, mais especificamente, na iconografia das tangas cerâmicas
pertencentes a diversos acervos e coleções, com o objetivo de refletir sobre
figuração durante a fase marajoara. Partindo de uma abordagem que integra
Arqueologia, Antropologia da Arte e Etnologia, compreendemos as tangas
enquanto objetos de composição, transformação e fabricação corporal, o que
também permitiu identificar, em sua iconografia, uma forma de conceber
imagens e corpos caracterizada pela integração de figuras aludindo a diversos
seres e suas partes anatômicas, e também pela utilização de recursos gráficos
que sugerem transformações corpóreas. Assim, as características expressas
nesta iconografia foram interpretadas como uma forma de materializar
princípios cosmológicos referentes à transformabilidade dos corpos,
característicos das sociedades ameríndias, que colocam a transformação
corporal como o centro de suas preocupações.
8.ANEXOS
ÍNDICE DE ANEXOS...................................................................................................................244
Índice de Imagens e Ilustrações
1
A fase marajoara é um período de ocupação da Ilha de Marajó, descrito primeiramente por Meggers (1954)
e Meggers e Evans (1957), atrelado às culturas estabelecidas ali, entre 400 e 1300 AD., sobretudo, na sua
porção leste, e que ocuparam uma área de, aproximadamente, 20 mil quilômetros quadrados (Roosevelt, 1991;
Schaan, 2004). Os aterros, conhecidos como “tesos”, construídos para fins funerários, rituais e de habitação
(Roosevelt, op.cit.; Schaan, op.cit.), assim como as cerâmicas, elaboradas por uma gama de técnicas
decorativas, tais como, incisão, excisão, pintura, modelado, etc. são as características definidoras mais
emblemáticas desta fase (Barreto, 2009; Meggers e Evans, 1957; Roosevelt, op.cit.; Schaan, 2007b).
15
quais foram retiradas (Barreto, op.cit.; Gomes, op.cit; Oliveira, op.cit.), tais quais
aquelas apresentadas nos capítulos 4 e 5 desta dissertação. Dadas estas lacunas,
para explorar estas coleções, as pesquisas têm se voltado para os aspectos
iconográficos e estilísticos dos objetos, explorando estes, principalmente, à luz do
potencial explicativo das teorias e generalizações no âmbito da Etnologia e
Antropologia da arte, sobretudo, daquelas relacionadas às sociedades ameríndias,
permitindo, assim, organizar e analisar estes conjuntos de objetos arqueológicos.
Isto traz importantes implicações para a compreensão não somente dos
aspectos iconográficos das tangas cerâmicas, objetos tão emblemáticos da fase
marajoara, mas também para a reflexão a respeito de suas performances distintas.
Em primeiro lugar, esta categoria de objeto pode ser compreendida a partir dos
significados atribuídos à produção de adornos corporais no mundo ameríndio,
sobretudo, no que diz respeito à produção e fabricação corporal. Além disto, a
maneira específica de fabricar corpos e imagens, como expressa em sua
iconografia, parece repercutir noções semelhantes àquelas que estruturam os
regimes de figuração ameríndios, onde princípios cosmológicos relacionados à
corporalidade, como por exemplo, a fabricação, a composição e a transformabilidade
dos corpos, são materializados tanto nos objetos, quanto em seus grafismos.
Embora este exercício de se explorar e interpretar coleções provenientes de
sociedades pretéritas à luz de conceitos e ideias de sociedades estudadas e
registradas etnograficamente possa ser perigoso devido ao risco de se projetar os
conhecimentos a respeito de cosmologias do presente para interpretar àquelas do
passado, levando em consideração certas esferas de resistência entre a produção
de imagens e identidade nas cosmovisões ameríndias, tal esforço pode ser
recompensador, conforme tentaremos demonstrar nas páginas que se seguem.
De forma geral, a análise proposta nesta dissertação engloba uma
investigação dos aspectos estruturais e iconográficos que caracterizam as imagens
compostas nos campos gráficos das tangas, atentando, especialmente, à figuração
dos corpos, definindo deste modo, alguns aspectos que caracterizam o sistema
representacional marajoara. Com isto, esperamos contribuir para uma maior
compreensão dos aspectos iconográficos da cerâmica marajoara, possibilitando
também que os princípios estruturais que regem a fabricação das imagens possam
16
ser utilizados em futuras comparações entre os aspectos iconográficos e estilísticos
desta cerâmica com outras cerâmicas da Amazônia antiga.
17
apesar de ser uma categoria de objeto associada a contextos funerários, não era
confeccionada especificamente para este fim, sendo usadas antes do seu descarte
nestes contextos.
Na segunda parte, são apontados alguns apectos referentes à variabilidade
das tangas que têm sido usados na formulação de hipótese sobre a sua função,
como por exemplo, a variabilidade de morfologias, de tamanhos e formas de
decoração. Aqui, tentamos compreender esta variabilidade por meio de um aspecto
determinante na produção de roupas e adornos corporais no mundo indígena, que é
a produção e paramentação dos corpos. Por fim, sugere-se que os diferentes modos
de trabalhar a superfície das tangas, seja com uma pintura lisa, seja com grafismos,
poderiam estar relacionados a diferentes formas de agentividade.
No capítulo 4, nos debruçamos nas características gráficas das tangas
visando explorar as tecnologias que lhes conferem encantamento. Em um primeiro
momento apresentamos as coleções estudadas, bem como, os aspectos
metodológicos referentes à análise dos campos gráficos e dos grafismos.
Após isto, são descritos os seus campos gráficos, bem como as
características dos padrões de cada um destes campos. Posteriormente nos
focamos, sobretudo, nas características específicas do regime de figuração
marajoara, expressas na iconografia das tangas, destacando a forma de compor as
imagens por meio da justaposição e encaixe recursivo de diversas figuras aludindo a
seres específicos e partes de seus corpos, bem como o uso de princípios e recursos
gráficos que conferem capacidades agentivas aos grafismos.
No capítulo 5, apresentamos nove conjuntos de tangas, organizados com
base na forma de estruturar os padrões gráficos e também na recorrência de certos
motivos. Concluímos este capítulo, enfatizando a ampla dispersão destes grupos
pelos sítios e regiões da ilha de Marajó, o que traz implicações para se refletir sobre
as hipóteses atuais que atribuem estilos cerâmicos distintivos a cacicados
competitivos em que grupos de parentesco locais faziam o uso de temas
iconográficos semelhantes.
Nas considerações finais retomamos os conceitos ameríndios sobre
corporalidade, apresentados no capítulo 2, atentado que a forma de fabricação dos
corpos, bem como certos princípios materializados na iconografia das tangas
parecem mais expressar conceitos cosmológicos relacionados à transformabilidade
18
destes corpos, como o constante jogo entre diferentes perspectivas, característico
das cosmovisões multinaturalistas amazônicas e da ontologia da predação, do que
estratégias visando à legitimação do poder de hierarquias sociais internas, conforme
discutido no capítulo 1.
19
CAPÍTULO 1
A ICONOGRAFIA DOS CORPOS CERÂMICOS
21
dos corpos sobre os quais estão dispostos ou pensando em sua relação na
estruturação das imagens. No geral, os esforços são para identificar certos tipos de
“temas” classificados como antropomorfos, zoomorfos e, em alguns casos,
geométricos, como visto no estudo de Roosevelt (1991).
Como resultado do esforço de identificar ou isolar certos “temas” as imagens
acabavam por vezes “desmembradas” ou fragmentadas. Assim, por exemplo, se a
morfologia de uma urna funerária aludisse à forma humana, então a imagem era
considerada como uma figura humana, mesmo havendo figuras de animais no
conjunto. Ou seja, a classificação do “tema” era feita com base na figura que mais se
destacava no conjunto. O objetivo por trás disto era quantificar a frequência destes
“temas” (Roosevelt, op.cit.).
Em outros casos, por exemplo, a imagem só era analisada em parte, por que
o interesse estava voltado para certas figuras ou padrões, como por exemplo,
figuras serpentilíneas (Schaan, 2004).
Por trás deste desmembramento da imagem havia um esforço em
correlacionar certos tipos de figuras a um incremento de poder de certos grupos
sociais que se desenvolveram nas estruturas dos cacicados.
22
O primeiro estudo sistemático a respeito desta cerâmica destacava a sua
diversidade de formas e técnicas decorativas e dele surgiu a primeira tipologia
cerâmica para a fase marajoara (Evans e Meggers, op.cit.). O cerne da pesquisa de
Evans e Meggers, entretanto, estava menos focado na organização social e no
simbolismo da decoração cerâmica, e mais na questão adaptativa. Meggers e Evans
propuseram que as características vistas nas cerâmicas, elaboradas com
sofisticadas técnicas decorativas, como excisão, incisão, modelado e policromia, e
associadas a aterros artificiais, se assemelhariam mais a um padrão arqueológico do
tipo circum-caribenho do que de floresta tropical, o que parecia uma anomalia.
Diante disto, os autores desenvolveram uma tipologia cerâmica baseada na
frequência de técnicas decorativas que foi utilizada posteriormente para explicar a
sequência de desenvolvimento da fase marajoara. Tal tipologia era pautada em tipos
cerâmicos resultantes da combinação de certas técnicas decorativas em dadas
morfologias. Alguns tipos, implicitamente considerados mais antigos, eram
decorados com combinações de técnicas consideradas como mais complexas, já
que consumiam mais tempo em sua elaboração (Barreto, 2010; Meggers e Evans,
1957: 324-424;).
A seriação com fragmentos de vários sítios mostrou que os tipos cerâmicos
mais complexos eram mais abundantes em sítios mais antigos, diminuindo em
popularidade com o passar do tempo, enquanto os tipos que requereriam menos
tempo para sua execução aumentavam em popularidade. Deste modo, propuseram
que a fase marajoara seria o correlato de uma população exógena que inicialmente
apresentava um padrão de organização política do tipo cacicado, que em contato
com as limitações do ambiente, teria entrado em um rápido processo de decadência
cultural, levando a um padrão de floresta tropical.
Desde então, modelos mostrando um cenário oposto a este, e nos quais a
iconografia cerâmica possui papel de destaque, foram elaborados para explicar o
padrão visto no registro arqueológico da fase marajoara. Tais modelos destacam o
surgimento de cacicados a partir do desenvolvimento local e não como um fator de
migrações e influências externas. Neste sentido, explica-se o desenvolvimento
econômico como produto do trabalho humano, seja por meio do cultivo intensivo de
grãos, seja por meio da construção de barragens que viabilizassem a exploração
dos recursos aquáticos.
23
Aqui, de certo modo, a iconografia é vista como o reflexo de desenvolvimento
social, seja ao destacar o aumento de figuras humanas à medida que a sociedade
vai se desenvolvendo devido às práticas agrícolas que trazem consigo o aumento do
controle da mão de obra humana juntamente com justificativas ideológicas
(Roosevelt, 1987, 1988, 1991, 1992), seja relacionando figuras de serpentes aos
recursos ribeirinhos e à importância destes no desenvolvimento dos cacicados,
assim como o uso de um estilo que abrange estas figuras em justificativas
ideológicas para o acesso diferenciado aos recursos (Schaan, 2004, 2007a).
2
É importante destacar que Julian Steward organizou a coletânea Handbook of South American Indians onde
foram definidas categorias geográficas e evolutivas que visavam organizar as sociedades indígenas da América
do Sul com base na integração destas nas estruturas socioculturais. Editada entre 1946 e 1950, em seis
volumes, a obra agrupava os povos indígenas da região em quatro áreas culturais hierarquizadas em função da
complexidade: bandos marginais, tribos de floresta tropical, povos do Circum-Caribe e civilizações andinas.
Assim, os “bandos ou povos marginais” englobavam as populações caçadoras-coletoras nômades,
caracterizadas, sobretudo, pela falta de cultivo e pela simplicidade de sua tecnologia; já os povos de “floresta
tropical”, de acordo com este modelo, se caracterizariam pela horticultura e pela pesca, por aldeias
permanentes e pela falta de instituições políticas, com organização estabelecida por meio do parentesco, ou
seja, sem poder centralizado; os povos do Circum-Caribe (posteriormente denominada cacicado), por seu
turno, foram caracterizados com base em seu insipiente sistema de centralização política e religiosa, bem
como em seu sistema de classes, caracterizado, principalmente, pela existência de hierarquias sociais e pela
especialização técnica dos indíviduos. Por fim, os povos andinos foram distinguidos, sobretudo, com base em
seu complexo aparelho estatal, estratificação social, especialização e desenvolvimento de técnicas como a
metalurgia, densidade populacional e intensificação da produção agrícola e pastoril.
24
Na literatura, o termo foi utilizado primeiramente por Karlevo Oberg em 1955,
baseado nas áreas culturais definidas anteriormente por Steward (1946, 1947, 1948,
1949) no Handbook of South American Indians. Mas foi com Elman Service em 1962
que o termo passou a ser amplamente discutido, por meio da criação das tipologias
dos seguintes estágios evolutivos: bando, tribo, cacicado e Estado (Arcuri, 2007;
Carneiro, 2007; Fausto, 2005; Gomes, 2002).
O termo “cacicado” foi amplamente empregado ao redor do mundo para
diferentes sociedades, de modo a torná-lo genérico. Segundo Fausto (2005:40),
cacicado tornou-se uma categoria aberta, designando sociedades as mais diversas,
cuja única característica em comum é estar no “meio de” ou a “caminho de”.
Os cacicados poderiam ser reconhecidos nos vestígios arqueológicos por
meio de traços como arquitetura monumental, centros cerimoniais, e estruturas
funerárias, pois indicariam diferenças sociais, assim como por meio das diferenças
na hierarquia entre os assentamentos (Carneiro, 1981). Fausto (op.cit) aponta,
todavia, que devido à utilização generalizada do termo, as evidências no registro
arqueológico são mais amplas, como por exemplo:
26
parte de uma ordem natural do universo (Earle, 1990, 1991; Gillespie,1993; Neitzel,
1995; Pozorski e Pozorski, 2011).
Todo este debate estava centrado na eficácia do estilo e da arte neste
processo. As publicações destacavam que uma grande variedade de mensagens
pode ser transmitida pelos objetos. Deste modo, o estilo dos objetos informaria
quanto à associação de certo indivíduos tanto na sociedade como um todo, como
em determinados níveis na hierarquia social; estas mensagens também identificam
como os líderes comunicam e reafirmam seu poder político e prestígio, bem como a
força das suas relações com os deuses, ou seja, a arte seria usada nos cacicados
para distinguir a elite dominante e legitimá-la como um grupo à parte e destacar a
sua ligação direta com as forças sobrenaturais (Earle, op.cit; Neitzel, op.cit).
Esta abordagem a respeito do estilo dentro dos cacicados teve um papel
fundamental nas discussões sobre a iconografia da cerâmica marajoara.
Roosevelt (1987, 1988, 1991, 1992, 1993) sugeriu um modelo para explicar o
desenvolvimento social e cultural das sociedades amazônicas pré-coloniais em que
um dos principais aspectos sugeria o aumento de figuras antropomorfas nas
sociedades do baixo Amazonas (especialmente no Marajó e Santarém) à medida
que as sociedades se tornavam cada vez mais complexas, com uma economia cada
vez mais voltada para a agricultura.
A autora, ao mesmo tempo em que concorda com a interpretação de Meggers
e Evans (op.cit.) a respeito de uma cultura com um nível de desenvolvimento do tipo
circum-caribenho ou sub-andino, e que autora se refere como cacicado, questiona,
sobretudo, a origem da cultura marajoara e a sua duração, bem como a ideia de um
declínio em função das adversidades do ambiente. O cenário que propõe para
Marajó, no entanto, é o de grandes cacicados caracterizados por organização social
hierárquica, manufatura especializada da cerâmica, culto de ancestrais, cultivo
intensivo de grãos e exploração da fauna aquática e por assentamentos com
grandes contingentes populacionais (Roosevelt, 1987, 1991, 1992,1993).
Para se ter uma ideia da magnitude do cenário imaginado, só no teso Ilha dos
Bichos, a autora teria identificado cerca de 25 casas, e naquela escavada, foram
27
encontrados grandes fogões de cerâmica que sugeririam terem sido mantidos por
um longo período. Segundo as suas estimativas, cada uma destas 25 casas era
habitada por uma média de 40 pessoas, o que somado resultaria em uma população
total de cerca de mil habitantes para o teso (Roosevelt, 1991: 404). Entretanto, a
população total da ilha poderia ter sido ainda maior, considerando apenas os sítios
conhecidos, estimando entre 100 mil e 200 mil pessoas, mas que poderia ter
chegado a um milhão. Com isto, a densidade populacional teria sido bastante
substancial, com cerca de 5 a 10 pessoas por quilômetro quadrado, considerando-se
que o domínio marajoara abrange 20 mil quilômetros quadrados (Roosevelt, 1991:
38).
No entanto, apesar dos seus esforços para demonstrar que o cultivo intensivo
do milho foi o principal alimento na ilha, as suas escavações não mostraram
evidências diretas do seu cultivo em larga escala, mas sugeriram o cultivo intensivo
de outros grãos. Os ricos solos aluviais, sobretudo na porção centro-oriental da ilha,
de acordo com a autora, seriam mais adequados para o cultivo de grãos, o que
somado às ricas fontes permanentes de água forneceria uma ampla oferta de
recursos como peixes e frutas, tanto é que as análises osteológicas e de vestígios
de alimentos indicaram que a dieta era baseada no cultivo de sementes, coleta de
plantas e na pesca sazonal intensiva (Roosevelt, 1991:405). A principal fonte de
proteína animal seria o peixe, mas a base alimentar, de acordo com as patologias
dentárias, seria os cereais. Segundo a autora, análises isotópicas em ossos
demonstram o consumo de milho em um nível de apenas de 20 a 30%, mas outras
sementes e cereais nativos poderiam ter complementado a dieta (Roosevelt,
1991:76). Mais tarde ela propõe o arroz selvagem como o cereal mais utilizado pelas
sociedades marajoaras.
Esta mudança no modo de vida, segundo a autora, caracterizada pela
expansão populacional e desenvolvimento sócio-político, e que seguiu um processo
de dependência de cultivo de grãos, como por exemplo, o milho, em detrimento de
amidos de raízes tropicais e da fauna, seria correlata do desenvolvimento
econômico durante o período pré-histórico tardio na América do Norte e em muitas
partes do Velho Mundo ao longo do Neolítico (Roosevelt, 1991:76).
A partir disto, Roosevelt (op.cit.) sugere que a introdução de uma economia
agrícola levou a grandes mudanças e também teria se refletido na arte, mais
28
especificamente em certos padrões gráficos. Segundo a autora, as figuras animais,
predominantes na arte pré-colonial das sociedades precoces amazônicas e na arte
dos povos ameríndios amazônicos do presente, podem ser interpretadas como parte
de ritos de iniciação e de rituais de cura e de caça para influenciar os espíritos
animais que controlam a fartura humana e animal, já nas sociedades pré-coloniais
tardias, sociedades bem complexas e onde os objetivos de subsistência e
conceptualização do poder seriam diferentes dos vistos naquelas, as figuras
humanas são proeminentes, conforme visto na cerâmica marajoara (Roosevelt,
1991:89).
Esta imagem humana marajoara, de acordo com autora, é
predominantemente feminina e demonstraria o crescimento da importância das
mulheres. Diante do crescimento econômico e demográfico, as mulheres adquiriram
status devido aos seus papeis na plantação, coleta e processamento. Nisto, a
profusão de certos artefatos com representação de figuras femininas, como as
estatuetas cerâmicas e urnas funerárias,
estaria relacionada ao protagonismo da
mulher naquela sociedade, uma vez que, com
a agricultura, aumentavam as atividades de
roça, e de processamento e preparação de
alimentos (atividades femininas), aumentando
assim a sua participação na economia, em
contraposição a uma sociedade de economia
mais caçadora-coletora, onde o papel do
homem era mais preponderante (Roosevelt,
op.cit.).
Esta relação entre imagem
antropomorfa e organização social foi mais
desenvolvida em um estudo que correlaciona,
particularmente, a iconografia das estatuetas
cerâmicas de Marajó e Santarém ao papel Figura 1- Estatueta marajoara, marcada
por características antropomorfas
feminino no desenvolvimento dos cacicados femininas. Fonte: Roosevelt, 1993: 264.
na Amazônia (Roosevelt, 1988). Esta
iconografia antropomorfa é caracterizada principalmente pela presença de atributos
29
femininos, os quais podem ser brevemente descritos assim: a mulher é gorda, está
nua ou semi-nua e tem o corpo altamente ornamentado; frequentemente está
grávida ou está amamentando; está em posições eróticas, com as mãos sobre os
seios, quadris, abdômen, coxas ou genitália; a genitália frequentemente é
destacada e exibida; certas características sexuais secundárias como coxas e
nádegas são aumentadas; muitos exemplares são feitos em forma de pênis ereto;
são feitas de argila (Roosevelt, 1988).
Como se pode notar, a autora prioriza em sua análise as características
modeladas das figuras, e só faz referência aos grafismos para destacar a pintura
corporal das estatuetas, de modo que certos atributos da composição corporal,
também definidos pelos grafismos, como por exemplo, olhos, bocas e outros, são
ignorados.
Do mesmo modo, ao se voltar para as características das urnas funerárias, a
sua preocupação reside em demonstrar que se trata de figuras humanas,
especificamente femininas. Deste modo, as urnas do estilo Pacoval, por exemplo,
foram descritas como “figuras antropomorfas femininas”, em posição sentada, com
triângulo pubiano com pontos salpicados que aludem a pelos, com os olhos
delineados por escorpiões e serpente modeladas como braços (Roosevelt, 1991: 81-
82). A presença de urnas antropomorfas em contextos funerários, para a autora,
estaria relacionada a cultos mortuários de veneração às elites ancestrais, já que se
assemelhariam às múmias e seus acessórios que eram veneradas como objetos de
cultos nos cacicados etno-históricos (Roosevelt, 1991: 81; 1992: 80). No caso das
urnas Pacoval, notadamente femininas, os seus olhos em forma de escorpiões e
braços serpentelíneos poderiam ser vistos como símbolos de poder xamanísticos e
denotariam a proeminência das mulheres em papel de xamãs (Roosevelt, 1991:82).
De acordo com a autora (Roosevelt, 1987: 160; 1991: 76-97, 1992: 80), as
características desta iconografia na qual as figuras humanas predominam em
relação às figuras de animais podem ser sintetizadas do seguinte modo:
30
Em caso de imagens mostrando a interação entre humanos e animais,
como ocorre em urnas, vasos e estatuetas, as figuras humanas
compõem a imagem central ou maior, enquanto as figuras animais
ocorrem somente como pequenos detalhes ou apliques e apêndices,
como se vê nas urnas do estilo Pacoval, por exemplo.
31
conferida à caça, mesmo naquelas mais voltadas para a horticultura, a concepção
das relações com a natureza que privilegia as interações sociais e simbólicas com o
mundo animal, e onde o xamanismo se destaca, além da generalização de uma
ideologia da predação ontológica como regime de constituição das identidades
coletivas, inviabilizariam regimes ideológicos associados à agricultura e à
centralização política na região (Viveiros de Castro, 2002: 342-343).
De fato, diferentemente das iconografias das sociedades andinas que trazem
referências às plantas que ocupam um lugar central nas cosmovisões, como por
exemplo, na cerâmica moche, que mostra seres de cujos corpos saem mandioca e
milho (Golte, 2009: 228), ou mesmo nas estelas de pedra de Chavín de Huantar,
cujas figuras revelam a presença de mandioca, abóbora e outras plantas (Urton,
2008), as iconografias das cerâmicas amazônicas são marcadas pela presença de
figuras híbridas de animais e de humanos, especificamente na iconografia da
cerâmica marajoara, os estudos iconográficos (Barreto, 2009; Schaan, 1996, 1997)
não demonstram figurações de plantas que indicassem a importância das relações
com o mundo vegetal.
32
controle ao acesso dos recursos, o que teria sido justificado por meio de um sistema
ritualístico-religioso de legitimação estruturado no parentesco com os ancestrais
míticos (Schaan, 2004, 2007, 2009).
Com o surgimento dos cacicados, ou sociedades regionais, segundo a autora
(Schaan, 2007:55), na Amazônia, a arte teria sofrido drásticas mudanças como
consequência de processos econômicos e políticos. Com o desenvolvimento destas
sociedades com estruturas políticas mais estáveis a arte teria assumido um papel
crítico na reprodução social, e poderia ter sido usada pelas novas elites como
maneira de legitimar o seu poder, como
veículo privilegiado para a expansão e
consolidação das novas ideias.
Isto seria particularmente
notável na iconografia das urnas
funerárias marajoara. As urnas
escavadas no teso Camutins e no teso
Belém, por exemplo, mostraram
diferenças quanto à padronização da
forma e iconografia. No teso Camutins,
haveria uma maior variabilidade em
relação à forma, técnica de decoração
e iconografia, enquanto no teso Belém
haveria uma maior padronização
caracterizada por urnas globulares
decoradas com padrões vermelhos ou
vermelhos e pretos pintados sobre o
Figura 2- Estilo de urnas funerárias escavadas no
engobo branco que aludiriam a
teso Belém por Schaan, e cujos grafismos
aludiriam a serpentes. Fonte: Schaan, 2007: 53 serpentes. A homogeneidade na
decoração, forma e iconografia das
urnas do teso Belém indicaria uma uniformidade na identidade social, sugerindo que
o casamento no local era restrito a pessoas da mesma linhagem. No caso das urnas
do Monte Camuntins, a maior variabilidade poderia indicar alianças matrimoniais
entre cônjuges de diferentes grupos de parentesco das elites (Schaan, op.cit.).
33
Tais variações do estilo e iconografia destas urnas se relacionariam a uma
variedade de elementos emblemáticos de certos grupos sociais, como por exemplo,
clãs ou linhagens. Por esta razão, os sepultamentos dos indivíduos nelas seria uma
prática reservada aos membros da elite, isto é, aos indivíduos pertencentes a grupos
de descendência ou a linhagens com maior prestígio, e esta é a razão pela qual os
enterramentos ocorreriam em grupos, formando densas estruturas funerárias. O
sepultamento secundário de indivíduos nestas áreas sagradas destacaria o seu
pertencimento a um grupo ancestral, demonstrando e reafirmando os laços
genealógicos em cerimônias funerárias, o que promoveria maior status ao morto e à
nova geração (Schaan, 2004).
Segundo Shaan (op.cit.), embora estas urnas apresentem estilos que,
aparentemente, eram usados ativamente por entidades sociais, em sua iconografia
há uma proeminênicia de serpentes e seres aquáticos em relação a outros seres.
Tais serpentes aparecem sempre, seja de maneira mais realista, seja de maneira
mais estilizada (Schaan, 2004: 360), como por exemplo, na forma de certos padrões
repetitivos que foram interpretados como serpentes ou padrões que aludem à pele
da serpente, e que podem ser vistos em uma gama de objetos, tais como as tangas
(Schaan, 2001). Estes padrões são compostos por uma série de elementos como
triângulos, escalonados, volutas, etc, e seriam vistos também em representações
mais “naturalistas” de serpentes na iconografia marajoara.
Estes padrões de banda lembrariam aos membros do grupo sobre conceitos
cosmológicos importantes sobre o mito da cobra, que provavelmente era usado para
justificar a hierarquia social e acesso diferenciado aos recursos (Schaan, 2004:360-
361). Diante disto, a proeminência da figura da serpente na iconografia marajoara se
justificaria devido ao papel que os recursos aquáticos teriam desempenhando no
desenvolvimento dos cacicados marajoara como a principal fonte de subsistência
(Schaan, 2007).
Esta discussão impactou diretamente a forma como a arte, o estilo, e a
iconografia foram tratados nos estudos a respeito das sociedades pré-coloniais da
Amazônia, principalmente, naquelas que mostravam evidências de complexidade
social, como aquelas da fase marajoara e Santarém. Mais especificamente em
relação à cerâmica marajoara, como vimos, o estilo e iconografia foram entendidos
dentro de um contexto em que a proeminência de certas figuras estava relacionada
34
a formas específicas de legitimação de poder pela elite. A arte, portanto, foi
correlacionada a mudanças nas estruturas sociais, a um processo de transformação
de uma sociedade igualitária em uma sociedade hierárquica.
36
Diante deste cenário, o papel do estilo enquanto replicador de ideologias 3
pode ser reconhecido, mas pensado menos como parte de uma estratégia de
legitimação de poder político de grupos sociais, e mais relacionado a conceitos
subjacentes à relação entre humanos e animais, reprodução e transformação
corporal, o que é característico das ontologias baseadas na predação e na
transubstanciação entre seres (Barreto, 2009, 2014; Oliveira, 2016).
Portanto, uma abordagem da arte das sociedades pré-coloniais, sobretudo,
daquelas que sugerem terem tido um perfil sociopolítico complexo, à luz dos
conhecimentos a respeito das manifestações artísticas e das ontologias ameríndias
pode aumentar a nossa compreensão sobre estas sociedades, sobretudo, em
relação às suas visões de mundo expressas nas iconografias, concepções que estas
sociedades fazem de si mesmas, as suas concepções do que é ser humano, do que
é um corpo, e o que a imagem de um corpo pode evocar, representar e fazer, em
contextos amazônicos.
3
Para Shanks e Tilley (1992) a ideologia é um aspecto tangente à uma relação de desigualdade e que esconde
as contradições existentes nos interesses de um grupo dominante. Com isto, as suas principais características
são: representar um universal que é parcial; representar um coerente que é contraditório; representar um
permanente que está em mudança; representar um natural e necessário que, na verdade, é cultural e
contingente (Shanks e Tilley, 1992: 130). Nas sociedades complexas, o estilo tem sido reconhecido enquanto
uma das principais ferramentas para replicação da ideologia, sendo um aspecto central na definição da
hierarquia e do exercício do poder. Deste modo, a iconografia expressa na cultura material é frequentemente
utilizada pelas elites para expressar o seu status social (Hegmon, 1992: 528-529) bem como para vinculá-las
aos entes sobrenaturais, como ancestrais e seres míticos.
37
Schaan (1996, 2001, 2003, 2004), Cristiana Barreto (2004), André Prous e seus
colaboradores (Prous e Lima, 2011; Rodrigues et al, 2011; Prous, 2013;) além de um
amplo estudo não publicado realizado por Heloísa Alberto Torres4. Estes estudos
têm sido norteados por duas perguntas, a dizer: para que as tangas eram usadas e
qual era o significado dos seus grafismos?
