O Público e o Privado 21 Revisada
O Público e o Privado 21 Revisada
O Público e o Privado 21 Revisada
o privado
Revista do Programa de Pós-Gra-
duação em Políticas Públicas da
Universidade Estadual do Ceará
CONSELHO EDITORIAL
E D I T O R ES
Maria Glaucíria Mota Brasil Geovani Jacó de Freitas
C O N S U L T O R E S INTERNOS
CONSULTORES EXTERNOS
P R O J E TO GRÁFICO
Clarice Frota
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Cristiê Gomes Moreira ISSN 1519-5481
CDD 320.000
O periódico O público e o privado (PP) é uma publicação acadêmica do
Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Estadual
do Ceará(UECE), de periodicidade semestral. Destina-se a publicar e divulgar
trabalhos de pesquisadores nacionais e estrangeiros, resultados de estudos
e pesquisas, considerando a relevância e inserção da temática na produção
do conhecimento teórico-empírico para as políticas públicas.
LANTINDEX – www.latindex.unam.mx/buscador/resBus.html?palabra=o+p
%FAblico+e+o+privado&opcion=1&Submit=Buscar
Ademais, a revista traz à luz do público artigos de Juana Ruiloba sobre o sistema
educativo espanhol, interpretado em função de questões de gênero; Linda
Gondim a respeito da atuação da Fundação para o Desenvolvimento Habitacional
de Fortaleza (HABITAFOR); e Wellington Maciel sobre o imaginário social da
fundação de Fortaleza. São artigos que trazem ao leitor reflexões importantes a
respeito de questões que envolvem tanto o campo das políticas públicas, quanto
da teoria social e seus desdobramentos para as Ciências Sociais em geral.
Por fim, o desejo presente neste número é de que a sua leitura não apenas
agrade, mas, sobretudo, inquiete, provoque, mobilize e promova novas
reflexões em torno daquilo que agora publicado é de domínio público. Dito
isto, a maior expectativa é a de que os leitores encontrem aqui motivos
para ir em frente, seguir adiante, dizer e desdizer o que foi dito de maneira
produtiva e desafiadora. Bom trabalho pela frente!
Geovani Jacó de Freitas (UECE)
Luiz Fábio Silva Paiva (UFAM)
Organizadores
Sumário
Apresentação
TEMAS LIVRES
RESENHA
OPINIÃO LIVRE
111 Public Security Policies and Youth: the case of Rio Grande do Sul
Mariana Chies Santiago Santos, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
FREE THEMES
147 Under the Shadow of Brazil National Housing Bank (BNH): the new
housing policy in Fortaleza-CE (2005-2011)
Linda M. P. Gondim
REVIES
FREE OPINION
Na contramão da ordem?
Cultura urbana, juventude e estigma na cidade
do Rio de Janeiro (**)
Sobre os possíveis usos políticos do evento ocorrido em 1992, Cony (2004, p.30)
sugere relação entre o arrastão e tentativas de grupos “!ultra-reacionários” para
impedir que Benedita da Silva, candidata pelo Partido dos Trabalhadores, ex-
moradora de favelas, e negra, ocupasse este cargo. Sua análise aponta para o
uso do arrastão em períodos anteriores às eleições. Isto porque em sua opinião
“o lucro do assalto praticado nas praias da zona sul é ridículo. Ninguém leva
valores para a praia, leva talvez um celular, uns trocados para água de coco,
nenhuma bijuteria, o relógio mais vagabundo de cada um. Qualquer lanchonete
ao meio dia, oferece mais dinheiro e mercadoria. E os bandidos sabem disto”
A ocorrência deste fato teve com um dos efeitos a criação de uma comunidade
pública de discussão que envolveu políticos, acadêmicos, jornalistas,
policiais, mas principalmente, os supostos “delinqüentes” que tiveram sua
imagem associada a partir deste momento, a práticas “fora da lei”. Como
resultante deste processo de tornar presente em imagens nacionais, aqueles
grupos que historicamente restringiam seu movimento ao subúrbio da Cidade,
criaram-se possibilidades para ouvir (mesmo que na condição de acusados)
os agentes aos quais se atribuiu a responsabilidade pela desordem urbana.
com decisão ao falar que o povo não deveria ter medo, a expressão do morador
do “bairro invasor”, um homem negro de aproximadamente 35 anos, era de
nervosismo, mãos que se entrelaçavam com rapidez, ombros levantando em
sinal de desacordo com as decisões tomadas, mas em certo sentido, acuado,
ressentido com a forma de tratamento dispensada a tantos que como ele,
frequentavam a praia nos fins de semana.
Não era sobre a favela como lugar de moradia que recaíam as acusações.
O artigo de Cunha (2001) enfatiza exatamente este ponto: os moradores de
favelas da zona sul passaram a frequentar a praia em horários alternativos
para não serem “confundidos com aqueles que vinham dos subúrbios, favelas
da zona norte ou da Baixada Fluminense”. Então o estigma territorial precisa
de mediações. Tampouco era um pobre genérico, porque este, freqüentador
da praia, vinha com sua família aos fins de semana e “sabia se comportar”.
Sobre que grupo recaíra a informação desabonadora? Que grupo era
responsabilizado pelo suposto aumento de roubos no Bairro?
Na contramão da ordem? Cultura urbana, juventude e estigma na cidade do 15
Rio de Janeiro
A critica feita pelos porteiros aos fatos é muito elucidativa: “este pessoal não
sabe se comportar aqui no nosso bairro”. Se existia alguma identificação por
ambos serem de origem nordestina (porteiros e moradores de subúrbio) esta
demarcação era rompida enquanto outra era acionada: lugar de residência.
Uma estranha comunhão com o estilo de vida surgia como linha divisória entre
moradores e hordas invasoras. Estas hordas deveriam aprender a manipular
os signos que eram compreendidos por aqueles que frequentavam a praia não
apenas nos fins de semana. Desta forma, trabalhadores reconhecidos como
parte daquele cenário eram aceitos como “nós, do bairro de Ipanema”. Por esta
razão, a oposição não é simplesmente entre moradores de favela e moradores
do asfalto. Na interação diária entre favela e asfalto já se tornara integrada
a trabalhadora doméstica assim como o trabalhador autônomo dos pequenos
biscates, pois esta era a favela moralizada, harmoniosa,. O que havia mudado?
Se existe uma regularidade na frequência aos bailes, que tipo de signos são
compartilhados, como reconhecer e ser reconhecido?
Com estes eventos que criaram uma espécie de pânico urbano sobre
frequentar um baile funk, tornou-se necessário demarcar que ser um
frequentador de bailes não inviabilizava aqueles indivíduos de exercerem o
papel respeitável de pais de família e trabalhadores. As letras narravam o
cotidiano de trabalhadores pobres, suas alegrias simples, alegrias traduzidas
na frequência ao baile com os amigos e a interceptação de sua vida em
função destas práticas culturais. Era preciso não confundir estes com os
verdadeiros “baderneiros, brigões”. Ser “confundido” é um dos problemas
mais frequentes na visão dos jovens. Não são raras as mortes que ocorrem em
função de semelhanças. Por esta razão, “ser mais um Silva” na representação
de alguém que goza de um status social depreciado, passou a ser tema de
uma das letras mais executadas do funk nacional, e isto ocorreu sem uso
dos meios de comunicação ou da indústria fonográfica.
Esta letra foi escolhida por traduzir um sentimento coletivo de: euforia e
alegria. Pelo encontro de amigos, pela possibilidade de dançar e ter minutos
de liberação das tensões cotidianas. Esta experiência nos é próxima,
principalmente como ritual de iniciação de passagem para uma fase da
vida onde algumas práticas são aceitáveis, como a independência para
5 Cidinho e Doca, Duda os encontros afetivos. Um evento interrompe este fluxo e se torna banal
e Taffarel, Rap do Fes- por tratar-se de mais um anônimo. É a ida ao baile que sela seu destino.
tival, exemplos de gale- Porque ele era “funkeiro”. Este artista é exemplo da forma como o território
ras que ganhavam mú-
sicas no festival de rap
passou a ser evidenciado nas letras e ao mesmo tempo problematizado pelos
da Furacão. frequentadores de bailes que se auto-definiam como funkeiros:
Na contramão da ordem? Cultura urbana, juventude e estigma na cidade do 25
Rio de Janeiro
Se vistos como uma “horda” indistinta, este grupo seria classificado por seus
atributos (moradia, escolaridade, emprego) como pertencendo à geração de
“funkeiros”. Estas foram as palavras empregadas em matérias do Globo,
principalmente em 1992, para referir-se aos grupos que frequentavam
as praias da Zona Sul nos verões do arrastão. Este processo de (des)
singularização estava na base da construção de imagens e discursos que
tratavam a ‘horda indistinta” como um perigo para a ordem urbana
moradores sobre exploração sexual e drogas nos bailes e esta era sua quarta
incursão a fim de conseguir “ boas provas” ou seja, imagens sobre o que
ocorria nos bailes. Em 2001, a reportagem “ Feira das Drogas” feita pelo
mesmo jornalista já havia colocado outros jornalistas em condições de risco.
O suposto responsável pelo assassinato seria Elias Maluco, principal líder
do Comando Vermelho em liberdade e considerado, a partir de então, como
um dos principais inimigos do Estado do Rio de Janeiro.
A mudança qualitativa que deve ser tomada como problema para a Sociologia, 11 Ironicamente filho
de um dos maiores de-
pode ser apresentada em alguns pontos: a) se levarmos em conta que o fensores e pesquisado-
estigma só pode existir na interação, portanto, enquanto atributo relacional, res do samba carioca,
ABSTRACT: Considering the continuity of the slum as “social problem” in the Keywords: stigma,
city ordinance, the interaction between favela residents and non residents slums, youth, urban
becomes important point for the issues discussed in this article. In this case, it is order, violence
interesting to understand, as from events occurring in situations of face to face
interaction formed representations of certain groups. This article reconstitute
events in the 90s, realizing that this period is an important break with previous
views on slum dwellers in the city and suburbs of Rio de Janeiro, especially
the construction of the “funkeiro” as the enemy of urban order. The concept of
stigma is central to the arguments that will be presented. The article is based
on document analysis, interviews with patrons, artists and slum dwellers to
understand how the construction and subsequent criminalization of funkers
was decisive actions of the Secretariat of Public Security of the State of Rio de
Janeiro in the 90s and early 2000s.
Referências
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Universidade na Constituinte: uma
agenda de problemas. Presença (Rio de Janeiro), Rio de Janeiro, v. 9, p.
77-85, 1987.
CUNHA, Olivia. M. Gomes da. Bonde do Mal: notas sobre território, cor,
violência e juventude numa favela do subúrbio carioca. In: Maggie, Yvonne;
Barcellos, Claudia. (Org.). A Raça como retórica: a construção da diferença
em perspectiva comparada. 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002, v. , p. 85-154.
