O Público e o Privado 21 Revisada

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O público e

o privado
Revista do Programa de Pós-Gra-
duação em Políticas Públicas da
Universidade Estadual do Ceará

Dossiê Juventudes e Políticas


Públicas
REITOR
José Jackson Coelho Sampaio
VICE-REITOR
Hidelbrando dos Santos Soares
PRÓ-REITOR DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
Jerffeson Teixeira de Souza

CENTRO DE HUMANIDADES CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS


Letícia Adriana Pires F. dos Santos Vladimir Spinelli Chagas

CONSELHO EDITORIAL
E D I T O R ES
Maria Glaucíria Mota Brasil Geovani Jacó de Freitas

C O N S U L T O R E S INTERNOS

Claudia Sousa Leitão Hermano Machado Ferreira Lima


Francisca Rejane de Bezerra Andrade Kadma Marques Rodrigues
Francisco Josênio C. Parente Liduina Farias Almeida da Costa
Francisco Horácio da Silva Frota Maria Celeste Magalhães Cordeiro
João Bosco Feitosa dos Santos Maria Glauciria Mota Brasil
José Filomeno de Moraes Maria Helena de Paula Frota
José Jackson Coelho Sampaio Maria do Socorro Ferreira Osterne
Jouberth Max Maranhão Piorsky Aires Monica Dias Martins
Geovani Jacó de Freitas Regianne Leila Rolim Medeiros
Gisafran Nazareno Mota Juca Sofia Lerche Vieira

CONSULTORES EXTERNOS

Abdelhafid Hammouche (Universidade de Lille I - França) Manoel Domingos Neto (UFF)


Adalberto Moreira Cardoso (IESP-UERJ) Marcelo Parreira do Amaral (Universidade de Frankfurt)
Antonio Albino Canelas Rubim (UFBA) Marcos Luiz Bretas (UFRJ)
Daniel Chaves de Brito (UFPA) Maria Alice Rezende de Carvalho (PUC-Rio)
Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes (UFC) Maria Lucilia Monteiro (Universidade Nova Lisboa)
Elísio Estanque (CES - Universidade de Coimbra) Maria Ozanira Silva e Silva (UFMA)
Irlys Barreira (UFC) Mariano Fernandez Enguita (Universidad de Salamanca)
Jawdat Abu-EI-Haj (UFC) Miguel Alberto Bartolome (Instituto Nacional de An-
José Machado Pais (Universidade de Lisboa) tropologia e História – INAH-MX)
José Mauricio Castro Domingues da Silva (IESP-UERJ) Paulo Filipe Monteiro (Universidade Nova Lisboa)
José Vicente Tavares dos Santos (UFRGS) Pedro Demo (UNB)
Lilia Maia de Morais Sales (UNIFOR) Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo (PUC-RS)
Luciana F. Tatagiba (UNICAMP) Ronald Chilcote (University California)
Luiz Jorge Wernek Viana (PUC-Rio) Sérgio Adorno (USP)

P R O J E TO GRÁFICO
Clarice Frota
EDITORAÇÃO ELETRÔNICA
Cristiê Gomes Moreira ISSN 1519-5481

O público e o privado. Fortaleza: UECE, 2003. Semestral.


Conteúdo: ano 11, n.21, Janeiro/Junho, 2013

1. Humanidades e Ciências Sociais

CDD 320.000
O periódico O público e o privado (PP) é uma publicação acadêmica do
Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Estadual
do Ceará(UECE), de periodicidade semestral. Destina-se a publicar e divulgar
trabalhos de pesquisadores nacionais e estrangeiros, resultados de estudos
e pesquisas, considerando a relevância e inserção da temática na produção
do conhecimento teórico-empírico para as políticas públicas.

O periódico tem como objetivo promover a produção e a socialização do


conhecimento acadêmico por meio da publicação de artigos, resenhas,
entrevistas e relatórios de pesquisas, bem como incentivar a criação,
divulgação e interlocução de redes temáticas com grupos de pesquisadores
de Universidades brasileiras e estrangeiras.

Endereço para Correspondência


Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas
Mestrado Acadêmico em Políticas Públicas e Sociedade
Av. Paranjana, 1.700, Campus do Itaperi
Cep: 60.740-903 Fortaleza-Ceará-Brasil
Telefone/fax(85) 31019887/31019880
E-mail: [email protected]
Site: http://www.uece.br/políticaspublicas

Submissão dos trabalhos


A submissão dos trabalhos deve ser feita por meio do endereço eletrônico
http://www.seer.uece.br/opublicoeoprivado

Publicação indexada em:


Portal de Periódicos da UECE - www.seer.uece.br

LANTINDEX – www.latindex.unam.mx/buscador/resBus.html?palabra=o+p
%FAblico+e+o+privado&opcion=1&Submit=Buscar

Sumários de Revistas Brasileiras - www.sumarios.org/revistas/o-público-e-


o-privado

Portal de Períodicos CAPES - http://www.periodicos.capes.gov.br/?option=com_


pmetabusca&mn=88&smn=88&type=p&sfx=buscaRapida
Apresentação
O presente DOSSIÊ JUVENTUDES E POLÍTICAS PÚBLICAS emerge
em um momento oportuno, em função de um debate sempre atual sobre
o que significa ser jovem no contexto social brasileiro. Nesta edição, um
conjunto de autores tenta articular debates referentes às suas investigações,
possibilitando um olhar multifacetado sobre problemas sociais do mundo
contemporâneo. A partir dos estudos aqui apresentados, o leitor terá
oportunidade de encontrar análises variadas sobre práticas que envolvem
dinâmicas, ações e representações de pessoas que são jovens. Observa-se
como Bourdieu tinha certa razão ao considerar a juventude como “apenas
uma palavra” que não pode ser o ponto de chegada, mas sim um ponto
de partida para investigações que irão demonstrar suas imprecisões e
reduções. Passeia-se neste número por questões tão diferentes quanto de
fato são as vidas de jovens brasileiros que enfrentam rotinas, condições
sociais, relações pessoais, afetos, problemas de saúde e outros tão distintos
como distintas são as cores do mundo social.

Neste número da Revista Público e Privado, os editores não tiveram intenção


de trazer um bloco fechado de discussões sobre juventude. A tentativa foi
apresentar reflexões que versam sobre problemas sociais distintos, mas que,
ao final dos percursos apresentados aqui, possibilitem aguçar a curiosidade
e novas leituras sobre as múltiplas possibilidades de como jovens integram
fenômenos de um mundo social complexo. Os textos apresentam vasto
universo de recursos teórico-metodológicos a serem utilizados em futuras
investigações que tenham como objetivo entender uma variedade enorme
de questões que, talvez, estejam naturalizadas e simplificadas demais nesta
palavra juventude. Teoria e prática dialogam ao longo de investigações que
compreenderam aspectos diferentes de um segmento social comum, mas
que, como o leitor poderá ver, não podem ser entendidos como unidade
estática e desprovida de uma leitura da conjuntura e das circunstâncias nas
quais certos modos de ser jovem se tornam possíveis.

No artigo de Luciane Soares Silva, a pergunta presente em seu título “Na


contramão da ordem?” é uma provocação e um convite ao leitor para
adentrar, junto com a autora, no mundo dos bailes funks e na forma como
a relação asfalto e favela passaram a articular um conjunto de relações
próprias da cidade do Rio de Janeiro.

A autora Camila Holanda compartilha no Dossiê os resultados de sua


experiência de campo, com reflexões metodológicas importantes sobre o
trabalho de pesquisa com jovens moradores de rua. Em seu trabalho, o leitor
encontrará a rua não apenas como um lugar perigoso, mas, sobretudo, um
lugar de encontros e afetos no qual jovens estabelecem relações e realizam
suas trajetórias de vida.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


Aparecida Lima e Raquel Gonçalves propõem pensar o programa
governamental Projovem Urbano, no Município de Betim-MG, a partir de uma
discussão atual sobre os limites e possibilidades dos processos avaliativos,
tendo como fio condutor de sua análise o fenômeno da evasão desse Programa
criado para jovens entre 18 e 29 anos que não concluíram o ensino fundamental.

Ainda sobre o calor dos acontecimentos, Rochele Fachinetto e Vítor Ribeiro


pensam sobre as representações da violência presentes nas manifestações
de junho de 2013 no Brasil. Ao percorrer informações presentes em redes
sociais, mídia e discursos de autoridades, os autores oferecem uma leitura
sobre como a violência compõe cenário de conflito social emblemático para
a sociedade brasileira.

O leitor também poderá refletir, a partir do artigo de Isaurora Freitas e José


Braga, sobre as sociabilidades de jovens presentes nos ônibus universitários
que transportam jovens de mais de cinquenta munícipios para estudar na
cidade de Sobral, interior do Ceará. Neste espaço de trânsito, os autores
investigam as relações, usos, práticas e astúcias presentes nessas interações.

O artigo de Mariana Santos e Rodrigo Azevedo conclui o Dossiê lançando um


questionamento importante sobre a descontinuidade das políticas públicas
de segurança no Brasil. Os autores tomam as percepções de jovens sobre
o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI)
como pano de fundo para pensar sobre seus desdobramentos em outras
ações desenvolvidas pelo Governo do Rio Grande do Sul.

Ademais, a revista traz à luz do público artigos de Juana Ruiloba sobre o sistema
educativo espanhol, interpretado em função de questões de gênero; Linda
Gondim a respeito da atuação da Fundação para o Desenvolvimento Habitacional
de Fortaleza (HABITAFOR); e Wellington Maciel sobre o imaginário social da
fundação de Fortaleza. São artigos que trazem ao leitor reflexões importantes a
respeito de questões que envolvem tanto o campo das políticas públicas, quanto
da teoria social e seus desdobramentos para as Ciências Sociais em geral.

Por fim, o desejo presente neste número é de que a sua leitura não apenas
agrade, mas, sobretudo, inquiete, provoque, mobilize e promova novas
reflexões em torno daquilo que agora publicado é de domínio público. Dito
isto, a maior expectativa é a de que os leitores encontrem aqui motivos
para ir em frente, seguir adiante, dizer e desdizer o que foi dito de maneira
produtiva e desafiadora. Bom trabalho pela frente!
Geovani Jacó de Freitas (UECE)
Luiz Fábio Silva Paiva (UFAM)
Organizadores
Sumário
Apresentação

DOSSIÊ JUVENTUDES E POLÍTICAS PÚBLICAS

09 Na contramão da ordem? Cultura urbana, juventude e estigma na


cidade do Rio de Janeiro
Luciane Soares Silva

33 Inquietações sobre juventudes, experiências e metodologias


Camila Holanda Marinho

53 Projovem Urbano: contribuições da gestão social em sua avaliação


Aparecida de Cássia Oliveira Lima e Raquel Garcia Gonçalves

73 Juventudes, manifestações e representações sobre a violência


Rochelle Fellini Fachinetto e Vitor Eduardo Alessandri Ribeiro

91 Os universitários viajantes: suas práticas e sociabilidades


Isaurora Cláudia Martins de Freitas e José Ricardo Marques Braga

111 Política de segurança pública e juventude: o caso do Rio Grande


do Sul
Mariana Chies Santiago Santos e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

TEMAS LIVRES

127 Sistema Educativo espanhol em perspectiva de gênero: um


acercamiento desde las políticas públicas
Juana María Ruiloba Núñez

147 À sombra do BNH: a nova política habitacional em Fortaleza-CE


(2005-2011)
Linda Maria de Pontes Gondim

167 O imaginário social da fundação de Fortaleza: fatos, marcos e


personagens
Wellington Ricardo Nogueira Maciel

RESENHA

185 Compreendendo a cooperação dialógica: uma leitura de Juntos, de


Richard Sennett
João Paulo Bandeira de Souza

OPINIÃO LIVRE

195 Junho de 2013 no Brasil: a farsa perdeu a graça?


Ivandro Costa Sales

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


Summary
Presentation

DOSSIER YOUTH AND PUBLICS POLICIES

09 Against order? Urban culture and stigma in Rio de Janeiro


Luciane Soares Silva

33 Concerns about youth, experience and methodologies


Camila Holanda Marinho

53 Projovem urbano: contributions of social management in your


assessment
Aparecida de Cássia Oliveira Lima, Raquel Garcia Gonçalves

73 Youth, social protests and representations on violence


Rochele Fellini Fachinetto, Vítor Eduardo Alessandri Ribeiro

91 Travelling university studants, their practices and sociabilities


Isaurora Cláudia Martins de Freitas, José Ricardo Marques Braga

111 Public Security Policies and Youth: the case of Rio Grande do Sul
Mariana Chies Santiago Santos, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

FREE THEMES

127 The Spanish Education System from a Gender Perspective: A Public


Policy Approach
Juana M. Ruiloba

147 Under the Shadow of Brazil National Housing Bank (BNH): the new
housing policy in Fortaleza-CE (2005-2011)
Linda M. P. Gondim

167 The social imaginary of the foundation of Fortaleza: facts, spatial


marcs and figures
Wellington Ricardo Nogueira Maciel

REVIES

185 SENNETT, Richard; Juntos: os rituais, os prazeres e a política da


cooperação.
João Paulo Bandeira de Souza

FREE OPINION

195 Farse lost its seduction. So now?


Ivandro da Costa Sales
(*) Luciane Soares Silva é Doutora em Sociologia pela UFRJ e professora associada 09
da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro e pesquisadora
associada ao NEEV - Núcleo de Estudos da Exclusão e da Violência. @ -
[email protected]

Na contramão da ordem?
Cultura urbana, juventude e estigma na cidade
do Rio de Janeiro (**)

Against order? Urban culture and stigma


in Rio de Janeiro

Luciane Soares Silva*

RESUMO: Considerando a continuidade da favela como “problema social” Palavras-chave:


na ordenação da cidade, a interação entre moradores de favela e não estigma, favela,
moradores torna-se ponto importante para as questões discutidas neste juventude, ordem
urbana, violência.
artigo. Neste caso, interessa compreender, como a partir de fatos ocorridos
em situações de interação face a face formam-se representações sobre
determinados grupos. Este artigo reconstituirá eventos ocorridos na década
de 1990, compreendendo que este período constitui importante ruptura
com visões anteriores sobre moradores de favelas e subúrbios na cidade do
Rio de Janeiro, especialmente a construção do “funkeiro” como inimigo da
ordem urbana. O conceito de estigma será central para os argumentos que
serão apresentados. O artigo parte de análise documental, entrevistas com
frequentadores, artistas e moradores de favela para compreender como a
construção e posterior criminalização dos funkeiros foi decisiva para ações
da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro na década
de 1990 e início dos anos 2000.

I ntrodução (**) Agradeço aos co-


mentários dos parti-
cipantes do grupo de
O artista vai falar o que ele sente, e dentro da favela se você trabalho de Sociologia
perseguir o funk. ...Tirar ele do asfalto e colocar só dentro da Cultura do XIV Con-
da favela, a linguagem vai ser criminosa sim, não por ser o gresso Brasileiro de
funk, mas por ser proibido estar dentro da favela. O traficante Sociologia, que cola-
boraram para repensar
é funkeiro pô! O cara com 30 anos nunca saiu da favela vai algumas questões sobre
ser o que? O que é que o jovem, qualquer jovem de 25 anos esta pesquisa.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


10 Luciane Soares Silva

é hoje dentro de uma favela, aqui ou no Brasil, hoje? É hip-


hop e funk. Agora o hip-hop é criminoso? (MC Leonardo)

Talvez a representação mais vinculada sobre o Rio de Janeiro na década de


1990 seja aquela grafada por Zuenir Ventura (1994) da cidade enquanto uma
“cidade partida”. O ressentimento (potencial) entre moradores de favela
ou subúrbio e moradores de asfalto será analisado levando-se em conta as
expectativas existentes para ambos. Como muitos autores têm questionado
(CUNHA, 2001, LEITE, 2000, CARVALHO, 1994, VENTURA, 1994) a
cidade do Rio de Janeiro não tinha nas praias um de seus maiores orgulhos
sobre o espírito carioca e democrático? Foi na condição de “cartão postal
da República” (CARVALHO, 1987, p.41) que os conflitos nas praias de
Ipanema transformaram-se em imagens de um avanço de “hordas bárbaras”
e foram apresentadas em rede nacional.

A metodologia consistiu em entrevistas com moradores, líderes comunitários


e frequentadores de bailes nas favelas da Rocinha, Acari, Maré, São Carlos
e Morro dos Macacos, uma entrevista em Costa Barros com importante
líder local e duas no Morro do São Carlos, com dois integrantes do bloco
carnavalesco Deixa Falar. Foi realizada, também, análise documental em leis,
jornais e materiais produzidos sobre o tema entre 2000 e 2009.

A primeira parte do artigo apresenta um dos eventos mais importantes do


processo de classificação de grupos juvenis como” hordas de funkeiros” na
cidade do Rio de Janeiro. Esta apresentação é essencial à compreensão de
como estes grupos passaram a ocupar as principais manchetes de jornais do
País. A partir destas representações, iniciou-se a realização de amplo debate
sobre o tema da criminalidade urbana vinculada à juventude (principalmente
moradores de favela e subúrbios). A segunda sessão do artigo apresenta o
resultado das entrevistas. Como estas classificações eram adotadas pelos
frequentadores de baile e moradores? Era possível reconhecer o “funkeiro”
entre os diversos grupos que circulam na favela? A terceira sessão realiza
uma discussão sobre estigma e funk, a partir dos processos de ocupação do
espaço público por estes grupos. Importante ressaltar que as letras deste
período apresentaram o frequentador como um trabalhador pobre, buscando
afastar a imagem deste da representação sobre crime e relação com o tráfico
presente nas favelas. Na última sessão, será apresentada a criminalização
dos bailes e sua derradeira associação ao tráfico, o que justificaria ações
arbitrárias da polícia nas incursões em favelas.

O objetivo do artigo é apresentar e discutir a construção da categoria


“funkeiro” a partir de um evento difuso, mas amplificado de formas distintas
Na contramão da ordem? Cultura urbana, juventude e estigma na cidade do 11
Rio de Janeiro

pela mídia, Estado e frequentadores dos bailes. Importantes mudanças nas


relações entre favela e asfalto serão decisivas para construção deste grupo
como co-responsável (junto com o tráfico) pela sensação de insegurança
urbana intensificada a partir dos anos 1990.

Os verões do “Arrastão”: eventos de demarcação


territorial
Em 18 de outubro do ano 1992, o Jornal Nacional noticiava:

Rapidamente as gangues tomam conta da areia... uma


parede humana avança sobre os banhistas...pavor e
insegurança...sem que se saiba de onde, começa uma
grande confusão....o pânico toma conta da praia...as
pessoas correm em todas as direções são mulheres,
crianças, pessoas desesperadas à procura de um lugar
seguro... A violência aumenta quando gangues rivais se
encontram .. este grupo cerca um rapaz que cai na areia
e é espancado ...a pouco metros dali, outro bando avança
sobre a quadra de vôlei ... os jogadores se afastam da
quadra e correm para proteger as barracas, mulheres e
crianças...dois policiais, apenas dois chegam até a praia...
eles estão armados mas parecem não saber o que fazer
com tanta correria...perto dali, rapazes ignoram a presença
da policia e aproveitam para roubar....1

Como sugere Vianna (1996, p.180), este fato, ocorrido em 18 de outubro de


1992, instaura um marco nas relações entre funk e a percepção da violência na
cidade do Rio de Janeiro. Suas dúvidas sobre o que de fato ocorreu naquele dia
possibilitam reconhecer, através deste caso, a constituição de representações
sobre determinados tipos sociais. O uso das imagens aliado à construção de
um texto cuja narrativa instaura um quadro de barbárie urbana, realiza mais
que informar sobre o fato. Neste caso, o Jornal Nacional, como um veículo
“autorizado” de produção de informação, cria uma versão, utilizando recursos
que vão desde edição de imagens ao uso das competências de seus âncoras
para produzir o efeito de verdade, objetivo último dos canais midiáticos.
1 O texto foi compilado
Sobre as versões em relação ao evento, cabe apresentar a versão da Polícia a partir de Herschann,
Militar: 2000, p.73. O material
constitui parte da tese
do autor sobre mídia,
Os comandantes do 19º. E 23º. BPM (Batalhão da Policia
funk e hip-hop no Rio
Militar) são taxativos: os arrastões ocorridos anteontem de Janeiro.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


12 Luciane Soares Silva

nas praias da zona sul não tiveram o propósito de roubar


os banhistas. Segundo eles, os participantes fazem parte
dos mesmos grupos que freqüentam os bailes funk do
subúrbio da Zona Leste. O encontro das turmas rivais na
areia provocou o tumulto e o pânico entre banhistas. Os
incidentes ocorridos nas saídas das praias, explicam os
oficiais, aconteceram devido ao número insuficiente de
ônibus nos pontos finais.

Sobre os possíveis usos políticos do evento ocorrido em 1992, Cony (2004, p.30)
sugere relação entre o arrastão e tentativas de grupos “!ultra-reacionários” para
impedir que Benedita da Silva, candidata pelo Partido dos Trabalhadores, ex-
moradora de favelas, e negra, ocupasse este cargo. Sua análise aponta para o
uso do arrastão em períodos anteriores às eleições. Isto porque em sua opinião
“o lucro do assalto praticado nas praias da zona sul é ridículo. Ninguém leva
valores para a praia, leva talvez um celular, uns trocados para água de coco,
nenhuma bijuteria, o relógio mais vagabundo de cada um. Qualquer lanchonete
ao meio dia, oferece mais dinheiro e mercadoria. E os bandidos sabem disto”

A ocorrência deste fato teve com um dos efeitos a criação de uma comunidade
pública de discussão que envolveu políticos, acadêmicos, jornalistas,
policiais, mas principalmente, os supostos “delinqüentes” que tiveram sua
imagem associada a partir deste momento, a práticas “fora da lei”. Como
resultante deste processo de tornar presente em imagens nacionais, aqueles
grupos que historicamente restringiam seu movimento ao subúrbio da Cidade,
criaram-se possibilidades para ouvir (mesmo que na condição de acusados)
os agentes aos quais se atribuiu a responsabilidade pela desordem urbana.

A transformação da Cidade que abriu os túneis e disponibilizou linhas de


transporte que aproximaram estes indivíduos em um espaço extremamente
valorizado, não poderia deixar de produzir estranhamento. Outro termo seria
também empregado: “hordas bárbaras”. O que importa é a qualificação
desta relação que se transforma em uma direção muito específica: afirmação
de uma identidade que rompe com um pacto que teria assegurado uma
forma de convivência plural.

Com o advento do arrastão de 1992. algo se quebrou. As


imagens em torno da praia carioca seriam diferentemente
retratadas e acrescidas de um novo sinal muito mais
perturbador: a violência que se explicita nas narrativas
dos entrevistados publicadas nos jornais da cidade, e
que ganhou ênfase nas vozes dos âncoras e repórteres
Na contramão da ordem? Cultura urbana, juventude e estigma na cidade do 13
Rio de Janeiro

de TV, sublinham as imagens produzidas numa serie de


inexplicáveis repetições. Era preciso memorizar-lhes
os modos, os jeitos,as práticas e sobretudo as cores.
Enunciá-las seria contudo, politicamente incorreto, mas
mostrá-las não. (CUNHA, 2001, p.85)

Para análise do Arrastão, foram recuperadas imagens televisivas da época.


Foram diferentes formatos que registraram versões do que teria ocorrido na
praia do Arpoador. Os relatos serão apresentados, não com o objetivo de
narrar o “que aconteceu” e sim, como as representações ratificaram o evento
que foi nacionalmente divulgado como “Arrastão na Praia de Ipanema2”.

Aquele grupo imenso de pessoas mais lá para o canto


do Arpoador, e mais ali na altura da Rainha Elizabeth,
estes grupos que se formam e que causam pânico! Então
o povo começa a gritar. Nós estamos indefesos, eles
muitas vezes armados com cacos de vidro nas mãos,
não são todos [...] umas pessoas corriam para a água,
outras corriam para o calçadão, muitas se escondem na
barraca dos vendedores de refrigerante.

Na sequência destas imagens, o depoimento de uma arquiteta, sintetiza


o sentimento de invasão em relação aos grupos que teriam feito o suposto
arrastão:

Já que é guerra, vamos para a guerra, violência, pau, barra


de ferro, garanto para você que duas semanas agredindo
eles, na terceira semana eles não vão vir aqui mais. Eles
vêm aqui porque eles vêem que o povo corre, o povo tem
medo, não tem que ter medo, tem que encarar eles com
fome e com sede.

As expressões de desagrado em relação à presença de moradores da zona


norte e da Baixada Fluminense, classificam estes como “invasores” de um
espaço civilizado no qual não saberiam se “comportar”. A resposta dado
por um dos frequentadores externos ao Bairro, acuado. revelava as medidas
tomadas pelos órgãos de segurança pública: “Esse pessoal que mora aí, tudo 2 Imagens de Nilton
Rodrigues, exibição te-
babaca, eles tão mandando policial atrás dos outros, achando que os outros lejornais locais ano de
vão fazer arrastão, por isto que nego tem que roubar eles mesmo, unh....” 1992. As imagens estão
disponíveis em http://
www.youtube.com/watc
Se a expressão corporal da arquiteta revelava capacidade para o combate, h?v=zWfu5WvUJd0&f
gesticulação agressiva, corpo inclinado para a frente e a cabeça balançando eature=related.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


14 Luciane Soares Silva

com decisão ao falar que o povo não deveria ter medo, a expressão do morador
do “bairro invasor”, um homem negro de aproximadamente 35 anos, era de
nervosismo, mãos que se entrelaçavam com rapidez, ombros levantando em
sinal de desacordo com as decisões tomadas, mas em certo sentido, acuado,
ressentido com a forma de tratamento dispensada a tantos que como ele,
frequentavam a praia nos fins de semana.

As imagens registradas terminam com closes em garotos que usam as


camisetas para cobrir o rosto, enquanto dezenas, talvez ao longo do dia,
centenas, seguiam pendurados nos ônibus que passam em Copacabana em
direção à Zona Norte.

No decorrer de quase uma década, o que mudaria qualitativamente nas


classificações sobre estes grupos: os atributos que referenciavam os
indivíduos vindos do subúrbio, tais como “farofeiro”, seriam substituídos
por outros tais como “hordas funkeiras”. Se havia preconceito em relação aos
primeiros, a convivência com este segundo grupo revelar-se-ia inaceitável
para os moradores. Como observa Cunha (2001, p. 97):

Se a família era um referencial importante


do “tradicionalismo” dos “suburbanos”, versus a
“modernidade” da Zona Sul nas narrativas jornalísticas
sobre o conflito de 1984, em 1991, a adjetivação de
comportamentos é invertida. É justamente em nome do
passado, do espírito nostálgico, do tempo das célebres
canções inspiradas no bairro e principalmente, em nome
das famílias que os moradores denunciam a falta de
segurança nas praias. O perigo já podia ser claramente
identificado: turmas, galeras, gangues de jovens que
chegavam à praia em ônibus superlotados vindos do
subúrbio. Mais do que serem jovens, entoavam gritos de
guerra, refrãos e promoviam correrias entre seus pares-
amigos e inimigos – e eram frequentadores de bailes funk.

Não era sobre a favela como lugar de moradia que recaíam as acusações.
O artigo de Cunha (2001) enfatiza exatamente este ponto: os moradores de
favelas da zona sul passaram a frequentar a praia em horários alternativos
para não serem “confundidos com aqueles que vinham dos subúrbios, favelas
da zona norte ou da Baixada Fluminense”. Então o estigma territorial precisa
de mediações. Tampouco era um pobre genérico, porque este, freqüentador
da praia, vinha com sua família aos fins de semana e “sabia se comportar”.
Sobre que grupo recaíra a informação desabonadora? Que grupo era
responsabilizado pelo suposto aumento de roubos no Bairro?
Na contramão da ordem? Cultura urbana, juventude e estigma na cidade do 15
Rio de Janeiro

A critica feita pelos porteiros aos fatos é muito elucidativa: “este pessoal não
sabe se comportar aqui no nosso bairro”. Se existia alguma identificação por
ambos serem de origem nordestina (porteiros e moradores de subúrbio) esta
demarcação era rompida enquanto outra era acionada: lugar de residência.
Uma estranha comunhão com o estilo de vida surgia como linha divisória entre
moradores e hordas invasoras. Estas hordas deveriam aprender a manipular
os signos que eram compreendidos por aqueles que frequentavam a praia não
apenas nos fins de semana. Desta forma, trabalhadores reconhecidos como
parte daquele cenário eram aceitos como “nós, do bairro de Ipanema”. Por esta
razão, a oposição não é simplesmente entre moradores de favela e moradores
do asfalto. Na interação diária entre favela e asfalto já se tornara integrada
a trabalhadora doméstica assim como o trabalhador autônomo dos pequenos
biscates, pois esta era a favela moralizada, harmoniosa,. O que havia mudado?

O evento de outubro de 1992 é melhor analisado se visto como o ápice de


uma série de eventos anteriores, envolvendo “suburbanos” que frequentavam
a praia apenas nos fins de semana, levando lanches, família e ocupando os
espaços destinados aos moradores locais que passaram a frequentar estes
espaços apenas nos dias da semana. No ano de 1984, a Operação Verão,
da Policia Militar já teria, em sua pauta de atuação, restrições à circulação
destes grupos que eram identificados por alguns sinais: a cor da pele (em
sua maioria pardos e negros), o fato de chegarem à praia em grandes grupos
carregando objetos como aparelhos de som portáteis, caixas de isopor etc...

Conforme Cunha (2001, p.93), em torno de muitas discussões quanto à


necessidade de um tratamento anti-repressivo aos banhistas que vêm do
subúrbio e o seu oposto, o apoio à ostensividade da presença policial nas praias,
temos todo um complexo cenário envolvendo questões político-partidárias e
todo um acirrado debate sobre o recrudescimento da violência na Cidade.

Sobre a questão político-partidária, as eleições em 1992 apresentavam


César Maia e Benedita da Silva disputando voto a voto a prefeitura do Rio de
Janeiro. De acordo com Sansone e Nobre (2000, p.5), os analistas políticos
sustentavam que o “verão do arrastão” tirou a candidata negra da disputa pois
a população identificou que ela não teria pulso para controlar as badernas
produzidas pelos funkeiros ou galeras funk, seus potenciais eleitores. Outra
versão sustentou que o arrastão teria sido “plantado” na praia para prejudicar
a candidata petista, moradora do Chapéu Mangueira, no Leme, Copacabana.
Os programas de televisão do Partido dos Trabalhadores (PT) e dos partidos
coligados em torno da candidatura de César Maia confrontaram-se através de
imagens, cartas-texto, e propostas para diminuição da violência. Enquanto César
Maia enfocava de forma ambígua o caso específico dos Arrastões, defendendo a

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


16 Luciane Soares Silva

manutenção da ordem e antevendo a necessidade das Forças Armadas para tal,


Benedita defendia o direito de ir e vir de todos os moradores da Cidade, mas em
especial dos moradores das periferias e favelas (CUNHA, 2001, p.98).

Estariam presentes nos debates sobre “a origem do arrastão”, temas ligados


aos direitos de ir e vir, ao lazer existente para as populações “carentes”, a
mudança na paisagem que desagradava os moradores da zona sul.

Um evento em 1994 esclarece a forma como estes grupos serão classificados


depois do Arrastão de 1992. A Universidade Federal do Rio de Janeiro,
através do Fórum de Ciência e Cultura, promoveu um seminário denominado
“Galeras: uma manifestação cultural? Uma ameaça? Um problema da
Cidade?”, tendo a participação de especialistas no tema e de representantes
de galeras de diferentes partes da Cidade. Durante o evento, 40 jovens que
haviam se reunido na Cinelândia trouxeram um cartaz com o lema “vamos
fazer um arrastão contra o preconceito racial e social”. Horas antes, ao
reunirem-se para entrada no ônibus, passageiros começaram a descer
temendo um assalto (VENTURA, 1994, p.153).

Destas discussões uma oposição se tornou mais evidente: moradores versus


invasores. Com base em classificações que fariam referência ao recorte
geopolítico da Cidade, a praia tornar-se-ia um território ocupado por moradores
da Baixada Fluminense, de bairros do subúrbio da Central do Brasil, de favelas
distantes como a do Jacaré. E é claro, “frequentada” nos dias de semana,
pelos moradores dos bairros de Copacabana, Ipanema, Leblon, assim como
por turistas e moradores de favelas próximas, cujo ethos apresentava traços
distintivos capazes de demarcar um pertencimento à Zona Sul.

Dentro de uma discussão mais ampla sobre acesso à cidade, os eventos


denominados como “Arrastões” instauraram alterações importantes nas formas
de interação urbana. Somados às migrações entre bairros e à expansão de
áreas da Cidade como Barra da Tijuca e Jacarepaguá, passaram a representar
a depreciação de certos espaços comuns. Lugares como Copacabana, que
recebem linhas vindas da zona norte e outras áreas periféricas, passaram
a não ser mais frequentados por moradores que migraram para praias mais
distantes como Grumari.

É importante demarcar que não podemos pensar estes eventos de forma


isolada. É igualmente importante o impacto dos meios de comunicação na
divulgação do avanço das “hordas bárbaras”. A percepção sobre aumento
da violência urbana já estampava jornais e manchetes na década de 1990.
O registro dos Arrastões pode ser lido como forma mais “precisa” de
Na contramão da ordem? Cultura urbana, juventude e estigma na cidade do 17
Rio de Janeiro

endereçamento do medo que se apresentava de forma difusa. O baile funk a


partir daí receberia todas as classificações desabonadoras por se constituírem
como espaços de frequência destes grupos. Ao invés de uma violência difusa
que poderia ser localizada nos territórios de favela, O discurso que passaria
a ter uma inédita eficácia simbólica era que “estes eram jovens que vinham
à Cidade para roubar, bandos de vagabundos, associados aos bandidos que
já dominavam as favelas”. Finalmente, no imaginário urbano, era possível
pensar que a “favela estava descendo”. Segundo o presidente da Riotur e
secretário de Turismo da Prefeitura, José Eduardo Guinle, era preciso uma
intervenção como “única forma de conter a baderna e restabelecer a boa
imagem da cidade” (VENTURA, 1994, p.97). A compreensão adotada por
parte da opinião pública para justificar a violência urbana, apontava para o
fato de que a Cidade estava “ partida”. Era como se parte do Rio de Janeiro
desconhecesse áreas como Vigário Geral e Parada de Lucas. Era a descoberta
de um território que não correspondia mais ao lugar idílico onde parte da
cultura nacional foi gestada.

Nascer funkeiro, nascer na favela: território como


princípio de identificação cultural local
No trabalho de campo, em favelas da cidade do Rio de Janeiro, a pergunta
não demorava a aparecer nas entrevistas. Após alguns minutos de fala sobre
o frequentador de baile, o menino que “gasta todo o dinheiro do trabalho no
fim de semana”, era inevitável a pergunta: “Como eu sei quem é funkeiro”?

Ah, o cara já nasce no baile, ele escuta o funk o tempo


todo”... (morador, Morro dos Macacos).

Com certeza o jovem da favela vai muito para o funk.


Ficam marcando onde vai ser o baile, quem vai, que lá vai
beber todas, que vão pegar muitas mulheres, as mulheres
vão pegas vários caras, é o momento (Morador, São Carlos)

É uma identidade que já virou um estilo da vida. Tem toda


uma indumentária, todo um comportamento, não como
um funkeiro, mas como algo que nós identificaremos
como funkeiro. Não ir ao baile não é uma posição política,
é porque gosto muito de música e esta não me agrada.
(Morador, Costa Barros)

Quem frequenta, quem vai pro baile... a garotada que


vai pro baile curtir, coisa e tal não, é, que gosta de funk,

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


18 Luciane Soares Silva

é funkeiro, mas não tem essa...São funkeiros. Se você


perguntar se é funkeiro eles vão dizer que são funkeiros.
Mas não é uma forma, assim, de afirmação. Mas é
importante porque tem uma noção, dá uma noção de
tribos mesmo, de pertencer a um grupo.(Morador, Acari)

Se afirmam assim. Tem, tem sim. Antes era mais porque


tinha uma certa disputa com o pessoal do charme, que até
curtia um pouco do charme. Tinha o pessoal do charme.
(Morador, Costa Barros)

Se existe uma regularidade na frequência aos bailes, que tipo de signos são
compartilhados, como reconhecer e ser reconhecido?

Para começar pela roupa. no caso das mulheres é mais


claro. Mas existe um certo formato do grupo. Antigamente
era mais marcado porque tinham marcas de funk para
homem e para mulher. Para o homem é o tênis. Já ouvi
um policial falando que revista olhando para o tênis. Ele
olha se é Nike. Pois sabe do valor. Existe uma espécie
de estereótipo- corte de cabelo baixinho, muito marcado.
Muito marcado mesmo. Topete, camisa. São as duas
extremidades então, a cabeça e os pés. É a linguagem
corporal. São trejeitos, são roupas, é muito óbvio que
há uma linguagem – você acaba sendo absorvido pelo
lugar. Você tem expressões, tem uma linguagem, tem uma
aparência, um jeito de movimentar o corpo..Um lado bom
é compartilhar isto com os seus iguais, você compartilha.
Por outro lado é ver o lugar como lugar de gente sem
educação. É o estigma. (Morador Morro dos Macacos)

A partir do momento em que houve este deslocamento do baile para dentro


da favela, falar de funk, dos artistas ou frequentadores, será, na maioria
das vezes, falar de um lugar, de um território ao qual estas práticas serão
imediatamente associadas (sendo necessário lembrar que os bailes não
nasceram “dentro das favelas” e não tiveram sempre esta configuração que
conhecemos hoje). Esta associação entre funk a favela será tratada a partir
de agora nas falas que evidenciaram pertencimento local e as formas de
identificação decorrentes deste pertencimento, principalmente na interação
cotidiana com a polícia:
Na contramão da ordem? Cultura urbana, juventude e estigma na cidade do 19
Rio de Janeiro

É, aí... Aquela coisa da polícia, da polícia ser covarde.


Ela meio que vê o território favelado como território
hostil e onde ela tem autorização pra agir como quer.
Mas ao mesmo tempo não age com o mesmo rigor em
outro espaço da cidade, porque sabe das conseqüências
ou então, ela não teria a mesma autoridade e não poderia
agir da mesma forma. Aí teria conseqüência, vai ter que
responder pelos crimes que cometer, essas coisas todas.
(morador Vila do João)

Sobre um lugar de “origem” que explicaria o funk, é unânime a defesa de


que “ele tem um território”. Dentro desta identificação existe um elo que
favorece o reconhecimento das semelhanças, mesmo no reconhecimento
de diferenças entre favelas, como no caso das falas sobre Rocinha e Acari,
Acari e Maré:

Não, o funk não é desterritorializado não. O funk ele, ele


tem seu território que é a favela, que é a periferia, né.
Sim, sim, foi porque o rap ele valoriza seu território de
origem... Ele trabalha as singularidades daquele local,
mas ele fala de forma geral dos espaços marginalizados,
né. Mas sempre dando uma ênfase a aspectos da cultura,
a modismos, das identidades locais, porque ele tem
que dar uma identidade maior pra sua música. Porque
senão ela fica muito solta né. “A favela é assim, a favela
é assado”. Que favela é assim? A minha favela não é
assim. A minha favela tem palafita, a do cara não tem.
A minha favela eu consigo andar de moto, de carro. A
outra favela o cara não consegue, porque só tem becos,
ele mora no morro, né. Mas a pobreza, o tratamento que
é dado pelos órgãos públicos, é quase igual. Muda muito
pouca coisa. Mas sim, pensando assim, cada rapper tem
seu território de uma forma. E ai ele territorializa a sua
música de acordo com o que ele vive ali. Provavelmente,
se eu escrevesse, se eu fosse um rapper, se eu fosse
da Restinga eu escreveria totalmente diferente do que
eu escreveria da Maré, por exemplo. Porque é uma
favela muito diferente, que tem banco, que tem fórum,
que tem Escola de Samba, que tem duas Associações
de Moradores. Tem uma infra-estrutura melhor, é
homogênea, diferente da Maré, né? (Morador, Rocinha)

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


20 Luciane Soares Silva

Sobre território existem várias formas de realizar um recorte em relação


as interações dentro da cidade. Nas falas coletadas, duas destas formas se
destacaram: a relação entre cidade e asfalto, mediada pela música e a relação
entre territórios marcadas pela presença de facções, também mediada pelas
letras de apologia que fazem referência a uma ou outra área.

Eu tinha essa impressão também: “Pô, só toca aqui”. Não


toca não. Da onde vem?Não sei, de repente, a cidade já
não é tão partida como querem dizer que é. Assim, eu
acho que a relação entre favela e asfalto, não são tão
distantes, eu acho que são bem mais próximas. Pra um
cara da classe média estar escutando a mesma música
que o menino está escutando lá na favela, eu não sei
como é que acontece, eu não sei se através da internet
hoje esses territórios se aproximaram, culturalmente. Não
sei. (Morador, Vila do João)

Como podemos entender a expressão “aproximaram-se culturalmente”? Em


muitas das entrevistas realizadas, a presença de frequentadores externos
à favela, que a ela tinham acesso nos dias de baile, aponta para a festa
como um espaço de integração entre diferentes camadas sociais. Contudo,
esta aproximação, segundo os entrevistados, não gera outras formas de
engajamento nas questões da favela. Mas a audição do funk não se restringe
aos territórios de favela, estando presente em festas e comemorações em
praticamente todas as regiões da Cidade.

Esta presença acachapante das músicas em festividades importantes, como


o Reveillon de Copacabana, no ano de 2007, possibilita a reflexão sobre
esta “aproximação cultural” enunciada na fala acima. O que é combatido
pelos órgãos de Segurança Pública não é o funk como fenômeno social, pois
este continua a ser consumido nas mais diversas formas de mídia. O que é
combatido é o funk como espaço de sociabilidade na favela. Portanto uma
das possíveis interpretações sobre o processo atual de proibição de bailes na
cidade do Rio de Janeiro refere-se às formas de domínio de um território3.
3 Poderíamos ter uma
percepção da existên- A alegação jurídica de não-adequação (falta de isolamento, falta de banheiros
cia, no momento atual,
de um tipo de disputa
químicos, necessidade de antecedência) serve como moldura legal, alegação
territorial entre Estado de zelo pela ordem urbana “dentro da favela”, não devemos desconsiderar a
e tráfico, uma vez que ocupação policial da Cidade de Deus, Dona Marta, Batan, Babilônia e Chapéu
os bailes são reconhe-
cidamente patrocina-
Mangueira. A policia de pacificação tem entre seus objetivos, “expulsar” os
dos pelo tráfico. traficantes destas localidades.
Na contramão da ordem? Cultura urbana, juventude e estigma na cidade do 21
Rio de Janeiro

Construção de estigma: funkeiros ou, a vocalização


da geração dos recalcados
É necessário observar que ao definir estigma, Goffman está interessado num
atributo depreciativo que surge apenas no momento da interação social,
que surge da forma como estabelecemos nossas categorizações a respeito
dos demais. O termo estigma, portanto, será usado em referência a um
atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na verdade, é
uma linguagem de relações e não de atributos (GOFFMAN, 1988, p. 13).
O autor destaca que um estigma é, então, um tipo especial de relação entre
atributo e estereótipo, advertindo para a necessidade de modificação desse
conceito, uma vez que ele acredita que “em quase toda a nossa sociedade,
alguns atributos levam ao descrédito”.

O estigma surge onde há alguma expectativa, de todos os lados, de que


agentes que se encontram numa certa categoria não deveriam apenas apoiar
uma norma, mas também cumpri-la (IDEM, p. 16). Sendo assim, alguns
indivíduos que não conseguem viver de acordo com o que deles é esperado
socialmente, podem permanecer alheios à sua situação social (o que Goffman
enuncia como “seu fracasso”). Isolam-se, reconstroem identidades, passam
a olhar para os normais como se fossem estranhos.

Porém, na relação social, no mundo contemporâneo, onde a convivência,


4 Umas das alterações
principalmente em grandes centros urbanos, tende a aproximar estigmatizados mais significativas des-
e normais, a identidade desses grupos é construída na interação com os te cenário foi apontada
demais membros da sociedade. Exigirão, portanto, o que pensam ser justo ao por Santos (SANTOS,
2004) ao chamar aten-
seu grupo, a sua categoria social. Este ponto é central para a discussão sobre ção para o lugar de fala
o que representou para a Cidade, a convivência entre suburbanos e moradores do malandro e o lugar
da zona sul. É central o argumento explicitado por Goffman de que os normais de fala do atual morador
de favela no Rio de Ja-
(não importa o que digam em contrário), não estão dispostos a manter com os neiro. Se o primeiro era
grupos estigmatizados, uma relação em “bases iguais”. O fato é que, mesmo narrado por um outro,
discursando sobre a necessidade de aceitação desse “sujeito não completo” externo ao espaço da
favela, que nestes tem-
(portador de estigma), os normais o aceitam apenas se este apresentar um pos idos, era roman-
comportamento desejado, que corresponda às expectativas sociais vigentes. tizada como reduto de
uma bondade popular, o
segundo fará uso de ter-
A hipótese sobre o processo de estigmatização destes grupos4 (na maioria mos que remetem à no-
jovens que nasceram na década de 1980 e 1990) e os usos da categoria “ ção de guerra, ruptura,
funkeiro’ em relação aos mesmos, é de que o lugar a que são remetidos pela mídia ódio, amargura,quebra
de contrato, fim de es-
e pelos órgãos de controle, passa a produzir também o discurso de constituição pera, destruição da
de sua realidade enquanto portadores de cultura (MANNHEIM,1928). O que crença na dignidade do
não quer dizer que a mídia é criadora de determinada realidade trabalho.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


22 Luciane Soares Silva

O evento de tomada da praia em 1992, em uma espécie de avanço das hordas


bárbaras, instituiu um (re) ordenamento das percepções sobre a interação
entre favela e asfalto. O evento do arrastão, que antecedeu as eleições
municipais de 1992, no Rio de Janeiro, ocorreu na praia do Arpoador, zona
sul da Cidade, e pode ser classificado como divisor de águas para discussão
sobre violência urbana. Este evento, enquadrado mais pela mídia que pelos
próprios órgãos de segurança como “ arrastão”, foi amplificado em todos os
principais jornais e revistas do País.

Mesmo que a crítica artística e acadêmica defenda publicamente este grupo,


as esferas de formação de opinião se deslocaram. Os mass media produziram
imagens e discursos a partir do que ocorrera nas praias da zona sul. As
opiniões expressas por grandes veículos de comunicação têm a pretensão de
universalidade e da pluralidade de vozes, mas restringiram-se, na maior parte
de suas reportagens, a discursos que repetidamente afirmavam as mesmas
visões de mundo sobre os grupos em questão.

O lugar de moradia é a principal variável para realização desta análise.


Somam-se a esta variável, outras como cor, estilo de vida e idade. Uma das
consequências mais visíveis deste processo de vinculação dos fatos noticiados
como “arrastão” é o aumento, no ano de 1992, do controle social em relação
à circulação destes grupos nas áreas da Cidade consideradas mais nobres.
Este controle feito por barreiras e blitzes policiais que paravam os grupos,
pedindo documentos e mandavam voltar aqueles que apresentassem alguma
irregularidade. O fato é que pertencer a determinadas áreas da Cidade (favelas
da zona norte, subúrbios e Baixada Fluminense) tornou-se uma informação
profundamente depreciativa sobre o grupo que circula em áreas distantes de
seu local de moradia. Um outro aspecto importante são as representações
sobre o bando urbano como um sujeito coletivo assustador. A razão para
não frequentar a praia em grupos, analisada por Cunha (2001), é simples:
a polícia costumava parar e pedir documento quando percebia reunião
em grupos. Algumas pessoas deixaram de ir à praia em grupo, para que
passassem de forma mais discreta pela polícia. O reconhecimento dos bonés,
do corte de cabelo, das letras de funk cantadas pelos grupos, da divisão das
zonas ocupadas na areia, tudo isto gerou possibilidades de identificação que
acabariam por consolidar uma representação estigmatizante destes grupos.
Parte das letras que foram produzidas durante esta época reivindicaram o
direito à Cidade. E ao mesmo tempo demarcavam o engajamento da Cidade
no som produzido pelos estigmatizados. Esta é uma questão importante.

Não basta apontar para um processo de isolamento destes moradores, como


observado por Wacquant (2004, p.157), ao referir-se aos guetos norte-
Na contramão da ordem? Cultura urbana, juventude e estigma na cidade do 23
Rio de Janeiro

americanos. Embora sejam evidentes as relações de dominação presentes no


aumento do controle dos órgãos de segurança pública sobre este grupo, este
fato não constitui novidade na relação entre Estado e moradores de favela
em geral. O estigma da moradia é praticamente secular no Rio de Janeiro.

O que se alterava era uma operação (não precisamente planejada, mas


simbolicamente eficaz) que instaurava uma forte correlação entre jovens
moradores de favela, subúrbios e Baixada Fluminense, frequência a bailes
com música funk e participação ou simpatia por organizações criminosas.
Estes indivíduos que foram classificados como “funkeiros” poderiam não
pertencer aos grupos que frequentavam a praia e causavam tumultos. Mas os
atributos que carregavam não poderiam ser “maquiados” ou “escondidos”.
Pois a cor da pele, os cabelos e a linguagem são atributos bastante definitivos
para localização dos indivíduos no espaço social.

Em uma das entrevistas realizadas durante a pesquisa, um evento em


importante clube da zona norte apresentava-se como divisor de águas
para entender as representações sobre violência e bailes funk: um dos
discotecários mais reconhecidos da Cidade fora alvejado fatalmente ao tentar
evitar uma briga em seu baile, na Zona Norte da Cidade. Duas galeras, ambas
da zona norte teriam iniciado uma briga, desrespeitando as regras do baile.
Para muitos entrevistados este caso representaria o fim da “ingenuidade nos
bailes funk”. Esse evento, entre outros, marca o fim dos bailes em clubes e a
retração dos mesmos para os espaços da “comunidade”. O baile não é apenas
diversão popular para milhões de jovens cariocas. O baile indica um tipo de
integração urbana. Durante o trabalho de campo, os relatos exemplificaram
isto: “todo mundo ia aos bailes, não tinha divisão, era da Mangueira, do
Estácio, do Sampaio”.

Com estes eventos que criaram uma espécie de pânico urbano sobre
frequentar um baile funk, tornou-se necessário demarcar que ser um
frequentador de bailes não inviabilizava aqueles indivíduos de exercerem o
papel respeitável de pais de família e trabalhadores. As letras narravam o
cotidiano de trabalhadores pobres, suas alegrias simples, alegrias traduzidas
na frequência ao baile com os amigos e a interceptação de sua vida em
função destas práticas culturais. Era preciso não confundir estes com os
verdadeiros “baderneiros, brigões”. Ser “confundido” é um dos problemas
mais frequentes na visão dos jovens. Não são raras as mortes que ocorrem em
função de semelhanças. Por esta razão, “ser mais um Silva” na representação
de alguém que goza de um status social depreciado, passou a ser tema de
uma das letras mais executadas do funk nacional, e isto ocorreu sem uso
dos meios de comunicação ou da indústria fonográfica.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


24 Luciane Soares Silva

O autor da letra “Rap do Silva”, apelidado de Bob Rum , é natural da Zona


Oeste do Rio de Janeiro. Como tantos outros artistas deste gênero, começou
sua carreira vencendo festivais, como o Primeiro Festival de Música da
Zona Oeste. Foi contratado pela equipe Furacão 2000, em 1995, e integrou
a coletânea Rap Brasil 25, com a letra que venderia mais de 250.000 cópias,
um feito nunca bem entendido pelas grandes gravadoras. Segue a letra:

Todo mundo devia nessa história se ligar, Porque tem muito


amigo que vai pro baile dançar... Esquecer os atritos,
Deixar a briga pra lá E entender o sentido quando o dj
detonar. Era só mais um silva que a estrela não brilha, Ele
era funkeiro Mas era pai de família, Era um domingo de
sol, Ele saiu de manhã, Pra jogar seu futebol, Levou uma
rosa pra irmã, Deu um beijo nas crianças, Prometeu não
demorar, Falou pra sua esposa que ia vir pra almoçar, Era
trabalhador, pegava o trem lotado, E a boa vizinhança era
considerado, E todo mundo dizia que era um cara maneiro,
Outros o criticavam porque ele era funkeiro...O funk não
é modismo, É uma necessidade, É pra calar os gemidos
que existem nessa cidade. E anoitecia ele se preparava, É
pra curtir o seu baile, Que em suas veias rolava, Foi com
a melhor camisa, Tênis que comprou suado, E bem antes
da hora ele já estava arrumado, Se reuniu com a galera,
Pegou o bonde lotado, Os seus olhos brilhavam, Ele estava
animado, Sua alegria era tanta, Ao ver que tinha chegado.
Foi o primeiro a descer, E por alguns foi saudado, mas
naquela triste esquina, Um sujeito apareceu, Com a cara
amarrada, Sua mão estava um breu, Carregava um ferro,
Em uma de suas mãos, Apertou o gatilho, Sem dar qualquer
explicação, E o pobre do nosso amigo, Que foi pro baile
curtir, Hoje com sua família, Ele não irá dormir.

Esta letra foi escolhida por traduzir um sentimento coletivo de: euforia e
alegria. Pelo encontro de amigos, pela possibilidade de dançar e ter minutos
de liberação das tensões cotidianas. Esta experiência nos é próxima,
principalmente como ritual de iniciação de passagem para uma fase da
vida onde algumas práticas são aceitáveis, como a independência para
5 Cidinho e Doca, Duda os encontros afetivos. Um evento interrompe este fluxo e se torna banal
e Taffarel, Rap do Fes- por tratar-se de mais um anônimo. É a ida ao baile que sela seu destino.
tival, exemplos de gale- Porque ele era “funkeiro”. Este artista é exemplo da forma como o território
ras que ganhavam mú-
sicas no festival de rap
passou a ser evidenciado nas letras e ao mesmo tempo problematizado pelos
da Furacão. frequentadores de bailes que se auto-definiam como funkeiros:
Na contramão da ordem? Cultura urbana, juventude e estigma na cidade do 25
Rio de Janeiro

Sei que já passei por tantas coisas ruins, mas me superei


e hoje eu sei que venci, Pois a vida é de momento mas
temos talento, Minha estrela vai brilhar em qualquer lugar,
Já pedi ao, meu bom Deus pra me dar uma luz, Pois não
somos nada nesta vida sem ter Jesus, Agradeço aos meus
fãs,por todo carinho, Quando olho para o lado eu sei que
não estou sozinho, Hoje eu voltei quero cantar, O funk,
seja em qualquer lugar, sou da zona oeste onde brilha
nossa luz, Eu sou Marcinho de Bangu, sou Bob Rum de
Santa Cruz. (Zona Oeste).

O parceiro de Bob Rum nesta composição, Marcinho, nasceu em Bangu6 e


como um grupo de outros mestres de cerimônia foi contratado pela equipe
Furacão 2000, o que à época representava inserção nacional através de
programas de rádio, coletâneas e presença na televisão. Esta exposição
que produziu reconhecimento teria também outra face: a rápida ascensão
e queda que configura este universo. Na realização de pesquisas sobre as
biografias, dois padrões foram percebidos: o primeiro fazia referência à
baixa escolaridade dos compositores de funk e o segundo, aos trabalhos
dos quais tiravam seu sustento. Alguns exemplos: MC Galo tinha a quarta

série e trabalhava como guardador de carros e apanhador de bolas de tênis
6 As composições no
em um hotel em São Conrado, Zona Sul carioca. Já o ícone do funk do samba também faziam
ano de 2006, Tati Quebra Barraco, era merendeira e tinha feito cursos de referências aos locais
corte de cabelo e tinturaria. Sabia escrever e ler, mas com muito “pouca que muitas vezes mar-
cavam toda a trajetó-
escolaridade”. Seu irmão Márcio era empacotador de supermercado, ajudante ria de um sambista. É
de servente, cozinheiro. Um dos funkeiros mais famosos, Cidinho, era o caso de Cartola, de
também empacotador de supermercado. MC Mascote, aos 10 anos, apanhava Noel Rosa e muitos
outros. Nestes casos o
bolas de tênis no hotel Sheraton. Já havia passado pelo tráfico no Vidigal samba foi um elemento
por curto período. Bob Rum trabalhara como ex-segurança da Telerj, MC que não só ironizava a
Marquinhos trabalhara como Office-boy. O próprio MC Leonardo, frisa com relação entre favela e
frequência que tem “só a quinta série”. E se não fosse o funk? “Seria do Estado, como fazia ma-
gistralmente Bezerra
bicho?”. Não, responde ele, mas acredita que o funk “ajudou muito”, pois da Silva, mas também
conheceu praticamente todo o Brasil fazendo apresentações com o irmão possibilitava integração
Júnior. Mas adverte que conseguiu seguir na carreira porque tornou-se taxista e conhecimento sobre a
favela. O lugar de onde
por alguns anos. E conciliava seu tempo entre este ofício que possibilitava falam os atuais canto-
maior flexibilidade de horários. Um dos ativistas mais conhecidos no cenário res tem com o território
do Rio de Janeiro, morador da Rocinha, fala da relação entre trabalhar no uma relação de defesa
de seu local de moradia
funk, viver este cotidiano e dar conta de outras tarefas: contra a estigmatização
imposta pela Cidade.
Dou aula em vários lugares de dança, porque estou Embora o fenômeno não
formando vários outros para dar prosseguimento a forma seja novo, é certo que se
intensificou nos últimos
como penso, o show que fazemos hoje é composto por anos.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


26 Luciane Soares Silva

alunos nossos. Mas não é fácil, muita gente parou, muita


gente morreu, muita gente virou bandida (muita não, a
minoria) por quê? Porque não tem, é a mulher precisando
de dinheiro, a família... Eu hoje vivo disto, mas quatro
anos, eu vivia de cortar cabelo. Tenho um filho de 19 anos,
minha mulher cobrava que as coisas estavam faltando.
Mas hoje somos respeitados no Brasil inteiro, somos
“zulu”nation. Reconhecidos.