As tangas marajoara chamam a atenção por terem sido fabricadas de argila,
diferentemente do que ocorre entre os povos indígenas atuais que fabricam as suas
vestimentas, entre elas as tangas, de tecido e fibras vegetais. Há diferenças no
tratamento de sua superfície: um tipo de tanga possui a sua superfície ornada com
grafismos pintados em vermelho ou marrom sobre um engobo de cor clara que pode
variar entre o branco, o creme e o alaranjado, e outro tipo apenas pintado de
vermelho ou bege/ alaranjado5. Elas possuem o formato triangular convexo e com
orifícios em suas extremidades por onde eram passados cordões para prendê-las ao
corpo, e cujo atrito produziu marcas de desgaste. Vários autores correlacionam a
grande variação em relação a seu tamanho e a sua curvatura à anatomia do corpo e
à idade de quem as usava (Barreto, op.cit; Meggers e Evans, op.cit.; Palmatary,
op.cit.; Schaan, op.cit.)
Figura 4. Tipos de tangas. a: Tanga coberta com engobo vermelho. b, c. Tangas com grafismos,
cobertas com engobo claro e grafismos em tonalidade de vermelho. a, b. Coleção ICBS/MAE-USP,
Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, São Paulo . c. Museu Nacional, Rio de Janeiro.
4
Consultamos os estudos de Heloísa Alberto Torres no setor de documentação do Museu Nacional,
no Rio de Janeiro.
5
No capítulo 3, com base em nossa análise, discutiremos mais detalhadamente a respeito das cores
empregadas na confecção dos grafismos e do engobo nas tangas.
38
Mordini, 1929; Netto, 1985; Palmatary, 1950; Prous e Lima, op.cit.). Apesar disto,
não há dados suficientes que sustentem esta relação.
Meggers e Evans (op.cit.) escavaram pelo menos 3 sepultamentos com
tangas associadas nos quais os ossos dos indivíduos foram examinados. Em uma
urna escavada no teso Guajará havia os ossos de um individuo do sexo feminino e
outro do sexo masculino com uma tanga vermelha associada provavelmente ao
homem (Meggers e Evans, 1957:273) e em outro sepultamento no mesmo teso foi
escavada uma tanga alaranjada associada a um indivíduo cujo sexo não foi
identificado; em um sepultamento escavado no teso Camutins uma tanga com
grafismos foi escavada dentro de uma urna associada a ossos que foram
identificados como do sexo feminino. Schaan (2004) escavou 24 sepultamentos em
urnas funerárias no teso Belém, do conjunto Os Camutins, em seis deles havia
tangas associadas. No entanto, nenhum destes seis apresentou vestígios ósseos
bem conservados para que o sexo pudesse ser determinado.
Além disto, José Seixas Lourenço, professor da Universidade Federal do
Pará, escavou em 1977, no teso dos Bichos, um sepultamento em uma urna do
estilo Pacoval com o crânio de um indivíduo do sexo masculino 6 associado a uma
estatueta e uma tanga com grafismos (Roosevelt, 1991:393). Do mesmo modo, o
Museu Paraense Emílio Goeldi recebeu uma doação de um crânio masculino 7 que
foi coletado em 1972 no teso Camutins dentro de uma urna Joanes Pintado,
associado também a uma tanga pintada.
Uma vez que as análises osteológicas dos indivíduos sepultados com tangas
são insuficientes para se afirmar que elas tenham sido usadas por homens ou
mulheres, tem se recorrido a analogias etnográficas para explicar (Evans e Meggers,
op.cit.; Schaan, 2003). Usa-se frequentemente como exemplo os tapa-sexos
utilizados por populações indígenas da Amazônia, como os Chama, grupo Pano do
Rio Ucayali, cujo uso de um tapa-sexo cerâmico por moças na puberdade durante
um ritual específico foi registrado etnograficamente. Neste ritual, meninas púberes
eram reunidas durante a lua cheia e na manhã seguinte eram pintadas, entorpecidas
com bebida e cada uma se sentava em um banco onde uma mulher mais velha
6
Este crânio foi analisado por Roosevelt (1991) e pela bioarqueóloga Cláudia Cunha (comunicação
pessoal) que comprovaram se tratar de um indivíduo do sexo masculino.
7
Segundo a bioarqueóloga Cláudia Cunha (comunicação pessoal), quem analisou o crânio, trata-se
de um indivíduo do sexo masculino.
39
cortava e enterrava o clitóris e lábios vaginais. Após isto eram defloradas com um
pênis de argila e, após isto, eram isoladas em sua cabana por um mês, vestindo um
tapa-sexo de cerâmica de forma oval (Steward e Métraux, 1948:585). Esta analogia
levava em consideração o fato de ambos serem feitos de cerâmicas. Entretanto, não
há maiores descrições destes tapa-sexos que relatem as suas características e,
apesar destas analogias, não são conhecidos objetos semelhantes em cerâmica em
nenhuma outra cultura, etnográfica ou arqueológica, das terras baixas da América
do Sul, e, portanto isto parece ser uma prática específica de Marajó.
Com as discussões sobre os cacicados em Marajó tem sido proposta por
alguns autores (Roosevelt, 1991; Schaaan, op.cit.) uma divisão entre elite e pessoas
comuns. As estruturas habitacionais, uma cerâmica utilitária, mais simples, além de
sepultamentos e cerâmica decorada, encontrados nos tesos, demonstrariam que
uma elite vivia e sepultava os seus mortos ali como forma de se manter conectada
aos seus ancestrais e, deste modo, justificar o seu poder. Diante disto, toda a
cerâmica decorada seria de uso exclusivo desta elite.
Diante disto, as tangas seriam itens destinados à elite, mais especificamente
às mulheres, e as diferenças observadas em relação à sua decoração foram
associadas a diferenças de idade entre as mulheres (Schaan, 2003, 2004). Schaan
(2003) sustenta que as tangas monocromáticas possuem uma curvatura maior do
que a daquelas com grafismos, e seriam também mais frequentes em sepultamentos
em grandes urnas funerárias profusamente decoradas, mostrando que poderiam ter
sido usadas por mulheres mais velhas.
As tangas com grafismos que, segundo a autora, possuem uma curvatura
menor, teriam sido usadas por mulheres mais jovens, cuja identidade e status não
haviam ainda sidos firmados, durante rituais de iniciação. Deste modo, haveria toda
uma iconografia nas tangas relacionada à mulher, ao papel feminino na sociedade.
Os seus diferentes campos gráficos trariam informes abrangentes sobre gênero,
idade, identidades individuais e sobre o papel da mulher (Schaan, op.cit.)
Um dos campos gráficos amplamente discutidos pela autora é aquele que em
nossa pesquisa chamaremos de banda 2, e que se encontra melhor descrito no
capítulo 4. O padrão gráfico deste campo, segundo a autora, veicula motivos
identificados como “pele da serpente” e que recobrem o corpo de serpentes
figuradas mais naturalisticamente na cerâmica marajoara, estariam também
40
presentes também em uma ampla gama de objetos. A associação de grafismos
relacionados a serpentes em objetos femininos, como as tangas, destacaria a
importância do papel das mulheres. Apoiando-se nas mitologias dos indígenas
amazônicos onde a cobra é considerada um ser feminino e está relacionada à
fertilidade, a autora pondera que a recorrente associação de cobras em itens de uso
feminino estaria relacionada a uma importância do gênero feminino, mais
especificamente das mulheres da elite, para o equilíbrio das relações entre
sociedade humana e ciclo de vida dos animais, considerando-se que na mitologia
marajoara a serpente estivesse relacionada à procriação dos peixes (Schaan,
op.cit.).
Entretanto, não há consenso quanto às figurações da “pele da serpente” nas
tangas. Autores como Prous e Lima (2011: 259) discordam e a própria Schaan
(2009: 274) registra a existência de jacarés e escorpiões neste padrão. Aliás, as
figuras dispostas graficamente nas tangas, assim como a iconografia marajoara no
geral, têm sido relativamente debatidas. Hartt (1876: 23) sugeriu que a forma como
os desenhos são dispostos em certos campos das tangas era uma convenção para
representar a “cara” humana. Para Torres (1940: XIII) em certas tangas a imagem
figurada é a de uma face estilizada de jaguar. Em um estudo mais amplo das tangas
Prous e Lima (2011:240) sugerem figurações de “caras” humanas ou animais,
algumas com partes anatômicas compostas por cobras ou sauros.
Carvalho (1976) percebeu que elementos zoomorfos estão amplamente
relacionados à composição da figura humana na iconografia da cerâmica marajoara.
Em um estudo sobre as figurações de jacarés na cerâmica marajoara a autora
demonstrou que muitas figuras que aparecem na composição das imagens são
estilizações de figuras mais icônicas daquele réptil. Estas figuras compõe o corpo de
várias urnas, estruturando braços, pernas e outras partes anatômicas. Segundo a
autora, é muito comum na iconografia desta cerâmica a formação de faces
estilizadas a partir do desdobramento da figura do jacaré, onde, por exemplo, as
suas pernas em forma de volutas podem formar os lados de duas faces humanas
opostas.
Deste modo, parece-nos claro que não se trata de diferenciar se as figuras
vistas na iconografia marajoara são de humanos ou são de animais, mas sim de
41
compreender o processo de formação destas imagens, de compreender a sua
sintaxe, o modo como funcionavam em seus contextos.
Todos os autores que trataram da iconografia marajoara, mesmo aqueles que
voltaram as suas atenções para um ou outro tipo de figura, reconhecem o caráter
compósito das imagens e dos corpos figurados. Neste sentido, estas imagens e
corpos não estariam expressando mais uma noção de corporalidade que recai
especialmente na transformabilidade dos corpos?
Voltando às tangas, propomos deslocar a tônica dada a estes objetos
enquanto itens de uma elite para pensá-los como objetos de composição,
transformação e fabricação corporal. Além das tangas uma variedade de itens
relacionada à composição e transformação do corpo tem sido registrada nos
contextos da fase marajoara, como alargadores cerâmicos de orelhas, labretes de
nefrita e cerâmica, colares de contas cerâmicas e de pedras, pingentes em cerâmica
e nefrita, pelotas de pigmentos e pequenos potes com pigmento, o que demonstra
uma preocupação com a produção e fabricação corporal naquela sociedade.
42
CAPÍTULO 2.
AGÊNCIA E TRANSFORMAÇÃO NA ARTE
43
Esforços deste tipo vão além das fronteiras da Amazônia brasileira, como por
exemplo, o estudo de Reichell-Dolmatof (1990) sobre os objetos do Museu do Ouro,
em Bogotá, Colômbia. É conhecido que estes objetos carecem de informação
acerca de sua procedência e de dados sobre as condições em que foram
encontrados. Dadas estas lacunas, Reichel-Dolmatoff tenta explorar o potencial
destes objetos à luz dos conhecimentos etnológicos sobre as culturas históricas e
contemporâneas. Neste sentido, o autor sugere que as representações figurativas
da ourivesaria pré-colombiana formam um complexo de arte xamânica relacionado
ao tema da transformação, o que pode ser compreendido à luz de um complexo de
ideias relacionadas ao xamanismo.
Este esforço em se explorar coleções arqueológicas à luz de conceitos e
ideias da etnologia pode parecer inadequado por se incorrer nas falácias da analogia
etnográfica, projetando conhecimentos sobre as cosmologias do presente para
interpretar as do passado, contudo, considerando-se algumas esferas resistentes da
relação entre imagem e identidade nas sociedades ameríndias em geral, o exercício
pode ser bastante frutífero.
Conforme Barreto (2009:29-30) sugere para o contexto amazônico, o estudo
de certos temas possibilita explorar teorias mais generalizantes que podem servir de
fundo comum para todas as sociedades amazônicas e ainda servir como uma
medida para explicar a variabilidade das diferentes sociedades registradas
etnograficamente e, esta explanação da variabilidade pode ser projetada para a
análise de certas categorias de objetos arqueológicos. O que é importante destacar
aqui é que não se trata de lançar mão da analogia etnográfica para se interpretarem
objetos e contextos arqueológicos, mas é, portanto, conforme aponta Barreto
(op.cit.), fazer uso das lições da Etnologia ameríndia, isto é, aproveitar todo o
potencial explicativo do corpo de teorias e generalizações desenvolvidas a partir da
observação das sociedades ameríndias para a organização e análise de um
conjunto de objetos arqueológicos.
Estas lições da Etnologia ameríndia, na Arqueologia, têm sido aproveitadas
principalmente por Barreto (2009), por Gomes (2014, 2016) e mais recentemente por
Oliveira (2016). É importante salientar que neste caso também se tem tentando
dialogar com a antropologia da arte e, sobretudo, com a antropologia da arte
44
desenvolvida sobre os povos amazônicos. No presente trabalho o corpo teórico
adotado partirá destas perspectivas mencionadas.
45
Osborne, 2007; Stewart, 2007; Wengrow, 2007; Winter, 2007). Para a Arqueologia,
esta proposta pode ser útil porque possibilita entender o que e como os objetos
mobilizam socialmente. Uma proposta analítica que entende os objetos como
agentes sociais está em consonância com a ideia do papel ativo da cultura material
nas relações sociais, de modo que os artefatos formam um meio poderoso para agir
e reestruturar as práticas sociais, conforme proposto por Shanks e Tilley (1992).
A introdução de uma abordagem que destaca objetos como agentes sociais,
na Arqueologia, foi amplamente favorecida pela crítica pós-moderna que enfatizava
a agência dos indivíduos, como forma de se assumir a historicidade, em detrimento
de processos comuns a toda humanidade (Hodder, 1985; Shanks, 2008). Os
debates iniciados nos anos 80 destacavam a agência dos indivíduos como uma
maneira de se afastar dos conceitos neo-evolucionistas e dos processos
transculturais caros às abordagens processuais.
A antropologia da arte, na tentativa de lidar com as artes das sociedades não
ocidentais, por muito tempo se debruçou sobre o problema conceitual da categoria
“arte” visando um conceito que fosse útil em categorias antropológicas de análise
(Morphy, 1994; Ingold, 1994). Nesta batalha conceitual, as artes não ocidentais
tiveram de ser posicionadas em relação a três aspectos diferentes da definição
europeia de arte: uma definição institucional, uma definição em termos de atributos
dos objetos e a definição em termos da intenção (Morphy,op.cit.).
Os embates relacionados ao encaixe dos objetos de culturas não ocidentais
nestas categorias de arte e a busca por categorias que possibilitassem análises
antropológicas tiveram diversos desdobramentos. É neste contexto que o debate
relacionado ao uso da estética como uma categoria de análise tomou corpo,
sobretudo, no que diz respeito ao uso desta enquanto uma categoria transcultural8.
Gell (1998: 2-3) questionando a aplicabilidade transcultural da estética afirma
que a elucidação dos sistemas estéticos não-ocidentais não constitui uma
“antropologia” da arte. A “antropologia da arte” deve visar o contexto social da
produção, circulação e recepção da arte, e não a avaliação estética de obras de arte
específicas. Esta disciplina não pode se deter no estudo dos princípios estéticos de
8
Este assunto foi bem debatido no capítulo Aesthetics is a cross-cultural category do livro Key debates in
anthropology organizado por Tim Ingold. Howard Morphy, Jeremy Coote, Marcus Banks se mostram a favor da
aplicabilidade transcultural da estética, enquanto Joanna Overing e Peter Gow se opõem.
46
uma ou outra cultura, mas sim na mobilização de princípios estéticos no decorrer da
interação social.
Neste sentido, propõe que certos objetos possuem características que levam
ao encantamento e à sedução, chamadas de tecnologias de encantamento (Gell,
1992). De acordo com isto, os objetos de arte demonstram certo nível de excelência
alcançado tecnicamente, na medida em que esta excelência diz respeito não
simplesmente às suas características como objetos, mas às suas características
enquanto objetos que são produtos de técnicas. Neste sentido, a arte é um sistema
técnico que produz consequências sociais decorrentes da produção desses objetos.
Este sistema técnico, ou tecnologia do encantamento, é essencial à reprodução e à
transformação de valores sociais por ser um sistema de conhecimento de técnicas
de produção eficazes, que age dentro de uma rede social de intenções e
necessidades coletivas.
A eficácia dos objetos de arte é o resultado do encantamento da tecnologia,
ou seja, os processos técnicos são vistos como mágicos, de modo que os produtos
desses processos técnicos pareçam portadores de poder mágico. Deste modo, o
objeto não é ofuscante como objeto físico, mas como uma amostra da vocação
artística tornada visível mediante magia. É o modo como os objetos são elaborados
que é a fonte do poder que eles exercem, uma vez que se sugere que foram
produzidos por meios mágicos, ou seja, eles personificam os processos técnicos
pelos quais foram produzidos, e aí reside o seu poder de fascinação (ibidem).
A partir disto, este autor (Gell, 1998:7-8) postula uma “teoria da arte”
antropológica partindo da premissa que as teorias antropológicas devem ser teorias
sobre as relações sociais. Desta maneira, a “antropologia da arte” deve ser o estudo
teórico das “relações sociais na vizinhança dos objetos que atuam como mediadores
da agência social”, e para que a antropologia da arte seja antropológica, ela tem que
partir da ideia de que os objetos de arte equivalem a pessoas, ou, mais
precisamente, a agentes sociais.
A proposição que considera os objetos de arte como pessoas tem como base
a economia do dom de Mauss (2003), uma vez que as prestações ou “dons” são
tratados na teoria da troca de Mauss como extensões da pessoa. O conceito de
pessoa distribuída formulado por (Gell, op.cit.) tem como base o conceito de pessoa
47
fractal (fractal person) de Wagner (1991) e as ideias de Strathern (2006; 2013) que
versam sobre o problema da recursividade (partible person) na Melanésia.
Para Gell (op.cit.), os objetos devem ser compreendidos enquanto índices em
uma cadeia de relações sociais onde ocupam o lugar de agentes ou pacientes,
dependendo de sua posição nesta cadeia, ou seja, é a proximidade que estabelece
a possibilidade de que um objeto se estabeleça como agente. O conceito de índice,
originário da semiótica de Peirce (2010), é importante por que possibilita fugir do
significado de uma obra de arte ou daquilo que ela pretende comunicar, se
preocupando ao invés, com as relações do objeto e qual a sua capacidade de agir
sobre o mundo e transformá-lo. 9
Ainda segundo o autor, o índice material (a “coisa” física, visível) permite a
abdução da agência, um tipo de operação cognitiva que possibilita uma causal
inference of some kind, or an inference about the intentions or capabilities of another
person (Gell, 1998:13). A utilidade deste conceito, para Gell, está no fato de que ele
designa uma classe de inferências semióticas, que são, por definição, totalmente
distintas das inferências semióticas que usamos no entendimento da linguagem,
cuja compreensão literal é uma questão de observar convenções semióticas (Gell,
1998:14). Assim, a abdução da agência possibilitaria abrir mão de significado,
interpretação e representação. Entretanto, conforme Lagrou (2007: 56) pontua, os
índices de arte de Gell só se tornam agentes, porque há algum tipo de sentido e
contexto de interpretação que possibilitam os artefatos ou imagens a agirem.
Deste modo, Gell não abandona totalmente a dependência do significado uma
vez que o caráter abdutivo da agência possibilita algumas inferências interpretativas
ao receptor. Nisto, não há a exclusão dos conceitos de Peirce de índice ou ícone,
mas somente do conceito de símbolo, trabalhando com os conceitos de índice e
ícone de forma diferente. Conforme aponta Lagrou (2007:14-15), não é preciso
distinguir índice de ícone na relação pragmática e interacionista do seu modelo. Pois
todo ícone já é na verdade um índice: pois a imagem age sobre a pessoa, partilha
nas qualidades daquilo que é imagem (Lagrou, op.cit.).
9
Peirce em sua teoria geral sobre a representação dividiu os signos em ícone, índice e símbolo. O ícone é um
signo que possui algum tipo de semelhança perceptiva com aquilo que representa, como por exemplo, a
fotografia de uma pessoa. Já o índice indica a presença do que ele representa baseado em evidências de
causalidade ou de proximidade, como por exemplo, o cata-vento que indica o vento, ou a fumaça que indica o
fogo. O termo "símbolo" é reservado apenas para aquelas ocasiões em que a relação entre o significante e o
significado é puramente arbitrária, podendo se referir ao representado por associação de ideias produzidas por
uma convenção.
48
Por trás do sistema de ação de Gell - formado a partir dos conceitos da
semiótica peirciana - está o problema da representação, ou melhor, da
presentificação10. A presença, para Gell, é fundamental para que ocorra saliência
cognitiva. A presentificação se concentra no estatuto de pessoa que os objetos de
arte possuem, logo, se eles são pessoas, eles não representam, mas agem
(Demarchi, 2009:187).
É importante destacar que este problema da representação é um tema que
tem chamado a atenção dentro da Etnologia há bastante tempo. A noção de
sociedades de máscaras de Levi-Strauss (2008 [1958]), por exemplo, recai sobre
sociedades onde a arte não é uma arte de representação, mas sim de apresentação.
O exemplo paradigmático disto é aquele dado pelo autor sobre a pintura facial
Kadiwéu, onde o desenho da pintura facial não representa o rosto, mas é o rosto
propriamente dito, pois no pensamento daquele povo a pintura facial é o rosto, pois
é ela que confere o ser social e a dignidade humana.
O problema da representação também está por trás das características que
definem a ontologia dos espíritos, como apontado por Viveiros de castro (2006).
Entre os ameríndios, por exemplo, a imagem dos espíritos é fluida, eles nunca se
deixam capturar, mas sim geram mais e mais imagens de si, pois não há uma
imagem verdadeira ou única deles. Esta característica é bastante interessante
porque aponta para a natureza indéxica dos espíritos e para a sua capacidade de se
distribuir em várias peles. Conforme aponta Viveiros de Castro
10
Segundo Demarchi (2009: 186) caráter não representativo das imagens e obras de arte e sua ação cognitiva.
49
“he does visibly represent China on official occasions. He does not look like
China, but in London, China looks like him (Gell,1998: 98).
50
Uma abordagem que considera a relação entre pessoa e objetos, sob a ótica
da Etnologia ameríndia, deve considerar que refletir sobre a arte entre os ameríndios
equivale a pensar sobre a pessoa e sobre o corpo, já que objetos, pinturas e corpos
se relacionam no mundo ameríndio, onde a pintura é feita para aderir aos corpos e
os objetos são feitos para completar a ação ritual (Lagrou, 2007: 50). Para Miller
(2013) uma teoria amazônica sobre os objetos deve ser uma teoria sobre a pessoa.
Em sua pesquisa junto aos Mamaindê11 esta autora verificou que os objetos são
concebidos como pessoas ou como componentes das pessoas, já que relacionam
certas pessoas com outras espécies de sujeitos.
A etnografia atenta ao fato de que nas ontologias ameríndias amazônicas os
objetos possuem um ciclo similar ao de todos os seres vivos. Eles são trazidos à
vida por meio do trabalho artesanal ou por meio de procedimentos rituais, atuam
ativamente em uma miríade de contextos econômicos, sociais e cerimoniais e,
quando se desgastam ou não podem mais cumprir as funções para as quais foram
feitos, são deixados para morrer ou são mortos ritualmente (Lagrou, 2007; Santos
Granero, 2012).
A Etnologia, mais recentemente, tem sugerido que os objetos devem ser
entendidos como seres dotados de agência, subjetividade, intencionalidade ou
certos atributos de pessoalidade e possuidores de uma vida social (Santos- Granero,
2012; Lagrou, 2007). Por meio desta reflexão tem sido percebido que, entre os
ameríndios, nem todos os objetos são subjetivos da mesma forma, alguns possuem
almas fortes e autônomas, enquanto outros possuem somente uma fraca
subjetividade, características estas que dependem da quantidade e qualidade da
substância anímica que possuem (Santos Granero, 2012: 30) e mesmo das suas
propriedades sensíveis como brilho, dureza, cor, odor ou emissão de sons (Neto,
2008b). Isto está de acordo com as teorias indígenas sobre a personitude que
concebem pessoas como seres que possuem alma ou vitalidade, o que é crítico
para que tenham consciência, além de habilidade de pensar. Os objetos que não
possuem estes atributos dependem de algum tipo de intervenção humana para que
possam ser subjetivados ou tornarem-se pessoas (Santos Granero, op.cit.).
A sugestão de que a subjetivação dos objetos que não possuem almas
autônomas depende sempre de outro sujeito, coincide com a sugestão de Gell
11
Grupo que habita o limite norte do vale do rio Guaporé, de língua Nambicuara, e que conta hoje com cerca
de 190 pessoas, a maioria vivendo em uma única aldeia situada entre os rios Pardo e Cabixi (Miller, 2013).
51
(op.cit.) de que os objetos só podem ser entendidos como agentes ou pacientes a
partir de uma cadeia de relações sociais. Segundo Santos Granero (2012: 31), a
subjetivação destes objetos poderia acontecer através do contato íntimo com os
seus donos através da difusão gradual das suas substâncias anímicas para os seus
pertences mais pessoais. A subjetivação por meio do processo de animização é
considerada uma forma de corporificar (embody) os objetos para que se tornem uma
extensão dos corpos de seus proprietários, o que seria uma noção amplamente
difundida na Amazônia indígena (Santos Granero, Op.cit.).
Nas concepções ameríndias os limites de uma pessoa ultrapassam a esfera
corporal, já que com o passar do tempo os objetos pessoais se tornam parte de seu
corpo. Entre os Mamaindê, por exemplo, os adornos corporais são associados ao
espírito, e assim, são considerados parte da pessoa, a tal ponto que devem ser
zelados para que não se percam ou sejam danificados, caso contrário, o dono pode
ficar seriamente doente, ou até mesmo morrer. É por esta razão que, durante as
práticas xamanísticas que visam reunir o espírito ao corpo, o espírito deve ser
adornado com vários fios de contas negras (Miller, 2013).
Outros objetos, durante a sua produção incorporam certas dimensões
subjetivas dos seus fazedores, emulando em sua forma material intencionalidades
imateriais, podendo ser comparados a filhos, pois são produto da entrada de
substâncias e sentimentos de seus produtores/ genitores, constituindo assim, um
tipo de extensão dos seus corpos. Lagrou (2013), por exemplo, sugere que os
desenhos e objetos Kaxinawa são uma memória cristalizada das pessoas que os
confeccionaram e também uma rede que conecta os indivíduos a outros humanos e
não humanos. Segundo Santos Granero (op.cit) isto envolve um processo duplo de
objetivação/subjetivação, pois ao transformar a matéria prima por meio de seus
sentimentos, destreza e intencionalidade, o fabricante cria um objeto que é ao
mesmo tempo um sujeito.
Hill (2013) chama de “materialização do oculto” um processo de objetivação
de subjetividades sobrenaturais. Entre os povos amazônicos a fabricação de objetos
rituais é o meio de materializar subjetividades sobrenaturais, o que é perceptível,
sobretudo, nos contextos xamanísticos onde certas relações subjetivas, como medo
da morte, doenças, conflitos, etc, são transformadas em objetos. Normalmente a
estes objetos é atribuída uma grande agência e poderes extraordinários, como a
52
autotransformação (Santos Granero, 2013: 36-37). Entre os Waujá, flautas,
máscaras, tambores, etc, fabricados por especialistas rituais para fins curativos,
corporificam seres patogênicos chamados de apapaatais. Estes objetos subjetivados
são produzidos com materiais cujas características, como dureza e durabilidade,
resultam em graus diferentes de poder e agentividade (Neto, 2013).
Da mesma forma que os objetos podem atuar como pessoas, a sua vida
também segue o mesmo ritmo da vida de uma pessoa. Assim, na Amazônia, como
as pessoas e outros seres vivos, o objeto possui o seu próprio processo de vida, que
acaba com o envelhecimento e destruição. A velocidade deste processo pode variar,
contudo, um objeto não sobreviverá à morte do seu dono, já que quando o corpo se
desintegra e a alma tem de partir, tudo o que lembra o seu dono e que pode
provocar o seu apego precisa se dissolver ou ser destruído (Lagrou, 2007:53).
Conforme aponta Lagrou (2007: 53), isto contrasta com o que é visto na
Etnografia da Melanésia, onde os objetos, como os braceletes e colares do Kula,
sobrevivem à morte biológica dos seus donos de modo a manter viva a sua
lembrança, se tornando, assim, uma extensão do seu corpo. O objeto se torna uma
entidade distribuída, ampliando o seu campo de atuação em termos de tempo e
espaço. A canoa Kula, por exemplo, continuava ligada ao seu dono, mesmo após a
sua troca, representando assim, toda uma rede de interações pela qual passou ao
longo de sua vida enquanto objeto (Lagrou, op.cit.; Munn, 1977). Na Amazônia, por
outro lado, o objeto, ao invés de incorporar a lembrança do seu produtor ou dono de
modo a possibilitar que ele continue vivendo entre os vivos através das suas
extensões, precisa ser desfeito para ajudar mortos e vivos a aceitarem a
transformação que a morte significa (Lagrou, 2007: 54).
Por serem considerados extensões corporais dos seus donos, os objetos
devem ser destruídos após a morte deles, pois como uma parte não sepultada do
morto, a alma pode permanecer ao seu redor a fim de perseguir os vivos. Turner
(2013: 208), por exemplo, registrou que entre os Kayapó, do Brasil central, os
pertences dos mortos são destruídos deliberadamente ou “mortos magicamente”,
com o propósito de evitar o uso deles pelos parentes que continuam vivos, o que
poderia favorecer o retorno da “sombra” do morto ao mundo dos vivos.
A prática de destruir os bens dos mortos, entretanto, não é generalizada e
não se aplica a todos os objetos. Nas sociedades amazônicas de regimes de objetos
53
mais opulentos certos objetos não são destruídos na ocasião da morte dos seus
donos (Santos Granero, 2013.), mas podem ser transferidos através das gerações,
como ocorre com as flautas de madeira Waujá, uma das poucas categorias de
objetos rituais que não são destruídas (Neto, 2013: 201).
Certos objetos considerados muito poderosos, em algumas ocasiões,
necessitam ser desubjetivados de modo a torná-los inanimados. Isto pode ocorrer
antes da transferência de objetos pessoais ou rituais a terceiros, quando tais objetos
são desubjetivados para impedir que prejudiquem o seu receptor ou mesmo que
sejam usados pelo receptor para prejudicar o antigo dono (Santos granero, op.cit.).
Outros objetos podem ser fabricados prevenindo que a sua subjetividade se
manifeste, como no caso das máscaras Waujá, que quando feitas para venda não
possuem olhos, boca dentes, etc, o que impede que a sua subjetividade se
manifeste (Neto, 2008a).
Em outros casos, para desubjetivar certos objetos, eles são retirados de
circulação pública, como as redes dos bebês Urarina que são guardadas
cuidadosamente até que apodreçam (Walker, 2013). Objetos altamente subjetivos
são mutilados antes de serem retirados de circulação, para que sua subjetividade
seja enfraquecida de modo a torná-los menos perigosos, como no caso das
máscaras cerimoniais Wajana12, cujas plumas são retiradas antes de serem
guardadas debaixo do teto da casa cerimonial até que apodreçam (Van Velthem,
2003; Santos Granero, op.cit.).