Inquietações sobre
juventudes, experiências e
metodologias
Concerns about youth, experience and
methodologies
I ntrodução
Este texto busca provocar algumas reflexões sobre a trajetória de jovens com
experiência de moradia de rua, propondo uma discussão a partir do entendimento
de que a rua é um lugar de exposição de performances das culturas juvenis,
portanto, ela também pode ser compreendida como um lugar de encontro de
afetos. Diante disso, entendo as juventudes como um conceito no plural, pois as
multiplicidades e diferenças que integram esses grupos devem ser destacadas
para evitar classificações homogêneas e estigmatizadoras. No caso das culturas
juvenis em questão neste artigo, ou seja, jovens com experiência de moradia
Para decifrar esses modos de vida, sigo as orientações de José Machado Pais
(2005) e passo a observar e perambular com os jovens em seus “contextos
vivenciais cotidianos”, pois é no curso de suas interações sociais que eles
constroem formas de compreensão e de entendimento que se articulam
com formas específicas de consciência, de pensamento, de percepção e
de ação. Dessa forma, abre-se uma “análise ascendente dos modos de
vida dos jovens”, que parte da diversidade de mecanismos, estratégias e
táticas cotidianas significativas para entender como esses mecanismos são
investidos, utilizados e transformados, assim como suas possíveis involuções
e generalizações. Para o autor,
1 Durante os anos de
Portanto, o percurso metodológico construído para a realização deste trabalho
2004 a 2007 tive a de campo deu-se a partir da observação participante que, em virtude
oportunidade de atuar de minha trajetória profissional1 e de inserção no campo de pesquisa,
como gestora pública na
possibilitou que ela fosse redesenhada como uma “observação vivencial”.
prefeitura municipal de
Fortaleza gerenciando, Nesse sentido, baseada em uma experiência despretensiosamente iniciada
entre outros, os progra- a partir de vivências ocorridas com um grupo de jovens moradores de rua,
mas de atendimento a da curiosidade despertada em mim sobre a tessitura de suas redes afetivas e
população infanto-ju-
venil moradora de rua das conversas formais e informais partilhadas com os jovens, possibilitando
em um órgão chamado que eu estivesse presente em diferentes e inusitados lugares, acompanhando
FUNCI. Nessa época, dessa maneira, suas trajetórias de vida. Dessa forma, reporto-me novamente
participava de grupos
de trabalho e fóruns de
a Walter Benjamim (1994) quando o autor reflete sobre a experiência,
discussão que possibili- compreendendo-a como uma vivência que não é nada se não for transformada
taram com que eu cons- em alguma narrativa compartilhável ao grupo ao qual pertenço. Portanto,
tituísse amplo campo a experiência é a arte de narrar algo que nos aconteceu, que nos afetou e,
de articulação com
instituições do gover- para Benjamim (1994), é a transmissão da narrativa dessa vivência que a
no e da sociedade civil transforma em experiência. Com isso, fiz uso de anotações anteriormente
que favoreceram minha realizadas quando o campo de trabalho2 ainda não era oficialmente um
inserção em campo e
engrandeceram minhas
campo de pesquisa3 e passei a incrementar essas anotações com os encontros
observações sobre o sistemáticos com os jovens com experiência de moradia de rua. Sendo assim,
modo de vida desse gru- realizei uma composição das “narrativas das narrativas” vivenciadas por
po de jovens.
mim vivenciadas e associadas as dos interlocutores, ou seja, os jovens,
2 Refiro-me às anota- indivíduos que experimentam essas múltiplas emoções, e por movimentarem-
ções e observações rea- se no terreno do acaso, das circunstâncias, das contingências, traçam mapas
lizadas sobre a vida dos culturais e afetivos singulares à sua experiência de vida. É com esse cenário
jovens com experiência
de moradia de rua du- que proponho uma reflexão sobre os afetos de rua através de expressões
rante o período de 2005 narrativas, performáticas e gestuais produzidas pelos jovens que possuem
a 2007, quando atuava experiência de moradia de rua. Atrevo-me a construir uma metodologia de
na gestão pública.
análise fundamentada na ideia de uma “narrativa das narrativas”, portanto,
3 Designo que meu privilegiando os relatos dos jovens e os meus próprios, na condição de
campo de pesquisa co- pesquisadora, sobre a polifonia de um campo de pesquisa.
meçou antes mesmo
de minha entrada em
um programa de pós- Pedro: um capitão do asfalto
-graduação, pois possuo
experiências vividas, Pedro é um capitão de areia, um capitão do asfalto. Conheci esse jovem no
observações realizadas
e anotações registradas ano de 2006 quando ele tinha 18 anos. Pedro nasceu em 1988, na cidade
anteriores ao período de Fortaleza. Sua família é formada ao todo por seis irmãos, sendo quatro
de 2008 a 2011, que da primeira relação conjugal de seu pai e os outros dois da segunda. Ele
são essenciais para o
desenvolvimento deste
tem pouco contato com os irmãos mais velhos. Sua mãe é falecida. O jovem
estudo . foi morar nas ruas pela primeira vez com 12 anos de idade em virtude de
Inquietações sobre juventudes, experiências e metodologias 37
Assim como Pedro Bala, um dos Capitães da Areia de Jorge Amado (2008),
esse Pedro também liderava um grupo de jovens que morava nas ruas do
centro da cidade de Fortaleza. No seu mundo onírico, percebi que o real e
o imaginário, a ordem e o caos, a dignidade e a marginalidade, o legal e o
ilegal se confundiam constantemente. De todo modo, constituí com Pedro
uma cumplicidade que fez com que ele gostasse da minha companhia e de me
contar suas “aventuras”. Sua história fez de Pedro um “interlocutor afetivo”,
figura essencial para as minhas reflexões sobre a trajetória de jovens com
experiência de moradia nas ruas. Além da vida na rua, o menino me contou
passagens de sua infância em um bairro da periferia de Fortaleza quando
morava com o pai, a madrasta e os irmãos.
7 O nome do parque, na
Com o tempo, o jovem conheceu outras pessoas que lhe ensinaram estratégias
verdade, é Cidade da de sobrevivência legais e ilegais que circundam a vida nas ruas. Pedro
Criança devido à ins- costuma dizer que sentia uma grande vontade de conviver mais tempo
talação, em meados do
século XX, de uma es-
com o pai, mas sua profissão dificultava. O pai do jovem trabalhava como
cola pública primária. motorista de uma fábrica de vidros e, por isso, viajava com muita frequência
A nomenclatura Parque para outras cidades do nordeste brasileiro. Essas ausências também podem
das Crianças é mais ser compreendidas como mais uma fator desencadeador da saída de Pedro
usada para identificar o
lugar dado pelos mora- de sua casa, além disso, em decorrência da vingança cometida, o menino
dores de Fortaleza. Ele estava ameaçado de morte e não podia mais voltar para a sua comunidade.
foi denominado como
Parque da Liberdade,
em 1992, em comemo-
No meu primeiro encontro com Pedro, o vi sentando em um banco do Parque
ração ao centenário da da Liberdade, mas conhecido como o Parque das Crianças7, no centro da
proclamação da inde- cidade de Fortaleza. O jovem conversava com Mariana, uma jovem moradora
pendência brasileira.
de rua que na época era sua namorada, conforme a menina me informou.
Hoje funciona como
sede da Secretaria de Ele parecia escondido atrás de óculos escuros e de um gorro de um time
Direitos Humanos da de futebol, que, por ser o mesmo que o meu, proporcionou um mote para
Prefeitura Municipal. uma conversa. O jovem me falou que se chamava Ronaldo. Mariana, que
Anterior à implantação
dessa Secretaria, as po- eu já conhecia há mais tempo, fez as apresentações. Percebi um sorriso
líticas públicas de aten- debochado entre os jovens e percebi que Pedro não estava dando o seu nome
dimento para crianças e verdadeiro. Então, comecei a conversar sobre futebol perguntando o que ele
adolescentes da cidade
eram executadas pela
achava dos jogadores atuais e da atuação do time no campeonato. O menino
Fundação da Criança logo desistiu da conversa. Deveria achar que tanto eu como Mariana não
e da Família Cidadã sabíamos do que falávamos, pois todos os comentários feitos, ele restringia-se
(FUNCI), sediada nes- a responder de forma monossilábica. Uma característica de Pedro que desde
se mesmo parque até o
ano de 2009. esse primeiro encontro me chamou a atenção foi a sua atitude arredia com as
Inquietações sobre juventudes, experiências e metodologias 39
pessoas. Penso ser essa desconfiança uma forma de proteção utilizada pelos 8 Sobre a definição
de amor, ver Bauman
moradores de rua. Geralmente, as pessoas não se aproximam, preferindo (2004), Illouz (2011),
ficar distantes, conforme observamos os comportamentos de muitas pessoas Luhmann (1991), Ne-
com aqueles definidos como um “morador de rua.” ves (2007) e Simmel
(2006),De todo modo,
a descrição de Maria-
Mariana perguntou-me se eu achava os olhos verdes de Pedro bonitos. Eu na sobre o significado
respondi que sim. Nesse momento, percebi como os olhos de Mariana se dessa emoção associa
revelaram apaixonados e constatei que Pedro era o seu amor8, que outrora amor e desejo. Sendo
assim, Hannah Arendt
a menina tinha me confidenciado. Diante dessa colocação, Pedro decidiu (1997, p. 17) assinala
levantar-se e foi embora do parque, deixando Mariana em um banco da que “amar nada mais é
praça comigo. Perguntei se ela era apaixonada por Pedro e ela me disse do que desejar uma coi-
sa por si mesma”. Para
que ele era “o amor de sua vida” e que seu maior desejo era viver com ele a autora, o caráter es-
na rua. O romance dos jovens é marcado por separações e reconciliações. pecífico do amor é o de
Pedro não reconhecia Mariana como sua namorada. Diferente da menina não ser possuído, pois
que o considerava como sendo. Em diversas situações, ele me revelou que na eminência desse
acontecimento, o desejo
apenas “ficava” com a menina. Ele a conheceu quando estava na Barraca acaba, a não ser que o
da Amizade9 e ela na Casa das Meninas10. perigo de perder o que
foi adquirido (o desejo
de possuir) transforme-
Nessa época, Pedro estava próximo de completar 18 anos de idade e, diante -se em medo de perder.
disso, teria que sair do abrigo. É de conhecimento de grande parte dos
jovens com experiência de moradia de rua que a legislação brasileira, por 9 Uma organização não
governamental que exe-
meio do Estatuto da Criança e do Adolescente, possibilitava um atendimento cuta um serviço de aco-
em abrigos públicos ou das organizações não governamentais (ongs) até os lhimento institucional
18 anos de idade. No caso das ongs, é necessário que o jovem componha na modalidade abrigo
atendendo o público
o perfil de atendimento exigido pela instituição, porém no caso do poder masculino na faixa etá-
público, o atendimento tem que primar pela universalidade e equidade de ria de 12 a 18 anos in-
direitos. Portanto o atendimento ocorre independente de perfis e trajetórias completos.
diferentes11. Como muitas crianças e jovens, Pedro oscilou entre a vida na
10 Abrigo municipal
rua e “na casa” (nas instituições de abrigamento e em casa de familiares) ao vinculado a prefeitura
longo de seis anos. Diante dessas possibilidades, Pedro intercalou vivências de Fortaleza destinado
nas ruas e nos abrigos, (como a Casa dos Meninos12 e na Barraca da Amizade) ao atendimento do pú-
blico feminino com ida-
até atingir a maioridade. Além dos abrigos, a casa de um irmão mais velho des entre 12 e 18 anos
também era um refúgio de Pedro quando ele sentia o desejo ou a necessidade incompletos.
(frente a outras ameaças sofridas) de ficar longe das ruas. Depois de completar
11 Em várias cida-
a maioridade, Pedro perde o direito de viver nos abrigos e, desde esse período, des brasileiras muitos
o menino passou a ter a rua como a principal referência de moradia. abrigos ou serviços de
acolhimento institu-
cional executados pelo
O jovem se definia como um “morador de rua” ou como um dos meninos que poder público atendem
“moravam no Parque das Crianças”. Um dos elementos que os moradores de crianças e jovens em
rua utilizam para se identificar e para identificar o grupo ao qual pertencem diferentes situações,
seja os que estão “pro-
é por intermédio do lugar na Cidade onde costumam dormir ou passar a visoriamente” afastados
maior parte do tempo durante o dia. No centro da cidade de Fortaleza, as de suas famílias, seja os
que estão cumprimento praças representavam essas referências. Nessa época, havia cerca de vinte
(cumprindo? em cum-
primento? Ou é do jeito
crianças e jovens que se concentravam, durante o dia, dentro do Parque das
que está??) medidas Crianças13. Esse fato gerou uma grande polêmica na Cidade, pois lá também
socioeducativas. Se- era a sede do órgão responsável pelas políticas públicas municipais para a
gundo a legislação bra- infância e adolescência: a antiga Fundação da Criança e da Família Cidadã14
sileira, os atendimentos
dessas duas situações (FUNCI). Portanto, era uma praça que também sediava uma instituição
deveriam acontecer em pública, diante disso, a expectativa da população era que a “prefeitura
equipamentos sociais fizesse alguma coisa” para tirá-los de lá, adotando práticas de higienização
diferentes, mas não é
isso que a realidade re-
dos lugares, descartando tudo que pudesse enfear e colocar em risco a ética
vela em muitos estados e a estética da Cidade. Nessa época, sofríamos pressões, tanto da mídia como
brasileiros. dos transeuntes que cruzam o Parque na direção do centro da Cidade, que,
12 Abrigo municipal
através de diferentes formas de reclamação, pediam atitudes enérgicas dos
vinculado à Prefeitura profissionais responsáveis. Em meio a essa polêmica, os canais de TV e os
de Fortaleza destinado jornais da Cidade passaram a noticiar cotidianamente, durante cerca de um
ao atendimento do pú- mês, reportagens sobre esse grupo de jovens. O teor das notícias girava em
blico masculino com
idades entre 12 e 18 torno de uma ideia de ineficiência e conivência dos poderes públicos frente
anos incompletos. àquela permanência cotidiana dos jovens no Parque. A população queria
uma resposta rápida para o caso e, como gestores, nós tínhamos que dar.