Se vistos como uma “horda” indistinta, este grupo seria classificado por seus
atributos (moradia, escolaridade, emprego) como pertencendo à geração de
“funkeiros”. Estas foram as palavras empregadas em matérias do Globo,
principalmente em 1992, para referir-se aos grupos que frequentavam
as praias da Zona Sul nos verões do arrastão. Este processo de (des)
singularização estava na base da construção de imagens e discursos que
tratavam a ‘horda indistinta” como um perigo para a ordem urbana

A resposta dada pelo título da composição de Bob Rum e MC Marcinho resume


o estatuto de cidadania desta parcela da população: “Ele é só mais um Silva”.
Contudo, um dos aspectos de sua identidade ganhara visibilidade sobre
quaisquer outros que pudessem apresentar: trabalhador ou pai de família. E
este fato definia o estigma portado, estigma que não era “reversível” porque
era pouco provável que ascendesse socialmente saindo da favela, mudasse de
cor e arranjasse um emprego socialmente valorizado. Ainda assim, não poderia
apagar sua biografia em uma “nova vida” Este Silva padeceria a partir de
então, da classificação de “funkeiro”. E as consequências destas classificações
alterariam ainda mais as relações entre favela e asfalto.

“Baile funk em favela é reunião de vagabundos7”


A Lei 5.265 de autoria do ex-secretário Álvaro Lins, coloca uma série
de exigências para realização dos bailes. A permissão da Secretaria de
Segurança Pública condiciona a realização dos “bailes de comunidade”
à permissão do comandante de batalhão da área correspondente. Pequenos
donos de equipe de som, mais afetados pela proibição que as grandes
equipes, alegam que a resposta dos comandantes em geral é: “meu amigo,
7 Declaração do Co- faz um pagode, um forrozinho, qualquer coisa. Mas funk eu não vou liberar,
ronel Marcus Jardim,
em 2008 quando era eu não gosto e não libero”.
Comandante Geral da
Policia Militar do Es- Uma série de eventos em bailes na Baixada Fluminense e na Zona Norte
tado do Rio de janeiro.,
matéria de 07/02/2008 carioca seria tratada a partir de então como “ tererê entre funkeiros”
jornal O Globo. (CUNHA,1996, p. 205). O resultado da publicização diária de noticias
Na contramão da ordem? Cultura urbana, juventude e estigma na cidade do 27
Rio de Janeiro

envolvendo mortes relacionadas aos bailes, é esperado: a proibição. Um


dos desdobramentos deste processo plasmou-se na CPI do Funk8, entre
1999 e 2000. A Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, por intermédio
do presidente da CPI, Alberto Brizola, decretou o fechamento de 28
estabelecimentos onde ocorriam os bailes. De São Gonçalo à Cidade de Deus,
passando por Saracuruna e Rocinha, foram quarenta dias de suspensão. No
artigo 2º. da lei 3410 de 29 de maio de 2000, os clubes e locais fechados
em função dos bailes ficavam obrigados a instauração de detectores de
metal em suas portarias. Além disto, deveriam estar presentes policiais
militares do início ao fim do evento do baile. A Força Policial teria poderes
para interdição do baile, conforme artigo 5º. da mesma lei, caso houvesse
violência incentivada, erotismo, pornografia, ou corredor da morte. Também
seriam proibidas músicas de apologia ao crime e venda de bebidas alcoólicas
a crianças e adolescentes. A explicação para a morte de dez jovens, no Morro
do Turano, em 1995, era justificada pelo governador e pelo secretário como
“mortos que tinham ligações com o tráfico de drogas”.

A associação entre equipes de som e traficantes levou à prisão donos


de equipes como Rômulo Costa e Zezinho, dono da ZZ Discos. No caso
de Rômulo, uma agenda encontrada teria anotações suas sobre bailes
patrocinados pelo tráfico. Sobre este fato, de ligação entre tráfico e equipes
de som, Elias Maluco9, após admitir que patrocinava bailes em Vigário Geral,
diria em 1995 que

aquilo não tinha relação alguma com seus negócios. O


funkeiro é duro não tem dinheiro nem para pagar uma
cerveja. O pessoal financia os bailes porque é um lazer
para a comunidade. Seria legal que as autoridades fizessem
isto. Mas todo mundo gosta de funk e não tem dinheiro para
bancar um baile. Uma Super Furacão deve tá custando
r$ 4 mil. Um MC legal deve ta R$ 400. O movimento [o
tráfico] não ganha nem perde com isso. Só ganha a alegria
dos moradores. (ESSINGER, 2005, p.184). 8 Anexo A

9 Elias Pereira da Silva,


A associação entre baile funk e tráfico estreitou-se entre 1992 e 2002. Dez traficante que domina-
anos após o evento do arrastão no Arpoador, um novo evento produziria um va áreas como Ramos
efeito se não maior em termos de amplificação midiática, certamente mais (Complexo do Alemão)
e Penh (Vila Cruzeiro).
consequente, pois envolveria Governo Estadual, Governo Federal, Sindicato Conhecido por executar
dos Jornalistas e a maior rede de telecomunicações do País, a Rede Globo. com crueldade seus ad-
O baile funk é o cenário central do caso Tim Lopes, jornalista investigativo versários, foi preso na
Operação Sufoco após
da emissora que em incursão à favela Cruzeiro, no Complexo do Alemão, a morte do jornalista da
foi assassinado por traficantes. O jornalista teria recebido uma denúncia de Rede Globo, Tim Lopes.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


28 Luciane Soares Silva

moradores sobre exploração sexual e drogas nos bailes e esta era sua quarta
incursão a fim de conseguir “ boas provas” ou seja, imagens sobre o que
ocorria nos bailes. Em 2001, a reportagem “ Feira das Drogas” feita pelo
mesmo jornalista já havia colocado outros jornalistas em condições de risco.
O suposto responsável pelo assassinato seria Elias Maluco, principal líder
do Comando Vermelho em liberdade e considerado, a partir de então, como
um dos principais inimigos do Estado do Rio de Janeiro.

O caso instaurou discussões sobre ética investigativa e segurança dos


profissionais da mídia. As relações entre morro e imprensa mudaram. A
punição aplicada por traficantes para possíveis delações, tortura seguida de
morte, chocara o País. Neste momento vinha ao primeiro plano de discussões
públicas, incensadas por grandes canais te comunicação, o termo “Estado
paralelo” que passaria a integrar o discurso midiático e o discurso de muitos
especialistas em segurança pública chamados e responder a questão: “ Como
o Rio de Janeiro chegara a este ponto?”

Em fevereiro de 2008, o então futuro comandante do policiamento da Capital,


Coronel Marcus Jardim, afirmava solenemente que “iriam para dentro de
bandidagem”. Suas observações se referiam à implementação do PAC, Plano
do Aceleramento do Crescimento, que chegaria às favelas como o Complexo
do Alemão, onde 6 anos atrás teria ocorrido o assassinato de Tim Lopes,
evento limite que instaurara uma percepção de que os bailes eram lugares
de venda de drogas e práticas pornográficas.

Em 2008, a declaração de Jardim era indicio de uma política de segurança


pública marcada pelo combate frontal. Em declarações posteriores dissera
que a Policia Militar era o melhor “inseticida social”. Sua visão sobre bailes
era “Baile funk em favela é reunião de vagabundos”: Como comandante de
um batalhão ou agora de uma área de comando, não tenho poder para proibir
esses bailes, mas posso dificultar a sua realização10”.

10 O coronel afirmou Paralelo a este processo de constituição da figura do frequentador de baile


ainda que os eventos
são utilizados pelos
funk como um possível criminoso (realizada principalmente pela imprensa
criminosos para a ven- e pelos órgãos de segurança) podemos dizer que o funk se consolidou como
da de drogas. Marcus evento de grandes proporções, transcendendo o espaço da favela (uma das
Jardim já comandou os
batalhões de Alcântara
razões de preocupação para moradores externos a ela). Consolidado com
(7º BPM), de Niterói uma das principais fontes de lazer semanal de milhões de jovens em todo o
(12º BPM) e de Olaria Estado do Rio de Janeiro, sua produção a partir de 2000 tornou-se erotizada
(16º BPM). Em todas
as unidades, promoveu
por um lado e explicitamente de apologia ao crime em uma versão menos
ações contra os bailes. conhecida mas muito acessada: os funks proibidos.
Na contramão da ordem? Cultura urbana, juventude e estigma na cidade do 29
Rio de Janeiro

Se como afirmou importante autoridade do policialmente da capital do Rio


de Janeiro, o baile é” reunião de vagabundos” e se mais de meio milhão
de jovens têm no baile seu momento de lazer semanal, então este último
estigma, o de “funkeiro”, permite que se acentue a política de enfrentamento.
Como afirmou Jardim, em 2007, “cair para dentro da bandidagem” era a
única saída para diminuição da criminalidade urbana. É justamente neste
aspecto que a dimensão cultural de uma prática transforma-se em questão
de Estado. A justificativa para o combate a possíveis arbitrariedades,
reside no discurso já aceito por alguns setores da população, de que mortes
ocorridas em bailes (resultado de investidas dos órgãos de segurança pública
na favela) ou após estes, seriam decorrência do envolvimento com tráfico e
portanto, necessárias para segurança da população.

O caso do Morro da Providência, ocorrido em junho de 2008, colabora na


compreensão da direção de uma mudança qualitativa. O cenário é a chegada
de quatro adolescentes de um baile funk na Mangueira, acusados por
militares (sete soldados, três sargentos e um oficial) por desacato. Segundo
o delegado responsável pelo caso, foram encaminhados a um oficial superior,
mas liberados. Para que não perdesse a moral junto de sua tropa, o tenente
reuniu “seus subordinados” e perguntou qual a facção criminosa era rival
do Morro da Previdência. Um dos comandados disse que seria o Morro da
Mineira, no Catumbi, para onde os levaram. Os três jovens foram entregues
à facção rival, torturados, mortos e encontrados em um “lixão” da Baixada
Fluminense. Em depoimento, um dos sargentos do caso teria como reposta do
oficial responsável pelo caso, no momento de entrega no Morro da Mineira,
que “ não ia dar nada”. Os jovens, segundo afirmara o tenente mais tarde, foram
entregues como “um presentinho da Providência” aos traficantes da Mineira.

Os apelos pela presença do Exército, feitos pelo atual governador do


Estado do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho,11 exemplificam formas de
enfrentamento adotadas pelo Estado no combate da criminalidade. De
outro lado, o acirramento do ódio entre facções demonstra que a divisão da
Cidade por territórios do Comando Vermelho, Terceiro Comando e Amigos
dos Amigos, consolidou-se como uma realidade fatal. No meio destas forças,
o baile não poderia ser representado de outra forma senão como um espaço
material e simbólico, minado e disputado. Disputado tanto pelos que vivem
de sua renda: discotecários, donos de equipe, artistas, camelôs, como pelos
que agem em favor de seu fechamento.

A mudança qualitativa que deve ser tomada como problema para a Sociologia, 11 Ironicamente filho
de um dos maiores de-
pode ser apresentada em alguns pontos: a) se levarmos em conta que o fensores e pesquisado-
estigma só pode existir na interação, portanto, enquanto atributo relacional, res do samba carioca,

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


30 Luciane Soares Silva

importa mais perceber o caráter processual de sua construção, ou seja, como


a categoria funkeiro passa a representar um sinônimo de delinquência em
potencial; b) ampliando a utilização do conceito de Goffman, devemos
levar em conta que o estigmatizado não está plenamente sujeitado nesta
relação social. Se o lugar de origem é o elemento que, combinado com
raça e origem regional, produzirá esta relação de desigualdade, o lugar
pode funcionar também como ponto de afirmação de identidade do grupo12.
Uma das chaves para o entendimento do conceito de Goffman é a noção de
expectativa. O que se espera de um indivíduo ou grupo de indivíduos. No
caso do samba, ao menos deste que se tornou “ oficial” para a Cidade e para
o País, a interação entre artistas (A princípio, estigmatizados) e intelectuais
(a princípio “normais”) externos aos territórios de favela, proporcionava um
ajustamento entre prática e expectativa. Além disto, intelectuais produziram
a crítica positiva que defendia aqueles artistas dos ataques de uma parcela
da sociedade que não pretendia estreitar laços com a “ raia miúda”. Mesmo
assim, a importância de estudiosos, jornalistas como Sérgio Cabral (pai), era
decisiva no resgate de um grande sambista, no lançamento de outro ou na
constituição de um espaço de debate público sobre o assunto.

O simbolismo da praia do Arpoador poderia ser lido desta forma: aqueles


espaços, antes reservados a uma parcela restrita da população carioca,
foram tomados por “ hordas bárbaras13”. A aproximação proporcionada
pelas linhas de transporte Jacaré-Jardim de Alah (474), Méier-Ipanema
(455), entre outras, apenas presentificou estes grupos em um horário que
12 Mas isto ocorreu “contrariava as expectativas”. Expectativas desfeitas, a desvantagem da
com o samba cujo terri- moradia dos protagonistas do “ arrastão de 1992” é transformada em caso
tório “legítimo” eram os
morros, a Lapa .Lugares de polícia para aqueles que viram, no evento, um limite do problema da
tombados simbolica- violência urbana na Cidade.
mente como totens da
prática do verdadeiro
samba. Podemos dizer
É a partir daquilo que se diz deles, os moradores de favela que “ tomam” por
que a diferença reside algumas horas o espaço público da praia do Arpoador, que o estigma pode
na forma como ambos ser percebido. Em um primeiro nível de observação, reforça as percepções
se constituíram para a
que geram medo naqueles que vivem fora destes espaços; alimenta o que
Cidade.
mais tarde seria justificado como “ cidade partida”; colabora no processo
13 De onde elas teriam de migração em relação aos bairros que se “deterioram” pela proximidade
surgido? Provavelmente com as favelas.; acirra processos de desconfiança contínua entre ambas
sempre estiverem ali,
como garçons, domésti- as partes. Aqueles que se reconhecem como pertencendo à parte normal
cas, filhos de porteiros e (GOFFMAN,1958) da cidade e aqueles que tem acirrada a percepção sobre
motoristas. estas diferenças que, ao fim, seriam diferenças irredutíveis. No segundo nível
de observação, é possível ver nas letras produzidas a afirmação dos valores
Artigo
locais, daqueles que chegam das favelas da Zona Norte, dos subúrbios e da
Recebido: 26/05/2013
Aprovado: 02/07/2013 Baixada Fluminense, frente à sociedade que os estigmatiza.
Na contramão da ordem? Cultura urbana, juventude e estigma na cidade do 31
Rio de Janeiro

ABSTRACT: Considering the continuity of the slum as “social problem” in the Keywords: stigma,
city ordinance, the interaction between favela residents and non residents slums, youth, urban
becomes important point for the issues discussed in this article. In this case, it is order, violence
interesting to understand, as from events occurring in situations of face to face
interaction formed representations of certain groups. This article reconstitute
events in the 90s, realizing that this period is an important break with previous
views on slum dwellers in the city and suburbs of Rio de Janeiro, especially
the construction of the “funkeiro” as the enemy of urban order. The concept of
stigma is central to the arguments that will be presented. The article is based
on document analysis, interviews with patrons, artists and slum dwellers to
understand how the construction and subsequent criminalization of funkers
was decisive actions of the Secretariat of Public Security of the State of Rio de
Janeiro in the 90s and early 2000s.

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O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


32 Luciane Soares Silva

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(*) Camila Holanda Marinho é Socióloga, doutora em Sociologia pela Universidade 33
Federal do Ceará (UFC), professora Universitária da Faculdade Metropolitana da
Grande Fortaleza e pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência(LEV-
UFC). @ - [email protected]

Inquietações sobre
juventudes, experiências e
metodologias
Concerns about youth, experience and
methodologies

Camila Holanda Marinho*

RESUMO: O artigo objetiva produzir reflexões sobre os modos de vida de Palavras-chave:


jovens com experiência de moradia de rua. Percebo que a permanência nas Juventudes,
esferas públicas, apesar da rua também ser reconhecida por eles como um afetividades,
ilegalismos,
lugar de violência, produtora de um cotidiano degradante, ameaçador e
experiência.
hostil, intercorre a partir da constituição de laços de afetos estabelecidas com
pessoas, lugares e instituições que proporcionam estratégias de sobrevivência
e permanência nesses lugares. Sendo assim, optei narrar a trajetória de um
jovem interlocutor desta pesquisa que expressa a singularidade de uma cultura
juvenil, do mesmo modo que sinaliza como a rua pode ser compreendida
como um lugar de encontro de afetos.

I ntrodução
Este texto busca provocar algumas reflexões sobre a trajetória de jovens com
experiência de moradia de rua, propondo uma discussão a partir do entendimento
de que a rua é um lugar de exposição de performances das culturas juvenis,
portanto, ela também pode ser compreendida como um lugar de encontro de
afetos. Diante disso, entendo as juventudes como um conceito no plural, pois as
multiplicidades e diferenças que integram esses grupos devem ser destacadas
para evitar classificações homogêneas e estigmatizadoras. No caso das culturas
juvenis em questão neste artigo, ou seja, jovens com experiência de moradia

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


34 Camila Holanda Marinho

de rua, categorias como “experiência” e “nomadismo” são conceitos centrais


para o entendimento dessa condição juvenil, bem como para a análise da
produção de suas formas de sociabilidade, de interação social, de suas
narrativas e sentimentos sobre seus modos de viver.

Convido os leitores a compreenderem esses jovens como indivíduos que


nomadizam, transgridem e inovam não só trajetos, mas também modos de
agir e sentir, assim como Deleuze e Guatarri (1997) percebem o conceito de
nomadismo. Eles habitam as ruas de forma diferente, convertem a estética
e a moralidade dos lugares, criam roteiros inimagináveis e, algumas vezes,
imperceptíveis para aqueles que olham a cidade “sem reparar”, como
enuncia José Saramago em seu Ensaio sobre a Cegueira, desconsiderando
as transgressões de uso de uma determinada paisagem. Utilizo, também, o
conceito de experiência, entendido a partir de um debate entre Benjamim
(1987), Scott (1999) e Bondia (2002), para definir os jovens moradores de
rua. Com esse diálogo percebo que, por serem os indivíduos constituídos
discursivamente, a experiência é uma partilha, uma revelação, uma
transmissão de uma vivência que revela o sentido de sua própria existência. É
algo particular, relativo e subjetivo, pois duas pessoas, por mais que tenham
compartilhado o mesmo acontecimento, não possuem a mesma experiência.

Posto isso, reconheço como jovens com experiência de moradia de rua os


indivíduos que, em um determinado tempo de suas trajetórias de vida,
designaram a rua como uma referência de moradia. Desta forma, ficam por
algum tempo afastados de suas casas, utilizam os serviços de atendimento
institucionais e reinventam a vida privada em espaços públicos, tecendo,
assim, novas e diferentes redes de sociabilidade. De todo modo, considero
essencial perceber as redes que entrelaçam o cotidiano desse grupo social,
sejam elas de sociabilidade violenta ou afetiva, reconhecendo que parte delas
são relações fluidas e contingentes, e desconsidero um determinismo temporal
(com relação ao tempo de permanência nas ruas) e etário (desvinculados de
marcos legais) que os amarre a definições inflexíveis e inexoráveis. Portanto,
podemos percebê-los como um grupo que expressa uma cultura juvenil
singular e reveladora de experiências que nos possibilitam refletir sobre a
condição juvenil dos jovens moradores de rua da cidade de Fortaleza.

Para Machado Pais (2003), os diferentes sentidos que o termo “juventude”


tem tomado e as diferentes manifestações de sentido encontradas nos seus
comportamentos cotidianos, nos modos de pensar e agir, em suas perspectivas
sobre o futuro, nas suas representações e identidades sociais, compõem
paradoxos analíticos importantes para a reflexão das culturas juvenis. O
desafio, como indica o autor, é perceber a juventude não apenas como um
Inquietações sobre juventudes, experiências e metodologias 35

conjunto social cujo principal atributo é o de ser constituído por indivíduos


pertencentes a uma mesma fase de vida, mas sim compreender as culturas
juvenis como um conjunto social com atributos que os diferenciam. Como
sujeitos plurais. Portanto, uma passagem do campo semântico que toma a
juventude como uma “unidade” para o que a toma como uma “diversidade”.
Pais (2003), em seus estudos sobre as culturas juvenis, indica a importância
de decifrar os “enigmas dos paradoxos da juventude”, considerando as
seguintes indagações: 1) Os jovens compartilham os mesmos significados
sobre suas experiências cotidianas? 2) Se compartilham, quais são as
semelhanças? 3) Por que compartilham ou não, de forma semelhante ou
distinta, determinados significados?

As indagações sugeridas por Machado Pais foram fundamentais para as


problematizações que formulo sobre os modos de vida dos jovens com
experiência de moradia de rua. Esse grupo social também vive às voltas
de interpretações que homogeneízam suas trajetórias e experiências de
vida. Especialmente quando o senso comum classifica esses grupos,
unicamente, por suas práticas marginais e violentas. Percebi, através das
minhas observações em campo, das narrativas e performances dos jovens e
dos relatos das experiências com o atendimento do público infanto-juvenil
realizadas pelos profissionais das instituições interlocutoras, que existem
diversas formas de se viver e construir significados para a vida nas ruas.
Essas diferenças se dão tanto no âmbito etário como no interior dos grupos,
ou seja, são diferentes para cada indivíduo, em lugares distintos e em tempos
diferentes, seja ele criança, jovem, adulto ou velho.

Para decifrar esses modos de vida, sigo as orientações de José Machado Pais
(2005) e passo a observar e perambular com os jovens em seus “contextos
vivenciais cotidianos”, pois é no curso de suas interações sociais que eles
constroem formas de compreensão e de entendimento que se articulam
com formas específicas de consciência, de pensamento, de percepção e
de ação. Dessa forma, abre-se uma “análise ascendente dos modos de
vida dos jovens”, que parte da diversidade de mecanismos, estratégias e
táticas cotidianas significativas para entender como esses mecanismos são
investidos, utilizados e transformados, assim como suas possíveis involuções
e generalizações. Para o autor,

[...] alguns jovens movem-se no labirinto da vida numa


entrega ao acaso ou ao destino, enquanto que outros
atuam de forma estratégica, isto é, considerando várias
tramas possíveis que podem modificar-se à medida que
se confrontam com os imprevistos da vida, dado que

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


36 Camila Holanda Marinho

está sujeito a uma série de contingências, as chamadas


contingências da vida (PAIS, 2005, p.14).

1 Durante os anos de
Portanto, o percurso metodológico construído para a realização deste trabalho
2004 a 2007 tive a de campo deu-se a partir da observação participante que, em virtude
oportunidade de atuar de minha trajetória profissional1 e de inserção no campo de pesquisa,
como gestora pública na
possibilitou que ela fosse redesenhada como uma “observação vivencial”.
prefeitura municipal de
Fortaleza gerenciando, Nesse sentido, baseada em uma experiência despretensiosamente iniciada
entre outros, os progra- a partir de vivências ocorridas com um grupo de jovens moradores de rua,
mas de atendimento a da curiosidade despertada em mim sobre a tessitura de suas redes afetivas e
população infanto-ju-
venil moradora de rua das conversas formais e informais partilhadas com os jovens, possibilitando
em um órgão chamado que eu estivesse presente em diferentes e inusitados lugares, acompanhando
FUNCI. Nessa época, dessa maneira, suas trajetórias de vida. Dessa forma, reporto-me novamente
participava de grupos
de trabalho e fóruns de
a Walter Benjamim (1994) quando o autor reflete sobre a experiência,
discussão que possibili- compreendendo-a como uma vivência que não é nada se não for transformada
taram com que eu cons- em alguma narrativa compartilhável ao grupo ao qual pertenço. Portanto,
tituísse amplo campo a experiência é a arte de narrar algo que nos aconteceu, que nos afetou e,
de articulação com
instituições do gover- para Benjamim (1994), é a transmissão da narrativa dessa vivência que a
no e da sociedade civil transforma em experiência. Com isso, fiz uso de anotações anteriormente
que favoreceram minha realizadas quando o campo de trabalho2 ainda não era oficialmente um
inserção em campo e
engrandeceram minhas
campo de pesquisa3 e passei a incrementar essas anotações com os encontros
observações sobre o sistemáticos com os jovens com experiência de moradia de rua. Sendo assim,
modo de vida desse gru- realizei uma composição das “narrativas das narrativas” vivenciadas por
po de jovens.
mim vivenciadas e associadas as dos interlocutores, ou seja, os jovens,
2 Refiro-me às anota- indivíduos que experimentam essas múltiplas emoções, e por movimentarem-
ções e observações rea- se no terreno do acaso, das circunstâncias, das contingências, traçam mapas
lizadas sobre a vida dos culturais e afetivos singulares à sua experiência de vida. É com esse cenário
jovens com experiência
de moradia de rua du- que proponho uma reflexão sobre os afetos de rua através de expressões
rante o período de 2005 narrativas, performáticas e gestuais produzidas pelos jovens que possuem
a 2007, quando atuava experiência de moradia de rua. Atrevo-me a construir uma metodologia de
na gestão pública.
análise fundamentada na ideia de uma “narrativa das narrativas”, portanto,
3 Designo que meu privilegiando os relatos dos jovens e os meus próprios, na condição de
campo de pesquisa co- pesquisadora, sobre a polifonia de um campo de pesquisa.
meçou antes mesmo
de minha entrada em
um programa de pós- Pedro: um capitão do asfalto
-graduação, pois possuo
experiências vividas, Pedro é um capitão de areia, um capitão do asfalto. Conheci esse jovem no
observações realizadas
e anotações registradas ano de 2006 quando ele tinha 18 anos. Pedro nasceu em 1988, na cidade
anteriores ao período de Fortaleza. Sua família é formada ao todo por seis irmãos, sendo quatro
de 2008 a 2011, que da primeira relação conjugal de seu pai e os outros dois da segunda. Ele
são essenciais para o
desenvolvimento deste
tem pouco contato com os irmãos mais velhos. Sua mãe é falecida. O jovem
estudo . foi morar nas ruas pela primeira vez com 12 anos de idade em virtude de
Inquietações sobre juventudes, experiências e metodologias 37

ameaças sofridas em sua comunidade, as quais colocaram sua vida em risco.


Na rua ele dá início a uma trajetória de “entradas” e “saídas” em dois abrigos,
estabelecendo-se em longos períodos ininterruptos na rua. Dessa forma, o
jovem não concluiu o ensino fundamental. De todo modo, participou durante
uma temporada em que viveu em um dos abrigos de atividades de circo, o que
possibilitou que ele desenvolvesse uma apreciável habilidade com malabares.

Assim como Pedro Bala, um dos Capitães da Areia de Jorge Amado (2008),
esse Pedro também liderava um grupo de jovens que morava nas ruas do
centro da cidade de Fortaleza. No seu mundo onírico, percebi que o real e
o imaginário, a ordem e o caos, a dignidade e a marginalidade, o legal e o
ilegal se confundiam constantemente. De todo modo, constituí com Pedro
uma cumplicidade que fez com que ele gostasse da minha companhia e de me
contar suas “aventuras”. Sua história fez de Pedro um “interlocutor afetivo”,
figura essencial para as minhas reflexões sobre a trajetória de jovens com
experiência de moradia nas ruas. Além da vida na rua, o menino me contou
passagens de sua infância em um bairro da periferia de Fortaleza quando
morava com o pai, a madrasta e os irmãos.

Lembro de uma vez que cruzávamos o centro da cidade de Fortaleza, no


caminho entre uma praça e outra e, quando atravessamos uma rua bastante
movimentada. pedi para ele ter “calma”, para ir devagar. Foi quando ele me
disse: “Calma para quê? Eu sou como o tempo!” Sua fala me surpreendeu.
Entre a pressa que delineia os contornos das ruas do centro de uma cidade,
entre os nossos passos ligeiros para chegarmos logo ao nosso destino, o
jovem pronuncia essa frase, que de algum modo, estava harmonizada com
o ritmo das ruas, mas que fez com que tudo parasse ao meu redor e, diante
disso, lhe perguntei: “Como o tempo, por que, Pedro?”. Ele me explicou que
ele sempre estava em movimento, que não era suficiente para ninguém e
que “passava”. O tempo4, portanto, quando é tomado como uma identidade
narrativa por Pedro, representa algo que não se fixa, que não para, que não
espera, assim como o movimento nômade que marca os percursos das pessoas
com experiência de moradia de rua. Não podemos pensar a experiência de
vida desse menino desvinculada do seu “transcorrer”, seja pela cidade,
pela casa e pela rua, por vias marginais e afetivas, que de tempos em tempos
se modificam, se reconfiguram. Percebi como essa autodefinição possibilitava
compreender alguns meandros do modo de vida desse grupo juvenil, da mesma
4 Ricoeur (1997) com-
forma que proporcionava a percepção de como a polifonia das ruas produz preende o tempo como
sonoridades afetivas e amorosas e faz dela um lugar de encontro de afetos. uma expressão de iden-
tidade narrativa signi-
ficativa na medida em
Algo marcante nos relatos de Pedro sobre a sua família é sua admiração que esboça os traços da
pelo pai. A maior lembrança estava associada ao compositor Bezerra da experiência temporal.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


38 Camila Holanda Marinho

Silva5. O menino costumava cantar as músicas do compositor em momentos


de manifestações de felicidade. Dois anos depois de ter conhecido Pedro,
conheci seu pai em uma visita que fiz ao menino, na época ele estava
5 José Bezerra da Silva internado em uma clínica de recuperação de jovens usuários de drogas. Vi
foi um músico e compo-
sitor brasileiro de sam- nos olhos marejados do menino o amor e a admiração que ele dizia sentir pelo
ba, especialmente de pai, do mesmo modo que percebi como os dois tinham uma semelhança física,
partido alto. Em suas expressada especialmente através dos mesmos olhos verdes desconfiados.
composições, destaca-
vam-se histórias sobre Havia uma relação direta entre a afeição pelo pai e a ida para as ruas na
a vida cotidiana nas história de vida do menino. Pedro me contou sobre o motivo que o fez ir morar
favelas e suas questões nas ruas, pela primeira vez, aos 12 anos de idade. Sua história era marcada
sociais. Bezerra da Sil-
va morreu em 2005, aos
por situações de violência envolvida por vingança, ódio, moral e amor. Ele
77 anos, e foi sepultado vingou o pai em virtude de uma traição cometida pela sua madrasta com outro
no Rio de Janeiro. homem que morava na mesma comunidade que a família de Pedro. O menino
não aceitou ver o pai desonrado e os comentários de que ele era “corno6” e,
6 Referência popular
dada a uma pessoa que assim, o jovem fez justiça com as próprias mãos. Depois desse fato, Pedro
foi traída em um rela- teve que se refugiar nas ruas do centro de Fortaleza para não ser morto.
cionamento afetivo.

7 O nome do parque, na
Com o tempo, o jovem conheceu outras pessoas que lhe ensinaram estratégias
verdade, é Cidade da de sobrevivência legais e ilegais que circundam a vida nas ruas. Pedro
Criança devido à ins- costuma dizer que sentia uma grande vontade de conviver mais tempo
talação, em meados do
século XX, de uma es-
com o pai, mas sua profissão dificultava. O pai do jovem trabalhava como
cola pública primária. motorista de uma fábrica de vidros e, por isso, viajava com muita frequência
A nomenclatura Parque para outras cidades do nordeste brasileiro. Essas ausências também podem
das Crianças é mais ser compreendidas como mais uma fator desencadeador da saída de Pedro
usada para identificar o
lugar dado pelos mora- de sua casa, além disso, em decorrência da vingança cometida, o menino
dores de Fortaleza. Ele estava ameaçado de morte e não podia mais voltar para a sua comunidade.
foi denominado como
Parque da Liberdade,
em 1992, em comemo-
No meu primeiro encontro com Pedro, o vi sentando em um banco do Parque
ração ao centenário da da Liberdade, mas conhecido como o Parque das Crianças7, no centro da
proclamação da inde- cidade de Fortaleza. O jovem conversava com Mariana, uma jovem moradora
pendência brasileira.
de rua que na época era sua namorada, conforme a menina me informou.
Hoje funciona como
sede da Secretaria de Ele parecia escondido atrás de óculos escuros e de um gorro de um time
Direitos Humanos da de futebol, que, por ser o mesmo que o meu, proporcionou um mote para
Prefeitura Municipal. uma conversa. O jovem me falou que se chamava Ronaldo. Mariana, que
Anterior à implantação
dessa Secretaria, as po- eu já conhecia há mais tempo, fez as apresentações. Percebi um sorriso
líticas públicas de aten- debochado entre os jovens e percebi que Pedro não estava dando o seu nome
dimento para crianças e verdadeiro. Então, comecei a conversar sobre futebol perguntando o que ele
adolescentes da cidade
eram executadas pela
achava dos jogadores atuais e da atuação do time no campeonato. O menino
Fundação da Criança logo desistiu da conversa. Deveria achar que tanto eu como Mariana não
e da Família Cidadã sabíamos do que falávamos, pois todos os comentários feitos, ele restringia-se
(FUNCI), sediada nes- a responder de forma monossilábica. Uma característica de Pedro que desde
se mesmo parque até o
ano de 2009. esse primeiro encontro me chamou a atenção foi a sua atitude arredia com as
Inquietações sobre juventudes, experiências e metodologias 39

pessoas. Penso ser essa desconfiança uma forma de proteção utilizada pelos 8 Sobre a definição
de amor, ver Bauman
moradores de rua. Geralmente, as pessoas não se aproximam, preferindo (2004), Illouz (2011),
ficar distantes, conforme observamos os comportamentos de muitas pessoas Luhmann (1991), Ne-
com aqueles definidos como um “morador de rua.” ves (2007) e Simmel
(2006),De todo modo,
a descrição de Maria-
Mariana perguntou-me se eu achava os olhos verdes de Pedro bonitos. Eu na sobre o significado
respondi que sim. Nesse momento, percebi como os olhos de Mariana se dessa emoção associa
revelaram apaixonados e constatei que Pedro era o seu amor8, que outrora amor e desejo. Sendo
assim, Hannah Arendt
a menina tinha me confidenciado. Diante dessa colocação, Pedro decidiu (1997, p. 17) assinala
levantar-se e foi embora do parque, deixando Mariana em um banco da que “amar nada mais é
praça comigo. Perguntei se ela era apaixonada por Pedro e ela me disse do que desejar uma coi-
sa por si mesma”. Para
que ele era “o amor de sua vida” e que seu maior desejo era viver com ele a autora, o caráter es-
na rua. O romance dos jovens é marcado por separações e reconciliações. pecífico do amor é o de
Pedro não reconhecia Mariana como sua namorada. Diferente da menina não ser possuído, pois
que o considerava como sendo. Em diversas situações, ele me revelou que na eminência desse
acontecimento, o desejo
apenas “ficava” com a menina. Ele a conheceu quando estava na Barraca acaba, a não ser que o
da Amizade9 e ela na Casa das Meninas10. perigo de perder o que
foi adquirido (o desejo
de possuir) transforme-
Nessa época, Pedro estava próximo de completar 18 anos de idade e, diante -se em medo de perder.
disso, teria que sair do abrigo. É de conhecimento de grande parte dos
jovens com experiência de moradia de rua que a legislação brasileira, por 9 Uma organização não
governamental que exe-
meio do Estatuto da Criança e do Adolescente, possibilitava um atendimento cuta um serviço de aco-
em abrigos públicos ou das organizações não governamentais (ongs) até os lhimento institucional
18 anos de idade. No caso das ongs, é necessário que o jovem componha na modalidade abrigo
atendendo o público
o perfil de atendimento exigido pela instituição, porém no caso do poder masculino na faixa etá-
público, o atendimento tem que primar pela universalidade e equidade de ria de 12 a 18 anos in-
direitos. Portanto o atendimento ocorre independente de perfis e trajetórias completos.
diferentes11. Como muitas crianças e jovens, Pedro oscilou entre a vida na
10 Abrigo municipal
rua e “na casa” (nas instituições de abrigamento e em casa de familiares) ao vinculado a prefeitura
longo de seis anos. Diante dessas possibilidades, Pedro intercalou vivências de Fortaleza destinado
nas ruas e nos abrigos, (como a Casa dos Meninos12 e na Barraca da Amizade) ao atendimento do pú-
blico feminino com ida-
até atingir a maioridade. Além dos abrigos, a casa de um irmão mais velho des entre 12 e 18 anos
também era um refúgio de Pedro quando ele sentia o desejo ou a necessidade incompletos.
(frente a outras ameaças sofridas) de ficar longe das ruas. Depois de completar
11 Em várias cida-
a maioridade, Pedro perde o direito de viver nos abrigos e, desde esse período, des brasileiras muitos
o menino passou a ter a rua como a principal referência de moradia. abrigos ou serviços de
acolhimento institu-
cional executados pelo
O jovem se definia como um “morador de rua” ou como um dos meninos que poder público atendem
“moravam no Parque das Crianças”. Um dos elementos que os moradores de crianças e jovens em
rua utilizam para se identificar e para identificar o grupo ao qual pertencem diferentes situações,
seja os que estão “pro-
é por intermédio do lugar na Cidade onde costumam dormir ou passar a visoriamente” afastados
maior parte do tempo durante o dia. No centro da cidade de Fortaleza, as de suas famílias, seja os

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


40 Camila Holanda Marinho

que estão cumprimento praças representavam essas referências. Nessa época, havia cerca de vinte
(cumprindo? em cum-
primento? Ou é do jeito
crianças e jovens que se concentravam, durante o dia, dentro do Parque das
que está??) medidas Crianças13. Esse fato gerou uma grande polêmica na Cidade, pois lá também
socioeducativas. Se- era a sede do órgão responsável pelas políticas públicas municipais para a
gundo a legislação bra- infância e adolescência: a antiga Fundação da Criança e da Família Cidadã14
sileira, os atendimentos
dessas duas situações (FUNCI). Portanto, era uma praça que também sediava uma instituição
deveriam acontecer em pública, diante disso, a expectativa da população era que a “prefeitura
equipamentos sociais fizesse alguma coisa” para tirá-los de lá, adotando práticas de higienização
diferentes, mas não é
isso que a realidade re-
dos lugares, descartando tudo que pudesse enfear e colocar em risco a ética
vela em muitos estados e a estética da Cidade. Nessa época, sofríamos pressões, tanto da mídia como
brasileiros. dos transeuntes que cruzam o Parque na direção do centro da Cidade, que,
12 Abrigo municipal
através de diferentes formas de reclamação, pediam atitudes enérgicas dos
vinculado à Prefeitura profissionais responsáveis. Em meio a essa polêmica, os canais de TV e os
de Fortaleza destinado jornais da Cidade passaram a noticiar cotidianamente, durante cerca de um
ao atendimento do pú- mês, reportagens sobre esse grupo de jovens. O teor das notícias girava em
blico masculino com
idades entre 12 e 18 torno de uma ideia de ineficiência e conivência dos poderes públicos frente
anos incompletos. àquela permanência cotidiana dos jovens no Parque. A população queria
uma resposta rápida para o caso e, como gestores, nós tínhamos que dar.
13 Janice Caiafa
(1989), na obra “Mo-
vimento Punk na Ci- Observei que esse grupo estava bastante envolvido e frequentava com
dade: a invasão dos assiduidade as atividades de arte-educação realizadas pelos educadores
bandos sub”, sinaliza
questões importantes
sociais no Parque das Crianças, especialmente as atividades de circo.
para a compreensão de Pedro teve aulas de malabarismos quando viveu na Barraca da Amizade e
grupos juvenis “trans- era comum ouvir dele a adoração pela prática dos malabares. Os meninos,
gressores” que se en- com a orientação de um dos educadores, montaram um grupo de teatro
contram expostos na es-
fera pública. Segundo com linguagens circenses (faziam malabarismos vestidos de palhaços) e o
a autora, o nomadismo chamaram de “Mistral”, uma referência à marca de cigarros que consumiam.
desses grupos acontece O grupo foi formado por quatro jovens, incluindo Pedro, e eles apresentavam-
não pelo movimento em
se frequentemente nos eventos comemorativos e festivos que a Funci
si, mas pela intensida-
de de suas trajetórias, realizava. O envolvimento dos jovens nas atividades de teatro facilitava o
logo, não é um exercício interesse em outros atendimentos que lhes eram oferecidos, especialmente
de “andar por andar”, aqueles referente à redução de danos decorrente do uso de drogas e os
pois é a experiência do
momento de percorrer
atendimentos psicossociais, pois do mesmo jeito associaram as suas rotinas
que faz o caminho. O diárias no Parque à participação em outras atividades oferecidas pela Funci.
que foi definido como
“gangue” ou “bando” Durante essa convivência diária e cada dia mais enrolada nos fios de
pela autora é designa-
do pelo entendimento afetos e nas histórias desses jovens, observei que além de mim, os outros
de ser essa junção uma profissionais também estavam seduzidos pelas histórias e modos de vida de
experiência coletiva, Pedro e seu grupo. Um círculo de afetos15 circunscrito por cumplicidades
portanto, “tentar com-
tinha sido estabelecido. Durante o tempo em que viveram no Parque os jovens
preender seu funciona-
mento é acompanhar o declaravam estar “limpos” ou “de cara”, portanto, sem fazer uso recorrente
investimento do bando de drogas, especialmente do crack, que os deixavam alucinados e dispersos.
Inquietações sobre juventudes, experiências e metodologias 41

Diante de um novo comportamento, esse grupo de jovens foi, com o tempo, num agenciamento co-
ganhando a confiança (e o bem querer) de outras pessoas que também letivo; é assistir a como
o desejo se arma como
frequentavam o Parque das Crianças (os transeuntes, os comerciantes e outros
exercício de grupo,
profissionais da Funci). Em outros tempos, essas pessoas não costumavam se como estratégia de gru-
aproximar deles, pois, conforme observava enquanto estava nas atividades po, e ao que eles usam
com os jovens moradores de rua, muitos tinham receio de suas atitudes para fazê-lo circular, em
que outras estratégias
indóceis e arredias. Por estar “limpo”, Pedro esporadicamente dirigia-se se apoiam nessa expe-
até a casa de um irmão que morava na periferia da Cidade. Essa era uma rimentação, o que apro-
condição estabelecida pela esposa de seu irmão que, segundo o garoto, veitam do espaço urba-
no, que é o seu meio,
gostava muito dele, mas o proibiu de usar a sua casa como um refúgio no para esse exercício, o
momento em que a vida estava arriscada. Ela comunicou a Pedro que não que serve e ajuda, o que
queria sua casa ameaçada. O jovem, certa vez, disse-me que não gostava de emperra e constrange”
dormir na casa do irmão. Ele tinha receio em deixar o grupo que liderava (CAIAFA, 1989, p. 63).

sozinho e “desprotegido”, além do mais, ele considerava que os meninos 14 Atualmente esses
poderiam achá-lo um traidor, pois enquanto “ficava numa boa” na casa da serviços estão vincu-
família, os demais continuavam na rua, mesmo sendo essas “saídas da rua” lados a Coordenadoria
da Infância e Adoles-
acontecimentos extraordinários. cência da Secretaria de
Cidadania e Direitos
Com o tempo, Pedro estava cada vez mais focado nas atividades junto ao Humanos da Prefeitura
Municipal de Fortaleza,
grupo de teatro. O educador responsável pelas oficinas o convidou para que em outros tempos
acompanhá-lo, ministrando com ele as oficinas que aconteciam em outros agregava os serviços da
projetos sociais da Funci. Dessa forma, observei como ambos tinham Funci.
estabelecido uma parceria técnica e afetiva, pois os dois me revelaram que
15 Ver Machado Pais
estavam empolgados com essa atividade conjunta. Depois de um tempo, (2012).
Pedro mostrou-se tão assíduo e comprometido que resolvemos contratá-lo
para trabalhar na Funci como monitor de arte-educação junto às oficinas de 16 Mesclado é o nome
dado à mistura de crack
teatro que aconteciam em um projeto destinado à prevenção do uso de drogas, com maconha. Possui
projeto no qual Pedro também recebia atendimento. Na ocasião, percebi que um efeito menos frené-
o jovem tinha reduzido o uso de drogas, especialmente durante as tardes de tico do que o crack, mas
um tempo de duração
atividades no Parque das Crianças. Ao questioná-lo sobre isso, tendo em vista
do efeito mais longo
que a relação que constituímos permitia algumas perguntas de foros íntimos por causa da maconha.
e indiscretos, Pedro declarou que só estava fumando mesclado16 no final de Percebi em campo que
semana ou à noite, após o fim de seu “expediente de trabalho” na Funci. para muitos jovens
moradores de rua com
quem conversava, eles
Quando Pedro estava em processo de contratação, organizando os documentos não costumavam clas-
necessários, ele me perguntou se eu poderia acompanhá-lo até à casa do sificar a maconha como
uma droga, perceben-
irmão para ele pegar os documentos que estavam guardados. Eu prontamente do-a mais próxima do
aceitei o convite. Dessa forma, tive a oportunidade de conhecer seus outros cigarro. Em suas repre-
três irmãos, uma cunhada e sobrinhos, pois todos moravam na mesma casa. sentações, o cigarro não
Nesse dia, fomos eu e Juliana, a namorada de Pedro da época. Percebi como é classificado uma dro-
ga para os jovens mora-
aquela situação poderia representar também o momento de Pedro apresentar a dores de rua. Portanto,
namorada para a sua família. Juliana me falou que estava envergonhada com a um cigarro de maconha

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


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situação. Fiquei surpresa com o seu comentário, pois ela costumava portar-se
de forma bastante desinibida e corajosa. A jovem me confidenciou que ficou
constrangida pelo fato de ser uma “menina de rua”, uma namorada que Pedro
tinha conhecido na rua e ficou com receio de ser maltratada pela família do
namorado. Contrariando essa expectativa, quando nós três chegamos à casa
dos familiares de Pedro, fomos recebidos com simpatia e atenção de todos.

A casa era bem simples. Entramos por um quintal que dava na cozinha. Pude
ver que a casa era, na verdade, um grande vão dividido em cozinha, banheiro,
dois quartos e uma sala. Não havia porta nos quartos e os armários faziam
a divisória entre quartos e sala. Na sala, bem pequena, o lugar onde fiquei
durante a visita, havia um sofá de dois lugares, uma estante com uma televisão
e um aparelho de DVD. No dia de nossa visita, estava na casa um irmão com
a namorada e dois sobrinhos de Pedro. Percebi que eles ficaram felizes com
a chegada do menino e faziam perguntas para saber notícias sobre o irmão.
Eu e Juliana ficamos sentadas no sofá da sala, tomando um café servido pela
cunhada, enquanto Pedro foi buscar os documentos em um dos quartos. Ele
os guardava em uma gaveta onde também deixava alguns objetos pessoais,
não muitos, conforme me falou, apenas sua certidão de nascimento e algumas
roupas. Enquanto Pedro organizava seus pertences, ficamos conversando
com a cunhada, que, por sinal, elogiou a beleza de Juliana. Ela me contou
que tinha convidado Pedro para morar definitivamente com ela e os outros
irmãos, especialmente nesse momento em que Pedro tinha tornado-se um
“trabalhador”. A cunhada também falou que, segundo ela, o pai do jovem
ficaria orgulhoso com as boas notícias do filho caçula. Pedro conseguia ouvir
a nossa conversa do quarto onde estava e, ao voltar para a sala, percebi um
largo sorriso em seu rosto em virtude dos elogios que escutou de sua família.

Agradecemos a receptividade e fomos embora de volta ao Parque das Crianças.


misturado com crack Pedro não costumava ficar muito tempo nessa casa. Ele dizia que “tinha gente
é percebido por eles
como uma droga leve.
demais morando lá” e que a convivência entre os irmãos não era harmoniosa,
portanto, acontecia de forma conflituosa e permeada por discussões. Ele falou
17 O estigma, segundo que se sentia discriminado pela família por ser um “morador de rua”, logo,
Goffman (1988), é um em decorrência de um estigma17 que a sua trajetória de vida estabelece. O
atributo que produz um
amplo descrédito na menino costumava usar essa definição para falar de si. Apenas a cunhada e o
vida do sujeito. Em si- irmão que era casado com ela trabalhavam na casa. No dia de nossa visita, a
tuações extremas, é no- cunhada me disse que o pai de Pedro tinha alugado um quarto para morar em
meado como “defeito”,
“falha” ou desvantagem
um lugar que ela não sabia a localização exata. Com o pai, ele me disse que
em relação ao outro, aceitaria morar, mas esse convite nunca chegou ao menino.
constituindo-se como
uma discrepância entre
a identidade social e a
Antes de receber a proposta de trabalhar na Funci, Pedro também foi
identidade real. surpreendido com um convite feito pela mãe de Juliana: o de ir morar na
Inquietações sobre juventudes, experiências e metodologias 43

casa dela junto com a namorada. O convite deixou o garoto empolgado,


pois, conforme uma confidência que me fez, ele estava cansado de viver nas
ruas. Por outro lado, Juliana estava experimentando há pouco tempo essa
experiência e, por ter 14 anos de idade, ela sabia que tinha o “direito aos
abrigos” (assim como uma série de outros serviços de atendimento), dessa
forma, a menina entrava e saía com muita frequência dessas instituições,
especialmente da Casa das Meninas, o abrigo municipal. Percebi, ao observar
e conversar cotidianamente com o casal, que Pedro teve bastante trabalho
para convencer a namorada, mas, com o tempo, ela aceitou e os dois passaram
a morar no quarto de Juliana, que ficava na casa de sua mãe.

Nessa época, fui convidada por eles para conhecer a nova moradia do casal.
O quarto ficava na frente e tinha uma janela que dava para a rua, mas os
jovens confessaram-me um incômodo: o quarto não tinha porta. Impossível
não fazer uma analogia entre casa, porta, privacidade, o inverso do que
se tem na rua, onde os momentos de intimidade aconteciam em lugares
pouco movimentados, longe de pedestres, à noite e em cabanas feitas com
os papelões que utilizam para dormir. Juliana reclamava com a mãe a falta
da porta, pois a privacidade era um dos atrativos de viver na casa. O quarto
era pequeno e havia nele uma cama de casal, uma rede e um armário. Como
Juliana não o ocupava, em decorrência de sua trajetória na rua, seu quarto
me passou a impressão de ser um quarto de hóspedes, um lugar desocupado,
sem rotina, sem pertences pessoais que pudessem identificar o seu dono.

Pedro não costumava falar sobre seus sentimentos por Juliana. Suas
declarações eram raras, tímidas e sem muita profundidade. A percepção de
18 Sofia Aboim (2009)
seus sentimentos pela namorada acontecia através de gestos e comportamentos, destaca que o amor é,
especialmente pelo cuidado e carinho que ele explicitamente demonstrava na maioria dos casos,
por ela. Juliana frequentemente brigava com Pedro e terminava o namoro. O subjetivamente vivido
como um processo di-
jovem, nessas ocasiões, procurava por ela em busca de uma reconciliação. Ele nâmico sujeito a mo-
declarava que já estava ficando acostumado com o fato de Juliana terminar dificações ao longo do
o namoro, e que não levava isso a sério, pois considerava a namorada muito tempo de convivência e
“teimosa”. Pedro conheceu a menina no Parque das Crianças e logo se da rotina. Desse modo,
esse sentimento resul-
mostrou interessado. Eu pude acompanhar o início desse relacionamento. ta de uma trajetória a
Quando estavam juntos, Pedro demonstrava seu afeto beijando e abraçando dois, inscrita por um
frequentemente a menina. Era fácil perceber o orgulho que sentia ao andar hibridismo que enuncia
de mãos dadas com a namorada pelas ruas do centro da Cidade, intitulando-a afeto e cotidiano como
dimensões cúmplices.
como “sua mulher”. A forma como ele tratava Juliana era diferente da forma Nesse sentido, o fato de
como tratava Mariana. Ele era bastante atencioso e carinhoso e estava sempre Pedro orientar o cotidia-
na companhia da namorada, apesar das discussões e desentendimentos no de vida na rua para
as namoradas dava ao
que levavam a garota a terminar o namoro. Eu costumava dizer para Pedro
jovem um interessante
que ele era “louco” pela menina. Nesses momentos, ele dava uma grande atributo de conquista e
gargalhada, mas não negava a minha afirmação18. vinculação amorosa.

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44 Camila Holanda Marinho

Nas conversas que tive com jovens moradores de rua e nas observações
realizadas em campo, percebi que existe um código semântico que diferencia e
classifica as relações afetivas entre os casais. Quando se atribui a definição “ela
é minha mulher” ou “ele é o meu macho19”, significa que o relacionamento é
mais sério do que o namoro e similar a um casamento. Outra expressão utilizada
pelos jovens era que eles “estavam juntos” ou que “tinham se juntado”, outra
analogia para a definição de namoro. Quando questionava sobre as práticas
sociais que designavam o “estar junto” na rua, os jovens me explicaram que
tinha uma relação com o fato dos casais dormirem juntos, no mesmo pedaço
de chão e ou sob o mesmo papelão, assim como um reconhecimento do grupo
ao casal os identificando como tal. Neste caso, Juliana era a mulher de Pedro e
Pedro o “macho” dela. Portanto, Pedro tinha “se juntado com Juliana”. O amor
que Pedro demonstrava sentir por Juliana ressoava pelo Parque das Crianças
em forma de atitudes e gestos de carinho, portanto, o jovem produzia códigos
de comunicações simbólicas capazes de evidenciar seus sentimentos20.

Um indício de seu afeto era o olhar (de sempre) marejado direcionado à


menina. Pedro “entregava-se” pelo seu olhar quando estava na companhia
de Juliana. Em uma rara situação de confidência amorosa, Pedro me contou
que para namorar Juliana tinha que ter muita paciência, pois a menina
mudava de opinião e de atitude com frequência e ele nunca sabia o que
esperar dela. Na época em que Pedro estava morando com a namorada na
casa da mãe da menina e trabalhando na Funci, o casal ia todos os dias
juntos até o centro da Cidade. Enquanto o menino estava em sua sala de
trabalho, Juliana ficava perambulando pelo Centro. Pedro dizia que isso
o preocupava, pois, segundo ele, Juliana, quando ficava sozinha, tinha o
hábito de “se meter em algum foguete”, ou seja, envolver-se em alguma
confusão ou situação arriscada e ilegal.

Aparentemente, esse era um momento de tranquilidade na vida de Pedro,


pois ele estava trabalhando, tinha “sua mulher” e estava “limpo” há muito
tempo. Porém, o jovem me relatou um ocorrido que o desagradou. Em
uma sexta-feira, ao sair do trabalho, passou na casa do irmão para rever a
família antes de ir para a casa da mãe de Juliana. Lá, ele trocou de roupa,
19 Macho é uma defi- pois a cunhada disse que poderia lavar suas roupas e o seu tênis, e disse
nição popular cearense que o menino poderia voltar na segunda-feira, depois do trabalho, para
para designar homem. recebê-los limpos. Ele foi, mas não encontrou mais o seu tênis. Um dos
Nesse caso, é possível
fazer uma referência à
irmãos tinha vendido, e Pedro disse-me que certamente ele o negociou no
definição de marido ou comércio de drogas. O jovem declarou-se bastante chateado com o ocorrido
cônjuge. e disse que não voltaria novamente àquela casa. Perguntei para Pedro se
seu distanciamento e recusa em não viver nessa casa era devido a algum
20 Ver Luhmann
(1991). conflito com esse irmão. Ele me disse que sim, pois o irmão era envolvido
Inquietações sobre juventudes, experiências e metodologias 45

com o tráfico de drogas e isso poderia lhe causar problemas, especialmente


agora que “estava limpo”, sendo assim, ele não queria aproximação com
nada e ninguém que envolvesse o tráfico e o consumo de drogas.