Diante de contextos tão complexos em que objetos são concebidos como
pessoas, e atuam como elas, tendo, inclusive, um ciclo de vida semelhante,
entender as peculiaridades que estruturam a fabricação, circulação e descarte dos
objetos pode ser enriquecedor para o estudo de certos objetos encontrados em
contextos arqueológicos, o que é válido, principalmente, para a categoria de objeto
sobre a qual esta dissertação versa, as tangas cerâmicas, que como veremos no
capítulo 3, na maioria das vezes, são provenientes de contextos funerários, embora
certas características sugiram que não eram fabricadas exclusivamente para o
acompanhamento funerário.
12
De acordo com Van Velthem (2013: 139), professores Wayana da terra indígena Rio Paru d’Este,
a fim de normatizar a escrita da língua, deliberam que o etnônimo deve ser grafado como Wajana, e
não mais como Wayna ou Waiana.
54
2.2. Anatomias artefatuais: corporalidade na Amazônia indígena
No mundo ameríndio alguns objetos são tratados como corpos e corpos são
tratados como artefatos (Lagrou, 2007, 2009; Van Velthem, 2009). Neste sentido, é
bem comum que cópias sejam consideradas da mesma natureza que o seu
protótipo, pois são produzidas por meio das mesmas técnicas (Lagrou, 2009:39).
Como já comentado, o caráter de pessoa ou corpo que é conferido ao objeto é tanto
que eles possuem um ciclo de vida muito semelhante aos das pessoas (Lagrou,
op.cit. ; Santos Granero, op.cit.; Van Velthem, op.cit.;)
Tanto Van Velthem (2003, 2008) quanto Lagrou (2007, 2009) apontam para o
papel da corporalidade entre os ameríndios ao destacarem a produção de humanos
com as mesmas técnicas de produção dos artefatos e a produção de artefatos com
as mesmas técnicas de produzir humano em certas ontologias, como as Wajana e
Kaxinawa. Se entre os Wajana as pessoas têm um caráter artefatual que é conferido
pela decoração dos corpos com as mesmas técnicas que são usadas para decorar
os artefatos, entre os Kaxinawa os objetos são produzidos com as mesmas técnicas
que as pessoas são produzidas13.
Se por um lado é inquestionável o caráter de pessoa que os objetos possuem
entre os ameríndios, por outro, não se pode negar o papel que objetos possuem na
socialização do corpo e da pessoa (por exemplo, Seeger, 1980; Lagrou, op.cit.;
Seeger et al, 1979). A noção de corporalidade está dentro de uma preocupação
maior que é a definição e construção da pessoa pela sociedade (Seeger et al, 1979:
3-4). A produção física de indivíduos se insere em um contexto voltado para a
produção social de pessoas.
Nisto, a decoração que (des)cobre ou, por outro lado, altera a forma dos
corpos tem um papel significativo. Isto está associado ao fato de que a superfície do
corpo não é apenas o limite do indivíduo como uma entidade biológica e psicológica,
mas a fronteira do eu social também. O corpo é o lugar pelo qual as pessoas são
socializadas, isto é, integradas, ao longo de suas vidas, nas sociedades às quais
13
Neste caso, o exemplo mais claro é aquele de um banco confeccionado com a madeira da samaúma e usado
pelas crianças para descansar durante as intervenções rituais. Este banco é produzido pelas mesmas técnicas
que produziram a estrutura da criança no ventre da mãe e recebe a mesma decoração que a pele da criança
receberá após um rito de passagem (Lagrou, 2007). Para os Kaxinawa, a árvore da samaúma é o protótipo do
corpo humano e isto se reflete na fabricação do banco, que é esculpido das raízes tubulures desta árvore à
imagem da criança, com duas pernas e um buraco no meio. Este banco é pintado com grafismos grossos, ou
seja, mais permeáveis, que visam passar o conhecimento e qualidades da samaúma para a criança.
55
pertencem. Assim, a superfície do corpo, como a fronteira comum da sociedade, do
eu social e da pessoa psico-biológica se torna o palco simbólico sobre o qual o
drama de socialização é decretado, e a ornamentação corporal se torna a linguagem
através da qual ela se expressa (Turner, 1980:112). Deste modo, a decoração é a
projeção gráfica de uma realidade de outra ordem, no cenário social, da qual a
pessoa também participa, uma pele social.
O conceito de pele social, inicialmente cunhado por Turner (1980) e depois
empregado para entender ornamentação corporal, também faz alusão à
comunicabilidade de outras superfícies ou corpos, no caso deste trabalho, de corpos
cerâmicos. Lau (2010; 2013), por exemplo, utilizou este conceito para mostrar que
diferentes procedimentos técnicos, que tornavam a superfície das coisas (artefatos)
semelhantes, estavam relacionados à confecção de mundos e estéticas associados
aos chefes da cultura Recuay. Tais superfícies trabalhadas marcavam corpos com
capacidades e papéis sociais, expressando relações entre pessoas, lugares e
coisas, exteriorizando em cada um, tipos especiais de corpos interativos, sociais.
Se por um lado a construção social do corpo está voltada para a socialização
da pessoa, por outro lado, para Viveiros de Castro (2002: 388), está relacionada à
ideia de corpo enquanto lugar da alteridade, pois ao passo que uniria seres do
mesmo tipo, também os distinguiria de outros seres. Este autor argumenta que o
principal objetivo da construção social do corpo é o de particularizar um corpo
demasiadamente genérico tornando ele distinto de outros grupos humanos e de
outras espécies. Neste sentido, o corpo é o principal instrumento para expressão do
sujeito e ao mesmo tempo, aquilo que se mostra ao outro. Assim, a máxima
objetivação social dos corpos, expressa em sua decoração e exibição, ocorreria em
contextos cerimoniais, coincidindo com a sua animalização, quando os corpos dos
participantes são cobertos com plumas, peles, cores, grafismos, máscaras, assim
como outras partes emblemáticas dos corpos animais (Viveiros e Castro, 2002: 388-
389).
Santos Granero (2012: 21) sugere que as diferenças corporais entre as
formas de vida não são absolutas já que o corpo é um amálgama de seres, e com
isto, as diferenças seriam graduais. Os corpos seriam compostos a partir de uma
combinação de afetos e capacidades provenientes de uma miríade de seres, entre
os quais, os objetos, o que está de acordo com o que é visto nas ontologias
56
amazônicas onde a ênfase na incorporação, a “canibalização” do outro é um traço
indispensável para a construção do “eu” (retomaremos este aspecto adiante).
Para Santos Granero (2013: 41), as ontologias amazônicas em que a pessoa
é constituída a partir de uma complexa relação entre distintas formas de vida são
“ontologias construtivistas”. Este construtivismo amazônico concebe todos os seres
vivos como entidades compostas, feitas de corpos e partes de corpos de uma gama
de formas de vida, entre as quais os artefatos se destacam. Tal ideia é proeminente,
sobretudo, nas narrativas míticas sobre a criação do mundo e das diferentes formas
de vida que o habitam que destacam que nos tempos primordiais só existiam as
pessoas e os seus artefatos ou, dependendo, somente os artefatos. Estes objetos
são concebidos como as “células” a partir das quais os corpos das pessoas e dos
deuses foram criados.
A contribuição dos objetos, não só em tempos míticos ou primordiais, mas
ainda hoje, para a fabricação da pessoa é paradigmática. Na Amazônia há uma
série de exemplos que mostram a importância dos objetos para a composição
corporal dos seres vivos. Walker (2012), por exemplo, mostra que entre os Urarina,
povo da Amazônia peruana, as redes dos bebês e os chocalhos destas redes
formam, protegem e fortalecem o corpo dos bebês aos quais pertencem. Os
componentes dos chocalhos destas redes são selecionados criteriosamente pelos
pais e elaborados com partes de animais e outros objetos, a fim de incutir nos bebês
qualidades animais ou artefatuais altamente valorizadas.
Deste modo, nas ontologias ameríndias os objetos são componentes
importantes de todas as formas de vida, pois foram incorporados por meio de
processos primordiais de criação ou por meio das técnicas cerimoniais de
construção do corpo. Aqui, é generalizada a ideia de que os objetos eram pessoas
ou partes anatômicas de pessoas que foram transformadas posteriormente em
outros seres, o que sugere que as pessoas e os objetos compartilham do mesmo
princípio simbólico de fabricação (Santos Granero, op.cit.).
A importância de certos objetos se desdobra nas noções de pessoa e de
corporalidade. Entre os ameríndios os objetos integram um importante papel na
constituição de corpos e pessoas, como se vê, por exemplo, nos adornos corporais,
que são incorporados à pessoa ao longo do seu processo de vida, configurando
corpos socialmente eficazes (Seeger, 1980) e mesmo, como já foi comentado, se
57
integrando aos corpos de tal modo que se tornam uma parte constituinte da pessoa
(Miller, 2013).
Estudos realizados entre diversos povos das terras baixas da América do Sul,
sobretudo, na Amazônia, reconhecem que a transformabilidade dos corpos e das
formas é um aspecto estruturante das cosmovisões e ontologias indígenas (Lagrou,
2007, 2011; Lagrou e Severi, 2013; Viveiros de Castro, 2002).
A importância do fenômeno da transformabilidade foi destacada,
principalmente, com o reconhecimento do caráter perspectivista das ontologias
ameríndias, e subjacente a isto, o pressuposto de que a humanidade é um atributo
compartilhado por todos os seres animados, trazendo importantes implicações para
o estudo das imagens ameríndias (Lagrou, 2011; Taylor e Viveiros de Castro, 2006).
De acordo com a cosmovisão perspectivista, o modo como os seres humanos
veem os animais e outras subjetividades que povoam o universo difere da forma
como estes seres veem os humanos e veem a si mesmos. Deste modo, os animais
se veem como humanos enquanto os humanos veem os animais como caça; os
humanos se veem como humanos e são vistos por determinados espíritos como
caça (Viveiros de castro, 2002). Diante disto, o corpo humano não ocupa um lugar
único e estável no esquema cósmico, pois sua forma é inteiramente relativa à
perspectiva de outrem: o humano ou o não humano está no olhar do outro em vez
de ser o atributo essencial de uma classe de seres (Tayor e Viveiros de Castro,
op.cit.). Assim, o referencial comum para todas as espécies da natureza, não é o
homem enquanto espécie, mas a humanidade enquanto condição (Descola,
1986:120 apud Viveiros de Castro: 356).
Esta concepção subjaz à ideia de que a forma que cada espécie manifesta é
uma roupagem que esconde uma forma humana interna visível apenas aos seres da
própria espécie, ou seres transespecíficos, como os xamãs. Deste modo, todas as
espécies são caracterizadas por um espírito antropomorfo e por uma aparência
corporal variável, característica de cada espécie, que não é fixa, mas sim
considerada uma roupa que pode ser trocada e descartada. Aliás, a noção de roupa
está estreitamente relacionada à metamorfose, processo generalizado no “mundo
58
altamente transformacional” dos ameríndios amazônicos (Viveiros de castro, 2002:
351).
Decorrente da noção de perspectivismo é a abordagem de Lagrou (2007,
2011, 2013) para a arte gráfica ameríndia, focando, sobretudo, nas formas de
percepção e figuração no mundo ameríndio. Esta autora propôs inicialmente que na
arte gráfica kaxinawa um desenho “abstrato” opera a passagem entre o visível e o
invisível (Lagrou 2007), propondo posteriormente que esta característica dos
grafismos pode ser compreendida enquanto uma linguagem pan-amazônica (Lagrou
2011, 2013). Deste modo, os grafismos e imagens ameríndios poderiam ser
compreendidos como instrumentos perceptivos que demandam operações
cognitivas específicas estruturadas no âmbito de uma ontologia na qual a
transformação dos corpos e formas é um aspecto central. Nisto, certos
procedimentos formais, inclusive, podem ser considerados como técnicas
perspectivistas, ou seja, são procedimentos que permitem ao espectador mudar de
ponto de vista, o que melhor detalharemos no capítulo 4.
Ao mesmo tempo se reconhece que os sistemas estéticos ameríndios
também são caracterizados pela captura e controle de agências inimigas e
predatórias, onde a agência do outro nunca é aniquilada, mas sempre integrada
através de uma técnica estética que, diante do potencial perigo da predação, visa o
controle da manifestação de sua forma (Lagrou, 2007, 2012).
A lógica da predação e da incorporação é também um traço constituinte das
ontologias amazônicas, as quais incorporam aspectos integrantes da alteridade, seja
inimigos ou outros seres. Com isto, na Amazônia ameríndia, o processo de
constituição do “eu” pelo “outro” implica também em uma maneira bastante
específica de se relacionar com o outro, onde o tornar-se sujeito é ao mesmo tempo
tornar-se parcialmente o outro, decorrendo disto um significativo aumento da
subjetividade do “eu” (Lagrou, 2007: 61-62).
Nas terras baixas sul-americanas de uma forma mais ampla, a produção
estética é o resultado da incorporação de elementos provenientes de uma fonte
externa, geralmente atribuída ao mundo dos inimigos ou de outros seres, de onde
provêm os nomes dos motivos gráficos, mitos de aprendizado dos grafismos,
ornamentos e demais artefatos, bem como de suas técnicas de execução (Lagrou,
op.cit.; Miller, 2007, 2012). Este aspecto foi amplamente debatido por Lagrou (2011)
59
como um dos possíveis traços constituintes de uma “arte das sociedades contra o
Estado”, nos termos de Pierre Clastres (2003, 2004) de que as sociedades
ameríndias das terras-baixas não apenas são fundadas sob a lei do igualitarismo,
mas que também adquirem o conhecimento sócio-cosmológico no exterior da
própria sociedade.
Para os kaxinawa, por exemplo, determinados motivos estruturados a partir
da “grega”, além de receberem nomes técnicos relacionados a animais e plantas,
são também nomeados de nawan kene, isto é, desenho do estrangeiro/ inimigo,
nome que designa, inclusive, a escrita dos brancos. Estes desenhos de inimigos
fazem parte do repertório de desenhos próprios, os Kene Kuin, e são aplicados
sobre o rosto, compondo uma rede de linhas. Também para os Kaxinawa, os
motivos que compõem os grafismos podem ter a sua origem nos predadores, como
a anaconda, dunuã, e a onça, inu. Com isto, a estética consiste na integração e
dosagem de agências inimigas e predatórias (Lagrou, op.cit.).
Deste modo, para os kaxinawa a relação entre grafismos e suporte é uma
relação transformativa, pois os grafismos inscrevem a potência que é adquirida
externamente à sociedade nos corpos sobre os quais estão aderidos. Os motivos
gráficos que cobrem os corpos são adquiridos no exterior, no mundo dos inimigos ou
de outros seres e visam produzir novos corpos, mas precisam ser reestruturados
esteticamente, pois devido à agência dos seus donos invisíveis são capazes de
impor novas formas aos corpos sobre os quais serão pintados. Percebe-se, assim,
que a estética é uma técnica que visa uma bricolagem de corpos, onde a alteridade
é transformada, mas sua agência jamais é totalmente eliminada (Lagrou, op.cit.).
Analogamente, mas especificamente no campo dos adornos corporais, Miller
(2007, 2012) destaca que entre os Mamaindê, os adornos corporais são o resultado
de um processo de apropriação pelos xamãs de coisas feitas por “outros”, isto é, os
espíritos dos mortos ou dos espíritos considerados donos dos animais e plantas. Por
um lado, o xamã adquire adornos feitos pelos espíritos dos mortos e estes se
constituem a base do seu poder. Estes adornos possuem a agência dos espíritos
dos mortos, os seus criadores, e por esta razão é que são poderosos. Por outro
lado, a confecção de adornos corporais feitos de materiais como folhas de buriti e
madrepérola, utilizados em diversos rituais, está sujeita ao estabelecimento de
60
relações entre os espíritos considerados como donos do buriti e das conchas, a
partir das quais os adornos são feitos.
A aquisição de adornos provenientes destas duas classes de espíritos pode
se dar também quando o xamã olha os adornos deles. Por exemplo, a origem do
cocar de penas de tucano, usado em rituais de puberdade feminina, é associada a
um evento no qual um xamã que estava na beira de um rio viu o povo da água
usando um cocar feito de penas de tucano vermelhas e amarelas e copiou o adorno
usado por eles, ensinando aos Mamaindê como fazê- lo (Miller, 2007: 108).
Os exemplos citados mostram que a produção estética está relacionada à
captura e incorporação de aspectos integrantes da alteridade. Neste sentido, a
produção de objetos e imagens pode, por um lado, presentificar e tornar visíveis
seres, e pode, por outro lado, fomentar a (re)produção de elementos sobrenaturais
que jamais perdem a sua agência.
O controle destas agências, sobretudo, das agências predatórias, que são
integradas é um aspecto que deve ser considerado. Para se ter uma ideia, os
artefatos Wajana possuem os seus protótipos nas anatomias de animais, de seres
arquetípicos ou de sobrenaturais de onde adquirem a sua visibilidade e capacidade
de agir. No entanto, são entendidos como corpos parcelados, pois sofreram um
processo de desmembramento, ou a supressão das suas características originais,
descontroladas e predatórias. O tipiti, por exemplo, possui o seu protótipo na
serpente/ larva Kutupxi e compartilha com ela a capacidade de constringir,
capacidade necessária que visa a extração do sumo da mandioca para a produção
da massa de fazer o beiju, no entanto, é um corpo/ artefato parcelado, já que não
possui cabeça nem rabo, para não se tornar o ser independente que devora
humanos (Van Velthem, 2003, 2009).
61
conceito de divíduo diz respeito à divisibilidade da pessoa, às partes da pessoa que
podem circular entre outras pessoas, constituindo, assim, novos seres e objetos. O
conceito de pessoa fractal, por sua vez, implica também na constituição relacional
da pessoa, onde a existência de uma entidade abrange
relações integralmente implicadas, sendo que cada parte
constituinte abrange informações sobre o todo.
No âmbito das expressões artísticas, Gell (1998)
sugere, para o contexto da Melanésia, que muitas imagens
são fractais, e contêm em si diversas versões, em menor
escala, delas mesmas, de modo que cada uma dessas
versões é a presentificação do que pode ser extraído da
própria imagem. De acordo com este autor, tais imagens
poderiam ser tomadas como exemplos de uma espécie de
“figura de linguagem” que expressa a noção de pluralidade
singular e singularidade plural. Assim, estas imagens
poderiam se compreendidas a partir da noção de que cada
pessoa é "múltipla" no sentido de ser precipitada de uma Figura 5. Estatueta
multiplicidade de relações genealógicas, cada uma das quais fractal A’a de Rurutu.
British Museum,
é instanciada nela e, inversamente, a pessoa é um agregado Londres. Fonte: Gell:
1998: 138.
de pessoas (Gell, 1998:140).
Certos objetos registrados na etnografia Melanésia seriam exemplos
paradigmáticos deste tipo de imagem. A estatueta que representa o deus A’a, por
exemplo, é constituída por diversas outras figuras em escala menor que também
reconstituem a forma desta deidade, ou seja, esta estrutura fractal é caracterizada
pela autosimilaridade em escalas distintas de maximização ou minimização. Ao
mesmo tempo esta figura é também uma espécie de caixa ou arca que mantinha
originalmente outras figuras de deuses em seu interior (Gell, 1998: 137).
Assim, neste caso específico, a imagem representa um deus singular como
um conjunto de relações entre homúnculos, evidenciando a dialética entre um e
muitos, entre o que está fora e o que está dentro. Os componentes replicados em
menor escala aludem tanto à personitude enquanto um agregado de relações
externas quanto à possessão de uma pessoa interior, caracterizada neste caso, por
um conjunto de homúnculos, de modo que o A’a não pode ser individualizado.
62
Na Amazônia, do mesmo modo, a pessoa é concebida como um ser
relacional, processual e divisível, já que as partes que são incorporadas por outros
continuam a manter relações com a pessoa que as emitiu paralelamente em que
colaboram na produção e constituição de novos seres (Lagrou, 2007: 26). No
entanto, a constituição da pessoa amazônica possui uma lógica diferente à da
divisão; aqui a ênfase sobre a incorporação do outro recai sobre o acúmulo.
As relações no mundo amazônico ameríndio são estruturadas com base na
ontologia da predação, conforme já comentado anteriormente, de modo que por
meio destas relações as pessoas, ao longo da vida, incorporam partes de outras
pessoas e seres (Lagrou, op.cit.). Diante disto, a pessoa ameríndia pode ser
compreendida como uma pessoa fractal, na medida em que implica em relações de
incorporação do outro na constituição do “eu” em diferentes escalas que são sempre
similares umas às outras (Santos Granero, 2013: 31).
Especificamente no âmbito da produção artística ameríndia isto resulta em
objetos e imagens compósitos, constituídos por seres e partes anatômicas de seres
(Lagrou, 2013; Santos Granero, op.cit.; Severi, 2013). No que diz respeito às
expressões artísticas da Amazônia antiga estas relações de incorporação de seres e
partes suas resultam em objetos e imagens híbridos. Neste caso, as imagens
resultantes desta bricolagem de seres podem abranger figuras antropozoormorfas
com traços anatômicos que podem ser compostos, por exemplo, por figuras
serpentelíneas caracterizando os seus membros, como ocorre em certas urnas
funerárias marajoara (Barreto, 2014; Roosevelt, 1991; Schaan, 1997) e também em
muitos temas iconográficos que caracterizam a iconografia da cerâmica Guarita
(Oliveira, 2016). O mesmo ocorre na iconografia das tangas cerâmicas, onde são
recorrentes as imagens que aludem a partes corporais específicas, como por
exemplo, faces, mas que são compostas por corpos de seres e de partes
anatômicas de seres, sugerindo processos de transformação.
Fausto (2013) argumenta que nas iconografias e objetos rituais ameríndios há
um modo bastante específico de figurar a transformação, onde o caráter
transformacional dos seres e a ambiguidade das formas são indiciados pela
multiplicação de referentes e pela mistura entre as formas animais e humanas.
(...) seu problema jamais foi a semelhança e a forma humana, mas o modo
de representar a transformação, de transpor em imagens o fluxo
transformacional que caracteriza os seres poderosos. A resposta a este
problema não podia ser encontrada na reprodução a mais exata possível
63
das formas naturais; mas, ao contrário, era preciso buscá-la na geração de
imagens as mais complexas e paradoxais possíveis, nas quais as
identidades estão encaixadas e os referentes são múltiplos (Fausto,
2013:328).
14
Optamos por destacar o termo com aspas para enfatizar que Fausto (2013) faz uma reapropriação
contemporânea do termo original. É importante destacar que, originalmente, o termo foi proposto por Edward
B. Tylor em seu livro Primitive Culture, publicado em 1871, para designar o “primeiro estágio” da evolução
religiosa da humanidade. Por esta razão, durante décadas, o termo teve uma conotação perjorativa, sendo
usado para desqualificar e esteriotipar populações.
64
CAPÍTULO 3
CORPOS DE BARRO E DE TINTA
(...) em 1950, Peter Paul Hilbert, de uma das suas viagens ao Pacoval
trouxe um ídolo feminino que, esse sim, ostenta uma legítima “tanga”
marajoara, figurada em relevo e com ornamentação pintada (...) todo o
ídolo, ao qual falta infelizmente a cabeça, é também ornamentado a
capricho com desenhos incisos que talvez representem pinturas corporais
ou tatuagens, exigidas possivelmente para a cerimônia especial em que a
“tanga” se utilizava (Barata, 1968:102).
15
O mesmo tipo de triângulo modelado é também visto em certas urnas funerárias, aparecendo
sempre coberto por tracejados, o que para autores como Roosevelt (1991) é uma forma de
representar pelos. Deste modo, não há como assegurar se o triângulo é a representação de uma
tanga ou de uma genitália, pode inclusive, ser os dois ao mesmo tempo.
65
hipóteses, em termos bastante funcionalistas, foi elaborado, sobretudo, no tocante à
diferença entre tangas monocromáticas16 e aquelas com grafismos. Para se ter uma
ideia, sugeriu-se que os dois tipos poderiam ter estado associados a diferentes
atividades, sendo as monocromáticas usadas no cotidiano e as com grafismos em
rituais (Evans e Meggers, op.cit.), ou ainda, que tivessem sido usadas por mulheres
de faixas etárias diferenciadas (Schaan, 2003).
Nos capítulos anteriores apresentamos um panorama geral sobre o modo
como a iconografia da cerâmica marajoara tem sido abordada e pensada dentro de
certos contextos propostos. Apresentamos também os eixos teóricos que nortearão
a discussão sobre a iconografia das tangas neste trabalho, centrados, sobretudo,
nas teorias formuladas no âmbito das expressões artísticas das sociedades
ameríndias a respeito da construção dos corpos e formas de agentividades
conferidas a eles.
No presente capítulo pretendemos apresentar os contextos de deposição das
tangas e algumas características referentes à sua variabilidade para, enfim, propor
que algumas destas características podem ter estado relacionadas a diferentes
modos de agentividade destes itens.
16
Neste trabalho, para nos referir aos dois tipos conhecidos de tangas usaremos os termos
“monocromática” para se referir às tangas lisas que não apresentam grafismos em sua superfície e
“com grafismos” para aquelas cuja superfície foi elaborada com desenhos. Tentamos com isto evitar
termos contraditórios usados para registrar estas peças, como por exemplo, decoradas e não
decoradas, que opõe as duas como se uma fosse decorada e a outra não, quando na verdade ambas
são decoradas por técnicas de pintura diferentes.
17
No livro usado para documentar a entrada das peças no Museu Nacional nas últimas três décadas
do século XIX, por exemplo, o único registro referente às tangas, registradas como babals, apenas
relata a entrada de tangas e mais uma porção de objetos, sem especificar quais as tangas, sua
procedência e matérias associados.
66
encontrada. Deste modo, com base nos registros de escavações fizemos um
levantamento para entender um pouco mais sobre os seus possíveis contextos de
uso e descarte.
Figura 7. Mapa sítios da fase marajoara. Modificado a partir de McEwan at al, 2001.
67
Em fevereiro de 1915, representando o University Museum de Filadélfia,
Farabee escavou em alguns tesos do conjunto conhecido como Fortaleza, na região
do rio Goiapi. Na escavação do teso número 7, deste conjunto, Farabee relata ter
encontrado sepultamentos agrupados e que era possível em um espaço de 15
metros quadrados, por exemplo, encontrar 50 vasilhas, e outros 15 metros sem
nada. Em um destes agrupamentos que escavou, em um espaço de 1,20 metros por
60 cm, foram escavadas 7 vasilhas pertencentes a 4 enterros diferentes. Com base
nos sepultamentos escavados, ele afirma haver dois tipos de sepultamentos, a dizer,
sepultamento secundário e cremação. Entre os objetos encontrados com as urnas
funerárias, em alguns casos, havia uma tanga dentro delas, mas era mais comum
que as tangas tivessem sido colocadas, no exterior, junto com pratos e tigelas.
Farabee deixou um caderno de notas onde registrou mais de trezentos
exemplares retirados das nove trincheiras escavadas no teso 7 de Fortaleza,
indicando as posições relativas em que foram encontrados (Palmatary, 1950: 275).
Entretanto, não há descrição textual de nenhum deles. Apesar de ter registrado
várias notas em seu caderno de campo, os resultados das escavações jamais foram
publicados, por isto só tivemos acesso às anotações publicadas por Palmatary
(1950). Entre as notas publicadas, a única referente a uma tanga escavada diz
respeito ao corte 4 de sua escavação no teso referido. A nota registra uma urna
18
funerária com uma tanga em seu interior partida em três pedaços.
Farabee posteriormente, entre novembro e dezembro de 1915, escavou no
teso Belém, do conjunto Os Camutins. O registro publicado por Palmatary desta
escavação descreve três cortes realizados naquele teso. Farabee relata que iniciou
o corte 1 em um local próximo à extremidade sul do teso. Ali encontrou tantos potes
juntos que era impossível cavar sem esbarrar em outro. Relata ainda que em um
espaço de 1,8 metros quadrados escavou seis grandes urnas e três pequenas. Ali,
duas tangas foram encontradas em urnas, sendo que uma estava no interior de uma
grande urna pintada que jazia a 1,5 metros de profundidade, contudo, estas duas
tangas não foram descritas, assim não podemos distinguir aquelas com grafismos
das monocromáticas. Nas anotações do corte 2, que foi realizado próximo ao centro
do topo do teso, há as seguintes notas: duas tangas e ossos foram escavados no
18
Palmatary (1950:275) registra a seguinte nota : No. 23, top above the surface and gone. Inside was
a tanga in three pieces in different places, broken purposely before placing inside (Palmatary,
1950:275).
68
interior de uma urna; uma grande urna pintada com uma tanga e ossos foram
encontrados a cerca de 1,5 metros de profundidade; uma tanga no interior de uma
grande urna simples quebrada com dois sepultamentos em seu interior. 19
Em 1928 Antonio Mordini escavou o sítio Panellas (figura 8). Entre os 32 itens
registrados nesta escavação20, documentou a ocorrência de duas tangas, conforme
pode ser visto na ilustração a seguir. A primeira foi uma tanga monocromática
(vermelha) que foi encontrada junto a uma urna antropomorfa quebrada, ricamente
decorada com gravuras, com 85 centímetros de altura. Já a segunda foi uma tanga
com grafismos, descrita como ricamente pintada, encontrada junto a uma grande
urna antropomórfica quebrada, e decorada com gravuras, com 85 centímetros de
altura. As notas não trazem maiores detalhes que possam ajudar a identificar o tipo
das urnas, mas a ilustração e a descrição “decorada com gravuras” sugere uma urna
do tipo Pacoval Inciso ou Arari inciso, que normalmente se apresentam na forma de
um corpo humano. Também não há descrições sobre o conteúdo delas, com isto,
não sabemos se havia ossos e outros acompanhamentos em seu interior.
Nas anotações publicadas por Palmatary (op.cit.) há também a observação de
que estas tangas “provavelmente tinham sido presas às urnas”. Em carta à
Palmatary, Mordini escreve que essas duas tangas eram unicamente cerimoniais, já
que eram maiores do que o normal e possuíam pouca curvatura para uso real, além
disto, os orifícios das suas extremidades não possuíam marcas de desgaste
(Palmatary, 1950:280). Contudo, não tivemos acesso a estas duas tangas para
medi-las, de modo que pudéssemos comparar as suas dimensões às das demais
peças da nossa amostra.21 De todo modo, esta observação é bastante curiosa, já
que Heloísa Alberto Torres22 (1940: XIII) escreve que segundo os relatos dos antigos
exploradores, dentro de urnas simples havia urnas do tipo Pacoval Inciso e, nestas,
havia uma tanga amarrada com cordões.
19
Seguem as transcrições das notas referentes às tangas, como registrado em Palmatary (1950:276).