13 Janice Caiafa
(1989), na obra “Mo-
vimento Punk na Ci- Observei que esse grupo estava bastante envolvido e frequentava com
dade: a invasão dos assiduidade as atividades de arte-educação realizadas pelos educadores
bandos sub”, sinaliza
questões importantes
sociais no Parque das Crianças, especialmente as atividades de circo.
para a compreensão de Pedro teve aulas de malabarismos quando viveu na Barraca da Amizade e
grupos juvenis “trans- era comum ouvir dele a adoração pela prática dos malabares. Os meninos,
gressores” que se en- com a orientação de um dos educadores, montaram um grupo de teatro
contram expostos na es-
fera pública. Segundo com linguagens circenses (faziam malabarismos vestidos de palhaços) e o
a autora, o nomadismo chamaram de “Mistral”, uma referência à marca de cigarros que consumiam.
desses grupos acontece O grupo foi formado por quatro jovens, incluindo Pedro, e eles apresentavam-
não pelo movimento em
se frequentemente nos eventos comemorativos e festivos que a Funci
si, mas pela intensida-
de de suas trajetórias, realizava. O envolvimento dos jovens nas atividades de teatro facilitava o
logo, não é um exercício interesse em outros atendimentos que lhes eram oferecidos, especialmente
de “andar por andar”, aqueles referente à redução de danos decorrente do uso de drogas e os
pois é a experiência do
momento de percorrer
atendimentos psicossociais, pois do mesmo jeito associaram as suas rotinas
que faz o caminho. O diárias no Parque à participação em outras atividades oferecidas pela Funci.
que foi definido como
“gangue” ou “bando” Durante essa convivência diária e cada dia mais enrolada nos fios de
pela autora é designa-
do pelo entendimento afetos e nas histórias desses jovens, observei que além de mim, os outros
de ser essa junção uma profissionais também estavam seduzidos pelas histórias e modos de vida de
experiência coletiva, Pedro e seu grupo. Um círculo de afetos15 circunscrito por cumplicidades
portanto, “tentar com-
tinha sido estabelecido. Durante o tempo em que viveram no Parque os jovens
preender seu funciona-
mento é acompanhar o declaravam estar “limpos” ou “de cara”, portanto, sem fazer uso recorrente
investimento do bando de drogas, especialmente do crack, que os deixavam alucinados e dispersos.
Inquietações sobre juventudes, experiências e metodologias 41
Diante de um novo comportamento, esse grupo de jovens foi, com o tempo, num agenciamento co-
ganhando a confiança (e o bem querer) de outras pessoas que também letivo; é assistir a como
o desejo se arma como
frequentavam o Parque das Crianças (os transeuntes, os comerciantes e outros
exercício de grupo,
profissionais da Funci). Em outros tempos, essas pessoas não costumavam se como estratégia de gru-
aproximar deles, pois, conforme observava enquanto estava nas atividades po, e ao que eles usam
com os jovens moradores de rua, muitos tinham receio de suas atitudes para fazê-lo circular, em
que outras estratégias
indóceis e arredias. Por estar “limpo”, Pedro esporadicamente dirigia-se se apoiam nessa expe-
até a casa de um irmão que morava na periferia da Cidade. Essa era uma rimentação, o que apro-
condição estabelecida pela esposa de seu irmão que, segundo o garoto, veitam do espaço urba-
no, que é o seu meio,
gostava muito dele, mas o proibiu de usar a sua casa como um refúgio no para esse exercício, o
momento em que a vida estava arriscada. Ela comunicou a Pedro que não que serve e ajuda, o que
queria sua casa ameaçada. O jovem, certa vez, disse-me que não gostava de emperra e constrange”
dormir na casa do irmão. Ele tinha receio em deixar o grupo que liderava (CAIAFA, 1989, p. 63).
sozinho e “desprotegido”, além do mais, ele considerava que os meninos 14 Atualmente esses
poderiam achá-lo um traidor, pois enquanto “ficava numa boa” na casa da serviços estão vincu-
família, os demais continuavam na rua, mesmo sendo essas “saídas da rua” lados a Coordenadoria
da Infância e Adoles-
acontecimentos extraordinários. cência da Secretaria de
Cidadania e Direitos
Com o tempo, Pedro estava cada vez mais focado nas atividades junto ao Humanos da Prefeitura
Municipal de Fortaleza,
grupo de teatro. O educador responsável pelas oficinas o convidou para que em outros tempos
acompanhá-lo, ministrando com ele as oficinas que aconteciam em outros agregava os serviços da
projetos sociais da Funci. Dessa forma, observei como ambos tinham Funci.
estabelecido uma parceria técnica e afetiva, pois os dois me revelaram que
15 Ver Machado Pais
estavam empolgados com essa atividade conjunta. Depois de um tempo, (2012).
Pedro mostrou-se tão assíduo e comprometido que resolvemos contratá-lo
para trabalhar na Funci como monitor de arte-educação junto às oficinas de 16 Mesclado é o nome
dado à mistura de crack
teatro que aconteciam em um projeto destinado à prevenção do uso de drogas, com maconha. Possui
projeto no qual Pedro também recebia atendimento. Na ocasião, percebi que um efeito menos frené-
o jovem tinha reduzido o uso de drogas, especialmente durante as tardes de tico do que o crack, mas
um tempo de duração
atividades no Parque das Crianças. Ao questioná-lo sobre isso, tendo em vista
do efeito mais longo
que a relação que constituímos permitia algumas perguntas de foros íntimos por causa da maconha.
e indiscretos, Pedro declarou que só estava fumando mesclado16 no final de Percebi em campo que
semana ou à noite, após o fim de seu “expediente de trabalho” na Funci. para muitos jovens
moradores de rua com
quem conversava, eles
Quando Pedro estava em processo de contratação, organizando os documentos não costumavam clas-
necessários, ele me perguntou se eu poderia acompanhá-lo até à casa do sificar a maconha como
uma droga, perceben-
irmão para ele pegar os documentos que estavam guardados. Eu prontamente do-a mais próxima do
aceitei o convite. Dessa forma, tive a oportunidade de conhecer seus outros cigarro. Em suas repre-
três irmãos, uma cunhada e sobrinhos, pois todos moravam na mesma casa. sentações, o cigarro não
Nesse dia, fomos eu e Juliana, a namorada de Pedro da época. Percebi como é classificado uma dro-
ga para os jovens mora-
aquela situação poderia representar também o momento de Pedro apresentar a dores de rua. Portanto,
namorada para a sua família. Juliana me falou que estava envergonhada com a um cigarro de maconha
situação. Fiquei surpresa com o seu comentário, pois ela costumava portar-se
de forma bastante desinibida e corajosa. A jovem me confidenciou que ficou
constrangida pelo fato de ser uma “menina de rua”, uma namorada que Pedro
tinha conhecido na rua e ficou com receio de ser maltratada pela família do
namorado. Contrariando essa expectativa, quando nós três chegamos à casa
dos familiares de Pedro, fomos recebidos com simpatia e atenção de todos.
A casa era bem simples. Entramos por um quintal que dava na cozinha. Pude
ver que a casa era, na verdade, um grande vão dividido em cozinha, banheiro,
dois quartos e uma sala. Não havia porta nos quartos e os armários faziam
a divisória entre quartos e sala. Na sala, bem pequena, o lugar onde fiquei
durante a visita, havia um sofá de dois lugares, uma estante com uma televisão
e um aparelho de DVD. No dia de nossa visita, estava na casa um irmão com
a namorada e dois sobrinhos de Pedro. Percebi que eles ficaram felizes com
a chegada do menino e faziam perguntas para saber notícias sobre o irmão.
Eu e Juliana ficamos sentadas no sofá da sala, tomando um café servido pela
cunhada, enquanto Pedro foi buscar os documentos em um dos quartos. Ele
os guardava em uma gaveta onde também deixava alguns objetos pessoais,
não muitos, conforme me falou, apenas sua certidão de nascimento e algumas
roupas. Enquanto Pedro organizava seus pertences, ficamos conversando
com a cunhada, que, por sinal, elogiou a beleza de Juliana. Ela me contou
que tinha convidado Pedro para morar definitivamente com ela e os outros
irmãos, especialmente nesse momento em que Pedro tinha tornado-se um
“trabalhador”. A cunhada também falou que, segundo ela, o pai do jovem
ficaria orgulhoso com as boas notícias do filho caçula. Pedro conseguia ouvir
a nossa conversa do quarto onde estava e, ao voltar para a sala, percebi um
largo sorriso em seu rosto em virtude dos elogios que escutou de sua família.
Nessa época, fui convidada por eles para conhecer a nova moradia do casal.
O quarto ficava na frente e tinha uma janela que dava para a rua, mas os
jovens confessaram-me um incômodo: o quarto não tinha porta. Impossível
não fazer uma analogia entre casa, porta, privacidade, o inverso do que
se tem na rua, onde os momentos de intimidade aconteciam em lugares
pouco movimentados, longe de pedestres, à noite e em cabanas feitas com
os papelões que utilizam para dormir. Juliana reclamava com a mãe a falta
da porta, pois a privacidade era um dos atrativos de viver na casa. O quarto
era pequeno e havia nele uma cama de casal, uma rede e um armário. Como
Juliana não o ocupava, em decorrência de sua trajetória na rua, seu quarto
me passou a impressão de ser um quarto de hóspedes, um lugar desocupado,
sem rotina, sem pertences pessoais que pudessem identificar o seu dono.
Pedro não costumava falar sobre seus sentimentos por Juliana. Suas
declarações eram raras, tímidas e sem muita profundidade. A percepção de
18 Sofia Aboim (2009)
seus sentimentos pela namorada acontecia através de gestos e comportamentos, destaca que o amor é,
especialmente pelo cuidado e carinho que ele explicitamente demonstrava na maioria dos casos,
por ela. Juliana frequentemente brigava com Pedro e terminava o namoro. O subjetivamente vivido
como um processo di-
jovem, nessas ocasiões, procurava por ela em busca de uma reconciliação. Ele nâmico sujeito a mo-
declarava que já estava ficando acostumado com o fato de Juliana terminar dificações ao longo do
o namoro, e que não levava isso a sério, pois considerava a namorada muito tempo de convivência e
“teimosa”. Pedro conheceu a menina no Parque das Crianças e logo se da rotina. Desse modo,
esse sentimento resul-
mostrou interessado. Eu pude acompanhar o início desse relacionamento. ta de uma trajetória a
Quando estavam juntos, Pedro demonstrava seu afeto beijando e abraçando dois, inscrita por um
frequentemente a menina. Era fácil perceber o orgulho que sentia ao andar hibridismo que enuncia
de mãos dadas com a namorada pelas ruas do centro da Cidade, intitulando-a afeto e cotidiano como
dimensões cúmplices.
como “sua mulher”. A forma como ele tratava Juliana era diferente da forma Nesse sentido, o fato de
como tratava Mariana. Ele era bastante atencioso e carinhoso e estava sempre Pedro orientar o cotidia-
na companhia da namorada, apesar das discussões e desentendimentos no de vida na rua para
as namoradas dava ao
que levavam a garota a terminar o namoro. Eu costumava dizer para Pedro
jovem um interessante
que ele era “louco” pela menina. Nesses momentos, ele dava uma grande atributo de conquista e
gargalhada, mas não negava a minha afirmação18. vinculação amorosa.
Nas conversas que tive com jovens moradores de rua e nas observações
realizadas em campo, percebi que existe um código semântico que diferencia e
classifica as relações afetivas entre os casais. Quando se atribui a definição “ela
é minha mulher” ou “ele é o meu macho19”, significa que o relacionamento é
mais sério do que o namoro e similar a um casamento. Outra expressão utilizada
pelos jovens era que eles “estavam juntos” ou que “tinham se juntado”, outra
analogia para a definição de namoro. Quando questionava sobre as práticas
sociais que designavam o “estar junto” na rua, os jovens me explicaram que
tinha uma relação com o fato dos casais dormirem juntos, no mesmo pedaço
de chão e ou sob o mesmo papelão, assim como um reconhecimento do grupo
ao casal os identificando como tal. Neste caso, Juliana era a mulher de Pedro e
Pedro o “macho” dela. Portanto, Pedro tinha “se juntado com Juliana”. O amor
que Pedro demonstrava sentir por Juliana ressoava pelo Parque das Crianças
em forma de atitudes e gestos de carinho, portanto, o jovem produzia códigos
de comunicações simbólicas capazes de evidenciar seus sentimentos20.