Pouco tempo depois do incidente do “desaparecimento” do tênis, eu estava


entrando no Parque das Crianças e fui abordada por uma assistente social
que trabalhava com Pedro. Ela também o atendia no mesmo programa de
redução de danos. Essa profissional informou-me que seria importante
remanejar Pedro para outro projeto, pois ele estava sendo ameaçado de
morte no centro da Cidade e sua vida estava em risco. Fiquei assustada e
lamentei o fato de o menino ter que mudar de projeto, saindo de perto das
pessoas que acompanhavam sua trajetória de forma mais cúmplice e próxima.
Pensei que ele pudesse não ser bem aceito no novo lugar. Diante disso, Pedro
foi remanejado e começou a trabalhar como monitor das oficinas de arte-
educação em um projeto que atendia adolescentes que estavam cumprindo
medidas socioeducativas de liberdade assistida21 em um bairro distante
do centro da Cidade. Diferente de minha suposição, ele foi bem recebido
noProjeto e tinha bom relacionamento com os demais profissionais.

A permanência de Pedro não durou muito nesse novo programa, pois logo
após sua transferência ele me procurou novamente. O jovem me disse que,
no dia anterior, quando estava saindo do seu local de trabalho a caminho da
casa da mãe de Juliana, ele encontrou no terminal de ônibus com um antigo
inimigo que o tinha jurado de morte na época em que ele morava com a
família na casa do pai. Pedro declarou seu receio, pois esse jovem tinha visto
seu crachá da Prefeitura e, desse modo, sabia onde ele estava trabalhando e 21 Segundo o Estatuto
por isso poderia colocar em risco demais profissionais que trabalhavam com da Criança e do Adoles-
cente (ECA), o cumpri-
ele caso fosse fazer um acerto de contas. Pedro me confidenciou que essa rixa mento da medida socio-
estava relacionada com a vingança em nome do pai que cometeu no passado. O educativa de liberdade
menino que encontrou no terminal de ônibus era irmão da vítima da vingança assistida configura-se
como uma alternativa
arquitetada por Pedro. Rapidamente, providenciei junto com a coordenação do ao regime de privação
programa de medidas socioeducativas o remanejamento de Pedro, que retornou de liberdade aplicada
ao projeto anterior ao qual estava vinculado no centro da Cidade. Como o jovem a jovens entre 12 e 18
declarou que a rixa que teria ocasionado sua mudança de lugar de trabalho anos de idade que co-
meteram algum tipo de
não existia mais, ele poderia voltar a trabalhar no antigo projeto. ato infracional de pouca
gravidade. Essa medida
Nessa conversa Pedro me revelou que não estava mais namorando Juliana tem período mínimo de
seis meses e máximo
e, sendo assim, ele tinha voltado a viver nas ruas. O jovem comprometeu-se de três anos e sua exe-
a alugar um quarto no centro da Cidade ou a retornar à casa de seu irmão. cução é realizada pelo
Coloquei essa exigência como uma forma de permanência dele no quadro poder municipal, pelo
poder judiciário ou por
de funcionários da Funci. Com o tempo, as notícias que recebia de Pedro organizações da socie-
não eram boas, pois ele começou a faltar o trabalho com muita frequência, dade civil.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


46 Camila Holanda Marinho

ficando dias sem aparecer. Quando aparecia, ele dizia que estava com a família,
ora na casa do irmão, ora com o pai em uma casa nova que ele havia alugado e
convidado o menino para ir morar com ele. A presença de Pedro foi ficando cada
vez mais inconstante e o menino ficava dias “desaparecido.” Pairava entre os
profissionais uma angústia em perceber que Pedro estava “se desligando” das
atividades que compunha seu cotidiano no Parque das Crianças. Pensávamos,
na época, que estávamos “perdendo” Pedro. Essa designação “perder” é
uma expressão recorrente na esfera institucional, pois significa que um jovem
está “desistindo” de algum tipo de atendimento e retornando ao mundo da
ilegalidade. Portanto, era essa a apreensão das pessoas sobre Pedro, na época.

Logo recebemos a confirmação que afirmou a sensação de que “perdíamos” o


menino. O vigia noturno que trabalhava no Parque das Crianças nos revelou
o motivo das ausências de Pedro. Ele relatou para mim e para os outros três
profissionais que acompanhavam o garoto que o menino estava pulando
o muro do Parque para dormir durante a noite, apesar de saber que isso
era algo proibido. Pedro também estava sendo acusado de cometer alguns
roubos no centro da Cidade. O vigia contou que, ao interpelar Pedro quando
o encontrou dormindo, o jovem mostrou o crachá da instituição dizendo que
era funcionário e que podia entrar quando quisesse. O vigia assumiu que
usou a força para colocar o jovem para fora, não permitindo que ele ficasse
lá dentro. Depois desse flagra, Pedro não apareceu mais e, diante disso,
tivemos que “desligar” o jovem do vínculo profissional que ele tinha com a
Instituição. A notícia que tive ao perguntar aos amigos de Pedro por onde
andava o menino é que ele estava “roubando por outras áreas”.

Só voltei a encontrar novamente Pedro cerca de um ano depois desse seu


desaparecimento, quando fui com os mesmos profissionais que trabalharam
com ele na Prefeitura visitá-lo no em uma casa de internação que atende
jovens usuários de drogas em Fortaleza. Pedro deu um longo abraço em cada
um de nós, mas olhou pouco nos nossos olhos, permanecendo a maior parte
do tempo de cabeça baixa e de mãos dadas com o pai. Ele não conversava
como antes, quando relatava com detalhes passagens de sua vida e de seu
cotidiano. Nesse momento, ele apenas respondia nossas perguntas de forma
monossilábica. Parecia que sentia vergonha ou que estava constrangido com
a nossa presença. Perguntei se ele tinha gostado da nossa visita. Ele não
respondeu, mas olhou para o grupo que estava em torno dele, formado por
mim, os dois profissionais da Funci, a cunhada e o pai, e pediu desculpas.
Nessa ocasião, informamos a Pedro que Mariana anunciava a todos que ele
era o pai do filho dela: “Se ela tá dizendo!?” Essas foram as únicas palavras
proferidas por ele sobre a notícia. Com isso, o menino assumiu a paternidade
da criança. Antes de irmos embora, ele pediu para ficar sozinho com o pai.
Inquietações sobre juventudes, experiências e metodologias 47

Nesse dia, também soubemos que o pai continuava viajando e que Pedro
não foi morar com ele, conforme o menino havia nos dito após sair da casa
da mãe da namorada. Despedi-me de Pedro e sua família e fui embora. Esse
foi o meu último encontro com o menino.

Pedro não ficou muito tempo nesse lugar e “fugiu” da instituição, “desistindo
do atendimento.” Após essa fuga, ninguém mais encontrou Pedro. Os jovens
moradores de rua do centro da Cidade que o conheciam nos disseram que ele
pegou uma carona e foi para a Bahia. Essa era a versão de muitas pessoas sobre
o seu paradeiro. Confesso meu encantamento com esse destino e prefiro pensar
que o Pedro do Ceará foi encontrar com o Pedro Bala da Bahia, um dos “Capitães
da Areia” de Jorge Amado. Ele deve ter se juntado ao “bando” de meninos
que são, “na verdade, os donos da cidade, os que a conheciam totalmente, os
que totalmente a amavam, os seus poetas” (AMADO, 2008, p. 29). Imagino o
Pedro daqui junto com o Pedro Bala de lá, acolhido pelo Professor, por Dora,
por João Grande, pelo Gato, Boa-Vida, Sem-Pernas, Volta-Seca, pelo Querido
de Deus, entre outros tantos habitantes de um certo trapiche à beira-mar, e
dessa forma, recontar sua história com outros com diante do mesmo enredo.

Pedro costumava dizer que só sairia da rua se Juliana fosse com ele. Como se
só pudesse mudar o seu destino se a sua namorada compartilhasse o mesmo
desejo. Mas Juliana tinha outros planos. Pedro nunca fez essa proposta para
Mariana. Ela frequentemente dizia para todos que faria qualquer coisa
pelo amado. Mariana declarava que “mudaria de vida” caso formasse uma
família com Pedro. No entanto, era Pedro quem tinha outros planos e admitiu
em diversos momentos que não era apaixonado por Mariana. Pelo onirismo
que circunda as histórias contadas por muitos jovens moradores de rua, na
confusão entre realidade e sonho que marcam os trajetos e os desejos desses
jovens, entre os ilegalismo e as afetividades que compõem suas trajetórias
de vida nas ruas, considerei por muito tempo a hipótese de que Pedro foi
morar em Salvador na Bahia e, diante disso, consagrou a sua trajetória como
um capitão da areia. Tempos depois soube de outra versão sobre o destino do
menino. Uma versão desanimadora que anuncia um destino que muitas pessoas
que se deixam “viajar” nas histórias dos jovens com experiência de moradia
de rua não gostariam de revelar: ele foi preso por tráfico de drogas e esperava
pelo seu julgamento em um presidio da região metropolitana de Fortaleza.

Alguns apontamentos finais


O cotidiano de algumas comunidades mais pobres das cidades brasileiras
é delineado, nos dias atuais, por conflitos em virtude do comércio de
drogas e de armas (SÁ, 2011). Por conseguinte, um número expressivo de

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


48 Camila Holanda Marinho

crianças e jovens envolve-se nessas atividades, o que ocasiona conflitos entre


comunidades rivais, assim como entre os integrantes de um mesmo grupo
criminoso. Não raro, observa-se nos discursos de jovens moradores de rua
que eles são ameaçados (inclusive de morte) nas suas comunidades de origem
e isso impossibilita seus retornos a esses lugares, assim como a convivência
com seus familiares, assim como narrei na trajetória de Pedro. Além dos
conflitos comunitários, os jovens também destacam os conflitos familiares
como situações que tornam o cotidiano tenso para parte deles, sendo assim,
a rua passa a representar um refúgio, uma referência de uma rotina diferente
e menos conturbada do que aquela em que eles estavam acostumados a viver.

Além das formas de repulsão ocasionadas por conflitos familiares e


comunitários, que fazem com que os jovens estabeleçam a rua como uma
referência de moradia, o entendimento da complexidade desse fenômeno
social se dá através da compreensão da esfera subjetiva que passa a apontar a
constituição de laços de fixação à vida nas ruas. Percebo que a permanência
nas esferas públicas, apesar da rua também ser reconhecida por eles como
um lugar de violência, produtora de um cotidiano degradante, ameaçador e
hostil, intercorre a partir da constituição de redes afetivas estabelecidas com
pessoas, lugares e instituições que proporcionam estratégias de sobrevivência
e permanência na rua. Nesse sentido, reafirmo a designação de que a rua
é um lugar de encontro de afetos. Conforme assinala Le Breton (2009),
as emoções podem ser compreendidas como modos de afiliação a uma
determinada comunidade social. Para o autor, cada emoção sentida oferece
diversas possibilidades de interpretação sobre o que sentem os indivíduos e
o que percebem com relação à atitude dos outros sobre eles. Nesse sentido,
esse grupo de jovens define-se como “moradores de rua” ou como os que
“vivem nas ruas”, portanto, esses termos são os mais recorrentes utilizados
nas narrativas desses jovens ao designarem suas identidades.

Diante disso, convido novamente os leitores deste artigo para compreender


os jovens com experiência de moradia de rua como narradores de histórias e
trajetos que desenham uma paisagem afetiva peculiar da cidade, assim como
Pedro fez ao reinventar sua vida nas ruas de Fortaleza. Os percursos desse
grupo de jovens, conforme sinalizo em passagens recorrentes deste texto,
são demarcados por ambivalências e ambiguidades. Para algumas pessoas,
a percepção de que eles tecem fios de afetividade e amorosidade por si só
representa uma contradição. De modo geral, a compreensão desse grupo
social costuma acontecer a partir de trajetórias marcadas pelas situações de
violência nas quais estão inseridos. Afasto-me da centralidade da violência
pura ao narrar modos de vida nas ruas, apenas faço a opção analítica de
situá-los a partir da tessitura de laços de afetividades que, a meu ver, produz
possibilidades de fixação à rua e sinalizam expressões de culturas juvenis
Inquietações sobre juventudes, experiências e metodologias 49

que demarcam as experiências contemporâneas de sociabilidades desses


grupos sociais, especialmente com relação às trajetórias afetivas e sexuais.

A circulação como uma marca de suas trajetórias de vida não anula suas
vinculações afetivas e sentimentais, pois essas ligações são reveladas em seus
discursos e observadas na forma como interagem com as pessoas e os lugares.
No entanto, devem-se compreender as vinculações a partir de suas intensidades
e da construção de significados que elas conservam na vida cotidiana dos
jovens que vivem nas ruas, pois, ao se desvincularem de experiências e
situações anteriores, orquestradas no mundo da casa, eles vinculam-se a novas
referências que possibilitam modos de permanência na rua. Portanto, essas
conexões apresentam-se a partir da dinâmica peculiar dos lugares onde se
encontra fixado esse grupo juvenil, que pode apresentar formas ora mais sólidas
ora mais fluidas, mas que existem e dão sentido aos novos percursos trilhados.

Sobre a forma como atribuem significados às emoções desencadeadas em


suas trajetórias amorosas, os jovens que vivem nas ruas sinalizam questões
que dialogam com elementos demarcadores dos relacionamentos afetivos
e sexuais na contemporaneidade. Amores são vividos de formas “fluidas”,
“contingentes”, “erotizadas” e “romantizadas”, nem mais nem menos
excêntricas do que as experiências vivenciadas por indivíduos que não moram
nas ruas. Em diversas situações, observei que o “amor romântico” situa-se
como o ideal de amor a ser experimentado por muitos jovens e, diante disso,
destaco essas histórias, como a de Pedro, nas quais esse tipo específico de
configuração amorosa foi ressaltado nos discursos e nos comportamentos
observados em campo. O amor veste-se de um signo impulsionador das
relações sociais que estabelece códigos de comunicação (LUHMANN,
1991) mediadores e manipuladores de significados comuns aos indivíduos
envolvidos em uma relação amorosa.

Sendo assim, apaixonar-se ou namorar alguém que também estabelece a


rua como uma referência de moradia torna a permanência nesses lugares
mais atraente e interessante. Neste sentido, entendo que os afetos de rua
são emblemáticos dos modos de filiação e vinculação às ruas, outorgando
significados que recorrentemente são imperceptíveis aos olhares estrangeiros,
indiferentes e desatentos, que muitas pessoas destinam a esses lugares e
Artigo
àqueles que o habitam e o referenciam a partir das experiências vividas e Recebido: 20/10/2012
partilhadas sob a luz de um caleidoscópio de emoções. Aprovado: 20/11/2012

ABSTRACT: The intention of this article to produce reflections on the ways of Keywords:
life of young people with experience of housing street. I realize that staying Youths, affectivity,
in the public sphere, despite street also be recognized by them as a place illegalities and
experiences.
of violence, producing a daily demeaning, threatening and hostile, happens

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


50 Camila Holanda Marinho

from the formation of bonds of affection with established people, places and
institutions that provide survival strategies and stay in these places. Similarly,
I chose to narrate the trajectory young speaker of this research that expresses
the uniqueness of a youth culture in the same way that indicates how the street
can be understood as a meeting place of affection.

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O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


(*) Aparecida de Cássia Oliveira Lima é Mestranda em Gestão Social, Educação e 53
Desenvolvimento Local (Centro Universitário UNA). Especialista em Informática na
educação (IEC/PUC-Minas), Graduada em Matemática (PUC –Minas) e professora do
Ensino Superior e Ensino Médio. @ - [email protected]. Raquel Garcia Gonçalves
é Arquiteta e Urbanista; Doutora em Planejamento Urbano e Regional (pelo IPPUR/
UFRJ). Professora efetiva do Departamento de Urbanismo da Escola de Arquitetura da
Universidade Federal de Minas Gerais. @ - [email protected]

Projovem Urbano:
contribuições da gestão social em sua avaliação

Projovem Urbano: contributions of social


management in your assessment

Aparecida de Cássia Oliveira Lima*


Raquel Garcia Gonçalves*

RESUMO: O presente artigo é fruto de reflexões iniciais advindas de uma Palavras-chave:


pesquisa em andamento, que busca realizar uma análise sobre o fenômeno Projovem Urbano;
Juventudes; Política
da evasão em um programa do Governo Federal, intitulado Projovem Urbano,
Pública; Gestão
no município de Betim – Minas Gerais. Esse programa foi desenvolvido para Social; Avaliação.
atender jovens, de 18 a 29 anos, que não completaram o ensino fundamental e
que se encontram em situação de vulnerabilidade social. Assim sendo, busca-
se contextualizar a conjuntura sócio econômica e especificidades do público
a que é destinado. Com intento de trazer a reflexão sobre a possibilidade
da avaliação como uma ferramenta poderosa para balizar ações exitosas
que atendam as necessidades dos usuários desse programa, faz-se uma
abordagem sobre os princípios e fundamentos da Gestão Social incorporados
aos processos avaliativos e, como esses podem contribuir para valorizar,
melhorar e tornar mais efetivos os processos de participação dos sujeitos
envolvidos em um programa social. Nesse sentido, o presente trabalho tem
como objetivo discutir os limites e possibilidades dos processos avaliativos do
Programa Projovem Urbano e apresentar as contribuições da incorporação
dos princípios e valores da Gestão Social nesse processo, visando a amenizar
a situação recorrente da evasão.

I ntrodução
Este artigo é fruto de reflexões iniciais advindas de uma pesquisa bibliográfica
integrativa e documental, realizada para fundamentar uma análise sobre a
evasão em um programa do Governo Federal, intitulado Projovem Urbano,
implantado no município de Betim – Minas Gerais. Este programa é destinado

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


54 Aparecida de Cássia Oliveira Lima
Raquel Garcia Gonçalves

e estruturado especificamente para atender jovens entre 18 a 29 anos que


não concluíram o ensino fundamental. Observa-se através de estudos e
avaliações realizadas, que o fenômeno da evasão aparece de forma recorrente
no Programa e, com elevados índices, em todas as regiões em que esse atua,
tornando imprescindível uma análise sobre o tema e, ao mesmo tempo, uma
busca por formas metodológicas de implementação e avaliação a partir de
concepções diferentes das já utilizadas.

Neste sentido, este estudo tem como eixo norteador de suas reflexões os
fundamentos da gestão social, e como estes podem permear e direcionar os
processos avaliativos do Programa, partindo do entendimento de que possa
ser uma ferramenta local de conhecimento e envolvimento dos diversos atores
e beneficiários. Desta forma, tenta-se enfocar a avaliação como um meio de
participação e um mecanismo possível para alcançar as reais necessidades
dos beneficiários de programas sociais. A partir destas ideias, o presente
trabalho tem como objetivo discutir os limites e possibilidades dos processos
avaliativos do Programa Projovem Urbano e apresentar as contribuições da
incorporação dos princípios e valores da gestão social nesse processo, visando
a amenizar a situação recorrente da evasão.

Para tanto, faz-se necessário compreender as bases ideológicas em que


o programa Programa Projovem Urbano está fundamentado. No sentido
de configurar os desafios enfrentados por uma política pública de caráter
social e que tem, como foco, jovens em situação de vulnerabilidade social,
procura-se discorrer sobre a interconexão entre desigualdade, exclusão e
educação e, neste contexto, como se apresenta as juventudes e os processos
de vulnerabilidade que podem vir a resultar na exclusão social de um jovem.

Após o entendimento das especificidades que envolvem o público a que se


destina, as características do Programa e suas vertentes servem como base
para desvelar os princípios metodológicos, ideológicos e suas concepções
políticas sobre os quais o Programa se baseia e, desta forma, sobre quais
premissas e intenções estão pautadas suas ações. Desse modo, faz-se uma
breve descrição do programa Projovem Urbano.

Em seguida, busca-se elucidar a importância de processos avaliativos


locais fundamentados em valores propostos pela gestão social, percorrendo
os seus conceitos incorporados por uma avaliação participativa, que vise
o conhecimento e aprimoramento para ações da coordenação local. Neste
sentido, procura-se apresentar limites e possibilidades desses processos
aflorados por reflexões sobre a gestão social, seus princípios e fundamentos e
como estes podem contribuir para valorizar e tornar mais efetiva a avaliação
Projovem Urbano: contribuições da gestão social em sua avaliação 55

de programas sociais. Não se busca esgotar o assunto, mas fomentar e


problematizar as contribuições da gestão social nesse processo.

Desigualdades, exclusão e educação


As desigualdades sociais apresentam-se como um problema estrutural
inerente a diversos grupos humanos, pertencente a diversas formas de
organização governamental. Surge, assim, a premência do Estado como
moderador de forças, um interventor que tem a função de garantir o bem estar
social e proporcionar a redistribuição social. Redistribuição e intervenção
necessárias na dinâmica do sistema capitalista inserido em um modelo
neoliberal, que provocou a diminuição do Estado e a deteriorização dos
direitos sociais.

Além disso, o processo de reestruturação produtiva regido por esse sistema,


potencializado pelos avanços tecnológicos ocorridos nos últimos tempos e
a abrangência de dimensões globais agravou esse cenário, historicamente,
contraditório e excludente. As consequências disso foram modificações no
mundo do trabalho, nas relações sociais, na cultura.

Neste contexto, prevalece a lógica da relação de poder na qual o


desenvolvimento e a prosperidade de uns só são possíveis com o
subdesenvolvimento de outros. Esse modelo permeia todo o tecido social,
intensificando situações que desencadeiam processos de exclusão social.
Essa correlação desigual de forças atinge diretamente, como afirma Castel
(1998), os “inúteis para o mundo”, os desfiliados, aqueles que não conseguem
manter-se e sobreviver dignamente.

Diante dessa conjuntura, a garantia da sobrevivência, da dignidade, faz-


se, principalmente, por meio da inserção no mercado de trabalho. Porém,
a frequente situação de não adequação a este desencadeia processos
de vulnerabilidades sociais, que se agravam quando há a persistência
deste estado. Não obstante, a inserção ou não no mercado de trabalho,
ou mesmo, o tipo de ocupação neste, tornam-se cada vez mais incertos.
Algo contraditório, tendo em vista que a capacidade de produzir riquezas
e o volume de conhecimento cresce de maneira nunca antes produzida na
história da humanidade.

A educação, dessa forma, assume papel relevante para essa adequação,


em um contexto em que o grau de competitividade ampliou a demanda
por conhecimentos e informação, impondo ao trabalhador a necessidade
de incorporar habilidades e competências essenciais para a sobrevivência

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


56 Aparecida de Cássia Oliveira Lima
Raquel Garcia Gonçalves

no mercado de trabalho e diminuindo as limitações e o risco associado ao


desemprego e subemprego. Sendo que,

O resultado da baixa escolarização é que, de maneira


mais ou menos geral, a população brasileira é formada
por pessoas que podem ser tuteladas e podem até atingir
bons níveis de produtividade, mas têm baixa capacidade
para realizar tarefas mais complexas, liderar, criar novo
conhecimento e tomar decisões que exigem capacidade
analítica mais sofisticada (IPEA, 2006, p. 125).

O número de anos de escolarização, aliado à qualidade da educação recebida,


aparece como um fator determinante para o acesso ao mercado de trabalho,
à qualidade do emprego e à renda.

Dessa forma, a educação apresenta-se como um dos fatores de importância


para que as desigualdades sociais diminuam, ganhando relevância as
políticas públicas voltadas para as demandas sociais, especialmente quando
o alvo dessas políticas são os jovens. Para Pochmann (2004), a população
mais jovem enfrenta dificuldades de inserção no mercado de trabalho, mesmo
que possua escolaridade igual ou superior a gerações passadas.

Assim, jovens em condições de inserção no mercado


de trabalho superiores aos dos pais, em termos de
escolaridade e formação profissional, encontram-se diante
da frustração do desemprego recorrente ou da desolação
de baixa renumeração, responsável pela incapacidade
de alcançar a independência econômica. [...] Na maior
parte das vezes, os jovens não conseguem obter condições
de vida e trabalho superiores às de seus pais, mesmo
possuindo níveis de escolaridade e formação profissional
superiores (POCHMANN, 2004, p.223).

Destaca-se, contudo, que a educação torna-se cada vez mais necessária,


embora não seja suficiente para garantir êxito e colocação no mercado de
trabalho. Agravando essa situação,

[...] os filhos de pobres no país encontram-se praticamente


condenados ao trabalho com poucas condições de
mobilidade social. Porém, ao ingressar muito cedo no
mercado de trabalho, o fazem com baixa escolaridade,
ocupando as vagas de menor renumeração disponíveis,
Projovem Urbano: contribuições da gestão social em sua avaliação 57

quase sempre subjulgadas com posições de subordinação


no interior da hierarquia no trabalho (IDEM, p. 231).

Pode-se verificar que é uma situação de classe, ou seja, a questão da inserção,


ou não, e de como acontece essa inserção ainda se apresenta vinculada ao
segmento da sociedade ao qual o jovem pertence. Nesse sentido, os jovens
necessitam buscar precocemente um trabalho, porque ou estão fora da escola
e/ou encontram-se nessa situação pelo fato de serem filhos de trabalhadores
que se encontram em condições precárias. Ao mesmo tempo, a natureza das
ocupações que esses jovens conseguem são empregos precários - no setor
informal da economia ou em empresas pequenas com baixa perspectiva 1 Em geral, a juventude
profissional. é caracterizada como
o tempo ou período do
ciclo da vida no qual os
Juventudes, vulnerabilidade e o processo de indivíduos atravessam
da infância para a ida-
exclusão social de adulta e produzem
significativas trans-
O termo “juventudes”, elucidado por Abramovay e Castro (2006), é formações biológicas,
psicológicas, sociais e
sugestionado pelas situações, vivências e identidades sociais de um segmento
culturais, que podem
etário da população entre 15 a 29¹ anos, que, em meio a esse movimento variar de acordo com as
de transformações sociais, culturais e econômicas, possuem características sociedades, as culturas,
específicas, não podendo ser homogeneizado por categorizações. as classes, o gênero, a
inscrição étnico-racial
e a época. Nas socie-
Além disso, a juventude é um período importante da vida, inconstante e dades contemporâneas,
em transitoriedade, especialmente para o jovem que convive em um espaço o período da juventude
urbano e todas as suas mazelas. Assim, o jovem inserido nesse contexto prolonga-se, à medida
que os processos de
encontra facilidades e acessos a alguns bens e serviços, equipamentos, entre emancipação dos jo-
outros, porém, por se tratar de um espaço onde a densidade populacional vens são retardados, por
é maior, as relações sociais também se apresentam de forma mais densa e diversos motivos, como
a ampliação do período
complexa e os conflitos e o ambiente se tornam mais tendenciosos a situações
escolar para enfrentar
de violência. as exigências do mer-
cado de trabalho. Na
Dessa forma, este momento pode transformar-se em um campo fértil de medida em que a socie-
dades passam do rural
potencialidades negativas e tornar os jovens suscetíveis a vulnerabilidades ao urbano, do agrário
e a riscos, como: altos índices de envolvimento com drogas ilícitas e ao industrial e do in-
criminalidades; corrupção; violência policial; altas taxas de mortalidades dustrial a sociedade
por causas externas que afetam, principalmente, a população masculina, atual do conhecimento,
a abrangência do que
como apontam estudos já realizados por Abramovay e Castro (2004); altas vem a ser jovem, em
taxas de fecundidade; inexperiência e despreparo profissional que acentuam termos etários, alarga-
a exclusão do mercado de trabalho, submetendo-se a ocupações de qualidade -se e assume dimensões
que são inéditas na his-
ruim e mal renumeradas, havendo, consequentemente, deterioração da
tória da humanidade
qualidade de vida. No que diz respeito às potencialidades positivas, é um (ABRAMOVAY; CAS-
momento de vir a ser, ou seja, um ser que ainda tem um futuro a ser construído TRO, 2006. p. 10).

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


58 Aparecida de Cássia Oliveira Lima
Raquel Garcia Gonçalves

e que amanhã será o responsável por liderar, produzir, criar, transformar,


impor e modificar a sociedade. Sendo assim, é necessário considerar que só
sabe o que é ser jovem hoje quem é jovem, pois nenhuma geração anterior
vivenciou o que os jovens vivem hoje:

A juventude é como um espelho retrovisor da sociedade.


Mais do que comparar gerações é necessário comparar
as sociedades em que vivem os jovens de diferentes
gerações. Ou seja, cada tempo e lugar, fatores históricos,
estruturais e conjunturais determinam as vulnerabilidades
e as potencialidades das juventudes. Os jovens do século
XXI, que vivem em um mundo que conjuga um acelerado
processo de globalização e múltiplas desigualdades
sociais, compartilham uma experiência geracional
historicamente inédita (NOVAES, 2006, p.3).

Destaca-se que, no Brasil, muitos jovens vivenciam situação de


vulnerabilidade social que favorece a incidência a processos de exclusão
social e dificuldade de acesso a estruturas básicas. Ao mesmo tempo, as
limitações a oportunidades sociais geram uma descrença e desesperança dos
jovens com relação ao futuro e dificultam o sentimento de pertencimento à
sociedade como sujeito, como cidadão.

Em uma sociedade capitalista, como já ponderado, um dos principais


elementos que caracteriza e agrava o processo de exclusão é a não inserção no
mercado de trabalho, desvinculando o sujeito da sua capacidade de compra
e acesso a bens de consumo, marginalizando-o. Neste processo, “o excluído
não escolhe a sua condição; ela se dá numa evolução temporal como resultado
das mudanças na sociedade como, por exemplo, as crises econômicas”
(FEIJÓ; ASSIS, 2004, p.158). Existem outras formas de exclusão social,
como a cultural, a étnica e espacial, ainda como destacam esses autores:

[...] a segregação cultural priva o indivíduo de obter uma


escolaridade que é o instrumento para maiores chances
de um emprego com melhor remuneração, assim como de
ter acesso a informações que o habilitem a exercer sua
cidadania de forma plena. A exclusão territorial afasta
o cidadão do convívio com o restante da sociedade, do
emprego, da escola e até da terra produtiva. A segregação
étnica provoca comportamento de revolta entre os
indivíduos, classificando-os como seres inferiores e
diferentes, impedindo que usufruam plenamente dos bens
Projovem Urbano: contribuições da gestão social em sua avaliação 59

de consumo, da escola, de serviços de saúde, alijando-os


do convívio sadio e produtivo na comunidade (FEIJÓ;
ASSIS, 2004. p. 158).

Dessa forma, Sen (2000) coloca que a privação da liberdade econômica


pode gerar a privação da liberdade social, assim como a privação de
liberdade social ou política pode, da mesma forma, gerar a privação de
liberdade econômica. Para Dowbor (2008, p. 2), “as raízes dessa situação
catastrófica são mais políticas do que econômicas”. A centralização de poder
político e econômico, que caracteriza a nossa forma de organização como
sociedade, leva, em última instância, a um divórcio profundo entre as nossas
necessidades e o conteúdo do desenvolvimento econômico e social.

Nessa perspectiva, torna-se indispensável à reflexão a construção de uma


sociedade que proporcione a todos, indistintamente, uma situação de
equidade, de acesso aos meios e recursos sociais como educação, saúde, lazer
e promova expansão das capacidades humanas como meio para inclusão dos
sujeitos excluídos e a melhoria na situação econômica como consequência.

O enfoque tem que ser sobre a expansão da liberdade


humana para levar o tipo de vida que as pessoas
com razão valorizam, então o papel do crescimento
econômico na expansão dessas oportunidades tem que ser
integrado à concepção mais fundamental do processo de
desenvolvimento como a expansão da capacidade humana
para levar uma vida mais livre e mais digna de ser vivida
(SEN, 2000, p. 375).

Assim, o desenvolvimento deve ser alicerçado em prerrogativas que


proporcionem a expansão das capacidades humanas. Nesse sentido, ao
voltar-se o foco para a juventude, tendo como referência e eixo norteador
essa concepção, torna-se imprescindível compreender a juventude em
seu contexto sócio-histórico, cultural, econômico, geográfico. Importante
compreender como essas dimensões articulam-se de forma a construir um
determinado modo de ser jovem. Dayrell (2003) enfatiza que as diferentes
imagens construídas, ou seja, visões estereotipadas a partir do olhar adulto
da sociedade a respeito dos jovens interferem na maneira de compreendê-los.

Sendo assim, torna-se importante enxergar o jovem como um sujeito social,


não passivo ao mundo, mas um ser que reage a ele, interpreta, reflete sobre
suas ações, sofre, deseja e constrói suas próprias representações através das
interações, das apropriações nas relações vividas, ou seja, um ser em um
processo de construção:

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


60 Aparecida de Cássia Oliveira Lima
Raquel Garcia Gonçalves

Meu contato com os jovens que pesquisei deixa muito


claro o aparente óbvio: eles são seres humanos,
amam, sofrem, divertem-se, pensam a respeito de suas
condições e de suas experiências de vida, posicionam-
se, possuem desejos e propostas de melhoria de vida.
Acreditamos que é nesse processo que cada um deles vai
se construindo e sendo construído e sendo como sujeito:
um ser singular que se apropria do social, transformado
em representações, aspirações e práticas, que interpreta
e dá sentido ao seu mundo e às relações que mantém
(DAYREL, 2003, p.43 e 44).

Portanto, seria necessário encontrar mecanismos que permitam que esses


sujeitos expressem seus posicionamentos, desejos e propostas de superação
das condições desfavoráveis em que se encontram, em um dado momento
histórico, para que consigam superar o ciclo vicioso que lhes é imposto por
um processo de exclusão. Isso significa considerar o bem-estar social por
meio da igualdade de oportunidades e da promoção da equidade.

O Projovem Urbano
O Projovem (Programa Nacional de Inclusão de Jovens) foi lançado, no dia
02 de fevereiro de 2005, por meio de medida provisória. Esse programa foi
desenhado e formulado na esfera do Governo Federal como ação integrante do
Plano Nacional de Juventude (PNJ), sendo estruturado de forma a contemplar
uma de suas dimensões - a inclusão. Em princípio, o prazo de validade do
Programa era de dois anos com o objetivo de lhe assegurar qualidade, devendo
ser avaliado ao término do segundo ano. A intenção inicial do Programa era
criar condições necessárias para que o jovem, com o perfil de participar,
pudesse romper com o ciclo de reprodução das desigualdades.

Em 2007, o resultado de discussões com esteio em avaliações realizadas


interna e externamente ao Programa, culminou no lançamento de um
Programa amplo e diversificado de inclusão de jovens, o Projovem Integrado.
Após passar por reformulações orientadas pelo resultado das reflexões,
embora mantendo a base do Programa anterior, foram propostas estratégias
para a superação de dificuldades anteriormente encontradas visando a
reforçar aspectos bem sucedidos, surgindo, daí, o Projovem Urbano, uma
das modalidades deste novo Projovem.

O Projovem Urbano visa a atender jovens de 18 a 29 anos que não completaram


o ensino fundamental na idade própria e que sejam alfabetizados. Apresenta
como objetivos a elevação da escolaridade, a qualificação profissional - na
Projovem Urbano: contribuições da gestão social em sua avaliação 61

forma de qualificação inicial em um dos arcos de ocupações² – e a participação


cidadã - com o desenvolvimento de ações comunitárias, culturais, esportivas e
de lazer. Pretende, ainda, ampliar o acesso dos jovens à cultura e à promoção
de experiência de atuação social na comunidade (a participação dos jovens em
ações coletivas de interesse público), sendo que a inclusão digital apresenta-se
como instrumento de inserção produtiva e de comunicação, como especificado
no Parecer CNE/CEB 18/2008:

O ProJovem Urbano é um dos eixos fundamentais da


Política Nacional de Juventude e representa o compromisso
do atual Governo Federal para com os jovens brasileiros
que mais sofrem com as consequências de um processo
de exclusão dos bens sociais, entre os quais a educação
e o trabalho. O Programa trabalha na perspectiva de
contribuir especificamente para a reinserção do jovem
na escola; a identificação de oportunidades de trabalho e
qualificação profissional inicial dos jovens para o mundo
do trabalho; a oferta de oportunidades de desenvolvimento
de vivências desses jovens em ações comunitárias; e o
acesso dos seus participantes à inclusão digital como
instrumento de inserção produtiva e de comunicação
(CNE/CEB 18/2008, p.5).

A execução das ações integradas na forma de cursos que visem à formação


e à elevação da escolaridade do jovem deve ter um caráter interdimensional
que, dentro do Programa, é abordado com a observância da necessidade que
sua gestão seja intersetorial e compartilhada pelos órgãos de administração
de políticas de juventude, educação, trabalho e desenvolvimento social, em
todos os níveis de implementação.

Assim, o Projovem tem duração de 18 meses e exige que, aqueles que


participam, tenham, no mínimo, 75% de frequência e cumpram, na mesma
proporção, as tarefas propostas em sala de aula previstas para cada mês, pois
essa é a condição para que recebam uma bolsa auxílio de R$ 100,00 (cem
Reais), paga pelo Governo Federal por meio das prefeituras. Além disso, 2 Segundo Salgado
todos os participantes têm direito à refeição na escola. (2008), são 23 arcos
ocupacionais, cada arco
corresponde a um con-
O Programa é implantado na rede pública em Estados, Municípios e Distrito junto de 4 ocupações,
Federal que aderirem a ele, mediante aceitação das condições estabelecidas com uma base técnica
no Decreto nº 6.628 e assinatura de termo de adesão a ser definido comum, e as divisões
pela Secretaria-Geral da Presidência da República. No que se refere ao são baseadas, conforme
classificação brasileira
estabelecimento das respectivas metas por Estado, Municípios e no Distrito de ocupações/ MTE.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


62 Aparecida de Cássia Oliveira Lima
Raquel Garcia Gonçalves

Federal, o mesmo Decreto institui que elas são proporcionais à população


estimada que possua o perfil do jovem em condições de participação.

Segundo Salgado (2008), o Programa é organizado por uma coordenação geral


nacional e outra regional. As coordenações locais, ou polos, são responsáveis
por organizar e coordenar as ações nos núcleos. Os núcleos estão vinculados aos
polos e cada núcleo deve conter de 150 a 200 alunos divididos em 5 turmas.

A qualificação profissional do Programa é preconizada como um direito do


jovem. Buscam-se, através dessa ação, novas formas de inserção produtiva,
com a devida certificação, correspondendo, na medida do possível, tanto às
potencialidades econômicas, regionais, locais, quanto às vocações dos jovens.
Assim, a articulação entre o trabalho, a vida social, a tecnologia e as teorias
transformariam a educação em elemento base da cidadania e preparação
para o mundo do trabalho.

Entretanto, em estudo quantitativo realizado sobre o Programa (no Brasil)


e a evasão, com informações referentes a 2010, Soares (2011) registra
as seguintes observações: do número dos indivíduos que manifestaram
o interesse em participar do Programa, metade desistiu antes mesmo de
começar; entre os participantes, 41% evadiram; reprovados representam
26%, enquanto apenas 33% foram aprovados³. Observa-se, desta forma, que
há uma parcela muito pequena que chega a concluir o Programa.

Ainda segundo estudo de Soares (2011), o Programa tem uma frequência de


65% de mulheres. A evasão é maior quanto menor a faixa etária, sugerindo
que se verifica maior evasão entre os mais jovens comparativamente com o
grupo dos alunos com 25 anos ou mais.

3 O estudo considera Observa-se, assim, que o Projovem é uma política pública operacionalizada
evadidos os jovens que
frequentaram o Progra-
por meio de um programa que objetiva o atendimento aos jovens em situação
ma, chegando mesmo de vulnerabilidade social/risco. Contudo, esse entendimento não parece
a completar alguma de ser intrínseco a esses jovens, mas uma denominação construída pelo poder
suas etapas, mas, que
não permaneceram
público a fim de torná-los foco de atenção das políticas públicas. Dessa forma,
no Programa até a sua o Programa apresenta deficiências decorrentes da falta de participação dos
finalização. Como de- jovens, antes, durante e depois da implementação das ações a eles destinadas.
sistentes, consideram-
-se alunos matriculados
que chegaram a fre- Portanto, apesar de todas as situações pontuadas acima e dos benefícios
quentar o programa, re- oferecidos pelo Programa, já descritos, há necessidade de compreensão dos
ceberam bolsa auxílio,
mas não passaram pe-
fatores que favorecem a permanência desse jovem e/ou a inviabiliza, partindo
las fases do Programa. da visão do sujeito egresso evadido e dos que participam do Programa.
Projovem Urbano: contribuições da gestão social em sua avaliação 63

Ressalta-se que o programa Projovem Urbano é uma política pública de


caráter social, no entendimento de que a “política social significa um esforço
planejado de reduzir desigualdades sociais quando entendida como proposta do
Estado. Olhada do ponto de vista dos interessados é a conquista da autopromoção”
(DEMO, 2009, p.6). Assim sendo, foi desenvolvido para atender três vertentes
– a educação, por meio da elevação da escolarização dos jovens que ainda
não conseguiram completar o ensino fundamental; a profissionalização, pela
qualificação profissional oferecida através de um dos arcos profissionais; a
participação cidadã, promovida através de ações comunitárias.

Segundo Demo (2009), a política social apresenta três faces importantes:


a socioeconômica, a assistencial, e a política. A primeira apresenta-se
contemplada pelo Programa ao abordar a educação juntamente com a
qualificação profissional, não dissociando, dessa forma, trabalho e educação
como importantes para a inclusão social, sendo fundamental enfatizar que a
qualificação em si não é suficiente para criar postos de trabalho. A segunda
vertente, a assistencial, aparece com a presença do assistente social que
tem como uma das finalidades ajudar os participantes a conseguir benefícios
a que têm direitos, bem como orientá-los em questões diversas de seus
interesses. O eixo político ganha destaque nas ações sociais desenvolvidas
pelos participantes no Programa, ressaltando que essas ações têm que ter
um caráter que instigue o questionamento, a indignação, que despertem a
consciência de que a posição de sujeito vulnerável não é uma fatalidade do
destino, mas provocada por injustiças provenientes das desigualdades sociais.
Dessa forma, é necessária a luta, a reivindicação, o posicionamento e a
organização da sociedade, em busca dos interesses pela equidade de direitos.

Cabe ressaltar que o Programa faz parte de uma política proposta pelo
Governo Federal na tentativa de enfrentar a vulnerabilidade juvenil, mas
possui metodologias estanques que podem inviabilizar processos inovadores
de melhorias, conforme o contexto no qual está sendo desenvolvido. Ressalta-
se que o Programa passa por avaliações externas, promovidas em parceria
com algumas universidades federais, mas elas não contemplam a participação
direta dos sujeitos envolvidos.

Em relação aos processos avaliativos do Programa, destacam-se as seguintes


observações levantadas:

- O processo de avaliação do Projovem Urbano não contempla a


avaliação participativa dos beneficiários e nem dos atores locais
diretamente envolvidos no processo

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


64 Aparecida de Cássia Oliveira Lima
Raquel Garcia Gonçalves

- As avaliações e o sistema de monitoramento não permitem identificar


quais efeitos e impactos realmente são promovidos pelo Programa;

- As avaliações enfatizam o nível de proficiência alcançada pelos


usuários, com objetivo de verificar a escolarização e como forma
de comparação e validação do Programa frente a outras avaliações
estaduais e federais, mas não são visualizadas como fonte de
informações para melhorias dos processos;

- A gestão compartilhada, principalmente em nível local,


acontece timidamente e não há preocupação nas avaliações e no
monitoramento em verificar se elas realmente acontecem;

- Em âmbito local, não há uma avaliação minuciosa com objetivo


de realizar um diagnóstico do contexto em que será implantado e,
desta forma, traçar ações e parcerias necessárias para o alcance
dessas. Entretanto, o que prevalece é o interesse político em relação
à verba a ser enviada pelo Governo Federal;

- Observa-se a inexistência de projetos e uma sistemática de


avaliação das ações efetuadas, no sentido de promover entre os atores
conhecimento e sustentação objetiva, enfocando a criação, visualização
de meios e metodologias mais adequadas para que consigam atingir os
resultados esperados diante das adversidades encontradas.

Percebe-se que as avaliações, às quais o Programa é submetido, apresentam


como objetivo mensurar alguns aspectos macro, mas essas não são sensíveis à
dimensão local. Neste sentido, a gestão social entra com valores e princípios
necessários a serem incorporados a processos de avaliação que visem captar
as percepções e reais necessidades de seus beneficiários.

A gestão social e suas contribuições no processo de


avaliação de uma política pública
O termo social é ambíguo, indefinido, e pode ser utilizado de forma
oportunista em uma sociedade em que permeia a lógica de mercado e
da competição, na qual se observa uma deformação nas prioridades que
servem de base para sustentar a qualidade de vida dos cidadãos. Em uma
sociedade moderna, complexa, conflituosa, individualista, o social pode
receber significações deturpadas, dificultando, assim, práticas e ações
realmente voltadas para o bem comum.
Projovem Urbano: contribuições da gestão social em sua avaliação 65

Dentro desse contexto, ocorre o adensamento dos problemas sociais, em


que ações pontuais e focalizadas já não conseguem responder e resolver
demandas que se avolumam e se tornam cada vez mais complexas. Torna-se
necessária a articulação de diferentes saberes, estimulando a articulação de
saberes disciplinares e não disciplinares, de diferentes atores, assim como
ações planejadas de forma integrada, utilizando a intersetorialidade e, desta
forma, promover o bem estar integral e não fragmentado, segregado. Portanto,
em uma sociedade em que predomina um espaço recriador da exclusão, a
gestão social aparece como um processo balizador para que possam ser
concretizadas ações que priorizem o desenvolvimento humano e inclusivo.

A gestão social sedimenta-se em valores, práticas e procedimentos pautados


na democracia e cidadania e orienta-se para a mudança e pela mudança, em
busca de igualdade e equidade para uma transformação societária. Sendo assim,
os processos decisórios devem ser exercidos por diferentes sujeitos sociais,
para que possam ser concretizados e substanciados por meio da viabilização
da participação efetiva, para que o processo de exclusão conjuntural e
historicamente constituído possa ser amenizado e até mesmo neutralizado.

A gestão social não ignora os movimentos constitutivos da sociedade e suas


relações de força e poder, seus conflitos. Assim, ela se orienta contra o poder
hegemônico de mitigação da sociedade, buscando-se o desenvolvimento de
processos sociais que viabilizem o desenvolvimento da sociedade. Nesse
sentido, a gestão social pode ser compreendida como

[...] um conjunto de processos sociais com potencial


viabilizador do desenvolvimento societário emancipatório
e transformador. É fundada nos valores, práticas e formação
da democracia e da cidadania, vista do enfrentamento às
expressões da questão social, da garantia dos direitos
humanos universais e da afirmação dos interesses e
espaços públicos como padrões de civilidade. Construção
realizada em pactuação democrática, nos âmbitos
local, nacional, mundial: entre os agentes das esferas
da sociedade civil, sociedade política e da economia,
com efetiva participação dos cidadãos historicamente
excluídos dos processos de distribuição das riquezas e
do poder (MAIA, 2005, p. 15-16).

É imprescindível não confundir “gestão do social” com “gestão social”, este


último fundamentado na contra-hegemonia da ordem vigente. Assim, como
apontou Maia (2005), a gestão do social pode ser entendida como um conjunto

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


66 Aparecida de Cássia Oliveira Lima
Raquel Garcia Gonçalves

de ações e processos, seja na perspectiva gerencial ou voltadas para as


políticas públicas, que não provocam uma intervenção direta e significativa,
de forma a promover alterações na trama do desenvolvimento societário.

Para o entendimento de sujeitos complexos e de suas demandas,


necessidades e expectativas que se apresentam determinadas pelas
condições socioeconômicas e territoriais em que vivem, é necessário dar voz,
principalmente a sujeitos advindos de grupos mais vulneráveis e excluídos,
para que possam ser contemplados com políticas que não tenham um caráter
meramente assistencialista:

[...] Demandas referentes a necessidades de grupos


e segmentos da população com menor capacidade de
vocalização costumam ser atendidas por políticas públicas
que geram ações de caráter compensatório (que visam a
garantir o provimento pontual de bens e serviço) e não
transformador (que visam à reversão estrutural do processo
de exclusão), o que é ainda mais grave em um ambiente
em que a política econômica mantém ou agudiza situações
de profunda desigualdade social (INOJOSA, 2005, p.4).

Inojosa (2005) salienta que participação supõe capacidade de vocalização.


Sendo assim, as políticas públicas focalizadas para jovens em situação de
vulnerabilidade social necessitam fornecer mecanismos para que esse jovem
possa ter voz e ser realmente considerado um sujeito de direitos para que
seja efetivada sua cidadania.

Bordenave (1994) enfatiza que a participação é inerente à natureza social


do homem e, nesse sentido,

A participação é o caminho natural para o homem exprimir


sua tendência inata de realizar, fazer coisas, afirmar-se a
si mesmo e dominar a natureza e o mundo. Além disso,
sua prática envolve a satisfação de outras necessidades
não menos básicas, tais como: a interação com os
demais homens, a autoexpressão, o desenvolvimento
do pensamento reflexivo, o prazer de criar e recriar
coisas, e, ainda, a valorização de si mesmo pelos outros
(BORDENAVE, 1994, p. 16).

Para Demo (2009), participação é um processo de conquista, um constante vir


a ser, não existindo, assim, participação suficiente, acabada ou completa e sim
Projovem Urbano: contribuições da gestão social em sua avaliação 67

um eterno desafio, um processo contínuo em desenvolvimento. Dessa forma,


essa não pode ser entendida como uma dádiva, concessão ou algo preexistente.

Conceber a participação como um processo significa perceber a teia de


relações e interações construída entre os diversos atores, as relações de
poder entre esses. Relações complexas e contraditórias durante o processo
podem inibir a participação de alguns. Assim, surgem as questões: como
efetivar e vocalizar as vontades e necessidades de sujeitos alvos de políticas
públicas? Qual o papel desses sujeitos no processo de avaliação dessas
políticas? Como inserir, no processo, sujeitos que se encontram em situação
de vulnerabilidade social e, inerente a essa situação, apresentam apatia
e descrença em processos advindos do governo? Como a avaliação pode
favorecer o desenvolvimento e a melhoria da qualidade de vida das pessoas
a que esses processos se destinam?

São questões que não apresentam fáceis soluções, mas apontam para um
caminho pouco explorado no processo de avaliação que é o da participação.
A vocalização dos diversos atores envolvidos poderia ajudar a compreender
as percepções que esses têm a respeito do Programa, como e de que forma
efetivamente suas ações conseguiram modificar e/ou melhorar a qualidade
de vida das pessoas alvo dessa política pública.

Considerar o bem-estar dos cidadãos é pensar em sua qualidade de vida, e,


da mesma forma, é pensar em políticas públicas que possam contribuir para
a melhoria da qualidade de vida. Ao discorrer sobre esse entendimento,
toca-se na questão da cidadania ativa como meio promotor de mudanças
sociais. Mudanças que “ocorrem a partir da interação de inúmeros fatores
que não podem ser totalmente controlados pela ação prevista nos planos”
(GOMES, 2010, p. 19).

A imprevisibilidade de quais os efeitos uma ação pode provocar torna


imperativa a participação dos sujeitos interessados, contribuindo, dessa
forma, para a efetividade das ações de um programa que visa ao atendimento
desses. Pois, ao se pensar em uma abordagem social, é imprescindível ter
o entendimento que as condições estruturais e materiais a que os sujeitos
estão expostos podem ser percebidas por fatores observáveis, mensuráveis.
Entretanto, é necessário abranger as dimensões culturais e psicossociais que
favorecem para que as situações, a que são submetidos, se tornem recorrentes
em um ciclo vicioso. A compreensão da articulação e interdependência, pelo
ao menos em parte, dos fatores imbricados dessa dimensão e como se inter-
relacionam de forma a perpetuar a permanência e produção de condições
desfavoráveis, torna-se fundamental para o planejamento e execução de
ações que potencialize a possibilidade do sujeito transpor essas condições.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


68 Aparecida de Cássia Oliveira Lima
Raquel Garcia Gonçalves

Portanto, a ausência da interação entre os atores diretamente beneficiados na


implementação e avaliação de uma política pública tende a produzir ações
ineficazes e incapazes de alcançar integralmente os objetivos propostos, de
produzir mudanças substanciais. Além disso, corre o risco de que se tornem
efêmeras, reduzindo sua sustentação política, pois os sujeitos alvo dessas ações
são tratados como objeto e não como sujeitos, de fato, do processo. Deste modo,

[...] a avaliação deve abarcar desde o processo decisório


até a execução dos programas sociais, pois entende que
não é suficiente comparar os seus resultados alcançados
com metas propostas sem considerar os condicionantes
e os interesses que informaram a tomada de decisão. O
processo de decisão é eminentemente político, por isso
não pode ser colocado em segundo plano, sob pena de
todo o resto da análise ser prejudicado. Dessa forma, os
aspectos políticos da avaliação devem ser resgatados,
desde o processo de formulação até a implantação das
políticas sociais (GOMES, 2010, p. 28).

A avaliação de uma política pública não constitui um ato desinteressado,


pois o ato de avaliar, em si, já pressupõe a intenção de auferir valor, fazer
um julgamento, uma comparação, baseado em valores tais como eficiência,
justiça social, redução dos custos, e concepções sobre a realidade social.
Neste sentido, as avaliações de programas e projetos voltados para a área
social contribuem para o fortalecimento e o desenvolvimento da ação pública.

Assim sendo, processos dinâmicos de avaliação que contemplem o antes,


o durante e o depois da atuação do programa, possibilitam a correção e/ou
reformulação das ações e garantem o entendimento do percurso e não somente
dos resultados alcançados após sua implementação, visando à melhoria de
programas futuros. O acompanhamento dos atores diretamente envolvidos
torna-se um instrumento importante para oportunizar mecanismos que
garantam o exercício e o fortalecimento da cidadania.

Destaca-se que a cidadania deve ser entendida como um processo contínuo


e necessário para a formação de sujeitos conscientes e que, somente através
do seu exercício, pode-se construir sociedades menos perversas, mais
equânimes e justas.

Vale reafirmar que o programa Projovem Urbano apresenta processos


avaliativos com avaliações externas e internas, com os seguintes objetivos:
avaliar o Programa e sua efetividade educacional, traçar o perfil de seus
Projovem Urbano: contribuições da gestão social em sua avaliação 69

participantes, e avaliar as dificuldades encontradas durante sua implantação


e implementação. Contudo, há ausência de processos realmente dinâmicos
que primem pela participação efetiva daqueles diretamente envolvidos em
sua elaboração, implementação e avaliação. Seria necessário, ainda, que esse
processo fosse concebido de forma constante e utilizado para correções das
ações durante a vigência do Programa.

Dessa forma, a avaliação deve ser implantada como um processo de dimensão


local – uma ferramenta para balizar as ações da coordenação local e demais
atores envolvidos. Além disso, ela permite uma reflexão constante durante
a implementação, resultando em um melhor conhecimento para enfrentar
situações adversas com propriedade e não apenas intuitivamente.

Outra parte importante do processo de avaliação é a publicização dos


resultados obtidos, de forma a serem apresentados e discutidos com os
beneficiários dos programas sociais, assegurando-lhes o entendimento
e a reflexão do que foi avaliado, pois “a participação é um conceito
eminentemente político e supõe a informação, o preparo para atuação, a
clareza com relação aos objetivos” (GOMES, 2010, p. 30).

Considerações Finais
Discutir o tema avaliação é ressaltar a importância de seu papel democrático,
no âmbito do exercício da cidadania e do acompanhamento das ações do
governo. Mas, também é um poderoso instrumento de aprendizagem e
construção de conhecimentos acerca da realidade local, tendo em vista a
multidimensionalidade que envolve e a condicionam. Torna-se, assim, de
grande auxílio para direcionar e balizar ações direcionadas para mudanças
sociais, minimizando a atuação por intuição e possibilitando maior êxito.

Analisando-se pelo aspecto endógeno das ações locais, tendo como


referência valores e princípios que norteiam a gestão social, apresenta-se
como possibilidade que todos os atores envolvidos possam se apropriarem
das propostas e atividade que realizam ou que por ventura venham a
iniciar, implicando em um maior envolvimento e comprometimento,
com conhecimento da causa, de suas exigências e implicações. Dessa
forma, fortalece o estabelecimento de uma cultura democrática e do
desenvolvimento de capital social.

Em relação aos beneficiários, proporciona a valorização, aumento da


auto-estima, amplia a percepção de co-responsabilidade, auto-respeito,

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


70 Aparecida de Cássia Oliveira Lima
Raquel Garcia Gonçalves

envolvimento e o empoderamento desses sujeitos. Enfatizando-se que o


público alvo dessas ações são os jovens, em um contexto urbano e caótico.