Corte 1: 59 a large pot at surface crushed into a thousand pieces by weight of earth which had fallen
into its empty body... 66 cut away for burial, tanga inside ; ...107 large, painted, 5 deep, tanga Inside.
Corte 2: 9 inverted over 8 which had two tangas and bones in i t ; ... 12, small, round, l ' deep near 13,
14, 15; 16, large, painted, 5' deep, bones, tanga; 20, large, undecorated, broken, had two burials and
tanga, not possible to get measurements of skulls , although broke jar to save skulls, bodies had been
put in whole at same time.
20
Palmatary (1950:278 280) publicou algumas de suas notas de campo.
21
É provável que estas peças estejam entre as 27 que foram destruídas na casa de Mordini durante a
segunda Guerra Mundial.
22
Esta autora, no entanto, não fornece qualquer referência que possa ser consultada para se obter
mais informações a este respeito.
69
Figura 8. Esboço de perfil do teso Panellas feito por Mordini. Adaptado de Palmatary (1950).
Embora não tenhamos encontrado outros relatos sobre estas tangas “presas”
em urnas funerárias, Hartt (1885) registra um relato de O. Derby bastante curioso.
Orville Derby escavou em 1871, no teso Pacoval, uma tanga com grafismos
associada a uma urna funerária do tipo Pacoval Inciso (figura 9). Segundo Hartt
(1885: 34), a urna foi achada dentro de um pote muito grande, pesado, simples e
arredondado, que a mantinha até o gargalo. No fundo desta urna do tipo Pacoval
inciso havia ossos, e, segundo, Hartt (op.cit.), o espaço entre ela e o pote que a
envolvia estava cheio de argila arenosa, e na frente da urna havia uma tanga
quebrada.
70
E
mb
ora
o
rel
ato
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De
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,
reg
istr
ad
o
por
Ha
rtt
(op
.cit
.),
le
mb Figura 9. Urna Pacoval Inciso e tanga escavadas por O. Derby, no teso Pacoval, dentro de uma urna
simples. Fonte: Palmatary, 1950.
re
bastante o de Mordini e o de Heloísa Alberto Torres, não foi sugerido que a tanga
estivesse atada à urna. Mordini relata que as duas tangas, que supunha terem sido
amarradas às urnas, não possuíam marcas de desgaste em seus orifícios e que por
tal razão devem ter sido exclusivamente para uso ritual, ou seja, para o ritual
funerário. Conforme relata Hartt (1876: 25), as perfurações da tanga escavada por
Derby, estão muito gastas na direção da margem superior, na vizinhança dos
ângulos, o que pode ser visto na ilustração. É lógico que o fato da tanga citada
apresentar marcas de desgaste em seus orifícios não exclui a possibilidade de que
ela tenha sido atada à urna, já que segundo a descrição, ela estava na frente da
71
urna Pacoval, separada do pote simples por uma camada de argila. Entretanto, não
há outros relatos que confirmem isto, aliás, nas poucas escavações sistemáticas
realizadas em sítios da fase marajoara jamais se encontrou algo que sugerisse isto.
Os detalhes mais bem registrados sobre as tangas em contextos funerários
são provenientes das escavações de Meggers e Evans (op.cit.) nos tesos Guajará
do conjunto Monte Carmelo e Camutins, do conjunto Os Camutins e das escavações
de Schaan (op.cit.) no teso Belém do conjunto Os Camutins. Durante as pesquisas
de Schaan, no teso Belém (M-17/ J-15), 24 urnas funerárias foram escavadas,
sendo que destas, em seis havia uma tanga, em um total de seis tangas, sendo
duas vermelhas e quatro alaranjadas. Já nas escavações de Meggers e Evans no
teso Camutins duas tangas foram escavadas em contextos funerários, sendo uma
vermelha e uma com grafismos. No teso Guajará (M-1/ j-14), as escavações
renderam 12 conjuntos funerários, entre urnas funerárias e recipientes menores,
além de alguns sepultamentos associados às urnas.
As urnas maiores estavam depositadas nos níveis inferiores. Conforme
mostra a ilustração abaixo, no lado sudeste, repousava a base da urna O a uma
profundidade de 2,23 metros. Duas bacias, semelhante em forma, foram
sobrepostas em seu pescoço e, dentro da urna estavam os fragmentos de uma das
bacias, três tigelas quebradas de diferentes tamanhos, uma tanga vermelha e, a
uma profundidade de 68 centímetros abaixo da borda, e, coberto por uma camada
relativamente grande de fragmento, um esqueleto desarticulado. Ao lado de fora
desta urna, a uma profundidade de 1,40 metros, ao nível da sua borda, estavam os
fragmentos mal conservados de outro esqueleto associados a uma tanga vermelha.
Em um agrupamento de grandes urnas, entre as quais, algumas sobrepostas,
estava a maior parte das tangas escavadas neste teso. A urna L, uma grande urna
Joanes Pintado, com a sua base repousando a 1,80 metros de profundidade,
continha em seu fundo os ossos, cujos fêmures possuíam traço de tinta vermelha. A
este indivíduo, no interior da urna, estava associada uma tanga alaranjada, bastante
polida. Esta urna estava repousando sobre o fundo fragmentado de uma urna do tipo
Inajá simples, a qual continha, além de sujeira, fragmentos de ossos humanos e
uma tanga vermelha fragmentada. Junto à base do pescoço da urna L foi
encontrado um terceiro sepultamento contendo ossos humanos e uma tanga
vermelha quebrada,
72
A urna M, do tipo Inajás Simples, estava do lado norte da urna L. Seu interior
foi preenchido com areia esbranquiçada e ali foram colocadas duas tigelas e os
ossos de dois indivíduos. Sob as tigelas estavam os ossos desarticulados de um
indivíduo, identificado como do sexo masculino, cujo crânio apresentava deformação
intencional, fragmentos diversos, e, no centro do frasco, uma tanga vermelha
completa. Abaixo destes ossos, havia um conjunto de ossos de um segundo
indivíduo que foram identificados como de uma mulher entre 18 e 25 anos. Dentro
da urna havia também os ossos de pequenos roedores e de aves, como o tuiuiú.
Todos os ossos deste sepultamento estavam pintados de vermelho. Sobreposta a
esta urna e também à urna L, estava a urna I, uma Joanes Pintado, que possuía
ossos decompostos e uma tanga vermelha em seu interior.
73
Figura 10. Perfil mostrando a disposição das tangas em contextos funerários no teso Guajará, Monte Carmelo (J-14). Redesenhado a partir de Meggers e
Evans, 1957.
74
Posteriormente Schaan (op.cit.) realizou cinco escavações no teso
Belém (M-17/ J-15, pertencente ao conjunto Os Camutins) que foram
denominadas de “escavações 1, 2, 3, 4 e 5”, e cujas proporções relativas de
fragmentos de tangas são reproduzidas na tabela abaixo. Como mostra a
tabela, as escavações 1 e 4 apresentaram uma maior concentração de
fragmentos de tangas, tanto monocromáticas quanto com grafismos, mas é
possível ver que as tangas de ambos os tipos aparecem em todas as
escavações, contudo, os fragmentos monocromáticos são maioria nas cinco
escavações. Outro dado relevante visto nesta tabela é a variedade de
contextos nos quais os fragmentos de tangas são encontrados.
75
preta23 com grandes fragmentos cerâmicos, entre os quais vários de tangas, e
vasos fragmentados. Por esta razão Schaan (2004:214) considerou esta como
uma área de descarte, talvez os fundos de uma casa. Já as outras escavações
revelaram áreas funerárias, áreas domésticas, entre outras.
Embora os dados de Schaan (op.cit.) apontem para uma circulação de
fragmentos de tangas em contextos diversos, os contextos mais bem descritos
sobre as tangas são os funerários. Apesar de serem poucos os sepultamentos
bem descritos, em vista da quantidade de tangas existentes em museus, um
levantamento destes contextos pode ser crítico para vislumbrar os padrões nos
quais estas peças foram depositadas em contextos funerários. Com isto,
poderia ser verificado, por exemplo, os tipos de urnas funerárias nos quais
estas peças foram encontradas e os materiais associados.
As descrições e registros vistos aqui permitem vislumbrar as diferentes
ocorrências de tangas em sepultamentos. Elas podem ser encontradas nos
seguintes arranjos funerários:
junto ou no fundo das urnas, sob os ossos;
dentro de urnas com um ou mais de um sepultamentos, podendo
haver casos de mais de uma tanga por urna, e podem estar
quebradas no interior das urnas;
dentro de urnas simples maiores que abrigam outra urna, no
espaço entre elas;
do lado de fora junto às urnas, sozinhas ou junto com pratos e
tigelas;
do lado de fora, ao lado das urnas, em sepultamentos diretos no
solo.
Quando aparecem dentro das urnas podem ser encontradas com ossos
humanos e animais pintados de vermelhos, fragmentos cerâmicos diversos,
aparentemente quebrados intencionalmente, tigelas, em alguns casos,
estatuetas-chocalho, entre outros. Podem estar dentro de grandes urnas
pintadas, grandes urnas simples, urnas com outras urnas em seu interior ou em
urnas com outros recipientes no interior. Segundo o levantamento que fizemos,
verificamos que podem também aparecer dentro das urnas antropozoomorfas
23
A terra preta é formada pela decomposição de restos orgânicos, por isto estes solos sinalizam a
presença de lixo descartado.
76
do tipo Pacoval Inciso, do tipo Arari Exciso Vermelho, e em vários tipos de
urnas Joanes Pintado, o que mostra que não estão associadas a um ou outro
tipo de urna (Anexo 1).
Alguns autores sugeriram que as tangas não são encontradas em
sepultamentos com cremação. Meggers e Evans (op.cit.), por exemplo,
sugerem que a estratigrafia dos sepultamentos no teso Guajará, no Monte
Carmelo, indicaria que os enterros secundários em urnas, associados às
tangas, estariam sendo substituídos pela cremação, com a qual as tangas não
são encontradas. Segundo estes autores, na última parte da sequência
estratigráfica, as urnas seriam menores e menos ornamentadas do que
aquelas usadas para o enterro secundário, e, tangas nunca estariam
associadas. Contudo, como observa Schaan (1997: 89), estes dois tipos de
sepultamentos podem aparecer juntos.
Esta tendência parece bem marcada nos sítios da região do rio Anajás,
onde parece haver uma maior frequência de tangas monocromáticas em
relação às tangas com grafismos, conforme pode ser visto na tabela abaixo.
Desde os primeiro relatos e descrições dos sítios desta região é mencionada a
maior concentração de fragmentos de tangas vermelhas, Derby, por exemplo,
relata que no teso Belém (M-17), do conjunto Os Camutins os fragmentos de
tangas são abundantes e, embora, existam fragmentos com grafismos, os
fragmentos vermelhos são mais comuns (Hartt, 1885: 25), o que foi confirmado
por pesquisas posteriores.
Meggers e Evans (1957) fizeram, neste mesmo teso, um poço teste de
1,5 metros quadrados, atingindo uma profundidade de 1,20 metros, o que
produziu um total de 30 fragmentos vermelhos e 18 com grafismos, isto é, 62,5
77
% da amostra coletada é de fragmentos vermelhos. As escavações de Schaan
(2004), ali, produziram um total de 694 fragmentos de tangas, sendo que
destes 68,88%, ou 478, eram vermelhos e 216 com grafismos. Tendência
semelhante é vista no teso Camutins (M-1), onde as escavações de Schaan
(2004) produziram 138 fragmentos de tangas, destes 118 eram vermelhas e 20
de tangas com grafismos, ou seja, 85,51% da amostra era de tangas
vermelhas.
78
Os registros mais detalhados deste teso foram feitos por Meggers e Evans
(op.cit.), entretanto, nem todos os tesos foram bem investigados. Apesar de
não haverem feito escavações no teso Monte Carmelo (M-2) estes autores
relatam a presença de fragmentos de tangas de ambos os tipos, assim como
de fragmentos cerâmicos diversos, na superfície. Na superfície do teso Bacatal
(M-3) foram registrados 8 fragmentos de tangas vermelhas e nenhum com
grafismos. No teso Guajará (M-1), o mais bem investigado, foram escavados
11 sepultamentos de vários tipos aos quais estavam associadas 07 tangas
monocromáticas, das quais 6 eram vermelhas e uma alaranjada
Os tesos da região do lago Arari e do rio Arari talvez tenham sido os
mais explorados da ilha do Marajó. Uma parte significativa das tangas das
coleções de vários museus é proveniente dos tesos Pacoval e do teso
Severino, nesta região. Contudo, não há dados sobre a quantidade de tangas
retirada em cada exploração que possibilitem quantificar a frequência dos tipos
nestes tesos. Aliás, os relatos e descrições quando existem, não diferenciam
um tipo do outro.
O teso mais conhecido desta região é o Pacoval. Conhecido e
explorado para retirada de sua cerâmica desde 1870, são poucas as
descrições que possibilitam ter um vislumbre sobre a frequência de tangas ali.
Lange (1914:315-316) relata ter descoberto centenas de fragmentos de tangas
neste teso, muitas com lindos grafismos e outras apenas pintadas de um
vermelho forte, contudo, não fornece uma quantificação dos fragmentos. Os
únicos dados mais detalhados sobre este teso estão descritos em Hilbert
(1952). Em 1950 quando este autor visitou o sítio, pouco restava do teso
descrito por Hartt, Ferreira Pena, Ladislau Neto (1885) e Lange (1914). O sítio
havia sido reduzido a um amontoado de cacos. Ali, a coleta produziu cerca de
102 fragmentos de tangas, dos quais 66,5 % eram de tangas com grafismos e
33,5 % de tangas monocromáticas (Meggers e Evans, 1957:319). Hilbert
também escavou no teso Severino em 1951, onde abriu três poços teste em
vários pontos, encontrando cacos a uma profundidade de 20 a 50 cm. Dos 146
cacos recolhidos nesta escavação, 20 fragmentos eram de tangas, dos quais
13 eram de tangas com grafismos e 7 de tangas monocromáticas.
Como visto, as pesquisas sugerem uma maior frequência de tangas
monocromáticas nos sítios do rio Anajás. Por outro lado, apesar das poucas
79
pesquisas sistemáticas nos sítios da região do Lago Arari e do rio Arari, os
poucos dados que temos para esta região sugerem uma frequência maior de
tangas com grafismos. Caso os dados reunidos aqui sejam representativos
podemos sugerir que nos tesos da região do lago Arari as tangas com
grafismos eram mais utilizadas, enquanto nos sítios do Rio Anajás as tangas
vermelhas eram mais comuns.
Esta possível predominância de tangas monocromáticas nos sítios da
região do rio Anajás explicaria o porquê de Meggers e Evans (op.cit.) e Schaan
(op.cit.) terem encontrado tangas vermelhas predominantemente associadas a
grandes urnas decoradas.
Se por um lado, a frequência das tangas com grafismos e das tangas
monocromáticas, sejam inteiras ou fragmentos, varie de uma região para a
outra, parece também que a frequência de tangas varia de um sítio para o
outro, havendo sítios em que a frequência das tangas é maior, enquanto em
outros, é menor. Meggers e Evans (op.cit.) relatam que em um corte de 1,5
metros quadrados por 2,25 metros de profundidade, realizado no teso
Inajasal24 (M-14), só foram produzidos fragmentos de tangas no nível 0.75-0.90
m. com três fragmentos vermelhos. Já os tesos Furinho (M-34) e Cuieiras (M-
30), segundo Hilbert (1952:18-19), apresentam uma escassez de fragmentos
dos dois tipos, o que é bem representado na coleção 006 de fragmentos de
tangas do MAE-USP, onde não há sequer um único fragmento de tanga
provenientes destes tesos25. Segundo Schaan (op.cit.) em alguns deste
conjunto, como Camutinzinho (M-16) os fragmentos de tangas estavam
ausentes da superfície.
Outro aspecto importante que chama a atenção diz respeito à frequência
dos fragmentos de tangas em relação a outros fragmentos cerâmicos. De
acordo com os dados que podem ser vistos na tabela abaixo, a frequência de
tangas varia entre os sítios do rio Anajás e os sítios do Lago Arari. Nos tesos
do Rio Anajás, representados pelo teso Camutins (M-1 de J-15) e pelo teso
Belém (M-17), os fragmentos de tangas correspondem a 4,36% e 3,89%,
respectivamente, enquanto que nos tesos do Lago Arari, representados pelo
24
De acordo com Schaan (op.cit.) este teso é um monte habitação, com isto a ausência de cerâmica
decorada ali seria esperada.
25
As peças escavadas e coletadas nas superfícies destes tesos foram enviadas ao Museu Paulista e hoje
estão depositadas no MAE-USP.
80
Pacoval e pelo Severino a frequência de fragmentos de tangas é de 13,7% e
13,1 %, respectivamente. Caso estes dados sejam significativos, podemos
sugerir que nos tesos do Lago Arari havia uma maior produção de tangas
cerâmicas.
Total de Fragmentos de
Região Sítio %
fragmentos tangas
Tabela 3. Diferença entre a frequência de fragmentos de tangas entre os sítios do Rio Anajás e
do Lago Arari.
Um aspecto crucial para ajudar a entender uso e descarte das tangas diz
respeito às marcas de uso localizadas nestas peças. Autores como Prous e
Lima (2011) acreditam que as descamações existentes na face interna de
várias tangas poderiam ter sido causadas pelo contato desta superfície com o
suor corporal, ou seja, isto poderia ser considerado um marcador de uso. Ao
81
longo desta pesquisa, percebemos também que os orifícios de amarração de
várias tangas apresentam micro-fraturas ao seu redor, contudo, não podemos
afirmar se tais micro-fraturas foram causadas pelo atrito do cordão de
amarração junto ao orifício durante o movimento ou se foram causadas
somente pelo acondicionamento deste cordão. Apesar da existência destas
características que podem indicar o uso, acreditamos que a análise do
desgaste produzido junto aos orifícios de amarração das peças, além de mais
confiável, é o suficiente para os objetivos desta pesquisa.
Próximo a cada extremidade da tanga há um orifício para fixar um
cordão de amarração, são três no total. Eles estão localizados, geralmente,
entre 1,9 e 3,4 cm de cada extremidade, variando de acordo com a largura
destas pontas (Meggers e Evans, 1957:382). Tais orifícios, segundo Prous e
Lima (op.cit.), apresentam diâmetro variável entre 1,5 e 2,3 mm, embora
tenhamos, ao longo de nossa pesquisa, visto peças com orifícios maiores,
como por exemplo, em uma tanga da coleção Oliveira, depositada no Museu
do Estado de Pernambuco, que apresentou um diâmetro de 0,5 mm.
A quantidade de desgaste produzida pelo atrito do cordão junto aos
orifícios pode variar de nenhuma a um sulco profundo que se estende por todo
o caminho entre o orifício e a extremidade da peça (Meggers e Evans, op.cit.).
Somamos a isto, baseados em nossa observação, o fato de existir peças onde
nem todos os orifícios possuem sulcos (canaletas) de desgaste, ou ainda, com
os seus orifícios com diferentes graus de desgaste. Outras variáveis
influenciam na observação do desgaste, como por exemplo, a integridade das
peças. Com isto, só é possível observar o desgaste em peças completas ou
que possuem pelo menos uma de suas extremidades.
A análise das marcas de desgaste vem sendo feita desde Meggers e
Evans (op.cit.) para a formulação de hipóteses sobre as tangas. Estes autores
tabularam os dados de 110 fragmentos com orifícios recolhidos durante as
suas escavações em J-14 e J-15 e, com isto, obtiveram as porcentagens vistas
na tabela abaixo:
82
Tabulação dos dados provenientes da análise do desgaste dos orifícios das tangas
feita por Meggers e Evans
83
Algumas fotografias foram divulgadas em livros, catálogos, sites de museus
internacionais e casas de leilões.
O objetivo era verificar a existência ou ausência de marcas de desgaste,
por esta razão não nos detivemos na intensidade deste desgaste. Quando
havia canaleta de desgaste em pelo menos um dos orifícios, consideramos tal
ocorrência como marca de uso. A ausência destas canaletas em todos os
orifícios foi considerada como sem marca de uso. Já a inexistência de todos os
orifícios das tangas, de modo a impossibilitar a existência ou ausência destas
marcas, foi considerada como indeterminado.
84
assegurar que pelo menos 115 peças de uma amostra de 210 apresentam
marca de uso, isto é, foram usadas.
26
Uma destas tangas é proveniente da escavação de Meggers e Evans (1957) no teso Guajará do
conjunto Monte Carmelo e as outras são provenientes das escavações de Schaan (2004) no teso Belém
do Os Camutins.
85
de urnas, são poucas as descrições que possibilitam identificar tanto o tipo de
tanga quando o tipo de urna na qual foi encontrada. De qualquer forma, os
sepultamentos são os relatos mais bem descritos sobre os contextos das
tangas.
Apesar de existir um número bem maior de tangas com grafismos do
que tangas monocromáticas nos museus, estas últimas parecem ser maioria
nos sepultamentos. Além disto, a maioria destas peças foi coletada em um
período pré-científico, onde a descrição dos contextos era ignorada, ou é fruto
de saque e escavações ilegais. Sem dúvida uma parcela destas tangas é
proveniente de contextos funerários, todavia, não temos como relacioná-la a
um ou outro sepultamento por falta de documentação. Com base nisto,
podemos sugerir que uma parte significativa destes objetos não eram apenas
itens de acompanhamento funerário, mas também tinham uso em outros
contextos.
Com base em tudo o que foi comentado até agora sobre os contextos
das tangas e sobre a análise das canaletas de desgaste dos seus orifícios que
apontam não apenas para um uso funerário, propomos interpretar a sua
circulação por contextos relacionados aos vivos e aos mortos à luz dos
conhecimentos a respeito do ciclo de vida dos objetos nas sociedades
ameríndias, com destaque especial à teoria da materialidade.
86
Tendo em vista que estas peças eram de uso pessoal e usadas junto ao
corpo, ficando expostas a fluídos corporais diversos, podem ter sido
compreendidas enquanto partes corpóreas destacadas das pessoas que as
usavam. Além disto, em seus processos de fabricação podem ter incorporado
dimensões subjetivas de quem as fabricou, tanto durante o processo de
modelagem da peça como no processo de decoração de sua superfície.
Deste modo, é possível que na ocasião do falecimento de um membro
do grupo, as suas extensões corporais não somente precisassem ser
sepultadas junto, mas também destruídas, para evitar, ao mesmo tempo, tanto
que fossem usadas por outros, quanto para impedir o morto de continuar entre
os vivos por meio de suas extensões corpóreas. Isto explicaria a existência de
tangas quebradas ao fundo de urnas funerárias, e explicaria também a grande
quantidade de tangas sem as extremidades onde se localizam os seus orifícios
de amarração.
Além disto, os próprios membros da sociedade podem ter sepultado
junto aos mortos as suas tangas desgastadas ou quebradas, evitando deixá-las
expostas. Como já comentado, muitas tangas foram encontradas dentro de
potes e tigelas junto a sepultamentos e algumas vezes mais de uma tanga foi
encontrada em uma urna funerária com o corpo de um único indivíduo. Estas
tangas podem ter sido depositadas ao fim do seu ciclo de vida, quando se
quebraram ou a sua pintura se desgastou. Entre vários grupos ameríndios,
toma-se bastante cuidado com o descarte de partes corporais para que elas
não sejam usadas em feitiços contra o seus donos, como por exemplo, entre
alguns grupos do Alto Xingu, onde os feiticeiros se aproveitam de partes, como
o cabelo, inadvertidamente descartadas, para lançar feitiços e, assim,
envenenar os seus inimigos (Barros, 2003; Neto, 2006).
Deste modo, perceber estes objetos enquanto coeficientes de
subjetividade ou partes destacadas de pessoas possibilita também a
compreensão do porquê em um regime de materialidade aparentemente tão
opulento quanto o marajoara, certo objetos considerados raros, e
confeccionados em materiais inexistentes na Ilha de Marajó, como os itens
líticos, como aqueles feitos em pedras verdes, tal como a nefrita e a amazonita,
ao invés de serem transferidos a pessoas da família dos mortos eram
sepultados junto com eles.
87
3.2. Os corpos pintados e a paramentação do corpo
27
A falta de dados estratigráficos e contextuais impossibilita entender qual o significado desta
variabilidade na morfologia das tangas, ou seja, se estas morfologias estavam associadas a
diferenças regionais, cronológicas ou ambas, e mesmo se representavam alguma diferença
interna aos grupos de pessoas que as usavam.
88
Figura 12. Morfologias das tangas de acordo com Prous e Lima (2011)
As medições das tangas com grafismos feitas por nós são bem
próximas àquelas vistas acima, como pode ser observado na tabela abaixo.
Tabela 6. Dimensões verificadas nas tangas de acordo com as morfologias descritas por Prous
e Lima (2011).
89
bastantes reduzidas28, com larguras variando entre 9 e 5 cm e altura entre 6 e
9 cm, todas da morfologia 2.
28
O número sobe para 7 se acrescentarmos uma tanga monocromática da coleção Oliveira, do
acervo do Museu do Estado de Pernambuco, em Recife.
90
produção da cerâmica cerimonial marajoara é bastante comum, como
apontado por Schaan (2004, 2007b). No entanto, a análise dos fragmentos não
mostrou o seu uso na composição da argila, o que poderia indicar um
tratamento diferenciado para a argila das tangas. Em face, da pequena
espessura das tangas, que varia entre 0,5 centrímetro e 1,0 centrímetro, mas
com frequência possui 0.8 centrímetro, há a possibilidade de que o antiplástico
tenha sido evitado, visando uma superfície mais lisa e regular, ou que a argila
seja tão triturada que não deixa grãos perceptíveis na pasta queimada. Apesar
disto, só um estudo comparativo focado na análise do antiplástico entre tangas
e outros objetos, como urnas, pode confirmar se de fato a argila usada na
confecção das tangas possuía um tratamento diferenciado ao de outros
objetos.
Embora haja uma gama diversificada de tipos de decoração conferidos
aos objetos durante a fase marajoara, como, pintura, incisão, excisão,
modelagem e inúmeras formas de combinar estes, às tangas é conferida
apenas pintura que varia entre uma pintura lisa que destaca uma cor uniforme,
e entre uma pintura em pelo menos duas tonalidades cromáticas que se dá por
meio da cobertura da tanga por um engobo de cor clara e por cima deste se
aplicam grafismos de cor mais escura.
A cor das tintas usadas pode variar tanto em função de mudanças
causadas pela temperatura da queima, quanto em função de certas
combinações cromáticas. As tangas monocromáticas mais comuns são as
tangas vermelhas que variam em tonalidade entre o vermelho e o vermelho
escuro (figura 14a). São conhecidas também tangas engobadas de uma cor
amarelo-alaranjada, descrita como tan, que foram registradas pela primeira vez
por Meggers e Evans (1957) e posteriormente por Schaan (2003, 2004) e cujas
coleções do ICBS/MAE-USP e do MPEG possuem exemplares (figura 14b).
Alguns autores registraram também a existência de tangas apenas
engobadas de branco, como por exemplo, Simões (1967) em suas escavações
nos rios Camará e Goiapí, Prous e Lima (op.cit.) e também Palmatary (1950:
293), segundo a qual há uma ou duas tangas decoradas apenas com uma fina
camada de engobo branco, em ambos os lados, na coleção do University
Museum. Tangas engobadas de uma cor creme foram registradas por Prous e
91
Lima (2011: 250) na coleção Tom Wildi, depositada no Museu de Arqueologia e
Etnologia da Universidade Federal de Santa Catarina (MArquE).
92
Com base em nossas observações, bem como nos registro de autores
como Meggers e Evans (1957), Palmatary (op.cit), Prous e Lima (op.cit.),
Schaan (2004) resumimos na tabela seguinte as variações cromáticas das
tangas monocromáticas.
Creme
Branco
Vermelho
Amarelo-alaranjado
Marrom escuro
Preto
93
Figura 15. Tangas com grafismos com engobo de diferentes tonalidades.
A. Engobo de cor amarela decorrente provavelmente da queima. Museu Paraense
Emilio Goeldi, Belém.
B. Engobo avermelhado. Museu Nacional, Rio de Janeiro.
C. Engobo acinzentado decorrente da queima. Museu Nacional, Rio de Janeiro.
94
no caso dos motivos desenhados em linhas duplas que podem ter o espaço
entre as linhas preenchido por tinta de uma tonalidade diferente daquela
utilizada nas linhas, semelhante a um retoque (figura 16d, 16e). Com isto,
padrões em vermelho podem ter os espaços entre linhas preenchidos por tinta
laranja (figura 16d, 16d1) ou por tinta branca alaranjada ou branca rosada, já
os padrões em marrom podem ter as áreas entre linhas pintadas por uma tinta
marrom mais clara, talvez mais diluída (figura 16e, 16e1).
Assim como Prous e Lima (op.cit.), também observamos que a cor dos
grafismos, em uma mesma tanga, pode se alterar progressivamente de uma
área à outra, passando, por exemplo, de uma cor marrom escura a uma cor
mais clara, alaranjada (figura 16b, 16b1). Esta característica é bastante comum
e, segundo Silvia Cunha Lima (comunicação pessoal), estas áreas mais claras
poderiam decorrer do processo de queima quando a cor da tinta, em uma
camada menos espessa, reage à temperatura e se altera. De fato, a análise
dos grafismos de várias tangas, em uma lupa eletrônica, mostrou que a
camada de tinta nestas áreas é mais fina.
95
Figura 16. Variação cromática das tangas com grafismos.
A. Tanga apresentando grafismos pretos sobre engobo creme. Museu Nacional, Rio de Janeiro. B. Tanga com grafismos
marrons apresentando áreas mais claras em vermelho. Museu Nacional, Rio de Janeiro. B1. Detalhe mostrando as áreas
desbotadas. C. Tanga com grafismos marrons escuros sobre branco. Coleção Oliveira. Museu do Estado de Pernambuco, Recife.
D. Tanga com grafismos vermelho com áreas preenchidas por tinta laranja sobre creme. ICBS/MAE-USP, São Paulo. D1. Detalhe
mostrando as áreas com tinta vermelha e laranja. E. Tanga com grafismos marrons com áreas preenchidas por tinta marrom clara/
diluída. Museu do Estado de Pernambuco, Recife. E1. Detalhe mostrando a tinta mais clara.
96
Com base nas observações anteriores sintetizamos as seguintes
variações cromáticas:
29
Esta peça do vestuário é usada também por vários grupos que habitam a região das
Guianas, entre eles os grupos indígenas de língua caribe Tiriyó, Aparai, Kaxuyana, Waiwai,
além dos Wajãpí, índios de língua Tupi que vivem na região delimitada pelos rios Oiapoque,
Jari e Araguari, no Amapá.
97
pessoa que usará a peça e a atividade na qual será usada, ou seja, em
cerimônias ou no cotidiano (Van Velthem, 2003.).