A permanência de Pedro não durou muito nesse novo programa, pois logo
após sua transferência ele me procurou novamente. O jovem me disse que,
no dia anterior, quando estava saindo do seu local de trabalho a caminho da
casa da mãe de Juliana, ele encontrou no terminal de ônibus com um antigo
inimigo que o tinha jurado de morte na época em que ele morava com a
família na casa do pai. Pedro declarou seu receio, pois esse jovem tinha visto
seu crachá da Prefeitura e, desse modo, sabia onde ele estava trabalhando e 21 Segundo o Estatuto
por isso poderia colocar em risco demais profissionais que trabalhavam com da Criança e do Adoles-
cente (ECA), o cumpri-
ele caso fosse fazer um acerto de contas. Pedro me confidenciou que essa rixa mento da medida socio-
estava relacionada com a vingança em nome do pai que cometeu no passado. O educativa de liberdade
menino que encontrou no terminal de ônibus era irmão da vítima da vingança assistida configura-se
como uma alternativa
arquitetada por Pedro. Rapidamente, providenciei junto com a coordenação do ao regime de privação
programa de medidas socioeducativas o remanejamento de Pedro, que retornou de liberdade aplicada
ao projeto anterior ao qual estava vinculado no centro da Cidade. Como o jovem a jovens entre 12 e 18
declarou que a rixa que teria ocasionado sua mudança de lugar de trabalho anos de idade que co-
meteram algum tipo de
não existia mais, ele poderia voltar a trabalhar no antigo projeto. ato infracional de pouca
gravidade. Essa medida
Nessa conversa Pedro me revelou que não estava mais namorando Juliana tem período mínimo de
seis meses e máximo
e, sendo assim, ele tinha voltado a viver nas ruas. O jovem comprometeu-se de três anos e sua exe-
a alugar um quarto no centro da Cidade ou a retornar à casa de seu irmão. cução é realizada pelo
Coloquei essa exigência como uma forma de permanência dele no quadro poder municipal, pelo
poder judiciário ou por
de funcionários da Funci. Com o tempo, as notícias que recebia de Pedro organizações da socie-
não eram boas, pois ele começou a faltar o trabalho com muita frequência, dade civil.
ficando dias sem aparecer. Quando aparecia, ele dizia que estava com a família,
ora na casa do irmão, ora com o pai em uma casa nova que ele havia alugado e
convidado o menino para ir morar com ele. A presença de Pedro foi ficando cada
vez mais inconstante e o menino ficava dias “desaparecido.” Pairava entre os
profissionais uma angústia em perceber que Pedro estava “se desligando” das
atividades que compunha seu cotidiano no Parque das Crianças. Pensávamos,
na época, que estávamos “perdendo” Pedro. Essa designação “perder” é
uma expressão recorrente na esfera institucional, pois significa que um jovem
está “desistindo” de algum tipo de atendimento e retornando ao mundo da
ilegalidade. Portanto, era essa a apreensão das pessoas sobre Pedro, na época.
Nesse dia, também soubemos que o pai continuava viajando e que Pedro
não foi morar com ele, conforme o menino havia nos dito após sair da casa
da mãe da namorada. Despedi-me de Pedro e sua família e fui embora. Esse
foi o meu último encontro com o menino.
Pedro não ficou muito tempo nesse lugar e “fugiu” da instituição, “desistindo
do atendimento.” Após essa fuga, ninguém mais encontrou Pedro. Os jovens
moradores de rua do centro da Cidade que o conheciam nos disseram que ele
pegou uma carona e foi para a Bahia. Essa era a versão de muitas pessoas sobre
o seu paradeiro. Confesso meu encantamento com esse destino e prefiro pensar
que o Pedro do Ceará foi encontrar com o Pedro Bala da Bahia, um dos “Capitães
da Areia” de Jorge Amado. Ele deve ter se juntado ao “bando” de meninos
que são, “na verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os
que totalmente a amavam, os seus poetas” (AMADO, 2008, p. 29). Imagino o
Pedro daqui junto com o Pedro Bala de lá, acolhido pelo Professor, por Dora,
por João Grande, pelo Gato, Boa-Vida, Sem-Pernas, Volta-Seca, pelo Querido
de Deus, entre outros tantos habitantes de um certo trapiche à beira-mar, e
dessa forma, recontar sua história com outros com diante do mesmo enredo.
Pedro costumava dizer que só sairia da rua se Juliana fosse com ele. Como se
só pudesse mudar o seu destino se a sua namorada compartilhasse o mesmo
desejo. Mas Juliana tinha outros planos. Pedro nunca fez essa proposta para
Mariana. Ela frequentemente dizia para todos que faria qualquer coisa
pelo amado. Mariana declarava que “mudaria de vida” caso formasse uma
família com Pedro. No entanto, era Pedro quem tinha outros planos e admitiu
em diversos momentos que não era apaixonado por Mariana. Pelo onirismo
que circunda as histórias contadas por muitos jovens moradores de rua, na
confusão entre realidade e sonho que marcam os trajetos e os desejos desses
jovens, entre os ilegalismo e as afetividades que compõem suas trajetórias
de vida nas ruas, considerei por muito tempo a hipótese de que Pedro foi
morar em Salvador na Bahia e, diante disso, consagrou a sua trajetória como
um capitão da areia. Tempos depois soube de outra versão sobre o destino do
menino. Uma versão desanimadora que anuncia um destino que muitas pessoas
que se deixam “viajar” nas histórias dos jovens com experiência de moradia
de rua não gostariam de revelar: ele foi preso por tráfico de drogas e esperava
pelo seu julgamento em um presidio da região metropolitana de Fortaleza.
A circulação como uma marca de suas trajetórias de vida não anula suas
vinculações afetivas e sentimentais, pois essas ligações são reveladas em seus
discursos e observadas na forma como interagem com as pessoas e os lugares.
No entanto, devem-se compreender as vinculações a partir de suas intensidades
e da construção de significados que elas conservam na vida cotidiana dos
jovens que vivem nas ruas, pois, ao se desvincularem de experiências e
situações anteriores, orquestradas no mundo da casa, eles vinculam-se a novas
referências que possibilitam modos de permanência na rua. Portanto, essas
conexões apresentam-se a partir da dinâmica peculiar dos lugares onde se
encontra fixado esse grupo juvenil, que pode apresentar formas ora mais sólidas
ora mais fluidas, mas que existem e dão sentido aos novos percursos trilhados.
ABSTRACT: The intention of this article to produce reflections on the ways of Keywords:
life of young people with experience of housing street. I realize that staying Youths, affectivity,
in the public sphere, despite street also be recognized by them as a place illegalities and
experiences.
of violence, producing a daily demeaning, threatening and hostile, happens
from the formation of bonds of affection with established people, places and
institutions that provide survival strategies and stay in these places. Similarly,
I chose to narrate the trajectory young speaker of this research that expresses
the uniqueness of a youth culture in the same way that indicates how the street
can be understood as a meeting place of affection.
Referências
ABOIM, Sofia. Da pluralidade dos afetos: trajetórias e orientações amorosas
nas conjugalidades contemporâneas. Revista Brasileira de Ciências Sociais,
Vol. 24 no. 70, junho/2009.
AMADO, Jorge. Capitães de Areia. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
CAIAFA, Janice. Movimento punk na cidade: a invasão dos bandos sub. Rio
de Janeiro: Ed. Zahar, 1989.
Projovem Urbano:
contribuições da gestão social em sua avaliação
I ntrodução
Este artigo é fruto de reflexões iniciais advindas de uma pesquisa bibliográfica
integrativa e documental, realizada para fundamentar uma análise sobre a
evasão em um programa do Governo Federal, intitulado Projovem Urbano,
implantado no município de Betim – Minas Gerais. Este programa é destinado
Neste sentido, este estudo tem como eixo norteador de suas reflexões os
fundamentos da gestão social, e como estes podem permear e direcionar os
processos avaliativos do Programa, partindo do entendimento de que possa
ser uma ferramenta local de conhecimento e envolvimento dos diversos atores
e beneficiários. Desta forma, tenta-se enfocar a avaliação como um meio de
participação e um mecanismo possível para alcançar as reais necessidades
dos beneficiários de programas sociais. A partir destas ideias, o presente
trabalho tem como objetivo discutir os limites e possibilidades dos processos
avaliativos do Programa Projovem Urbano e apresentar as contribuições da
incorporação dos princípios e valores da gestão social nesse processo, visando
a amenizar a situação recorrente da evasão.
O Projovem Urbano
O Projovem (Programa Nacional de Inclusão de Jovens) foi lançado, no dia
02 de fevereiro de 2005, por meio de medida provisória. Esse programa foi
desenhado e formulado na esfera do Governo Federal como ação integrante do
Plano Nacional de Juventude (PNJ), sendo estruturado de forma a contemplar
uma de suas dimensões - a inclusão. Em princípio, o prazo de validade do
Programa era de dois anos com o objetivo de lhe assegurar qualidade, devendo
ser avaliado ao término do segundo ano. A intenção inicial do Programa era
criar condições necessárias para que o jovem, com o perfil de participar,
pudesse romper com o ciclo de reprodução das desigualdades.
3 O estudo considera Observa-se, assim, que o Projovem é uma política pública operacionalizada
evadidos os jovens que
frequentaram o Progra-
por meio de um programa que objetiva o atendimento aos jovens em situação
ma, chegando mesmo de vulnerabilidade social/risco. Contudo, esse entendimento não parece
a completar alguma de ser intrínseco a esses jovens, mas uma denominação construída pelo poder
suas etapas, mas, que
não permaneceram
público a fim de torná-los foco de atenção das políticas públicas. Dessa forma,
no Programa até a sua o Programa apresenta deficiências decorrentes da falta de participação dos
finalização. Como de- jovens, antes, durante e depois da implementação das ações a eles destinadas.
sistentes, consideram-
-se alunos matriculados
que chegaram a fre- Portanto, apesar de todas as situações pontuadas acima e dos benefícios
quentar o programa, re- oferecidos pelo Programa, já descritos, há necessidade de compreensão dos
ceberam bolsa auxílio,
mas não passaram pe-
fatores que favorecem a permanência desse jovem e/ou a inviabiliza, partindo
las fases do Programa. da visão do sujeito egresso evadido e dos que participam do Programa.
Projovem Urbano: contribuições da gestão social em sua avaliação 63
Cabe ressaltar que o Programa faz parte de uma política proposta pelo
Governo Federal na tentativa de enfrentar a vulnerabilidade juvenil, mas
possui metodologias estanques que podem inviabilizar processos inovadores
de melhorias, conforme o contexto no qual está sendo desenvolvido. Ressalta-
se que o Programa passa por avaliações externas, promovidas em parceria
com algumas universidades federais, mas elas não contemplam a participação
direta dos sujeitos envolvidos.
São questões que não apresentam fáceis soluções, mas apontam para um
caminho pouco explorado no processo de avaliação que é o da participação.
A vocalização dos diversos atores envolvidos poderia ajudar a compreender
as percepções que esses têm a respeito do Programa, como e de que forma
efetivamente suas ações conseguiram modificar e/ou melhorar a qualidade
de vida das pessoas alvo dessa política pública.
Considerações Finais
Discutir o tema avaliação é ressaltar a importância de seu papel democrático,
no âmbito do exercício da cidadania e do acompanhamento das ações do
governo. Mas, também é um poderoso instrumento de aprendizagem e
construção de conhecimentos acerca da realidade local, tendo em vista a
multidimensionalidade que envolve e a condicionam. Torna-se, assim, de
grande auxílio para direcionar e balizar ações direcionadas para mudanças
sociais, minimizando a atuação por intuição e possibilitando maior êxito.
Referências
ABRAMOVAY, M.; CASTRO, M.. Jovens em situação de pobreza,
vulnerabilidade social e violências. Caderno de Pesquisa, n.116, p. 143-
176, 2002.
portal/images/stories/PDFs/comunicado/121011_comunicadoipea156.pdf
acesso em 25/10/2012.
Juventudes, manifestações
sociais e representações
sobre a violência
Youth, social protests and representations on
violence
I ntrodução
As manifestações que tomaram as ruas do País em junho de 2013 representam
um marco no histórico das mobilizações sociais nacionais. Um sentimento
geral de perplexidade se disseminava diante de protestos que, sob uma
multiplicidade de pautas e uma diversidade de grupos, levaram cerca de
um milhão de pessoas às ruas no período.