Na busca desse fim, o Programa Projovem Urbano, assim como outros


programas sociais, apresentam em suas ações o desafio de potencializar
a quebra do círculo vicioso em que seus beneficiários encontram-se,
fortalecendo meios, recursos e acesso às estruturas para que esses possam
afastar-se da situação de vulnerabilidade social. Contudo, torna-se premente
a vocalização dos sujeitos alvo dessa política, principalmente durante o
Artigo
processo avaliativo, para que esses possam orientar as ações com vistas a se
Recebido: 14/05/2013 tornarem mais efetivas e, desta forma, contribuam para diminuir os fatores
Aprovado: 18/06/2013 que levam à evasão dos participantes.
Keywords: ABSTRACT: This article is the result of initial reflections arising from an ongoing
Projovem Urbano; study that seeks to perform an analysis of the phenomenon of evasion in a
Younths; Evaluation;
federal government program, titled Urban Projovem in the municipality of
Public Policy; Social
manangement. Betim - Minas Gerais. This program was developed to meet young people 18-
29 years who did not complete elementary school and who are in a situation
of social vulnerability. Therefore, we seek to contextualize the socio-economic
situation and the specific audience for which it is intended. With intent to
bring the discussion about the possibility of evaluation as a powerful tool to
mark successful actions that meet the needs of users of this program, it is an
approach to the principles and foundations of Social Management incorporated
into the evaluation process and, as such, can help enhance, improve and make
more effective the processes of participation of the subjects involved in a social
program. In this sense, this paper aims to discuss the limits and possibilities of
the program evaluation processes Projovem Urban and present contributions
of the incorporation of the principles and values of social management in this
process, in order to ease the situation recurring evasion.

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(*) Rochele Fellini Fachinetto é Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do 73
Rio Grande do Sul (UFRGS), Professora Adjunta do Instituto de Filosofia, Sociologia
e Política da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Pesquisadora do Grupo de
Pesquisa Violência e Cidadania(GPVC). @ - [email protected] Vítor Eduardo
Alessandri Ribeiro é Mestrando em Sociologia no Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGS-UFRGS). Membro do
Grupo de Pesquisa em Violência e Cidadania (GPVC). Graduado em Ciências Sociais
pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(FFLCH-USP) e em Relações Internacionais pela Faculdade de Ciências Sociais da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). @ - [email protected]

Juventudes, manifestações
sociais e representações
sobre a violência
Youth, social protests and representations on
violence

Rochele Fellini Fachinetto*


Vítor Eduardo Alessandri Ribeiro*
RESUMO: A proposta deste artigo é analisar as representações sociais em Palavras-chave:
torno da noção de violência para diferentes atores que estiveram envolvidos manifestações
sociais junho 2013
nas manifestações de junho de 2013 no Brasil. Partimos da perspectiva de
– representações
uma sociologia da conflitualidades que busca reconstruir a complexidade dos sobre a violência –
conflitos sociais contemporâneos, explorando algumas de suas dinâmicas e mídia
especificidades. Para tal, buscamos analisar as representações da noção de
violência para os jovens, tendo como base de análise as redes sociais; a forma
como a mídia elaborou discursos sobre o tema da violência, a partir da análise de
dois jornais de circulação nacional e, por fim, as representações sobre violência
presentes nos discursos de algumas autoridades políticas que se manifestavam
sobre tais fatos. A análise evidenciou dois momentos distintos com relação às
representações sobre a violência: o primeiro do dia 11 a 17 de junho e o segundo
entre os dias 18 e 20 de junho. Neste período foi possível observar um processo
de deslocamento de sentido em relação à noção de violência que aparecia, no
primeiro período, como elemento central nas representações, sobretudo da mídia
e das autoridades policiais e perde centralidade no segundo momento, quando
passam a enfatizar a legitimidade democrática das manifestações.

I ntrodução
As manifestações que tomaram as ruas do País em junho de 2013 representam
um marco no histórico das mobilizações sociais nacionais. Um sentimento
geral de perplexidade se disseminava diante de protestos que, sob uma
multiplicidade de pautas e uma diversidade de grupos, levaram cerca de
um milhão de pessoas às ruas no período.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


74 Rochele Fellini Fachinetto
Vítor Eduardo Alessandri Ribeiro

Os protagonistas desse fenômeno, em sua maioria, jovens que se articulavam


através de redes sociais.

As tentativas de compreensão e de interpretação das manifestações a partir de


categorias ou conceitos que se mostravam potencialmente úteis para análise
das mobilizações sociais pareciam não dar respostas à complexidade e ao
ineditismo do que ocorria nas ruas.

A reflexão que propomos neste artigo parte do entendimento da complexidade


que envolve este fenômeno e, para tanto, direcionamos nosso olhar para um
aspecto das manifestações: as representações sociais em torno da noção de
violência para diferentes atores que estiveram envolvidos no processo.

Através de uma reconstrução cronológica dos principais atos das


manifestações em junho, analisamos as representações sobre a violência
para a mídia, a partir da análise de dois dos jornais de maior circulação
nacional (O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo) e as representações
nos discursos de algumas autoridades políticas que se manifestaram sobre
os protestos. Também utilizamos como ferramenta de análise as plataformas
de monitoramento de redes sociais (Cartografias de Espaços Híbridos e
Causa Brasil) articulando as temáticas veiculadas nas redes sociais às
representações trazidas pela mídia e pelas autoridades políticas.

A análise acerca das representações da violência lança mão da noção de


‘deslocamento de sentido’, conforme Porto (2010), de modo a explorar
as mudanças da forma como a violência é explorada nestes discursos,
contribuindo para evidenciar o que é silenciado nas manifestações e o que
é tido como digno de visibilidade.

A juventude na mundialização das conflitualidades


Os acontecimentos do mês de junho no Brasil, embora possuam dinâmicas
próprias relativas ao cenário nacional, podem ser pensados numa perspectiva
mais ampla, inserindo-se num processo denominado de mundialização das
conflitualidades sociais (TAVARES DOS SANTOS, 2009), que evidencia a
emergência de novas reivindicações e demandas de novos atores, os quais
lutam por reconhecimento enquanto sujeitos de direito. Tais demandas trazem
à tona conflitos sociais complexos, que refletem lutas por melhores condições
de vida não apenas de grupos considerados excluídos social, cultural e
economicamente, mas também de grupos sociais normalmente considerados
como incluídos (PORTO, 2010, p. 40). As lutas não raro imiscuem fenômenos
de violência e reivindicações da ordem dos direitos civis, evidenciando o
longo caminho que ainda resta para a consolidação dos direitos.
Juventudes, manifestações sociais e representações sobre a violência 75

A pertinência da análise que contempla relações entre o geral e o particular 1 Não será possível, no
escopo do presente ar-
na análise sociológica justifica-se a partir da perspectiva da mundialização tigo, elaborar análises
das conflitualidades. Tal perspectiva possibilita aproximar as experiências mais detidas acerca dos
e práticas sociais em diferentes sociedades ou mesmo buscar explorar as conflitos deflagrados
especificidades que marcam tais dinâmicas conflitivas em cada contexto na chamada Primavera
Árabe (série de protes-
local1. O processo de mundialização ora em curso está marcado pela tos no Norte da África
globalização de processos econômicos, pela mundialização de novas questões e no Oriente Médio,
sociais (TAVARES DOS SANTOS, 2009, p. 15). iniciados em 18 de de-
zembro de 2010, com
revoluções na Tunísia
A globalização pode ser entendida, nos termos de Giddens (1991, p. 69), como e no Egito, guerra-civil
um processo de distanciamento tempo-espaço, onde o local e o distante se na Líbia, e na Síria,
protestos no Bahrein,
tornaram alongados. A globalização seria este processo de alongamento entre na Argélia, na Jordânia,
tempo e espaço, marcado pelo incremento das identidades locais e profusão em Djibuti, em Omã
das relações que se estabelecem em escala mundial, pela intensificação das e no Iêmen e outros
modalidades de conexão nas relações sociais em escala mundial. Para Ianni protestos menores no
Kwait, no Líbano, na
(1993, p. 25) o processo de formação da sociedade global ocorre de modo Mauritânia, no Marro-
contraditório, heterogêneo e desigual. cos, na Arábia Saudita,
no Sudão e no Saara
Ocidental), o Occupy,
No limiar do século XXI, o panorama mundial é marcado nos Estados Unidos,
por questões sociais mundiais que se manifestam, de os Indignados, na Es-
forma articulada, e com distintas especificidades, nas panha e os movimetnos
diferentes sociedades: o internacionalismo está fundado da Praça Taksim, na
Turquia, onde formas
em problemas sociais globais, tais como a violência, de violência do Estado
a exclusão, as discriminações por gênero, os vários e contra o Estado são
racismos, a pobreza, os problemas do meio ambiente e a visíveis. Cabe apenas,
para os fins da presente
questão da fome. (TAVARES DOS SANTOS, 2009, p. 143). análise, pontuar que to-
dos esses movimentos,
Há, portanto, dinâmicas que expressam um encadeamento global, mas que assim como os surgi-
dos em junho de 2013
também evidenciam especificidades locais. no Brasil, foram mani-
festações surgidas de
A temática das juventudes também se insere neste contexto de mundialização forma espontânea, sem
clara liderança política,
das conflitualidades e precisa ser entendida a partir das diversas faces que associadas à crise de
a compõem. Em primeiro lugar, ao falar em juventude corremos o risco de legitimidade das insti-
remeter à ideia de uma condição única, como se todos os jovens partilhassem tuições convencionais
de um mesmo status. Deste modo, mais pertinente é considerar que estamos de representação polí-
tica e à capacidade de
diante de múltiplas juventudes, que expressam realidades e dinâmicas comunicação instantâ-
múltiplas e diferenciadas. Para Tavares dos Santos (2009, p. 62), no processo nea em rede através da
de mundialização das conflitualidades, muitas são as faces da juventude rede mundial de com-
putadores. A violên-
na sociedade brasileira, sendo desiguais e diversas as situações de risco – cia, pensada de modo
naturais, tradicionais ou fabricadas – que vivencia cotidianamente. geral, manifesta-se nos
contextos particulares
a cada um destes con-
O autor apresenta tipos ideais de juventude no Brasil atual, a partir das noções flitos, assim como tam-
de classe e etnia, explicitando a multiplicidade que compõe as juventudes bém ocorre no contexto
brasileiras: a juventude dourada, pertencente às classes altas e médias altas, brasileiro.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


76 Rochele Fellini Fachinetto
Vítor Eduardo Alessandri Ribeiro

e às etnias de cor branca e amarela; a juventude em instabilidade, jovens


que se situam entre as classes média e média baixa, na maioria brancos
e amarelos e com uma pequena parcela de negros e pardos; a juventude
trabalhadora, metade dos jovens entre 15 a 24 anos, que correspondem
a cerca de 17.285.196 jovens, de acordo com dados oficiais colhidos pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, dos quais 37% recebiam
até um salário mínimo, com diversidade de composição étnica (2004, p. 223);
a juventude dos carentes, pertencentes às classes populares e que residem em
áreas de periferias, com diversidade de composição étnica; a juventude em
vulnerabilidade, constituídos por meninos de rua, que vivenciam processos de
exclusão social e também constituídos por uma diversidade étnica e, por fim, a
juventude dos infratores, jovens que cometem atos infracionais, pertencentes a
etnias e camadas sociais diversas (TAVARES DOS SANTOS, 2009, p. 62/63).

Em segundo lugar, a partir das contribuições de uma sociologia da juventude,


é importante compreender a juventude como uma categoria sociológica que
precisa ser situada no contexto histórico e social. Para Weisheimer (2009,
p. 51), “a juventude é uma categoria social que passa a se constituir e
adquire o sentido atual a partir do advento da modernidade”. De acordo
com o autor, mesmo que já existissem jovens em períodos anteriores, seus
sentidos, significados e papéis eram distintos daqueles que entendemos
hoje. É nesse sentido que é importante compreendermos que se trata de
uma categoria sociológica, ou seja, os significados que lhe são atribuídos se
transformam no tempo e no espaço. Para o autor, juventude é uma categoria
relacional fundada em representações sociais, tais como as que conferem
sentidos ao pertencimento a uma faixa etária, que posiciona os sujeitos na
hierarquia social a fim de promover a incorporação de papéis sociais através
da socialização até a vida adulta (WEISHEIMER, 2009, p. 86).

Consideradas estas contribuições, entendemos que não há uma juventude,


mas várias, em situações que expressam dinâmicas muito diversas: “a
juventude” jamais expressará um conceito fechado, unívoco e precisa ser
entendida como uma categoria ampla, que envolve tanto o pertencimento
a diferentes faixas etárias, quanto aspectos ligados às representações
sociais. Tais considerações contribuem para situar este debate sobre as
juventudes nas manifestações não a partir de um olhar homogeneizador
sobre elas, mas a partir de uma mirada que busque recuperar e evocar a
sua complexidade e sua diversidade relativamente às suas caracterizações,
suas reivindicações e suas formas de ação.

A reflexão acerca da temática da juventude e das manifestações sociais atuais


a partir de uma sociologia das conflitualidades implica uma compreensão e
reconstrução dos processos sociais conflitivos e contraditórios da sociedade
contemporânea (TAVARES DOS SANTOS, 2009, p. 15), o que nos instiga a
Juventudes, manifestações sociais e representações sobre a violência 77

reconstruir tais processos no âmbito destas manifestações sociais. Partimos do


entendimento de que o conflito é inerente às relações sociais e que a sociedade
contemporânea está perpassada por uma multiplicidade de conflitos sociais.
Dada tal multiplicidade, os conflitos não poderão ser bem compreendidos
senão de forma indireta, através dos mecanismos de mediação.

O cenário de perplexidade que se instalou na sociedade brasileira ante as


manifestações de junho de 2013 sinaliza para a necessidade de compreensão
das múltiplas dinâmicas conflitivas. Por isso, é importante pensá-las como
fenômeno situado no processo de mundialização das conflitualidades, ao mesmo
tempo em que dotado de particularidades contextuais. Neste artigo, focaremos
a complexidade do fenômeno das agitações de rua vividas pelo Brasil, em junho
de 2013, a partir da análise dos usos políticos em torno da noção de violência
em seus variados aspectos da difusa conflitualidade vivenciada no País.

O contexto de surgimento das manifestações de


junho de 2013
Para compreensão do contexto no qual emergem as manifestações que
tomaram conta do País, em junho de 2013, é preciso reconstruirmos o processo
que levou à redução do preço das passagens do transporte público em Porto
Alegre, em abril de 2013, a partir da mobilização de diversos manifestantes.

Em 28 de dezembro de 2012, na cidade de Porto Alegre, o Ministério Público


de Contas (MPC) solicitou a revisão do cálculo do reajuste das passagens de
ônibus no Município. O Tribunal de Contas do Estado (TCE) detectou uma
incorreção praticada pela Empresa Pública de Transporte Coletivo (EPTC)
na composição da tarifa cobrada dos passageiros: a empresa considerava a
frota reserva da empresa para o cálculo, expediente considerado ilegal pelo
TCE. O valor cobrado era então de R$ 2,85 e apontou-se que o valor mais
adequado seria de R$ 2,60.

Em 21 de janeiro de 2013, os manifestantes realizaram o primeiro protesto


contra o aumento das passagens na Cidade. Em 29 de janeiro, o TCE emite
uma medida cautelar determinando que a EPTC revise o cálculo das tarifas de
ônibus, data em que também é realizado o segundo protesto dos manifestantes.

O pedido de aumento das passagens é feito em 15 de fevereiro pelo Sindicato


das Empresas de Ônibus de Porto Alegre (SEOPA), passando de R$ 2,85
para R$ 3,30 correspondendo a um aumento de 14,85%. Em 21 de março, é
publicada na imprensa a notícia de que o Conselho Municipal de Transporte
Urbano (COMTU) haveria aprovado o aumento do preço das passagens de

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


78 Rochele Fellini Fachinetto
Vítor Eduardo Alessandri Ribeiro

ônibus na Cidade. No dia 22 de março, os manifestantes realizam um ato contra


o aumento da passagem em frente à Prefeitura Municipal de Porto Alegre.

No dia 25 de março, entra em vigor o aumento da passagem de ônibus, de R$


2,85 para R$ 3,05, e de lotações, de R$ 4,20 para R$ 4,50. Nesse mesmo
dia, os estudantes trancam, por quatro horas, a Avenida Ipiranga, uma das
principais vias da Cidade. Novos protestos ocorrem em 27 de março, sendo
o maior já realizado até então. Nesta ocasião há confronto dos manifestantes
com a Brigada Militar em frente à Prefeitura Municipal. Novas manifestações
ocorrem em 01 de abril (que reuniu cerca de cinco mil manifestantes) e,
novamente, em 04 de abril, quando 10 mil manifestantes foram às ruas.
Neste mesmo dia, o juiz da 5ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central de
Porto Alegre, Hilbert Maximiliano Akihito Obara, determinou, em caráter
liminar, a suspensão do aumento da tarifa da passagem de ônibus em Porto
Alegre. O juiz, em sua decisão, consolida o entendimento que é possível
presumir que terceiros possam estar indevidamente se beneficiando do valor
do tarifário, em prejuízo de longa data à população.2

O debate em torno do tema do aumento das passagens foi gradualmente


ganhando espaço em outras grandes cidades do País, que também começaram
a se manifestar contrariamente ao aumento das tarifas: em Natal, no dia 15
de maio, manifestantes vão às ruas contra o aumento da passagem que foi
reajustada em 9,1%, de R$ 2,20 para R$ 2,40, havendo confronto com a
polícia e o registro de cinco pessoas detidas; em Salvador, menos de cem
pessoas vão às ruas, no dia 2 de junho, e bloqueiam uma das principais
avenidas da Cidade contra o aumento de R$ 2,50 para R$ 2,80, não
havendo registro de confronto com policiais; em Goiânia, no dia 06 de junho,
manifestantes protestam contra o aumento da passagem de R$ 2,70 para R$
3,00, havendo intervenção da Tropa de Choque da Polícia Militar de Goiás.

No dia 06 de junho São Paulo e Rio de Janeiro registram seus primeiros


dias de protesto contra aumentos nas tarifas de ônibus, trens e metrô. Em
São Paulo, a Tropa de Choque da Polícia Militar intercede e ao menos 50
pessoas ficaram feridas, incluindo o fotógrafo de um grande jornal. No Rio de
Janeiro, cerca de 200 pessoas (grupo composto por estudantes, professores
e desempregados) reúnem-se no centro da Cidade e a polícia emprega
bombas de gás lacrimogêneo, bombas de efeito moral e balas de borracha
para dispersar os manifestantes.
2 Número do processo
na 5ª Vara da Fazenda Protestos repetem-se no dia 7 de junho. Manifestantes, agora em número
Pública do Foro Cen- aproximado de cinco mil pessoas, exibem cartazes com dizeres “Se a tarifa
tral de Porto Alegre:
11300793873. Fonte:
não baixar, a cidade vai parar”. A manifestação ocorreu numa das avenidas
www.espaçovital.com.br arteriais do complexo viário da Cidade, no horário de pico de trânsito. A
Juventudes, manifestações sociais e representações sobre a violência 79

motivação pela escolha do local para a demonstração era carregada de


simbologia: em dias normais, o trânsito, constituído basicamente de veículos
particulares, não flui na região. Mais uma vez, a polícia usou de violência
para dispersar o grupo. No dia 10 de junho, a manifestação se repetiu no
Rio de Janeiro. Nesta ocasião, 31 estudantes foram presos. A adesão crescia
à medida que a violência policial era manifesta.

As manifestações sociais e as representações sobre


a violência
As datas do dia 11 de junho, terça-feira, até o dia 20 de junho, quinta-feira, 3 A metodologia uti-
lizada faz buscas no
são críticas para se entender a crescente ampliação da escala das mobilizações Facebook capturando
em número de adeptos e de cidades atingidas pelas demonstrações. Para fins citações públicas às
da análise proposta neste artigo, este período de nove dias poderá ser melhor manifestações, contra o
aumento das tarifas do
compreendido se o dividirmos em duas etapas: de 11 a 17 de junho, e de 18 transporte público. Os
a 20 de junho. De modo geral, ambos os períodos seguem dinâmicas algo acontecimentos de São
particulares, embora façam parte de um continuum. Paulo ganharam desta-
que na análise. O perío-
do analisado compreen-
O gráfico abaixo foi elaborado a partir do monitoramento de redes sociais de do dia 05 ao dia 21
pela Cartografia de Espaços Híbridos – Manifestações sociais3. A partir dele, de junho de 2013. As
é possível observar o crescimento do número da mobilização – na dimensão buscas por postagens
públicas feitas a partir
virtual – mas que também se verificou nas ruas do País. de páginas e perfis do
Facebook foram efetu-
Gráfico 01 adas diretamente por
meio de requisições às
API da referida rede so-
cial. Em seguida, pro-
cessamos os dados re-
tornados para analisar
o compartilhamento de
publicações. A análise
dos compartilhamentos
é rica em significação,
sendo capaz de detectar
mensagens de alto ca-
pital social que circu-
lam pelas redes. Após
processados, os dados
foram importados para
o aplicativo Gephi, sof-
tware para a visualiza-
ção e análise de grafos
de redes complexas.
Texto retirado do site
www.interagentes.net
Acesso em 15 de julho
Fonte: Cartografia de Espaços Híbridos – Manifestações sociais. www.interagentes.net de 2013.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


80 Rochele Fellini Fachinetto
Vítor Eduardo Alessandri Ribeiro

Para demonstrar o que se afirma, centraremos a análise do primeiro período


na questão da violência e nos modos como foi percebida e elaborada nos
discursos dos atores envolvidos: os participantes das manifestações (e
seus usos das redes sociais virtuais), a mídia (pensada em termos dos
convencionais grandes grupos de mídia), restritas a dois dos jornais de
maior circulação nacional (o Estado de São Paulo, a Folha de São Paulo) e
as autoridades políticas constituídas. Temos como hipótese que as diferentes
atribuições de sentido à noção de violência pelas partes tem como intuito uma
disputa pela legitimação ou deslegitimação das demandas sociais expressas
por meios virtuais tanto quanto nas ruas.

Ressaltamos, aqui, que a violência não é um conceito analítico, mas um


elemento polissêmico e de manifestação empírica. Não nos empenharemos
em restringir a polissemia do termo: ao pensarmos os movimentos vividos no
Brasil no mês de junho de 2013, restringiremos a análise aos usos e disputas
em torno dos sentidos atribuídos pelos atores à ideia de violência

Na primeira etapa, a violência é o elemento central em torno do qual gravita


a pauta do debate público construído acerca das mobilizações populares.
A análise da temática da violência seguirá a noção de deslocamento de
sentido (PORTO, 2010, p. 51-58) que ocorrem no debate público. Para a
análise do segundo período, de 18 a 20 de junho, continuaremos tratando
das representações como elaboradas pelas partes, mas destacamos o fato de
que a temática da violência perde a centralidade e emerge uma profusão de
outros temas, seja pelos manifestantes, que expressam uma pauta cada vez
mais variada, seja pela mídia, que passa a destacar o aspecto democrático
das manifestações.

Inicialmente responsável por reunir algumas centenas, ou mesmo poucos


milhares de pessoas pelas ruas das principais capitais do País, o fenômeno das
disputas em torno da pauta da redução da tarifa dos transportes públicos nos
municípios transformou-se em algo muito mais amplo que chegou a mobilizar
cerca de 1,5 milhão de cidadãos nas ruas em aproximadamente 80 cidades
na quinta-feira, dia 20 de junho. Diversos fatores extremamente relevantes
contribuíram para a transformação da dinâmica dos primeiros conflitos, desde
o início do ano ainda na cidade de Porto Alegre, em algo muito maior. O
uso das redes sociais é um aspecto central na dinâmica assumida por estas
manifestações, seja do ponto de vista da mobilização dos sujeitos, seja na
profusão de informações sobre as manifestações, em tempo real.

A primeira data selecionada para análise é o dia 11 de junho de 2013,


quando ocorreu o terceiro dia de protestos na cidade de São Paulo. Tendo
Juventudes, manifestações sociais e representações sobre a violência 81

como referência as redes sociais, através do monitoramento realizado pela


Cartografia de Espaços Híbridos – Manifestações sociais, é possível observar
que 27% das menções foram mensagens de apoio ao movimento contra o
aumento da tarifa e aos manifestantes e 20% corresponderam a mensagens
que sugeriam a adesão aos protestos, convocações para as manifestações,
notas públicas do Movimento Passe Livre, confirmação de presença nos
eventos criados para a divulgação dos atos e fotografias com registros pessoais
da manifestação. As referências às praticas de depredação do patrimônio
público e vandalismo dos manifestantes representaram 15% das menções e
11% das mensagens criticavam especificamente o alto valor das tarifas (sem
expressar um posicionamento em relação às manifestações). Se considerarmos
um somatório das menções relacionadas ao tema da tarifa dos transportes
(apoio ou manifestações negativas) e do Movimento Passe Livre, chega-se a
73% das menções, portanto, observamos a centralidade desta pauta nestas
primeiras manifestações. É interessante observarmos que o tema da violência
policial aparece em 8% das menções.

Gráfico 02
Temas em destaque – Redes sociais em 11 de junho de 2013

Fonte: Cartografia de Espaços Híbridos – Manifestações sociais: www.interagentes.net

No que respeita à abordagem midiática, o jornal Folha de São Paulo traz na


capa do dia 12 de junho, acerca das manifestações do dia 11, a seguinte
manchete: “Contra tarifa, manifestantes vandalizam centro e paulista” (...)
“No terceiro e mais violento protesto ativistas atacam ônibus e estações

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


82 Rochele Fellini Fachinetto
Vítor Eduardo Alessandri Ribeiro

de metrô, 20 são detidos”. A reportagem detalha o episódio a partir dos


atos de violência que foram realizados pelos manifestantes, como ônibus
queimados e depredados, pichação e depredação de muros e estações de
metrô. A narrativa evidencia que a violência parte dos manifestantes, com
paus, pedras, coquetéis molotov, sendo revidada pela polícia com balas de
borracha, bombas de efeito moral e gás de pimenta. No jornal O Estado
de São Paulo, a chamada da reportagem sobre os protestos do dia 11 de
junho enfatiza: “Confronto e destruição marcam maior protesto contra alta
da tarifa de ônibus em SP”. A matéria também informa que entre 10 mil
e 12 mil pessoas participaram do ato, “deixando para trás um rastro de
depredação”. Na edição do jornal O Estado de São Paulo, de 12 de junho, o
texto da matéria afirma que o “governador de São Paulo, Geraldo Alckmin,
e o prefeito da Capital, Fernando Haddad, acompanharam em tempo real de
Paris os choques entre manifestantes e a polícia na Avenida Paulista. (...)
O governador Alckmin não quis se estender sobre o assunto. ‘Eu considero
que foi algo pontual’”. Ainda segundo o governador, “a resposta da polícia
precisa ser firme. ‘O que tem que acontecer é ser forte e agir com firmeza
para evitar excessos’, disse o governador.” Ainda nesta edição, em outra
reportagem, o texto afirma que “Vereadores paulistanos transformaram a
sessão desta quarta-feira, dia 12, na Câmara Municipal, em ato de repúdio
contra os manifestantes do Movimento Passe Livre, chamados de ‘criminosos’
e ‘delinquentes’. Durante quase três horas, petistas e tucanos pediram rigor
da PM e da Justiça contra os protestos.”

As vozes das autoridades dos poderes executivos municipal e estadual, e


do legislativo municipal retratavam a ideia de ausência de legitimidade
e criminalizavam o movimento. Mas as opiniões por parte daqueles que
aderiam às manifestações pareciam divergir. Se, das manifestações do dia 6
para aquelas do dia 11 o número de adesões confirmadas no Facebook saltou
de 6.169, para 12.782 (crescimento de 107%), o número de participantes
confirmados pelo Facebook para o evento que ocorreria no dia 13 teve um
crescimento de 120% nas adesões com relação ao dia 11, chegando a 28.228
confirmações, conforme Gráfico 01. Mesmo com a exploração do tema da
violência por parte da mídia convencional e com a aparente criminalização
do movimento por autoridades, a adesão foi crescente.

Com relação aos temas monitorados no dia 13, sobressaem-se novamente


as mensagens de apoio ao Movimento, com 25% das menções, e o tema
da violência policial aparece como a segunda menção mais referida, com
19%, mais do que o dobro do dia 11 de junho. As referências aos atos de
vandalismo e depredação do patrimônio público caíram para 7% neste dia.
Juventudes, manifestações sociais e representações sobre a violência 83

Gráfico 03

Fonte: Cartografia de Espaços Híbridos – Manifestações sociais. www.interagentes.net

A população sai às ruas no dia 13 de junho e a data foi marcada por forte
repressão policial por parte da tropa de choque de São Paulo. A repressão
em São Paulo foi destaque neste quarto dia das manifestações, deixando
várias pessoas feridas. Dois jornalistas da Folha de São Paulo que estavam
fazendo a cobertura das manifestações foram atingidos por balas de borracha.
Tal episódio é um dos elementos importantes para compreender aquilo que
entendemos como um deslocamento de sentido nas representações da mídia
acerca das manifestações. O fato de jornalistas terem sido vítimas de violência
policial contribui para um reposicionamento da mídia diante dos fatos, seja
com relação às manifestações seja com relação ao tema da violência policial.

A capa da Folha de São Paulo, no dia 13 de junho, na manhã anterior ao


movimento fortemente reprimido, trazia a manchete “Governo de São Paulo
diz que será mais duro com vandalismo”. Segundo a matéria, o governador
de São Paulo Geraldo Alckmin chama os manifestantes de “vândalos e
baderneiros” e que “a polícia vai responsabilizar e exigir o ressarcimento
de patrimônio destruído, seja público ou privado”. A reportagem segue
tratando do “rastro de destruição” e dos números da destruição. No jornal
O Estado de São Paulo do dia 13 de junho4, a reportagem do jornal refaz o
4 O Estado de São
trajeto seguido pela manifestação afirmando que o “rastro da destruição” Paulo – 13 de junho,
continuava visível. O texto afirma que “encontrou 11 agências bancárias 2h07 - http://www.es-
com vidros quebrados e dezenas de prédios públicos, pontos de ônibus, tadao.com.br/noticias/
impresso,em-todo-
estações de Metrô e até igrejas pichados. Segundo a São Paulo Transporte, -lugar-pichacao-e-da-
85 ônibus foram danificados.” no,1041801,0.htm

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


84 Rochele Fellini Fachinetto
Vítor Eduardo Alessandri Ribeiro

No dia 14 de junho, após os episódios de agressão policial contra jornalistas,


a chamada principal da capa da Folha de São Paulo5 enuncia: “Polícia
reage com violência a protesto e SP vive noite de caos”. A imagem central
publicada na versão impressa do jornal não retrata mais cenas de ônibus
ou patrimônios depredados, mas um policial agredindo duas pessoas que,
segundo o próprio jornal, não estavam na manifestação, mas sentados na
calçada de um bar. A capa traz também a fotografia da jornalista que recebeu
um tiro de bala de borracha no olho, imagem bastante disseminada pelas
redes sociais. Na matéria consta: “A polícia reagiu com forte violência à
quarta manifestação contra o aumento das tarifas de transporte, o que levou
caos e tensão ao centro de São Paulo”. Na sequência, uma informação que
chama a atenção: “Policiais usaram bombas de gás e balas de borracha.
Manifestantes responderam com pedras. A violência apavorou pedestres e
motoristas que chegaram a abandonar os carros nas ruas. Dezenas de pessoas
ficaram feridas - muitas delas não faziam parte do protesto”.

A ênfase nesta matéria, seja pela narrativa textual, seja pelas imagens veiculadas,
não está mais no patrimônio depredado, mas na violência policial contra
manifestantes, não manifestantes, jornalistas ou ainda no pânico de pessoas
que, pela narrativa, podem ser pensadas como não tendo feito parte da cena
principal do confronto. Esta mudança de ênfase evidencia um deslocamento
de sentido na veiculação do tema da violência. A violência agora parece partir
da polícia e só então respondida com pedras pelos manifestantes, ao contrário
do que vinha sendo veiculado em outros episódios já narrados anteriormente.

O jornal Estado de São Paulo6 publica em sua página na internet, ainda na


noite de 13 de junho, seu relato acerca dos acontecimentos daquela mesma
noite envolvendo a repórter do jornal Folha de São Paulo, Giuliana Vallone,
da TV Folha, baleada no olho por uma bala de borracha. Ela estava “em um
estacionamento na Rua Augusta quando uma viatura da Rota se aproximou
em baixa velocidade e um PM que estava no banco de trás atirou contra
ela”. “Repórteres do Estado de São Paulo também presenciaram ações
5 http://acer- questionáveis da Rota. Dois deles foram alvos de uma ação semelhante,
vo.folha.com.br/
fsp/2013/06/14/2/
na qual uma viatura se aproximou e disparou bombas de gás lacrimogêneo
tentando acertá-los. Não havia conflito e nenhuma concentração de
6 O Estado de São manifestantes na ocasião”. “O Secretário de Segurança Pública de SP,
Paulo – 13 de junho,
21h16 http://www.es-
Fernando Grella, afirmou em nota que determinou que a Corregedoria da
tadao.com.br/noticias/ Polícia Militar apure episódios envolvendo fotógrafos e cinegrafistas durante
geral,reporter-e-balea- a manifestação”. No dia seguinte, 14, o jornal traz matéria de capa sobre
da-no-olho-com-bala-
-de-borracha-em-
as manifestações: “Paulistano fica refém de bombas em novo confronto”.
-sp,1042144,0.htm A matéria também fala dos “motoristas e pedestres que ficaram no meio
Juventudes, manifestações sociais e representações sobre a violência 85

do fogo cruzado entre policiais e manifestantes”. “De um lado, a tropa de


choque jogava bombas e disparava balas de borracha. Do outro, manifestantes
respondiam com pedras e fogos de artifício. No meio, pessoas que tentavam
voltar para casa. Bombas caíram perto do campus da PUC-SP no centro”.

O Movimento Passe Livre São Paulo convoca o quinto ato para a segunda-feira,
dia 17 de junho. De acordo com a plataforma Cartografia de Espaços Híbridos,
o total de pessoas confirmadas pelo Facebook para participar do ato do dia 17 7 Causa Brasil é uma
saltou inimagináveis 1.018%, de 28.228 confirmados na quinta-feira dia 13, plataforma que ajuda a
entender quais são as
para 287.457 pessoas. A manifestação contou efetivamente com um número reivindicações dos pro-
menor de adeptos em São Paulo, mas ainda assim com um surpreendente testos em todo o país.
número de participações: foram cerca de 65 mil pessoas nas ruas em São Paulo Ela é abastecida au-
tomaticamente a cada
e 100 mil no Rio de Janeiro. Também houve demonstrações em outras dez hora, por milhares de
capitais pelo Brasil. No site CausaBrasil, outra plataforma de monitoramento menções espontâneas
de redes sociais utilizada neste trabalho7, é possível observar que ainda há uma no Facebook, Twitter,
Instagram, youtube e
centralidade no tema do preço das passagens nos assuntos comentados8, muito google+. A ferramenta
embora já seja possível verificar outras pautas sendo amplamente referenciadas funciona como um ter-
nas redes sociais, tais como democracia, violência policial, gastos públicos, mômetro que categori-
za, agrupa e interpreta
governo Dilma Rousseff, saúde, qualidade do transporte público e combate a voz dos manifestos.
à corrupção. A pauta das manifestações públicas em meio às redes sociais A metodologia utiliza-
torna-se ampla e diversificada, envolvendo temas relativos a direitos básicos, da chama-se Live Re-
search. As causas são
à economia, a liberdades individuais e outras questões políticas.
identificadas a partir
Imagem 01 do conteúdo de posta-
gens que tenham, ao
Temas mencionados redes sociais – entre 17/06/2013 e 18/06/2013 menos, uma das prin-
cipais hashtags ligadas
às manifestações. Esta
coleta é realizada por
uma ferramenta de mo-
nitoramento chamada
seekr. A análise é feita
com a combinação en-
tre a lista de hashtags
pré-cadastradas e uma
lista de diferentes ter-
mos que indicam o que
a postagem está rei-
vindicando. O texto foi
retirado do site www.
causabrasil.com.br

8 Principais termos mo-


nitorados: Preço do ôni-
bus; lucro das empresas
de ônibus; passe livre;
contraaumento; baixar
Fonte: Causa Brasil, 2013. www.causabrasil.com.br passagem.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


86 Rochele Fellini Fachinetto
Vítor Eduardo Alessandri Ribeiro

Os temas que ganham destaque nas redes sociais do dia 18 para o dia 19
de junho apontam justamente para essa ampliação das pautas, indo além
das reivindicações pela redução dos preços das passagens. Essas pautas
diversificadas tornam-se visíveis nas ruas em manifestações nos dias
subsequentes. Conforme a ilustração a seguir, percebemos que o tema do
preço das passagens perde a centralidade nas redes sociais, emergindo em
seu lugar as referências ao Governo Dilma Rousseff9, democracia, combate
à corrupção, segurança, qualidade do transporte público, saúde, postura da
polícia10, educação e gastos públicos.
Imagem 02
Temas mencionados redes sociais – entre 18/06/2013 e 19/06/2013

9 Cabe destacar que


os termos monitoradas
pelo Causa Brasil em
relação ao Governo Dil-
ma Rousseff incluem
tanto menções favorá-
veis quanto desfavorá-
veis. Alguns exemplos:
Dilma Roussef; abaixo
Dilma; Sai Dima; Fora
Dilma; Fica Dilma;
Apoio Dima; Eu apoio
Dilma; Governo Fede-
ral.

10 Principais termos
monitorados: sem vio- Fonte: Causa Brasil, 2013. www.causabrasil.com.br
lência; fim da polícia;
fim da polícia miltar; Com relação à análise das mídias, o jornal Folha de São Paulo do dia 17
polícia para quem pre-
de junho11 traz como chamada principal na capa: “Governo de São Paulo
cisa.
pede e terá reunião com manifestantes hoje. (...) Tropa de Choque não será
11 http://acer- acionada caso protesto às 17h seja pacífico, diz Secretário de Segurança
vo.folha.com.br/ Fernando Grella”. A reportagem trata do convite do Secretário de Segurança
fsp/2013/06/17/2/
de São Paulo ao Movimento Passe Livre para definir o trajeto da manifestação.
12 O Estado de São
Paulo – 17 de junho, No Estado de São Paulo, a matéria publicada na manhã do dia 17 de junho12,
9h56 http://www.esta-
dao.com.br/noticias/
e atualizada às 15h50, tem em seu texto a afirmação de que a manifestação
cidades,manifestantes- programada para as 17h00 conta com mais de 260 mil pessoas com presença
-dizem-que-entulho- confirmada na rede social Facebook. Ativistas pedem, pela rede social,
-no-largo-da-batata-e- que não haja violência. Alguns dos participantes das discussões virtuais
-armadilha-secretario-
-manda-retirar-mate- organizam enquetes sobre quais serão as próximas manifestações a serem
rial,1043411,0.htm feitas. “’Reforma política’ e ‘educação’ estão entre os motivos de protesto
Juventudes, manifestações sociais e representações sobre a violência 87

mais votados.” Em outra matéria do jornal13, no mesmo dia, o governador de


São Paulo, Geraldo Alckmin, proíbe o uso de balas de borracha pela polícia 13 O Estado de São
em manifestações públicas no Estado de São Paulo. “A medida ocorre após Paulo – 17 de junho,
15h21 http://www.
manifestantes e jornalistas ficarem feridos durante as manifestações ocorridas estadao.com.br/noti-
na última semana na capital paulista”. Manifestações em outras cidades do cias/geral,alckmin-
Estado são registradas. E ainda, as 15h54min outra matéria14 traz: O secretário -proibe-balas-de-bor-
racha-em-manifestaco-
de Segurança Pública de São Paulo, Fernando Grella Vieira, diz que “não es,1043500,0.htm
haverá necessidade de emprego de tropa de choque”. “As nossas diretrizes são
de que a polícia faça o papel de acompanhamento, liberação do trânsito, para 14 O Estado de São
não prejudicar a população e garantir que os manifestantes possam realizar de Paulo – 17 de junho,
15h54 http://www.es-
maneira ordeira o ato.” Em outras duas matérias15 publicadas no mesmo dia o tadao.com.br/noticias/
jornal aponta a violência policial como uma das pautas: “‘Que coincidência! cidades,secretario-de-
Não tem polícia, não tem violência’, disseram os manifestantes”. -seguranca-diz-que-
-pm-nao-fara-disper-
sao-geral-de-manifes-
No dia 18 de junho o jornal Folha de São Paulo traz como manchete de capa: tantes,1043507,0.htm
“Milhares vão às ruas ‘contra tudo’; grupos atingem palácios” e a imagem
15 O Estado de São
central mostra os manifestantes tomando o Congresso Nacional. No dia 18
Paulo – 17 de junho
de junho, em São Paulo, a Prefeitura Municipal torna-se alvo de alguns 16h50 http://www.es-
manifestantes e um carro de uma emissora de televisão é queimado. Seguem tadao.com.br/noticias/
os protestos nos dias 19 e 20 e diversas cidades pelo País, reunindo cerca geral,seguranca- do -
-planalto-e-reforcada-
de 300 mil pessoas no Rio de Janeiro. -devido-a-manifesta-
cao,1043520,0.htm
No jornal o Estado de São Paulo, na edição de 18 de junho16, O governador O Estado de São Pau-
lo - 17 de junho,
de São Paulo, Geraldo Alckmin, mudou o discurso e disse que “está aberto 20h39 http://www.es-
ao diálogo” ao ser questionado sobre a possibilidade de redução da tarifa do tadao.com.br/noticias/
transporte público. “’Queria fazer um elogio às lideranças do movimento e geral,em-sao-paulo-
também à segurança pública e à Polícia Militar’, disse o governador.” Na semana -manifestacoes-to-
mam-varias-aveni-
anterior, havia classificado manifestantes de “vândalos” e “baderneiros”. das,1043584,0.htm

No dia 19 de junho, mais um dia de protestos em São Paulo, a capa da Folha 16 O Estado de São
Paulo - 18 de junho,
de são Paulo traz a manchete “Ato em São Paulo tem ataque à Prefeitura, 2h01 http://www.esta-
saque e vandalismo; PM tarda a agir” (...) Manifestação começa pacífica dao.com.br/noticias/
com mais de 50 mil pessoas na Praça da Sé, mas grupos levam caos à impresso,alckmin--
-agora-elogia-lide-
região central”. As imagens mostram tanto cenas de violência quanto dos res-do-movimen-
manifestantes nas ruas. to-,1043630,0.htm

No jornal o Estado de São Paulo, no dia 19 de junho17, a matéria informa 17 O Estado de São
Paulo - 19 de junho,
que ao menos 47 pessoas foram presas por saque e depredações no centro 0h16 http://www.esta-
da capital paulista. “Segundo a polícia, o grupo é formado por moradores dao.com.br/noticias/
de rua e usuários de droga. Entre os produtos aprendidos com os detidos geral,em-sao-pau-
lo-47-sao-presos-por-
estão televisores de plasma, micro-ondas, jogos de copos e talheres, roupas -saques-e-depredaco-
e até um fogão de quatro bocas, que era carregado em plena Praça da Sé.” es,1044074,0.htm

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


88 Rochele Fellini Fachinetto
Vítor Eduardo Alessandri Ribeiro

No fim do dia 19 de junho, em São Paulo, as autoridades do poder executivo


municipal e estadual, anunciaram conjuntamente a decisão pela revogação
dos reajustes do preço das passagens. A mesma decisão foi tomada pelo
governador e prefeito da cidade do Rio de Janeiro no mesmo dia.

Com relação ao segundo período selecionado para esta análise, que compreende
as datas entre 18 e 20 de junho, é possível observar deslocamento de sentido
atribuído às manifestações tanto por parte de grandes grupos de mídia, quanto
por parte das autoridades políticas. No tocante às representações midiáticas
sobre as demonstrações nas ruas, observa-se a referência a dois grupos: os
manifestantes, que estariam nas ruas para reivindicar por diversas pautas,
e os vândalos, que constituem um grupo utiliza da violência, produz atos de
depredação do patrimônio público e privado e comete roubos e assaltos. Até o dia
17, tal distinção não era recorrente. Manifestantes eram genericamente tratados
como vândalos, e suas demonstrações deveriam ser indistintamente reprimidas.

Esses deslocamentos também puderam ser observados nos discursos de diversas


autoridades políticas, que, no período posterior a 17 de junho, começam a
expressar um discurso de maior aceitação da legitimidade do movimento e de
maior abertura à negociação com membros do Movimento Passe Livre.

Considerações finais
A análise das representações nos dois períodos considerados evidenciam
processos de visibilização e silenciamentos de determinados temas
durante as manifestações. Enquanto no primeiro período as manifestações
eram traduzidas pelos jornais analisados sob o prisma da violência, do
vandalismo e dos prejuízos trazidos ao patrimônio público e privado, o
segundo momento mostra a perda da centralidade da temática da violência
e as manifestações passam a ser representadas a partir de um viés político
enquanto manifestação democrática, tendo sua legitimidade reconhecida.
Neste momento, observamos uma distinção entre manifestantes e vândalos.

Os deslocamento de sentido produzido pela mídia está relacionado a três


aspectos principais: 1) a proporção que as manifestações tomaram em termo
de adesão popular não só em São Paulo, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre,
mas em muitas outras cidades do Brasil, produziu enorme visibilidade e
popularidade ao fenômeno, contra o que as mídias não puderam manter um
discurso criminalizante; 2) o dinamismo das redes sociais, que, trazendo
em tempo real a publicização e a ampla divulgação das representações
dos atores engajados nos movimentos, possibilitaram leituras alternativas
àquelas veiculadas pelas mídias tradicionais; e 3) os atos de violência
Juventudes, manifestações sociais e representações sobre a violência 89

policial cometida contra profissionais da imprensa no exercício da profissão


produziram uma abrupta ruptura na forma como o discurso sobre as
manifestações vinha sendo veiculado.

As representações elaboradas pelas autoridades políticas reproduziram


o mesmo padrão de deslocamento. No primeiro momento, opunham-se
veementemente ao reconhecimento da legitimidade das manifestações e
tratavam a ocupação de vias públicas como caso de polícia. À medida que a
adesão popular crescia, os discursos formulados tendiam ao reconhecimento 18 Podemos citar, por
da legitimidade democrática das manifestações e demonstravam maior exemplo, os seguintes
episódios: na noite de
abertura para possíveis negociações. É interessante perceber que, no 17 de junho, os portões
segundo período considerado nesta análise, de 18 a 20 de junho, quando há do Palácio dos Bandei-
a intensificação de atos depredatórios contra prédios públicos18, o discurso rantes, sede do Governo
do Estado de São Paulo,
acerca da violência também perde a centralidade nas representações
foi derrubado; no dia 18
formuladas pelas autoridades. de Junho, a prefeitura
de São Paulo tem toda
As manifestações que tomaram conta do País, em junho de 2013, foram a sua fachada destruí-
da e vidros quebrados,
protagonizadas sobretudo por jovens, que saíram às ruas reivindicando, em com uma viatura de um
um primeiro momento, a redução das tarifas do transporte público. A violência canal de televisão in-
policial deflagrada contra atos democráticos e a construção de representações cendiado à sua porta e,
na noite de 20 de junho,
criminalizantes por parte tanto das mídias tradicionais, quanto de lideranças após tentativas frustra-
políticas não foram capazes de refrear o ímpeto das mobilizações, ao contrário, das de invasão ao Con-
contribuíram para um crescente e impensável engajamento. gresso Nacional, ma-
nifestantes depredam
o Palácio do Itamaraty,
A ampliação das pautas nestas manifestações evidenciaram uma profunda Ministério das Relações
crise de representação política, que ao menos no presente momento tem Exteriores, em Brasília.
produzido impactos na agenda política do País em todos os níveis da
Artigo
Federação. São muitos os desdobramentos desta pressão popular que ainda Recebido: 22/06/2013
estão para ser compreendidos em sua totalidade. Aprovado: 30/06/2013

ABSTRACT: This article aims at analyzing the representations around the Keywords: Public
notion of violence as it is employed by three different actors involved in the demonstrations
- June 2013 -
recurrent manifestations against the raise in public transportation fees seen
representations on
in June, 2013, in Brazil. We depart from the perspective of the sociology violence - media
of conflictualities, which emphasizes the complexity of the current social
conflicts, to explore some of its dynamics and specificities. We focus on one
specific aspect for this analysis: the changing characterization of the notion
of violence as they occur in the representations by the youth (through the
analysis of both their discourse and their engagement on virtual communities
and demonstrations on the streets), by the conventional media (through the
analysis of daily news published by two major Brazilian newspapers), and by
political authorities (though the analysis of their public statements as noticed
by those newspapers). Throughout this research, there has become evident that
some actors involved made substantially different use of the same concept of
violence within just a short lapse of time. In trying to understand this abrupt

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


90 Rochele Fellini Fachinetto
Vítor Eduardo Alessandri Ribeiro

displacement of substantial meaning of violence as operated by some actors,


we acknowledged two different moments: first from June 11th until June 17th,
and second, from June 18th until the 20th. The displacement on the meaning
of violence have reflected a dispute amongst actors over the legitimacy of the
public demonstrations.

Referências
GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Editora
da Universidade Estadual Paulista, 1991.

IANNI, Octavio. A sociedade global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


1993.

PORTO, Maris Stela Grossi. Sociologia da violência: do conceito às


representações sociais. Brasília: Verbana Editora, 2010.

TAVARES DOS SANTOS, J. V. Violências e Conflitualidades. Porto Alegre:


Tomo Editorial, 2009.

WEISHEIMER, Nilson. A situação juvenil na agricultura familiar. Programa


de Pós-Graduação em Sociologia (UFRGS). Porto Alegre, 2009.

Sites consultados:

www.espaçovital.com.br

www.interagentes.net

www.causabrasil.com.br

http://acervo.folha.com.br/

http://www.estadao.com.br/
(*) Isaurora Cláudia Martins de Freitas é Doutora em Sociologia pela Universidade 91
Federal do Ceará (UFC), professora adjunta da Universidade Estadual Vale do Acaraú
(UVA) e líder do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Culturas Juvenis (GEPECJU). @ -
[email protected] José Ricardo Marques Braga é Graduado em Ciências Sociais
pela UVA e ex-bolsista de iniciação científica pelo CNPq na pesquisa “Mobilidade
Estudantil e Transporte Universitário na Região Norte do Ceará”, coordenada pela
Profa. Isaurora Cláudia Martins de Freitas, entre agosto de 2010 e julho de 2012.
@ - [email protected]

Os universitários viajantes:
suas práticas e sociabilidades(**)

Travelling university studants, their practices and


sociabilities

Isaurora Cláudia Martins de Freitas*


José Ricardo Marques Braga*

RESUMO: O artigo identifica e analisa, por meio de uma abordagem qualitativa, Palavras-chave:
as práticas e as sociabilidades que tomam lugar no interior dos ônibus jovens;
universitários
universitários da região norte do Ceará. Jovens de mais de cinquenta municípios
viajantes; práticas;
circunvizinhos a Sobral que almejam o acesso ao ensino superior nesta cidade sociabilidades;
se deslocam diariamente de seus municípios de origem em ônibus fretados ou mobilidade
cedidos pelas prefeituras municipais. As viagens diárias, que chegam a durar
até cinco horas (ida e volta), fazem com que o ônibus se torne um meio social
onde diversas práticas e formas de sociabilidade florescem. No trajeto, os
estudantes inventam formas de passar o tempo e criam modos de organização
para melhor conduzir a convivência que dura o tempo do curso superior que
frequentam. Partindo de um diálogo teórico com Augé, Certeau, Simmel, entre
outros autores, percebemos que os “usos” que os jovens fazem dos ônibus fazem
com estes deixem de ser apenas um meio de transporte e se transformem em
“espaço” repleto de práticas e astúcias através das quais os jovens tecem no
cotidiano um modo muito peculiar de ser universitário.

I ntrodução (**) Uma versão pre-


liminar deste texto
foi apresentada no III
No texto que segue apresentamos parte dos resultados de uma pesquisa1 Seminário Nacional
desenvolvida na região norte do Ceará, tomando como campo empírico Violência e Conflitos
os ônibus que transportam diariamente os universitários de mais de 50 Sociais: ilegalismos e
lugares morais (Forta-
municípios até a cidade de Sobral (maior da Região, distante 232 km de leza, 2011) com o título
Fortaleza) e como interlocutores os jovens que neles viajam. Nosso intuito, Práticas e Sociabilida-
ao lançarmos um “olhar intrometido e comprometido” (PAIS, 2006) para des Juvenis nos Trans-

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


92 Isaurora Cláudia Martins de Freitas
José Ricardo Marques Braga

esses espaços, é analisar as práticas e sociabilidades que neles tomam lugar,


para compreendermos de que modo elas contribuem para a tessitura de
um modo muito peculiar de ser jovem universitário, modo este constituído a
portes Universitários.
Disponível on line em: partir do contexto das políticas de educação superior no País, que criam uma
http://www.lev.ufc.br/ realidade marcada pela desigualdade nas condições de acesso e permanência
iiiseminario/wp-con- dos jovens neste nível de ensino.
tent/uploads/2013/06/
PR%C3%81TICAS-E-
-SOCIABILIDADES- Nesse sentido, pontuamos que o contexto histórico, social e político no qual
-JUVENIS-NOS- a nossa pesquisa se insere é o das reformas da educação superior levadas
-T R A N S P O R T E S -
a cabo, sobretudo, a partir do governo Lula (2003-2011). Tais reformas
-UNIVERSIT%
C3%81RIOS.pdf Na- apostaram na elevação das taxas de escolarização de nível superior via
quela ocasião a pesquisa expansão de vagas através de estratégias como: implantação de ações
ainda não havia sido fi- afirmativas, criação de novas universidades federais e a ampliação das já
nalizada e, portanto, al-
guns dados e discussões existentes pela implantação de campi avançados, sobretudo em cidades do
teóricas foram acrescen- interior. Não podemos deixar de citar o incentivo dado, pelo referido governo,
tados nesta versão. ao processo de mercantilização da educação, iniciado por seu antecessor
1 Ver nota anterior.
Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), ao criar, no final de 2004, o
Programa Universidade para Todos (PROUNI)2, através do qual o governo
2O Prouni foi institu- passou a conceder bolsas (integrais e parciais) a estudantes de graduação
ído por medida provi- em instituições privadas de ensino superior. Segundo Gonçalves (2008), o
sória em vigor a partir
de dezembro de 2004 PROUNI ampliou o modelo do Fundo de Financiamento ao Estudante do
e regulamentado pela Ensino Superior (FIES)3, ferindo, assim, os princípios da reforma que elegia
Lei 11.096 em janeiro as instituições públicas como referência.
de 2005.

3 Financia o ensino su- Sobral foi um dos municípios contemplados com a política de expansão. De
perior para estudantes modo que a Cidade, que até o ano de 2001 contava apenas com a Universidade
que não tenham con-
dições de arcar com os
Estadual Vale do Acaraú (UVA), recebeu um campus da Universidade
custos de formação e Federal do Ceará, um campus do Instituto Federal de Educação, Ciência
estejam regularmente e Tecnologia do Ceará (IFC) e várias Instituições de Ensino Superior
matriculados em insti- (IES) privadas, entre faculdades e institutos. Além disso, a UVA teve
tuições cadastradas no
programa e com avalia- suas matrículas ampliadas. Atualmente são cerca de 15.000 estudantes
ção positiva nos proces- matriculados nos cursos de graduação das IES localizadas na Cidade,
sos conduzidos pelo Mi- sem contar com as matrículas em cursos de graduação à distância e em
nistério da Educação.
cursos de pós-graduação stricto sensu4 e lato sensu. O maior contingente de
4 Das IES sediadas em graduandos está concentrado na UVA, que responde por 64,4% das vagas
Sobral apenas a UVA e ofertadas em cursos presenciais, com 9.271 alunos5.
a UFC possuem cursos
de mestrado. A UFC
possui dois mestrados e Para Milton Santos (2012), a medida da cidadania dos indivíduos é dada
a UVA dois. pela localização no território. Assim, “a possibilidade de ser mais, ou
menos, cidadão depende, em larga proporção, do ponto do território onde
5 Dados do semestre
2013.1. Fonte: pesquisa se está” (SANTOS, 2012, p. 107). Partindo desta premissa, podemos dizer
direta. que o fato de morar numa pequena cidade do interior, onde as condições de
Os universitários viajantes: suas práticas e sociabilidades 93

acessibilidade a bens e serviços são difíceis, representa uma desvantagem


para os jovens universitários do nosso estudo. As suas oportunidades são
escassas se comparadas com as dos jovens que moram nas capitais ou mesmo
em cidades médias como Sobral.

A grande oferta de vagas concentrada em uma única cidade, aliada à falta de


políticas de assistência estudantil6 para um público que majoritariamente
advém de famílias de baixa renda dos diversos municípios da região
norte do Estado, contribui para o surgimento do tipo de universitário aqui
apresentado: aqueles que experimentam a mobilidade intermunicipal
cotidiana a que resolvemos chamar de universitários viajantes. A expressão
é utilizada para diferenciá-los dos universitários que moram em Sobral
e que, portanto, experimentam duas outras situações: morar com os pais
ou, no caso dos que vêm de outras cidades, coabitar com outros jovens nas
chamadas “repúblicas estudantis”7.