A tanga masculina é
caracterizada por uma faixa
retangular que passa entre as pernas
e é presa por uma corda de algodão,
pendendo na frente. Nas cerimônias,
se caracterizam por serem
extremamente longas, na frente e
atrás, chegando aos tornozelos. Já
as tangas usadas cotidianamente são
curtas, sobretudo, atrás (ibidem).
Já a tanga feminina é
caracterizada por um retângulo de
tecido, disposto na frente e preso ao
quadril por um fio de algodão, e sobre
o qual se usa uma espécie de saiote,
adotado mais recentemente. Já as Figura 17. Jovem e criança Wajana trajando
tangas masculinas. Destaque para a tanga
tangas cerimoniais são tecidas com cerimonial kupime kamisá trajada pelo jovem
Fonte: Van Velthem, 1995: 188.
fios de algodão e miçangas e
apresentam motivos iconográficos em cores contrastantes. As tangas das
crianças, por seu turno, se caracterizam por serem mais estreitas e mais curtas
do que aquelas dos adultos (ibidem).
Não estamos sugerindo uma analogia direta entre as tangas cerâmicas
marajoara e as tangas de tecido industrial dos Wajana e tampouco sugerindo
que os princípios sociais subjacentes à produção deste itens eram os mesmos
ou semelhantes, mas sim destacando que no mundo ameríndio muitas
variáveis do âmbito social estruturam a fabricação das “coisas”, inclusive
tangas, refletindo em sua variabilidade.
Para refletir sobre os princípios sociais que podem ter estruturado a
variabilidade das tangas cerâmicas marajoara acreditamos que seria
necessário um conhecimento bem mais amplo sobre os contextos das peças.
Por isto propormos pensar esta variabilidade vista nas tangas, sobretudo
aquela relacionada às cores e a forma de trabalhar a superfície com as cores, a
98
partir de um importante aspecto do mundo ameríndio que é tangente à
produção e ao uso de adornos, vestimentas e pinturas e que, a nosso ver, pode
estar por trás da produção e do uso das tangas cerâmicas: a importância
conferida à produção e paramentação dos corpos.
Entre as populações ameríndias, no geral, esta importância recai,
sobretudo, no uso de diversos adornos, vestimentas, pinturas corporais, corte
de cabelos, etc, em variantes relacionadas ao seu uso, seja no cotidiano seja
em festas e rituais, itens intimamente relacionados à fabricação e à
socialização do corpo e à noção de pessoa (De Paula, op.cit.; Lagrou, 2007;
Seeger et tal, 1979; Seeger, 1980; Velthem, op.cit.; Vidal, 1992).
É importante destacar que as tangas estão inseridas dentro de um
contexto mais amplo de objetos relacionados à composição e ornamentação
corporal que podem ter estado intimamente ligados à fabricação e à
socialização do corpo e à noção de pessoa. Neste sentido, além das tangas,
outros itens imbricados à pintura e cromatismo, como tintas e potes para tinta,
além de ossos com vestígio de pintura vermelha em urnas funerárias (Ferreira
Penna, 1877; Meggers e Evans, op.cit.; Palmatary, 1950; Roosevelt, 1991), não
são incomuns nos contextos da fase marajoara, o que aponta para a
importância da produção corporal, tanto de corpos humanos quanto cerâmicos.
Pouco sabemos sobre a fabricação e uso de pigmentos, mas Carlos
Estevão de Oliveira, por exemplo, escavou na década de 1920 algumas urnas
funerárias da fase marajoara que possuíam “blocos” de argila vermelha, branca
e amarela em seu interior (figura 18). Estes pigmentos podem ter sido usados
na pintura das superfícies cerâmicas, entre elas as tangas, dado que são de
tonalidades semelhantes à pintura que notamos naquelas.
O pigmento amarelo-alaranjado visto na ilustração 18, por exemplo, é de
uma tonalidade muito próxima às tangas amarelo-alaranjadas, mencionadas
anteriormente (figura 14b), e que são bastante raras. O uso de tinta amarela na
cerâmica marajoara é raro, reduzido a pouquíssimos objetos, como as tangas
já citadas. É possível, no entanto, que ele tenha sido misturado com o
vermelho para produção de tonalidades de laranja, cor que é comum
principalmente em detalhes pintados nas tangas. Entretanto, conforme
mencionado anteriormente, não realizamos nenhum tipo de análise dos
99
pigmentos usados nas tintas, por isso, no futuro, seria interessante desenvolver
análises focadas em sua composição para confirmar.
Figura 18: Blocos de pigmentos vermelho e amarelo encontrados em urnas funerárias. Museu do
Estado de Pernambuco, Recife. Fotografia: Elvira Blázquez.
Além disto, foram encontrados potes com tinta que pode ter sido usada
para a pintura corporal e na cerâmica. Ferreira Penna visitou, em 1873, o sítio
Santa Izabel30 e relata o seguinte
"Foi aqui que eu achei pela primeira vez algumas tinteiras, utensis
indispensáveis aos pintores indígenas, todas elas ornadas de
elegantes e delicados relevos; e uma contendo boa porção de argila
em massa, muito fina, e de côr vermelha, conservando ainda muita
humidade (...)" (Ferreira Penna, 1877: 51).
30
Sítio localizado na região do lago Arari.
100
À vista disto,
Figura 19. “Tinteiras” ou potes para pigmento com orifícios para a suspensão.
a. American Museum of Natural History. Modificado de Roosevelt, 1991:62.
b. American Museum of Natural History. Modificado de Palmatary, 1950: 400.
c, e. Mesmo pote visto sob diferentes ângulos. American Museum of Natural
History. C. Modificado de Pamatary, 1950:300. E. Fonte: Roosevelt, 1991:62.
d. Pote visto de diferentes ângulos. Observa-se o detalhe dos orifícios. Museu
do Marajó, Cachoeira do Arari. Fonte: Schaan, 2009: 387.
101
que diferentes motivos de pintura e adornos corporais são vistos também
representados nas estatuetas (Schaan, 2001; Barreto, 2017)
Diante do exposto até aqui, percebe-se uma preocupação na
composição tanto dos corpos cerâmicos, neste caso específico, as tangas,
quanto dos corpos humanos. Tanto as tangas quanto os corpos dos humanos
eram pintados e produzidos com tintas e é possível que compartilhassem de
decoração semelhante. Além disto, o fato de compartilharem do cromatismo da
tinta e, possivelmente, motivos gráficos semelhantes, aponta ao fato de
compartilharem também das mesmas substâncias, de técnicas semelhantes de
produção.
A etnografia atenta ao fato de que para os ameríndios, em virtude de os
objetos serem entendidos como seres corporificados, que constituem corpos ou
partes de corpos, e por isto, assim como os humanos, com quem compartilham
do antropomorfismo, devem ter a sua “pele” decorada (Lagrou, 2007, 2009;
Van Velthem, op.cit.). Humanos e artefatos são decorados com as mesmas
técnicas, como no caso dos Wajana cuja técnica da pintura cobre tanto os
corpos humanos, como rodas de teto, flechas, utensílios de cabaça e na
cerâmica (Van Velthem, op.cit.). Em alguns casos não só a mesma técnica é
compartilhada, mas também os mesmos motivos gráficos, como se vê, por
exemplo, entre os Asuriní, que utilizam os mesmos grafismos tanto em seus
corpos quanto nos corpos cerâmicos (Müller, 1990; 2013).
Barreto (2009) observou na cerâmica marajoara, sobretudo, nas urnas
funerárias, uma compulsão que incide na cobertura de cada centímetro das
superfícies dos objetos cerâmicos com grafismos extremamente elaborados.
Diante do exposto acima, sugerimos que esta mesma compulsão decorativa
também se estendesse aos corpos humanos, o que poderia ter sido
maximamente expresso, sobretudo, nos contextos cerimoniais, quando os
corpos eram cobertos por vários tipos de adornos, pintura corporal e pelas
tangas elaboradas com grafismos em várias nuances cromáticas e tangas
monocromáticas.
Quanto à variabilidade na decoração das tangas, em nosso entender as
diferentes formas de trabalhar o cromatismo, seja por meio de grafismos
elaborados em composições cromáticas, seja apenas cobrindo a sua superfície
homogeneamente, está relacionada às capacidades que podem ter sido
102
atribuídas à tinta em relação à transformação dos corpos e fabricação de certas
corporalidades, ou seja, na modulação de certas capacidades. Diante disto,
propomos que as tangas com grafismos e monocromáticas podem ter tido
eficácia ritual diferente.
No mundo ameríndio, é no contexto ritual que os diferentes tipos de
pintura agem conferindo capacidades aos corpos sobre os quais estão
aplicados (Lagrou, 2007, 2012, 2013; Müller, 2013; Van Velthem, op.cit.). Em
alguns casos, os grafismos constituem uma pele que torna o corpo permeável,
sujeito a transformações e metamorfoses, apontando, inclusive, para a
transformação da realidade por meio da percepção daquilo que não se vê a
olho nu (Lagrou,op.cit.).
Propõe-se então que a agentividade dos dois tipos de tangas poderia se
relacionar às suas diferentes capacidades de operar transformações e
metamorfoses no campo visual, ou seja, enquanto que as tangas com
grafismos atuavam estimulando a visão, as tangas monocromáticas poderiam
atuar em um sentido oposto. O que estamos dizendo é que tanto quanto
expressam, tintas, pinturas e objetos agem sobre a realidade de maneiras
muito específicas (Lagrou, 2007: 51).
Dito isto, no capítulo seguinte nos focaremos na análise iconográfica das
tangas tentando compreender os processos pelos quais os grafismos
transformam os corpos e estimulam a visão.
103
CAPÍTULO 4.
ANATOMIAS COMPÓSITAS, CORPOS CAMBIANTES
104
Os objetivos da análise
105
4.1. O universo da análise
106
As coleções do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de
São Paulo
Coleção 006
107
Segundo os registros depositados na documentação do MAE-USP, em
1985 foram doadas pelo menos 10 peças marajoara ao Museu Paulista por
Felisberto Camargo. Entre estas peças estavam 07 vasilhames de tamanhos
diversos, uma estatueta-chocalho e duas tangas com grafismos. Destas duas
tangas somente uma se encontra hoje na reserva técnica do MAE-USP, da
qual a procedência é indeterminada.
A maioria das peças de Marajó desta coleção foi coletada por Harold
Schultz, em 1950, e é proveniente de tesos diversos. Entre os itens coletados
estão fragmentos cerâmicos diversos, urnas funerárias, vasilhames diversos,
estatuetas, contas líticas e tangas cerâmicas. Das 09 tangas da coleção, pelo
menos 07 constam no inventário e nas fichas documentais, registrados no
Museu Paulista, como coletados por Harald Schultz. Entre estas, três são
provenientes do teso Furinhos e uma do teso Cueiras, ambos localizados no
conjunto Camutins, no Rio Anajás, uma é proveniente do teso Pacoval do Arari
e mais duas do teso Pacoval dos Melo.
Deste material coletado por Schultz, vários itens não estão mais na
coleção, pois foram doados ou permutados com outras instituições estrangeiras
ainda na época em que estavam depositados no Museu Paulista. Com o Royal
Institute Tropical, em Amsterdam, por exemplo, foram permutados fragmentos
cerâmicos provenientes do teso Severino e do teso Cuieiras, além de uma
tanga do teso Pacoval dos Mello, itens que posteriormente foram transferidos
daquela instituição para o Tropen Museum, em Amsterdam.
Uma parte significativa do material marajoara da coleção 006 que foi
coletada por Schultz em 1950 é proveniente de escavações realizadas em
sítios da fase marajoara entre janeiro e março de 1950. Naquela ocasião uma
equipe do Museu Paulista, composta por Harald Schultz e Myrthes Nogueira, e
acompanhada por Peter Paul Hilbert, representante na época do Museu
Paraense Emílio Goeldi e do antigo Instituto de Antropologia e Etnologia do
Pará, exploraram os tesos do Alto Rio Camutins e os tesos do Severino e do
Pacoval. Os artefatos arqueológicos, produtos destas escavações, foram
enviados ao Museu Paulista (Hilbert, 1952).
As escavações, nos tesos do alto Camutins, foram efetuadas em Furinho
e Cuieiras. Em Cueiras foram escavadas vinte urnas funerárias
antropozoomórficas com rostos estilizados e olhos salientes, além de urnas
108
menores excisas com jacarés modelados, sendo que dentro de uma destas
havia sessenta e quatro contas cilíndricas feitas de uma pedra branca com
pequenas manchas pretas (Meggers e Evans, 1957:300). Além disto, segundo
consta nos inventários da coleção 006, foram escavados materiais associados,
como por exemplo, uma urna menor que estava dentro de uma maior e
também um apito que estava dentro de uma urna. Já em Furinho foram
escavados um botoque cerâmico e cinco tangas, a maioria delas
monocromática (Meggers e Evans, op.cit.).
Entre as 4 tangas provenientes destes tesos, existentes atualmente
nesta coleção, uma foi escavada em uma urna em Cuieiras (Hilbert, op.cit.),
todavia, não foi possível relacionar esta tanga existente a uma urna funerária
específica. Das 5 tangas escavadas em Furinho, 2 com grafismos e 3
monocromáticas, só restaram 3 no MAE. As outras 2 possuem paradeiro
incerto. É possível que uma delas tenha sido permutada com o Tropen
Museum, já que há na coleção deste museu 2 tangas, uma delas obtida por
meio de permuta com o museu Paulista. Já a outra não foi possível localizar.
109
tangas, sendo destas 53 com grafismos e 59 monocromáticas, em vários
estados de preservação e integridade.
A coleção Luiz Otávio é composta por cerca de 200 peças, entre elas 79
tangas. Destas 79, hoje no MAE-USP, 62 permanecem catalogadas nesta
coleção. As outras 17, durante a transferência para o MAE, como ainda não
estavam identificadas foram misturadas com tangas das outras coleções,
também não identificadas. Entre estas 62 identificadas, existentes no MAE, 29
apresentam grafismos e 33 são monocromáticas.
A coleção Graciete é composta por 403 peças, entre elas 5 urnas
funerárias grandes, 67 urnas ou vasos médios, 8 bancos, 31 tigelas médias e
pequenas, 8 pratos, 6 estatuetas, 53 peças entre rodelas de fuso, bodoques e
miniaturas de tigelas, um carimbo feito de osso, 5 lâminas de machado,
fragmentos cerâmicos diversos e 12 tangas. Destas, apenas 5 permanecem
catalogadas nesta coleção no MAE, pelo mesmo problema descrito acima,
sendo 4 com grafismos e 1 monocromática.
Tanto a coleção Luiz Otávio quanto a coleção Graciete são provenientes
da Fazenda São Marcos, onde estão localizados os tesos Camutins e o teso
Urubu, ambos do conjunto conhecido como Os Camutins.
A coleção Maurício Teixeira é composta por 37 peças, entre elas uma
urna funerária média, 6 estatuetas, 3 pratos, 6 tigelas, 4 vasos, fragmentos
variados e 8 tangas. Destas 8 tangas apenas 3 permanecem catalogadas na
coleção, pelo problema já descrito, sendo uma tanga com grafismos e duas
vermelhas. Todas as peças desta coleção, com exceção de uma tigela que foi
doada por Dita Acatauassu, são provenientes da Fazenda Monte Carmelo,
onde se localiza o conjunto de tesos conhecido como Monte Carmelo,
composto por três tesos.
A coleção Dita Acatauassu é composta por 45 peças, sendo duas urnas
pequenas, 12 vasos e tigelas fundas, 5 pratos, 9 estatuetas fragmentadas,
fragmentos diversos e 12 tangas fragmentadas. Destas 12 tangas, seis
permanecem catalogadas na coleção, sendo 4 com grafismos e duas
monocromáticas. Esta coleção foi formada por Dita Acatauassu a partir de
peças coletadas, doadas ou trocadas, provenientes de vários sítios da Ilha de
Marajó, por esta razão é impossível determinar uma procedência destas peças.
110
Coleções do Museu Paraense Emílio Goeldi
111
tangas. No total, este acervo é composto por 21 tangas, sendo 16 com
grafismos e cinco monocromáticas.
Museu Nacional
112
entanto, em função das precárias formas de registrar e sistematizar a entrada
destes objetos naquela época, não há informação sobre a procedência das
peças deste acervo.
A coleção abrange peças provenientes das explorações de Charles
F.Hartt, Orville Derby, Ladislau Netto e de Domingos Ferreira Penna aos tesos
Pacoval e Camutins, na década de 1870, e das pesquisas de Heloísa Alberto
Torres, em 1930, no teso Pacoval do Cururu.
O conjunto de tangas analisadas neste museu é composto por 53 peças,
sendo destas 17 inteiras e as demais fragmentadas. É importante destacar que
a coleção de tangas desta instituição abrange também seis tangas
monocromáticas inteiras, além de 22 fragmentadas, além de diversos
fragmentos de ambos os tipos, incluindo 95 fragmentos provenientes das
pesquisas de Meggers e Evans (op.cit.).
Coleções diversas
113
Tangas de coleções diversas
Coleção/ Instituição Quantidade Procedência
Museu do Marajó, Cachoeira do
8 Indeterminada
Arari
Fazenda São Marcos. Tesos Urubu e
Antiga coleção Instituto Cultural Camutins.
2
Banco Santos, São Paulo Fazenda Monte Carmelo, tesos do
Monte Carmelo
Coleção Montenegro /Museu do
Instituto Histórico e Geográfico de 2 Pacoval
Alagoas, Maceió
Coleção Governo do Estado do
Fazenda São Marcos, Rio Camutins,
Pará/ Museu do Forte do Presérpio e 8
Tesos Urubu e Camutins.
Museu das Gemas, Belém.
Museu Rocha Santos, Figueira da
1 Pacoval
Foz, Portugal
Museu Nacional de Etnologia,
2 Teso Camutins
Lisboa
American Museum of Natural
6 Pacoval
History, Nova York
Anthropology Collections of Cornell
1 Pacoval
University, Ithaca
TOTAL 57
114
4.2. Caminhos para a análise dos campos gráficos e dos grafismos
115
simetria, etc. Tais aspectos poderiam ser utilizados, por exemplo, em análises
visando à definição de estilos ou microestilos específicos, mas também
poderiam ser usados para avançar o conhecimento sobre culturas especificas,
o que poderia abrir caminho para análises dos aspectos simbólicos dos
grafismos.
Para Shepard (op.cit.), priorizar os aspectos formais dos grafismos não
significa negar a existência de relações entre o aspecto formal e o aspecto
simbólico, mas mostra que existe a necessidade de usar diferentes métodos de
estudo para cada um. Por esta razão, ao mesmo tempo que nos apoiamos em
alguns aspectos da abordagem desta autora também achamos útil, para
entender a agentividade destes grafismos, a proposta de Gell (op.cit.), descrita
mais à frente. Dito isto, elencamos a seguir alguns pontos de Shepard (op.cit.)
útil para a nossa análise.
A estrutura dos campos gráficos, para esta autora, diz respeito ao plano
aparente, às principais divisões espaciais, e à relação das partes que
compõem o campo. Para a análise das tangas tais sugestões parecem
razoavelmente aplicáveis, uma vez que estas são constituídas por campos
gráficos bem delimitados e, com isto, as suas especificidades podem ser
melhor vislumbradas de modo a revelar recorrências estruturais.
Nesta abordagem, o primeiro passo a ser dado é a identificação das
delimitações e divisões estruturais primárias do campo gráfico com o intuito de
verificar os métodos de composição. É comum, nos grafismos, que o
procedimento da oleira ao delinear e tratar o espaço envolva a elaboração de
linhas, a divisão e a subdivisão do campo ou a composição do campo com a
repetição de um motivo por meio de movimentos simétricos.
Estreitamente relacionada à análise da estrutura dos grafismos está a
análise da simetria e dos movimentos simétricos. Para tanto, Shepard (op.cit.)
propõe também a sua classificação com base em três classes de simetrias, a
simetria bilateral, a simetria rotacional e a simetria radial. A simetria bilateral é
caracterizada pelo espelhamento; na rotacional há um ponto de rotação em
torno de um mesmo número de repetições dentro de uma revolução; a simetria
radial combina reflexão e rotação. Para a classificação da simetria, contudo, é
necessária a identificação da parte básica e do movimento pelo qual ela é
116
repetida, ou seja, a única parte a partir da qual toda a composição pode ser
obtida pela repetição regular de um elemento ou motivo.
Destacamos que certos campos gráficos vistos nas tangas
correspondem ao tipo de campo que Shepard (op.cit.) denominou de banda.
Esta autora denominou os grafismos deste campo de padrões de banda, que
são formados a partir da repetição de um elemento gráfico, ao longo de uma
linha reta, por uma série de movimentos como translação, reflexão longitudinal
ou horizontal, reflexão transversal ou vertical, rotação dupla, reflexões
longitudinal e transversal combinadas, reflexão deslizante ou movimento de
parafuso e rotação e reflexão transversal alternadas.
117
Todos estes movimentos estão intrinsecamente relacionados à formação
daquilo que Gell chamou de padrões complexos. Estes padrões agiriam como
armadilhas que atraem e prendem o olhar e a mente do espectador em seus
emaranhados gráficos, de modo a deixá-lo capturado nas suas “tramas”,
experiência esta que poderia gerar uma espécie de frustração prazerosa, mas
que possibilitaria a ele
uma maneira de se
relacionar com o objeto
recoberto pelos grafismos.
Por esta razão são
considerados padrões
labirínticos, pois capturam
o olhar e o observador se Figura 21. Movimentos empregados na formação dos
prende nele como em um padrões complexos. Fonte: Gell, 1998.
labirinto (Gell, 1998: 79-80).
Importante também para a estruturação dos campos gráficos das tangas
é o princípio da representação desdobrada. Este princípio foi primeiramente
descrito por Boas (1996 [1928]) em sua análise da arte dos povos ameríndios
da costa noroeste da América do Norte e, basicamente, consiste em uma forma
de representar figuras tridimensionais em superfícies bidimensionais, cortando-
as e encaixando-a sobre uma superfície plana, resultando em uma imagem
composta por dois perfis unidos pela cabeça, vistas de frente e "sem costas".
Este princípio pode ser acompanhado também do deslocamento do tema que é
a distorção ou estilização dos corpos figurados para que se adaptem à
superfície (Boas, op.cit.; Levi-Strauss, 2008[1958]).
Figura 22. Figura de urso em um bracelete de prata Haida composta pela união de dois perfis.
Fonte: Covarrubias, 1961:43.
118
cauda, de modo que os perfis se juntam no meio, ou ainda uma cabeça pode
ser vista de frente apresentando dois perfis do corpo lateralmente (Boas, 1996).
Levi-Straus (2008 [1958]) identificou na pintura
facial Kadiwéu um tipo de desdobramento composto
por dois motivos. Neste caso, a imagem é construída
simetricamente em relação a dois eixos, um vertical no
centro da face e o outro horizontal, na altura dos olhos,
que se cruzam na base do nariz, dividindo o rosto em
quatro setores triangulares, dois superiores e dois
inferiores, que são posteriormente elaborados com
motivos que se repetem invertidos no triângulo oposto.
No entanto, a composição destas pinturas em Figura 23. Desenho Kadiwéu
sobre papel replicando a
torno destes eixos perpendiculares estrutura o rosto pintura facial que é construída
por dois motivos invertidos ao
por meio de um procedimento de desdobramento longo de dois eixos de
simetria.
“redobrado”, uma vez que o rosto não é recomposto
em dois perfis, mas em quatro quartos, o que está intimamente relacionado ao
deslocamento. Aqui, a aparente assimetria que este desdobramento engendra,
possui a função formal de garantir a distinção dos quartos, que se confundiriam
em dois perfis se os campos se repetissem simetricamente ao invés de se
oporem pelo vértice.
Na Arqueologia, este princípio tem
sido empregado enquanto uma ferramenta
analítica para a caracterização dos
componentes iconográficos das cerâmicas
pré-coloniais, permitindo identificar o modo
como as diferentes partes das imagens se
articulam (Barreto, 2009; Oliveira, 2016).
Especificamente no material
marajoara, Barreto (op.cit.) observou que
em certas vasilhas e urnas funerárias os
campos gráficos são estruturados por um
Figura 24. Tigela com grafismos
desdobramento a partir de dois eixos de desdobrados. Coleção ICBS-MAE, Museu
de Arqueologia e Etnologia, São Paulo.
simetria perpendiculares que torna possível Fonte: Barreto, 2009.
119
a percepção de várias figuras (figura 24). Algumas delas, por exemplo,
possuem em suas paredes laterais internas uma figura desdobrada ao longo de
um eixo de simetria horizontal e que é reunida compondo um corpo losangular
com duas cabeças (Barreto, 2009:150). Esta figura é espelhada
horizontalmente nas paredes laterais das duas metades internas da vasilha, e
são encadeadas por certos elementos que quando justapostos às figuras que
aludem a cabeças criam uma cabeça intermediárias entre elas.
Este príncipio se aplica também às tangas, em cuja construção das
imagens, inúmeras vezes, as figuras são duplicadas por meio do
dedobramento a partir de um eixo vertical, criando uma nova figura, como é
possível observar na figura 25. Além disto, outros tipos de desdobramento
ocorrem, mas voltaremos a eles no decorrer deste capítulo.
campos
gráficos
N.º de 15 17 47 92 4 0 1 34 210
tangas
% 7,1 8,0 22,4 43,8 1,9 0 0,5 16,2 100
121
definimos quatro áreas mais
frequentes que chamamos de
banda 1, banda 2, painel gráfico
e linhas.
Logo abaixo do painel
gráfico, localizado junto à
extremidade inferior, é comum
que haja linhas simples, duplas,
às vezes reticuladas, que podem
ser horizontais, verticais e às
vezes, flexionadas. Em 46% das
tangas analisadas, ou seja, 97
Figura 26 - Delimitação dos campos gráficos das
peças, este campo estava tangas.
A banda 1
122
seu turno, é a mais incomum, e compõe uma parte muito pequena da amostra,
estando presente em 3 tangas (figura 27).
Somente 15 tangas
apresentaram outros tipos de
padrões na banda 1, ou seja,
7,1%, do total ( Figura 28). Destas
15 tangas, 3 apresentaram o
padrão 2; o padrão 3 apareceu só
em uma tanga; o padrão 4 ocorreu
em 4 tangas, o padrão 5 ocorreu
em 6 tangas e o padrão 6 somente Figura 28 - Padrão da banda 1 menos recorrentes.
em uma tanga. Observamos que a
ocorrência destes padrões é mais comum quando não há uma segunda banda.
Destas 15 tangas que apresentaram estes padrões, 13 possuem apenas a
banda superior. Nisto, é muito interessante notar que todas as vezes que os
padrões 4 e 5 ocorrem eles estão na única banda da tanga. Analogamente, a
variante “B” do padrão 1 (Figura 27.1b), em todas as suas 20 ocorrências,
integravam a única banda das tangas.
123
Barreto (2009) percebeu um tipo de padrão composto por figuras
geométricas, visto na borda de certas urnas funerárias, bastante semelhante
com aquele padrão 1 de banda mais recorrente nas tangas. Nas urnas
funerárias este padrão sintetizaria toda a composição da urna e de seus
elementos estruturais e ajudaria na estruturação e organização simétrica dos
desenhos no restante do corpo da urna.
Nas tangas, especificamente, não parece que este padrão tenha uma
função estruturante, já que há casos onde ele não ocorre, como visto nas
tangas que não possuem as duas bandas ou mesmo naquelas onde o padrão
do tipo 1 é substituído por outro tipo.
A banda 2
124
longo da banda por meio da reflexão, criando um espaço hexagonal entre um e
outro, onde são dispostos elementos diversos.
Figura 29. Padrões da banda 2 do tipo 1. Padrões compostos por triângulos espelhados
nos vértices.
125
Padrões do tipo 2. Este grupo de padrões é composto por motivos que
apresentam certas recorrências estruturais e gráficas, como por exemplo, a
repetição de triângulos, na maioria das vezes, elaborados com figuras de T em
seu interior, linhas duplas, etc., espelhados verticamente por meio da reflexão
deslizante, o que cria um desenho negativo em ziguezague que, às vezes,
pode apresentar também uma linha em ziguezague sobreposta.
Figura 31. Padrões da banda 2 do tipo 2 compostos por triângulos replicados por
meio da reflexão deslizante.
Figura 32. Algumas variantes do padrão 2 em tangas . Esquerda: Museu Nacional, Rio de
Janeiro. Fonte: Netto, 1885. Direita: Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém.
126
Padrões do tipo 3. Este padrão é o menos recorrente tendo a sua
presença limitada a certas tangas. É composto por elementos em forma de
pentágono com linhas duplas em seu interior que são replicados por meio da
reflexão deslizante, formando um padrão que Shepard (op.cit.) caracterizou
como allover.
O painel gráfico
127
1- O painel gráfico é subdividido em painéis menores que podem ser
verticais ou horizontais. Ou podemos descrever estes painéis como sendo
compostos por um motivo gráfico que é espelhado (duplicado ou desdobrado)
128
Figura 36- Estrutura do painel gráfico criada a partir da repetição de quadrantes por
meio da translação.
Tabela 12. Principais tipos de simetrias observadas no painel gráfico e a sua frequência
Das 210 tangas, 90% apresentam simetria reflexiva, o que mostra que a
reflexão é o movimento mais empregado na composição do painel gráfico.
Nestes painéis há sempre um eixo de simetria, que é visível ou virtual,
dividindo a área em duas metades iguais. Quando este eixo é virtual ele é
sugerido por meio de linhas ou elementos centrais (figura 37a e 37b) ou pode
129
ser delimitado por duas áreas bem visíveis subdivididas por quadrantes ou
painéis (figura 37c e 37d).
Figura 37. - Padrões gráficos compostos por meio da simetria reflexiva, ou bilateral. Nota-
se em A e B que o eixo de simetria é um eixo virtual, enquanto em C e D, os eixos são
sugeridos por meio dos limites dos próprios motivos gráficos.
a, b- Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém.
c- Museu de Arqueologia e Etnologia/ USP, São Paulo.
d- Museum Für Völkerkunde, Berlim. Fonte: Mordini, 1929.
130
enquadramento, contudo, é que ele cria uma imagem cuja estrutura e efeito
visual priorizam um jogo vertical de movimentos.
Os padrões das duas bandas também sugerem a sua continuidade em
um plano virtual, entretanto, eles não destacam uma imagem específica dentro
de uma imagem maior, mas sim várias figuras que são sugeridas por meio da
cadência dos movimentos, e que se movimentam em um plano horizontal
infinito. Temos aqui, então, um jogo visual pautado em movimentos e efeitos
visuais distintos, isto é, figuras que apreendem o olhar do espectador
conduzindo-o através de um plano horizontal para áreas não visíveis da
imagem, e figuras cuja verticalidade conduz o olhar para dentro de si mesmas.