A pertinência da análise que contempla relações entre o geral e o particular 1 Não será possível, no
escopo do presente ar-
na análise sociológica justifica-se a partir da perspectiva da mundialização tigo, elaborar análises
das conflitualidades. Tal perspectiva possibilita aproximar as experiências mais detidas acerca dos
e práticas sociais em diferentes sociedades ou mesmo buscar explorar as conflitos deflagrados
especificidades que marcam tais dinâmicas conflitivas em cada contexto na chamada Primavera
Árabe (série de protes-
local1. O processo de mundialização ora em curso está marcado pela tos no Norte da África
globalização de processos econômicos, pela mundialização de novas questões e no Oriente Médio,
sociais (TAVARES DOS SANTOS, 2009, p. 15). iniciados em 18 de de-
zembro de 2010, com
revoluções na Tunísia
A globalização pode ser entendida, nos termos de Giddens (1991, p. 69), como e no Egito, guerra-civil
um processo de distanciamento tempo-espaço, onde o local e o distante se na Líbia, e na Síria,
protestos no Bahrein,
tornaram alongados. A globalização seria este processo de alongamento entre na Argélia, na Jordânia,
tempo e espaço, marcado pelo incremento das identidades locais e profusão em Djibuti, em Omã
das relações que se estabelecem em escala mundial, pela intensificação das e no Iêmen e outros
modalidades de conexão nas relações sociais em escala mundial. Para Ianni protestos menores no
Kwait, no Líbano, na
(1993, p. 25) o processo de formação da sociedade global ocorre de modo Mauritânia, no Marro-
contraditório, heterogêneo e desigual. cos, na Arábia Saudita,
no Sudão e no Saara
Ocidental), o Occupy,
No limiar do século XXI, o panorama mundial é marcado nos Estados Unidos,
por questões sociais mundiais que se manifestam, de os Indignados, na Es-
forma articulada, e com distintas especificidades, nas panha e os movimetnos
diferentes sociedades: o internacionalismo está fundado da Praça Taksim, na
Turquia, onde formas
em problemas sociais globais, tais como a violência, de violência do Estado
a exclusão, as discriminações por gênero, os vários e contra o Estado são
racismos, a pobreza, os problemas do meio ambiente e a visíveis. Cabe apenas,
para os fins da presente
questão da fome. (TAVARES DOS SANTOS, 2009, p. 143). análise, pontuar que to-
dos esses movimentos,
Há, portanto, dinâmicas que expressam um encadeamento global, mas que assim como os surgi-
dos em junho de 2013
também evidenciam especificidades locais. no Brasil, foram mani-
festações surgidas de
A temática das juventudes também se insere neste contexto de mundialização forma espontânea, sem
clara liderança política,
das conflitualidades e precisa ser entendida a partir das diversas faces que associadas à crise de
a compõem. Em primeiro lugar, ao falar em juventude corremos o risco de legitimidade das insti-
remeter à ideia de uma condição única, como se todos os jovens partilhassem tuições convencionais
de um mesmo status. Deste modo, mais pertinente é considerar que estamos de representação polí-
tica e à capacidade de
diante de múltiplas juventudes, que expressam realidades e dinâmicas comunicação instantâ-
múltiplas e diferenciadas. Para Tavares dos Santos (2009, p. 62), no processo nea em rede através da
de mundialização das conflitualidades, muitas são as faces da juventude rede mundial de com-
putadores. A violên-
na sociedade brasileira, sendo desiguais e diversas as situações de risco – cia, pensada de modo
naturais, tradicionais ou fabricadas – que vivencia cotidianamente. geral, manifesta-se nos
contextos particulares
a cada um destes con-
O autor apresenta tipos ideais de juventude no Brasil atual, a partir das noções flitos, assim como tam-
de classe e etnia, explicitando a multiplicidade que compõe as juventudes bém ocorre no contexto
brasileiras: a juventude dourada, pertencente às classes altas e médias altas, brasileiro.
Gráfico 02
Temas em destaque – Redes sociais em 11 de junho de 2013
Gráfico 03
A população sai às ruas no dia 13 de junho e a data foi marcada por forte
repressão policial por parte da tropa de choque de São Paulo. A repressão
em São Paulo foi destaque neste quarto dia das manifestações, deixando
várias pessoas feridas. Dois jornalistas da Folha de São Paulo que estavam
fazendo a cobertura das manifestações foram atingidos por balas de borracha.
Tal episódio é um dos elementos importantes para compreender aquilo que
entendemos como um deslocamento de sentido nas representações da mídia
acerca das manifestações. O fato de jornalistas terem sido vítimas de violência
policial contribui para um reposicionamento da mídia diante dos fatos, seja
com relação às manifestações seja com relação ao tema da violência policial.
A ênfase nesta matéria, seja pela narrativa textual, seja pelas imagens veiculadas,
não está mais no patrimônio depredado, mas na violência policial contra
manifestantes, não manifestantes, jornalistas ou ainda no pânico de pessoas
que, pela narrativa, podem ser pensadas como não tendo feito parte da cena
principal do confronto. Esta mudança de ênfase evidencia um deslocamento
de sentido na veiculação do tema da violência. A violência agora parece partir
da polícia e só então respondida com pedras pelos manifestantes, ao contrário
do que vinha sendo veiculado em outros episódios já narrados anteriormente.
O Movimento Passe Livre São Paulo convoca o quinto ato para a segunda-feira,
dia 17 de junho. De acordo com a plataforma Cartografia de Espaços Híbridos,
o total de pessoas confirmadas pelo Facebook para participar do ato do dia 17 7 Causa Brasil é uma
saltou inimagináveis 1.018%, de 28.228 confirmados na quinta-feira dia 13, plataforma que ajuda a
entender quais são as
para 287.457 pessoas. A manifestação contou efetivamente com um número reivindicações dos pro-
menor de adeptos em São Paulo, mas ainda assim com um surpreendente testos em todo o país.
número de participações: foram cerca de 65 mil pessoas nas ruas em São Paulo Ela é abastecida au-
tomaticamente a cada
e 100 mil no Rio de Janeiro. Também houve demonstrações em outras dez hora, por milhares de
capitais pelo Brasil. No site CausaBrasil, outra plataforma de monitoramento menções espontâneas
de redes sociais utilizada neste trabalho7, é possível observar que ainda há uma no Facebook, Twitter,
Instagram, youtube e
centralidade no tema do preço das passagens nos assuntos comentados8, muito google+. A ferramenta
embora já seja possível verificar outras pautas sendo amplamente referenciadas funciona como um ter-
nas redes sociais, tais como democracia, violência policial, gastos públicos, mômetro que categori-
za, agrupa e interpreta
governo Dilma Rousseff, saúde, qualidade do transporte público e combate a voz dos manifestos.
à corrupção. A pauta das manifestações públicas em meio às redes sociais A metodologia utiliza-
torna-se ampla e diversificada, envolvendo temas relativos a direitos básicos, da chama-se Live Re-
search. As causas são
à economia, a liberdades individuais e outras questões políticas.
identificadas a partir
Imagem 01 do conteúdo de posta-
gens que tenham, ao
Temas mencionados redes sociais – entre 17/06/2013 e 18/06/2013 menos, uma das prin-
cipais hashtags ligadas
às manifestações. Esta
coleta é realizada por
uma ferramenta de mo-
nitoramento chamada
seekr. A análise é feita
com a combinação en-
tre a lista de hashtags
pré-cadastradas e uma
lista de diferentes ter-
mos que indicam o que
a postagem está rei-
vindicando. O texto foi
retirado do site www.
causabrasil.com.br
Os temas que ganham destaque nas redes sociais do dia 18 para o dia 19
de junho apontam justamente para essa ampliação das pautas, indo além
das reivindicações pela redução dos preços das passagens. Essas pautas
diversificadas tornam-se visíveis nas ruas em manifestações nos dias
subsequentes. Conforme a ilustração a seguir, percebemos que o tema do
preço das passagens perde a centralidade nas redes sociais, emergindo em
seu lugar as referências ao Governo Dilma Rousseff9, democracia, combate
à corrupção, segurança, qualidade do transporte público, saúde, postura da
polícia10, educação e gastos públicos.
Imagem 02
Temas mencionados redes sociais – entre 18/06/2013 e 19/06/2013
10 Principais termos
monitorados: sem vio- Fonte: Causa Brasil, 2013. www.causabrasil.com.br
lência; fim da polícia;
fim da polícia miltar; Com relação à análise das mídias, o jornal Folha de São Paulo do dia 17
polícia para quem pre-
de junho11 traz como chamada principal na capa: “Governo de São Paulo
cisa.
pede e terá reunião com manifestantes hoje. (...) Tropa de Choque não será
11 http://acer- acionada caso protesto às 17h seja pacífico, diz Secretário de Segurança
vo.folha.com.br/ Fernando Grella”. A reportagem trata do convite do Secretário de Segurança
fsp/2013/06/17/2/
de São Paulo ao Movimento Passe Livre para definir o trajeto da manifestação.
12 O Estado de São
Paulo – 17 de junho, No Estado de São Paulo, a matéria publicada na manhã do dia 17 de junho12,
9h56 http://www.esta-
dao.com.br/noticias/
e atualizada às 15h50, tem em seu texto a afirmação de que a manifestação
cidades,manifestantes- programada para as 17h00 conta com mais de 260 mil pessoas com presença
-dizem-que-entulho- confirmada na rede social Facebook. Ativistas pedem, pela rede social,
-no-largo-da-batata-e- que não haja violência. Alguns dos participantes das discussões virtuais
-armadilha-secretario-
-manda-retirar-mate- organizam enquetes sobre quais serão as próximas manifestações a serem
rial,1043411,0.htm feitas. “’Reforma política’ e ‘educação’ estão entre os motivos de protesto
Juventudes, manifestações sociais e representações sobre a violência 87
No dia 19 de junho, mais um dia de protestos em São Paulo, a capa da Folha 16 O Estado de São
Paulo - 18 de junho,
de são Paulo traz a manchete “Ato em São Paulo tem ataque à Prefeitura, 2h01 http://www.esta-
saque e vandalismo; PM tarda a agir” (...) Manifestação começa pacífica dao.com.br/noticias/
com mais de 50 mil pessoas na Praça da Sé, mas grupos levam caos à impresso,alckmin--
-agora-elogia-lide-
região central”. As imagens mostram tanto cenas de violência quanto dos res-do-movimen-
manifestantes nas ruas. to-,1043630,0.htm
No jornal o Estado de São Paulo, no dia 19 de junho17, a matéria informa 17 O Estado de São
Paulo - 19 de junho,
que ao menos 47 pessoas foram presas por saque e depredações no centro 0h16 http://www.esta-
da capital paulista. “Segundo a polícia, o grupo é formado por moradores dao.com.br/noticias/
de rua e usuários de droga. Entre os produtos aprendidos com os detidos geral,em-sao-pau-
lo-47-sao-presos-por-
estão televisores de plasma, micro-ondas, jogos de copos e talheres, roupas -saques-e-depredaco-
e até um fogão de quatro bocas, que era carregado em plena Praça da Sé.” es,1044074,0.htm
Com relação ao segundo período selecionado para esta análise, que compreende
as datas entre 18 e 20 de junho, é possível observar deslocamento de sentido
atribuído às manifestações tanto por parte de grandes grupos de mídia, quanto
por parte das autoridades políticas. No tocante às representações midiáticas
sobre as demonstrações nas ruas, observa-se a referência a dois grupos: os
manifestantes, que estariam nas ruas para reivindicar por diversas pautas,
e os vândalos, que constituem um grupo utiliza da violência, produz atos de
depredação do patrimônio público e privado e comete roubos e assaltos. Até o dia
17, tal distinção não era recorrente. Manifestantes eram genericamente tratados
como vândalos, e suas demonstrações deveriam ser indistintamente reprimidas.
Considerações finais
A análise das representações nos dois períodos considerados evidenciam
processos de visibilização e silenciamentos de determinados temas
durante as manifestações. Enquanto no primeiro período as manifestações
eram traduzidas pelos jornais analisados sob o prisma da violência, do
vandalismo e dos prejuízos trazidos ao patrimônio público e privado, o
segundo momento mostra a perda da centralidade da temática da violência
e as manifestações passam a ser representadas a partir de um viés político
enquanto manifestação democrática, tendo sua legitimidade reconhecida.