A pesquisa foi realizada mediante aplicação de técnicas qualitativas,


especialmente a observação participante, que nos permitiu concretizar as
três etapas apontadas por Oliveira (1998) como constitutivas da construção
do conhecimento nas disciplinas sociais: o olhar, o ouvir e o escrever, tão
necessários à interpretação das “teias de significados” (WEBER, 1995;
GEERTZ, 2008) emaranhadas nas tramas do cotidiano dos transportes. A
observação foi feita ao longo das viagens realizadas nos ônibus de alguns
dos municípios que enviam estudantes a Sobral todos os dias. Dentre eles,
Tianguá, Acaraú, Marco, Viçosa do Ceará, Hidrolândia, Camocim, Ubajara,
Itapajé, Irauçuba, Santa Quitéria e Ipu. Além da observação, as entrevistas
semi-estruturadas (combinando questões abertas e fechadas), realizadas com 6 Nenhuma das IES
de Sobral oferece até o
estudantes da UVA, foram fundamentais para a construção das nossas análises. momento residências e
restaurantes universi-
Do ponto de vista teórico, partimos de alguns pressupostos. O primeiro deles tários.
é o de que a juventude é uma construção social diversa e plural (BOURDIEU, 7 Em Sobral, o que o
1983; MARGULIS & URRESTI, 1996; PAIS, 2003), portanto, se existem que chamamos de re-
várias formas de ser jovem, os jovens de que trata esta pesquisa experimentam públicas estudantis são
casas ou apartamentos
um modo muito peculiar de ser jovem universitário, diferenciando-se dos alugados e mantidos
universitários que moram na cidade sede da universidade, por exemplo. Em pelos próprios estudan-
segundo lugar, entendemos que a mobilidade cotidiana experimentada por tes, já que as IES da
uma parcela dos estudantes da UVA marca suas vidas de diversas formas e cidade não oferecem
residências universitá-
em diferentes graus, pois a mobilidade é um complexo fenômeno social que rias. Sobre os univer-
possui múltiplas naturezas, origens, periodicidades e sentidos que, para além sitários que moram em
das dimensões física, corporal e econômica, inclui as dimensões cultural, repúblicas estudantis
em Sobral ver FREI-
afetiva, imaginária, espacial e individual (CRESSWELL, 2006; URRY, TAS, MENEZES, 2008
2007). Assim sendo, nas viagens universitárias emergem vivências através e FREITAS, 2012.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


94 Isaurora Cláudia Martins de Freitas
José Ricardo Marques Braga

das quais se constitui a “identidade” do universitário formada, sobretudo,


na interação com os pares que, de acordo com Simmel (1983), constitui o
fundamento da sociabilidade. É a partir das interações entre si que os jovens
constroem e compartilham significados, lançando mão de inúmeras “astúcias”
e “modos de fazer” (CERTEAU, 1996) que permitem formar e transformar
os contextos nos quais se movimentam.

Entendendo que os usos que os indivíduos fazem dos lugares é o que os


transforma e (re)significa, concebemos, assim como Certeau (1996), que a
trama do cotidiano tem sua tessitura constituída nas inúmeras práticas ou
maneiras de fazer que tomam lugar nos transportes universitários analisados.
Nesta perspectiva, notamos que o cotidiano é reinventado por estes jovens
sob a invisibilidade que, aparentemente, caracteriza tais viagens. Buscamos
neste trabalho perscrutar as criações anônimas que nascem neste contexto de
mobilidade estudantil, apontando que as práticas cotidianas dos estudantes
não são fixas, mas móveis e flexíveis. Neste sentido, apresentamos, na
primeira parte do texto, as práticas identificadas ao longo das viagens, no
interior dos transportes observados. Na segunda parte, o foco são as interações
entre os universitários viajantes no espaço/tempo das viagens.

Práticas nos transportes universitários


Os ônibus universitários, dependendo da duração do percurso entre a
cidade de origem e Sobral, se transmutam. Passam de meio de transporte a
“espaços” onde tomam lugar o lazer, o debate, os estudos, as amizades, os
namoros e as festas. Para quem mora em uma cidade como Viçosa do Ceará,
por exemplo, encravada no topo da Serra da Ibiapaba, a 117 km de Sobral,
a viagem, dadas as condições do transporte e à subida da Serra, pode levar
até cinco horas (ida e volta). No trajeto, os estudantes inventam formas de
aproveitar o tempo e criam determinados modos de organização para melhor
conduzir a convivência que dura o tempo do curso superior que frequentam,
ou seja, de quatro a cinco anos.

De acordo com Augé (1994), os transportes coletivos seriam exemplos de


“não-lugares”, ou seja, ponto de passagem, destinado à individualidade
solitária, ao provisório, ao efêmero e, por isso mesmo, desprovido de todas
as referências que caracterizariam os lugares. Em seu estudo sobre o metrô
de Paris, o autor enfatiza o que chama de “paradoxo ritual” desse meio de
transporte: o fato de ser ao mesmo tempo coletivo (devido à aglomeração de
pessoas em seu espaço e às leis que codificam e ordenam os comportamentos
de todos os passageiros) e individual, já que, segundo ele, as viagens de
metrô sempre são vividas subjetivamente, individualmente. Portanto,
Os universitários viajantes: suas práticas e sociabilidades 95

para ele, a palavra que melhor descreveria o fenômeno social do metrô


seria “solidões”. Solidões no plural para dar conta do caráter limite da
aglomeração imposta pela dimensão dos vagões e pelos horários de trabalho
que determinam a frequentação e o tipo de contato que cria um modo de
relação fortuito e fugaz (AUGÉ, 2002, p. 56).

Observando os ônibus universitários foi possível percebermos que as


práticas e formas de sociabilidade estabelecidas dentro deles transformam
em “lugares” (identitários, relacionais e históricos) os veículos utilizados
nas viagens universitárias. (FREITAS, 2008).

Pesquisas realizadas em transportes públicos por pesquisadores


brasileiros enfatizam as sociabilidades constituídas nesses espaços. No
entanto, consideramos que, no caso dos transportes estudados por nós, as
sociabilidades se dão de forma mais intensa e as relações ali estabelecidas
são mais duradouras que as verificadas em outros tipos de transporte coletivo.
Isso acontece porque o uso que se faz deles é diferente, por exemplo, daqueles
estudados por Janice Caiafa (2002) e por Alcântara Jr. (2011): os ônibus
urbanos do Rio de Janeiro, no primeiro estudo, e os de São Paulo, no segundo.
Nos ônibus universitários, a convivência diária, que dura em média quatro
anos, faz com que os jovens vivam e experimentem esse espaço de forma
distinta, pois, conforme Freitas (2008),

O fato de viajarem todos os dias no mesmo ônibus, no


mesmo horário e para um mesmo destino faz com que
todos se conheçam. Rostos novos aparecem a cada
início de semestre, mas, mesmo estes, podem ser velhos
conhecidos, já que nas cidades pequenas é comum que a
maioria das pessoas se conheça (FREITAS, 2008, p.08).

Práticas e sociabilidades surgem a partir dessa maneira particular de


experimentar o transporte, já que se entregar ao convívio com os pares
configura-se como uma das possibilidades oferecidas no decurso da viagem
para passar ou aproveitar o tempo. Os ônibus universitários possuem vida.
Vida que a estudante do município de Itapajé descreve da seguinte forma:

A gente conhece outro, conversa. Porque a gente tem


tempo pra isso, porque a gente viaja duas horas de ida,
duas horas de volta. Então a gente tem um contato um com
o outro e existem também muitas coisas boas dentro do
ônibus, né? [...] É uma vida que há dentro do ônibus, né?
As pessoas comem dentro do ônibus, as pessoas dormem

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


96 Isaurora Cláudia Martins de Freitas
José Ricardo Marques Braga

dentro do ônibus, namoram dentro do ônibus, né? Brincam


dentro do ônibus, fazem festas, vivem. Vivem dentro do
ônibus. (Janaína, estudante de Letras da UVA).

Podemos perceber que o ônibus é vivenciado e visto como uma micro-


sociedade, não só pelas práticas que lá se constituem, mas também pelo
surgimento de relações dos mais variados matizes, sejam elas, de amizade,
namoro, conflito ou indiferença. No decorrer da pesquisa empírica, além
dessas relações, mapeamos e classificamos as principais práticas realizadas
pelos jovens universitários: práticas de descanso, práticas de lazer, práticas
religiosas, práticas comerciais, práticas de estudo e práticas de alimentação.
Esta classificação não é estanque, pois uma mesma prática pode ser ao mesmo
tempo de descanso e lazer.

Muitos estudantes que se submetem a tais viagens possuem, além dos


estudos, outras atividades em seus municípios, já que a maioria é oriunda de
famílias de baixa renda8, sendo, portanto, obrigados a trabalhar para garantir
seu sustento. Assim sendo, o trabalho e os estudos (incluindo aí as viagens)
tornam suas rotinas bastante cansativas. Em muitos casos, o único horário
em que um pequeno repouso é possível é no decorrer da viagem, quando
se recostam em suas poltronas e se entregam ao sono, isso para aqueles
que conseguem ir sentados, pois, como em muitos transportes o número de
estudantes é maior que o de poltronas, alguns viajam em pé e, quando o sono
chega, cochilam em pé mesmo ou em posições extremamente desconfortáveis
8 De acordo com o UVA como deitados sobre o motor ou sentados nos corredores e batentes dos
em Números 2011 (le- veículos. Uns ainda colocam seus fones de ouvido9 para escutar suas músicas
vantamento realizado preferidas e dormir ao som destas. Cena bastante comum nesses transportes,
pela Pró-Reitoria de
Planejamento da UVA), constituindo-se, portanto, numa prática de descanso facilmente observável.
74,94% dos graduan-
dos possui renda fami- Em alguns municípios, fazer silêncio é regra tanto na viagem de ida como
liar de até três salários
mínimos e 55,19% de-
na de volta. Na ida, por conta dos que precisam estudar ou descansar e na
les trabalham. volta porque quase todos estão exaustos da dupla jornada trabalho/estudo.
Obviamente existem exceções e, geralmente, nas viagens de volta da sexta-
9 Os fones de ouvidos
feira, tudo é permitido, já que no sábado não trabalham nem estudam.
são muito usados por
esses estudantes, já
que grande parte dos No espaço do ônibus, o tempo é capturado e fixado. Por esse motivo,
ônibus possui som, Alcântara Jr. (2011, p. 134) afirma que os ônibus são “um ambiente social
que é controlado pelos
motoristas, geralmente de confinamento social temporário”. Para os universitários viajantes, esse
num volume muito alto. confinamento é diário, faz parte de suas rotinas.
Para não escutar essas
músicas ou mesmo as
conversas dos colegas
Uma vez dentro do veículo e iniciada a viagem os
utilizam os fones. jovens ficam confinados e esperam o tempo da viagem
Os universitários viajantes: suas práticas e sociabilidades 97

se completar para que retomem o contato físico com o


mundo exterior que só se apresenta ao longo do percurso
através das paisagens que deslizam às margens da estrada,
emolduradas pelas janelas (FREITAS, 2008, p.09).

O trecho abaixo, retirado do poema “Janelas de um Viajante”, escrito pelo


estudante Lucas Samuel, morador de Camocim, que cursa Ciências Sociais
na UVA, diz muito sobre isso:

Atrás do vidro das janelas


A melodia fúnebre do motor me acompanha na longa jornada
Mais ainda quando são dias solitários
Mas quando a aglomeração me distrai
Nesses dias tudo é esquecido
O som não é ouvido e a paisagem não é contemplada
É quando os dias são de silêncio e solidão que assisto ao filme que
se repete a cada dia
E mesmo cansado, nunca me canso das sessões
De tempos em tempos as cenas mudam
O verde, o cinza e os tons de azul dão lugar a um cenário multicor
Das cidades que parecem serem fantasmas
Habitadas por zumbis sadios, mudos e aparentemente sem alma
As sensações não ultrapassam o vidro das janelas
(Poema postado no dia 29/04/210 no blog Expresso das Quatro10)

O poema atesta a sensação de confinamento, mas também o prazer e a distração


de compartilhar as viagens com os amigos nos dias de “aglomeração”.

Apesar do cansaço que esses itinerários proporcionam, alguns estudantes


(geralmente aqueles que não trabalham) vivem o espaço/tempo da viagem
como lazer. Assim, fazer festinhas de comemoração de aniversário ou outro
tipo de data, jogar cartas, contar piadas, ouvir música e cantar, conversar,
assistir filmes em notebooks, fazer paradas no meio da estrada para beber
e comer são as principais práticas de lazer observadas nesse contexto. Em
alguns ônibus, como os das cidades de Itapajé e Tianguá, os estudantes até
enfeitam o transporte com balões e papéis na comemoração do aniversário
de algum colega ou mesmo do motorista. No ônibus do município de Cariré
também foi observada uma decoração para os festejos juninos, onde as pessoas
se confraternizavam com comidas e bebidas (não alcoólicas). As paradas no
meio da estrada, em algum posto, por exemplo, também são bastante comuns, 10 Disponível em:
www.expressodasqua-
onde todos descem e compram lanches. tro.blogspot.com

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


98 Isaurora Cláudia Martins de Freitas
José Ricardo Marques Braga

O transporte do município de Marco é um dos mais animados, chegando


até mesmo a se transformar em boate nas viagens de volta da sexta-feira.
Adriano, estudante do curso de Filosofia, do referido município relata:
“Quase todos os dias era praticamente uma festa dentro do ônibus, passava
dos limites. Com direito a tudo, a bebida, a dança, a música, tudo. Muito
barulho, muita descontração.”

Nos transportes aqui tratados, observamos também a emergência de


relacionamentos afetivo-amorosos, onde pessoas se conhecem ao longo
das viagens, começam a namorar no interior do veículo e juntam-se em
matrimônio no decorrer do tempo da graduação. Na pesquisa conhecemos
alguns casais com esta história em comum.

Nas observações, conversas informais e mesmo nas entrevistas realizadas,


constatamos que namorar é uma prática recorrente no interior do veículo,
como afirma um estudante de Acaraú:

No início é bastante cansativo. Muitas vezes você quer


desistir da Universidade, quer parar, quer procurar outra
coisa, quer trabalhar, quer trancar a universidade. Mas
com um mês, dois, você acaba se adaptando a essa viagem,
acaba conhecendo novas pessoas, fazendo novos amigos,
acaba rolando também as paqueras dentro do ônibus, há o
namoro, acaba rolando também isso (Anderson, estudante
do curso de Física na UVA).

A indumentária, nesse contexto, adquire importância significativa,


principalmente para as meninas, que se vestem não apenas com o objetivo
de ir à universidade, mas também com vistas a chamar atenção dos garotos
dentro do transporte. O jogo da sedução é vivido intensamente nesses
veículos, constituindo-se, para muitos, como uma das melhores oportunidades
que o percurso oferece ao viajante. A paquera aparece como algo bastante
atrativo nesse contexto e o próprio namoro, no interior do veículo, assume
11 As cidades de ori-
gem desses estudantes
um significado interessante, pois, longe do olhar dos pais, no escurinho do
são de pequeno porte ônibus, há oportunidade, inclusive, para a troca de carícias mais íntimas.
e não possuem, em sua Nas viagens realizadas no ônibus de Camocim, foi possível observar que
maioria, oportunidades alguns casais costumam levar lençóis para, embaixo deles, namorar mais à
de lazer e divertimento
para os jovens, muitos vontade quando a noite cai.
deles são oriundos da
zona rural dos municí- O deslocar-se para estudar em outra cidade é vivido por alguns como grande
pios onde as opções de
lazer são mais escassas
esforço e sofrimento, para outros é tomado como oportunidade de diversão
ainda.. e lazer, algo escasso em suas cidades de origem11. Desta forma, podemos
Os universitários viajantes: suas práticas e sociabilidades 99

apreender o lazer como um dos artefatos da cultura juvenil universitária que


se constitui nos transportes estudantis, mantendo, assim, “relações sutis e
profundas” (DUMAZEDIER, 1979, p. 20) com as atividades acadêmicas ou
até mesmo confundindo-se com estas.

Em nossa sociedade, onde o lazer e o “não lazer” estão circunscritos por


uma linha tênue, podemos observar que as fronteiras entre atividades
laborais ou de estudos e as práticas de lazer estão cada vez mais intricadas.
O ir à universidade, mesmo em condições infaustas, torna-se momento de
entretenimento para alguns.

De acordo com Roger Sue (1980), o lazer pressupõe “um sentimento de


liberdade da pessoa no exercício duma atividade” (SUE, 1980, p. 03), pois
mesmo aquelas atividades adversas em sua realização, no caso as atividades
acadêmicas, podem tornar-se momento de lazer. Tudo depende de como o
indivíduo se comporta frente a ela. No tocante a esses universitários que
enfrentam horas e horas de viagem, muitas vezes em situações desconfortáveis
e submetidos a vários riscos durante o trajeto, observamos um estado de
espírito que transforma essas atividades que, à primeira vista são laboriosas
e cansativas, em momentos de descontração. É o que nos informa a estudante
da cidade de Santa Quitéria:

O que eu mais gosto nessas viagens eu acho que é a


convivência com as pessoas, tem muita gente que eu via
assim no município no dia a dia e tal e não falava, não
conversava e no ônibus a gente está conhecendo novas
pessoas, vai se entrosando mais. Tem muitos momentos
bons, de diversão, de bate-papo, que acaba compensando
o sofrimento da viagem (Lúcia, estudante de Ciências
Sociais na UVA).

Práticas religiosas também foram observadas ao longo das viagens. Nos


transportes dos municípios de Santa Quitéria e Marco, por exemplo, alguns
jovens costumam rezar o terço a partir das 18h00, considerada na tradição
católica a “hora do anjo”, numa referência ao momento em que o anjo Gabriel
anunciou a gravidez de Maria. No ônibus de Itapajé, jovens evangélicos
costumam entregar aos colegas panfletos com conteúdos bíblicos12. Tais fatos
demonstram que as práticas trazidas do meio social no qual esses jovens
estão inseridos são reproduzidas no interior dos veículos. 12 Segundo eles, isso
é um mandamento de
Deus: pregar a palavra
Outro elemento de nossa sociedade “reproduzido” nesse tipo de transporte de Deus aos que não o
são as práticas comerciais. Vários produtos são comercializados pelos jovens conhecem.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


100 Isaurora Cláudia Martins de Freitas
José Ricardo Marques Braga

dentro dos ônibus, constituindo-se como fonte de renda para os estudantes,


haja vista que as oportunidades de emprego em suas cidades são escassas.
Podemos verificar a venda de chocolates, doces, lingeries e roupas, bem como
a revenda de produtos, sobretudo cosméticos, por meio de revistas e catálogos.
As práticas comerciais podem ser vistas em grande parte dos transportes.
Tendo em vista a superlotação de quase todos os transportes aqui referidos,
observamos até mesmo a comercialização de assentos dentro dos ônibus
entre os estudantes, como nos relata o estudante do município de Irauçuba:

Aí, às vezes quando eu venho em pé tem um colega meu


que eu compro, sabe? Eu pago ele, aí eu compro a cadeira
dele aí eu venho sentado e ele vem em pé. Eu prefiro pagar
que vir em pé, porque também eu passo o dia trabalhando
e tal. Eu paguei, da ultima vez, eu paguei quatro reais
(Rafael, estudante de Direito na UVA).

Nos ônibus há lugar também para as atividades acadêmicas. Devido ao


tempo escasso, ocasionado pelo acúmulo de atividades e, sobretudo, pelo
longo tempo das viagens, os estudantes procuram colocar as leituras em
dia. Assim sendo, as horas passadas dentro do ônibus configuram-se como
tempo precioso para quem, além de estudar, ainda trabalha, como é o caso
da estudante do município de Irauçuba:

Teve uma época que eu só conseguia estudar dentro do


ônibus, eu trabalhava dois expedientes e saia do trabalho
praticamente na hora de ir pra faculdade, e o tempo que eu
tinha pra estudar era dentro do ônibus (Paula, estudante
de Administração na UVA).

Para outros, o tempo da viagem é computado como tempo da universidade


que também agrega conhecimento e crescimento pessoal e intelectual e,
por isto, o ônibus é uma extensão do ambiente universitário. É que afirma
o estudante de Acaraú:

[...] sobre o transporte eu queria dizer que é uma extensão


da universidade, é um local também de conhecimento
onde você se desenvolve muito. Essas horas não são como
muita gente diz, (...) horas perdidas, (...) horas que você
poderia tá estudando; são (...) horas que com certeza
aumenta o seu, o seu conhecimento, o seu convívio, tudo
isso vai, vai lhe ajudar a lhe formar um, um estudante
(Lucas Eduardo, estudante de Ciências Sociais na UVA).
Os universitários viajantes: suas práticas e sociabilidades 101

O tempo da viagem, portanto, seria um tempo morto e improdutivo se não


fosse aproveitado das mais diferentes formas e o transporte seria apenas um
meio de locomoção.

De acordo com Carlos (2007), o sentido dos “lugares” é criado pelas relações
que os indivíduos estabelecem com eles e com as pessoas que neles habitam.
Portanto, “o lugar só pode ser compreendido em suas referências, que não são
específicas de uma função ou de uma forma, mas produzidas por um conjunto
de sentidos, impressos pelo uso” (CARLOS, 2007, p.12). É isso que esses
jovens comunicam a nossa ver e é isso que faz a riqueza e a peculiaridade
desse modo específico de ser universitário.

Diante do exposto, podemos dizer que, no percurso de ida e volta à


universidade, os ônibus universitários ganham uma dimensão social e
cultural. Neles verificamos, sobretudo, a invenção de um cotidiano muito
peculiar, mediante práticas realizadas pelos estudantes e dos usos que eles
fazem desses veículos. Concebidos inicialmente para ser apenas um meio
de locomoção, os transportes se transmutam em “espaço”, lugar praticado,
na acepção de Certeau (1998) onde as práticas e “artes de fazer” marcam
as relações dos indivíduos entre si e com a ordem.

Partindo deste pressuposto, analisaremos a seguir como se dão as relações


interpessoais circunscritas a essas micro-sociedades, bem como seus
desdobramentos.

Entre afetos e conflitos: as sociabilidades nos


transportes
Nesta parte do trabalho trataremos das modalidades de interação verificadas
nos transportes aqui referidos, já que, de acordo com Elias (1994), a realidade
é criada através das interações humanas. Como já citamos acima, os ônibus
universitários são utilizados e vivenciados de forma diferente de outros
meios de transporte, pois neles o fato dos viajantes serem todos estudantes
universitários e viajarem todos os dias juntos faz com que floresçam nesses
ambientes diversas práticas e modos de interação, o que para Simmel (2006)
constitui a própria noção de sociedade.

Tomando o conceito de sociabilidade, elaborado inicialmente por Simmel


(2006), entendemo-la como tipo puro de relação social, com um fim em
si mesmo, onde o estar junto com o outro é a única finalidade. Podemos
perceber a centralidade que a noção de interação tem na teoria simmeliana
nas palavras do próprio autor:

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


102 Isaurora Cláudia Martins de Freitas
José Ricardo Marques Braga

Quando os homens se encontram em reuniões econômicas


ou irmandades de sangue, em comunidades de culto ou
bandos de assaltantes, isso é sempre o resultado das
necessidades e de interesses específicos. Só que, para
além desses conteúdos específicos, todas essas formas
de sociação são acompanhadas por um sentimento e
por uma satisfação de estar justamente socializado, pelo
valor da formação da sociedade enquanto tal. (SIMMEL,
2006, p. 64).

Assim, para o autor, a sociabilidade nasce quando os conteúdos e os interesses


materiais ou individuais são diluídos e o estar junto se sobrepõe a esses
conteúdos e interesses. O prazer se dá única e exclusivamente por ocasião da
união, sem o imperativo de alguma razão ou propósito final, sustentando-se da
relação com a realidade tal qual uma obra de arte (SIMMEL, 2006). Ainda
de acordo com o autor, “a sociabilidade [...] não tem qualquer finalidade
objetiva, qualquer conteúdo ou qualquer resultado” (SIMMEL, 2006, p. 66).

A sociabilidade, no contexto dos transportes universitários, mostra-se


relevante uma vez que a “natureza social” dos indivíduos aflora sobremaneira
no convívio nesse meio social. A importância das relações interpessoais
é notada quando os estudantes nos relatam o prazer de encontrar-se na
presença de seus colegas. Estar na parada onde se espera o ônibus, por
exemplo, torna-se um momento de deleite na companhia de seus pares.
Alguns (evidentemente os que não trabalham) até procuram chegar mais
cedo para bater papo com os colegas, colocar as conversas em dia e essas
conversas se estendem muitas vezes até a chegada a Sobral. Durante o trajeto,
podemos notar estudantes transitando por todo o veículo, conversando com
grande parte do grupo. Essas aproximações interpessoais proporcionam
grande prazer durante o tempo despendido na viagem. O impulso sociável,
a busca pela proximidade são vividos em níveis diferentes, assim sendo,
existem indivíduos também que possuem maior dificuldade em estabelecer
laços sociais.

Uma importante característica da sociabilidade é sua natureza democrática.


Podemos constatar, segundo Simmel, que o fomento da sociabilidade é o
“impulso sociável”, que é regido pela seguinte lei: “cada qual deve satisfazer
esse impulso à medida que for compatível com a satisfação do mesmo
impulso nos outros” (SIMMEL, 2006, p. 69). Trata-se de oferecer valores
para reciprocamente recebê-los. Assim sendo, aquele indivíduo que quer
receber valores sociáveis, como alegria, deve primeiramente oferecê-los. Para
Simmel, na sociabilidade, o sujeito apenas recebe aquilo que garante ao outro.
Os universitários viajantes: suas práticas e sociabilidades 103

Constatamos que nos transportes observados, o sujeito que convive no seu


grupo, com pessoas com quem possui mais afinidade e está em contato maior,
se relaciona com pessoas de outros grupos de forma diferente, pois destes não
recebem a mesma atenção. Enquanto o seu envolvimento com pessoas mais
próximas é de afeto, alegria, brincadeira etc., seu relacionamento com pessoas
mais distantes é marcado pela formalidade ou até mesmo pela hostilidade,
pois os valores recebidos nesse tipo de relação são outros.

A formação de grupos dentro do conjunto maior é perceptível. Pessoas com


afinidades entre si vão se juntando, formando grupos e territórios distintos no
espaço do ônibus. Os que sentam na frente, por exemplo, se comportam diferente
da “turma do fundão”, ou seja, os que ocupam a parte de trás do veículo e são
assim chamados por serem mais dados à bagunça, ao barulho e à diversão.

Podemos pensar as relações sociais entre os estudantes de um mesmo


município como simétricas, uma vez que todos são pertencentes ao mesmo
grupo (são todos universitários do mesmo município). Entretanto, a partir
da observação feita nos transportes, ressaltamos que o grupo, aparentemente
homogêneo, apresenta várias segmentações. Além da distinção pelo lugar
que costumam ocupar no território do veículo, a distinção pelo tempo de
universidade é uma das mais visíveis. Os atritos entre novatos e veteranos
são um fenômeno constante nos transportes universitários, como podemos
notar na fala de alguns estudantes:

Na época, entre os alunos que já eram veteranos, a gente


notava via que eles se achavam com mais direitos [...]
com mais [...] autoridade. (João, estudante de Ciências
Sociais na UVA, do município de Tianguá).
Tem os novatos e tem os veteranos. Aí os veteranos têm,
eles tem uma certa unidade no que diz respeito ao que
eles chamam de manter o ônibus calado. Eles querem ser
como se fossem nossos pais. Dos novatos. Já nós novatos
nós acha que o ônibus num é só um lugar pra gente ficar
sentado, parecendo que morreu todo mundo lá dentro.
A gente acha que a gente tem que conversar, até porque
demora muito até chegar lá. Aí os grupinhos é como
se fosse pra criticar na verdade (Valéria, estudante de
Filosofia na UVA, do município de Itapajé).

Essa divisão nos remete à distinção verificada por Elias e Scotson (2000)
em “Os Estabelecidos e os Outsiders” onde, ao analisarem uma pequena

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


104 Isaurora Cláudia Martins de Freitas
José Ricardo Marques Braga

comunidade inglesa, perceberam que o grupo estabelecido, ou seja, o que


morava há mais tempo no local, lançava estigmas de inferioridade sobre
os moradores mais recentes (outsiders), através das redes de solidariedade
e, sobretudo, da fofoca, embora não houvesse nenhuma diferença entre os
grupos, a não ser o tempo de moradia.

De acordo com Simmel (Idem), sempre existe um fator de diferenciação


entre as pessoas para que possa haver as ‘relações entre iguais’. Novatos
relacionam-se normalmente com outros novatos, pois muitas vezes são
excluídos, ao menos simbolicamente, do contato com os demais.

Outros parâmetros são tidos em consideração para divisões grupais. Dentre


os quais destacamos, além do tempo de viagem, outras segmentações, tais
como a separação por cursos de graduação, por instituição de ensino13, por
campus, por afinidades pessoais, idade, condição social entre outros. É
comum haver grupos separados, bem delimitados por esses critérios. Isso é
notado pelos universitários principalmente no que se refere aos alunos das
faculdades privadas. É perceptível pelas observações e também captado
pelos discursos que os estudantes das instituições particulares restringem
seu círculo social entre eles. Segundo uma estudante de Itapajé:

Pessoal do Luciano (Faculdade Luciano Feijão,


instituição privada), principalmente, não se ‘misturam’
com a gente não. Geralmente eles ficam só no grupinho deles.
Não são todos, mas isso existe sim. Muita gente percebe.
(Luciana, 22 anos, estudante do curso de Letras, grifo nosso).

Entendemos que, apesar de certa simetria existente nas relações entre esses
estudantes, podemos nitidamente demarcar alguns grupos menores que se
distinguem pela posse de mesmo “capital simbólico”. De acordo com Heitor
Frúgoli (2007), na interação entre essas redes de indivíduos são definidas
“simbolicamente certas diferenças socioculturais” (FRÚGOLI, 2007, p. 25).
Quando essa qualidade “intraclassista” da sociabilidade é rompida, isto é,
grupos com diferentes capitais culturais passam a interagir, deflagram-se
vários conflitos. No caso dos transportes universitários, é comum grupos de
13 Os transportes uni- estudantes, por exemplo, entrarem em conflito por conta do barulho feito no
versitários a que esse transporte ou qualquer outro assunto que diga respeito ao conjunto como um
trabalho se refere não
transportam apenas es-
todo. Os mais animados geralmente sentam na parte de trás, conversando
tudantes da UVA, mas em tom alto, ouvindo música em seus celulares, conversando ou jogando. As
também de outras IES pessoas da frente, que gostam de ir estudando, dormindo, descansando, se
sediadas em Sobral, incomodam com o barulho emitido pela “turma do fundão”. Daí, também,
como UFC, IFCE e al-
gumas faculdades pri-
surgem conflitos, frutos das diferenças culturais e pessoais e de afinidades
vadas. entre os indivíduos que partilham esse espaço.
Os universitários viajantes: suas práticas e sociabilidades 105

De acordo com Simmel, o conflito não é nocivo à vida social, ao contrário,


torna-a cada vez mais rica e plena, colaborando para a integração grupal. Para
o autor, “o conflito está assim destinado a resolver dualismos divergentes; é
um modo de conseguir algum tipo de unidade [...] o próprio conflito resolve
a tensão entre contrastes” (SIMMEL, 1983, p. 122, 123). Trata-se, portanto,
de um fenômeno que “à primeira vista parece desassociação, mas na verdade
é uma das formas elementares de socialização” (SIMMEL, 1983, p. 128).

Um acentuado elemento da sociabilidade notada nos transportes observados


é a conversação que, carregando consigo a referência de autonomia, não
tem sua importância no conteúdo e sim no próprio discurso. Seu sentido
encontra-se na troca de ideias. O objeto da conversação, que é apenas um
meio, é variável e ocasional, o que confirma sua fraqueza em detrimento da
finalidade estabelecida. De acordo com Simmel,

[...] se, na seriedade da vida, os seres humanos conversam


a respeito de um tema do qual partilham ou sobre o qual
querem se entender, na vida sociável, o discurso se torna
um fim em si mesmo - mas não no sentido naturalista,
como no palavrório, e sim como arte de conversar, com
suas próprias leis artísticas. (2006, p. 75).

Notamos que as conversas nos transportes universitários existem


independentes dos conteúdos. Existem para preencher lacunas que a falta
de contato com o mundo exterior ocasiona. Existem também para aprofundar
laços que, no mundo exterior, não encontram espaço para serem aprofundados
devido à falta de tempo das pessoas nas suas cidades de origem, pois
trabalham ou se dedicam à família e aos afazeres domésticos. As conversas
abordam infinitos assuntos e adquirem contornos bem particulares. Podem
acontecer entre duas pessoas, ou entre um grupo maior, podem ser discretas
ou descontroladas, chamando, assim, a atenção de todos no veículo. Versam
sobre os mais diversos assuntos: futebol, política, problemas da cidade,
os estudos e o próprio transporte. O tempo da viagem é, portanto, o tempo
que sobra, inclusive para fazer e cultivar amizades e amores e construir
aprendizados, como observa o estudante de Acaraú:

Nessa viagem o que ocorre: uns cochilam um pouco,


outros conversam um pouco, outros dormem um pouco,
uns leem um livro, outros vão contando piadas, vão
contando histórias. E também ao mesmo tempo há
discussões políticas sobre a cidade, questão social da
cidade, o que poder ser melhorado, questões sobre

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


106 Isaurora Cláudia Martins de Freitas
José Ricardo Marques Braga

educação. Então, há dentro do ônibus esses debates,


esses conflitos, uns discordam de algumas colocações,
então é bem interessante o que ocorre dentro do ônibus
em termos de conhecimento (Anderson, estudante do
curso de Física na UVA).

Apesar dos conflitos que às vezes surgem, entre a turma da frente e a do


fundão, entre calouros e veteranos, entre os estudantes da UVA e o das
IES privadas ou entre os que possuem divergências políticas, as falas
dos estudantes revelam a importância do estar junto e de ter um bom
relacionamento com todos. Ser amigo, simpático, cumprimentar os colegas
é algo vital e prazeroso para grande parte dos estudantes que compartilham
as viagens. É o que mostra um estudante do município de Itapajé:

Aqui, assim, a galera toda se dá bem, geralmente não tem


conflito não. Se dar bem entre a gente é importante. É bom
você chegar, cumprimentar todos, ter sempre um sorriso
no rosto. Saber cativar as pessoas, ser amigo mesmo, já
que a gente tá aqui todo dia. (Luís, 21 anos, estudante
do curso de Ciências Contábeis)

O importante é manter as relações com seus pares, em tal contexto e aprender


a conviver é lição que vêm com o tempo de viagem. Caiafa (2002) afirma que
a relação com o espaço do ônibus e com as pessoas com quem se partilha
a viagem impulsionam experiências de si. A viagem em si e seu percurso
pode ser pensada como uma prática vivida e “reconhecida em pequenos
atos corriqueiros e aparentemente sem sentido que criam laços profundos
de identidade” (CARLOS, 2007, p. 12) dos universitários viajantes entre si
e com o próprio ônibus.

Assim, a materialidade do transporte e as interações que nele se criam


marcam de diversas formas e em diferentes graus a vida dos universitários que
neles viajam, diferenciando-os dos estudantes que não vivem essa experiência
e imprimindo significados outros ao ser universitário (FREITAS, 2008).

Considerações finais
De acordo com Berger (1986, p. 27), o habitat natural do sociólogo são todos
os lugares de reunião humana. O bom sociólogo é aquele que é tomado de
curiosidade “diante de uma porta fechada atrás da qual se ouçam vozes
humanas” por imaginar que ali existe uma “faceta da vida humana ainda
não percebida e entendida” (p.28). Nosso interesse em adentrar as portas
dos transportes que conduzem os universitários dos diversos municípios da
Os universitários viajantes: suas práticas e sociabilidades 107

região norte do Ceará às IES de Sobral todos os dias, surgiu desta crença
e da percepção de que os ônibus universitários constituíam verdadeiras
comunidades sobre rodas através das quais poderíamos acessar um modo
muito peculiar de viver o tempo dos estudos universitários.

Em texto anterior, onde destacamos outras dimensões da vivência dos


universitários viajantes, já ressaltamos que as práticas e relações que se
apresentam no contexto destas viagens transformam e ressignificam não
só o espaço dos transportes que vira lugar de socialização e vivência de
experiências múltiplas, mas os próprios jovens que neles viajam. Seria
improvável pensar que alguém possa ali entrar e sair da mesma forma que
entrou (FREITAS et al, 2012, p. 19), pois, como afirma Ianni, “no curso da
viagem há sempre alguma transfiguração, de tal modo que aquele que parte
não é nunca o mesmo que regressa.” (2000, p.31). Os universitários com
os quais tivemos contato nos deram testemunhos de muitas transfigurações
em suas vidas a partir do momento em que entraram na universidade e,
consequentemente, começaram a viajar para cumprir a graduação.

Acreditamos relevante o estudo das práticas e das sociabilidades nos


transportes universitários que nascem em meio às dificuldades e às lutas
enfrentadas diariamente no percurso destes jovens que desejam conquistar
um diploma de nível superior. Captando a importância do “estar junto”
num ambiente onde, à primeira vista, as relações interpessoais poderiam
ser poucas ou mesmo inexistentes, acabamos por descobrir que a categoria
estudante universitário abriga uma multiplicidade de situações e modos de
ser que nos levou a perceber a heterogeneidade das juventudes universitárias.
Essa que inclui as viagens cotidianas é apenas uma delas e, como já dito
no início desse texto, não pode ser pensada sem a devida relação com as Artigo
políticas de educação superior que geram diferenças nas formas de estar e Recebido: 17/05/2013
permanecer na universidade, dependendo do lugar geográfico onde se vive. Aprovado: 26/06/3013

ABSTRACT: The article identifies and analyzes, by means of a qualitative Keywords: youngs;
approach, the practices and the sociability that take place within the university travelling university
students; practices;
buses of northern Ceará. Young people from more than 50 municipalities
sociabilities;
surrounding Sobral, who crave the access to higher education in this city, mobility
travel daily from their municipalities of origin in chartered buses or in buses
made available by the municipal governments. The daily journeys, which may
last up to five hours (round trip), make the bus a social environment, where
various practices and forms of sociability flourish. During the trip, the students
invent pastimes and create ways of organization to better their coexistence,
which lasts for the duration of the course they are attending. Starting from a
theoretical dialogue with Auge, Certeau and Simmel, among other authors,
we have realized that the “uses” these young people make of these buses
turn them into more than mere means of transportation, but a “space” full of
practices and tricks through which these young people weave, in their everyday
life, a very peculiar way of being a university student.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


108 Isaurora Cláudia Martins de Freitas
José Ricardo Marques Braga

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(*) Mariana Chies Santiago Santos é Mestre em Ciências Criminais/PUCRS e 111
Doutoranda em Sociologia/UFRGS. Advogada voluntária no Serviço de Assessoria
Jurídica da UFRGS. @ - [email protected] Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo
é Doutor em Sociologia pela UFRGS. Professor adjunto da PUCRS, Coordenador
do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUCRS. @ - rodrigo.
[email protected]

Políticas de Segurança
Pública e Juventude:
o caso do Rio Grande do Sul

Public Security Policies and Youth: the case of Rio


Grande do Sul

Mariana Chies Santiago Santos*


Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo*

RESUMO: O presente artigo é, em parte, fruto de uma dissertação de mestrado1 Palavras-chave:


defendido no Programa de Pós-graduação em Ciências Criminais da PUCRS Segurança Pública;
Políticas Públicas;
em fevereiro do ano de 2013 e divide-se em dois eixos principais. O primeiro
Juventude;
deles pretende dar conta da apresentação do Programa Nacional de PRONASCI; RS na
Segurança Pública com Cidadania (PRONASCI), contextualizando as políticas PAZ;
a partir dele implementadas, em dois municípios gaúchos. Nesse sentido,
apresenta-se o projeto e as percepções dos jovens em dois territórios de paz
no Rio Grande do Sul. Em segundo lugar, pretendemos apresentar um novo
programa estadual que está sendo proposto no estado - RS na PAZ - para dar
conta dos cortes financeiros realizados pelo Governo Federal em relação ao
PRONASCI, questionando a descontinuidade das ações na área de segurança
pública em nosso país.

O PRONASCI e suas inovações


A construção de uma política de segurança pública municipalizada, de 1 CHIES-SANTOS, Ma-
riana. Segurança Públi-
acordo com o preconizado no PRONASCI, vem como uma resposta, a priori ca para que(m)? Uma
coerente, à demanda social pelo controle do crime e da violência de maneira análise da implementa-
mais eficaz. Como se sabe, a segurança pública está em segundo lugar na ção do PRONASCI em
duas cidades gaúchas.
preocupação dos brasileiros2, o que coloca as políticas de segurança pública PPGCCRIM/PUCRS:
no centro do debate político, especialmente em períodos eleitorais. Porto Alegre, 2013.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


112 Mariana Chies Santiago Santos
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Com o aumento da população e da criminalidade violenta, desde o final dos


anos 1970, as políticas de segurança passaram a orientar-se no sentido de
conter a violência a qualquer custo (AZEVEDO, 2006, p. 39), tendo em vista
a pressão da opinião pública que era e ainda é reforçada pelas principais
redes de comunicação.

Rompendo com uma concepção meramente repressiva, e buscando novas


formas de prevenção mais eficazes do que a pura e simples ameaça da
punição, as formas de municipalizar a segurança pública estão sendo
testadas pelo Governo Federal com a implementação de programas que
visam combinar a opinião dos agentes públicos com as opiniões das pessoas
realmente afetadas pela difusão da violência. Nesse sentido, os programas
que estão sendo implementados buscam deixar de lado somente aquele estilo
ultrapassado (porém muito utilizado) de “lei e ordem”.

O PRONASCI3 foi desenvolvido pelo Ministério da Justiça e tem como


principal inovação a concepção de que o controle do crime somente pode
ser alcançado através da prevenção social, com a participação comunitária
e a integração dos órgãos responsáveis pela segurança pública. Isso quer
dizer que, articulando políticas sociais com políticas de segurança, o projeto
tinha como prioridade a prevenção e a participação da sociedade civil no
combate à criminalidade.

Dentre os principais objetivos do PRONASCI, importante também destacar


a valorização do trabalho dos profissionais atuantes na área da segurança
pública, a reestruturação do sistema penitenciário e o combate à corrupção
policial. Além disso, os programas que faziam parte do PRONASCI ensaiavam
2 Ver, a esse respeito, a execução de suas metas com base na aproximação das opiniões e vontades
íntegra da pesquisa da sociedade civil e das instituições públicas, visando, com isso, a uma maior
em: http://www.cni. participação comunitária para desenvolver um novo conceito de segurança
org.br/portal/data/
files/FF808081331
pública, em democracia. De acordo com os documentos oficiais, o governo federal
3424801331C6A- investiu mais de 6 bilhões de reais até o final do ano de 2012 no Programa.
C 7 4 0 5 A 2 5 / Pe s q u i -
sa%20CNI-IBO-
PE%20Retratos%20
O número de homicídios cometidos contra jovens (15 a 24 anos) no Brasil é
da%20Socieda- extremamente elevado (IGLESIAS, 2011). Um dos objetivos do PRONASCI
de%20Brasileira%20 era diminuir essa taxa. Para tanto, um dos seus públicos-alvo foram os jovens
Seguran%C3%A7a%2 que se encontram ou já estiveram em situação de conflito com a lei. Presos
0P%C3%BAblica%20
Out%202011.pdf, ou egressos do sistema penal, mulheres, profissionais de segurança pública,
acesso em jul 2013. também faziam parte do rol de atingidos por este programa.
3 Ver mais, a esse res-
peito: http://portal.
De acordo com a concepção expressa pelo PRONASCI, a execução dos
mj.gov.br. diferentes programas se daria por meio da articulação entre os representantes
Políticas de Segurança Pública e Juventude: o caso do Rio Grande do Sul 113

da sociedade civil e as diferentes instituições de segurança – polícias civil e


militar, corpo de bombeiros, guarda municipal, secretaria de segurança pública
– através da criação de Gabinetes de Gestão Integrada Municipais (GGIM).

De acordo com o documento que sintetiza a proposta do PRONASCI,


seriam celebrados convênios, contratos, acordos e consórcios com estados,
municípios, ONGs e organismos internacionais para que as ações do programa
fossem efetivadas. Além disso, a ideia era que se fizessem parcerias para
agir em conjunto com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) nas
regiões onde fossem necessárias obras de urbanização.

Os projetos de destaque incluídos no PRONASCI são os seguintes, de acordo


com o site oficial do Ministério da Justiça:

(i) Bolsa-Formação – Os profissionais de segurança pública


receberão novos estímulos para estudar e atuar junto às
comunidades. Policiais civis e militares, bombeiros, peritos e
agentes penitenciários de baixa renda terão acesso a uma bolsa
de até R$ 400. Para ter direito ao benefício, o policial terá que
participar e ser aprovado em cursos de capacitação promovidos,
credenciados ou reconhecidos pela Secretaria Nacional de
Segurança Pública (Senasp) do Ministério da Justiça.
(ii) Formação Policial - A qualificação das polícias inclui práticas
de segurança-cidadã, como a utilização de tecnologias não letais;
técnicas de investigação; sistema de comando de incidentes;
perícia balística; DNA forense; medicina legal; direitos humanos,
entre outros. Os cursos serão oferecidos pela Rede Nacional de
Altos Estudos em Segurança Pública (Renaesp), que envolve
hoje 66 universidades brasileiras, entre públicas e particulares, e
ainda telecentros para educação a distância. A meta é chegar a 80
instituições parceiras em todo o País, em 2008.
(iii) Mulheres da Paz - Capacitação de mulheres de comunidades
onde o Território da Paz foi implantado, em diversos temas, como
ética, direitos humanos, sexualidade, cidadania, com a ideia de
que elas fossem multiplicadoras do PRONASCI.
(iv) Protejo - Jovens bolsistas em território de descoesão social
agirão como multiplicadores da filosofia passada a eles pelas
Mulheres da Paz e pelas equipes multidisciplinares, a fim de atingir
outros rapazes, moças e suas famílias, contribuindo para o resgate
da cidadania nas comunidades.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


114 Mariana Chies Santiago Santos
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

(v) Sistema Prisional - A criação de mais de 40 mil vagas no


sistema penitenciário do país atenderá a públicos específicos. Os
jovens entre 18 e 24 anos terão unidades prisionais diferenciadas.
O objetivo do governo federal é separá-los por faixa etária e natureza
do delito e impedir aqueles que cometeram pequenas infrações de
se contaminarem pela influência dos líderes do crime organizado.
Além disso, as mulheres apenadas também terão assistência, como
berçário e enfermaria. A reestruturação do sistema prisional envolve
ações que visam a [sic] qualificação de agentes penitenciários e a
[sic] formação profissional de presos.
(vi) Plano Nacional de Habitação para Profissionais de
Segurança Pública - A categoria também poderá contar com
o Plano Nacional de Habitação para Profissionais de Segurança
Pública, com o apoio da Caixa Econômica Federal. Serão
disponibilizadas unidades populares para servidores de baixa
renda, que recebam até quatro salários mínimos e a [sic] cartas de
crédito para a compra da casa própria, no valor de até R$ 50 mil,
para aqueles que recebam até R$ 4,9 mil.

Pelas informações do Ministério da Justiça, o PRONASCI foi implementado


em 150 municípios em todos os estados do País. No caso do Rio Grande
do Sul, o projeto está sendo/foi implementado nos municípios de Porto
Alegre, Alvorada, Bagé, Cachoeirinha, Canoas, Caxias do Sul, Esteio, Novo
Hamburgo, Gravataí, Guaíba, Passo Fundo, Santa Cruz do Sul, Santa Maria,
São Leopoldo, Sapucaia do Sul, Vacaria e Viamão. E no presente artigo,
são analisados dois territórios de paz, um no município de Canoas (região
metropolitana) e outro no município de Porto Alegre.

É nesse Programa que surge, pela primeira vez, o conceito de segurança cidadã
como parte integrante da segurança pública brasileira, já que o Programa
reconhece que o fenômeno da violência é multifatorial e que envolve diversas
dimensões, não podendo ser visto apenas como parte do sistema penal.

Nesse cenário enxerga-se o início de uma mudança de paradigma, já que “[...] na


perspectiva de Segurança Cidadã, o foco é o cidadão e, nesse sentido, a violência
é percebida como os fatores que ameaçam o gozo pleno de sua cidadania”
(FREIRE, 2009, p. 53). O conceito de segurança cidadã surge, importante
esclarecer, a partir do final do século XX “e tem como princípio a implementação
integrada de políticas setoriais no nível local” (FREIRE, 2009, p. 53).

Acreditamos na importância de trazer ao debate esse conceito de segurança


cidadã, já que diversos autores tecem elogios pelo Programa se desenvolver
Políticas de Segurança Pública e Juventude: o caso do Rio Grande do Sul 115

a partir de uma perspectiva de segurança cidadã. Note-se que tais elogios


não se referem necessariamente às ações práticas advindas do PRONASCI,
mas ao referencial teórico adotado pelo programa. Assim:

Em sua estrutura, o Pronasci apresenta-se como uma


política de segurança pública, baseada em princípios
democráticos, interdisciplinares e humanitários, tendo
em vista a participação da sociedade na construção
de uma cultura de paz, a médio e a longo prazo. Adota
um conjunto de medidas que objetivam a imediata
diminuição da violência e da criminalidade, por meio
da implementação de Unidades de Polícia Pacificadora
(UPPs) em áreas urbanas consideradas de elevados
índices de criminalidade e violência. Deve-se ressaltar
que a ocupação dessas áreas pela polícia e a instalação
das UPPs indica o reconhecimento, por parte do Estado,
da necessidade de reorientação estratégica das ações
de controle e manutenção da ordem pública. Isso
contribui para diminuir os índices de criminalidade,
porém, de forma territorialmente limitada. Na verdade,
as UPPs significam a possibilidade de retomada de
controle territorial de forma autoritária, porém não
necessariamente truculenta. Além disso, podem servir de
instrumento tanto ao confinamento da pobreza, quanto ao
exercício de direitos básicos de cidadania (CARVALHO;
FÁTIMA E SILVA, 2011, p. 65).

Desde a criação do PRONASCI, a segurança pública passou a ser discutida


em vários segmentos da sociedade. Em 2009 ocorreu, promovida pelo Governo
Federal, a 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública (CONSEG), que
acabou por representar a possibilidade de implementação de uma pauta
reelaborada em todos os aspectos ligados à segurança pública (CARVALHO,
FÁTIMA E SILVA, 2011, p. 65).

Com a ampliação do debate e a participação da sociedade civil, desenhou-se


uma política interdisciplinar (CARVALHO, FÁTIMA E SILVA, 2011, p. 65)
que acabou sendo sistematizada da seguinte maneira:

(i) Gestão democrática: controle social e externo,


integração e federalismo;
(ii) Financiamento e gestão da política de segurança;

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


116 Mariana Chies Santiago Santos
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

(iii) Valorização profissional e otimização das condições


de trabalho;
(iv) Repressão qualificada da criminalidade;
(v) Prevenção social dos crimes e das violências e
construção da cultura de paz;
(vi) Diretrizes para o sistema penitenciário e diretrizes
para o sistema de prevenção, atendimentos emergenciais
e acidentes.

Igualmente, acreditamos ser importante destacar a participação da academia


no debate da segurança pública:

Nesta última década, a questão da segurança pública tem


envolvido uma participação maior de estudiosos, como
é o caso da criação do Fórum Brasileiro de Segurança
Pública (FBSP), no ano de 2006, composto por vários
especialistas com o objetivo de difundir conhecimentos
na área da segurança pública. Além disso, o processo
de implementação das ações do Pronasci e a ampliação
das discussões decorrentes da 1ª Conseg resultaram
na reestruturação do Conselho Nacional de Segurança
Pública (Conasp). São indicadores da ampliação
dos espaços de discussão para possibilitar avanços
significativos na constituição da política de segurança
pública no Brasil contemporâneo, apesar dos limites
estruturais (CARVALHO, FÁTIMA E SILVA, 2011, p. 66).

Já é possível identificar locais em que houve uma importante queda no


número de homicídios em determinadas comunidades. É o caso de Canoas,
onde têm chamado à atenção as políticas desenvolvidas no Território da
Paz do Bairro Guajuviras, assim como as demais ações desenvolvidas pela
Secretaria Municipal de Segurança Pública e Cidadania, em articulação
com o PRONASCI.

A Secretaria Municipal de Segurança Pública e Cidadania do município de


Canoas atua em parceria com Secretarias Municipais dos demais municípios
da região metropolitana de Porto Alegre e conta, para a implementação
de suas políticas, além da Guarda Municipal, com o Observatório de
Segurança Pública de Canoas, que em parceria com o Grupo de Pesquisa
em Violência e Cidadania da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Políticas de Segurança Pública e Juventude: o caso do Rio Grande do Sul 117

(GPVC-UFRGS), tem como objetivo levantar, organizar, produzir e analisar


dados relativos à natureza, à incidência e à distribuição espacial das
violências e dos crimes perpetrados na cidade.

Diversos projetos vêm sendo implementados desde o primeiro semestre


do ano de 2010 no município e, sobretudo, na comunidade do Guajuviras,
quais sejam: Canoas Mais Segura; Território da Paz do Guajuviras e Guarda
Comunitária, entre outros.

O Projeto Canoas mais segura tem como objetivo principal modernizar os


aparatos tecnológicos de prevenção ao crime. Em 2010, por exemplo, o bairro
do Guajuviras ganhou um Sistema de Detecção de Disparos de Armas de Fogo
que tem tecnologia para descobrir rapidamente onde os disparos aconteceram.
A finalidade do sistema implantado é diminuir o número de mortes no bairro
que, em sua grande maioria, acontece pelo disparo de armas de fogo.

O Território da Paz, implementado no bairro Guajuviras, é o centro de todas


as ações ligadas ao PRONASCI, onde foram e estão sendo executados os
primeiros programas de repressão qualificada e prevenção ao crime no
município de Canoas. Diversos programas estão sendo realizados hoje no
bairro, dentre eles, o Justiça Comunitária, que formou até o momento 21
mediadores, os quais já prestaram, ao todo, 507 atendimentos. O programa
Geração Consciente (em parceria com o PROCON/Canoas) já formou 48
educadores populares em Direito do Consumidor, que vêm atuando junto às
escolas. O Protejo, por sua vez, capacitou 223 jovens em direitos humanos,
arte e cultura e inclusão digital e, por fim, o Mulheres da Paz, que conta com
a atuação de 107 mulheres formadas que prestaram 151 atendimentos na
área jurídica, de serviço social e atendimentos psicológicos4.

Com mais de 94 projetos ligados ao PRONASCI, a comunidade do


Guajuviras sempre foi conhecida por suas altas taxas de violência. Desde
a implementação do Território da Paz, em meados de 2009, o Bairro vem
conhecendo uma nova maneira de enfrentar o crime. De acordo com um
estudo realizado pelo Observatório de Segurança Pública de Canoas, foi
constatado que entre os meses de janeiro e novembro do ano de 2010 houve
uma queda de aproximadamente 38% dos homicídios em relação ao ano de
2009. Em relação ao período de janeiro a setembro de 2011, houve uma
queda de 20% dos homicídios na região do território da paz.

Por fim, o projeto piloto da Guarda Cidadã está buscando, em um primeiro 4 Dados fornecidos pelo
Observatório de Segu-
momento, redefinir o perfil de atuação da Guarda Municipal de Canoas, rança Pública de Cano-
para que volte seu foco no sentido da preservação dos direitos dos cidadãos, as/RS em 2011.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


118 Mariana Chies Santiago Santos
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

ligando efetivamente estes agentes públicos à comunidade. Além disso, foi


inaugurado no final de 2012 outro território de paz em Canoas, qual seja, o
do bairro Mathias Velho5.

O que fica claro até o momento, embora não implementadas em muitos


lugares do País, é que essas políticas já representam passos importantes para
o enfrentamento da violência e da criminalidade. É possível também ver
esses avanços na pesquisa “As políticas públicas no âmbito municipal: uma
análise comparada das cidades de Canoas/RS e Jaboatão dos Guararapes/PE”
publicada pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (AZEVEDO, 2012).

Em relação ao município de Porto Alegre, os territórios de paz foram


implementados em quatro regiões da Cidade, quais sejam: Bom Jesus, Lomba
do Pinheiro, Cruzeiro e Restinga. Todos os bairros são conhecidos pelos altos
índices de criminalidade. Diferente do município anteriormente citado, a
capital do Rio Grande do Sul não obteve muito sucesso na implementação
dos projetos vindos do governo federal. A falta de continuidade e o não
enfrentamento da burocracia, de maneira efetiva, fizeram com que a
população do bairro visse tais projetos como “mais do mesmo”. A falta
de comprometimento do poder público no município de Porto Alegre
foi expressiva e os projetos, além de demorarem dois anos para serem
implementados, foram finalizados com apenas um ano de experiência
(CHIES-SANTOS, 2013, p. 125).