Isto poderia ser indício de um sistema visual pautado em escalas de
visibilidade e invisibilidade, ao modo das imagens quiméricas dos contextos
etnográficos (Severi e Lagrou, 2013), sugerindo que as diferentes partes da
imagem se relacionam entre si através de operações estruturadas por meio da
complementaridade entre aquilo que é dado a ver (no caso das imagens
verticais do painel gráfico) e aquilo que é sugerido (no caso das imagens
horizontais das bandas).
131
Figura 38. Tangas com padrões gráficos onde é possível observar corpos de seres e
partes de corpos, como faces.
a. Coleção Oliveira, Museu do Estado de Pernambuco, Recife.
b. Musée d'ethnographie de Genève, Geneva.
133
iconográficos, mas tratados de formas diferentes, no caso de Swift Creek,
bidimensionalmente, e no caso de Weeden Island, tridimensionalmente.
Percebemos a recorrência de vários motivos graficos que parecem fazer
alusão sempre aos mesmos seres. Estes motivos às vezes podem ser mais
facilmente reconhecíveis, outras vezes, estes
seres se apresentam de maneira mais
esquemática, mas ainda assim trazem
semelhanças morfológicas com aqueles
identificados à primeira vista, o que, em um
contexto cultural, subjacente a ontologias e
cosmovisões específicas, a abdução da
agência, nos termos de Gell (1998), poderia
desempenhar um papel fundamental, já que
poderiam ser reconhecidos pelas relações que
mantêm entre si.
Schaan (op.cit.) observou a existência,
em certas urnas funerárias, de um réptil
bastante estilizado, com cabeça, corpo, rabo e
membros, figurado por meio da modelagem. As
Figura 39 - Urna Funerária com
características deste ser são bastante decoração excisa e figura
sauromorfa modelada. University
ambíguas, ora sugerindo alguma espécie de Museum. Fonte: Palmatary, 1950.
134
Figura 40- Figurações do "sauro" desde a sua figuração mais realista até a sua
simplificação mais elementar. Fonte: Schaan, 1997.
Figura 41. Ser sauroformo figurado em urna. Nota-se a forma amendoada do seu corpo, o
que parece ser uma característica básica de sua figuração. Acervo do Sistema Integrado
de Museus e Memoriais/ SECULT-PA, Belém. Fotografia: Armando Queiroz.
135
2. Tronco figurado ou sugerido por forma losangular ou amendoada e,
por vezes, quadrangular.
3. As patas podem ser sugeridas por tridígitos.
4- Sempre é exibido de corpo inteiro, como se fosse visto por cima ou
pela frente.
5. Corpo simetricamente duplicado.
136
Figura 42 – Seres figurados nas tangas que poderiam aludir a sauros. Destacam-
se certas características, como corpo simetricamente duplicado, membros
“abertos” e corpo losangular.
a, e, f: Museu Nacional, Rio de Janeiro;
b: Antiga coleção Instituto Cultural Banco Santos;
c: Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém;
d: Coleção Oliveira, Museu do Estado do Pernambuco, Recife.
137
aparece sempre associado à figura do sauro, constituindo o seu dorso ou
ventre, o que foi, inclusive, observado por Carvalho (op.cit.).
Figura 43. Motivos “cruz no medalhão” que constitui o dorso do sauro em muitos casos.
a. Motivo aludindo ao sauro-humano com o dorso constituído pelo motivo.
b, c. Motivos cruz no medalhão, como vistos nas tangas.
138
Figura 44- Detalhe destacando o motivo que alude à figura do peixe-serpentilíneo em uma
urna funerária proveniente do conjunto Fortaleza. University Museum. Fonte: Palmatary,
1950.
139
face (figuras 46a, 46b, 46c, 46d), ou mais simplificados, quando são reduzidos
a motivos triangulares cujos escalonados foram elaborados na sua parte
interna, criando uma figura negativa em T, ou seja, uma “pirâmide escalonada
invertida”, como é possível observar nas figuras 46e e 46f.
Figura 46. Motivos “pirâmide escalonada” que aludiriam à cabeça do ser serpentelíneo.
a,b.c,d. Motivos elaborados de maneira mais icônica.
e,f. Motivos simplificados com os degraus invertidos criando uma figura em negativo
em forma de T em seu interior.
31
Consultado em ambientes.ambientes.brasil.com.br e em www.fishbase.org
140
Algumas das características mais marcantes das espécies de surubim
incluem longos barbilhos junto à boca, cabeça larga e corpo muito fino. De fato,
o seu corpo é muito alongado e roliço e com um comprimento que pode atingir
até um metro e meio. Estas características são bem sugestivas, principalmente
se comparadas às características da figura que estamos tratando na
iconografia marajoara, cujos traços incluem uma grande cabeça triangular da
qual saem volutas ou ganchos que poderiam remeter aos barbilhos daquele
bagre. Além disto, o corpo desta figura é bastante alongado e mais fino do que
a sua cabeça, da mesma forma que o do bagre. Entretanto, é muito difícil fazer
qualquer referência com esta ou qualquer outra espécie de peixe, visto que,
conforme Schaan (1997:148) mostrou, nem sempre as figurações dos animais
obedecem aos princípios anatômicos, de modo que somente algumas
características são empregadas, mas sem fidelidade ao protótipo.
Esta associação se torna ainda mais problemática, principalmente,
devido ao caráter dinâmico da iconografia marajoara, onde um ser pode ser
vários seres ao mesmo tempo. A serpente, um ser bastante frequente na
iconografia desta cerâmica, sobretudo, nas urnas funerárias do tipo Pacoval
Inciso (Figura 47), possui também um corpo alongado, por esta razão é
complicado definir se o ser em questão é um peixe ou uma cobra, pois talvez
seja ambos. Como vimos, o mesmo ocorre com a figura do sauro, onde um
jogo pautado em semelhanças e qualidades agentivas expressa as relações
entre os referentes, de modo que em certos casos a figura pode ser ao mesmo
tempo, um ser zoomorfo, antropomorfo e antropozoomorfo.
141
Figura 47- Motivo de serpente em urna do estilo pacoval inciso. Museu Etnológico de
Berlim. Fonte:
a. smb.museum. Fotografado por Christin Griesheim.
b. Barreto, 2009.
c. Schaan, 2001. Desenhado por Garth Denning
142
figuras. Diante disto, é necessário, antes de seguirmos adiante, um enfoque
especial sobre as atuais teorias a respeito da figuração e formas de percepção
no mundo ameríndio.
143
pele de outro ou de vários outros seres ao mesmo tempo. Em sua arte gráfica
certos grafismos podem ser decompostos em diversas partes que possuem
significados independentes, como é o caso do tema gráfico do “caranguejo”,
que contém o tema do “olho da anta”. Ainda na arte wajana, esta anatomia
compósita pode ser empregada para a figuração de um ser com temas gráficos
que aludem a suas possíveis transformações, fazendo isto por meio do
desenho de um único animal que traz em sua pele temas gráficos que
representam outro (Severi, 2013: 56).
Estas anatomias compósitas são vistas também em imagens
provenientes de contextos arqueológicos, sempre aludindo a transformações
corpóreas, conforme pode ser visto em certos vasos da Tradição Policroma da
Amazônia, cujos temas iconográficos remetem a seres antropomorfos com
braços serpentilíneos formando outros seres como felinos, aves e outros
corpos em transformação (Oliveira, 2016). Uma anatomia semelhante é vista
também em certas urnas funerárias do estilo Pacoval Inciso, da ilha do Marajó,
onde os braços são compostos por cobras, os ombros por apliques modelados
como cabeças de pássaro e olhos em forma de escorpião (Barreto, 2014).
A corporalidade e a potência transformativa dos corpos, bem como as
suas relações com as cosmovisões específicas têm sido o foco de abordagens
teóricas centradas no estudo das imagens do mundo ameríndio. Estas estão
preocupadas com as técnicas de percepção e materialização das imagens em
ontologias perspectivistas, marcadas pela potência transformativa dos corpos e
pela comunicação das interioridades escondidas neles (Lagrou, 2008; Lagrou e
Severi, 2013).
O foco destas abordagens tem recaído sobre as imagens compósitas e
na relação entre as suas diversas partes, bem como na cadeia de operações
cognitivas relacionadas à sua percepção. Severi (2007, 2013) denominou de
“quiméricas” as imagens cuja intensificação de sua eficácia se dá pelo
processo de mobilização das suas partes invisíveis através da inferência visual.
Estas associam em uma única forma índices visuais provenientes de uma
miríade de seres, cujos traços visuais oferecem poucas pistas ao olhar e,
portanto, para a sua interpretação o observador necessita projetá-la
mentalmente, completando os seus traços invisíveis por meios puramente
visuais (um olho mental) ou por um conjunto de inferências (Severi, 2013:45).
144
O que caracteriza morfologicamente estas imagens é um princípio de
organização do espaço que, ao provocar diferentes tipos de projeções, cria
uma ilusão específica entre uma forma mostrada e outra apenas sugerida. Com
isto, estas imagens são um tipo específico proveniente da articulação entre a
representação icônica e a indicação indicial de uma existência imaterial, ou
seja, é uma imagem gerada pelo pensamento por meios indiciais.
Esteticamente o que caracteriza o espaço quimérico, é
145
considerada o protótipo de todos os seres que picam. Na ontologia wajana o
ato de ferir, picar ou perfurar é considerado uma forma paradigmática de
predação, onde o ato de flechar ou atingir de modo a atravessar a pele é
característico das flechas e de certos animais como cobras, vespas, escorpiões
e de certas aves, como a cegonha maguari. No motivo gráfico que designa esta
ave, ela é indicada em posição de vigilância, mas o motivo também representa
a flecha, assim como qualquer animal predador que ao modo dela atinge a sua
presa, de forma que o motivo poderá designar indeterminadamente tudo aquilo
que pica.
A lógica que pauta o caso
inverso, ou seja, quando séries de
grafismos designam um único ser,
é a de predador ancestral, um ser
que se manifesta por meio de
uma série de metamorfoses e que
por isto é figurado como um ser
coletivo. Isto pode ser visto, por
exemplo, nas pinturas das rodas
de teto da casa cerimonial, as
maluana. Há uma série de temas
gráficos que remetem a diversos
Figura 50 - Roda de teto (maluana) figurando a
"raia enquanto anaconda". seres híbridos, como anacondas-
jacarés e peixes com características de mamíferos e aves, mas cuja série
figura a “raia enquanto anaconda” 32.
Uma abordagem mais específica de “quimera” pautada nas
especificidades do mundo ameríndio foi conceitualizada por Lagrou (2013) a
partir da conciliação da proposta de Severi (op.cit.) com o perspectivismo
ameríndio de Viveiro de Castro (2002). Aqui, a autora propõe que as imagens e
grafismos ameríndios sejam considerados como instrumentos perceptivos que
32
Esta categoria está pautada no entendimento da anaconda enquanto um modelo de predador. Para
os Wajana os atos predatórios desta serpente possuem um caráter tão paradigmático que, além de
remeterem à dimensão sobrenatural, podem ser aplicados a outras espécies de animais, de modo que
se possa atribuir a outros seres, instintos de predação associados à anaconda, assim nestas ocasiões, a
anaconda vestirá a pele destes animais (Velthem, 2003 apud Severi, 2013:54).
146
envolvem operações mentais específicas apoiadas por uma ontologia marcada
pela transformabilidade das formas e do corpo (Lagrou, 2013:68).
Esta proposta é fundamentada no postulado que considera o caráter
perspectivista e “animista” das sociedades ameríndias, marcadas por uma
transformabilidade das formas e pelo contraste entre uma interioridade e uma
exterioridade não necessariamente coincidentes, onde um ser humano pode
ocultar um corpo não-humano e um não-humano pode ocultar um corpo
humano (Lagrou, 2013: 68).
A abordagem se foca, sobretudo, no dinamismo latente dos grafismos
que, apesar de serem aparentemente abstratos, podem abrir e revelar à
percepção uma figura (Lagrou, 2013: 69). Esta é uma característica
paradigmática dos grafismos das ontologias transformacionais amazônicas,
onde a relação entre tais grafismos e as figuras trazidas à percepção é
marcada pela transformabilidade, e por esta razão os grafismos são vistos
como caminhos para a visualização de imagens virtuais. Entre os Kaxinawa,
por exemplo, o desenho é percebido como um caminho, uma porta de entrada
para se referir a outras imagens em movimento, imagens estas que podem
apenas ser vislumbradas para quem está preparado e em circunstâncias
específicas (Lagrou, op.cit.).
Entre vários povos amazônicos existem muitos procedimentos formais
característicos dos grafismos que, segundo Lagrou (2013:68), podem ser
interpretados como “técnicas perspectivistas” que possibilitam ao espectador
mudar de ponto de vista por meio de um enquadramento específico. Estas
técnicas estão voltadas, particularmente, para a configuração do espaço
perceptivo, obtida por meio do jogo entre linhas que se superpõem a um
espaço preexistente, o que permite transitar alternadamente de uma percepção
a outra, como por se nota, por exemplo, no jogo de contraste entre figura e
contrafigura (Lagrou, 2013: 81).
Na arte gráfica de vários povos amazônicos, o jogo entre simetria e
assimetria está relacionado à simultaneidade de mundos visíveis e invisíveis,
que leva o olhar a não se deter em uma figura previamente delineada por um
fundo, mas sim perceber uma figura simultaneamente com a contrafigura, o
que, assim como as armadilhas de Gell (1998), produz um efeito sinético que
147
anima o suporte e captura o olhar do seu observador, projetando-o para dentro
do espaço gráfico delineado (Lagrou, 2013: 69).
Neste jogo entre o que é visto e o que é
apenas sugerido, a introdução de pequenos detalhes
assimétricos rompe com a simetria do conjunto e
funciona como “uma tecnologia de transformação
interna à estrutura da imagem”, criando imagens
diferentes (Lagrou, 2013: 87). Outro aspecto formal
crítico diz respeito à interrupção do desenho assim
que ele se torna reconhecível, sugerindo a sua
continuidade para além do suporte, o que ocorre na
arte gráfica de vários grupos, como por exemplo, nos
tecidos Kaxinawa, na tecelagem Yudjá, na cestaria
xinguana e nos desenhos Karajá e Asurini. Müller
(1992), especificamente no caso dos grafismos
Asurini, chama esta operação onde o grafismo é Figura 51. Banco Karajá
coberto com grafismos
recortado para destacar uma parte do desenho recortados que sugerem a
sua continuidade ao infinito.
infinito de “janela ao infinito”. Fonte: Lagrou, 2013: 91
Estas quimeras abstratas, caracterizadas,
como já sublinhamos, pelo grafismo enquanto uma passagem para figuração
virtual, ocorre em vários sistemas gráficos ameríndios, mas particularmente
entre os Asurini possuem um caráter paradigmático. Ali, toda a abstração
aponta para a figuração, já que a
figuração daquilo que está oculto é
parte integrante da Tayngava,
presente na maioria das pinturas
corporais. Aqui, o grafismo se torna
uma figuração virtual que possibilita
completar mentalmente a imagem do
Tayngava em uma imagem virtual
dos espíritos a’anga a partir de
poucos índices dados. Há um motivo Figura 52- motivo tayngava asurini. Coleção
Darcy Ribeiro, Museu do Índio, Rio de Janeiro.
semelhante ao Tayngava entre os Fonte: Lagrou, 2013:95.
148
Wauja e os Kalapalo, do Alto Xingu, que apesar de apresentar nomes
diferentes entre os dois grupos, possui um caráter antropomorfizante que pode
ser visto tanto no esquema do motivo que alude aos elementos mínimos da
figuração humana, quanto no caráter metonímico da sua relação com o ser que
o recebe, que possui capacidade de ação humana (Lagrou, 2013:95-96).
Na Arqueologia Amazônica a questão da transformabilidade dos corpos
tem sido destacada por alguns trabalhos (Barreto, 2009, 2014; Oliveira, 2016).
Algumas ferramentas analíticas utilizadas na Arqueologia andina, como aquela
desenvolvida a partir do conceito de kenning, e voltada para o estudo das
imagens elaboradas por meio da sobreposição de figuras que aludem a
diversos seres ou às partes anatômicas deles, têm sido útil para a
compreensão das imagens de contextos arqueológicos da Amazônia, servindo
como ponto de partida para a reflexão das especificidades imagéticas vistas
naquele contexto (Barreto, 2014; Oliveira, op.cit.). O uso desta ferramenta em
contextos amazônicos, quando consideradas as particularidades ontológicas e
cosmológicas que pautam a produção das imagens, pode ser bastante útil para
entender as relações e as dinâmicas envoltas em tais imagens.
O conceito de kenning foi proposto inicialmente por Rowe (1962) para a
arte de Chavín de Huántar, e posteriormente, estendido a outros contextos.
Este autor sugeriu que a iconografia de Chavín deveria ser entendida em
termos da construção de vários níveis e formas de metáforas visuais,
começando em símiles (comparações) e metáforas simples e culminando na
representação de metáforas , sendo as últimas consideradas kennings (Rowe,
op.cit.; Urton, 2008).
Para Rowe (op.cit.) kenning poderia ser concebido como uma série de
comparações visuais, frequentemente sugeridas por substituição de um
elemento por outro. O seu conceito parte de um tipo de figura de linguagem
literária comum, ou tropo, muito usada em antigas sagas nórdicas. Na língua
norueguesa antiga o kenning era o principal critério de julgamento da poesia,
por isto os poetas criaram jogos de linguagem cada vez mais complexos e
ousados e também aumentaram a frequência de seu uso. Havia duas maneiras
de elaborá-lo, o kenning de kennings e a introdução de kennings dependentes
de uma referência a uma história já conhecida pelos ouvintes.
149
O exemplo tomado por Rowe diz respeito às figuras de linguagens
usadas para se referir aos cabelos de uma mulher, que no caso em questão
são, por comparação direta ou similitude referidas como "seus cabelos são
como cobras"; por comparação implícita ou metáfora, por meio do uso de "seu
cabelo de serpente" e, por comparação por substituição, que corresponde ao
kenning, empregando apenas a figura de linguagem "seu ninho de cobras",
sem usar a palavra "cabelo". Com isto em vista, o leitor só compreenderia a
expressão por abdução, ou seja, caso compartilhasse do conhecimento de que
o cabelo pode ser comparado a cobras, ou inferindo o seu significado a partir
do contexto em questão.
Quanto à arte de Chavín,
Rowe sugere que o mesmo tipo de
desenvolvimento visto na
complexidade figurativa da poesia
nórdica antiga também teria ocorrido
ali, com kennings cada vez mais
numerosos e rebuscados. Entre os
vários exemplos citados pelo autor,
um dos mais comuns poderia ser
visto nas figurações em que a boca
de qualquer criatura pode ser
composta como a boca de um felino,
talvez de um jaguar rosnando, com os
dentes à mostra e os longos e
pontiagudos caninos cobrindo os
lábios. Esta boca felínica é vista não
só nas figurações de felinos, mas
também na boca de figuras humanas,
de cobras e até mesmo de pássaros.
Especificamente para este
caso, o autor pontua que o seu uso
Figura 53 - Rollout dos relevos no obelisco de figurativo não está associado a uma
Tello. Disponível em Urton, 2008. comparação direta, mas por outro
lado tem uma associação muito íntima com o uso de kennings. Sugere assim,
150
que a boca felínica talvez tenha sido usada para distinguir os seres divinos e
mitológicos das criaturas ordinárias do mundo da natureza, implicando em uma
comparação entre o poder do jaguar e o poder sobrenatural.
Dito isto, é importante frisar que o uso do kenning, como proposto por
Rowe, ou seja, como um recurso de linguagem cujo fim último parece ser
identificar personagens e “dar voz” aos mitos que estão por trás, que
organizam e que dão significado à imagem, tem sido criticado. Urton (2008),
por exemplo, critica a maneira como Rowe (op.cit.) alterna exemplos artísticos
e literários para explicar o significado dos kennings e outros tropos
relacionados, como a símile e a metáfora, mas alegando, ao mesmo tempo,
que os exemplos literários são válidos para a representação iconográfica.
De acordo, com Urton (op.cit.), a representação visual de qualquer um
dos tropos (símile, metáfora e kenning) pode ser feita apenas por meio da
comparação por substituição, mais especificamente, o kenning, uma vez que,
caso figurados visualmente, as três figuras de linguagem pareceriam
exatamente iguais. Com isto, os exemplos de Rowe onde o cabelo é
comparado à cobra, ou seja, a símile “seus cabelos são como cobra”, a
metáfora “seus cabelos de serpente” e o kenning “seu ninho de cobra”, quando
figurados, só seria possível ver cabelos representados como cobra.
Estes ícones figurados na iconografia Chavín e interpretados por Rowe
(op.cit.) como kennings, devem ser compreendidos em termos de sua
organização dentro de um corpo e da composição anatômica deste corpo. Um
dos exemplos da cultura Chavín usados por Urton é o da criatura que ele
sugere ser o amarus, um ser compósito que pode incorporar partes corporais
de caimans (uma espécie de jacaré), felinos, entre outros, e que compõe um
eixo iconográfico fundamental do obelisco de Tello. Neste obelisco, tal ser é
figurado dentro da estrutura dos corpos de dois caimans, de modo que as suas
características são compostas por animais justapostos, assim, por exemplo, um
felino / joelho está ligado a um réptil / pulso ou tornozelo (Urton, op.cit.).
Este tipo de composição indicaria certos princípios classificatórios
pautados na relação de animais através da justaposição ou contiguidade, ou
seja, na metonímia, bem como na comparação metafórica destes animais a
certas partes dos corpos, como por exemplo, naquelas em que cotovelos e
joelhos (jaguar) e pulsos e tornozelos (serpentes entrelaçadas) são
151
transformados em animais. Com isto, os seres compósitos surgidos destas
composições sugeririam princípios organizadores, modelos ou paradigmas
para organizar e classificar as relações, como por exemplo, ascendência,
filiação e afinidade (Urton, 2008:221). Esta abordagem poderia ser extrapolada
à sociedade como um todo, já que esta é vista metaforicamente como um
corpo, e os corpos são experimentados individualmente, mas são
coletivamente socializados (Urton, 2008: 233).
33
Em alguns casos, em cada extremidade deste elemento amendoado pode sair um elemento de
formato diferente, como por exemplo, na extremidade superior pode haver um elemento quadrangular
ou amendoado, e na inferior, um elemento triangular, conforme pode ser visto nos exemplos da
prancha.
152
Figura 54 - lagartos/jacarés compondo as pequenas caras que formam os olhos das grandes faces.
A e B: Coleção Oliveira, Museu do Estado de Pernambuco, Recife;
C: ICBS/MAE-USP, São Paulo;
D: Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém.
153
Nota-se que o elemento central frequentemente alude à figura do sauro.
Esta pequena figura sauroforme pode ser percebida de maneira mais imediata
no exemplo que ilustramos na figura 54A, contudo, é possível perceber que a
mesma figura é sugerida nas outras, embora não tão explicitamente,
sobretudo, pela presença de seu dorso de formato amendoado e, às vezes,
pela sugestão dos seus membros.
Estas pequenas faces bidimensionais também compartilham
características com certas figuras tridimensionais modeladas em tigelas e
urnas que apresentam características felínicas (Figura 55). Entretanto, é
preciso frisar que diferentemente das figurações de possíveis felinos vistas em
outras cerâmicas amazônicas, como por exemplo, na cerâmica Guarita,
analisada por Oliveira (2016: 253), onde certos elementos como presas e
focinhos são priorizados, aqui as características destacadas são outras. As
características enfatizadas são o focinho e as vibrissas (bigodes) que saem da
linha de contorno da boca, ambos estilizados, e, ao invés das presas, a língua
é destacada, ou seja, priorizam-se aqui atributos sensoriais.
Este modo de figuração, que prioriza atributos sensoriais, não é
exclusivo da iconografia marajoara. Também na cerâmica tapajônica não é rara
a presença de felinos com a língua de fora, e mesmo lambendo seres
humanos. Curiosamente, os felinos tapajônicos têm as suas faces estruturadas
de modo semelhante ao que vemos na cerâmica marajoara, com o cenho
conectado com o nariz em T invertido (Gomes, 2002; Palmatary, 1960), mas ao
mesmo tempo, são figurados com as presas expostas, ao modo como Oliveira
(op.cit.) percebeu nos grafismos da cerâmica policroma.
154
Figura 55- Detalhe mostrando aplique com possíveis traços felínicos. Antiga Coleção Barbier
Mueller. Fonte: www.sothebys.com
155
funerária ilustrado por Netto (1885: 384). Conforme Netto (op.cit.) notou, os
membros da figura sauroforme funcionam como arcadas superciliares e olhos,
enquanto que a cabeça se converte no focinho. Aqui, diferentemente dos
exemplos descritos acima, não se vê todas as figuras ao mesmo tempo, mas é
necessária a movimentação para ver cada ser, assim, ora se vê um sauro, ora
uma cara (figura 56).
Figura 56- Aplique ilustrado por Netto (1885) que visto por ângulos diferentes mostra duas
diferentes figuras.
156
serpentilíneo (Figura 57), mas que pode ser refletido sugerindo uma figura
losangular com volutas, que ao nosso entender aludiria também à figura do
sauro com o seu corpo simetricamente duplicado.
Nota-se um tipo de estrutura semelhante às quimeras definidas por
Severi (2013) nestas imagens complexas que podem ser decompostas em
outras. Conforme já pontuamos no capítulo 2, na arte gráfica de vários povos
amazônicos como os Wajana, os Wauja e os Yekuana é comum a
representação de um ser complexo que pode se referir ao mesmo tempo a
diversos seres. Nota-se nestas imagens quiméricas, como ocorre entre os
Wajana, a representação de um determinado ser por meio de temas gráficos
que aludiriam às suas possíveis transformações.
Especificamente no caso
da relação entre o peixe-
serpentilíneo e o sauro,
percebemos que na iconografia
marajoara não é incomum a
figuração de um ser por meio do
outro. Em alguns pratos e urnas
funerárias, por exemplo, assim
como em certos grupos de tangas
dos quais iremos tratar em outro
momento, o motivo ordenador
alude à figura do sauro, contudo
Figura 58. Tigela com figura de peixe-serpentilíneo
aludindo à figura do sauro. National Museum of the em muitos é comum a presença
American Indian. Fonte: Palmatary, 1950.
de um ser bicéfalo ou
simetricamente duplicado e com características do peixe-serpentilíneo, como o
corpo alongado e a cabeça triangular de onde saem volutas, mas com o tronco
losangular do sauro sugerido pela cabeça do peixe-serpentilíneo, assim como
visto no motivo discutido anteriormente (Figura 58).
157
Nos padrões da banda 2 das tangas, a sobreposição de seres é
sugerida por procedimentos distintos, relacionados a movimentos simétricos,
como a rotação e reflexão
alternadas, reflexão, reflexão
deslizante, assim como já
frisamos anteriormente, sempre
sugerindo “faces” com olhos,
cenho e nariz, como se pode
ver na figura 59, o que é
frequente na maioria das tangas
onde esta banda ocorre.
Quando estas “faces”
ocorrem, independentemente
dos movimentos envolvidos em
59- Padrões da banda 2 que formam “caras” a
sua formação, ou seja, que as Figura
partir de procedimentos distintos.
repetem linearmente, todas elas
são sugeridas a partir do encaixe de certos elementos a partir de um elemento
central, cuja posição formal alude à figura do “jacaré-humano” ou “sauro-
humano”, do mesmo modo que ocorre nas pequenas caras vistas
anteriormente. Nota-se que estes elementos centrais que aludem ao sauro-
humano são aqueles que nestas caras sugerem o cenho e o nariz.
158
assim como partes anatômicas compõem um corpo, de modo que a imagem
resultante alude a um ser compósito. Notamos nestas imagens um jogo
dinâmico caracterizado por uma relação entre parte e todo, onde o todo, na
maioria das vezes, alude à figura de uma cara, e cujas “partes” são compostas
por seres como sauros, peixes-serpentilíneos e outros. Como resultado deste
jogo, o espectador vê várias imagens ao mesmo tempo, assim, uma cara que
se abre e desvela outras imagens. Como já destacamos em outro momento,
mais recentemente Prous e Lima (op.cit.) perceberam que estas caras podem
ser variavelmente indicadas no campo gráfico, podendo ter olhos e bocas, às
vezes olhos nariz, boca e orelhas (Figura 60).
Figura 60- Detalhes destacando as características da cara vista no painel gráfico. Antigo
Instituto Cultural Banco Santos- MAE-USP
A- Tanga com painel gráfico aludindo a uma cara.
B- Detalhe da cara figurada no painel gráfico.
C- Detalhe destacando os olhos.
D- Detalhe destacando o nariz.
E- Detalhe destacando a boca.
F- Detalhe destacando as orelhas.
159
É muito comum que este tipo de imagem seja figurada também em
outros objetos, tais como urnas funerárias, vasilhas, bancos, entre outros. Às
vezes ela pode estar presente como parte de um corpo, com tronco, membros
sugeridos ou ausentes e cabeças, como visto em urnas funerárias, e em outros
casos, como vemos em certas vasilhas, bancos e nas tangas, o corpo todo é
sintetizado na forma de uma cara (figura 61).
Figura 61 - Vaso que alude à figura de uma cara. Antiga coleção Barbier-Mueller,
Geneva. Fonte:Young-Sánchez e Schaan (2011).
160
qualquer uma destas técnicas podem ser decompostas em seres e partes de
seres, como já observamos. Aliás, como já observado por Barreto (2014), na
cerâmica marajoara este é um modo paradigmático de figurar o corpo. Aqui,
em certos tipos de urnas, como aquelas do tipo Pacoval Inciso o corpo é
construído a partir de seres diversos, com olhos que aludem a escorpiões e
braços serpentilíneos, enquanto em outros casos, o corpo é composto por
figuras que foram tão manipuladas que é difícil de relacionar a um protótipo
especifico.
Este modo de figurar o corpo não é restrito somente à cerâmica da fase
marajoara. Corpos compósitos caracterizados por braços serpentilínios são
vistos também nas urnas da tradição Policroma e, além disto, os campos
iconográficos de certos vasos podem ser caracterizados por padrões que
aludem a seres antropomorfos, sugerindo, ao mesmo tempo, outros seres,
como felinos e aves (Oliveira, op.cit.).
Especificamente em relação às tangas, estas caras podem apresentar
características muito peculiares, misturando sempre traços antropomorfos com
corpos e partes de animais, e podem ser compostas por atributos como olhos,
nariz, boca e orelhas, cenho, bigodes (que poderiam ser também barbilhos ou
vibrissas), e em certos casos, junto às orelhas pode haver também um
elemento que pode ser interpretado como um adorno auricular. Entretanto, tais
atributos jamais são sugeridos diretamente, mas sim por meio da sobreposição,
onde os olhos podem ser indicados por meio de pequenas caras, e estas,
conforme já mostramos em outro momento, aludem a um ser sauroforme, ou
pela cabeça do peixe-serpentilíneo, etc., figuras sauroformes podem ser
dispostas verticalmente no meio da composição, entre as duas pequenas
caras, indicando o cenho, a linha e a base do nariz, e em casos mais
específicos, a mesma figura é disposta horizontalmente, mais abaixo do nariz,
sugerindo uma boca (figura 62).