Neste momento, observamos uma distinção entre manifestantes e vândalos.
ABSTRACT: This article aims at analyzing the representations around the Keywords: Public
notion of violence as it is employed by three different actors involved in the demonstrations
- June 2013 -
recurrent manifestations against the raise in public transportation fees seen
representations on
in June, 2013, in Brazil. We depart from the perspective of the sociology violence - media
of conflictualities, which emphasizes the complexity of the current social
conflicts, to explore some of its dynamics and specificities. We focus on one
specific aspect for this analysis: the changing characterization of the notion
of violence as they occur in the representations by the youth (through the
analysis of both their discourse and their engagement on virtual communities
and demonstrations on the streets), by the conventional media (through the
analysis of daily news published by two major Brazilian newspapers), and by
political authorities (though the analysis of their public statements as noticed
by those newspapers). Throughout this research, there has become evident that
some actors involved made substantially different use of the same concept of
violence within just a short lapse of time. In trying to understand this abrupt
Referências
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora
da Universidade Estadual Paulista, 1991.
Sites consultados:
www.espaçovital.com.br
www.interagentes.net
www.causabrasil.com.br
http://acervo.folha.com.br/
http://www.estadao.com.br/
(*) Isaurora Cláudia Martins de Freitas é Doutora em Sociologia pela Universidade 91
Federal do Ceará (UFC), professora adjunta da Universidade Estadual Vale do Acaraú
(UVA) e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Culturas Juvenis (GEPECJU). @ -
[email protected] José Ricardo Marques Braga é Graduado em Ciências Sociais
pela UVA e ex-bolsista de iniciação científica pelo CNPq na pesquisa “Mobilidade
Estudantil e Transporte Universitário na Região Norte do Ceará”, coordenada pela
Profa. Isaurora Cláudia Martins de Freitas, entre agosto de 2010 e julho de 2012.
@ - [email protected]
Os universitários viajantes:
suas práticas e sociabilidades(**)
RESUMO: O artigo identifica e analisa, por meio de uma abordagem qualitativa, Palavras-chave:
as práticas e as sociabilidades que tomam lugar no interior dos ônibus jovens;
universitários
universitários da região norte do Ceará. Jovens de mais de cinquenta municípios
viajantes; práticas;
circunvizinhos a Sobral que almejam o acesso ao ensino superior nesta cidade sociabilidades;
se deslocam diariamente de seus municípios de origem em ônibus fretados ou mobilidade
cedidos pelas prefeituras municipais. As viagens diárias, que chegam a durar
até cinco horas (ida e volta), fazem com que o ônibus se torne um meio social
onde diversas práticas e formas de sociabilidade florescem. No trajeto, os
estudantes inventam formas de passar o tempo e criam modos de organização
para melhor conduzir a convivência que dura o tempo do curso superior que
frequentam. Partindo de um diálogo teórico com Augé, Certeau, Simmel, entre
outros autores, percebemos que os “usos” que os jovens fazem dos ônibus fazem
com estes deixem de ser apenas um meio de transporte e se transformem em
“espaço” repleto de práticas e astúcias através das quais os jovens tecem no
cotidiano um modo muito peculiar de ser universitário.
3 Financia o ensino su- Sobral foi um dos municípios contemplados com a política de expansão. De
perior para estudantes modo que a Cidade, que até o ano de 2001 contava apenas com a Universidade
que não tenham con-
dições de arcar com os
Estadual Vale do Acaraú (UVA), recebeu um campus da Universidade
custos de formação e Federal do Ceará, um campus do Instituto Federal de Educação, Ciência
estejam regularmente e Tecnologia do Ceará (IFC) e várias Instituições de Ensino Superior
matriculados em insti- (IES) privadas, entre faculdades e institutos. Além disso, a UVA teve
tuições cadastradas no
programa e com avalia- suas matrículas ampliadas. Atualmente são cerca de 15.000 estudantes
ção positiva nos proces- matriculados nos cursos de graduação das IES localizadas na Cidade,
sos conduzidos pelo Mi- sem contar com as matrículas em cursos de graduação à distância e em
nistério da Educação.
cursos de pós-graduação stricto sensu4 e lato sensu. O maior contingente de
4 Das IES sediadas em graduandos está concentrado na UVA, que responde por 64,4% das vagas
Sobral apenas a UVA e ofertadas em cursos presenciais, com 9.271 alunos5.
a UFC possuem cursos
de mestrado. A UFC
possui dois mestrados e Para Milton Santos (2012), a medida da cidadania dos indivíduos é dada
a UVA dois. pela localização no território. Assim, “a possibilidade de ser mais, ou
menos, cidadão depende, em larga proporção, do ponto do território onde
5 Dados do semestre
2013.1. Fonte: pesquisa se está” (SANTOS, 2012, p. 107). Partindo desta premissa, podemos dizer
direta. que o fato de morar numa pequena cidade do interior, onde as condições de
Os universitários viajantes: suas práticas e sociabilidades 93
De acordo com Carlos (2007), o sentido dos “lugares” é criado pelas relações
que os indivíduos estabelecem com eles e com as pessoas que neles habitam.
Portanto, “o lugar só pode ser compreendido em suas referências, que não são
específicas de uma função ou de uma forma, mas produzidas por um conjunto
de sentidos, impressos pelo uso” (CARLOS, 2007, p.12). É isso que esses
jovens comunicam a nossa ver e é isso que faz a riqueza e a peculiaridade
desse modo específico de ser universitário.
Essa divisão nos remete à distinção verificada por Elias e Scotson (2000)
em “Os Estabelecidos e os Outsiders” onde, ao analisarem uma pequena
Entendemos que, apesar de certa simetria existente nas relações entre esses
estudantes, podemos nitidamente demarcar alguns grupos menores que se
distinguem pela posse de mesmo “capital simbólico”. De acordo com Heitor
Frúgoli (2007), na interação entre essas redes de indivíduos são definidas
“simbolicamente certas diferenças socioculturais” (FRÚGOLI, 2007, p. 25).
Quando essa qualidade “intraclassista” da sociabilidade é rompida, isto é,
grupos com diferentes capitais culturais passam a interagir, deflagram-se
vários conflitos. No caso dos transportes universitários, é comum grupos de
13 Os transportes uni- estudantes, por exemplo, entrarem em conflito por conta do barulho feito no
versitários a que esse transporte ou qualquer outro assunto que diga respeito ao conjunto como um
trabalho se refere não
transportam apenas es-
todo. Os mais animados geralmente sentam na parte de trás, conversando
tudantes da UVA, mas em tom alto, ouvindo música em seus celulares, conversando ou jogando. As
também de outras IES pessoas da frente, que gostam de ir estudando, dormindo, descansando, se
sediadas em Sobral, incomodam com o barulho emitido pela “turma do fundão”. Daí, também,
como UFC, IFCE e al-
gumas faculdades pri-
surgem conflitos, frutos das diferenças culturais e pessoais e de afinidades
vadas. entre os indivíduos que partilham esse espaço.
Os universitários viajantes: suas práticas e sociabilidades 105
Considerações finais
De acordo com Berger (1986, p. 27), o habitat natural do sociólogo são todos
os lugares de reunião humana. O bom sociólogo é aquele que é tomado de
curiosidade “diante de uma porta fechada atrás da qual se ouçam vozes
humanas” por imaginar que ali existe uma “faceta da vida humana ainda
não percebida e entendida” (p.28). Nosso interesse em adentrar as portas
dos transportes que conduzem os universitários dos diversos municípios da
Os universitários viajantes: suas práticas e sociabilidades 107
região norte do Ceará às IES de Sobral todos os dias, surgiu desta crença
e da percepção de que os ônibus universitários constituíam verdadeiras
comunidades sobre rodas através das quais poderíamos acessar um modo
muito peculiar de viver o tempo dos estudos universitários.
ABSTRACT: The article identifies and analyzes, by means of a qualitative Keywords: youngs;
approach, the practices and the sociability that take place within the university travelling university
students; practices;
buses of northern Ceará. Young people from more than 50 municipalities
sociabilities;
surrounding Sobral, who crave the access to higher education in this city, mobility
travel daily from their municipalities of origin in chartered buses or in buses
made available by the municipal governments. The daily journeys, which may
last up to five hours (round trip), make the bus a social environment, where
various practices and forms of sociability flourish. During the trip, the students
invent pastimes and create ways of organization to better their coexistence,
which lasts for the duration of the course they are attending. Starting from a
theoretical dialogue with Auge, Certeau and Simmel, among other authors,
we have realized that the “uses” these young people make of these buses
turn them into more than mere means of transportation, but a “space” full of
practices and tricks through which these young people weave, in their everyday
life, a very peculiar way of being a university student.
Referências
ALCÂNTARA JR. José. Sociabilidades em Ônibus Urbanos. São Luís,
ADUFMA, 2011.
CARLOS, Ana Fani Alessandri. O Lugar no/do Mundo. São Paulo, FFLCH,
2007. Disponível (on line) em: http://www.fflch.usp.br/dg/gesp
WEBER, Max. Metodologia das Ciências Sociais: Parte 2. 2ed., São Paulo/
Campinas, Cortez/UNICAMP, 1995.
(*) Mariana Chies Santiago Santos é Mestre em Ciências Criminais/PUCRS e 111
Doutoranda em Sociologia/UFRGS. Advogada voluntária no Serviço de Assessoria
Jurídica da UFRGS. @ - [email protected] Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
é Doutor em Sociologia pela UFRGS. Professor adjunto da PUCRS, Coordenador
do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS. @ - rodrigo.
[email protected]
Políticas de Segurança
Pública e Juventude:
o caso do Rio Grande do Sul
É nesse Programa que surge, pela primeira vez, o conceito de segurança cidadã
como parte integrante da segurança pública brasileira, já que o Programa
reconhece que o fenômeno da violência é multifatorial e que envolve diversas
dimensões, não podendo ser visto apenas como parte do sistema penal.
Por fim, o projeto piloto da Guarda Cidadã está buscando, em um primeiro 4 Dados fornecidos pelo
Observatório de Segu-
momento, redefinir o perfil de atuação da Guarda Municipal de Canoas, rança Pública de Cano-
para que volte seu foco no sentido da preservação dos direitos dos cidadãos, as/RS em 2011.
Amanda tem 17 anos e mora na Bom Jesus desde que nasceu. Tem um
namorado. A família dela já morava na comunidade antes dela nascer. Nunca
foi assaltada e já viu policial bater em muitos amigos. Não quer essa paz que
tentam implementar na vila. Morou dois anos fora da Bom Jesus, em Alvorada,
mas quis voltar. Quer que fechem o valão perto da sede do PROTEJO.
5 Ver, a esse respei-
to: http://www.canoas.
rs.gov.br/site/noticia/ Jussara mora desde que nasceu na Bom Jesus, há 15 anos, e está na 6a
visualizar/id/3875 série do Ensino Fundamental. A família sempre morou na Bom Jesus. Um
Políticas de Segurança Pública e Juventude: o caso do Rio Grande do Sul 119
Vânia tem 15 anos e mora, também, desde que nasceu na Bom Jesus. Sua
família, igualmente, sempre morou lá. Não foi vítima de nenhum crime. Gosta
de ver novela. Estuda à tarde e participa de projetos sociais pela manhã.
Adora Carrossel e detesta ficar em casa sem fazer nada.
Edson tem 15 anos, 9 irmãos e mora com seus pais. Não se sente um cidadão.
Já teve a carteira de identidade rasgada algumas vezes por policiais militares
nas redondezas da Bom Jesus. Já foi vítima de assalto e de ameaça na vila.
Dança Funk. Criou um grupo de Funk para os adolescentes que são seus amigos
no bairro e criou um bonde de Funk para as adolescentes que participam do
PROTEJO. Acha que a polícia não acalma ninguém. Não serve para nada.
Franklin tem 16 anos, viveu e cresceu na Bom Jesus, mas hoje saiu da
comunidade e está morando em Novo Hamburgo. Já foi vítima de assalto na
vila. Mudou-se de cidade porque muita gente da família já morreu na Bom
Jesus. Não se sente cidadão. Relata que sente preconceito, “já que tu é da
vila, tu não presta”, diz ele.
Armando tem 24 anos. Mora com o irmão mais velho. São em 5 irmãos.