A vulnerabilidade juvenil: perspectivas (ou não) a


partir do PROTEJO
O PROTEJO, como já dito anteriormente, teve por finalidade conceder aos
jovens habitantes de zonas de descoesão social uma bolsa para que eles
agissem como multiplicadores de uma cultura de paz na comunidade. Abaixo
apresentamos relatos de jovens beneficiários do Programa. Os nomes são
fictícios.

Amanda tem 17 anos e mora na Bom Jesus desde que nasceu. Tem um
namorado. A família dela já morava na comunidade antes dela nascer. Nunca
foi assaltada e já viu policial bater em muitos amigos. Não quer essa paz que
tentam implementar na vila. Morou dois anos fora da Bom Jesus, em Alvorada,
mas quis voltar. Quer que fechem o valão perto da sede do PROTEJO.
5 Ver, a esse respei-
to: http://www.canoas.
rs.gov.br/site/noticia/ Jussara mora desde que nasceu na Bom Jesus, há 15 anos, e está na 6a
visualizar/id/3875 série do Ensino Fundamental. A família sempre morou na Bom Jesus. Um
Políticas de Segurança Pública e Juventude: o caso do Rio Grande do Sul 119

de seus irmãos já foi assaltado voltando do trabalho e acabou chegando em


casa sem seus tênis. Acha que a Bom Jesus é um território do inferno. Tem
4 irmãos. Mora com o pai e a mãe. Já se envolveu com “maus elementos” e
o mais perto que chegou do mundo do crime, de acordo com ela, foi fumar
um cigarro (de nicotina mesmo).

Vânia tem 15 anos e mora, também, desde que nasceu na Bom Jesus. Sua
família, igualmente, sempre morou lá. Não foi vítima de nenhum crime. Gosta
de ver novela. Estuda à tarde e participa de projetos sociais pela manhã.
Adora Carrossel e detesta ficar em casa sem fazer nada.

Edson tem 15 anos, 9 irmãos e mora com seus pais. Não se sente um cidadão.
Já teve a carteira de identidade rasgada algumas vezes por policiais militares
nas redondezas da Bom Jesus. Já foi vítima de assalto e de ameaça na vila.
Dança Funk. Criou um grupo de Funk para os adolescentes que são seus amigos
no bairro e criou um bonde de Funk para as adolescentes que participam do
PROTEJO. Acha que a polícia não acalma ninguém. Não serve para nada.

Franklin tem 16 anos, viveu e cresceu na Bom Jesus, mas hoje saiu da
comunidade e está morando em Novo Hamburgo. Já foi vítima de assalto na
vila. Mudou-se de cidade porque muita gente da família já morreu na Bom
Jesus. Não se sente cidadão. Relata que sente preconceito, “já que tu é da
vila, tu não presta”, diz ele.

Cláudio tem 18 anos, mora há aproximadamente um ano na Bom Jesus e já


foi vítima de roubo. Já tomou muitos tiros, mas acredita que o seu anjo da
guarda é forte e que por isso nenhum nunca o feriu para valer. Já tirou da mão
de amigo uma pistola e fez com que ele entrasse em projetos sociais. Não se
sente um cidadão. Cinco irmãos já morreram por causa do tráfico de drogas,
relata. Parou de estudar e se sente estigmatizado por morar na Bom Jesus.

Daniela tem 21 anos, mora há 20 anos no Guajuviras, em uma zona bem


central, com seu avô e sua avó. Já acabou o Ensino Médio. Quer fazer o
ENEM. Já perdeu amigos por causa do tráfico de drogas. Nunca foi vítima de
nenhum crime no bairro. Acha que educação integral é o que tem de melhor
para não deixar as crianças na rua. Quer fazer faculdade na UFRGS. Está
em dúvida entre Serviço Social, Psicologia ou Pedagogia. Gosta de ir aos
pagodes do centro da capital gaúcha.

Matheus é cearense. Tem 17 anos, mora com a irmã, o pai e a madrasta.


Voltou para o Ceará depois de morar dois anos no bairro, porque achava o
Guajuviras muito violento. Resolveu voltar porque sentiu falta da família, o

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


120 Mariana Chies Santiago Santos
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

pai, o irmão e a madrasta ficaram em Canoas. Quer ser instrutor de B-BOY.


É grafiteiro. Detesta teatro. Participa do grupo de jovens cristãos. Gosta de
estudar Direitos Humanos.

Armando tem 24 anos. Mora com o irmão mais velho. São em 5 irmãos.
Os pais, no momento, estão morando em Imbé/RS. Eles são casados há 30
anos. Perdeu muitos amigos em função do tráfico de drogas. Gosta muito
de Funk e dá aula de dança na Casa da Juventude no Guajuviras. Já foi
assaltado em frente a sua casa. Já viu um tio se suicidar. Já perdeu um tio
que foi executado na Penitenciária Modulada de Osório (RS). Diz que a sua
avó já enterrou três filhos. Fez EJA. Não tem certeza, ainda, se vai ou não
frequentar alguma faculdade. Adora Sociologia e Filosofia, mas mais como
hobby. Diz que a história da comunidade é uma história de guerra, de luta.
Policial não é psicólogo, por isso, para ele, não tem que ficar dando conselho.
Policial não tem direito de chamar ninguém de “vagabundo”, “meliante” ou
“maloqueiro”, diz ele. Afirma que a mente das pessoas deve ser igual a um
paraquedas, funcionar só se estiver aberta.

Uma das partes da pesquisa de campo foi questionar os adolescentes sobre a


sensação de se sentirem sujeitos (ou não) das políticas públicas que estavam
sendo aplicadas em seus territórios e, dessa forma, intervindo em seus
cotidianos. Acreditamos, assim, que a partir da noção de Michel Foucault,
em seus cursos do Collège de France, intitulados de Segurança, Território
e População (2011), podemos ter uma noção dessa divisão entre sujeitos e
objetos de políticas públicas.

A governamentalidade, segundo o autor, pode ser considerada como “as


táticas de governo que a cada instante permitem definir o que deve ser do
âmbito do Estado” (2011, p. 458). Esse Estado, de acordo com o autor, é
Estado de governo “que tem essencialmente por objeto a população e que
se refere [a] e utiliza a instrumentação do saber econômico, corresponderia
a uma sociedade controlada pelos dispositivos de segurança”.

As cidades são espaços de segurança, segundo o autor refere no curso


de 11 de janeiro de 1978. Já “dispositivo” deve ser lido como regulação,
conforme ele descreve em obras posteriores como a História da Sexualidade
e o Nascimento da Biopolítica.

Com isso, essa regulação da vida cotidiana foi percebida através das narrativas
de alguns participantes, principalmente aos beneficiários do PROTEJO na Bom
Jesus, em Porto Alegre, que responderam às indagações sobre a regulação da
vida cotidiana com uma tristeza pela falta de organização do Projeto na região
Políticas de Segurança Pública e Juventude: o caso do Rio Grande do Sul 121

Amanda menciona que quando começou a fazer o curso imaginou que iria
“aprender alguma coisa”, mas no final das contas viu que foi bem diferente:

Tu vem na hora que tu quer. Tem professor que não impõe


limite nos alunos. Aqui é de manhã e de tarde. E aí o que
é de de tarde vem de manhã. Começa a dar briga com o
pessoal que vem de manhã, de tarde com os de de manhã
[...] por isso que dá transtorno. Mas só dizem que eles dão
limites, mas eles não dão. Então isso é ruim.

Jussara faz críticas no mesmo sentido:

aqui fazem o que querem, chegam a hora que querem


e falam com os professores como se fossem uma mãe,
um pai, qualquer pessoa, e o professores também, não
impõem limites.

Em Canoas, os jovens do PROTEJO se diferenciaram muito daqueles de Porto


Alegre. Houve algumas reclamações em relação à aplicação e implementação
dos projetos, mas eles não se sentiram objetificados, ou, ao menos, não
deixaram isso transparecer nas entrevistas.

O que fica claro na narrativa dos interlocutores e que nos permite uma
comparação entre os dois projetos nas duas cidades, é que a seriedade
com que os programas foram implementados reflete a forma com que os
participantes perceberam a implementação/intervenção nos seus cotidianos
e nos seus territórios.

Para os adolescentes da Capital, não ficou muito clara, acreditamos, a


finalidade do Programa, como visto na fala de Amanda, o que claramente
reflete a seriedade com que ele foi implementado.

Em relação à territorialização dos espaços (suas comunidades), os adolescentes


de Porto Alegre tiveram todos, mais ou menos, as mesmas respostas. Amanda
confessa que fica pasma quando lhe falaram que ela morava em um território
de paz. Para ela, a Bom Jesus é mais “um território do inferno”.

Matheus, por exemplo, relata que a pior parte do Guajuviras, a CONTEL,


melhorou muito. Hoje, ele caminha tranquilamente de madrugada, quando
volta de festas. Daniela, no mesmo sentido, acredita que foi a junção de
muitas coisas que mudou o bairro, talvez se só tivesse vindo a polícia ela ia
se sentir no Rio de Janeiro.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


122 Mariana Chies Santiago Santos
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Veio tudo. Porque antes a iluminação era uma porcaria, daí


a gente ligava. Dava às vezes um mês para eles falarem que
a luz tava queimada do nosso poste, não sei o quê. E tinha
uma lá que estava sempre queimando. Agora não tem, e tu
vê uma lâmpada queimando, eles estão sempre trocando.
Eles vivem fazendo vistoria. Todo dia que eu passo, eles
estão fazendo vistoria, de noite, olhando os postes.

A diferença entre o município de Canoas e o de Porto Alegre, que a


municipalização da Segurança Pública na primeira cidade foi, de fato, levada
a sério, na visão dos participantes. Não é uma questão de simpatia por um
ou outro partido. Tanto a prefeitura de Porto Alegre quanto a de Canoas tem
como prefeitos, pessoas da base aliada do Governo Federal. Nesse sentido,
o interesse de Canoas, claramente maior do que o de Porto Alegre para a
implementação dos projetos, fica claro na própria narrativa dos participantes.

Apesar da estranha territorialização, também em Canoas6 foi feito um


trabalho em conjunto, com a participação de diversas secretarias, como bem
exposto pelos participantes. O que mais impressiona nos relatos é a clareza
na argumentação de que isso é tudo novo e de que tem que continuar por
muito mais tempo, até se atingir um nível de vida digno para se viver com
um mínimo de conforto, acabando, por exemplo, com esgotos a céu aberto
ao lado das casas, como acontece na Bom Jesus, em Porto Alegre.

Em relação às mudanças, em Porto Alegre, a resposta foi a seguinte:

Está uma merda! Pra mim é uma merda [...] é, pra mim
Amanda, eu comecei a fazer o curso, achando né, que
eu ia poder ver coisas novas, só que daí eu vim para o
curso e [...]”.

Interessante notarmos que, quando questionamos as meninas sobre a seleção


6 Ver, a esse respeito: dos adolescentes para a participação no Projeto, elas me contaram que não
http://portal.mj.gov.
br/main.asp?View=% houve nenhum tipo de seleção. Elas apenas se inscreveram e começaram,
7B0FE4DE4E-72AC- um tempo depois, a participar. O sentimento de cidadania não mudou, com
4C35-97BE-7A8275A a participação no Projeto, para nenhuma das três; “ia ser mais efetivo um
F399D%7D&Team= curso, porque tu ia ter um ... exemplo de luta.”
&params=itemID=%
7B649E9733-70BB -
41B4-96BD-DA79F0E Os meninos tiveram a mesma impressão das meninas, ao menos em linhas
04DDC%7D;&UIPartU gerais. Para Cláudio, por exemplo, o resultado do Projeto foi positivo para sua
ID=%7B2868BA3C-
1C72-4347-BE11-A2-
vida, apesar de acreditar que para outras pessoas tenha sido negativo. Nesse
6F70F4CB26%7D sentido, ele cita como exemplo o fato de ter ocorrido tráfico de drogas no local
acesso em dez. 2012. em que tinha aulas. Em relação ao bairro, porém, ele acredita que nada mudou:
Políticas de Segurança Pública e Juventude: o caso do Rio Grande do Sul 123

Porque não muda, né professora? [...] Eu acho que eles


estão me usando para ver qual é a do bairro [...] porque
eles estão só preocupados no trabalho deles. Aí eles vem
aqui, só olham.

Em Canoas, novamente as visões são contrárias às obtidas em Porto Alegre.


Para Daniela, por exemplo, o PROTEJO abriu as portas para o mundo.

Acolhimento dos jovens, de saber melhor como os jovens


pensam sobre a comunidade, o policiamento. Sobre as
drogas. Eu acho que é isso aí.

Ela acredita, ainda, que a Prefeitura soube usar os recursos disponibilizados


pelo Governo Federal e que isso fez a grande diferença para o Guajuviras
em relação a outros territórios de paz. A estrutura do bairro mudou muito:

Estrutura totalmente assim, não existia área de pracinha,


não existia. Até tinha, mas era tudo quebrado, arrumaram
lá embaixo, arrumaram aqui. Eles ainda tão arrumando,
estão em reforma [...] Bah, isso eu acho muito bom, sabe?
[...] Vejo mudança. É positivo.

Para Matheus, a mudança é muito clara, ainda mais considerando o fato de


que ele saiu do bairro e voltou no meio da construção dos projetos. Apesar
de considerar uma “migalha” o que os adolescentes recebiam, ele conta que:

Depois da implementação do território da paz mudou


muito [...] Aqui foi onde eu aprendi muito, todas essas
questões assim: de política, de sociedade, de como lidar
com elas, com ideias diferentes, perante a sociedade.

Mesmo achando que os gestores deveriam ter valorizado a cultura já existente


no local, em relação aos grupos de hip hop, grafitti e de cultura popular,
Armando enxergou muitas mudanças, principalmente em relação ao seu
sentimento de cidadania.

A partir da narrativa dos moradores de Porto Alegre, percebemos pouca ou


nenhuma mudança com a implementação dos projetos na comunidade. E
como a ideia do trabalho foi de compreender a percepção dos moradores em
relação a tais projetos, ficou claro, para responder ao problema da pesquisa,
que os ditos “beneficiários” diretos não se beneficiaram da maneira esperada
com a implementação dessa política.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


124 Mariana Chies Santiago Santos
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

Em Canoas, ao contrário, mesmo contando com quase o dobro de habitantes


no território estudado, percebemos mudança significativa na vida das pessoas
que participaram dos projetos. Assim, acreditamos que a eles o adjetivo
“beneficiários” é passível de ser utilizado.

Novos programas e as velhas burocracias


Para suprir os cortes efetuados pelo Governo Federal, o governo do estado do
Rio Grande do Sul criou e está colocando em execução dois novos programas
para a área de segurança pública.

De acordo com o site do governo estadual, o programa RS NA PAZ7, é


um Programa de segurança pública com cidadania que tem por objetivo
substituir o sinônimo polícia para a área de segurança pública. Nesse
sentido, o Programa é baseado em um conjunto de políticas públicas que,
ao final, tem por objetivo principal a redução do número de homicídios. O
foco principal do Programa é a juventude, principalmente aquela entre 12
e 24 anos de idade, em que se espera trabalhar com a prevenção do uso de
drogas e envolvimento com o tráfico de entorpecentes. Dessa forma, os eixos
estratégicos do Programa são apresentados da seguinte forma:

PREVENÇÃO – Evitar que o crime se instale é fundamental.


Por isso, o RS na PAZ une o trabalho policial com atividades de
inclusão social de acordo com critérios regionais, sociais e de idade,
ressaltando-se a atenção aos jovens e à violência contra a mulher.
TRANSVERSALIDADE – O RS na PAZ dialoga com as
demais Secretarias e órgãos do Governo do Estado e organismos
federais que executam programas que, direta ou indiretamente,
produzem efeitos na redução da violência. Também a interlocução
com consórcios intermunicipais e com os conselhos estadual,
comunitários e municipais de segurança pública garante a
transversalidade política. A esse processo de integração chamamos
de Gestão da Transversalidade. A indução de novas políticas nos
municípios pressupõe o apoio às cidades na execução dos novos
projetos preventivos, materializando-se na criação de Gabinetes
de Gestão Integrada (GGIs). Derivados de conceitos como força-
tarefa, gabinetes de gestão de crise e missões especiais, os GGIs
7 Ver mais, a esse respei-
diferenciam-se por serem permanentes e pro-ativos. São órgãos de
to em: http://www.ssp. protagonismo estratégico da política.
rs.gov.br/?model=co
n te udo&me n u = 1 9 7 GESTÃO - É sabido que sem gestão não há política pública,
acesso em jun 2013 especialmente quando se trata de segurança pública. Conhecer
Políticas de Segurança Pública e Juventude: o caso do Rio Grande do Sul 125

a realidade que se pretende transformar é fundamental. Assim,


é imprescindível a adoção de ferramentas de gestão capazes de
produzir dados confiáveis e diagnósticos precisos que possibilitem
o planejamento estratégico e sistêmico dos programas, projetos e
ações. As políticas públicas de segurança carecem de mecanismos
de avaliação e monitoramento e demandam a existência de
indicadores que permitam a avaliação de resultados.

É fundamental percebermos, de acordo com a descrição do Programa, a sua


similitude com o PRONASCI. A ideia de implementação de uma segurança
cidadã vem como premissa para reduzir os índices de criminalidade urbana.
Ainda, tenta-se romper a dicotomia entre ação policial e ação social, uma
vez que as duas ações são necessárias e dependentes. Ademais, também
prevê parceria com outras secretarias do governo estadual.

Considerações Finais
O PRONASCI chegou como um programa inovador para o controle do crime
e da violência, já que pretendeu contribuir para a municipalização da
segurança púbica de maneira efetiva. Para isso, foram implementados projetos
que visaram a incorporar as opiniões dos moradores das comunidades mais
afetadas pela difusão da violência no dia a dia. Com isso, a ultrapassada
repressão por meio de políticas de lei e ordem vem sendo substituída por
projetos que implementam a prevenção e o respeito aos direitos humanos.
O PRONASCI articula, mesmo que timidamente, conforme os críticos do
programa, políticas sociais e políticas de segurança pública.

Os cortes financeiros efetuados pelo Governo Federal, a partir de 2011,


mostram que, apesar dos avanços na área de segurança pública para
o enfrentamento efetivo da violência, a falta da assunção séria de um
compromisso estatal que vise à continuidade das políticas de segurança
pública, bem como a não implementação de uma efetiva reforma das
instituições de segurança pública pode vir a provocar regressão em todos
os esforços até então efetivados. Nesse sentido, muitos indivíduos que
se envolveram diretamente na implementação dos programas e políticas
Artigo
previstos pelo PRONASCI acabam desiludidos pelos avanços e retrocessos Recebido: 27/05/2013
que se mostram um problema acima de tudo cultural no País. Aprovado: 30/06/3013

ABSTRACT: This paper is divided in two main axes and is a result of a master’s Keywords: Public
thesis. The first part presents the brazilian program of security public policies Safety; Public Policy;
Youth; PRONASCI;
- Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania (PRONASCI),
RS na PAZ;
contextualizing policies that were implemented in two cities in the state os Rio
Grande do Sul/Brazil. Therefore, we present the design and perceptions of
young people in two areas called “territories of peace”. In the second part, we

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


126 Mariana Chies Santiago Santos
Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo

aim to introduce a program that is being proposed in the state of Rio Grande
do Sul - RS na Paz - to replace the end of financial ressources from the federal
government in relation to PRONASCI, questioning the discontinuity of actions
in the area of public safety in our country.

Referências
AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. A Municipalização da Segurança
Pública: Bases Teóricas e Experiências de Implementação no RS. BPA/
PUCRS. Projeto aprovado pelo CNPq. Abril de 2006.

CARVALHO, Vilobaldo Adelídio de; FÁTIMA E SILVA, Maria do Rosário.


Política de Segurança no Brasil: avanços, limites e desafios. Revista Katálises.
Florianópolis, v.14, n. 1, jan/jun 2011, p. 59-67.

CHIES-SANTOS, Mariana. Segurança Pública para que(m)? Uma análise


da implementação do PRONASCI em duas cidades gaúchas. PPGCCRIM/
PUCRS: Porto Alegre, 2013.

COSTA, Ivone Freire. Polícia e Sociedade – Gestão de Segurança Pública,


Violência e Controle Social. Salvador: EDUFBA, 2005.

FOUCAULT, Michel. O Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins


Fontes, 2008.

______. Segurança, Território, População. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

FREIRE, M. D. Paradigmas de segurança no Brasil: da ditadura aos nossos


dias. Revista Brasileira de Segurança Pública, ano 3, edição 5, p. 100-114,
ago./set. 2009.

IGLESIAS, Carlos Basombrío. Que Hemos Hecho? Reflexiones sobre


respuestas y políticas públicas frente al incremento de la violencia
delinquencial em América Latina. Programa Latinoamericano del Woodrow
Wilson Center. Trabajo en progresso, 2010.
(*) Juana M. Ruiloba é Profesora en exclusiva de Ciencia Política y Metodología 127
de la Investigación Social, Universidad Católica San Antonio, España. Docente e
investigadora del Instituto Universitario de Estudios de la Mujer de la Universidad
Autónoma de Madrid, España. @ - [email protected]

Sistema educativo español


en perspectiva de género:
un acercamiento desde las políticas públicas

The Spanish Education System from a Gender


Perspective: a Public Policy Approach

Juana M. Ruiloba*

RESUMEN: En el artículo ofrezco una visión general del sistema educativo Palabras clave:
español y la situación y evolución del papel de las mujeres. Se revisa la educación, género,
política pública,
literatura, se exploran las medidas legales y se utilizan indicadores y datos
evaluación, calidad
para verificar algunos factores aclaratorios de su posición desigual. En este de la educación
texto, se estudia el caso español, se traen los temas de discusión para el
análisis y se propone un marco de evaluación que pueda ser usado para
describir y examinar las políticas públicas educativas desde una perspectiva
de género. En resumen, trato de defender la idea de que el género es un
componente importante en el sistema educativo, y juega un papel clave en
la calidad de la política educativa.

I ntroducción
El derecho a la educación de todos ha sido uno de los grandes logros del
siglo XX. Los sistemas educativos de los países occidentales han promovido
la igual incorporación de hombres y mujeres, de minorías y de otros sectores
de la población tradicionalmente excluidos. Pese a tal reconocimiento, el
análisis de los sistemas educativos, teniendo en cuenta la perspectiva de
género, sigue poniendo en tela de juicio la verdadera consolidación de la
garantía legal. De este modo, se suele convenir que, si bien el acceso a la
educación está garantizado, quedan otras barreras que deben ser derribadas
para alcanzar la equidad definitiva en este plano. En este trabajo se presenta
un marco de análisis para la evaluación de los sistemas educativos en relación
a la variable género, se identifican lógicas, discusiones, actores e indicadores

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


128 Juana M. Ruiloba

para la evaluación de la política pública educativa y del sistema educativo


holísticamente considerado. El caso del sistema educativo español sirve
como ejemplo, como pretexto concreto, para la mejor compresión del modelo
propuesto, sin perjuicio, de la utilización del mismo para la descripción
de otros sistemas educativos a posteriori. Los objetivos específicos de
esta aportación son la identificación de indicadores contextuales de las
divergencias por género que persisten; la recopilación de teorías, actores,
acciones en favor de la igualdad de género en los sistemas educativos y
la propuesta de un modelo para la evaluación, esto es, un marco para la
cuantificación y mejor comparación entre sistemas educativos desde la
perspectiva de género. Es en resumen, un acercamiento a la política pública
educativa desde la perspectiva de género1.
1 Tomando las pala-
bras Araya (2004, p.
3 y-4), la perspecti- Modelo teórico para la evaluación de la política
va de género es “un
compromiso teórico y
pública educativa desde la perspectiva de género:
político (...) implica,
acción directa sobre la La situación de las mujeres en los sistemas educativos ha sido, y es, un
sociedad para trasfor- tema recurrente y una preocupación para muchos investigadores. Las
mar los términos de las
relaciones sociales”. aproximaciones han sido múltiples. Se relacionan con los problemas de
Este trabajo se preo- acceso, con la igualdad legal, con el estudio del currículo, con la necesidad
cupa en responder:¿la de paridad, con los estereotipos, con la elección de estudios o con los
política educativa
tiene perspectiva de
problemas en la carrera docente2. La mayoría son acercamientos centrados en
género?¿cuáles son las aspectos concretos, bien teóricos, bien de cuantificación, y no tanto análisis
medidas adoptadas y los sistémicos como el que se propone en este trabajo. Al mismo tiempo, el
actores implicados?¿la
política está siendo
binomio política educativa y género ha sido poco tratado, hasta el momento,
efectiva? desde la Ciencia Política. Precisamente, en las investigaciones que abordan
la política educativa desde el género, son dominantes los trabajos focalizados
2 Como punto de par- en el análisis retrospectivo de las normas educativas y cómo afectan a
tida sobre los debates
clásicos y el estado del las mujeres, fijándose, preferentemente, en las normas como resultados
arte de los estudios de políticos y no en el estudio de la política pública educativa como proceso3.
género y cultura esco- En este artículo, en cambio, se formula una propuesta para el análisis de
lar, revisar el trabajo de
Rodríguez (2011).
sistemas educativos desde la perspectiva de género centrado en la política
pública educativa a partir de un enfoque sistémico, esto es, aquél que “le
3 Ejemplo de estos da importancia al papel de las estructuras institucionales en el proceso de
acercamientos des- formación de políticas, al establecimiento de la agenda y a los grupos que
criptivos, lineales y
centrados en el aná- apoyan las opciones de política […], da prioridad a los grupos de expertos que
lisis de la legislación definen los problemas y asesoran a los encargados de tomar las decisiones”
serían los trabajos de (CALVIN y VELASCO, 1997, p.18; EASTON, 1957 y 2007). El objetivo del
Ballarín (2004), Grañe-
ras, (2008); Madrid y trabajo es proceder a ordenar, describir e identificar las características del
Amanda (2010) o Ruiz sistema educativo teniendo en cuenta la dimensión de género, con la meta
de Azúa (2000), -refe- última de la evaluación de la política publica. Así, si la política pública es
ridos al caso español-.
“todo aquello que los gobiernos deciden hacer o no hacer” (DYIE 1992, p.
Sistema educativo español en perspectiva de género: Un acercamiento desde las 129
políticas públicas

1)4, evaluar una política es “apreciar los efectos atribuibles a la intervención


gubernamental en un campo específico de la vida social y del entorno
físico” (MEXENY y THOENING, 1992, p.195). Es algo más que la mera
acumulación de datos relevantes para la toma de decisiones gubernamental,
aunque efectivamente éste es uno de sus propósitos. La evaluación es la
última fase del proceso de la política pública y, del mismo modo, la primera
fase. Es, igualmente, una revisión del estado del problema que lleva a
mantener la política, reelaborar la existente o terminar la misma, en el caso
de que la problemática pública haya terminado (AGUILAR, 1996; SCRIVEN,
1991). Además, “la utilidad de la evaluación es producir información de la
calidad para orientar nuevos procesos de decisión, aprendiendo de los éxitos
y los fracasos (...) es un recurso fundamental para detectar problemas de
eficacia –evaluación del impacto-, de eficiencia –evaluación de rendimiento-
y de gestión del programa–evaluación de la implantación” (TAMAYO, 1997,
p. 288). Como bien sostiene Grau (2002, p. 46), detenerse en la fase de la
evaluación implica plantearse si la política “¿ha conseguido tener un efecto
sobre el problema que se pretendía afrontar?, estos efectos ¿han sido los
esperados?¿por qué?¿cómo se pueden medir y determinar los resultados de
la política?¿y su éxito y fracaso?”.

En la Figura 1, queda resumido el modelo que guía este trabajo, que ayuda
a la argumentación y a la descripción de la política pública educativa de
género y a contestar a la interrogante: ¿la igualdad de género efectiva está
asegurada en el sistema educativo español actual?¿hasta qué punto podemos 4 Otras definiciones
de política pública,
evaluar como exitosa la política pública? son las de THOENING
(1985, p. 6) “una po-
Figura 1. Modelo para el análisis del binomio mujer y sistema educativo lítica pública es un
programa de acción
propio de una o varias
autoridades públicas o
gubernmentales en un
ámbito sectorial de la
sociedad o en un espa-
cio territorial dado” o la
de Subirats et al. (2010,
p. 38): “una política
pública se define como
una serie de decisiones
o de acciones, intencio-
nalmente coherentes,
tomadas por diferentes
actores, públicos y a ve-
ces no públicos (…) a
fin de resolver de mane-
ra puntual un problema
políticamente definido
Fuente: Elaboración propia como colectivo”.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


130 Juana M. Ruiloba

Para dar respuesta a estas interrogantes, se hace necesario conocer5 todas


las vertientes que definen el sistema educativo y que se resumen en las
relaciones e interacciones entre tres aspectos esenciales, a nuestro entender,
para caracterizarlo: el contexto sociocultural, los actores intervinientes y los
“productos políticos” (políticas públicas) que generan y que conforman el
marco formal en el que se enhebra el sistema. El conocimiento sobre cada
uno de estos elementos nos ayuda al mejor entendimiento de los sistemas
educativos, puesto que, éstos se alimentan de percepciones, teorías,
valores que guían las acciones emanadas de los poderes públicos, al final,
formuladores de las políticas, de las normas y de las acciones de gobierno
que serán aplicadas y que tendrán reflejo en el devenir diario de todos los
elementos que lo conforman. Hacemos, de este modo, un recorrido por
las diferentes acciones llevadas a cabo en el sistema educativo, esto es,
mostramos las variaciones históricas de la política educativa española con
perspectiva de género. Describimos cómo ha evolucionado el problema
político y las acciones planteadas, eso es, cómo se pasó de la legislación
sobre acceso a la educación -cuando éste era el problema público-, a la
importancia de la igualdad efectiva y de la evaluación con perspectiva de
género como indicador de la calidad del sistema educativo en su conjunto,
-preocupación actual esencial-.

El contexto sociocultural y la fuerza de las “ideas”

Para entender la política educativa desde la perspectiva de género debe


partirse del conocimiento de las circunstancias que la envuelven, esto es,
el espacio de la política pública. Éste se determina por la propia lógica del
Estado de Derecho, es el “marco más o menos estructurado, formalizado
y poblado por actores públicos que interactúan con diversos grados de
intensidad con actores no públicos, posibilitando estrategias de acción
alternativas” (SUBIRATS et al, 2010, p. 57). En nuestro caso, a priori, es
5 Ponemos el énfasis en
el conocimiento sobre
determinante ubicarse, igualmente, en el ámbito de los países occidentales e
la realidad como objeti- industrializados. En relación al contexto sociocultural, es éste precisamente,
vo de la evaluación de el que determina en lo que nos ocupa, el concepto de “ser hombre” y “ser
la política. En sentido
general, recordemos
mujer” en sociedad (determina y da contenido al concepto género). El hecho
que los objetivos de la “femenino” y el hecho “masculino” son, por tanto, construcciones culturales
evaluación de las políti- que organizan la realidad social y estructuran las sociedades humanas,
cas son el estudio de la
mejora da la gestión, de
surgen de la interacción y varían entre sociedades (MUEHLENHARD,
la responsabilidad y/o Y PETERSON, 2011, PINTO DE CARVALHO, 2011, entre otros). En
de los conocimientos occidente, en España, los progresos conseguidos por las mujeres en todos los
(ARVIDSSON, 1986, p.
627; VEDUNG, 1997,
planos en los últimos años han sido muchos. “Ser mujer/ ser hombre” “aquí/
p.131-146). allí” y en “este momento/en otro momento” tiene contenido y significado.
Sistema educativo español en perspectiva de género: Un acercamiento desde las 131
políticas públicas

En relación con el mundo de las ideas, la concepción dominante es la de


igualdad entre géneros, que se plasma en la concreción de la igualdad como
un derecho. Aunque, esto no supone, no obstante, un triunfo definitivo de
los valores igualitarios en la praxis, de hecho, es generalizada, a fecha de
hoy, la idea de que la desigualdad persiste6. Ahora bien, ¿en qué sentido
puede verse esta desigualdad por género en el sistema educativo, dado que el
derecho al acceso está garantizado7? Tomando las palabras de Sartori (1992,
p. 90) “la igualdad de oportunidad significa igual acceso (…) la fórmula
de la carrera abierta al talento, en función, y únicamente en función, de la
capacidad y los méritos. En su segunda acepción igualdad de oportunidades 6 Puede corroborarse,
por ejemplo, con datos
significa, por el contrario, igualdad de partida, igualdad de condiciones
del Barómetro de Opi-
iniciales”. En esta última acepción nos centramos. Garantizado el acceso nión de marzo de 2010
normativamente, las posibles diferencias por género serán, entonces, sutiles del Centro de Investi-
y referidas a cuestiones complejas. Por ello, debemos recurrir a indicadores gaciones Sociológicas,
–estudio 2831-, donde
cuantitativos y cualitativos, a la hora de proceder a la comprobación de tal un 44,3% de los hom-
preservación. Recordemos que, en el mundo de las políticas públicas, la bres y un 63,1% de
existencia de indicadores que visibilizan la persistencia del asunto en el las mujeres identifican
como grandes o muy
sistema, facilitan la construcción del problema como “problema público”8, grandes las desigual-
dando pistas a los decisores sobre los aspectos sobre los que incidir a la dades existentes entre
hora de reelaborar la política (los feedback del sistema o los productos no géneros en España.
esperados de la misma). Además, la existencia de indicadores influye en las
7 Para un análisis del
futuras líneas de actuación política. derecho a la educación
desde la perspectiva de
Indicadores para el diagnóstico los derechos fundamen-
tales, acudir, por ejem-
plo, a Cotino (2012).
A pesar del derecho a una educación igual y a que ambos sexos compartan
espacios comunes, la socialización en la escuela parece seguir reproduciendo 8 El problema público
es eminentemente polí-
patrones diferenciados. Es recurrente la idea que el sistema educativo es el tico ya que trasciende
más permeable para la presencia de las mujeres, incluso que es una esfera de la sociedad civil y
menos sexista que otras (SUBIRATS, 1999) pero, de las misma forma, es es debatido en el nivel
de las más sensibles, por su carácter reproductor (BOURDIEU, 2000). Se político, esto es, se tra-
ta de una situación que
manifiesta todavía en él una suerte de contradicción entre valores igualitarios se juzga como políti-
y prácticas que no los son tanto. Acudiendo a los datos, puede verificarse camente problemática
como las mujeres están plenamente insertas en todos los niveles, aunque, y es objeto de debate
público (SUBIRATS et.
se observan ligeras diferencias. Así, las cifras sobre población española con all., 2010, p.132-133).
estudios terminados por sexo corrobora la igualdad de género de primaria a la
universidad (MARREIRO, 2006; MORALES ET AL., 2010). Se vislumbran 9 Las mujeres son el
67% del total de los
divergencias, no obstante, en los extremos del sistema educativCo.9. Se dan analfabetos y el 38%
diferencias, de igual modo, en el tipo de estudios elegidos. Persiste un cierto de los doctores, según
sesgo de género hacia estudios que dan lugar a profesiones feminizadas datos primer semestre
de 2012 del Instituto
y entre las que predomina la “ética del cuidado” (GILLIGAN, 1982; Nacional de Estadística
MUÑOZ, 2010), más importante cuando más nivel educativo. En cuanto Español.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


132 Juana M. Ruiloba

al profesorado, las mujeres dominan las estadísticas en todos los niveles no


universitarios, son, no obstante, el 39% del total de profesorado universitario
(en el curso 2009-2010), en una tendencia decreciente, cuanto más alto
en la carrera universitaria o cuanto mayor es el cargo. De este modo, “el
prestigio, el poder, el acceso a la gestión de las universidades sigue estando
10 En la escuela encon- de forma abrumadoramente mayoritaria en manos masculinas” (ALBERDI,
tramos personas -socia- 1996, p. 77). El llamado “techo de cristal” se manifiesta aquí claramente,
lizadas en una determi- las mujeres siguen estando “subrepresentadas” en los cargos de más
nada comunidad- que
se comunican y se influencia –académica y de gestión-, en una dinámica que se ha dado en
relacionan siguiendo todos los países del mundo (JACOBS, 1996; TOMÁS y GUILLAMÓN, 2009;
una serie de patrones. SAGARIA, 1988; SÁNCHEZ, 2012).
El lenguaje que utili-
zan, los gestos, la je-
rarquía, los materiales, Más allá de los datos cuantitativos específicos, en el ámbito educativo, se
la disposición de los dan otras lógicas más cualitativas, más sutiles, que revelan a la escuela
espacios y tiempos no
como reproductora de un modelo desigual. La escuela tiende a reproducir el
son elementos insignifi-
cantes en el proceso de sistema social, las posiciones de poder y la jerarquía vigente en la sociedad
enseñanza-aprendizaje (BOURDIEU, 2000; RODRÍGUEZ y PEÑA, 2002; MCLEOD, 2005;
del alumnado, ni en SUBIRATS, 1999). En ella se dan procesos complejos que determinan
la conformación de la
personalidad, las habi-
a posteriori acciones, conductas y comportamientos en los sujetos que
lidades y actitudes que educamos. Más allá del currículo, oficialmente establecido, la escuela no
desarrollaran en el futu- es “neutra”10. Hay, por tanto, algo más allá de lo formalmente concretado,
ro estos sujetos (BLAN- es el denominado currículum oculto, que puede favorecer la transmisión de
CO, 2008; SUBIRATS y
TOMÉ, 2007; TUSÓN,
valores sexistas estereotipados en la escuela, lo que tiene implicaciones en
2002). las alumnas que no se encuentran reflejadas o no hallan referentes femeninos
no estereotipados en la historia, las ciencias o la política. Más aún, ¿quiénes
11 En el lenguaje, -ya son ahora los modelos a seguir para las mujeres? Solamente quedan, quizás,
sea oral, escrito y au-
diovisual-, tradicional- los referentes televisivos, actrices, cantantes y otros personajes mediáticos
mente, se ha excluido (con la problemática adjunta de la imagen que se da del género femenino
a las mujeres (se ge- en los medios, en la publicidad, la exposición a contenidos sexuales, la
neraliza en masculino,
se dan connotaciones
consideración de la mujer como objeto y los problemas de imagen de lo que
diferentes según el gé- debe ser su físico - MACKEAY Y COVELL, 2007; MURNEN ET AL., 2005;
nero de la palabra...), PETER Y VALKENBURG, 2007-). Igualmente, en el trabajo diario en el
del mismo modo, en aula se dan diferencias en la interacción entre alumnado y profesorado, en
los libros de texto y
materiales didácticos
relación a la frecuencia y duración de las interacciones dependiendo del
(fundamentales en el sexo del docente y/o del alumno y en el estilo comunicativo adoptado11 etc.
proceso de enseñanza Todo ello, son aspectos ocultos de la vida escolar que tienen, en cambio, una
aprendizaje), se repro- enorme fuerza de definición de comportamientos del alumnado (MARTÍN,
ducen asociaciones,
imágenes y significa- 1996; RODRÍGUEZ y TORÍO, 2005). Es importante, conocer estas
dos donde hombres dinámicas producidas por el sistema, visibilizarlas para que puedan ser
y mujeres no quedan tenidas en cuenta para la actuación de los poderes públicos y en el trabajo
representados de igual diario de los docentes. Precisamente, las nuevas perspectivas y nuevas
manera (TERRÓN Y
COBANO-DELGADO, políticas se asientan en diagnósticos evaluativos sobre la persistencia del
2008; TORRES, 1995). problema público y en la idea de que la escuela es reproductora pero también
Sistema educativo español en perspectiva de género: Un acercamiento desde las 133
políticas públicas

trasformadora del sistema educativo y de la sociedad (MARRERO, 2008;


SALOMONE, 2007; SUBIRATS y TOMÉ, 2007; MONASTERIO, 2011), es,
por ende, un lugar potencial para la actuación pública (políticas públicas)
a favor del cambio hacia sociedades más igualitarias.

Los actores: impulsores de la dimensión de género en la


12 La agenda institu-
agenda política cional es aquella que
contiene los temas que
Dos posturas, dos conjuntos de cosmovisiones o ideas, guían las actuaciones los miembros de una co-
munidad política consi-
de los actores interesados en la política pública educativa y que hacen que deran como suscepti-
apuesten -o no lo hagan-, por la dimensión de género, como susceptible de ser bles de ser discutidos y
considerada relevantemente como cuestión educativa de interés político de de tener la atención de
los poderes públicos y
primer orden. Pensemos que las “ideas”, sirven de mapa cognitivo a la hora que se difieren de otros
de seleccionar entre modelos de política alternativos, puesto que ayudan a temas relevantes que
los decisores a establecer relaciones causales entre los objetivos pretendidos se quedan en la agenda
y las políticas para llevarlas a cabo (CAMPBELL, 1998, p.385). Más todavía, sistémica o coyuntural
(MENY y THOENIG,
recordemos que desde las políticas públicas, se suele calificar el problema 1992, p.114).
público como construido por los interlocutores que desean hacer preminente
su definición. Suele considerarse que la definición política de un problema 13 Los analistas sole-
mos tomar en consi-
público es el resultado de la pugna simbólica entre grupos y definiciones deración a los actores
rivales” (SUBIRATS, et al., 2010, p.137). Los actores más activos influyen más activos y empren-
determinantemente en la inclusión de los temas en la agenda institucional12. De dedores con la política,
este modo, un problema público es aquel que se caracteriza por ser un asunto olvidando y consideran-
do a los grupos pasivos
que se considera objeto de acción pública (BALLAURT, 1994, p. 26-29). como “no actores”. Esto
puede ser un error, ya
Las dos posturas, a las que nos referimos son, por un lado, la de los que nos puede llevar a
dejar a un lado factores
que consideran que el acceso está garantizado, incluso que el sistema explicativos de la polí-
educativo es de los más permeables para las mujeres y una esfera menos tica, así, “de la misma
sexista que otras, dejando al albur del tiempo la corrección de las posibles manera que la ‘no-de-
desigualdades (“nueva ola conservadora”, como la considera Rodríguez cisión’ es la explicación
de una de las formas de
(2011, p. 40), que hace referencia a la “fe en el tiempo” como equiparador poder (...) una actitud
de la justicia social una vez logrado el derecho a la educación) y, por otro, pasiva (“no acción”)
la postura más proactiva de los que enfatizan el carácter reproductor de es también una de las
formas posibles de
la escuela y que la sitúan como espacio preferente de acción política en la comportamiento para
lucha por la igualdad (BOURDIEU, 2000). los actores de las polí-
ticas públicas” (SUBI-
RATS et al, 2010, p.
Focalizamos nuestro interés en el comportamiento de los actores que
53). Pese a la limitación
han optado por defender en la esfera pública esta última postura y que expuesta, procedemos a
han sido activos en la conformación de la misma (aquellos cuyas ideas y identificar a los actores
preconcepciones giran sobre la pervivencia de la desigualdad efectiva en el activos, en el sentido de
actores baluarte de la
sistema educativo y se han movilizando en pro del cambio)13. Son ellos los misma (de promotores
que han actuado como promotores de la política. activos de la política).

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


134 Juana M. Ruiloba

Los actores institucionales que han operado como empresarios en la


configuración de una política educativa y sistemas educativos más
igualitarios, desde el punto de vista del género, han sido la Organización de
Naciones Unidas (ONU), la Unión Europea (UE) y, en el plano nacional, el
Instituto de Estudios de la Mujer (IM). Todos ellos, han actuado y actúan
como emprendedores que impulsan los asuntos de género a las agendas
políticas y al escenario del debate público. El papel de estos actores es, por
tanto, relevantísimo, ya que, en las dinámicas de elaboración de políticas
públicas no sólo intervienen elementos estrictamente internos, más bien,
se hace necesario identificar un conjunto de variables más amplias y que
trascienden a lo nacional y doméstico. Hay que tener en cuenta los procesos
de interconexión, globalización y permeabilización como factores influyentes
para percibir las decisiones públicas en todas sus dimensiones (MARTÍNEZ
y NOVO, 2002; ROSELLI, 2001).

La ONU ha sido siempre una de las instituciones internacionales más


14 La Comisión define
sensibilizadas y activas frente a los problemas de las mujeres contribuyendo,
el mainstreaming como sobre todo, a hacerlos visibles ante la comunidad internacional y a auspiciar
“la integración sistemá- el debate (tanto en las diversas conferencias dedicadas a las mujeres, como en
tica de las situaciones, las plataformas de discusión y de trabajo a favor de la igualdad de género). En
prioridades y necesi-
dades de las mujeres el periodo reciente es especialmente interesante el giro de la acción tomado
y hombres respecti- a partir de la Cuarta Conferencia Mundial sobre la Mujer (China del 4 al 15
vamente en todas las de septiembre de 1995). De ella se deriva un consenso universal sobre la
políticas y actividades,
con vistas a promover la
necesidad de incidir para superar los viejos hábitos discriminatorios a través
igualdad entre hombres de un planteamiento más global de la igualdad y recurriendo a una nueva
y mujeres y a movilizar estrategia, la transversalidad, esto es, recurrir a la perspectiva de género en
todas las políticas y
medidas generales con
todas las políticas, también en la educación. Esta conferencia ha constituido
el propósito específico un hito y ha influido considerablemente en la manera de tratar el tema de la
de alcanzar la igualdad igualdad de oportunidades en otros ámbitos territoriales y temáticos, como
teniendo en cuenta, de en el que nos atañe. Igualmente, la UE es, desde su constitución, baluarte
manera activa y abierta,
durante la fase de pla- de muchas de las iniciativas que han contribuido a la mejora de la situación
nificación, sus efectos de las mujeres. Desde la regulación en materia de igualdad salarial, pasando
sobre las situaciones por la búsqueda de mecanismos para establecer la igualdad real y de trato.
respectivas de mujeres
y hombres durante la
Siguiendo con la lógica introducida en la agenda política mundial por la
ejecución, el control y ONU, la UE se apoya en la transversalidad14, como nueva herramienta para
la evaluación”. Comu- integrar la política de igualdad de oportunidades de manera global (en todas
nicado de la Comisión las políticas, procesos y niveles de gobierno (BUSTELO y LOMBARDO,
sobre la “Incorporación
de la igualdad de opor-
2007; LOMBARDO, MEIER y VERLOO, 2009).
tunidades para mujeres
y hombres en todas las A día de hoy, en el seno de la UE, se está debatiendo la necesidad de
políticas y activida- ampliar el enfoque transversal a otras áreas políticas y/o a otros ejes de
des de la Comunidad”.
COM (96) 67 Final de desigualdad, esto es, navegar hacia un enfoque “múltiple” de la desigualdad
12.2.1996. (LOMBARDO y VERLOO, 2010). La UE ha facilitado la labor de los Estados
Sistema educativo español en perspectiva de género: Un acercamiento desde las 135
políticas públicas

Miembros en beneficio de la igualdad, dándoles la posibilidad de disponer de


modelos generales para la actuación (programas de acción comunitaria) y de
incentivos económicos a través de los Fondos Estructurales. Efectivamente,
la entrada de España en la UE fue un hecho determinante para introducir,
de manera definitiva, la política de género como asunto de envergadura
política suficiente. Algunos hablan por ello de transferencia de la política,
esto es, un proceso en el que el conocimiento sobre políticas, disposiciones
administrativas e instituciones, en un tiempo y/o lugar se utiliza en el
desarrollo de políticas, disposiciones administrativas e instituciones en otro
tiempo y/o lugar (MARTINEZ y NOVO, 2002)15.

Podemos decir que ambas instituciones (ONU y UE) han actuado como
“iniciadoras básicas” de los mecanismos conducentes a mejorar la posición
de las mujeres. El papel desempeñado por estos actores internacionales y las
medidas generales adoptadas en beneficio de la igualdad, son esenciales en 15 Para una revisión en
la construcción de la política pública educativa de género, hasta el punto de detalle del marco de las
influir determinantemente en su gestación, concreción y en la lógica de las políticas públicas de
difusión puede acudirse
medidas a aplicar. Podemos decir, que las reformas en la política educativa al artículo de Meseguer
en relación al género son, eminentemente reformas políticas convergentes16 y Gilardi (2008).

16 Siguiendo la clasifi-
En lo referente al nivel nacional, la situación política de España no propició cación de reformas edu-
la inclusión en la agenda política de los temas de género hasta llegada la cativas propuesta por
transición. Aunque los lobbies y asociaciones feministas, al igual que ciertos Pedró y Puig (1988), las
reformas convergentes
sectores de los partidos de izquierdas se han movilizado a favor de los problemas
son las reformas edu-
de los mujeres, el actor institucional más activo ha sido el Instituto de la Mujer cativas fruto esencial-
(creado en la Ley 16/1983, de 24 de octubre), que ha sido el encargado de mente de la influencia
actuar de forma más directa y decidida en temas y problemáticas concretas que del plano internacional,
-junto con la introduc-
afectan a las mujeres (recogiendo, en muchos casos, cuestiones del debate ción de los valores de
propuestos por otros actores y otros niveles de gobierno)17. género en educación,
otro ejemplo de reforma
educativa de este tipo
Las políticas públicas de educación con perspectiva de es el proceso de reforma
género: el plano normativo universitaria emprendi-
do desde la Declaración
de Bolonia en el entor-
Las políticas públicas son entendidas como acciones de gobierno. Las no europeo-.
políticas públicas son, por tanto, “el conjunto de objetivos, decisiones y
acciones que lleva a cabo un gobierno para solucionar los problemas que, en 17 El IM es el encar-
gado de elaborar me-
un momento determinado, los ciudadanos y/o el propio gobierno consideran didas concretas, prin-
como prioritarios” (TAMAYO, 1997, p. 281). cipalmente, a través
de los conocidos como
En lo que nos ocupa, ¿cuándo la igualdad de género ha sido considerado “planes de igualdad de
oportunidades (PIOM)”
un problema político? ¿cuándo se introduce la perspectiva de género en la (SENSAT y VARELLA,
política educativa en España? 1998).

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


136 Juana M. Ruiloba

Como hemos adelantado, fue esencial la impronta de las institucionales


internacionales y el cambio democrático. Es entonces cuando se abre la
“ventana de oportunidad” de la política pública educativa con perspectiva
de género (problema, soluciones y políticas se alinean, en el sentido
propuesto por Kingdon, 1995). Se puede decir que, en este momento,
comienza a forjarse la política educativa con una dimensión de género. No
obstante, la relación entre el sistema educativo y las mujeres es antigua.
Así, el derecho a la educación para las mujeres fue reconocido en España
en la conocida como “Ley Moyano” (Ley reguladora de la Enseñanza de
1857), donde se otorga el derecho a la educación de las niñas, aunque fuese
en escuelas separadas y con un currículum basado en el aprendizaje de las
habilidades domésticas y en el cumplimiento de los roles de madre/esposa.
Hasta 1970, con la Ley 14/1970, de 4 de agosto, General de Educación y
Financiamiento de la Reforma Educativa, no se implanta la escuela mixta. La
Carta Magna de 1978 supone el hito definitivo para la igualdad. En materia
educativa, la Constitución garantiza el derecho a la educación y a la libertad
de enseñanza (artículo 27.1), reconoce y protege la libertad de cátedra
(artículo 20, 1 c) y da cobertura a lo ratificado vía derecho internacional
relacionado con dicha materia (artículo 10.2), -para un análisis jurídico más
detallado sobre el derecho a la educación emanado de la Constitución acudir
a Medina (1985) o Martínez-Ruano (2011)-.

Las leyes educativas de la democracia han ido profundizando en la búsqueda


de la igualdad de género, potenciándola desde la escuela. Así, ya en la
Ley Orgánica 1/1990, de 3 de octubre, de Ordenación General del Sistema
Educativo, se introduce la igualdad de oportunidades entre hombres y mujeres
como transversal al currículo. La Ley Orgánica 2/2002, de 23 de diciembre,
de Calidad Educativa, no se separa de esa línea. Se buscaba hacer efectivo
un cambio de valores en la escuela. Por una parte, introducir la idea de la
escuela coeducativa, esto es, una institución dirigida a la eliminación de
los estereotipos sexistas y a la jerarquización de los géneros (FUENTES-
GUERRA, 2001; MONASTERIO, 2011) y, por otro lado, la estrategia de la
transversalidad. Se trata de que el sistema educativo, -donde las mujeres
ya están integradas- se convierta en una especie de punta de iceberg de un
cambio mayor que se quiere trasladar después al resto de las dinámicas
sociales. Como señalan Madrid y Amanda (2010, p. 225), estamos en una
fase ideológica “donde se defiende que la igualdad de géneros no consiste,
únicamente, en posibilitar la incorporación de la mujer a las actividades
económicas, políticas, culturales y sociales en las que la presencia masculina
es mayoritaria, sino que se plantea una nueva orientación cualitativa, se trata
de que los varones asuman también tareas consideradas exclusivamente
Sistema educativo español en perspectiva de género: Un acercamiento desde las 137
políticas públicas

femeninas”. Más allá de las medidas concretas en educación propuestas por


los Planes de Igualdad, la evolución legislativa en relación a la igualdad entre
niños y niñas en el plano educativo, se ha plasmado en el articulado de otras
normas más recientes. Con la Ley Orgánica 1/2004, de 28 de diciembre, de
Medidas de Protección Integral contra la violencia de Género, se reforman
y redactan de nuevo algunos artículos de las normas del sistema educativo
vigentes. Modificaciones con las que se introduce un nuevo impulso en la
lucha por la igualdad efectiva en todos los ámbitos y también en el educativo
–al que da gran trascendencia-.

Las medidas referentes a la educación incluidas en esta ley van encaminadas


a: a) Incluir y fomentar las actitudes a favor de la igualdad en todos
los niveles educativos (también en el universitario donde fomentará la
formación, docencia e investigación en igualdad y no discriminación de
forma transversal) – para ello se dota de un papel fundamental a los Consejos
Escolares-; b) Controlar que los materiales didácticos no reproduzcan
estereotipos y que se tenga preocupación por el tema en la formación inicial
y permanente del profesorado, concede a la inspección la capacidad de
control para el cumplimiento de estas medias. La Ley Orgánica 2/2006, de
3 de mayo, de Educación, bebe de la misma lógica. En su articulado hay
un interés explícito por dejar constancia de la importancia del principio de
igualdad entre géneros como contenido esencial a tener en cuenta y que
debe guiar el sistema. Así, tanto en el preámbulo como en el cuerpo de
la ley, hay incesantes manifestaciones en favor del principio de igualdad
efectivo entre hombres y mujeres: a) En los principios que inspiran el sistema
educativo, como elemento esencial para la superación de toda discriminación,
relacionándolo con la equidad e identificándolo como principio que guía
el sistema educativo; b) Entre los fines del sistema educativo -junto los
derechos y libertades fundamentales, la igualdad de trato y no discriminación
de las personas discapacitadas-; c) En los objetivos específicos de cada
etapa educativa, de la educación de personas adultas, en la formación del
profesorado y en la labor de la inspección educativa; d) Cuando se hace
referencia a la organización de los estudios; e) A la hora de hablar de recursos
para la im plantación de estas medidas; f) Dando un papel fundamental a los
Consejos Escolares; y, g) Promocionando la coeducación. La Ley Orgánica
3/2007, de 22 de marzo, para la igualdad efectiva de mujeres y hombres,
supone el revulsivo más reciente en materia del igualdad de género a nivel
normativo, pues viene a sentar las bases de la “acción administrativa para la
igualdad”. Especial interés tienen los artículos 23, 24 y 25, de esta Ley, en
los que se incide, nuevamente, en la igualdad de derecho y oportunidades
entre hombres y mujeres y en la necesidad de que el sistema educativo
influya en la eliminación de obstáculos que dificulten la igualdad plena. Es

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


138 Juana M. Ruiloba

interesante comprobar como el legislador, hace referencia a los principios


de calidad del sistema educativo.

De los expuesto, puede desprenderse, que el fomento de la igualdad plena


debe ser uno de los indicadores de medición de la calidad del mismo, así
se dice: “el sistema educativo incluirá, dentro de sus principios de calidad,
la eliminación de los obstáculos que dificulten la igualdad efectiva entre
mujeres y hombres y el fomento de la igualdad plena entre unas y otros”
(artículo 23). Se plantea, la integración del principio de igualdad en la
política de educación y se encarga a las Administraciones educativas la
labor de desarrollar actuaciones en tal sentido, al igual que encomienda, al
ámbito de la educación superior, el fomento de las enseñanzas en igualdad,
promoviendo específicamente la creación de posgrados específicos, el
fomento de la investigación especializada en la materia y la inclusión,
cuando proceda, de enseñanzas en esta materia. Como puede observarse,
en este momento, la legislación educativa se desarrolla y concretiza, se
añaden “apellidos” al término igualdad, se habla de derecho e igualdad de
oportunidades, igualdad plena, igualdad efectiva. Parece que el problema
de la desigualdad persiste y es lo suficientemente relevante y visible para
que los poderes públicos continúen actuando sobre el mismo. Las normas
más recientes tienen rango de ley orgánica, en las que se explicitan acciones
con un sentido delimitado y donde se adhiere la cuestión de género entre los
criterios de calidad del sistema educativo, en un salto cualitativo de gran
relevancia en el proceso de formulación de una política y resolución de un
problema público con más garantías.