161
Figura 62- Ilustração de tanga com as extremidades superiores ausentes mostrando uma
cara. Museu Paraense Emílio Goeldi.
a- Cara cujas partes são compostas por seres diversos.
b-Cenho, nariz, bigodes e boca compostos por um ser que alude a um sauro.
c- Olhos sugeridos por cara pequena que, por sua vez, é composta a partir de uma
figura sauroforme.
162
continuam se repetindo por meio de um jogo de movimento diversos em um
plano virtual, ao modo das quimeras abstratas ameríndias (Figura 63).
Esse recorte que promove uma “janela ao infinito” tem um papel crucial
na composição das faces vistas no painel gráfico, pois estas figuras são o
resultado de um enquadramento específico em uma malha infinita de motivos
gráficos que aludem a seres específicos. Este enquadramento que possibilita
focar o olhar sobre uma imagem que pode ser abrir em um plano virtual, assim
como visto nas artes dos povos amazônicos, poderia ser considerado como
uma técnica de mediação entre o visível e o invisível (Lagrou, op.cit.).
Tais padrões de rede virtuais são compostos a partir de motivos gráficos
que aludem a seres específicos ou à combinação destes seres, e são
deslocados a partir dos movimentos diversos já explicitados. Estes movimentos
são responsáveis pelo encadeamento da imagem, permitindo que a partir da
repetição de duas figuras seja possível desvelar uma imagem oculta, ou mais
especificamente, uma cara. Nos padrões de rede o responsável por enquadrar
esta figura que alude a uma face, é o olhar, ao se focar em um ponto específico
entre as repetições de um motivo gráfico que compõe uma imagem. Aqui, ao
modo das quimeras abstratas ameríndias (Lagrou, op.cit.), os grafismos
poderiam aludir a transformações, mostrando seres específicos e as suas
transformações em outros seres. Com isto, o enquadramento da imagem de
uma cara poderia ser entendido como um modo de estabilizar imagens que são
demasiadamente instáveis e fluídas.
Este recorte que permitiria estabilizar uma imagem a partir de uma
cadeia de transformações infinitas de figuras aludindo a seres específicos,
entretanto, nunca é completamente estável. Se por um lado, o enquadramento
que possibilita ver uma imagem ou um ser do “entre-dois”, entre um motivo
gráfico e outro de uma grande rede gráfica, cessa as transformações do padrão
allover potencial, por outro lado, a imagem que é enquadrada tem sua própria
instabilidade. Ela é composta por outras figuras que revelam outras figuras, ou
seja, há um jogo de transformações dentro da própria imagem que é
enquadrada.
163
Figura 63- Figura 18- Imagem que alude a uma cara composta no painel gráfico a partir do enquadramento em um ponto específico de um padrão allover
virtual. Tanga antiga coleção Barbier-Mueller, Geneva.
a- Tanga com face figurada no painel gráfico.
b-motivo gráfico que é repetido por meio de movimentos simétricos para a formação de padrão gráfico que alude a face.
c- Padrão allover virtual ou continuação dos motivos gráficos interrompidos que sugerem uma “janela ao infinito”.
164
Nos padrões da banda 2, já
descritos anteriormente, ocorre o
contrário. Como já comentado,
estes padrões são repetidos
linearmente por meio de
movimentos diversos, sugerindo
uma cara com cenho, olhos e às
vezes, nariz entre os seus Figura 64- Detalhe de padrão da banda 2 com
faces ocultas destacadas em amarelo. Neste caso,
elementos. Contudo, esta cara os triângulo refletidos aludem ao cenho e ao nariz,
enquanto que o espaço hexagonal entre cada
nunca é explicita, a sua presença repetição dos triângulo refletidos, assim como o
motivo gráfico em seu interior, aludem aos olhos.
é apenas sugerida, é o olhar que a
enquadra, diferentemente do que é visto no painel gráfico, onde a cara é
desvelada por meio de um recorte, o que pode ser entendo como uma técnica
para capturar o olhar do observador.
165
componha a figura do sauro-humano indicando a sua cabeça e o seu dorso, a
partir da reflexão destas figuras.
166
Figura 66- Relação multi-escalar vista na sobreposição de figuras que aludem a faces
em escalas diferentes. Nota-se caras menores na composição dos olhos da cara maior,
no painel gráfico e, pequenas caras “virtuais” no padrão da banda 2.
167
Figura 67- Hierarquização vista na maneira de estruturar as figuras.
168
um todo, ou seja, as partes e o todo possuem as mesmas propriedades, por
isto, tais figuras poderiam ser uma metáfora para expressar as relações
sociais, tais como visto por Gell (op.cit.) na figura do A’a, uma imagem da
tradição Rurutan, da Polinésia, que seria um tropo relacionado à sociedade, e
as partes que a compõem se relacionariam às suas unidades de parentesco
que estruturam a sociedade.
Esta relação dialética entre o corpo e as partes que o compõem é
bastante proeminente, sobretudo, nas sociedades ameríndias da Amazônia
onde a pessoa é constituída a partir da incorporação do outro em diferentes
escalas, mas sempre semelhantes umas às outras (Santos Granero, 2012: 31),
o que implicaria em ontologias estruturadas a partir da lógica da predação,
conforme comentado no capítulo 2. Até agora mostramos como as imagens
vistas nas tangas são compostas a partir do encaixe recursivo de figuras em
escalas diferentes que aludem a diferentes seres em transformação
permanente. Esta fractalidade ameríndia que se dá a partir da incorporação do
outro poderia ser traduzida em termos visuais, na Amazônia, por meio das
imagens multicompostas, cujos corpos são constituídos por diversos seres ou
partes deles.
Esta fractalidade, no caso das tangas, vista no encaixe múltiplo das
figuras que compõem as imagens, alude a seres em transformação em
diferentes escalas. Se por um lado, a figura que sugere uma face composta por
seres diversos indica um corpo em transformação, por outro lado, os seres que
a compõem também estão em transformação. Estas diferentes escalas de
transformação poderiam ser entendidas como uma maneira de levar a
instabilidade das formas a níveis cada vez mais profundos, de modo que o
enquadramento de uma imagem a partir de um padrão allover virtual, ao cessar
a cadeia de transformações que se dá em um plano infinito e horizontal,
poderia priorizar uma cadeia transformativa em um plano vertical, isto é, para
dentro da imagem. Com isto, a imagem, ao modo das imagens quiméricas, se
abriria paulatinamente, revelando uma cadeia de imagens em transformação
cada vez mais profunda com o poder de abduzir o expectador para dentro
destes grafismos labirínticos.
169
CAPÍTULO 5
CORPOS-IMAGENS: OS GRUPOS DE TANGAS
170
Entre as tangas do grupo 1, as imagens são elaboradas por meio do
encaixe de diversas figuras, ao modo das bonecas russas. Isto é muito
interessante, por que o espelhamento dos padrões destas tangas não
engendram novas imagens na junção entre eles, sugerindo que as principais
transformações das imagens são aquelas ocorridas diante dos olhos, ou seja,
nos grafismos dispostos nos painéis gráficos. Considerando-se que este
conjunto é aquele com a maior quantidade de tangas, abrangendo quase um
quarto das peças, e que possui uma ampla dispersão pelos sítios da fase
marajoara, é possível que os recursos gráficos empregados na elaboração das
imagens integrassem uma linguagem menos codificada e mais acessível, mais
pautada nas transformações mostradas a “olhos nus” na própria imagem, sem
necessariamente precisar recorrer a inferências visuais e à abdução da
agência.
As tangas do grupo 2 apresentam algumas semelhanças com aquelas
do grupo 1. As imagens elaboradas em seu painel gráfico são também
estruturadas dentro de painéis verticais e, inclusive, alguns motivos
empregados nestas imagens aludem aos mesmos seres, como por exemplo,
sauros e motivos que sugerem pequenas faces, no entanto, os seus painéis
gráficos são menores e reduzidos à parte inferior da tanga, diferentemente
daquelas. Nestas tangas, é o padrão da banda 2 que ocupa a área central,
sendo que as suas elaborações são responsáveis por capturar e prender o
olhar em seu emaranhado de grafismos, revelando seres como sauros, além
de figuras de faces, algumas inclusive, aludindo a seres felínicos.
No grupo 3, as imagens compostas nas tangas são sempre compostas
por motivos aludindo ao peixe-serpentelíneo que, desdobrados, criam uma
figura de face. Os padrões vistos aqui, no entanto, quando replicados em um
plano virtual, na junção entre cada um, revelam outra figura de face,
completamente diferente daquela vista na imagem “física”.
As tangas dos grupos 4, 5 e 6, embora estruturalmente diferentes,
apresentam características gerais semelhantes. Em todas elas há a recorrência
de motivos aludindo ao peixe-serpentelíneo ou a seres serpentelíneos que são
reordenados para sugerir a figura de seres sauromorfos.
As tangas do grupo 7, por seu turno, apresentam imagens compostas
por variações do mesmo motivo. No entanto, é a maneira de recortar e
171
enquadrar o padrão que diferencia estas imagens. Aqui, as imagens
produzidas destacam partes diferentes do padrão, ora priorizando o motivo que
é desdobrado, ora priorizando mostrar a imagem que é formada entre eles, ou
ainda, pode recortar o motivo e mostrar apenas uma parte sua, ou seja, há um
jogo visual pautado na revelação e ocultação de imagens.
Já as tangas do grupo 8 são elaboradas por variantes de um mesmo
motivo que alude à figura do sauro, compondo imagens de faces, cujos
atributos nem sempre são perceptíveis. Deste modo, certas características
faciais, como cenho, nariz e boca, muitas vezes são apenas sugeridas por
meio da relação entre uma figura e outra.
Por fim, nas tangas do grupo 9, as imagens são construídas pela
repetição de motivos, de modo que várias figuras podem ser vistas entre as
repetições, ao modo dos padrões da banda 2. As tangas deste grupo, não
apresentam o padrão da banda 2, uma vez que o mesmo tipo de imagem
construída naqueles padrões são elaboradas no painel gráfico.
172
Tangas do grupo 1
Quantidade
Coleção/Instituição Procedência
Inteira Fragmentos
ICBS-MAE/USP 8 Tesos Camutins/Urubu
MAE-USP 4 Pacoval
Museu Paraense Emílio
4 2 Pacoval
Goeldi
Coleção Dita
Acatauassu/ Museu 3 Indeterminada
Paraense Emílio Goeldi
Museu do Estado de 3 Pacoval
Pernambuco
Museu Nacional 18 5 Indeterminada
Museu do Marajó
1 Indeterminada
Museu Rocha Santos
1 Pacoval
Denver Art Museum
1 Indetermindo
34
Há ainda uma tanga deste grupo na coleção Landmann, depositada no Museu de Arte de São Paulo, e
outra na Coleção Tom Wildi, depositada no Museu de Antropologia da Universidade de Santa Catarina,
em Florianópolis, ambas não foram incorporadas em nossa análise.
173
tangas, ou seja, 42% das tangas deste grupo, além de seis fragmentos, o que é
bastante significativo tendo em vista as condições nas quais as coleções foram
formadas.
Diante disto foi possível perceber que as tangas deste grupo não estão
restritas a um sítio ou região específicos do domínio marajoara, mas sim
possuem uma ampla dispersão regional, conforme mostra o mapa ilustrado
abaixo (Figura 68). Como é possível observar na tabela abaixo e no mapa que
se segue, estas tangas estão distribuídas desde os sítios do conjunto Os
Camutins, região do Rio Anajás, passando pela região do lago Arari,
principalmente, no teso Pacoval, onde diagnosticamos o maior número de
tangas deste grupo, se estendendo ao teso Pacoval dos Mello, ao sul do lago
Guajará, como é possível perceber na tabela abaixo.
QUANTIDADE
PROCEDÊNCIA/ SÍTIO INSTITUIÇÃO/COLEÇÃO
Inteira Fragmentos
2 Teso Belém NMAI
ICBS-MAE/USP (Cols.
8 Tesos Camutins/Urubu
Luíz Otávio e Graciete).
MEPE, AMNH, MPEG,
10 4 Teso Pacoval
MIHGAL, NMAI, MRS
Fazenda Diamantina
1 NMAI
(L. Ariri)
2 Pacoval dos Mello MAE/USP
174
Figura 68. Figura 1- Sítios da fase marajoara. Destacam-se em vermelho os sítios de distribuição das tangas do grupo 1.
175
As recorrências estruturais
176
em 47 tangas. Já a variante cujas figuras são preenchidas por retículas é menos
comum, e só esteve presente em 3 tangas, todas de morfologia 2.
A banda 2, por sua vez, apresenta padrões que podem ser divididos no tipo1
e no tipo 2. Os padrões de banda do tipo 1 estão presentes em 22 tangas e aqueles
do tipo 2 estão presentes em 23, ou seja, ocorrem quase na mesma frequência.
Figura 70- Layout e disposição dos padrões e motivos painel gráfico das tangas do grupo1.
A. tanga grupo 1. B. Layout do painel gráfico. C. Motivo “sauro-humano” disposto no painel
central. D. Disposição do motivo “pequena face-sauro” nos painéis laterais. Tanga: Coleção
ICBS-MAE/USP, Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo.
177
humano, no painel vertical central (figura 70c), já descrito anteriormente, e também
por variantes do motivo que corresponde a uma pequena face com características
felínicas e que é composta por elementos gráficos que aludem a sauros, dispostas
sempre nos painéis laterais (figura 70d).
O motivo gráfico que ocupa o painel central e que funciona como um eixo
para duplicação simétrica de todo o campo é aquele que alude à figura que
chamamos de sauro-humano. Este motivo, apesar de variar, apresenta elementos
estruturais recorrentes, como se pode ver na figura 71. Aqui, ele sempre é disposto
verticalmente dentro do painel central, ocupando toda a área delimitada,
funcionando como um padrão ordenador que coincide não apenas com o eixo de
simetria deste campo (ver figura 70.c), mas de toda a tanga.
Figura 71. Variantes do padrão X, sempre compostas em três eixos, que sempre são
graficamente dispostas no painel central.
178
gráfico, este motivo apresenta uma composição tripartida, como se vê na figura
abaixo.
O outro motivo que também compõe a imagem é aquele que mostra uma
pequena face que parece aludir a um ser felínico e que ocupa os dois painéis
laterais. Embora possua variantes, todas apresentam características estruturais
comuns, como por exemplo, um eixo central que sugere um nariz ou focinho e
também uma boca, que é composto por uma figura de sauro, na maioria das vezes
simplificada. Ladeando este elemento gráfico central, elementos quadrangulares ou
pontos aludem aos olhos (figura 72).
Figura 72. Algumas variantes do motivo que alude a uma pequena face e, que, no grupo 1,
aparece localizado sempre nos painéis laterais.
179
painel gráfico. Entre as 50 tangas deste grupo todo o padrão gráfico pode ser
desdobrado a partir de dois eixos de simetria perpendiculares, um deles virtual,
resultando em um padrão formado a partir da união de duas faces distintas, mas
unidas por um elemento quadrangular em seu centro, que neste caso, alude ao nariz
da figura de face (figura 73c).
O desdobramento cria um padrão com duas faces opostas, cada uma delas
caracterizada por um par de olhos e por um cenho, mas compartilham o mesmo
nariz, que normalmente corresponde ao dorso da figura que alude ao sauro-humano.
É importante frisar que o padrão do painel gráfico da tanga exibe apenas uma
destas faces, a outra é apenas sugerida, por meio do recorte. Ao recortar parte da
imagem duplicada, neste caso específico, as cabeças laterais inferiores, aquilo que
era antes o cenho da face espelhada na parte inferior se torna uma boca.
Ao passo que a imagem exibida em boa parte das 50 tangas deste grupo é
estruturada a partir de um eixo de simetria vertical e outro eixo simétrico horizontal,
um visível e o outro virtual, em 13 tangas as imagens vistas são desdobradas
180
apenas em um eixo simétrico, divididas em duas metades, uma direita e outra
esquerda, conforme é possível observar na figura 74 d.
Esta característica é bem marcada, sobretudo, em um conjunto de cinco
tangas que compartilham da mesma variante do padrão. Como se pode observar no
rollout do padrão de uma delas, a imagem não é estruturada a partir de duas faces
desdobradas, como ocorre nas tangas descritas acima. Nota-se, neste caso
específico, que a imagem é dividida em duas metades a partir de um eixo de
simetria vertical. Em decorrência disto, a imagem surgida da combinação dos
motivos que aludem à figura do sauro-humano e a figuras de pequenas faces,
mostra uma única figura de face, com olhos, cenho, nariz e boca.
Figura 74. Imagem do painel gráfico estruturada a partir de um eixo de simetria vertical.
a: Museu Nacional, Rio de Janeiro.
b: Coleção Montenegro, Museu do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, Maceió.
c: Museu Nacional, Rio de Janeiro.
d. Rollout da imagem do painel gráfico da tanga. National Museum of American Indian,
Nova York. Fonte: Palmatary, 1950: 353.
181
É importante observar que independentemente da forma como as figuras são
desdobradas, as imagens resultantes são recortadas ao modo da técnica de “janela
ao infinito”, já comentada neste capítulo. No entanto, o enquadramento destas
imagens, por meio do seu recorte, atenta também às transformações ocorridas
dentro do próprio campo gráfico.
Conforme já comentamos na primeira parte deste capítulo, o encaixe múltiplo
de imagens é uma característica comum das tangas, mas especificamente entre as
tangas deste grupo, esta é uma característica paradigmática. Aqui, é exibida uma
face que revela outras imagens dentro de si. Assim, a imagem ora mostra uma face
com olhos, cenho, nariz e boca, ora mostra figuras em seu interior, como por
exemplo, faces menores que se abrem e mostram um ser sauromorfo em seu
interior. Além disto, outras figuras podem ser vistas dentro da imagem dependendo
de onde o olhar se foca, como por exemplo, corpos e seres antropomorfos, como se
pode perceber na figura 75. Ou seja, as imagens vistas aqui são múltiplas e podem
se transformar constantemente.
182
5.2. As tangas do Grupo 2
Tangas do grupo 2
Coleção/ Instituição Quantidade Procedência
Rio Camutins, Fazenda São
ICBS-MAE 06
Marcos
Os Camutins, teso Furinho
006 MAE-USP 02
Museu do Marajó 5
Museu Nacional de Etnologia
1
de Lisboa
Denver Art Museum 1
Antiga coleção Jean Eugéne
Lyons, Geneva (coleção 5
particular)
183
A maior parte das tangas deste grupo possui a sua policromia parcialmente
prejudicada ou perdida integralmente. Quase todas estas tangas tiveram os seus
grafismos elaborado com tinta vermelha, entretanto, quando esta tinta não foi
integralmente perdida, na maioria das vezes, apresenta desbotamento. No entanto,
em muitos casos foi possível observar a presença das linhas estruturais.
Incorporamos neste grupo algumas tangas que não apresentam,
necessariamente, o layout tripartido ou um espaço muito grande entre os campos
gráficos. No entanto, estas peças apresentam o mesmo tipo de composição na
banda 2, além de painel gráfico estruturado pelos mesmos princípios e motivos ,
como é possível observar, por exemplo, na figura 76b e figura 77c.
Há duas formas de estruturar o painel gráfico destas tangas. Na primeira, que
é a mais comum (figura 76), este campo é dividido, na maioria das vezes, em três
painéis que são sempre ocupados por figuras aludindo ao sauro, seres
serpentelíneos, pequenas figuras aludindo a faces, por um elemento em forma de
linhas duplas reticuladas, e algumas vezes, elementos em forma de volutas e
ganchos.
Este modo de estruturar o painel é bastante semelhante ao que é visto nas
tangas do grupo 1, inclusive, pela recorrência de motivos aludindo à figura do sauro-
humano e pequenas faces, no entanto, devido à perda da policromia de boa parte
das tangas, não pudemos avaliar se, assim como naquele grupo, estes motivos
ocorrem associados. Além disto, o padrão nunca é desdobrado a partir de dois eixos
perpendiculares, como pode ocorrer nas tangas do grupo 1, aqui o desdobramento é
sempre realizado horizontalmente.
É importante destacar que não é frequente que a imagem composta neste
campo aluda a uma face, no entanto, em alguns casos, sobretudo, quando o painel
central é ocupado pelo motivo em forma de linhas duplas reticuladas, uma face é
sugerida, mas com poucas das características que são comuns nas faces
marajoara, como pode ser visto na figura 76a e 76d. Nestes casos específicos, só os
olhos são sugeridos, ora por motivos que aludem ao sauro (figura 76c), ora por
motivos aludindo pequenas faces (figura 76d).
184
Figura 76. Tangas com painel gráfico estruturado em painéis.
a. Painéis laterais com motivos aludindo a sauros.
Denver Art Museum, Denver. Fonte: Young-Sánchez e Schaan, 2011.
b. Painéis com motivos que aludem a sauros. Nota-se que as linhas horizontais abaixo
do painel gráfico. Antiga coleção Jean Eugéne Lyon.
c. Painéis laterais com motivos em forma de linhas duplas reticuladas e painel central
com motivo aludindo a sauro estilizado. Acervo do Governo do Estado do Pará, Museu
Paraense Emílio Goeldi.
d. Painéis laterais com motivos que aludem a pequenas faces e painel central com
motivo em forma de linhas duplas reticuladas. Museu do Marajó, Cachoeira do Arari.
Fonte: Schaan, 2009: 374.
185
Figura 77. Tangas com painéis gráficos estruturados em espaços hexagonais alternados por
meio da reflexão deslizante.
a. Museu do Marajó, Cachoeira do Arari. Fonte: Schaan, 2009: 375.
b. Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo.
c. Antiga coleção Jean Eugéne Lyon. Fonte: robertmorrisfineart.com
186
Figura 78. Padrão da banda 2 aludindo a várias transformações. Tanga do acervo do
Museu do Marajó. Fonte: Schaan, 2009: 375)
a. Motivo replicado na elaboração do padrão.
b. Padrão resultante da reflexão e do desdobramento do motivo anterior.
c. Figura que alude a um sauro elaborada pelo desdobramento do motivo.
d. Figura aludindo a sauro bicéfalo formada na junção entre outras figuras de
sauro.
e. Figura de face formada entre o dorso e os membros do sauro da junção.
f. Possível figura de face felínica composta pelo sauro do desdobramento e
pelo sauro da junção.
187
Tangas grupo 3
Coleção Graciete,
1 Tesos do Os Camutins
ICBS/MAE/USP
Museu Paraense Emílio
1 Pacoval
Goeldi
188
Figura 79. Tangas cujas imagens do painel gráfico são estruturadas por meio do
desdobramento a partir de um eixo horizontal da figura que alude ao peixe-serpentelíneo.
Percebe-se que em todas as tangas a figura deste ser esta posicionada verticalmente, com
exceção daquela ilustrada na figura C, cuja cabeça está voltada para o eixo do painel.
a, b. Museu Nacional, Rio de Janeiro.
c. Coleção ICBS/ MAE-USP, Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo.
d. Antiga coleção Barbier Mueller, Geneva. Fonte: Sothesby.com
e. American Museum of Natural History, Nova York. Fonte Palmatary, 1950: 461.
O padrão do painel gráfico destas tangas mostra uma face composta pelo
desdobramento, em um eixo horizontal, de motivos aludindo à figura do peixe-
serpentelíneo como visto na abaixo (figura 80). Por meio deste desdobramento, as
cabeças daquele ser se transformam nos olhos, enquanto outros elementos vistos
em seu corpo se transformam em narinas e na boca. É importante destacar que o
desdobramento desta figura em um plano virtual cria uma nova figura de face na
junção entre os motivos desdobrados, como pode ser visto na figura 80e.
.
189
Figura 80. Composição de imagem que alude a uma face por meio do desdobramento do
motivo do peixe-serpentelíneo.
a. Tanga com imagem de face no painel gráfico composta pelo desdobramento do
motivo. Museu Nacional, Rio de Janeiro.
b. Rollout do padrão visto na tanga com seu desdobramento em um plano virtual.
Destaque para o ponto de junção entre os motivos refletidos, onde uma nova figura
é formada.
c. Motivo dobrado.
d. Padrão formado pelo desdobramento do motivo aludindo a uma face.
e. Nova figura de face formada no ponto de junção entre os motivos refletidos.
190
5.4. As tangas do Grupo 4
Figura 81. Tangas com padrões do painel gráfico constituídos por espirais e pelo motivo “cruz
no medalhão”.
a. Coleção Oliveira, Museu do Estado de Pernambuco, Recife.
b. Acervo do Sistema Integrado Museus e Memoriais/SECULT-PA, Belém.
c. Museu Nacional, Rio de Janeiro.
d. Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém.
e. Coleção Dita Acatauassu, Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém.
Figura 82. Tangas em que os padrões dos painéis gráficos aludem a uma face com olhos e
nariz estruturados dentro de uma área delimitada por linhas reticuladas. Percebe-se que o
cenho desta face é sugerido entre os olhos por figuras aludindo a sauros ou simplificações
suas.
a. Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém.
b. Museu Nacional, Rio de Janeiro.
c. Coleção ICBS/MAE-USP, Museu e Arqueologia e Etnologia, São Paulo.
193
As três tangas ilustradas na figura 82, apresentam uma versão mais
elaborada destas vistas acima. Em dois casos, por exemplo, o nariz é composto por
motivos triangulares escalonados que aludem à cabeça do peixe-serpentelíneo e os
são olhos sugeridos por volutas que se desdobram lateralmente a esta figura
Aqui, se percebe que as partes anatômicas das faces são compostas por
figuras aludindo a cabeças de seres, como por exemplo, olhos compostos por uma
pequena face com características de felinos (figura 82a), narizes aludindo à cabeça
do peixe-serpentelíneo (figuras 82b e 16c). Nota-se ainda que é possível observar
dentro destas faces/ cabeças outras figuras, tal como um sauro no interior da face
felínica (figura 82a) ou uma pequena figura com “antenas” na cabeça dentro da
cabeça do peixe-serpentelíneo (figura 82 b). Este é o mesmo princípio de encaixe
recursivo de imagens que é visto nas tangas do grupo 1 usado para mostrar
transformações. No entanto, em outras tangas a transformação é mostrada de outra
forma.
O padrão visto nas tangas acima pode ser transformado, como pode ser visto
nas tangas ilustradas na figura 83, que exibem uma variação do motivo visto nas
tangas ilustradas nas figuras 82b e 82c. Nelas, o motivo é transformado por meio da
rotação e da reflexão, como é possível notar comparando-se as figuras 82b e 82c
com as figuras 83a1 e 83a2.
Embora já tenhamos comentado em outro momento, é importante destacar
que o desdobramento deste motivo alude a uma transformação, onde a cabeça do
peixe-serpentelíneo se transforma no corpo losangular do sauro-humano e os seus
barbilhos nos seus membros. A associação de motivos que aludem à cabeça do
peixe-serpentelíneo ou a partes suas com a figura do sauro-humano também ocorre
em tangas de outros grupos, como por exemplo, algumas do grupo 5.
194
Figura 83. Tangas com padrão de face no painel gráfico formado pelo desdobramento do motivo
que alude à cabeça do peixe-serpentelíneo.
a. Tanga com motivo que alude à cabeça do peixe-serpentelíneo desdobrado. Peabody
Museum of Archaeology and Ethnology, Havard. Fonte: Palmatary, 1950: 460.
a1. Rollout do padrão visto na tanga da figura A mostrando uma transformação
do peixe-serpentelíneo, por meio do desdobramento, que ao mesmo tempo em
que mostra uma face, alude à presença do sauro-humano.
a2. Motivo “dobrado” da cabeça do peixe-serpentelíneo conforme visto em outras
tangas deste grupo.
b. Tanga com o mesmo motivo desdobrado. Museu Nacional, Rio e Janeiro.
Este grupo abrange 9 tangas cujo painel gráfico exibe a imagem de uma face
estruturada em três áreas por meio da delimitação de grandes espaços losangulares
e, mais raramente, triangulares, em suas laterais, o que cria um espaço central
entre estas duas áreas laterais. A maior parte é composta por motivos em espirais
que aludem a seres serpentelíneos e muitas vezes, motivos simplificados aludindo a
sauros.
As tangas analisadas abrangem cinco coleções depositas em três diferentes
instituições, como pode ser visto na tabela abaixo.
195
Tangas do grupo 5
196
Figura 84. Tangas desdobradas em dois eixos simétricos perpendiculares.
a. Coleção Dita Acatauassu, Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém.
a1. Reconstituiçaõ do padrão do painel gráfico.
a2. Rollout reconstituindo o desdobramento do padrão em dois eixos
perpendiculares.
b. Denver Art Museum, Denver. Fonte: Young-Sánchez e Schaan, 2011.
197
Já em quatro outras tangas ocorre uma reelaboração do padrão visto acima.
Nelas, motivos losangulares em espirais
são desdobrados em um único eixo
simétrico, sugerindo grandes olhos, e a
área entre estes motivos é estruturada
em forma de X, onde são dispostos
elementos diversos para estruturar o
cenho, o nariz e a boca (figura 85).
Nestas tangas, no espaço entre os
olhos, ao mesmo tempo em que a boca,
o nariz e cenho estão presentes, se vê
figuras aludindo ao sauro-humano
escondidas. Na tanga ilustrada na figura
85a, por exemplo, os elementos
retangulares, ao mesmo tempo em que Figura 85. Tangas estruturadas em três
áreas por meio da disposição de motivos em
aludem ao cenho, boca e nariz, formam a forma de espirais losangulares em suas
cabeça de uma figura cujo corpo é laterais.
a. Museu Paraense Emílio Goeldi,
sugerido na própria estrutura em forma Belém.
b. Museu de Arqueologia e
de X entre os olhos. Percebem-se os Etnologia, São Paulo.
membros estendidos e a cabeça
duplicada comum nas figurações do sauro-humano, como já comentado.
A configuração das imagens vistas nestas tangas, delimitadas em três áreas,
ou seja, uma central e duas laterais, além da localização da figura que alude ao
sauro-humano na área central, é semelhante ao que ocorre nas tangas do grupo 1.
Lembremo-nos que naquelas tangas, da mesma forma, nariz, boca e cenho
coincidem com a figura do sauro-humano e que os olhos são pequenas faces que se
abrem mostrando figuras de sauros, mas cuja estrutura geral, poderia aludir a uma
face felínica.