Os pais, no momento, estão morando em Imbé/RS. Eles são casados há 30
anos. Perdeu muitos amigos em função do tráfico de drogas. Gosta muito
de Funk e dá aula de dança na Casa da Juventude no Guajuviras. Já foi
assaltado em frente a sua casa. Já viu um tio se suicidar. Já perdeu um tio
que foi executado na Penitenciária Modulada de Osório (RS). Diz que a sua
avó já enterrou três filhos. Fez EJA. Não tem certeza, ainda, se vai ou não
frequentar alguma faculdade. Adora Sociologia e Filosofia, mas mais como
hobby. Diz que a história da comunidade é uma história de guerra, de luta.
Policial não é psicólogo, por isso, para ele, não tem que ficar dando conselho.
Policial não tem direito de chamar ninguém de “vagabundo”, “meliante” ou
“maloqueiro”, diz ele. Afirma que a mente das pessoas deve ser igual a um
paraquedas, funcionar só se estiver aberta.
Com isso, essa regulação da vida cotidiana foi percebida através das narrativas
de alguns participantes, principalmente aos beneficiários do PROTEJO na Bom
Jesus, em Porto Alegre, que responderam às indagações sobre a regulação da
vida cotidiana com uma tristeza pela falta de organização do Projeto na região
Políticas de Segurança Pública e Juventude: o caso do Rio Grande do Sul 121
Amanda menciona que quando começou a fazer o curso imaginou que iria
“aprender alguma coisa”, mas no final das contas viu que foi bem diferente:
O que fica claro na narrativa dos interlocutores e que nos permite uma
comparação entre os dois projetos nas duas cidades, é que a seriedade
com que os programas foram implementados reflete a forma com que os
participantes perceberam a implementação/intervenção nos seus cotidianos
e nos seus territórios.
Está uma merda! Pra mim é uma merda [...] é, pra mim
Amanda, eu comecei a fazer o curso, achando né, que
eu ia poder ver coisas novas, só que daí eu vim para o
curso e [...]”.
Considerações Finais
O PRONASCI chegou como um programa inovador para o controle do crime
e da violência, já que pretendeu contribuir para a municipalização da
segurança púbica de maneira efetiva. Para isso, foram implementados projetos
que visaram a incorporar as opiniões dos moradores das comunidades mais
afetadas pela difusão da violência no dia a dia. Com isso, a ultrapassada
repressão por meio de políticas de lei e ordem vem sendo substituída por
projetos que implementam a prevenção e o respeito aos direitos humanos.
O PRONASCI articula, mesmo que timidamente, conforme os críticos do
programa, políticas sociais e políticas de segurança pública.
ABSTRACT: This paper is divided in two main axes and is a result of a master’s Keywords: Public
thesis. The first part presents the brazilian program of security public policies Safety; Public Policy;
Youth; PRONASCI;
- Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania (PRONASCI),
RS na PAZ;
contextualizing policies that were implemented in two cities in the state os Rio
Grande do Sul/Brazil. Therefore, we present the design and perceptions of
young people in two areas called “territories of peace”. In the second part, we
aim to introduce a program that is being proposed in the state of Rio Grande
do Sul - RS na Paz - to replace the end of financial ressources from the federal
government in relation to PRONASCI, questioning the discontinuity of actions
in the area of public safety in our country.
Referências
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. A Municipalização da Segurança
Pública: Bases Teóricas e Experiências de Implementação no RS. BPA/
PUCRS. Projeto aprovado pelo CNPq. Abril de 2006.
Juana M. Ruiloba*
RESUMEN: En el artículo ofrezco una visión general del sistema educativo Palabras clave:
español y la situación y evolución del papel de las mujeres. Se revisa la educación, género,
política pública,
literatura, se exploran las medidas legales y se utilizan indicadores y datos
evaluación, calidad
para verificar algunos factores aclaratorios de su posición desigual. En este de la educación
texto, se estudia el caso español, se traen los temas de discusión para el
análisis y se propone un marco de evaluación que pueda ser usado para
describir y examinar las políticas públicas educativas desde una perspectiva
de género. En resumen, trato de defender la idea de que el género es un
componente importante en el sistema educativo, y juega un papel clave en
la calidad de la política educativa.
I ntroducción
El derecho a la educación de todos ha sido uno de los grandes logros del
siglo XX. Los sistemas educativos de los países occidentales han promovido
la igual incorporación de hombres y mujeres, de minorías y de otros sectores
de la población tradicionalmente excluidos. Pese a tal reconocimiento, el
análisis de los sistemas educativos, teniendo en cuenta la perspectiva de
género, sigue poniendo en tela de juicio la verdadera consolidación de la
garantía legal. De este modo, se suele convenir que, si bien el acceso a la
educación está garantizado, quedan otras barreras que deben ser derribadas
para alcanzar la equidad definitiva en este plano. En este trabajo se presenta
un marco de análisis para la evaluación de los sistemas educativos en relación
a la variable género, se identifican lógicas, discusiones, actores e indicadores
En la Figura 1, queda resumido el modelo que guía este trabajo, que ayuda
a la argumentación y a la descripción de la política pública educativa de
género y a contestar a la interrogante: ¿la igualdad de género efectiva está
asegurada en el sistema educativo español actual?¿hasta qué punto podemos 4 Otras definiciones
de política pública,
evaluar como exitosa la política pública? son las de THOENING
(1985, p. 6) “una po-
Figura 1. Modelo para el análisis del binomio mujer y sistema educativo lítica pública es un
programa de acción
propio de una o varias
autoridades públicas o
gubernmentales en un
ámbito sectorial de la
sociedad o en un espa-
cio territorial dado” o la
de Subirats et al. (2010,
p. 38): “una política
pública se define como
una serie de decisiones
o de acciones, intencio-
nalmente coherentes,
tomadas por diferentes
actores, públicos y a ve-
ces no públicos (…) a
fin de resolver de mane-
ra puntual un problema
políticamente definido
Fuente: Elaboración propia como colectivo”.
Podemos decir que ambas instituciones (ONU y UE) han actuado como
“iniciadoras básicas” de los mecanismos conducentes a mejorar la posición
de las mujeres. El papel desempeñado por estos actores internacionales y las
medidas generales adoptadas en beneficio de la igualdad, son esenciales en 15 Para una revisión en
la construcción de la política pública educativa de género, hasta el punto de detalle del marco de las
influir determinantemente en su gestación, concreción y en la lógica de las políticas públicas de
difusión puede acudirse
medidas a aplicar. Podemos decir, que las reformas en la política educativa al artículo de Meseguer
en relación al género son, eminentemente reformas políticas convergentes16 y Gilardi (2008).
16 Siguiendo la clasifi-
En lo referente al nivel nacional, la situación política de España no propició cación de reformas edu-
la inclusión en la agenda política de los temas de género hasta llegada la cativas propuesta por
transición. Aunque los lobbies y asociaciones feministas, al igual que ciertos Pedró y Puig (1988), las
reformas convergentes
sectores de los partidos de izquierdas se han movilizado a favor de los problemas
son las reformas edu-
de los mujeres, el actor institucional más activo ha sido el Instituto de la Mujer cativas fruto esencial-
(creado en la Ley 16/1983, de 24 de octubre), que ha sido el encargado de mente de la influencia
actuar de forma más directa y decidida en temas y problemáticas concretas que del plano internacional,
-junto con la introduc-
afectan a las mujeres (recogiendo, en muchos casos, cuestiones del debate ción de los valores de
propuestos por otros actores y otros niveles de gobierno)17. género en educación,
otro ejemplo de reforma
educativa de este tipo
Las políticas públicas de educación con perspectiva de es el proceso de reforma
género: el plano normativo universitaria emprendi-
do desde la Declaración
de Bolonia en el entor-
Las políticas públicas son entendidas como acciones de gobierno. Las no europeo-.
políticas públicas son, por tanto, “el conjunto de objetivos, decisiones y
acciones que lleva a cabo un gobierno para solucionar los problemas que, en 17 El IM es el encar-
gado de elaborar me-
un momento determinado, los ciudadanos y/o el propio gobierno consideran didas concretas, prin-
como prioritarios” (TAMAYO, 1997, p. 281). cipalmente, a través
de los conocidos como
En lo que nos ocupa, ¿cuándo la igualdad de género ha sido considerado “planes de igualdad de
oportunidades (PIOM)”
un problema político? ¿cuándo se introduce la perspectiva de género en la (SENSAT y VARELLA,
política educativa en España? 1998).
Referências Bibliográficas
AGUILAR, Luis F. La hechura de las políticas. México: Porrúa, 1996.
DYE, Thomas. Understanding public policy. Nueva Jersey: Prentice Hall, 1992.
À sombra do BNH:
a nova política habitacional em
Fortaleza-CE (2005-2011)**
Linda M. P. Gondim*
E
ste artigo discute a atuação da Fundação para o Desenvolvimento
(**) O presente traba-
Habitacional de Fortaleza (Habitafor), no período de 2006 a 2011, nos lho baseia-se em pes-
marcos da nova política definida pelo Ministério das Cidades para o quisa realizada com
setor da habitação. Tal política permitiu o aporte de vultosos recursos para o o apoio do Conselho
Nacional de Ciência
enfrentamento do déficit habitacional das cidades brasileiras, onde mais de e Tecnologia (CNPq),
12 milhões de famílias moram em assentamentos precários: favelas, cortiços, no período de março
loteamentos irregulares, conjuntos habitacionais deteriorados e ocupações de 2009 a fevereiro de
2012, durante o qual a
de prédios abandonados – para não falar da chamada “população de rua”. autora contou com Bol-
O problema não se limita às grandes cidades, estando presente em 80% sa de Produtividade em
daquelas com população entre 100 e 500 mil habitantes, e até em municípios Pesquisa.
órgão municipal iniciava-se com uma visita de seus técnicos à favela, a fim
de delimitar a área a ser contemplada no projeto. Em seguida, era feito o
“congelamento” dessa área, que consistia em marcar todos os domicílios
com um número e a sigla PMF, de modo a restringir a população beneficiária
aos residentes dos imóveis “congelados”. A equipe da Habitafor realizava,
então, o cadastro dos moradores da área congelada, que incluía informações
demográficas e socioeconômicas, necessárias ao dimensionamento dos
projetos e o tipo de apartamentos (tamanho das famílias, número de crianças,
velhos e pessoas portadoras de deficiências etc.)8. Os engenheiros e arquitetos
da Habitafor elaboravam o projeto e acompanhavam as obras, realizadas por
empresa selecionada mediante licitação.
Há que considerar, ainda, que as favelas não são apenas o lócus da moradia:
nelas, desenvolvem-se atividades econômicas que, juntamente com redes
de ajuda mútua, são fundamentais para a sobrevivência das famílias. A esse
respeito, o modelo de remoção para conjuntos habitacionais padronizados
revela-se inadequado, do ponto de vista da dinâmica da vida social e econômica
da população de baixa renda. A falta de flexibilidade dos projetos da Habitafor
relativamente à oferta de pontos comerciais, já referida, é uma evidência disto.
Considerações finais
Nas duas últimas décadas, assistiu-se a uma mudança significativa no
tratamento da questão habitacional no Brasil. A atuação da Prefeitura
Municipal de Fortaleza na área de habitação, na década de 1990, foi marcada
À sombra do BNH: a nova política habitacional em Fortaleza-CE (2005-2011) 161
Referências
ABREU NETO, Francisco Filomeno de. A coexistência de direitos no contexto
da informalidade urbana: o caso de Fortaleza. Recife, 2008. Dissertação
(Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano da
Universidade Federal de Pernambuco. Recife, 2008.
O imaginário social da
fundação de Fortaleza:
fatos, marcos e personagens
I ntrodução
Fortaleza parece se constituir num bom exemplo quando se trata de investigar
os modos como promessas urbanas feitas em torno do seu nome foram se
configurando em formas recorrentes de expressão de anseios e de dúvidas
quanto a sua condição urbana sendo, contudo, ressignificados em momentos
distintos de sua história. Proponho-me neste artigo analisar aspectos
Com base nisso, tomo aqui o imaginário social como um viés analítico no
campo das Ciências Sociais capaz de problematizar a oposição comumente
feita entre “representação” e “realidade” nos debates sobre o urbano. Tomar
as imagens e representações como constituintes do “real” não significa
considerá-las mais ou menos “reais” em relação àquilo a que elas parecem se
referir. Significa, ao contrário, um outro modo de indagar sobre a “realidade”
das coisas e de tornar mais complexo o modo como ela é expressa.