Evaluando el sistema educativo. Reflexiones finales


Del análisis acometido (holístico y desde el análisis de las políticas públicas)
puede desprenderse que, el sistema educativo es una realidad cultural y
política compleja (JARES, 2010), que se nutre de un contexto sociocultural
e institucional favorable a la igualdad –en lo discursivo-, de las actuaciones
de actores sociales –con una influencia efectiva condicionada- sensibilizados
con el asunto y de las acciones de gobierno que se cristalizan en una política
pública educativa respetuosa con la perspectiva de género –al menos en lo
formal y declarativo-.

La descripción previa del sistema nos ha informado que, si bien, se entrevén


grandes avances en materia de igualdad de género, con actores activos, y con
una mejora específica en el contenido normativo y en los datos, persisten,
en cambio, limitaciones derivadas de la distancia entre discursos, acciones
y realidad que ensombrecen el éxito de la política.
Sistema educativo español en perspectiva de género: Un acercamiento desde las 139
políticas públicas

Como hemos visto, la importancia de las acciones públicas con perspectiva


de género, se convierten, más que una “moda” o una política trasferida del
ámbito supranacional, en un compromiso ante un problema público percibido
y sobre el que los gobiernos en España han decido actuar (otra cuestión es
la fuerza vinculante de tales medidas).

Las investigaciones más recientes han identificado las actuaciones y medidas


concretas a realizar por los poderes públicos, actuaciones que deben ser
planificadas y controladas por la inspección educativa (y/o por los organismos
a los que se encomienden las acciones) y que deberán incluir sobre toda
la comunidad educativa con especial énfasis en el profesorado, tanto en
la formación inicial, como en la permanente (ARENAS, 2006, p. 102;
FUENTES-GUERRA, 2001) y en el aula, a través de la sensibilización y la
introducción de practicas educativas con perspectiva de género. Además, para
facilitar el acceso y el intercambio de información y conocimiento sobre estas
prácticas educativas no sexistas deben desarrollarse iniciativas, a disposición
de profesorado de todos los niveles y materias (ejemplo de ello puede ser el
centro virtual de recursos “Intercambia. Educar en femenino y en masculino”,
repositorio de recursos en y para la igualad de oportunidades, impulsado
por el Ministerio de Educación y del Ministerio de Igualdad a través del
IM, en colaboración con los Organismos de Igualdad y las Administraciones
Educativas de las Comunidades Autónomas18). Para facilitar la inclusión
de contenidos no sexistas se requiere, asimismo, del compromiso de las
editoriales y, como piedra angular de cualquier actuación pública, del control
institucional para que se cumpla lo definido políticamente.

Como ocurre con otros temas de la agenda política, la complejidad del


problema de la desigualdad de género en el sistema educativo no tiene
soluciones fáciles, ni a corto plazo. Cierto es que la política pública educativa
con perspectiva de género ha seguido una evolución incrementalista, -de
mejora de la realidad social paso a paso (LINDBLOM, 1959)-. Se ha puesto
al sistema educativo en el centro de las acciones públicas, dotándolo de
un papel de transformador de la sociedad en una lógica iniciada desde las 18 “La necesidad de
abordar los temas de
instituciones. Además, las últimas medidas legales implantadas proponen género, la especial
la igualdad efectiva entre los géneros como un indicador de la calidad sensibilización del
del sistema educativo. Evaluar el éxito de la política pública educativa mundo educativo y el
requiere, por tanto, evaluar la calidad de la política pública de educación compromiso intermi-
nisterial dieron como
desde la perspectiva de género. Evaluar la calidad en la educación va más fruto la creación de la
allá del rendimiento académico y de los indicadores cuantificados por los Red Intercambia, en
informes internacionales (como, por ejemplo, el Program for International el año 2005, https://
Student Assessment, PISA), más bien, exige un enfoque integral acorde con www.educacion.gob.es/
intercambia/portada.do
la complejidad del fenómeno y el sistema educativo, que no deja fuera la (21 de septiembre de
perspectiva de género (TIANA, 2006; SANTOS, 2010). 2013).

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


140 Juana M. Ruiloba

A modo de resumen y de síntesis, siguiendo a Subirats et al, (2010:218)


consideramos útil distinguir tres criterios para valorar los “efectos de la
política”, efectividad, eficacia y eficiencia, esto es, ¿ha sucedido algo? ¿ha
sucedido lo que se había previsto? ¿se ha hecho todo de la mejor manera
posible (para el caso de la política pública que nos ocupa)?

No hay duda que, algo ha pasado, y es que se ha incluido la perspectiva de


género en el discurso y en el articulado de los textos normativos que rigen el
sistema educativo, por ende, se ha procedido a la visibilización del problema
(una vez conseguida la meta de la igualdad de acceso, la política se centra en
la corrección de desajustes persistentes). Los avances han sido progresivos,
pero los estudios efectuados y los indicadores cuantitativos y cualitativos
planteados para medir los efectos de la política, nos indican que aún queda
un largo proceso por delante. A ello se suma, la situación contextual, en
plena crisis económica y de adelgazamiento del sector público, con un poder
ejecutivo menos interesado en este tema concreto (partidario, en cambio,
de la estrategia de no definición y no acción, y que apuesta, más bien, por
el paso del tiempo como corrector de los desajustes que pudiesen existir en
esta materia), se ha iniciado el proceso de concreción de una nueva reforma
educativa que pretende concretarse en una nueva ley, centrada en la calidad,
la eficacia y eficiencia en el uso de los recursos escasos (la perspectiva de
género queda fuera de la discusión).
Artigo
Recebido: 03/05/2013
Evaluar la política pública de educación con perspectiva de género es la
Aprovado: 22/06/2013 historia de un éxito condicionado, pero éxito al fin y al cabo.
Keywords: ABSTRACT: Abstract: In this article, I offer a general overview of the Spanish
education, gender, educational system and the situation and evolution of women’s roles. I review
public policy,
the literature, I explore the legal measures and I use indicators and empirical
assessment,
education quality data to test some explanatory factors of women’s unequal position. In this
paper, I study the case of Spain, I bring discussion topics for analysis and I
propose an assessment framework that can be used to describe and analyze
education public policies from a gender perspective. In summary, I attempt
to defend the view that gender is an important component in the education
system, and plays a key role on quality policies of education.

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(*) Linda M. P. Gondim é Socióloga, Doutora em Planejamento Urbano e Regional 147
pela Cornell University, Estados Unidos, professora associada do Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da UFC. @ - [email protected]

À sombra do BNH:
a nova política habitacional em
Fortaleza-CE (2005-2011)**

Under the Shadow of Brazil National Housing Bank


(BNH): the new housing policy in Fortaleza-CE
(2005-2011)

Linda M. P. Gondim*

RESUMO: O artigo discute a atuação da Fundação para o Desenvolvimento Palavras-chave:


Habitacional de Fortaleza (Habitafor), no período de 2006 a 2011, nos marcos política
habitacional;
da nova política definida pelo Ministério das Cidades para a habitação. Tal
conjuntos
política propiciou significativo aporte de recursos ao setor, em benefício da habitacionais
população com rendimentos até três salários mínimos, que passou a ter acesso de baixa renda;
gratuito à moradia. Entretanto, o alto custo dos terrenos urbanizados, em fundação para o
relação aos recursos públicos disponíveis, acarretou a localização das novas desenvolvimento
habitacional de
moradias em áreas distantes dos centros de emprego, comércio e serviços.
Fortaleza.
Além disso, persistiu, em larga medida, a opção de remover favelas para
conjuntos habitacionais, ao invés de proceder à regularização urbanística
e fundiária dos assentamentos precários. A participação dos beneficiários
nos programas e projetos limitou-se ao acesso a informações sobre as
características da nova forma de moradia, sobre a qual eles pouco podiam
opinar. O resultado foram projetos massificados, localizados na periferia e com
acesso limitado a serviços urbanos, replicando, nesses aspectos, a experiência
do Banco Nacional da Habitação (BNH) durante a ditadura militar.

E
ste artigo discute a atuação da Fundação para o Desenvolvimento
(**) O presente traba-
Habitacional de Fortaleza (Habitafor), no período de 2006 a 2011, nos lho baseia-se em pes-
marcos da nova política definida pelo Ministério das Cidades para o quisa realizada com
setor da habitação. Tal política permitiu o aporte de vultosos recursos para o o apoio do Conselho
Nacional de Ciência
enfrentamento do déficit habitacional das cidades brasileiras, onde mais de e Tecnologia (CNPq),
12 milhões de famílias moram em assentamentos precários: favelas, cortiços, no período de março
loteamentos irregulares, conjuntos habitacionais deteriorados e ocupações de 2009 a fevereiro de
2012, durante o qual a
de prédios abandonados – para não falar da chamada “população de rua”. autora contou com Bol-
O problema não se limita às grandes cidades, estando presente em 80% sa de Produtividade em
daquelas com população entre 100 e 500 mil habitantes, e até em municípios Pesquisa.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


148 Linda M. P. Gondim

com menos de 20 mil habitantes (MARQUES, 2007). Dessa forma, o País


insere-se no que Mike Davis (2006) denominou de “planeta favela”1.

Os assentamentos precários apresentam diferenças entre si, mas têm em


comum a precariedade urbanística, habitacional, ambiental e socioeconômica.
Falta-lhes acessibilidade à “cidade formal”, infraestrutura adequada, serviços
públicos e equipamentos urbanos suficientes e de qualidade. As construções
não atendem à legislação edilícia e, por vezes, são feitas com materiais não
permanentes. Predominam famílias com renda inferior a três salários mínimos
e com dificuldades de inserção no mercado de trabalho formal.

Uma característica marcante desses assentamentos é a ocupação irregular


de terrenos de terceiros (públicos ou privados), geralmente situados em
áreas pouco atrativas para o mercado imobiliário formal ou proibidas para a
ocupação: periferias distantes, encostas de morros, manguezais, margens de
rios, lagoas ou represas etc2. A relação predatória com o meio ambiente agrava
as condições de vida dessa população, que, em muitos casos, fica sujeita a
riscos de inundações, desabamentos, deslizamentos de encostas e outros.

Enquanto os assentamentos precários concentram pobreza e carências de todo


tipo, as áreas ocupadas pelas classes média e alta recebem a maior parte dos
1 A utilização da metá- investimentos públicos e privados em infraestrutura e equipamentos urbanos,
fora de Davis não signi- o que acentua a desigualdade social (VETTER; MASSENA, 1982). Já é quase
fica concordância com
toda a sua análise sobre
um consenso na literatura sobre a urbanização brasileira o reconhecimento de
a questão habitacional. que essa “cidade dual” não decorre diretamente da ausência de planejamento
Para uma crítica sobre ou instrumentos de controle urbanístico (FERNANDES, 2006; MARICATO,
o conceito de favela 2001). Na verdade, “dualismo” é um termo simplista para caracterizar
utilizado pelo autor, ver
Gondim (2010). os processos de segregação socioespacial, uma vez que se trata de um só
fenômeno, com duas faces: de um lado, o Poder Público aprova leis de uso
2 Ressalte-se que a e ocupação do solo rigorosas; de outro, promove sua aplicação de modo
irregularidade fundiá-
ria e urbanística não é
seletivo no território da cidade, ou seja, apenas nas áreas de interesse real ou
exclusiva aos pobres, potencial para o mercado imobiliário. Nos espaços ocupados pela população
como indicam os lote- de baixa renda, vigora uma espécie de laissez-faire, o qual pode ser revertido,
amentos de áreas pú-
blicas em Brasília e a
porém, conforme mude o direcionamento da expansão urbana e os interesses
ocupação de encostas especulativos a ela associados.
no Rio de Janeiro por
casas de padrão médio
ou alto. Entretanto, os
À procura de saídas do “planeta favela”
assentamentos da popu-
lação pobre apresentam Velhos caminhos
maior dimensão quanti-
tativa e vulnerabilidade
ambiental e socioeco-
A criação do Banco Nacional da Habitação (BNH) em 1964 representou a
nômica. primeira tentativa sistemática, abrangente e economicamente sustentável
À sombra do BNH: a nova política habitacional em Fortaleza-CE (2005-2011) 149

para resolver o problema da habitação de baixa renda no Brasil. Tratava-


se de uma nova “política social” da recém-instalada ditadura militar, que
pretendia atingir simultaneamente dois objetivos: legitimar-se junto às
massas e fomentar o crescimento econômico e a criação de empregos, via
dinamização da construção civil.

A oferta de moradias populares pelo Poder Público, em conjuntos


habitacionais financiados pelo BNH, experimentou incremento razoável, mas
ainda assim, longe de atender ao déficit acumulado nas grandes cidades. O
reajuste periódico das prestações, a par de outros custos como taxas e tarifas,
tornou seu pagamento inviável, levando a altos índices de inadimplência
(AZEVEDO; ANDRADE, 1982). Outros fatores afetaram negativamente essa
forma de moradia: a localização em periferias desprovidas de equipamentos
urbanos e distantes dos locais de trabalho; a má qualidade das construções e
da infraestrutura ofertadas; o caráter autoritário das políticas habitacionais,
que se voltaram prioritariamente para a erradicação de favelas.

Gradativamente, os conjuntos habitacionais foram se deteriorando e sua


ocupação passou a fugir ao controle dos órgãos governamentais, o que
contribuiu para a multiplicação de irregularidades ou ilegalidade no tocante à
propriedade das unidades habitacionais ou mesmo do terreno ocupado. Configurou-
se, assim, a “favelização” do que havia sido apresentado como “solução”
para o problema das favelas (ANDRADE, 2006). Em suma, cada vez mais os
assentamentos precários tornaram-se as únicas alternativas para os pobres.

Uma tentativa sistemática de minorar a situação, no caso dos loteamentos


irregulares, foi a aprovação, em 1979, da Lei Federal n.º. 6766, destinada
a ordenar o crescimento urbano e coibir práticas abusivas de loteadores,
típicas das “cidades informais” construídas nas periferias metropolitanas3.
Essa lei estabeleceu severas exigências quanto à provisão de infraestrutura
de serviços públicos nos loteamentos, contendo, ainda, dispositivos voltados
para a proteção dos compradores de terrenos. A medida revelou-se tão
inócua quanto rigorosa, do ponto de vista da oferta de moradias pelo
mercado formal. Por um lado, os maiores custos dos terrenos, decorrentes da
provisão de infraestrutura nos loteamentos e os complicados procedimentos
burocráticos para a aprovação de projetos inibiram a ação de pequenos
e médios loteadores, acarretando efeito contrário ao esperado: diminuiu 3 No caso de Fortaleza,
a oferta, a preços acessíveis, de terrenos – urbanizados ou não. Acresce a expansão periféri-
que o processo inflacionário nas décadas de 1970 e 1980 inviabilizou a ca foi fomentada pelo
venda de lotes em prestações fixas, sem correção monetária, como ocorrera próprio poder público,
mediante a construção
nas décadas anteriores. Do lado da demanda, o achatamento salarial a que de conjuntos habitacio-
foram submetidos os trabalhadores restringiu severamente o acesso à moradia nais em áreas de vazios
produzida no mercado formal. urbanos.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


150 Linda M. P. Gondim

A “solução BNH”, particularmente no que se refere à remoção de favelas


para conjuntos habitacionais periféricos, recebeu fortes críticas nos meios
acadêmicos e profissionais, por seu caráter autoritário e pela produção ou
reforço de exclusões sociais e espaciais. Defendia-se como mais adequada
a urbanização das favelas, mediante aproveitamento, no todo ou em parte,
do traçado existente dos assentamentos e da provisão de infraestrutura
e equipamentos públicos. A transformação das unidades residenciais,
de modo a adaptá-las a padrões urbanísticos e construtivos adequados
(afastamentos, iluminação, ventilação, instalações sanitárias etc.) poderia
ser feita progressivamente, com o aproveitamento do patrimônio existente,
de acordo com as possibilidades e aspirações dos moradores e mediante
financiamento para a compra de materiais de construção. Em certos casos,
poder-se-ia ofertar moradias já prontas para ocupação, mas a população
beneficiada participaria das decisões concernentes ao projeto. Quanto aos
loteamentos irregulares já existentes, propugnava-se a regularização da
posse ou propriedade do terreno, e dotação de infraestrutura e de serviços
urbanos pelo Poder Público.

Se durante o regime militar as críticas e alternativas


apontadas em relação à política habitacional tiveram
4 A gestão do setor ha- efeito limitado, a situação começaria a se modificar a
bitacional sofreu gran-
de descontinuidade,
partir da década de 1980. O fim do chamado “milagre
sendo atribuída a seis econômico”, o acirramento de conflitos entre grupos
órgãos diferentes num militares e as pressões dos movimentos sociais
período de 17 anos:
ao Ministério do De-
acarretaram transformações na conjuntura política,
senvolvimento Urbano enfraquecendo o regime autoritário. Durante o governo
e Meio Ambiente, de de José Sarney, primeiro presidente civil desde o golpe
1985 a 1987; ao Mi-
nistério da Habitação,
de 1964, ocorreu a extinção do BNH, medida que não
Urbanismo e Meio estava na pauta das reivindicações dos movimentos
Ambiente, de 1987 a sociais. As atribuições do Banco foram simplesmente
1988; ao Ministério
do Bem-Estar Social,
transferidas para a Caixa Econômica Federal, sem que
de 1988 a 1990; deste houvesse alguma reestruturação significativa do setor
último ano até 1995, habitacional4. No novo contexto político, esse vácuo
ao Ministério da Ação
Social; de 1995 a 1999,
institucional favoreceu a descentralização das ações
à Secretaria de Política no setor e a adoção de programas que substituíam a
Urbana, ligada ao Mi- remoção pela urbanização dos assentamentos precários,
nistério do Planejamen-
to; de 1999 a 2002, à
como o Programa de Mutirão Habitacional (1987-1995).
Secretaria Especial de Embora as favelas continuassem a ser estigmatizadas
Desenvolvimento Urba- como áreas “marginais”, gradualmente ocorreu o
no, ligada à Presidência
da República (SANTOS
abandono da sua erradicação em massa como “solução
Jr., 2007). final” (MACHADO DA SILVA, 2002).
À sombra do BNH: a nova política habitacional em Fortaleza-CE (2005-2011) 151

A transformação da política habitacional era um dos objetivos do Movimento


Nacional pela Reforma Urbana, constituído por uma rede de entidades
populares, associações profissionais, organizações governamentais e outros
setores organizados da sociedade civil, que exerceram significativa influência
sobre os trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte. (SANTOS
Jr., 2007). Refletindo essas pressões, a Constituição Federal de 1988
consagrou a função social da propriedade urbana, incorporou dispositivos
para o controle da especulação imobiliária e estabeleceu o princípio do
planejamento e da gestão democráticos das cidades. Contudo, em sua maior
parte, essas inovações constitucionais só se tornaram efetivas 12 anos mais
tarde, com a aprovação do Estatuto da Cidade (Lei n.º. 10.257/2001) –
demora indicativa das vicissitudes do processo de mudanças relativas à
produção do espaço urbano (BASSUL, 2005).

Novos caminhos: a política habitacional do Governo Lula

Os novos instrumentos para facilitar o acesso à terra urbanizada e a


democratização do planejamento e da gestão das cidades, instituídos pelo
Estatuto da Cidade, teriam oportunidade de se concretizar a partir do primeiro
mandato do presidente Lula da Silva, em 2003. Com a criação do Ministério
das Cidades (MC) colocou-se, pela primeira vez, a possibilidade de ação
integrada do Governo Federal nas áreas de habitação, inclusive políticas
territoriais e fundiárias; saneamento ambiental; transporte e mobilidade
urbana. Em 2004, foi elaborada a Política Nacional de Habitação (PNH),
que reafirmava os princípios da função social da propriedade, do acesso
à moradia digna como “vetor de inclusão social”, da gestão democrática
e da articulação entre políticas sociais e ambientais (MASCIA, 2011,
s/p). A efetivação desses princípios ocorreria com a criação do Sistema
Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e do Fundo Nacional de
Habitação de Interesse Social, com o respectivo Conselho Gestor, integrado
por representantes do setor público e da sociedade civil (lei n.º 11.124, de
17/06/2006). O governo comprometeu-se a aportar anualmente um bilhão de
reais para subsídios a programas habitacionais de baixa renda – “valor nunca
alcançado anteriormente”, como assinalou Bonduki (2010, p. 8). Estados e
Municípios têm participação nesses recursos, desde que criem uma estrutura
institucional homóloga à do governo federal (fundo local e conselho gestor).

Do ponto de vista qualitativo, a atuação do MC seria prejudicada por


injunções supostamente necessárias para garantir a “governabilidade”, a
partir da crise política atravessada pelo Governo Lula em 2005, que ficou
conhecida como “escândalo do mensalão”. Nesse ano, ocorreu a substituição
do ministro Olívio Dutra – político historicamente comprometido com a

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


152 Linda M. P. Gondim

reforma urbana – por Marcio Fortes, indicado pelo conservador e populista


Partido Progressista, integrante da “base aliada” do presidente Lula. Parte
da equipe, inclusive a urbanista Ermínia Maricato, Secretária-Executiva do
MC, renunciou aos cargos (MARICATO, 2011). Completando essa mudança,
em 2007 o governo determinou a substituição dos Secretários Executivos
que haviam permanecido, exceto o de Habitação.

No mesmo ano, o governo federal lança o Programa de Aceleração do


Crescimento (PAC), prevendo aplicações da ordem de R$ 503,9 milhões em
infraestrutura urbana (saneamento, provisão de energia elétrica e transportes)
e habitação, até 2010. (VALENÇA; BONATES, 2009). A crise da economia
mundial em 2008 constituiu uma oportunidade para aprofundar a ligação
entre os investimentos públicos e os interesses empresariais. A produção
massiva de moradias passa a ser encarada como medida de enfrentamento
da crise, por seus efeitos multiplicadores e potencial gerador de empregos
formais. O governo anuncia, em março de 2009, o Programa Minha Casa,
Minha Vida (MCMV), prevendo a construção de um milhão de unidades
habitacionais, destinadas a diferentes segmentos do déficit habitacional.
Para a faixa de renda até três salários mínimos, seriam construídas 400 mil
unidades, cuja aquisição seria subsidiada quase integralmente. A faixa de
renda entre três e seis salários mínimos seria atendida também com 400 mil
unidades, mediante financiamento para a aquisição de imóveis com valor
máximo de 75 mil reais. O Programa MCMV contempla, ainda, a faixa entre
seis e dez salários mínimos, prevendo a construção de 200 mil unidades.
Neste caso, o financiamento, com recursos do Sistema Brasileiro de Poupança
e Empréstimo, seria restrito à aquisição de um único imóvel, destinado à
moradia. Trata-se de um critério relevante, do ponto de vista macroeconômico,
vez que, como destacou Mascia (2011, s/p), “a ‘bolha imobiliária’ americana,
estopim para a crise dos mercados em 2008, foi formada basicamente pela
massa insolvável de imóveis adquiridos para especulação imobiliária”.

A influência do setor de construção na política habitacional fica evidente


na decisão de priorizar a oferta de unidades habitacionais prontas,
desconsiderando possíveis efeitos que o aporte de vultosos recursos poderia
trazer para a valorização especulativa da terra urbana. Esse possível impacto
do MCMV significaria um desvirtuamento dos objetivos do Programa, na medida
em que uma parte dos subsídios seria transferida para o setor imobiliário
(BONDUKI, 2010). Além disto, o Ministério das Cidades perdeu uma
oportunidade de articular a política habitacional ao desenvolvimento urbano
planejado, correndo o risco de repetir os erros do BNH, em termos de ampliação
de uma oferta de moradias de má qualidade, localizadas em áreas periféricas
das cidades, sem infraestrutura adequada. Tal risco é tanto maior quando se
À sombra do BNH: a nova política habitacional em Fortaleza-CE (2005-2011) 153

considera o enfraquecimento, a partir de 2007, da Secretaria Nacional de


Programas Urbanos, encarregada das políticas fundiárias e urbanas do MC.

Ao concentrar esforços na produção massiva de habitação, o governo federal


também enfraqueceu sua atuação junto aos governos locais no sentido do
enfrentamento da questão fundiária urbana, que se encontra na raiz do déficit
habitacional da população de baixa renda. Esse quadro é agravado pela
pouca capacidade institucional de muitas prefeituras, aliada a dificuldades
políticas para implementação de planos diretores, sobretudo quanto às
medidas previstas no Estatuto da Cidade para viabilizar a maior oferta de
terra urbanizada (ZEIS, IPTU progressivo no tempo, outorga onerosa de uso
e outras) (SANTOS Jr.; MONTANDON, 2011). Essas limitações, como será
visto, estarão presentes na política habitacional de Fortaleza, realizada a
partir de 2005.

Fortaleza e o “planeta favela”


A capital do Ceará, com mais de 2,5 milhões de habitantes, compartilha o
quadro de precariedade habitacional típico do Brasil urbano, refletindo um
padrão historicamente excludente de urbanização. No Estado, esse processo
foi marcado pela macrocefalia da Capital, para onde convergiram as vias de
circulação e onde se concentraram os investimentos públicos (PEQUENO, 2008).
Nas últimas décadas, tem ocorrido alguma desconcentração, mas direcionada
sobretudo para os municípios metropolitanos de Maracanaú e Caucaia.

Os fatores de atração para a Capital combinaram-se com fatores de expulsão


das áreas rurais, periodicamente atingidas por crises econômicas. Ainda que
agravadas por condições climáticas (“secas”), essas crises têm suas raízes na
coexistência de culturas comerciais nas grandes propriedades, culturas de
subsistência em minifúndios e expressiva população sem acesso à terra. A
partir da década de 1950, acentuou-se o incremento demográfico da Cidade, em
consequência de intensos fluxos migratórios. Já na década anterior começara
a formação das primeiras favelas, cujo crescimento se acentuou nas décadas
subsequentes. Atualmente, a formação ou expansão dos assentamentos
precários tende a ocorrer em áreas de grande vulnerabilidade ambiental,
como dunas, manguezais e margens de rios e lagoas (PEQUENO, 2008).

A urbanização predatória, porém, não deve ser creditada exclusivamente à


ação dos pobres, pois estes simplesmente respondem à falta de alternativas
habitacionais no mercado formal. O controle especulativo da terra urbana,
beneficiado pela concentração de investimentos públicos nas áreas mais bem
aquinhoadas da cidade, criou em Fortaleza uma situação crítica de escassez

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


154 Linda M. P. Gondim

de terra urbanizada. O quadro de precariedade habitacional e urbanística


se completa pela limitada intervenção direta do Estado na provisão de
moradias de baixa renda.

A atuação sistemática do Poder Público na área de habitação popular em


Fortaleza teve início na década de 1970, por meio de programas de remoção
de favelas para conjuntos habitacionais periféricos, financiados pelo BNH e
construídos pelo governo estadual. No final da década, este criou a Fundação
Programa de Assistência às Favelas da Área Metropolitana de Fortaleza
(PROAFA), também voltada para a remoção de favelas. Na Prefeitura
Municipal, a questão da moradia ficaria a cargo de um departamento
de serviço social, sem integração aos setores de obras, infraestrutura e
planejamento urbano (BRAGA, 1995).

Após a extinção do BNH, o governo municipal engajou-se no Programa de


Mutirões Habitacionais, com a participação de associação de moradores,
muitas vezes apoiadas por ONGs (PMF, 2003; BRAGA, 1995). A inserção de
organizações e lideranças populares em projetos governamentais contribuiu
para gerar conflitos internos, burocratizar os movimentos sociais e “pacificá-
los” (BRAGA; BARREIRA, 1990; GONDIM, 2004). Há que destacar, ainda,
a reprodução de segregações sócio-espaciais acarretada pela localização dos
conjuntos em periferias distantes. A participação dos movimentos sociais
em programas financiados com recursos públicos, contudo, teve um efeito
positivo: a capacitação de lideranças, com o apoio de ONGs, cujos quadros
também passaram a se especializar em planejamento urbano e políticas
públicas (PEQUENO, 2008).

Procura-se uma política habitacional para Fortaleza, ou:


“tem, mas ‘tá faltando”5

Durante toda a década de 1990, Fortaleza, uma metrópole que, na época,


já tinha mais de um milhão de habitantes, permaneceu sem um órgão
gestor municipal dedicado especificamente à habitação. Não havia um
5 O subtítulo “tem, mas modelo de gestão para o setor, cujas ações atendiam a demandas pontuais
tá faltando” alude a e eram executadas de forma pulverizada, por vários órgãos e entidades
um dito popularmente municipais (PMF, 2003; PEQUENO, 2008). Tal situação reflete a ausência
utilizado no comércio
fortalezense, para justi-
de visão estratégica e o caráter clientelista da administração do Prefeito
ficar a um comprador a Juraci Magalhães, político do PMDB que construiu sua popularidade por
falta de um produto, su- oposição ao governo estadual, então controlado pelo grupo ligado a Tasso
gerindo que este estaria Jereissati (PSDB) (GONDIM, 2007). A primeira administração de Juraci
disponível em outras
ocasiões. Magalhães foi marcada por obras de grande visibilidade, como viadutos
À sombra do BNH: a nova política habitacional em Fortaleza-CE (2005-2011) 155

e praças, além de intensa propaganda e atividade clientelista. Em 1992,


elegeu seu sucessor, e reelegeu-se por duas vezes, em 1996 e 2000.

Em 2003, penúltimo ano do mandato do prefeito, foi criado um órgão


para elaborar e implementar as políticas habitacionais do Município, a
Fundação para o Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza (Habitafor).
Isso ocorreu, porém, para atender a uma exigência do Banco Interamericano
de Desenvolvimento (BID), relativa ao repasse de recursos do Programa
Habitar Brasil/BID.

De modo geral, os programas habitacionais da PMF e do Estado não foram


capazes de alterar o quadro de exclusão espacial vigente na Cidade. Tanto
é que cerda de 27% dos domicílios de Fortaleza estão localizados em
assentamentos precários, onde reside uma população estimada em mais de
600 mil pessoas. (MARQUES, 2007).

A política habitacional de Fortaleza depois do Ministério


das Cidades: avanços e recuos

O pleito de 2004 sinalizou uma mudança no quadro político da capital do


Ceará: os candidatos apoiados pelas forças políticas até então dominantes
foram derrotados por Luizianne Lins, que conseguiu se candidatar pelo PT,
à revelia da direção local e nacional do partido. A nova prefeita trouxe para
os quadros da gestão municipal técnicos ligados a movimentos sociais e a
ONGs que haviam apoiado a sua candidatura. Para dirigir a recém-criada
Habitafor, foi nomeada a socióloga Olinda Marques, que se destacara pela
militância em prol do Movimento Nacional pela Reforma Urbana.

A efetivação da Habitafor contou com condições institucionais favoráveis,


particularmente os novos instrumentos legais do Estatuto da Cidade e a
assistência técnica do Ministério das Cidades. Contudo, os recursos materiais
e humanos necessários ao seu funcionamento eram insuficientes, ante a
tarefa hercúlea de fazer frente aos graves problemas da moradia popular
em Fortaleza, acumulados ao longo de décadas de descaso. A Habitafor não
dispunha de um staff permanente: além de alguns técnicos do quadro da
administração municipal cedidos pelos órgãos de origem, os demais eram
nomeados para cargos comissionados ou contratados por serviços prestados.
As condições de trabalho eram desfavoráveis: infraestrutura deficiente,
baixos salários, longas horas de trabalho. A atuação junto a comunidades
a serem reassentadas exigia flexibilidade de horário, o que significava,
por vezes, trabalhar mais de oito horas por dia e até nos fins de semana
e feriados. Mesmo assim, a primeira presidente da Habitafor formou uma

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


156 Linda M. P. Gondim

equipe bastante motivada, integrada por recém-formados, cuja falta de


experiência na administração pública era, até certo ponto, contrabalançada
pela familiaridade com o trabalho junto a comunidades de baixa renda.

Foi nessas condições que a política municipal de habitação foi concebida e, em


sua maior parte, executada; tanto é que a grande maioria dos projetos realizados
até 2011 foi iniciada na gestão de Olinda Marques. Isso não impediu, porém,
que injunções políticas – também em nome da “governabilidade” – levassem
à sua substituição, em junho de 2009, por um integrante da administração
municipal cujo perfil era acentuadamente político-partidário.

A Habitafor apresenta resultados quantitativos modestos. Uma de suas


primeiras ações foi o Programa de Regularização Fundiária, destinado a
assegurar a posse legal aos moradores de conjuntos habitacionais novos e
antigos. Até meados de 2011, nenhuma das 28.917 ações de regularização
fundiária previstas havia sido concluída6. Esse dado não é surpreendente,
quando se consideram os inúmeros obstáculos ao processo, que vão
desde as dificuldades de obtenção de documentos dos interessados, até
a incompreensão das determinações da nova legislação, por parte de
juízes e dirigentes de cartórios de registros imobiliários (ABREU, 2008;
ALFONSIN, 1997; FERNANDES, 2007). Na verdade, a regularização
fundiária tem sido apontada como um dos componentes mais difíceis da
política habitacional em outras cidades.

Quanto à provisão de moradias, considerando-se construção e melhorias de


unidades habitacionais, os programas Casa Bela e Morar Melhor beneficiaram
2.839 e 17.862 famílias, respectivamente, entre 2005 e 2011. O primeiro
consistiu na concessão de empréstimos a famílias de baixa renda, para fins
de reforma e ampliação de moradias. O Programa Morar Melhor ofertava
moradias em conjuntos habitacionais, e pode ser considerado o carro-chefe
das ações da Habitafor. Por este motivo, e também por limitações de espaço,
sua análise receberá prioridade, sendo objeto da próxima seção.

6 Nessas ações estão


Da favela ao conjunto
incluídos os processos
relativos à retomada de Nas ações da Habitafor, tem predominado o deslocamento da população
moradias vendidas ir-
das favelas para conjuntos habitacionais, por vezes combinado com a
regularmente, as quais
haviam originado, até realização de melhorias em trechos das ocupações não sujeitos a riscos.
meados de 2011, 206 Assim, a urbanização de assentamentos precários, quando muito, é uma
processos, dos quais 71 alternativa subsidiária. A prioridade conferida à oferta de moradias prontas
de natureza adminis-
trativa e 135 judiciais está relacionada à ausência de conhecimentos e experiências locais de
(GONDIM, 2012a). urbanização de favelas – o que, por sua vez, tem relação com o fato de que a
À sombra do BNH: a nova política habitacional em Fortaleza-CE (2005-2011) 157

presença desses assentamentos é bem mais recente em Fortaleza do que em


outras cidades, como Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Evidentemente, a
antiguidade de um fenômeno, por si só, não é suficiente para gerar soluções
apropriadas, nem para garantir sua aceitação – assim é que tanto no Rio de
Janeiro como em Fortaleza, verifica-se resistência da população de classe
média e alta à permanência de favelas em sua vizinhança (GONDIM, 2012a;
2012b). É interessante notar que a própria população favelada nem sempre
reivindica a urbanização e, quando o faz, geralmente é porque está sob
ameaça de expulsão. O seguinte depoimento de uma técnica da Habitafor
ilustra claramente essa tendência:

Eu acho que a visão é que é pra dar casas; a própria


comunidade, [...] se você olhar para as listas do
Orçamento Participativo7, o que você vê é: tantas unidades
para a comunidade tal. E quando você vê a regularização
fundiária, as poucas comunidades [que a reivindicam],
é porque elas estão sendo ameaçadas, se sentindo
ameaçadas de ser despejadas [...] (Entrevista realizada
em 13/01/2011; apud GONDIM, 2012a).

A opção pelo reassentamento, porém, afetou negativamente as condições


de habitabilidade da população atendida, no que diz respeito ao local de
moradia. Assim, ainda que a Habitafor tentasse transferir os moradores para
conjuntos habitacionais situados nas proximidades das favelas removidas –
diretriz estabelecida, inclusive, por órgãos internacionais como a UN-HABITAT
(2003) – o alto custo dos terrenos em Fortaleza tem inviabilizado essa solução.
Tanto é que dos 22 projetos em execução entre 2005 e 2011, em apenas sete
as famílias foram reassentadas em moradias construídas no próprio local da
favela, ou a menos de 200m deste (BORGES, 2012). E somente em dois casos,
tais conjuntos situavam-se em bairros de classe média e alta.

Em princípio, a escolha das comunidades a serem atendidas deveria seguir


a ordem de prioridades indicada em estudo realizado com o patrocínio do
BID, o qual apontava 105 áreas de risco cujos moradores deveriam ser
retirados. No entanto, a decisão sobre quais comunidades seriam removidas
foi fortemente influenciada por demandas de representantes comunitários
apresentadas nas assembleias do Orçamento Participativo. 7 Durante a gestão da
Prefeita Luizianne Lins,
foi adotado o Orçamen-
Em termos de desenho organizacional, os projetos da Habitafor eram realizados to Participativo como
de forma fragmentada: a divisão de trabalho atribuía a seus técnicos a etapa mecanismo para a alo-
cação de recursos desti-
inicial (concepção dos projetos, realização do diagnóstico e mobilização nados a investimentos,
da comunidade), enquanto a execução era terceirizada. A intervenção do inclusive à habitação.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


158 Linda M. P. Gondim

órgão municipal iniciava-se com uma visita de seus técnicos à favela, a fim
de delimitar a área a ser contemplada no projeto. Em seguida, era feito o
“congelamento” dessa área, que consistia em marcar todos os domicílios
com um número e a sigla PMF, de modo a restringir a população beneficiária
aos residentes dos imóveis “congelados”. A equipe da Habitafor realizava,
então, o cadastro dos moradores da área congelada, que incluía informações
demográficas e socioeconômicas, necessárias ao dimensionamento dos
projetos e o tipo de apartamentos (tamanho das famílias, número de crianças,
velhos e pessoas portadoras de deficiências etc.)8. Os engenheiros e arquitetos
da Habitafor elaboravam o projeto e acompanhavam as obras, realizadas por
empresa selecionada mediante licitação.

Previa-se um acompanhamento pós-ocupação dos conjuntos, durante 18


ou 24 meses, incluindo atividades de participação comunitária, educação
ambiental e geração de emprego e renda, de acordo com diretrizes da Caixa
Econômica Federal e do Ministério das Cidades. Limitações de ordem
técnica e financeira, porém, praticamente inviabilizaram a realização de
tal trabalho, que passou a ser mais a exceção do que a regra nos projetos
habitacionais de responsabilidade de Habitafor. Um dos entraves era a
lentidão dos procedimentos burocráticos para licitar, contratar e pagar as
empresas. Esse problema talvez pudesse ter sido contornado se fossem
previstos recursos para a contratação de empresas para participar do projeto
desde a fase do cadastramento, por exemplo. Outro fator que comprometeu o
acompanhamento pós-ocupação foi a escassez de empresas com experiência
nesse tipo de trabalho, refletindo o número reduzido de técnicos, disponíveis
em Fortaleza, com formação adequada para atuar na área de habitação de
interesse social. (GONDIM, 2012a).

As moradias ofertadas pela Habitafor, tipicamente, localizam-se em unidades


duplex geminadas, tendo sala, cozinha e dois quartos9, construídas em blocos
separados por ruas internas. Os conjuntos habitacionais têm, em média, 237
unidades, podendo ser considerados pequenos, de acordo com tipologia
elaborada por um órgão executor da política habitacional do BNH (GONDIM,
1976). Mesmo o maior deles – Maria Tomásia, com 1.126 casas – seria um
8 Em todos os conjun-
tos habitacionais, foram conjunto médio pelos padrões do BNH, onde prevaleciam assentamentos
construídos aparta- com mais de duas mil unidades.
mentos adaptados para
pessoas portadoras de
deficiências.
Os projetos arquitetônicos, via de regra elaborados pela própria equipe
da Habitafor, caracterizam-se pela homogeneidade das construções, o que
9 Há exceções, como gera um efeito de monotonia, agravado pela ausência de marcos espaciais
o Conjunto Maravilha,
constituído por prédios
significativos, como praças arborizadas ou parques. Alguns conjuntos
de três pavimentos. preveem um número limitado de unidades destinadas ao comércio ou à
À sombra do BNH: a nova política habitacional em Fortaleza-CE (2005-2011) 159

prestação de serviços, para atender a pessoas que desempenhavam essas


atividades nas comunidades de origem.

São proibidas modificações nas fachadas, nas unidades habitacionais ou


nos blocos de apartamentos, a não ser com autorização da Habitafor. Os
beneficiários também não podem negociar suas moradias (alugar, ceder ou
vender), que lhes são concedidas gratuitamente, mediante concessão de
direito real de uso; admite-se apenas a troca, por intermédio da Habitafor.
Esta, porém, tem tido dificuldade de controlar o uso e a ocupação dos novos
assentamentos. São frequentes as intervenções dos moradores nas áreas de
uso comum, seja ajardinando o terreno em frente à moradia, seja apropriando-
se de espaços livres. Um exemplo disto é a cobertura da área que separa
blocos adjacentes, a qual é utilizada para guardar bicicletas, motos ou mesmo
carros. Ademais, verifica-se uma espécie de mercado imobiliário informal
que atinge 20%, ou mais, das unidades habitacionais. As visitas esporádicas
de técnicos da Habitafor não têm logrado coibir essas práticas (GONDIM,
2012a). Existe, assim, um significativo hiato entre o que é planejado pela
Habitafor e o que é vivido ou desejado pelos moradores dos conjuntos
habitacionais. Seria de se esperar que a tão decantada participação da
comunidade – exigência, inclusive, dos órgãos financiadores – permitisse a
diminuição desse hiato. Na prática, porém, os mecanismos participativos são
restritos ao acesso a informações e a consultas sobre detalhes dos projetos,
como será visto a seguir.

Concepção e gestão de projetos habitacionais: qual


participação?

Malgrado a retórica de participação popular que permeia a atuação da


Habitafor – e de outros órgãos municipais, estaduais e nacionais – verifica-
se que, efetivamente, é bem restrita a influência das comunidades atendidas
pelas ações do Poder Público. Quando muito, podem opinar sobre detalhes dos
projetos, como escolher entre uma área de lazer e um galpão para catadores
de lixo, ou entre um campo de futebol e um playground, por exemplo. Não
lhes compete decidir sobre aspectos fundamentais como a localização dos
conjuntos, as características das moradias e as normas de convivência e de
utilização de espaços públicos e privados. Os limites da participação dos
moradores ficam claros no seguinte trecho de entrevista realizada com um
técnico da Habitafor:

A participação era a seguinte: a gente fazia a concepção


arquitetônica enquadrada nas regulamentações do
Município e de aprovação de projeto. [...] a gente marcava

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


160 Linda M. P. Gondim

reuniões na comunidade e eram escolhidos um número


de representantes da comunidade, normalmente, eram
pessoas ligadas à igreja, os presidentes de associação,
pessoas que frequentavam o centro comunitário – antes
a gente fazia uma pesquisa dentro da área, [para saber]
de pessoas que influenciavam, que fossem formadores
de opinião, no sentido de que eles pudessem ouvir a
comunidade e nos passar a necessidade de cada um.
Então a gente ia, apresentava o projeto. (Entrevista
realizada em 13/01/2011; apud GONDIM, 2012a).

Uma vez estabelecidos no conjunto habitacional, os moradores ficam sujeitos


à vigilância da Habitafor, que, como já foi dito, proíbe tanto reformas e
ampliações, como transações com as unidades habitacionais. Sem entrar
no mérito desses controles, cabe reconhecer que eles impõem um modo de
se relacionar com os espaços públicos e privados que, em muitos aspectos,
é o oposto das práticas que caracterizam os assentamentos informais
(ANDRADE; LEITÃO, 2006). Se estes, por um lado, carecem de espaços
realmente públicos – até porque não contam com adequada provisão, pelo
Poder Público, de infraestrutura, serviços e equipamentos urbanos – por
outro lado, permitem a plena utilização dos espaços privados, ainda que,
por vezes, em detrimento de interesses coletivos (BENETTI, 2005). Assim,
praticamente não há restrições a acréscimos nas edificações, mesmo que
isso implique adensamento excessivo e até possa obstruir passagens e
prejudicar a ventilação. Contudo, a construção de “puxadinhos” é uma
importante estratégia de sobrevivência das famílias, quer pela possibilidade
de alojar filhos e parentes, quer pela oportunidade de ganhos adicionais
mediante aluguel ou venda de cômodos.

Há que considerar, ainda, que as favelas não são apenas o lócus da moradia:
nelas, desenvolvem-se atividades econômicas que, juntamente com redes
de ajuda mútua, são fundamentais para a sobrevivência das famílias. A esse
respeito, o modelo de remoção para conjuntos habitacionais padronizados
revela-se inadequado, do ponto de vista da dinâmica da vida social e econômica
da população de baixa renda. A falta de flexibilidade dos projetos da Habitafor
relativamente à oferta de pontos comerciais, já referida, é uma evidência disto.

Considerações finais
Nas duas últimas décadas, assistiu-se a uma mudança significativa no
tratamento da questão habitacional no Brasil. A atuação da Prefeitura
Municipal de Fortaleza na área de habitação, na década de 1990, foi marcada
À sombra do BNH: a nova política habitacional em Fortaleza-CE (2005-2011) 161

pela fragmentação e falta de visão estratégica. A Habitafor, criada em 2004


para encarregar-se da política habitacional de Fortaleza, começou sua atuação
num contexto nacional bastante favorável, quando a União, via Ministério das
Cidades, iniciava uma ofensiva em larga escala para equacionar o problema
da moradia de baixa renda. Contudo, os recursos materiais e humanos daquele
órgão municipal permaneceram muito aquém do que seria necessário para
o enfrentamento da questão habitacional na capital cearense.

A opção preferencial pela remoção de moradores de favelas para conjuntos


habitacionais deixou a desejar, tanto quantitativa, quanto qualitativamente.
Na verdade, não se pode falar propriamente de uma decisão neste sentido. Por
um lado, a ação da Habitafor atendia a demandas por moradias prontas; por
outro lado, a alternativa da urbanização com a permanência dos moradores
revelou-se demasiadamente complexa, ante a falta de experiência local e as
exigências de outros setores encarregados do controle urbanístico e ambiental. O
resultado foi a produção de conjuntos habitacionais muito semelhantes àqueles
financiados pelo BNH na década de 1970, reproduzindo características tão
criticadas nesses, como distância aos centros de comércio e serviços, ambiente
construído monótono e falta de espaços adequados para atividades econômicas.
Certamente, a concessão gratuita das moradias pela Habitafor – possibilitada
pelo novo direcionamento da política nacional da habitação – constitui um
diferencial significativo em relação ao enfoque marcadamente econômico da
política do BNH, que vendia as unidades habitacionais em prestações cujo
valor estava acima da capacidade de pagamento dos mutuários.

Nem o acesso gratuito às novas condições de habitação, nem as tentativas


de controle tem sido suficientes para inibir os beneficiários da Habitafor a
deixar as novas moradias, motivados por um ganho monetário imediato. Essa
prática conduz a uma reflexão sobre a pertinência de se ofertar moradias
prontas, com características e condições não escolhidas pelos usuários.
Em que pese a retórica de participação nos projetos habitacionais da
Habitafor, o papel das comunidades no processo decisório foi irrelevante,
no que diz respeito a questões cruciais como a localização dos conjuntos e
as características urbanísticas e arquitetônicas destes, aí incluídos os tipos
de unidades habitacionais.

Mesmo assim, a proposta de diálogo com os moradores de favelas e o


comprometimento do Poder Público com políticas contínuas e sistemáticas de
provisão de moradias constituem avanços em direção ao direito à habitação.
Assegurar esse direito, contudo, depende de políticas urbanas mais amplas,
capazes de alterar a estrutura fundiária das cidades, de modo a baratear o

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


162 Linda M. P. Gondim

custo da terra urbanizada. Não se quer, aqui, apresentar a urbanização de


favelas como panaceia, pois, tanto quanto a oferta de moradias em conjuntos
habitacionais, trata-se de uma medida basicamente curativa, incapaz de
resolver a questão que está na raiz do déficit habitacional: a escassez de
terra urbanizada, a preços acessíveis aos pobres. Neste aspecto, é necessário
combinar programas habitacionais com o uso de medidas previstas pelo
Estatuto da Cidade e incorporada em planos diretores, como a criação de
Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). A construção de conjuntos
Artigo
habitacionais e a urbanização de favelas continuarão a ser medidas paliativas,
Recebido: 23/05/2013 a menos que se consiga reverter os processos excludentes de produção do
Aprovado: 28/06/2013 espaço urbano nas cidades brasileiras.
Keywords: housing ABSTRACT: This article discusses the actions of Fortaleza’s Housing Agency
policy; low income (Fundação para o Desenvolvimento Habitacional de Fortaleza – Habitafor),
housing projects;
fundação para o
during the 2006 to 2011 period, within the framework of the new housing
desenvolvimento policy defined by the National Cities Agency (Ministério das Cidades). This
habitacional de policy provided a significant amount of resources to the housing sector, to
Fortaleza. the benefit of the population earning up to three minimum wages, which
was enabled to have access to free housing. However, due to the high cost
of urbanized land in relation to available public resources, the newly built
houses were located away form the centers of jobs, commerce, and services.
Besides, there remained, in great measure, the option of removing squatter
settlements (favelas) to housing projects, instead of a policy to urban and
land regularization of these settlements. Participation of those benefited by
the programs was limited to access to information on the characteristics of the
projects, on which they could not say much. The result were massive projects
located in peripheral areas of the city, with little access to urban services, thus
replicating the experience of the National Housing Bank (Banco Nacional da
Habitação – BNH) during the military dictatorship.

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O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


(*) Wellington Ricardo Nogueira Maciel é Doutor em sociologia pela Universidade 167
Federal do Ceará. Professor adjunto da Faculdade RATIO e professor substituto
de sociologia da UFC. @ - [email protected]

O imaginário social da
fundação de Fortaleza:
fatos, marcos e personagens

The social imaginary of the foundation of Fortaleza:


facts, spatial marcs and figures

Wellington Ricardo Nogueira Maciel*

RESUMO: Este artigo objetiva analisar os debates em torno do que se Palavras-chave:


pode chamar imaginário social da fundação de Fortaleza. Considerar este Imaginário social,
fundação de
imaginário pressupõe lembrar a maneira como em determinados contextos
Fortaleza, espaço
históricos as narrativas mobilizam fatos e acontecimentos da história da urbano.
Cidade. Do ponto de vista metodológico, os discursos de especialistas,
gestores e técnicos serão tomados como veículos de significados coletivos e
instâncias produtoras de verdades sobre os espaços da cidade. Com base
nisso, considero, aqui, o imaginário social como um viés analítico no campo
das Ciências Sociais capaz de problematizar a oposição comumente feita
entre “representação” e “realidade”. Tomar o espaço urbano como campo de
produção de imaginários sociais significa ainda considerar as especificidades
com que a cidade é evocada nos discursos, como a instituição de marcos
espaciais. Decorre daí que a urbe não é apreendida pelos discursos de forma
universal, mas sobressaem neles alusões a determinados bairros capazes de
sintetizar expectativas e valores coletivos. Abre-se com isso a possibilidade
de apreendê-la como um campo de disputas simbólicas.

I ntrodução
Fortaleza parece se constituir num bom exemplo quando se trata de investigar
os modos como promessas urbanas feitas em torno do seu nome foram se
configurando em formas recorrentes de expressão de anseios e de dúvidas
quanto a sua condição urbana sendo, contudo, ressignificados em momentos
distintos de sua história. Proponho-me neste artigo analisar aspectos

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


168 Wellington Ricardo Nogueira Maciel

diferentes desse imaginário social que perpassa os debates sobre a fundação


de Fortaleza. Uma via de acesso possível a esta forma de imaginário urbano
é tomar os sentidos por meio dos quais os significados atribuídos à expressão
fundação foram sendo ressemantizados em contextos históricos particulares.

Do ponto de vista metodológico, os discursos serão tomados como veículos


de significados coletivos e instâncias produtoras de verdades (FOUCAULT,
2008) sobre os espaços da cidade. Nessa perspectiva, serão consideradas
as relações entre saber e poder e as maneiras como os bairros da cidade são
investidos de sentidos identitários. Nessa ótica, os discursos veiculam uma
verdade sobre uma ordem almejada da cidade.

Com base nisso, tomo aqui o imaginário social como um viés analítico no
campo das Ciências Sociais capaz de problematizar a oposição comumente
feita entre “representação” e “realidade” nos debates sobre o urbano. Tomar
as imagens e representações como constituintes do “real” não significa
considerá-las mais ou menos “reais” em relação àquilo a que elas parecem se
referir. Significa, ao contrário, um outro modo de indagar sobre a “realidade”
das coisas e de tornar mais complexo o modo como ela é expressa.

Tomar a cidade como campo de produção de imaginários sociais significa,


também, considerar as especificidades com que a cidade é evocada nos
discursos, como a seleção/classificação dos seus marcos espaciais. Decorre
daí que a cidade não é apreendida pelos discursos de forma universal, mas
sobressaem neles alusões a determinados bairros capazes de sintetizar
expectativas e valores coletivos. Abre-se com isso a possibilidade de
apreender a cidade como um campo de disputas simbólicas (BOURDIEU,
2008) como a que será tentada aqui quando for abordado o imaginário da
fundação de Fortaleza e as visões de cidade que a partir daí são vislumbradas.

Para operacionalizar as breves questões teórico-metodológicas expostas,


tomarei como material empírico os discursos produzidos durante os
debates recentes acerca da proposta de mudança da data de fundação de
Fortaleza presentes nas sessões especiais reservadas ao assunto na Câmara
Municipal de Fortaleza. Nesses debates vários fatos, marcos e personagens
considerados centrais da história de Fortaleza foram mobilizados, resultando
em conjuntos de imagens densas de representações em conflito a respeito
das identidades urbanas conferidas aos bairros de Fortaleza, em particular,
ao bairro Barra do Ceará, no litoral oeste, e ao Centro histórico, bairro onde
os holandeses levantaram um forte para a proteção do litoral da Cidade
contra invasões estrangeiras.
O imaginário social da fundação de Fortaleza: fatos, marcos e personagens 169

Historicamente, as cidades foram tomadas como materializações de desejos e


anseios de homens e mulheres dedicados ao trabalho de construir, por meio de
atos concretos obras que pudessem sintetizar expectativas e valores coletivos.
Embora muitas dessas propostas de dar vida às formas sonhadas não tenham
sido realizadas, parece correto afirmar que mesmo assim não deixaram de
ser tomadas como quadro mental de julgamento e apreciação da realidade
existente, passando a servir de medida da realidade e de possibilidade de
superação dos problemas colocados pelo estado concreto das coisas a cada
momento das sociedades.

As narrativas e práticas voltadas para instaurar a fundação de Fortaleza serão


tomadas aqui ainda como veículos de produção de significados culturais
criados para enfrentar os problemas que o cotidiano da Cidade elege como
obstáculo a ser superado a cada momento singular de sua condição urbana.

De par com essa hipótese, escolhi aqui não seguir uma espécie de história
linear de Fortaleza, narrando fatos e acontecimentos pretensamente inaugurais
e objetivos da Cidade, mas optei em considerar as narrativas sobre a Cidade
como fins em si mesmos, ou seja, estruturas de classificação simbólica que
organizam os mais variados aspectos da história da cidade como problema,
tomando-os só a partir daí como via possível de acesso a este imaginário
particular objeto deste artigo.

Para buscar compreender como uma cidade imagina sua fundação parece ser
útil proceder à forma como ela produz socialmente problemas que devem ser
superados a fim de que uma nova realidade seja instaurada. Nesse sentido, os
discursos de técnicos governamentais, políticos, especialistas em urbanismo,
turismólogos, jornalistas, moradores dentre outros concorrem para produzir a
existência social de problemas que as promessas de cidade podem vir a superar.

Fortaleza parece ter produzido seus problemas sempre tendo em vistas as soluções
possíveis. A própria localização de implantação da Cidade foi sendo interpretada
pelo discurso especializado como um problema a ser resolvido pela Cidade futura.
Esse problema fundante, o problema da origem da Cidade, parece constituir-se
solo fértil de onde tem vindo brotar outras expectativas coletivas a respeito do
futuro da Cidade que a cada momento são criadas e ressignificadas.

Com isso, pretendo argumentar que ao lado da produção da existência social


de problemas está a produção da localização espacial das soluções possíveis
que a cidade se coloca historicamente para eles a fim de alcançar a condição
urbana desejada. Nesse sentido, sobressaem nas narrativas à referência a
determinados referentes espaciais que a cada etapa da relação problema/

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


170 Wellington Ricardo Nogueira Maciel

solução parecem condensar as expectativas e valores coletivos em disputa


acerca da cidade que se deseja construir. Antes de abordar as especificidades
do imaginário urbano de que trata este trabalho, discutirei o lugar que tem vindo
ocupar os estudos sobre o imaginário social no âmbito das Ciências Sociais.