É importante destacar que não são raras as figurações em que seres
sepentelíneos são estruturados para sugerir a figura do sauro. Na tanga ilustrada na
figura 95b do grupo 8, por exemplo, o dorso do sauro é sugerido por meio de um ser
serpentelíneo enrolado, assim como visto nas tangas acima ilustradas. Além disto,
em certas tangas do grupo 4, como aquelas vistas na figura 83, um motivo em forma
198
de pirâmide escalonada aludindo à cabeça do peixe-serpentelíneo é desdobrado, de
modo que as cabeças espelhadas se transformam no tronco losangular do sauro-
humano, e os barbilhos daquele ser, sugeridos por volutas, se transformam em seus
membros. Deste modo, é possível que o motivo em espiral losangular aludindo a um
ser serpentelíneo, compondo os olhos nas imagens de faces vistas nestas tangas,
também seja uma alusão à figura do sauro-humano.
Deste modo, apesar destas tangas não apresentarem transformações
agenciadas por meio do encaixe múltiplo de imagens, como aquelas do grupo 1,
ainda assim apresentam semelhanças notáveis com aquelas. Conforme
comentamos, ambas possuem as imagens dos painéis gráficos estruturadas em três
áreas, sendo que na área central, a figura do sauro-humano sobrepõem-se ao
cenho, nariz e boca. Também mas tangas do grupo 1, as figuras dos painéis laterais
são olhos e ao mesmo tempo uma face felínica que se abre e mostra uma figura de
sauro em seu interior. Já nestas tangas, as figuras que aludem aos olhos não se
transformam no plano da visão, mas sim com base na abdução da agência, com a
transformação do ser serpentelíneo no sauro. Deste modo, ambas possuem os
painéis gráficos estruturados em 3 áreas, com um motivo aludindo ao sauro-humano
no centro da imagem e, além disto, os motivos laterais que configuram os olhos
agenciam algum tipo de transformação.
199
Figura 86. Imagens estruturadas a partir de uma área central retangular em dois eixos
perpendiculares de simetria. a, b. Museu Nacional, Rio de Janeiro.
Tangas grupo 6
Coleção/ Instituição Quantidade Procedência
Fazenda São Marcos, tesos
ICBS/ MAE-USP 2
Camutins e Urubu (1 tanga)
201
Figura 87- Rollout destacando a formação de uma face por meio do desdobramento em
dois eixos perpendiculares, um deles virtual, da figura do peixe-serpentilíneo. Museu
Nacional, Rio de Janeiro.
A maior parte destas tangas apresenta uma imagem no painel gráfico que
alude a uma face felínica, com olhos, nariz, boca e um elemento espiralado que ora
pode ser interpretado como orelhas, ora como um adorno auricular (figura 88). Estas
características faciais são constituídas por figuras sepentilíneas ladeadas por volutas
que poderiam aludir ao peixe-serpentelíneo..
202
Figura 88- Tangas cujo padrão alude a uma face estruturada a partir do desdobramento de
figuras serpentilíneas.
a, f. Coleção Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém.
b, c, e. Museu Nacional, Rio de Janeiro.
d. American Museum of Natural History, Nova York. Fonte: Palmatary, 1950: 103.
g. Coleção ICBS/MAE-USP, São Paulo.
h. Antiga Coleção Instituto Cultural Banco Santos.
Este grupo abrange 14 tangas, todas com imagens compostas por várias
simplificações por figuras de seres, como por exemplo, elementos em T e volutas, e
estruturadas por meio da reflexão ou pelo desdobramento.
203
Tangas grupo 7
Coleção/ Instituição Quantidade Procedência
Fazenda São Marcos, tesos
ICBS/ MAE-USP 4
Camutins e Urubu
Figura 89. Imagens compostas por motivos semelhantes, mas exibindo enquadramento de
partes diferentes do padrão virtual. Percebe-se que a posição dois motivos acima destacados
diferem nas duas tangas, com um localizado ao centro do painel, e outro localizado em suas
laterais.
a. Coleção Governo do Estado do Pará, Belém.
b. Coleção Oliveira, Museu do Estado de Pernambuco, Recife.
205
Um arranjo diferente deste padrão é visto em outras tangas, como pode ser
observado na figura 91. Aqui, a imagem é resultante de um enquadramento que
prioriza uma parte mais restrita ainda do padrão virtual.
Neste caso específico, a imagem sempre mostra uma face, cujos olhos são
sugeridos por um ser com membros em forma ganchos ou volutas que poderia aludir
a um sauro, nariz pelo motivo em T invertido e bocas por motivos em espirais ou
pelo motivo “cruz no medalhão”(figura 91 e figura 92).
206
Figura 92. Tangas cujas imagens dos painéis gráficos destacam um enquadramento do
padrão.
a, b, c. Museu Nacional, Rio de Janeiro.
d. National Museum of American Indian, Washignton.
e. Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém.
f. Departamento de Antropologia da Cornell University.
Estas imagens, ora estruturadas com dois eixos de simetria, ora com um
único eixo, e priorizando enquadrar diferentes partes de um padrão virtual, que pode
ser mostrado integralmente ou em parte, ilustram o caráter quimérico dos grafismos
vistos nas tangas deste grupo e destacam, sobretudo, a relação entre aquilo que é
visto e aquilo que é apenas sugerido.
207
sempre ocupada por padrões do tipo “b” e “c” já descritos anteriormente com maior
predominância de padrões do tipo “b”, isto é, padrões compostos por meio da
replicação de triângulos por reflexão deslizante, criando deste modo, uma faixa em
zigue-zague.
As tangas analisadas deste grupo estão distribuídas em dois museus,
abrangendo três coleções museus, como pode ser visto na tabela abaixo, no entanto
salientamos que a maior parte das peças analisadas é do Museu Nacional.
Tangas do grupo 8
Coleção/ Instituição Quantidade Procedência
Coleção Amazônica/
7 Indeterminada
Museu Nacional
Tesos Camutins e
ICBS/ MAE-USP 1
Urubu
006/ MAE-USP 1 Pacoval
208
Figura 93. Formas de estruturar os motivos das tangas deste grupo. As setas
vermelhas destacam a direção para a qual os membros da figura que alude ao sauro
estão voltados.
a. Coleção ICBS/MAE-USP, São Paulo.
b. Museu Nacional Rio de Janeiro
Como se nota na ilustração acima (figura 93) as duas variantes do motivo são
estruturalmente diferentes, enquanto na variante “a” a figura do sauro é estruturada
dentro de painéis horizontais, um superior e outro inferior, na “b” é estruturada em
quadrantes. Nota-se também que enquanto na variante “b” as linhas formadas entre
os quadrantes desdobrados atravessam a imagem criando dois eixos
perpendiculares, na variante “a” o eixo vertical é sugerido virtualmente entre os
membros das figuras do sauro, ao passo que um eixo horizontal é sugerido no
espaço entre os dois painéis. Percebe-se, deste modo, imagens muito semelhantes,
compostas pelo mesmo motivo, mas por princípios estruturais diferentes.
Nos dois casos, a forma como os motivos que aludem ao sauro são
estruturados cria uma face com todos os atributos das faces marajoara, ou seja,
olhos, cenho nariz e boca. No entanto, como se vê na imagem abaixo, somente os
olhos são dados ao olhar em todas as tangas, sendo sempre estruturados pelo
tronco lonsagular do sauro (figura 94).
209
Figura 94. Diferentes modos de estruturar o campo gráfico para compor uma imagem de
face.
a. Museu nacional, Rio de janeiro.
b.University Museum of Archaeology e Etnology, Cambridge. Fonte: Mordini: 1929,
prancha 3.
c. Museum für Völkerkund, Berlin. Fonte: Mordini: 1929, prancha 4.
210
outras duas tangas ilustradas nas figuras 94a e 94b o nariz é sempre sugerido no
painel superior, abaixo dos olhos, por meio da oposição dos membros do sauro. A
boca pode, às vezes, ser sugerida, em ambos os casos, pelo tronco losangular do
sauro, no entanto, é mais comum que seja sugerida pelas linhas horizontais que
unem os troncos losangulares que se localizam na parte inferior.
Em alguns casos específicos relacionados à variante “b”, ou seja, aquela
estruturada em quadrantes, os olhos se localizam quase fora do campo da visão,
com o nariz composto pelo tronco do sauro localizado entre os olhos (figura 95a).
Uma tanga da antiga coleção Barbie Mueller (figura 95b), curiosamente, apresenta
motivos estruturados semelhantemente e ordenados da mesma maneira, no entanto,
o seu layout é caracterizado por painéis verticais. Nota-se, nesta tanga, que o motivo
losangular alude a um ser serpentilíneo enrolado sobre um fundo cruciforme
vermelho, de maneira semelhante às figuras do sauro estruturadas nos quadrantes
destas tangas onde os membros dos sauros, projetados flexionados para fora,
sugerem uma figura cruciforme sob o seu tronco losangular.
Figura 95. Imagens semelhantes compostas por motivos e estruturas diferentes e que
escondem figuras antropomorfas.
a. National Museum of American Indian. Fonte: Nordenskiöld, 1930, prancha
XVI.
b. Antiga Coleção Barbier Mueller. Fonte: sothebys.com
211
figura para perceber que é na relação entre as suas partes que boca e nariz são
sugeridos. Além disto, como se vê na ilustração acima, a imagem pode
constantemente agenciar o olhar na percepção de novas figuras e, com isto, a figura
do sauro pode se transformar, dependendo de como é vista, revelando uma figura
antropomorfa (figura 95a) ou ainda, como se vê na figura 95b, seres podem ser
sugeridos entre um motivo e outro.
Tangas do grupo 9
Coleção/ Instituição Quantidade Procedência
Tesos do Monte Carmelo (1 tanga),
ICBS/MAE-USP 2
tesos Camuntins e Urubu (1 tanga)
Coleção Dita Acatauassu, Museu
2 Indeterminada
Paraense Emílio Goeldi
Teso Camutins (1 tanga)
Museu Paraense Emílio Goeldi 2
Indeterminada
Museu Nacional 2
Pacoval
Museu do Estado de Pernambuco 1
212
dez, o painel gráfico é composto só pelo painel gráfico e por uma estreita banda 1,
caracterizada pelo padrão 1 do tipo b, como se vê na figura 96a.
Figura 96. Tangas com painéis gráficos compostos por padrões allover.
a. Coleção ICBS/ MAE-USP, Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo.
b. Antiga coleção Jean Eugéne Lyon, Geneva. Fonte: zenakruzick.com
c. Museu Nacional, Rio de Janeiro.
213
97, por exemplo, ora se vê uma pequena face composta por um motivo que alude ao
sauro, ora se vê uma face maior, composta pelo desdobramento desta face menor.
Figura 97. Tanga com padrão composto por várias figuras de faces.
a. Coleção Dita Acatauassu, Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém.
b. Reconstituição do padrão da tanga.
c. Rollout com detalhe destacando as figuras vistas no padrão.
214
Figura 98. Motivos do painel gráfico invertidos por meio da rotação.
a. Museu Paraense Emílio Goeldi, Belém.
b. Antiga coleção Jeans Eugéne Lyon, Geneva.
c.Coleção ICBS/MAE-USP, Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo.
215
5.10. Os grupos de tangas e a variabilidade regional
216
preocupação em levantar estas informações pode ser percebida nas tabelas onde
detalhamos as coleções e quantidade de peças analisadas de cada grupo em cada
instituição, onde, sempre que possível, detalhamos também a procedência das
peças.
Tem sido proposto que certos estilos de decoração cerâmica são restritos a
determinadas regiões da Ilha de Marajó, de modo que certas urnas funerárias
antropomorfas, decoradas com pintura ou com excisão são mais comuns nos sítios
da região do rio Anajás, enquanto aquelas decoradas com incisões sobre engobo
branco são muito mais frequentes em sítios localizados a leste do lago Arari, como o
Pacoval (Roosevelt, 1991; Schaan, 2007b: 81). Haveria uma tendência semelhante
a esta nas tangas, onde temas iconográficos específicos caracterizariam as
iconografias de certos sítios ou regiões?
Um aspecto percebido no decorrer desta pesquisa é que a maior parte dos
grupos de tangas está presente em vários sítios, marcando presença tanto nos sítios
da região do rio Anajás quanto nos sítios da região do lago Arari, ou seja, não
parece haver uma correlação entre estes grupos de tangas e sítios específicos ou
com regiões de Marajó. Salientamos também que mesmo as tangas que
compartilham do mesmo padrão, ou seja, tangas semelhantes, não estão restritas a
um sítio ou região específicos. Neste caso, percebemos que muitas tangas
provenientes dos sítios do rio Camutins, muitas delas provenientes da Fazenda São
Marcos, e distribuídas hoje na coleção ICBS/MAE-USP e também na coleção
Governo do Estado do Pará, formam pares com outras tangas provenientes dos
sítios do lago Arari, como o teso Pacoval, o teso Severino e o teso Pacoval dos
Mello, distribuídas, principalmente, nas coleções do Museu do Estado de
Pernambuco (coleção Oliveira), do Museu Paraense Emílio Goeldi (coleção
tombada), do Museu Nacional (coleção amazônica) e do Museu de Arqueologia e
Etnologia da USP (coleção 006), além de diversas coleções, provenientes dos
mesmos sítios, e distribuídas em diversos museus da Europa e dos Estados Unidos,
que acessamos por meio de publicações.
As únicas tangas que parecem estar relacionadas a sítios específicos são
aquelas do grupo 2. Neste caso, todas as tangas que tiveram a sua procedência
identificada são provenientes do conjunto de tesos Os Camutins, e estão distribuídas
em três coleções específicas, a coleção ICBS/MAE-USP e a coleção 006,
217
depositadas no Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, e nas coleções do
Governo do Estado do Pará, especificamente a coleção McPhee, que se encontra
distribuída no Museu Paraense Emílio Goeldi, no Museu do Forte e no Museu das
Gemas, em Belém.
A falta de contextos, bem como de dados estratigráficos destas tangas é um
fator que impossibilita compreender de maneira mais ampla as dinâmicas envolvidas
na distribuição destes grupos pelos sítios e regiões da ilha de Marajó, assim como
os seus possíveis significados. Algumas hipóteses que explicam diferenças
regionais entre os estilos poderiam explicar também esta ampla dispersão dos
temas e padrões iconográficos pelas diferentes regiões da ilha. Roosevelt (1991),
por exemplo, propôs subdividir o período de ocupação de 900 anos referente à fase
marajoara em subfases se baseando em possíveis distinções cronológicas e
geográficas entre sítios. Em sua pesquisa identificou a subfase Camutins no Rio
Anajás, datada entre 400 a 700 A.D. e também a subfase Pacoval a leste do Lago
Arari datada entre 700 a 1100 A.D. Escavações posteriores identificou outras duas
subfases: a subfase Teso na região do Lago Arari, datada entre 1100 e 1300 A.D. e
a subfase Guajará, no rio Anajás, datada entre 700 e 1100 A.D. Conforme é possível
observar na tabela abaixo, a subfase Guajará, no rio Anajás, e a subfase Pacoval,
no lago Arari, são contemporâneas (Roosevelt, 1991: 399).
218
Períodos da fase marajoara propostos por Schaan (2004)
Período Cronologia
Conforme pode ser notado, o período entre 700-1100 d.C é coincidente nas
duas propostas. Para Schaan (op.cit.) este período teria sido caracterizado pela
expansão e ocupação máxima da ilha com os conjuntos de tesos se expandindo por
uma área de 20 mil quilômetros quadrados a partir do centro da Ilha, estabelecendo
pequenos cacicados competitivos com estilos cerâmicos distintivos, e dentro disto, o
uso de temas iconográficos semelhantes por grupos de parentesco locais,
priorizando certos motivos, técnicas de decoração e morfologias cerâmicas (Schaan,
2004).
Diante de um contexto onde não só o estilo, mas também a iconografia são
aspectos que diferenciam não apenas regiões e sítios, mas também diferenciariam
grupos específicos, por qual razão grupos de tangas, caracterizados pelos mesmos
temas iconográficos e, em muitos casos, por padrões gráficos semelhantes,
possuem uma dispersão tão ampla? É possível que neste período entre 700 a 1100
d.C. o uso de tangas com os mesmos temas iconográficos e os mesmos padrões
tenha se generalizado?
É importante ressaltar que um dos aspectos pontuados no capítulo 3, diz
respeito à diferença de frequência entre tangas monocromáticas e tangas com
grafismos entre os sítios do rio Anajás e os sítios do lago Arari. Com base em um
levantamento, em que foram considerados os registros de escavações em sítios das
duas regiões, verificou-se que as tangas com grafismos são mais frequentes nos
sítios do lago Arari, enquanto as monocromáticas são mais frequentes nos sítios do
rio Anajás.
Os dois tipos são frequentes em sítios das duas regiões, diferindo apenas em
frequência. No entanto, é possível que a maior ocorrência de tangas com grafismos
nos sítios do lago Arari tenha se dado como um desenvolvimento alcançado com a
ocupação dos sítios desta região. Neste sentido, com a ocupação de novas áreas é
219
possível que temas iconográficos e padrões gráficos já existentes nos sítios do rio
Anajás tenham continuado em uso nos sítios do lago Arari. A ocorrência de tangas
com padrões gráficos e morfologias específicas aos sítios do conjunto Os Camutins,
como aquelas do grupo 2, poderiam, assim, ser atribuídas a períodos anteriores a
esta possível “expansão”.
Apesar disto, algumas dúvidas prevalecem. Se entre estas duas regiões as
diferenças das cerâmicas marcam estilos regionais, como visto, por exemplo, nas
urnas funerárias, por que o mesmo não ocorre com as tangas? Neste sentido, as
tangas não parecem ser um marcador de diferenças regionais, mas sim de
semelhanças, e assim, caberia a futuras pesquisas, compreender o significado desta
semelhança.
220
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
221
simétricos e desdobramento, encaixe recurso de figuras, além de recortes e
enquadramentos dos padrões gráficos.
A análise iconográfica aqui desenvolvida foi exploratória, com vistas a
identificar os principais componentes iconográficos das tangas. Diante disto,
percebemos a recorrência de figuras que englobam feições tanto de seres como o
jacaré quanto o lagarto, mas que podem também mesclar características
antropomorfas, por esta razão denominamos, de “sauro-humano”, e também de uma
figura serpentelínea com cabeça em forma de pirâmide escalonada de onde são
projetadas volutas que poderiam aludir aos barbilhos de certas espécies de peixes,
as quais, aqui, foram chamadas de “peixe-serpentelíneo”.
Nesta dissertação apenas identificamos estas figuras, sem buscar acessar os
seus possíveis conteúdos semânticos. Percebemos, no entanto, como foi
comentado no capítulo 4, que existe uma possível relação entre as duas, sendo
recorrente a figuração de uma por meio de partes anatômicas da outra.
Particularmente, o motivo “pirâmide escalonada”, motivo que corresponde à cabeça
da figura “peixe-serpentelíneo”, pode ser espelhado e, assim, transformado, no
motivo “cruz no medalhão”, motivo que identificamos como uma possível
simplificação da figura do “sauro-humano”, ser que quando figurado graficamente,
pode ter o seu ventre sugerido por losangos ou por variantes deste motivo, relação
que foi, inclusive, observada por Carvalho (1976).
Acreditamos que pesquisas futuras, visando explorar a relação entre estas
duas figuras, bem como o seu conteúdo semântico, podem se focar exclusivamente
nas cerâmicas do tipo Arari-exciso, onde ocorre a maior incidência de figurações
destes dois seres, seja de forma modelada, seja por meio de grafismos excisos,
principalmente, nas urnas funerárias deste tipo, onde ocorre a presença simultânea
deste dois seres ou de partes suas, sob a forma dos motivos “pirâmide escalonada”
e “cruz no medalhão”.
Os corpos marajoara
222
dos artefatos provenientes das sociedades da Amazônia antiga podem ser
estudadas à luz dos conhecimentos a respeito das sociedades indígenas do
presente.
Embora o exercício de explorar objetos arqueológicos à luz destes
conhecimentos possa incorrer no risco de se projetar conhecimentos a respeito das
cosmologias do presente para interpretar aquelas do passado, ele também pode ser
bastante frutífero, considerando-se algumas esferas resistentes da relação entre
imagem e identidade nas sociedades ameríndias em geral, o que pode ser crítico na
escrita de uma história indígena de longa duração.
Os princípios de construção das imagens, dentro do sistema representacional
marajoara, em nosso entender, em muitos aspectos são convergentes com as
formas de representação características dos sistemas gráficos ameríndios. Contudo,
não podemos negar que no geral a cerâmica marajoara apresenta formas de
figuração mais explícitas do que aquelas existentes nos regimes de figuração
ameríndios atuais, que conforme certos estudos demonstram, tendem a uma
abstração (Lagrou, 2007, 2011; Lagrou e Severi, 2013). Barreto (2009:25) sugere
que talvez este figurativismo mais realista que o material pré-colonial, em geral,
apresenta esteja relacionado a esferas de reconhecibilidade mais amplas, pan-
amazônicas, enquanto que as imagens mais “abstratas” das sociedades ameríndias
atuais talvez reflitam uma circulação mais restrita (e, portanto, mais codifificada),
interna ao grupo que as produz.
No entanto, mesmo se corpos e suas partes anatômicas são representados
de maneira mais figurativa na arte marajoara, uma característica persistente entre
passado e presente é o fato de que os artefatos no universo ameríndio sejam
tratados como corpos, alguns deles sendo considerados, inclusive, como partes
parceladas de corpos, e mantendo a capacidade agentiva destes (Lagrou e Severi,
op.cit.; Silva, 2001; Van Velthem, 203, 2009).
Deste modo, no material marajoara, verificamos uma maneira muito
específica não apenas de fabricar corpos, mas também de materializar princípios
cosmológicos relacionados à transformabilidade destes corpos, como o constante
jogo entre diferentes perspectivas, característico das cosmovisões multinaturalistas
amazônicas e da ontologia da predação.
223
A composição da imagem a partir de figuras em escalas diferentes, seja por
figuras autosimilares, seja por figuras aludindo a seres ou partes do seu corpo, pode
estar relacionada a uma fractalidade ameríndia, sobretudo, conforme discutido no
capítulo 2, no que diz respeito à constituição do “eu” pela integração do “outro”, o
que implica em corpos permeáveis à transformação. Ao mesmo tempo, os princípios
envolvidos na constituição destas imagens visam estimular a visão de figuras que
podem estar escondidas nos emaranhados dos seus grafismos, ou mesmo a figuras
que não podem ser percebidas a “olhos nus” dentro do campo da própria imagem,
mas que requerem sempre o uso de uma “imaginação perceptiva”.
224
compostas nas tangas, especificamente, mostram faces que são compostas por
corpos e partes anatômicas de animais. Neste sentido, o conjunto de imagens
analisadas não foge à regra de composição dos corpos marajoara materializados,
por exemplo, em urnas funerárias e estatuetas, que representam figuras
antropomorfas que possuem as suas partes anatômicas sugeridas por corpos de
animais.
Deste modo, percebe-se que o regime de figuração marajoara concebe
corpos compósitos, o que é proeminente, sobretudo, na iconografia das tangas, o
que é análogo às formas de concepção de corpos e pessoas nas ontologias
construtivistas ameríndias, que conforme comentado no capítulo 2, concebem os
seres como entidades feitas de corpos e partes de corpos de uma miríade de outros
seres (Santos-Granero, 2012).
A maneira de conceber os corpos que é priorizada no regime de figuração
marajoara está de acordo com o que é visto na Amazônia multinaturalista, onde
natureza e cultura fazem parte de um mesmo campo sociocósmico (Viveiros de
Castro, 2002: 370). Aqui, a instabilidade das formas de representação dos corpos,
com figuras híbridas de humanos e animais, é característica do mundo altamente
transformacional das culturas amazônicas que ilustram de maneira visual a noção do
corpo como lugar para constantes transformações (Barreto, 2009:51).
Neste sentido, as imagens nas tangas mostram corpos em transformação,
compostos por meio de uma amálgama de seres. Estas formas de representação
poderiam estar relacionadas à importância do xamanismo no Marajó antigo. Neste
sentido, o simbolismo xamânico envolvendo tais transformações corporais poderia
destacar a capacidade xamânica de tomar as mais distintas perspectivas e mesmo
enfatizando capacidades de acessar outros mundos, conforme alguns estudos
iconográficos de materiais arqueológicos têm sugerido (Barreto, op.cit.; Oliveira,
2016; Reichel-Dolmatoff, 1990).
Os princípios formais que estas imagens englobam dialogam com aquilo que
Lagrou (2011) chama de uma “arte das sociedades contra o Estado”, caracterizada,
sobretudo, por procedimentos que permitem ao espectador mudar de ponto de vista,
ou perspectiva, e pela integração construtiva e dosada de agências inimigas e
predatórias, o que nos grafismos, poderia ser percebido, principalmente, no
movimento transformativo entre corpos e no caráter compósito dos seres.
225
Como forma de questionar certas ideias segundo as quais “as sociedades
humanas percorreram um caminho de crescente complexificação e que, a partir de
pequenas aldeias relativamente autônomas, tornaram-se sociedades regionais
(cacicados, entre elas) e então estados” (Schaan, 2010:50), o perspectivismo e a
ontologia da predação têm sido correlacionados à ideia de que, nas terras baixas, as
sociedades ameríndias podem se organizar em comunidades mais autônomas do
ponto de vista político e econômico, mantendo tal autonomia ou por meio da
perpetuação de um estado de guerra, ou pela participação em extensas redes de
relações com os vizinhos, sendo que o xamanismo é um elemento essencial nesta
dinâmica (Clastres, 2004; Figueireido, 2006; Sztutman, 2005, 2013; Viveiros de
Castro, 2002, Gallois, 2005).
O trânsito cósmico, característico da cosmovisão perspectivista, responsável
por tornar as identidades pessoais e coletivas sempre instáveis no mundo
ameríndio, seria um impedimento para a centralização do poder político, que só
poderia se constituir sobre uma unidade identitária estável, não ameaçada por
mudanças de perspectiva advindas da incorporação de subjetividades diversas
(Sztutman, 2005:79). Já a predação implica na incorporação contínua das
diferenças, ameaçando, deste modo, a centralização de poder ao impor um
movimento incessante de buscar a matéria para a sociabilidade e impedir a
estabilização de uma interioridade e de uma identidade coletiva dos grupos
(Figueiredo, 2006).
Deste modo, entendemos que a iconografia das tangas cerâmicas expressa
noções mais relacionadas à fabricação dos corpos e princípios cosmológicos
referentes à mediação entre diferentes perspectivas, entre o visível e o invisível do
que estratégias ideológicas visando a legitimação do poder de certos grupos sociais,
como aquelas apresentadas no capítulo 1.
226
específicas que as sociedades pretéritas concebem, estruturam e representam os
seus universos e os princípios cosmológicos que estruturam estes universos.
227
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242
ANEXOS
243
Índice de Anexos
244
ANEXO 1. Levantamento das tangas associadas a sepultamentos.
245
LEVANTAMENTO DAS TANGAS ASSOCIADAS A SEPULTAMENTOS
Tipo de tanga
Sítio Coletor C/ Tipo de urna Material associado Referência
Monocromática
grafismos
Hartt, 1876,
Pacoval O. Derby X Pacoval inciso Ossos humanos
1885
Meggers e
Guajará (Monte Carmelo) Betty Meggers X Associada à urna O Fragmentos de ossos humanos
Evans, 1957
246
Tipo de tanga
C/ Material associado Referência
Sítio Coletor Tipo de urna
Grafismos Monocromática
Belém (M17) Os Joanes Pintado G2 (urna Pequenos fragmentos de ossos, manchas Schaan,
Denise Pahl Schaan X de carvão vegetal, fragmentos. 2004
Camutins 4)
Belém (M17) Os Joanes Pintado G2 (urna Solo cinza escuro seco, manchas de Schaan,
Denise Pahl Schaan X carvão vegetal e fragmentos. 2004
Camutins 12)
Belém (M17) Os Joanes Pintado G1 (Urna Sedimento, ossos, pequenos pedaços de Schaan,
Denise Pahl Schaan X carvão, fragmentos. 2004
Camutins 15)
247
Tipo de tanga
Sítio Coletor Tipo de urna Material associado Referência
C/
Monocromática
Grafismos
Victor Bandeira e
Françoise Carel- Troufflard,
Camutins (Os Camutins) X Joanes Pintado G1. Sem informações
Bandeira 2010
Victor Bandeira e
Françoise Carel- Arari exciso vermelho Troufflard,
Camutins (Os Camutins) X Sem informações
Bandeira G2 2010
Associada a uma
antropomórfica com Palmatary,
Panellas Antonio Mordini X Sem informações
gravuras 1950
*Devido ao fato de a tipologia “Joanes Pintado”, conforme proposta por Meggers e Evans(1957), englobar tipos de urnas morfologicamente
distintos, optamos por acrescentar na tabela juntamente com o termo, quando a identificação foi possível, as abreviações G1 (grupo 1) e G2
(grupo 2) para diferenciar os tipos, referindo-se às tipologias apresentadas por Barreto para estes tipos de urnas. Deste modo, G1 refere-se a
urnas cujo corpo constitui um personagem específico e que, geralmente, é composta por elementos plásticos e pintados, enquanto G2 refere-se
a urnas com dimensões médias, formas globulares, e pintadas com grafismos semelhantes.
248
ANEXO 2. Ficha de análise utilizada neste dissertação.
249
FICHA DE ANALISE
A.DOCUMENTAÇÃO
NÚMERO DE
REGISTRO
B.DESCRIÇÃO GERAL
ESPESSURA ( ) CM
QUANTIDADE ( )1 ( )2 ( )3 ( )4 ( )5 ( ) 6 ( ) 7
DE CAMPOS
GRÁFICOS
C.SINAIS DE USO
TIPO DE PADRÃO 1 ( ), 2 ( ), 3( )
PRINCIPAIS
ELEMENTOS E
MOTIVOS
ELEMENTOS ( )ASPA ( ) CRUZ ( ) ESPIRAIS ( )GANCHOS ( )HEXÁGONO ( )LOSANGO (
)PENTÁGONOS ( )TS ( )TRIÂNGULOS ( )TRIÂNGULOS ELABORADOS ( )VOLUTAS
MOTIVOS ( ) A ( ) B ( ) C ( ) D ( ) F ( )G ( )H ( )I ( )J ( )K ( )L ( )M ( )N ( )O ( )P (
)Q ( ) R ( ) S ( ) T ( ) U ( ) V ( ) W ( )X ( ) Y ( )Z
PAINEL GRÁFICO
ESTRUTURA E
SIMETRIA
TIPO DE ESTRUTURA ( ) APAINELADA ( ) DIVIDIDOS EM ÁREAS IDENTICAS ( ) A PARTIR DA ÁREA
CENTRAL
( ) SEM DIVISÃO PREVIA
EIXOS DE SIMETRIA ( ) VERTICAL ( ) HORIZONTAL ( ) PERPENDICULAR
LINHAS
OBSERVAÇÕES
251
252