Carta para Ler Aos Oitenta
Carta para Ler Aos Oitenta
Carta para Ler Aos Oitenta
Espero que te encontres bem, agora que completas oitenta voltas ao Sol.
Que não falte saúde no teu corpo e alegria no teu coração, que é o que
se quer, para aproveitares bem o dia. Porque todos os dias nascemos e
todos os dias morremos, até um dia em que não voltamos a acordar, e
essa data, que sabemos cada dia mais próxima, serve para nos lembrar
que, enquanto a vida nos animar, há mais uma oportunidade de rir, de
amar, de saborear, de sonhar e talvez até de lutar, por nós e pelos nossos.
Que os vinte anos que nos separam no tempo, te tenham trazido as
vitórias merecidas. E que as grandes lições tenham sido aprendidas. Por
esta altura é bom que tenhas resolvido os teus conflitos interiores, que são
os únicos possíveis de resolver, já que dependem exclusivamente de ti.
Os exteriores, como sabes, nunca se resolvem, a não ser com a passagem
do tempo e as mudanças do espaço. No fundo não existem, são apenas
variáveis no jogo da vida, que nos ajudam a crescer quando sofremos as
consequências dos nossos actos. O fim será igual para todos. Mas o que
conta é como vivemos estes dias em que deparamos com a vida. Seria
possível nunca errar? Seria possível aprender sem errar? Não
propriamente. Mas podemos aceitar e agradecer cada oportunidade,
ao invés de acabarmos como velhos rezingões, a barafustar por causa
das nossas expectativas frustradas. Espero que não seja o teu caso ;)
Parabéns, meu velho! És mesmo sortudo. Imagino que mantenhas esse
espírito jovem e rebelde que te tem caracterizado, desafiando as tuas
próprias limitações e recusando a ditadura da razão. Apesar de todas as
contrariedades, lá vais conseguindo levar a tua arte avante. E ainda te
sabes divertir. Mas nada disso seria possível se não estivesses vivo e já não
te resta muito tempo. Dedica agora mais tempo à meditação, para
cumprires a tua maior ambição, o último e supremo objectivo, morrer em
estado de contemplação, em pleno êxtase espiritual, o chamado
Nirvana.
Talvez já sintas o peso da idade nas pernas e mais do que uma sinapse te
falhe no cérebro, enquanto contemplas estarrecido os teus netos em
ruidosa brincadeira, quando a família estiver reunida mais logo para
festejar o teu aniversário. Talvez as miúdas já não te pisquem os olhos,
devido a sinais de envelhecimento mais acentuados, mas manterás o teu
charme discreto. Espero eu. Ou és só um junkie desdentado? Por esta
altura, espero que te tenhas transformado na tua melhor versão. A
decadência física é inevitável, havemos de mirrar até desaparecer,
como viste acontecer ao teu pai. No entanto é possível evitar mais dor e
sofrimento. Lembra-te que o mundo exterior é um reflexo do mundo
interior. Feed your soul, bro, and rejoice! (alimenta a tua alma, mano, e
rejubila!)
Uma coisa que não envelhece é a nossa capacidade de amar. Não há
limites para a paz dentro de ti, é tão infinita como a essência do universo,
pois uma e outra são a mesma coisa. Assim como todos nós somos
também, frutos da mesma semente, feitos da mesma coisa, e no entanto
somos independentes e únicos por algum tempo, pois não há, não
houve, nem haverá, nenhum fruto igual a outro. E tu, não sendo um fruto
perfeito, és espectacular, porque sempre tentaste e deste o teu melhor.
Portanto só tens razões para dar glórias à vida.
Estas palavras que dirijo à minha pessoa, embora destinadas a ser lidas
porventura no futuro, esfrego-as na cara para que me atinjam
directamente no presente, pois são tão pertinentes agora como em
qualquer altura. E nada me garante que vá ter essa oportunidade.
Portanto se leres isto, é porque há mesmo razões para festejar. Não
percas mais tempo e vai dar um abraço a essa malta que te ama.
Incluindo a ti próprio.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2019