De par com essa hipótese, escolhi aqui não seguir uma espécie de história
linear de Fortaleza, narrando fatos e acontecimentos pretensamente inaugurais
e objetivos da Cidade, mas optei em considerar as narrativas sobre a Cidade
como fins em si mesmos, ou seja, estruturas de classificação simbólica que
organizam os mais variados aspectos da história da cidade como problema,
tomando-os só a partir daí como via possível de acesso a este imaginário
particular objeto deste artigo.
Para buscar compreender como uma cidade imagina sua fundação parece ser
útil proceder à forma como ela produz socialmente problemas que devem ser
superados a fim de que uma nova realidade seja instaurada. Nesse sentido, os
discursos de técnicos governamentais, políticos, especialistas em urbanismo,
turismólogos, jornalistas, moradores dentre outros concorrem para produzir a
existência social de problemas que as promessas de cidade podem vir a superar.
Fortaleza parece ter produzido seus problemas sempre tendo em vistas as soluções
possíveis. A própria localização de implantação da Cidade foi sendo interpretada
pelo discurso especializado como um problema a ser resolvido pela Cidade futura.
Esse problema fundante, o problema da origem da Cidade, parece constituir-se
solo fértil de onde tem vindo brotar outras expectativas coletivas a respeito do
futuro da Cidade que a cada momento são criadas e ressignificadas.
De acordo com eles, o lugar comum até então atribuído ao imaginário (lugar da
alienação, do irracional, do enganador, do falso etc.) ignora o papel assumido
pelas imagens e representações no mundo empírico. O que esses teóricos
realizam é um esforço em dedicar um lugar na realidade às representações
do real. Com isso, partem do pressuposto de que além de homo rationalis
somos também homo imaginans (LEGROS, 2007).
Durand (2002, p.14-15), por exemplo, irá afirmar que o imaginário social
compreende “o conjunto das imagens e das relações de imagens que constitui
o capital pensado do homo sapiens.” Partindo da hipótese de que existem
“arquétipos fundamentais da existência humana”, universais no tempo e no
espaço, o autor busca investigar a maneira como essas estruturas mentais
coletivas originais influenciam as tomadas de decisões na sua maior parte
não expressamente observadas pelos sujeitos históricos. Já para Castoriadis
(2000), o imaginário compreende a imaginação produtiva ou criadora,
sistemas de significações, significados e significantes criados por cada
sociedade no ato de fazer a história.
Portanto, decorre daí que as ações no mundo não resultam apenas de tomadas
de decisões racionais e de vontades conscientes sobre os imponderáveis
da vida. Em muitos projetos políticos ditos revolucionários, como observa
Castoriadis (mas também Bourdieu), as “condições” mentais podem contribuir
para produzir o inesperado, ou seja, de força motora das transformações pode
vir a tornar-se fator de manutenção da “realidade” daquilo que oprime.
Nesse sentido, sem negar o lado racional dessas atividades, essa jovem
ciência se interessa por captar as concepções de mundo expressas nos mitos,
na religião e na ciência, capazes de conferir sentido à “deriva social”. É com
O imaginário social da fundação de Fortaleza: fatos, marcos e personagens 173
Além dessas oposições principais acerca do bairro que teria dado origem a
Cidade, as correntes eram situadas também em relação à orientação religiosa
e à simpatia da imprensa local por um ou outro dos “fundadores”: em torno do
nome de Soares Moreno foram reunidos, nesse sentido, os católicos e o jornal
O Nordeste; do lado de Matias Beck estavam reunidos os “protestantes” e o
jornal Unitário. Os jornais nos primeiros anos da década de 1960 passaram
então a marcar terreno sobre o assunto.
Em 1961, uma descoberta iria ser acionada como mais uma prova material
a endoçar o argumento “morenista”. Com o achado de balas de canhão na
Barra do Ceará, no morro de Santiago, urgia que fosse composta uma equipe
técnica para averiguar a veracidade do material e em seguida comprovar a
verdade “morenista”. Nesse momento, por parte dos “beckistas”, Raimundo
Girão é nomeado Secretário de Urbanismo durante a gestão do prefeito
Cordeiro Neto (1959-1963) e passa a propor a mudança do nome de algumas
ruas de Fortaleza em homenagem aos personagens e datas em referência à
“fundação” da Cidade. Não obteve sucesso.
Por outro lado, o arquiteto Liberal de Castro atribui um outro lugar à Barra do
Ceará no contexto dos embates acerca do “marco zero” de fundação da Cidade.
Considerações finais
Os debates recentes sobre a origem de Fortaleza para além de se esgotarem
nas possíveis provas contrárias ou favoráveis acerca da verdade de sua
fundação, parecem compor um aspecto de um quadro coletivo e mental
duradouro de expressão daquilo que se espera que a Cidade possa vir a ser.
Os discursos parecem buscar, dessa forma, situar a Cidade no tempo e no
espaço, conferindo-lhe qualidades pretensamente atemporais que a cada
momento parecem colocadas à prova.
Referências
BOURDIEU, Pierre. O senso prático. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009.
______. A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer. 2 ed.
São Paulo: EdUSP, 2008.
Resenha
O livro pretende “[...] focalizar um pouco no que poderia ser feito a respeito da
cooperação destrutiva do tipo nós-contra-vocês ou da cooperação degradada
em conluio.” A saída seria um tipo de cooperação exigente e difícil que “[...]
tenta reunir pessoas de interesses diferentes ou conflitantes, que não se
sentem bem em relação umas às outras, que são desiguais ou simplesmente
na se entendem. O desafio consiste em reagir aos outros nos termos deles.
É o desafio de toda gestão de conflitos.” (p. 16).
Sennett lembra que o bebê humano vive um “estado de devir fluído”, pois nos
primeiros anos de desenvolvimento as mudanças de sensação e percepção
são muito rápidas e moldando nossa capacidade cooperar. É na interação e
liberdade de experimentação com mamilo da mãe, com brinquedos, com as
outras crianças que é adquirida a consciência da separação física, de que
os outros são seres separados. As primeiras experiências de cooperação são
um ensaio para a vida e guardam dele duas de suas características mais
importantes: a estrutura e a disciplina. No ensaio “a repetição proporciona
uma estrutura disciplinar; repassamos repetidas vezes as mesmas coisas,
procurando aperfeiçoá-las.” (p. 23). A repetição faz parte da brincadeiras
infantis, bem como o fato de ouvir a mesma história várias vezes, mas a partir
dos quatro anos eles não apenas repetem mecanicamente, começam a tentar
melhorar naquilo que estão realizando. A Introdução segue expondo que:
O primeiro capítulo discute uma questão que divide a esquerda desde o início
do século XX, o modo como a solidariedade deve ser construída: se forjada
de cima para baixo ou criada de baixo para cima. Fazer política de cima
para baixo é ter que constituir e preservar coalizões, o que significa ter que
enfrentar “problemas especiais na prática da cooperação”, tornando muitas
vezes tais formas de solidariedade socialmente frágeis, aqui a coesão entre as
pessoas não se faz necessária. Já a solidariedade criada de baixo para cima
visa a coesão entre aqueles que discordam e embora possa ser socialmente
forte sua força política é na maioria dos casos débil e fragmentada, aqui o que
importa é mostrar-se aberto às pessoas diferentes e se envolver com elas.
O último capítulo da primeira parte mostra como A Reforma trouxe não apenas
mudanças religiosas, mas mudanças significativas nas formas de cooperação
Outra lição muito útil tirada do diálogo que Sennett desenvolve com Montaigne
diz respeito à arte da conversação, que para o francês “[...] significava a
capacidade de ser um bom ouvinte, [...] uma questão de estar atento tanto ao
que as pessoas declaram quanto àquilo que presumem” (p. 331), avesso ao
“fetiche da afirmação” Montaigne ensinava que “A afirmação muito enfática
anula aquele que ouve [...] a afirmação do superior conhecimento e autoridade
de um orador desperta no ouvinte dúvida quanto a seu próprio julgamento;
do sentimento de intimidação deriva o mal da submissão passiva” (p. 331).
Embora o último parágrafo do livro nos alerte que “Hoje, o efeito cruzado
dos desejos de garantir a solidariedade em um ambiente de insegurança
econômica é a brutal simplificação da vida social: nós-contra-eles associado
a você-está-entregue-a-si-mesmo.” (p. 336). O livro termina de forma
otimista, confiante na capacidade dos homens de viverem juntos, que
embora reprimida e distorcida pelas brutais simplificações contemporâneas,
não foi por elas eliminada e nem poderão ser. E assim o livro é finalizado:
“Como animais sociais, somos capazes de cooperar mais profundamente
do que imagina a atual ordem social, pois trazemos em nós o simbólico e
enigmático gato de Montaigne.” (p. 336).
Espero que esta resenha tenha atingido seu objetivo, o de incentivar que o leitor
ou leitora vá à biblioteca ou livraria mais próxima, virtual ou não, e continue
esta conversa com Richard Sennett sobre a cooperação dialógica, lembrando
de buscar em si mesmo o gato enigmático e cooperativo que nos torna capazes
de agir em conjunto com aqueles que temos diferenças irreconciliáveis para
criar outras formas mais cooperativas de experimentarmos o fato
(*) Ivandro da Costa Sales é Doutor em Serviço Social pela Universidade Federal de 195
Pernambuco (2003). Professor adjunto (aposentado) da Universidade Federal de
Pernambuco - Centro Acadêmico do Agreste. Presta assessoria em Gestão Democrática,
Análise de Conjuntura e Metodologia de Educação Popular a organizações
governamentais e civis. @ - [email protected]
Opinião Livre
Julgo que Antônio Gramsci1, por tudo que passou e refletiu, e a quem tanto
prezo, está autorizado a nos ajudar a pensar este momento do Brasil. Ele
pede que estejamos atentos a aprofundar o que de bom senso sempre existe
no senso comum, ambíguo, confuso, obscuro e pouco coerente. Para Gramsci,
o bom senso, ou sabedoria, seria o senso comum mais apurado, um modo
de sentir, pensar, querer, se expressar e agir mais coerente e mais profundo.
Não se trataria de verdade ou certezas, mas de reflexão e aprofundamento.
1 Gramsci, autor italia- Que sabedoria existiria nas atuais manifestações do senso comum brasileiro?
no viveu intensamente
o fascismo italiano e
Suponho e creio que se estava exigindo a realização de direitos, interesses,
o período stalinista na desejos e sonhos os mais variados, alguns gritados, outros ainda adormecidos.
União Soviética. De
1926 a 1936 ele pas- Eu organizaria assim esses direitos, interesses, desejos e sonhos:
sou dez anos nas pri-
sões fascistas da Itália desenvolvimento de potencialidades físicas, biológicas, intelectuais, afetivas,
pensando em qual seria artísticas, religiosas, ambientais (desenvolvimento que se realizaria pelo
uma prática política trabalho, pela aprendizagem profissional e por uma educação escolar de boa
adequada ao atual está-
gio de desenvolvimento qualidade); reposição de energias desgastadas no trabalho, no desemprego, no
do capitalismo e das subemprego e, sobretudo, na falta de perspectiva de trabalho (reposição que
tentativas do constru- seria realizada por bons e acessíveis serviços de transportes públicos, saúde,
ção do socialismo.
educação, capacitação profissional, habitação, segurança, lazer); consideração
2 Como lamento o des- e aprofundamento da cultura ou dos modos de sentir, pensar, querer, se
conhecimento das obras expressar e agir das pessoas e grupos sociais; afeto, cuidados, amor; ter o
de Marx por parte dos que dizer sobre tudo o que diz respeito à própria vida e à vida da sociedade.
intelectuais que tentam
analisar a realidade so-
cial e política do Brasil Inspirado em Gramsci e Marx2, me limitarei a tentar interpretar esse desejo/
e as atuais manifesta- sonho de exercer poder sobre o próprio destino e os destinos da sociedade,
ções de rua. Lamento
sobretudo o desconhe-
algo insistentemente lembrado nas ruas deste País.
cimento de O Capital,
do Dezoito Brumário de Confesso que me dava tristeza e um sentimento confuso ao ver e ouvir os
Luis Bonaparte e sobre-
tudo da Guerra Civil na
xingamentos a alguns políticos e representantes de organizações da sociedade
França. civil presentes nas manifestações, eles que estavam ali justamente porque
Junho de 2013 no Brasil: a farsa perdeu a graça. E agora? 197
lutavam, a duras penas, em campo tão adversos aos interesses populares, pela
realização de direitos, desejos e anseios expressados pelos manifestantes.
O público e o privado
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