O lugar do imaginário social nas ciências sociais


Ao se falar em imaginário social como campo recente de pesquisa nas
Ciências Sociais, não se deve esquecer a longa tradição dedicada a este
tema no âmbito do pensamento social clássico e contemporâneo, nem o lugar
que ele veio a ocupar nas suas formulações. As discussões de Marx sobre as
possibilidades de mudanças materiais revolucionárias da sociedade estavam
condicionadas às mudanças nas formas de representação e da consciência, que
sob o capitalismo apresentava-se em sua forma alienada. Durkheim, embora não
conecte diretamente o estado da consciência à forma material assumido pelo
mundo da produção, não deixou de assegurar que aquela expressava a natureza
da morfologia social. E Weber não se eximiu por sua vez de observar que as
formas de legitimidade eram subjetivações de ordem sociais mais amplas.

Essas formulações iniciais do que se pode denominar de imaginário social


entre os clássicos foram reapropriadas contemporaneamente por autores
mais dedicados ao trabalho de síntese teórica na Sociologia. Ao tentar dar
um novo tratamento à longa tradição da questão indivíduo/sociedade, esses
autores abriram novos caminhos de investigação social (cito em particular
Giddens (2009) e Bourdieu (2009) com seus estudos sobre estrutura/ação/
agência). O que sobressai nesses estudos é o peso maior dado às imagens
e representações simbólicas produzidos pelos/nos processos de interação
social. A oposição entre “realidade” e “representação” realizada inicialmente
pelo pensamento cartesiano recebeu aqui sua maior crítica.

Contudo, será com o trabalho fundador de Karl Mannheim sobre ideologia


e utopia que a abordagem sobre o imaginário social dará um grande
salto de qualidade. Ao partir do pressuposto de que o mundo social é um
espaço de conflito entre aspirações utópicas e pensamentos conservadores,
Mannheim abriu um novo enfoque analítico para as relações entre imaginário
e “realidade”. Ele estava preocupado em entender de que maneira o
pensamento poderia conduzir a certas formas de práxis social, resultando
daí seu interesse pelos conflitos entre “pensamentos”.

Mas é nos trabalhos de Gilbert Durand (2002) e Cornelius Castoriadis (2000),


combinando Psicanálise e Ciências Sociais, que a abordagem conferida ao
imaginário social no âmbito destas últimas irá operar sua crítica mais radical
O imaginário social da fundação de Fortaleza: fatos, marcos e personagens 171

à dualidade imaginário/realidade. Afirmando a necessidade de conferir


realidade às formas “irracionais” de produção de sentidos à vida social,
estes autores passarão a atribuir um outro estatuto analítico às sensibilidades
coletivas de uma dada formação sócio-histórica. Para estes autores, a vida
não é regida apenas por processos cognitivos racionais capazes de levar os
agentes a escolhas conscientes e calculadas.

De acordo com eles, o lugar comum até então atribuído ao imaginário (lugar da
alienação, do irracional, do enganador, do falso etc.) ignora o papel assumido
pelas imagens e representações no mundo empírico. O que esses teóricos
realizam é um esforço em dedicar um lugar na realidade às representações
do real. Com isso, partem do pressuposto de que além de homo rationalis
somos também homo imaginans (LEGROS, 2007).

Durand (2002, p.14-15), por exemplo, irá afirmar que o imaginário social
compreende “o conjunto das imagens e das relações de imagens que constitui
o capital pensado do homo sapiens.” Partindo da hipótese de que existem
“arquétipos fundamentais da existência humana”, universais no tempo e no
espaço, o autor busca investigar a maneira como essas estruturas mentais
coletivas originais influenciam as tomadas de decisões na sua maior parte
não expressamente observadas pelos sujeitos históricos. Já para Castoriadis
(2000), o imaginário compreende a imaginação produtiva ou criadora,
sistemas de significações, significados e significantes criados por cada
sociedade no ato de fazer a história.

Portanto, decorre daí que as ações no mundo não resultam apenas de tomadas
de decisões racionais e de vontades conscientes sobre os imponderáveis
da vida. Em muitos projetos políticos ditos revolucionários, como observa
Castoriadis (mas também Bourdieu), as “condições” mentais podem contribuir
para produzir o inesperado, ou seja, de força motora das transformações pode
vir a tornar-se fator de manutenção da “realidade” daquilo que oprime.

Nessa perspectiva, há um conjunto inconsciente de classificações do


mundo (categorias de dominação, portanto, de naturalização do mundo, na
perspectiva bourdiesiana), difícil de localizar, mas que parece emprestar
aos sujeitos esquemas mentais anteriores de classificação das coisas. Como
lembra Girardet (1987), essa classificação no caso dos mitos políticos
compreende a recorrência de imagens míticas conferidas a certos personagens
ao longo dos tempos, evocados e acionados em momentos específicos da
história de cada sociedade.

Da mesma forma, embora partindo de exemplos de sociedades diferentes,


Geertz (1997) lembra que as cerimônias e rituais políticos concorrem para

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


172 Wellington Ricardo Nogueira Maciel

fixar uma classificação desejada, mas não apenas expressamente colocada


pelos sujeitos, do mundo e das coisas. Partindo da análise dos cerimoniais
do poder em sociedades tão diferentes como Marrocos, Grã-Bretanha
e Indonésia, Geertz discute como o “centro” é apropriado em ocasiões
excepcionais. Lugar de glorificação e de legitimação face aos súditos,
portanto, um espaço moral, o “centro” concentra as energias sociais capazes
de atribuir realidade às pessoas no mundo além de operar uma classificação
simbólica desse mesmo mundo.

O que essas perspectivas analíticas sobre o imaginário social parecem


sugerir é a necessidade de conferir maior autonomia aos processos de
construção mítica da “realidade”. Não opondo razão às sensibilidades
coletivas inconscientes, o que esses estudos revelam é que se deve dedicar
um lugar novo aos conjuntos de representações e imagens tomados para
análise no âmbito das Ciências Sociais, que a cada época são mobilizadas
pelos sujeitos concretos para expressar anseios, desejos e inquietações face
à “realidade”. Porque a “realidade” parece assumir antes de qualquer coisa
perante aos sujeitos uma “realidade imaginária”, é que ela aparece como
maneira de expressar problemas que a existência social lhes coloca como
possibilidade de superação.

Apesar das contribuições dos clássicos e dos contemporâneos acerca do lugar


conferido ao imaginário social para o entendimento dos processos sociais
e do aparente consenso sobre esse papel, seu objeto de estudo parece ser
uma questão ainda não resolvida nas Ciências Sociais. Como afirma Legros
et ali (2007, p.9),

a sociologia do imaginário não é um campo específico


da sociologia definido por um objeto, como é o caso da
sociologia urbana, do trabalho, da religião, da educação
etc. Ela é um ponto de vista sobre o social: ela se interessa
pela dimensão imaginária de todas as atividades humanas.

A partir da antropologia hermenêutica de Geertz, poderia dizer que a


sociologia do imaginário é um ponto de vista de outros pontos de vistas sobre
as atividades humanas. Isso porque ela se interessa por aquele aspecto social
que caracteriza todas as sociedades: a busca em atribuir sentido ao mundo
e as coisas do mundo.

Nesse sentido, sem negar o lado racional dessas atividades, essa jovem
ciência se interessa por captar as concepções de mundo expressas nos mitos,
na religião e na ciência, capazes de conferir sentido à “deriva social”. É com
O imaginário social da fundação de Fortaleza: fatos, marcos e personagens 173

base nesse esforço aparentemente irrealizável de busca em tentar definir o


objeto de estudo privilegiado desse campo de estudos que se pode falar em
imaginário social urbano.

Especificidades do imaginário urbano


Ao falar em imaginário urbano, busco delimitar aquele setor de estudos
dedicados às maneiras como o espaço urbano foi sendo investido de
expectativas e promessas a cada momento específico das sociedades. Com
isso, posso encontrar nas narrativas que tomam o espaço urbano como lócus
do imaginário social referências à origem nobre ou guerreira das cidades e as
possibilidades futuras que parecem já estar inscritas desde seu nascimento.
(FREITAG, 2002)

Desde a antiguidade clássica, a cidade tem sido enfocada a partir de diferentes


olhares e representações. O discurso técnico foi uma das primeiras áreas
do conhecimento a buscar respostas para as questões relativas ao cotidiano
urbano, dando seu testemunho sobre as diferentes perspectivas pelas quais
o homem tem avaliado a cidade ao longo da história.

Nessa perspectiva, tomar o discurso especializado que trata da cidade como


uma das muitas possibilidades de acesso ao “fenômeno urbano” significa
optar pela interpretação das narrativas autorizadas do urbano. Esse discurso
evoca nomes, datas e acontecimentos de um passado citadino remoto
construído imaginariamente muitas vezes com vistas (não expresso apenas
racionalmente pelos sujeitos) a traçar caminhos mais curtos e menos incertos
para a concretização dos horizontes visualizados para cada situação urbana
concreta.

Dessa forma, quando falo em espaço urbano como campo possível do


imaginário social, dou ênfase aqui à forma como monumentos, edificações
e traçados urbanos são significativos para expressar experiências coletivas
compartilhadas. Para além da sua materialidade bruta, o que esses referentes
espaciais parecem possuir é uma capacidade de cristalizar energias sociais
que sintetizam sentidos, vivências e valores coletivos.

Como observa Pesavento (1999, p.10),

cidade-problema, cidade-representação, cidade-plural,


cidade-metáfora (...) A cidade não é simplesmente um
fato, uma dado colocado pela concretude da vida, mas
como objeto de análise e tema de reflexão, ela é construída

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


174 Wellington Ricardo Nogueira Maciel

como desafio e, como tal, objeto de questionamento (...)


capaz de conferir e resgatar sensibilidades aos cenários
citadinos, às ruas e formas arquitetônicas, aos seus
personagens e às sociabilidades que nesse espaço têm
lugar. Há, pois, uma realidade material – da cidade
construída pelos homens, que traz as marcas da ação
social. É o que chamamos cidade de pedra, erguida e
recriada através dos tempos, derrubada e transformada
em sua forma e traçado.

Tomar os debates em torno do que se pode chamar de imaginário da fundação


de Fortaleza me possibilita adentrar num universo mental carregado de
promessas e expectativas coletivas. Considerar esse imaginário específico
pressupõe lembrar ainda a maneira como em determinados contextos
históricos as narrativas, além de tecer sentidos distintos aos espaços,
mobilizam fatos e acontecimentos da história da Cidade.

O imaginário social de Fortaleza ontem e hoje


Até meados da década de 1940 era tido como dado o fato conhecidamente
romanceado por José de Alencar, no seu livro Iracema, de ter sido Martim
Soares Moreno o fundador de Fortaleza e, consequentemente, do Ceará. O
primeiro cronista a contestar tal ato fundador foi Raimundo Girão (1961;
1982), que na mesma década publica o livro Cidade de Fortaleza onde
inicia a defesa da tese segundo a qual teria sido o holandês Matias Beck o
verdadeiro fundador da Cidade às margens do riacho Pajeú. Outros livros
posteriores do mesmo cronista tratariam do mesmo assunto: Matias Beck
– Fundador de Fortaleza, de 1961 e Cidade do Pajeú, de 1982. Mas é na
década de 1960 que os ânimos a respeito da “polêmica” ganham dimensões
mais amplas envolvendo os nomes dos cronistas Raimundo Girão e Ismael
Pordeus. Atrelado aos “morenistas” e “beckistas” (forma como passaram a
ser designadas as correntes que tinham como principais representantes os
defensores do primado de Soares Moreno e de Matias Beck sobre a fundação
de Fortaleza respectivamente) um conjunto de datas, acontecimentos e
edificações foram se juntando para compor um quadro mental de expressão
de expectativas sobre a condição urbana da Cidade que as imagens acionadas
de ambos os lados buscavam veicular (FURTADO FILHO, 2002).

Dessa forma, era conferido a Soares Moreno a reconstrução, em 1611, da


fortificação que o açoriano Pero Coelho teria erguido em 1603, passando de
fortim de Santiago para fortaleza de São Sebastião, e a ter feito posteriormente
a delimitação do litoral de Fortaleza, indo do bairro Barra do Ceará até o
O imaginário social da fundação de Fortaleza: fatos, marcos e personagens 175

bairro Mucuripe, ambos na orla marítima da Cidade; do lado de Matias Beck


era atribuída a construção do Forte Schoonenborch, em 1649, nome dado
em homenagem ao então governador de Pernambuco.

Além dessas oposições principais acerca do bairro que teria dado origem a
Cidade, as correntes eram situadas também em relação à orientação religiosa
e à simpatia da imprensa local por um ou outro dos “fundadores”: em torno do
nome de Soares Moreno foram reunidos, nesse sentido, os católicos e o jornal
O Nordeste; do lado de Matias Beck estavam reunidos os “protestantes” e o
jornal Unitário. Os jornais nos primeiros anos da década de 1960 passaram
então a marcar terreno sobre o assunto.

Ismael Pordeus, em um dos artigos da série “Origens de Fortaleza”,


publicados em O Nordeste, no ano de 1962, afirmava convictamente sobre
o pioneirismo de Soares Moreno e os fundamentos da Cidade:

Escolhido o local apropriado da fundação da nova colônia,


Martim Soares Moreno deu começo a fundação de uma
Igreja sob a invocação de N. S. do Amparo, e ao mesmo
tempo a de um forte, obras estas que avultaram em
poucos dias de trabalho, pelo auxílio que lhe prestou o
chefe Jacaúna o qual apenas soube de sua chegada, e do
objeto da sua empresa, veio com sua tribo e estabeleceu
a sua aldeia no sítio onde se achava Martim Soares.
Assim ficaram lançados os fundamentos da hoje cidade
de Fortaleza capital do Ceará.

Em 1961, uma descoberta iria ser acionada como mais uma prova material
a endoçar o argumento “morenista”. Com o achado de balas de canhão na
Barra do Ceará, no morro de Santiago, urgia que fosse composta uma equipe
técnica para averiguar a veracidade do material e em seguida comprovar a
verdade “morenista”. Nesse momento, por parte dos “beckistas”, Raimundo
Girão é nomeado Secretário de Urbanismo durante a gestão do prefeito
Cordeiro Neto (1959-1963) e passa a propor a mudança do nome de algumas
ruas de Fortaleza em homenagem aos personagens e datas em referência à
“fundação” da Cidade. Não obteve sucesso.

Num artigo do jornal Unitário, de 1962, que marca a entrada do folclorista


Câmara Cascudo na “polêmica”, é possível visualizar a dimensão dos debates
alcançados em torno do lugar simbólico conferido aos bairros de Fortaleza.
Nele, o autor liga a existência de um forte ao surgimento inicial de Fortaleza.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


176 Wellington Ricardo Nogueira Maciel

Para mim o forte Schoonenborch é a velocidade inicial


de Fortaleza. O fortim de Pero Coelho de Souza em 1603,
a aldeia de São Lourenço do Padre Figueira em 1608, o
forte de São Sebastião de Martim Soares Moreno em 1612,
encerram o ciclo histórico, topográfico e especificamente
distintos da fundação de Matias Beck na duna Marajaitiba,
com o Schoonenborch em 1649. Entre os dois núcleos não
existe a continuidade funcional indispensável à unidade
histórica (FURTADO FILHO, 2002, p.54-55).

A discussão a respeito da data de fundação de Fortaleza teria vários outros


desdobramentos até iniciar a década de 1990, quando é proposta a instituição
oficial de uma data no calendário municipal reservada ao aniversário da
Cidade. Coube ao vereador Idalmir Feitosa (PSDB) a criação do projeto de
lei 7573, de 16 de junho de 1994, instituindo a data de 13 de abril de 1726
como marco oficial. Contudo, após descobertas arqueológicas por parte do
historiador Adauto Leitão, em novembro de 2007, de novos vestígios da
fortificação de Santiago que existiu na Barra do Ceará, erguida no século
XVII, no morro de Santiago, um novo embate de idéias iria tomar conta num
breve intervalo de tempo do noticiário dos jornais locais, além de movimentar
boa parte de especialistas e estudiosos da cidade de Fortaleza.

O novo projeto, também de autoria do vereador Idalmir Feitosa, assinado


juntamente com o presidente da Câmara vereador Tin Gomes, propunha a
“mudança da data de fixação de que trata a fundação de Fortaleza”. Duas
audiências públicas e uma sessão plenária na Câmara foram agendadas com
o intuito de discutir as propostas para a Cidade.

Após votação de 32 vereadores contra uma abstenção em votação na primeira


audiência a favor da mudança de data, foi sugerida à Mesa Diretora da Câmara
uma segunda audiência a ser realizada no dia 10 de novembro de 2008, um
dia antes da votação definitiva em sessão plenária, agora com a presença de
várias entidades e pesquisadores.

Contando com a presença do Instituto Histórico do Ceará, representado


pelo Prof. Liberal de Castro, arquiteto renomado da Cidade, o Instituto
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional-IPHAN, professores do
departamento de História da Universidade Federal do Ceará-UFC, da
coordenadora de patrimônio histórico da Secretária de Cultura da Prefeitura
de Fortaleza, além de vereadores e de outros estudiosos, a audiência se
constituiu num espaço de disputas em torno da Cidade que se queria forjar.
O imaginário social da fundação de Fortaleza: fatos, marcos e personagens 177

A “cidade do futuro”, o futuro da cidade: Fortaleza


em disputa
Como lembra Robert Darnton (1986), as estruturas mentais coletivas são
acionadas a cada momento histórico para dar sentido ao mundo. É nas
ocasiões em que esse mundo é colocado à prova que as sensibilidades
coletivas buscam restituir os sentidos possíveis da ordem das coisas no
mundo. Contudo, mais importante que atentar para os objetos da narração,
lembra o autor, o que mais importa é adentrar no modo como a narrativa é
construída. Nessa perspectiva, os narradores que tomam a “fundação” de
Fortaleza como problema acionam espaços, datas e acontecimentos além de
propriedades linguísticas disponíveis para compor uma quadro mental e uma
verdade acerca da realidade desejada para a Cidade.

As observações de Bárbara Freitag (2002) sobre as origens das cidades


parecem se complementarem nesse sentido às premissas de Darnton. Segundo
a autora, baseando-se em Lewis Munford, dentre as várias narrativas em
torno da origem das cidades está aquela que afirma terem sido as mulheres as
verdadeiras fundadoras e que a cidade dos mortos (acrópole) teria antecedido
a cidade dos vivos (polis). À origem das cidades é atribuída uma certa
ordem do mundo e das coisas que em alguns casos pode assumir a forma de
denúncia, de exaltação ou até de simples diagnóstico da realidade. No caso
de Fortaleza, as narrativas buscam instituir, dentre outras coisas, uma verdade
sobre a natureza de sua condição urbana, ambas variáveis historicamente.

É recorrente nos discursos de técnicos, historiadores, políticos e


representantes do Estado, nos debates recentes sobre a fundação de Fortaleza,
a busca pela construção de verdades acerca da condição urbana de Fortaleza.
Os “regimes de verdades” acionados nessa ocasião mobilizam diversos
recursos disponíveis a fim de organizar o espaço urbano de Fortaleza e a
atribuir a cada bairro certa ordem na Cidade.

Na abertura da audiência pública de 10 de novembro, na Câmara Municipal


de Fortaleza , foi dada ao arquiteto Liberal de Castro a incumbência de
proferir uma palestra sobre as origens de Fortaleza, em contraponto à tese
do historiador Adauto Leitão, acerca de ter sido a origem da Cidade na Barra
do Ceará. Acionando termos técnicos da arquitetura e condições geográficas
gerais para a origem das cidades, ele assinala a anterioridade dos “fatores
materiais de desenvolvimento” de uma cidade.

Na verdade, o sítio, o local onde a cidade se implanta


tem uma conseqüência direta na sua forma urbana. O

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


178 Wellington Ricardo Nogueira Maciel

sítio é quem molda, o que diz o que é a cidade. No caso


fortalezense havia várias hipóteses de se localizar a
cidade, desde o Paracuru, o Pecém, depois eles ocuparam
a Barra do Ceará, o Mucuripe. Todos esses lugares foram
vistos em função da situação (...) Quer dizer a cidade
materialmente existente é fruto do sítio urbano onde
ela se localiza por intervenções várias (...) As pessoas
criam mitos como se fossem verdades. Esses portugueses
vinham, procuravam o local, depois mudavam em função
das propriedades que realmente queriam desenvolver
para estabelecer uma formação urbana.

O surgimento de Fortaleza parece ter resultado de um acaso das circunstâncias,


o que resultaria na suspeita acerca até das intenções dos colonizadores em
querer fundar uma cidade.

Em Fortaleza foram feitas várias tentativas. Ninguém sabe


ao certo quantas. Mas não eram tentativas de fazer uma
cidade. Eram tentativas de fazer domínio territorial, uma
espécie de apoio para se saber depois o que se fazia. O
fato deles dizerem que era uma cidade não quer dizer
nada (...) Esses colonizadores exageravam em tudo.
Produziam desenhos falsos, todas as coisas possíveis que
a gente possa imaginar. As pessoas ignoram isso. Quando
se fala em cidade não tem nada a ver com cidade (...)
As cidades não são fundadas como se pensa, nem por
heróis ou outra coisa. Elas vão se montando, montando,
montando de acordo com princípios estruturais e aí sim,
são os princípios estruturais portugueses de implantação
urbana que prevaleceram em Fortaleza.

Diferentemente da década de 1960, quando as “polêmicas” a respeito da


fundação de Fortaleza estavam restritas à pretensa autoria do ato original,
o que dá especificidade à atual “polêmica” diz respeito ao lugar reservado
nos debates ao “marco zero” da Cidade. Nesse sentido, são demarcadas
posições entre aqueles que apontam ter sido o bairro do Centro histórico o
marco inicial de expansão de Fortaleza em torno do forte de Nossa Senhora
da Assunção em contraposição aos que defendem a anterioridade do bairro
Barra do Ceará, a oeste, na periferia da Cidade, a partir da construção do
forte de Santiago, em 1604, por Pero Coelho.

Para o defensor da tese do “revisionismo histórico”, como se auto-intitula o


historiador Adauto Leitão, o “empreendimento” pioneiro de desbravamento de
Pero Coelho na Barra do Ceará deve ser considerado o “marco zero” da Cidade:
O imaginário social da fundação de Fortaleza: fatos, marcos e personagens 179

O Dna de Fortaleza está na Barra do Ceará. E por


muitas evidências se pode afirmar de maneira segura
que à margem do Rio Ceará é a nossa gênese étnica e
histórica. Na Barra temos vestígios arqueológicos das
primeiras edificações, além de símbolos: o santuário da
padroeira Nossa Senhora da Assunção e a própria origem
do termo fortitudine. É uma condição exigente no século
XXI tratar desse tema com uma postura equilibrada e
madura em razão do bem maior da cidade: o resgate da
sua memória. Não obstante, a falsa disputa do mérito
territorial original entre os bairros da Barra versus Centro
só cria desinformação nociva à sociedade, pois atende
só a ‘preconceitos grupais’. Hoje, tanto o marco zero
de Fortaleza da Barra do Ceará, ao Centro Histórico, à
Aldeota clássica, estendendo-se a pós-moderna fazem
parte do contexto de uma grande metrópole, já desenhada
no século XVII por Pero Coelho e Martim Soares Moreno e
que na sua realidade atual precisa ser vista com amplitude.
A empresa pioneira do açoriano Pero Coelho de Souza
plantou a semente do desenho territorial acima descrito.

Por outro lado, o arquiteto Liberal de Castro atribui um outro lugar à Barra do
Ceará no contexto dos embates acerca do “marco zero” de fundação da Cidade.

Essa parte da Barra do Ceará teve vida efêmera. Ela dura


apenas o tempo que aí esteve funcionando o forte de
Santiago. Desaparece o forte do Pero Coelho e ninguém
tem mais informação sobre ele. O Martin Soares Moreno
ficou muito pouco tempo também. Depois os holandeses
tomaram conta. Em 1637, quando eles abandonam o
forte de São Sebastião, fica completamente abandonado.
Os portugueses vão passar dezessete anos sem pisar no
Ceará (...) Em 1649 já estava inviabilizada a Barra do
Ceará como localização da cidade de Fortaleza. Há uma
descontinuidade histórica e física imediata nisso (...) A
Barra do Ceará desaparece em relação à cidade de Fortaleza
(...) Essa é uma oportunidade já que está sendo gravado
pela TV Câmara para a cidade de Fortaleza saber mais de
si própria. A minha postura é uma postura mais intelectual
do que de amor à cidade. Porque a cidade de Fortaleza
pelas loucuras que faz não desperta amor em ninguém.
Desperta é muita preocupação sobre seu destino.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


180 Wellington Ricardo Nogueira Maciel

Já para o arqueólogo da Universidade Federal de Pernambuco, Marcos


Albuquerque, maior autoridade no Brasil em termos de escavações
arqueológicas, encontrar com exatidão o lugar da “primeira edificação”
de Fortaleza possui um aspecto significativo para a construção da sua
identidade urbana:

Eu acho que Fortaleza precisa buscar sua historicidade,


buscar sua história e consequentemente se entender
de forma processual para digamos melhor administrar
seu presente e seu futuro alicerçada no passado (...) Se
uma pesquisa histórica apenas conduz às informações
numa direção, a pesquisa arqueológica é extremamente
pragmática: ela materializa a história (...) Se teve
ou não fortificação na Barra do Ceará, só a pesquisa
arqueológica poderá dizer.

Na opinião da coordenadora de patrimônio histórico da Secretaria de


Cultura de Fortaleza, Ivone Cordeiro, diante da possibilidade da arqueologia
certificar-se acerca da existência da fortificação do século XVII, caberá à
Barra do Ceará um novo lugar no contexto histórico da cidade de Fortaleza:

O que está em jogo aqui é a discussão da memória da


cidade de Fortaleza. E a primeira coisa que eu queria
chamar a atenção é para o uso dessa palavra no singular.
O que está em jogo são memórias diferenciadas, são
possibilidades diferentes que nos colocam diante de
uma discussão sobre o que é relevante efetivamente
para a memória coletiva do fortalezense. E o que vai dar
essa relevância? É aquilo que vai possibilitar uma maior
identificação com essa experiência histórica (...) A carta
régia de implantação da cidade de Fortaleza é 13 de abril
de 1726. Quando se fala de municipalidade essa é a data
(...) A Barra do Ceará vai ter seu lugar nesse processo.
Ela vai ter seu lugar na história de Fortaleza muito melhor
qualificado. Se não for marco zero o que importa é a
experiência humana que construiu essa cidade.

Ao falar sobre a importância de um marco e de uma data para a Cidade, o


deputado Artur Bruno (PT) lembra da importância que pode vir a ter o fato
de se envelhecer uma cidade:
O imaginário social da fundação de Fortaleza: fatos, marcos e personagens 181

A data de Fortaleza tem que ser a data do marco zero (...)


Foi a partir daí que Fortaleza veio a se tornar município,
depois cidade e a partir desse marco zero temos que ter
essa data como a data da cidade (...) Eu sou daqueles
que acho que uma data é importante para uma cidade. É
importante para o turismo da cidade, para a identidade
da cidade, para o desenvolvimento econômico da cidade.
Quando alguém visita Fortaleza, ele quer saber quando
foi a origem da cidade, o que é que houve no início,
como é que foi a ocupação portuguesa, como é que foi
a ocupação holandesa, que foi breve mas de qualquer
forma aconteceu.

O início da experiência urbana de Fortaleza é associado a um ato protocolar


inaugural, uma medida político-administrativa de instituição da Cidade.
Para o Liberal de Castro,

cidade é onde existe vida urbana. Os gregos e os romanos


tinham duas expressões para dizer o que era cidade.
Os gregos tinham uma palavra para a cidade material e
outra para a cidade institucional (...) Os romanos tinham
a palavra urbes e a palavra civitas, Uma era a cidade
material e a outra a parte institucional. Então o que é
que se faz em Fortaleza? Se comemora aqui a criação
da urbes, a polis fortalezense. Ninguém sabe quando
Fortaleza nasceu. A palavra fundação significa ‘colocar lá
alguma coisa que vai nascer’. Ninguém sabe quando foi
colocada a primeira pedra em Fortaleza e isso em outras
cidade brasileiras também (...) Cidade naquela época é
a cidade criada pelo rei. Ele faz a lei que faz a cidade.
A cidade que é feita por parte de seus munícipes ela
ganhava o título de vila. Então nessa altura Fortaleza era
uma vila e só depois é que ela vira cidade.

Considerações finais
Os debates recentes sobre a origem de Fortaleza para além de se esgotarem
nas possíveis provas contrárias ou favoráveis acerca da verdade de sua
fundação, parecem compor um aspecto de um quadro coletivo e mental
duradouro de expressão daquilo que se espera que a Cidade possa vir a ser.
Os discursos parecem buscar, dessa forma, situar a Cidade no tempo e no
espaço, conferindo-lhe qualidades pretensamente atemporais que a cada
momento parecem colocadas à prova.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


182 Wellington Ricardo Nogueira Maciel

Parece ser um traço característico presente nas narrativas que tratam da


fundação de Fortaleza, como busquei demonstrar aqui, o questionamento
sobre sua condição urbana. O recurso realizado aqui ao imaginário social
da fundação de Fortaleza visa problematizar a maneira como a realidade das
coisas é expressa pelos sujeitos históricos. Neste sentido, tomar o espaço
urbano como objeto do imaginário de uma dada sociedade pode ser útil
para se adentrar nas inquietações apontadas como problemas no cotidiano
de uma cidade.
ABSTRACT: This article aims to analyze the debates to what may be called
social imaginary of the foundation of Fortaleza. To consider this imaginary
Artigo presupposes to remember the way how in certain historical contexts the
Recebido: 18/04/2013 narratives mobilize facts and events of the history of the city. From the
Aprovado: 30/05/2013 methodological point of view, the discourses of specialists, managers and
technicians will be taken as ways of collective meanings and productive
Keywords: social instances of truth about the spaces of the city. Based on this, we take here, the
imaginary,
social imaginary as an analytical bias in the field of social sciences able to come
foundation of
Fortaleza, urban into question the opposition commonly done between “representation” and
space. “reality”. Taking the urban space as a production field of social imaginaries
it still means to consider the peculiarities which the city is mentioned in the
discourses, as an institution of spatial marks. It follows that the metropolis is not
understood by the discourses in a universal manner; however come from them
allusions to determined neighborhoods capable to synthesize expectations
and collective values. So, it opens with it, the possibility of understanding it
as a field of symbolic disputes.

Referências
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O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


(*) João Paulo Bandeira de Souza é Doutorando em Ciências Sociais pelo Programa 185
de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Mestre em Políticas Públicas e Sociedade pelo Programa de Pós-Graduação
em Políticas Públicas e Sociedade, da Universidade Estadual do Ceará. Bacharel em
Ciências Políticas pela Universidade de Fortaleza. @ - [email protected]

Resenha

Compreendendo a cooperação dialógica:


uma leitura de Juntos de Richard Sennett

João Paulo Bandeira de Souza*

SENNETT, Richard; Juntos: os rituais, os prazeres e a política da cooperação.


tradução: Clóvis Marques – Rio de Janeiro: Record, 2012.

A cooperação azeita a máquina de concretização das


coisas, e a partilha é capaz de compensar aquilo que acaso
nos falte individualmente. A cooperação está embutida em
nossos genes, mas não pode ficar presa a comportamentos
rotineiros; precisa desenvolver-se e ser aprofundada.
O que se aplica particularmente quando lidamos com
pessoas diferentes de nós; com elas, a cooperação torna-
se um grande esforço. Richard Sennett (p. 09)

Juntos: os rituais, os prazeres e a política da cooperação é o segundo livro


de uma trilogia que Richard Sennett denominou de “projeto homo faber”,
que tem como tema geral “[...] as habilidades de que precisamos na vida
cotidiana.” (p. 09). O primeiro livro da série foi O Artífice, “um estudo da
artesania, o empenho de fazer bem as coisas materiais.” (p. 09), e o terceiro
ainda não publicado é “um livro sobre a construção de cidades.” (p.09).

Após o lançamento em 2012, com o título Together, foi traduzido para o


português por Clóvis Marques, tendo sido publicado no Brasil no mesmo ano
pela Editora Record. O autor do livro é o estadunidense Richard Sennett,
professor-visitante emérito da Universidade de Cambridge que escreveu
obras famosas como: Autoridade, Respeito, A cultura do novo capitalismo e Artigo
Recebido: 02/04/2013
A corrosão do caráter, todos publicados no Brasil pela mesma editora. Não Aprovado: 20/04/2013

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


186 João Paulo Bandeira de Souza

é nosso intuito reduzir as obras e a vida de Sennett em poucas linhas. Ele é


um clássico contemporâneo que, pela pujança e vigor de sua obra, dispensa
apresentações reducionistas e apressadas.

A edição brasileira traz na capa uma fotografia famosa de Frances Johnston


que “[...] mostra seis homens construindo uma escada cada um deles
desempenhando uma habilidade diferente, mas todos agindo em conjunto,
mutuamente conscientes, mas absortos no próprio trabalho.” (p. 80). Sennett
lembra que o mais impressionante da foto é que eles não trazem no rosto
nenhuma expressão, nem felizes e nem tristes, apenas absortos. O livro
tem como foco a “receptividade aos outros”, a “[...] cooperação como uma
habilidade. Ela requer a capacidade de entender e mostrar-se receptivo ao
outro para agir em conjunto, mas o processo é espinhoso, cheio de dificuldades
e ambiguidades, e não raro leva a consequências destrutivas.” (p.10). O
estudo da cooperação se desenvolve por uma série de estudos de casos
concretos e por pesquisas antropológicas, sociológicas, históricas e políticas,
dialogando com esses saberes no intuito de compreender a cooperação a
partir de várias perspectivas.

A cooperação é ao mesmo o leitimotiv, o refrão e o projeto da obra, que


foi escrita como uma conversa dialógica “[...] e não em argumentação
dialética combativa; procuro antes mobilizar o seu engajamento crítico do
que convencê-lo de determinada posição. Quero praticar aqui mesmo a
cooperação.”. (p. 44). As trezentas e setenta e sete páginas do livro não são
um empecilho para sua leitura, o texto flui com leveza, é muito bem escrito,
e propositalmente pouco erudito com vistas a atingir leitores para além das
Universidades, essa intenção é revelada no prefácio diz Sennett: “Tentei
eliminar quaisquer disputas acadêmicas – esporte sangrento sem grande
valor ao leitor comum – das páginas desses livros ou confinei questões de
erudição às notas.” (p. 11)

Partindo de uma reflexão sobre uma inusitada rebeldia de uma menina de


seis anos numa escola do centro de Londres; sobre os programas de rádio
da direita americana; sobre a situação de intolerância aos mulçumanos
na Holanda; e sobre os nacionalismos europeus na primeira metade do
século passado, o autor convida o leitor a pensar sobre o tribalismo, que é
apresentada como a união da solidariedade com os que se parecem com a
agressão aos que são diferentes. A condição tribal embora impulso natural,
entre humanos pode ser contraproducente principalmente nas complexas
sociedades contemporâneas, devido seus fluxos, trocas, interações de saberes,
capitais, mão de obra, culturas, morais, religiões. “Tentar delimitar toda essa
complexidade em um único molde cultural seria repressivo, politicamente,
mentindo a nosso respeito”. (p. 14).
Compreendendo a cooperação dialógica: uma leitura de Juntos de Richard Sennett 187

O livro pretende “[...] focalizar um pouco no que poderia ser feito a respeito da
cooperação destrutiva do tipo nós-contra-vocês ou da cooperação degradada
em conluio.” A saída seria um tipo de cooperação exigente e difícil que “[...]
tenta reunir pessoas de interesses diferentes ou conflitantes, que não se
sentem bem em relação umas às outras, que são desiguais ou simplesmente
na se entendem. O desafio consiste em reagir aos outros nos termos deles.
É o desafio de toda gestão de conflitos.” (p. 16).

Sennett acredita que a receptividade aparece na prática. São apresentadas


vantagens de uma cooperação complexa: sustentam o grupo social nos
infortúnios e reviravoltas; ajudam indivíduos e grupos a apreender as
conseqüências de seus atos, facilita a auto-compreensão de cada um. A
“cooperação intensa” exige habilidade, techné, a técnica de fazer algo bem
feito. Cooperar é realizar com destreza as “habilidades sociais” sérias, que
são as chamadas “habilidades dialógicas”: “ouvir com atenção, agir com
tato, encontrar pontos de convergência e gestão da discordância ou evitar a
frustração em uma discussão difícil.”

A cooperação entre diferentes sempre foi algo complicado, mas a sociedade


moderna a debilitou de forma inédita, principalmente com o aumento
vertiginoso da desigualdade nos últimos anos em todo o mundo, fazendo
crescer cada vez mais a distância entre os poucos muito ricos e as maiorias
empobrecidas. As mudanças no mundo do trabalho aumentaram o isolamento
das pessoas e uma maior competição entre elas. O curto prazo, o temporário,
a brevidade são a medida de tempo de: empregos, relações sociais, vínculos
institucionais. Dificultando a resolução de problemas sociais e nos afastando
do envolvimento com problemas alheios que não nos afetam diretamente.

As forças culturais agem contra a prática da cooperação exigente. Estamos


vendo nascer nas sociedades contemporâneas um tipo de pessoa que evita
sobressaltos, que procura “sentir-se o menos estimulada possível por
diferenças profundas.” A retirada é uma estratégia para reduzir provocações.
A homogeneização do gosto também ajuda a enfraquecer o impulso de cooperar
com os Outros. “O desejo de neutralizar toda diferença, de domesticá-la,
decorre [...] de uma angústia em relação à diferença, conectando-se com a
economia da cultura global de consumo.”(p. 19)

De acordo com Sennett, “a sociedade moderna está desabilitando as pessoas


da prática da cooperação.”, processo que vem se desenvolvendo desde a
substituição de homens por máquinas no século XIX passando pela perda da
capacidade das pessoas de lidarem com diferenças insuperáveis entre elas, o
isolamento causado pela lógica material geradora de desigualdade, o emprego

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


188 João Paulo Bandeira de Souza

temporário, os contatos sociais superficiais que geram medo e ansiedade


em relação aos outros, a violência demasiada, que veem contribuindo com
destruição as habilidades de cooperação necessárias para vivermos numa
sociedade complexa como a atual estão sendo perdidas. A tese de Sennett
não se baseia num nostálgico passado longínquo, para ele capacidade de
cooperar está enraizadas nas etapas iniciais da vida o indivíduo, e não
desaparecem quando adultos. O que está acontecendo é que os recursos de
desenvolvimento da cooperação dialógica estão sendo desperdiçados pela
sociedade contemporânea.

Sennett lembra que o bebê humano vive um “estado de devir fluído”, pois nos
primeiros anos de desenvolvimento as mudanças de sensação e percepção
são muito rápidas e moldando nossa capacidade cooperar. É na interação e
liberdade de experimentação com mamilo da mãe, com brinquedos, com as
outras crianças que é adquirida a consciência da separação física, de que
os outros são seres separados. As primeiras experiências de cooperação são
um ensaio para a vida e guardam dele duas de suas características mais
importantes: a estrutura e a disciplina. No ensaio “a repetição proporciona
uma estrutura disciplinar; repassamos repetidas vezes as mesmas coisas,
procurando aperfeiçoá-las.” (p. 23). A repetição faz parte da brincadeiras
infantis, bem como o fato de ouvir a mesma história várias vezes, mas a partir
dos quatro anos eles não apenas repetem mecanicamente, começam a tentar
melhorar naquilo que estão realizando. A Introdução segue expondo que:

[...] nos ensaios e conversas, buscamos alguns princípios


que tornam a cooperação mais aberta. Esse princípio
é a cooperação dialógica.[...] A cooperação dialógica
pressupõe um tipo específico de abertura, mobilizando a
seu serviço antes a empatia que a simpatia. Como revelou
a experiência com o Google Wave, a cooperação dialógica
não é fácil de praticar; os programadores que criaram essa
tecnologia não a entenderam. (p.157)

O livro é organizado em nove capítulos agrupados em três partes. Vejamos


cada uma delas a seguir. A primeira parte foi intitulada: Moldando a
cooperação, “[...] O foco aqui é a solidariedade, pois o espírito do nós-
contra-eles está fortemente enraizado na moderna paisagem política. [...]”
(p. 44); aqui cooperação é estudada na “sua relação com a solidariedade,
com a competição e com o ritual. A solidariedade tem sido uma obsessão na
política moderna.” (p. 158). Essa parte é composta por três capítulos: 1. “A
questão social”:os reformistas exploram um enigma em Paris, 2. Equilíbrio
Frágil: competição e cooperação na natureza e na cultura, 3. A “grande
inquietação”: como a reforma transformou a cooperação.
Compreendendo a cooperação dialógica: uma leitura de Juntos de Richard Sennett 189

O primeiro capítulo discute uma questão que divide a esquerda desde o início
do século XX, o modo como a solidariedade deve ser construída: se forjada
de cima para baixo ou criada de baixo para cima. Fazer política de cima
para baixo é ter que constituir e preservar coalizões, o que significa ter que
enfrentar “problemas especiais na prática da cooperação”, tornando muitas
vezes tais formas de solidariedade socialmente frágeis, aqui a coesão entre as
pessoas não se faz necessária. Já a solidariedade criada de baixo para cima
visa a coesão entre aqueles que discordam e embora possa ser socialmente
forte sua força política é na maioria dos casos débil e fragmentada, aqui o que
importa é mostrar-se aberto às pessoas diferentes e se envolver com elas.

Essa forma de solidariedade é apresentada a partir de duas experiências:


a dos organizadores comunitários e dos organizadores das oficinas. Os
organizadores das casas comunitárias tiveram que enfrentar essa questão
diante conflitos étnicos e raciais. Os organizadores de oficinas enfrentaram o
problema da divisão do trabalho, pois buscavam descobrir como era possível
“incitar a coesão entre as pessoas com diferentes tipos de tarefas.” (p. 158)

De viés antropológico, o capítulo 2 enfrenta a questão da passagem da


natureza à cultura, refletindo sobre a busca do equilíbrio entre cooperação e
competição, a partir do fato de serem os humanos, em sua natureza, animais
sociais. Sennett parte de duas visões que negam a cooperação entre os
homens em seu estado natural: a das grandes religiões monoteístas, que
considera o homem uma criatura falha que destruiu o Éden, e a de Thomas
Hobbes, que percebe os homens como seres não cooperativos e praticantes
de uma competição mortal; para refutá-las com argumentos da etologia
contemporânea que ensina que os animais sociais “[...] alcançam um
delicado equilíbrio entre a cooperação e a competição no trato recíproco. O
equilíbrio é frágil porque o ambiente natural está constantemente mudando,
mas ainda assim pode ser alcançado através das trocas.” (p. 158).

O capítulo segue apresentado um espetro de formas de troca composto por


trocas do tipo altruísta, ganhar-ganhar, troca diferenciada, soma zero tudo-
ao-vencedor, o autor afirma que o equilíbrio entre competição e cooperação
acontece mais facilmente nas trocas diferenciadas. Ao cabo do capítulo
nos deparamos com uma original a abordagem sobre as relações entre a
cooperação e o rituais, aqui o ritual é apresentado como “uma forma especial
encontrada pelo animal social humano para organizar as trocas equilibradas,
rituais por nós inventados, rituais impregnados de paixão quando se tornam
performances habilidosas.” (p. 159).

O último capítulo da primeira parte mostra como A Reforma trouxe não apenas
mudanças religiosas, mas mudanças significativas nas formas de cooperação

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


190 João Paulo Bandeira de Souza

na Europa Moderna. Partindo desse contexto específico, o autor demonstra


como a cooperação foi historicamente moldada. “As maneiras de cooperar
tornaram-se uma questão no alvorecer da era moderna, quando a ciência
começou a se separar da religião e a própria religião dividiu a Europa.” (p.
44). O alvorecer da modernidade foi um significativo momento de “trocas
de cultura cooperativa [...] na prática religiosa, na organização do trabalho
nas oficinas e no surgimento da civilidade entre diplomatas profissionais e
nos comportamentos da vida cotidiana.” (p. 159). Este capítulo tem como fio
condutor uma interpretação do quadro Os embaixadores, de Hans Holbein,
o Jovem, de 1533, obra que ajuda a entender os primórdios da modernidade
e as mudanças que trouxe consigo.

A segunda parte do livro intitulada Enfraquecendo a cooperação dispõe “[...]


sobre as maneiras como a cooperação pode ser debilitada, é de natureza
sociológica, voltando se para o presente. [...]” (p. 44). Essa debilitação da
cooperação é explorada no capítulo “[...] em três vertentes: das desigualdades
na infância, do trabalho adulto e da formação cultural do ego. Mas essa
perda não é fatal; pode ser reparada [...]”. (p. 238). Nessa parte do livro,
o fio condutor é um exame arguto sobre as reformas exigidas na época na
qual vivemos, buscando deixar claro que se fazem necessárias providências
sociais que mudem as atuais formas de cooperação. “O capitalismo moderno
vive em desequilíbrio entre a competição e a cooperação, assim tornando a
própria cooperação menos aberta, menos dialógica.” (p. 159).

A parte dois é composta por três capítulos. O capítulo 4, Desigualdade:


imposta e assimilada na infância, uma investigação sobre os modos como as
crianças têm sua experiência cooperativa afetada pelas desigualdades que
vivenciam. O capítulo 5, O triângulo social: como as relações sociais azedam
no trabalho, “explora a erosão da cooperação na interação adulta; concentro-
me particularmente, aqui, no acanhamento das relações de cooperação,
autoridade e confiança no trabalho.” O capítulo 6, O eu que não coopera:
Psicologia da Retirada, “contempla um novo tipo de caráter que surge na
sociedade moderna, um eu a-cooperativo, despreparado para lidar com a
complexidade e a diferença.” (Cf. p. 44).

Na parte três do livro, Fortalecendo a cooperação, são examinadas “[...] as


maneiras como a cooperação pode ser fortalecida, centrando a atenção nas
habilidades capazes disso. [...]” (p. 44). Aqui, Sennett desenvolve mais
substancialmente seu entendimento da cooperação como uma habilidade.
Como nas partes precedentes, repete-se a divisão em três capítulos. O
capítulo sete: A oficina: fazer e consertar trata do que pode ser aprendido a
respeito da vida social por meio da arte de fazer e consertar objetos físicos;
Compreendendo a cooperação dialógica: uma leitura de Juntos de Richard Sennett 191

no oitavo capítulo: Diplomacia cotidiana: conversas de reforma postas em


prática, o autor discorre sobre o que chama “diplomacia cotidiana”, a saber:
“[...] a arte de interagir com pessoas das quais discordamos, das quais
talvez não gostemos ou que não entendemos; as técnicas nesse sentido têm
a ver com práticas de performance.” (p. 45). O nono e derradeiro capítulo
do livro: A comunidade: a prática do compromisso. É uma exploração do
compromisso, e procura compreender quais das muitas formas e graus de
compromissos existentes, devemos escolher quando nos propomos a sermos
cooperativos e receptivos com os outros.

Propositadamente o livro não tem uma conclusão, finaliza com um pequeno


ensaio chamado Coda: o gato de Montaigne, no qual Sennett, partindo de
uma provocação feita por Michel de Montaigne (1533-92), no fim da vida,
traz à tona mais uma vez a forma “exigente de cooperação” que o livro
trata, por meio de uma instigante e dialógica metáfora. A pergunta diz:
”Quando estou brincando com meu gato, como posso saber que ele não está
brincando comigo?”, o professor norte-americano entende essa pergunta
que “[...] resumia a velha convicção de Montaigne de que não podemos
realmente conhecer a vida íntima do outros, sejam gatos ou outros seres
humanos.” (p. 329), como um símbolo da cooperação dialógica por ele
defendida, uma metáfora que ajuda a compreender a ideia de que apesar
de não entendermos o que se passa nas mentes e corações dos outros, tal
“[...] falta de entendimento recíproco não nos deve impedir de nos relacionar
com os outros; queremos que algo seja feito em conjunto. É esta conclusão
simples que espero possa o leitor extrair de um estudo complexo.” (p. 329)

Montaigne é mestre do pensamento dialógico, desenvolveu a escrita


dialógica e buscou formas de torná-la útil à cooperação cotidiana, defendia
a “construção do engajamento político de baixo para cima, com base na
cooperação comum em comunidade.” (p. 330). Através de conversas
informais, dos rituais de trabalho, procurou entender como poderia ser
possível esse projeto de participação a partir do zero. O gato de Montaigne
ajuda a salientar outros aspectos da “cooperação prática dialógica”: a
especialização, informalidade e a empatia.

Outra lição muito útil tirada do diálogo que Sennett desenvolve com Montaigne
diz respeito à arte da conversação, que para o francês “[...] significava a
capacidade de ser um bom ouvinte, [...] uma questão de estar atento tanto ao
que as pessoas declaram quanto àquilo que presumem” (p. 331), avesso ao
“fetiche da afirmação” Montaigne ensinava que “A afirmação muito enfática
anula aquele que ouve [...] a afirmação do superior conhecimento e autoridade
de um orador desperta no ouvinte dúvida quanto a seu próprio julgamento;
do sentimento de intimidação deriva o mal da submissão passiva” (p. 331).

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


192 João Paulo Bandeira de Souza

Impelido pela conjuntura instável do seu tempo, onde qualquer discussão


poderia acabar em violência, Montaigne abdicou de usar argumentos
dialéticos e passou a desenvolver a conversa dialógica. Abaixo, segue uma
citação que, apesar de longa, é fundamental para explicarmos como Sennett
entende a dialógica:

“Dialógica”, na verdade é o nome moderno de uma prática


narrativa muito antiga; ela é utilizada pelo historiador
antigo Heródoto, criando um mosaico de fragmentos que,
como acontece nos ensaios de Montaigne, acaba gerando
uma forma mais ampla perfeitamente coerente. Mas,
em minha opinião, Montaigne foi o primeiro a se valer
dessa prática literária com certa habilidade: a narrativa
fragmentária neutraliza a agressividade do leitor. [...] Para
Montaigne, era este o objetivo da dialógica: examinar as
coisas sob todos os aspectos para enxergar os muitos lados
de qualquer questão ou prática, permitindo essa mudança
de foco que as pessoas se tornem mais calmas e objetivas
em suas reações. (p.332) Grifos Meus

Para Sennett, o filósofo Montaigne foi homem do seu tempo e se entusiasmava


com a habilidade técnica, ao contrário dos dispositivos técnicos na mesa
da pintura os Embaixadores de Holbein, ele se interessava por artefatos
cotidianos, tornos mecânicos, bombas de água, encanamentos era sua paixão.
Essa predileção aparece no texto para conduzir ao pensamento que os hábitos
consolidam uma habilidade, mas que os bons hábitos são apenas aqueles que
permanecem livres para produzir diferentes resultados. Sennett desenvolve
esta noção presente em Montaigne e afirma no livro que, “[...] modulando
seus hábitos, as pessoas tornam-se mais interativas, tanto na exploração de
objetos quanto no envolvimento recíproco. O ideal do artesanato orientou nossa
investigação sobre o fazer e consertar objetos físicos e relações sociais.” (p.333).

Por fim, apresento as ideias finais do livro: a) A ideia de Montaigne sobre a


informalidade: “Em qualquer posição que estejam, os homens se amontoam
e se acomodam, misturando-se e se movimentando, exatamente como
objetos atirados em um saco se ajeitam.” (p. 333); b) A ideia que diz: “[...]
voltar o olhar para fora gera um vínculo social melhor do que imaginar
que os outros estão refletidos em nós mesmos ou fazer como se a própria
sociedade fosse construída como um salão de espelhos. Mas o olhar para
fora é uma habilidade que devemos aprender.” (p. 333). Sennett afirma
que ainda devemos nos tornar modernos, que a sociedade não soube lidar
com as tecnologias que criou e diz mais:
Compreendendo a cooperação dialógica: uma leitura de Juntos de Richard Sennett 193

O século XX perverteu a cooperação em nome da


solidariedade. [...] a própria vontade de solidariedade
induz ao comando e à manipulação de cima para baixo.
[...] O poder perverso da solidariedade, em sua forma
nós-contra-eles, continua vivo nas sociedades civis das
democracias liberais [...] A solidariedade tem sido a
resposta tradicional da esquerda aos males do capitalismo.
Em si mesma, a cooperação não tem aparecido muito nas
estratégias de resistências. (p. 334-335)

c) Sennett aponta que a forma do capitalismo contemporâneo dificulta o


estabelecimento de vínculos entre trabalhadores, por ocasião dos trabalhos
de curto prazo e fragmentados, aprofunda as desigualdades entre os ricos e
pobres, fazendo com que cada vez mais um destino comum compartilhado
entre ambos não tenha possibilidade de ser construído. Desvinculado da
autoridade, o poder das elites globais segue se afastando da responsabilidade
para com os outros habitantes do planeta e suas demandas e sonhos. Tudo
isso é um palco mais que propício ao aparecimento de solidariedades
destrutivas do nós-contra-eles. Em nossa sociedade, afirma Sennett, o ritual
está ausente e sem os rituais seu papel de aliviar e resolver ansiedades foi
perdido na sociedade moderna.

Embora o último parágrafo do livro nos alerte que “Hoje, o efeito cruzado
dos desejos de garantir a solidariedade em um ambiente de insegurança
econômica é a brutal simplificação da vida social: nós-contra-eles associado
a você-está-entregue-a-si-mesmo.” (p. 336). O livro termina de forma
otimista, confiante na capacidade dos homens de viverem juntos, que
embora reprimida e distorcida pelas brutais simplificações contemporâneas,
não foi por elas eliminada e nem poderão ser. E assim o livro é finalizado:
“Como animais sociais, somos capazes de cooperar mais profundamente
do que imagina a atual ordem social, pois trazemos em nós o simbólico e
enigmático gato de Montaigne.” (p. 336).

Juntos é leitura fundamental aos que desejam planejar, gerir e avaliar


políticas públicas em qualquer área de formas mais dialógicas e cooperativas,
quebrando a lógica da política argumentativa dialética discursiva que,
fazendo uso do “fetiche da afirmação”, implanta políticas públicas de cima
para baixo, fundadas em interesses políticos de ocasião, muitas vezes alheios
e distanciados das reais demandas dos que deveriam ser beneficiados por
essas intervenções públicas.

A ideia de uma cooperação dialógica, fundada na escuta do outro, criada


de baixo para cima, vem colaborar com o que já é quase um truísmo entre

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


194 João Paulo Bandeira de Souza

os estudiosos das políticas públicas: a proposição de que cada vez mais


as pessoas comuns devam ser incluídas nos debates sobre a formulação
e implantação das políticas públicas, através da criação de espaços e
mecanismos que garantam e possibilitem seu envolvimento, esclarecimento
e participação de forma ativa e em conjunto com seus concidadãos, que cada
vez mais as maiorias interfiram cooperativamente nos rumos das decisões
sobre o planejamento e execução dos negócios e ações públicas que envolvam
recursos públicos, impactos sociais, culturais, políticos e ambientais.

Em outro sentido, o livro abre a possibilidade de que pensemos na criação de


políticas públicas que fortaleçam a cooperação dialógica entres as pessoas,
formas de participação que nos reabilitem como seres da cooperação, da
escuta mútua, capazes de inventar na caótica convivência entre diferentes,
novos modos de consertar, de reformar e porque não de reinventar a
cooperação no âmbito das formulações, gestões e avaliações das políticas
públicas, que poderiam ser ações menos dialéticas e mais dialógicas.

Espero que esta resenha tenha atingido seu objetivo, o de incentivar que o leitor
ou leitora vá à biblioteca ou livraria mais próxima, virtual ou não, e continue
esta conversa com Richard Sennett sobre a cooperação dialógica, lembrando
de buscar em si mesmo o gato enigmático e cooperativo que nos torna capazes
de agir em conjunto com aqueles que temos diferenças irreconciliáveis para
criar outras formas mais cooperativas de experimentarmos o fato
(*) Ivandro da Costa Sales é Doutor em Serviço Social pela Universidade Federal de 195
Pernambuco (2003). Professor adjunto (aposentado) da Universidade Federal de
Pernambuco - Centro Acadêmico do Agreste. Presta assessoria em Gestão Democrática,
Análise de Conjuntura e Metodologia de Educação Popular a organizações
governamentais e civis. @ - [email protected]

Opinião Livre

Junho de 2013 no Brasil:


a farsa perdeu a graça. E agora?

Ivandro da Costa Sales*

Um chamado despretensioso de uns jovens, reivindicando passe livre nos


transportes urbanos, acendeu um fósforo num caminho de pólvora no mapa
do Brasil. Que surpresa, que alegria, que medo, quantas interpretações! Que
lições tirar dos acontecimentos?

Durante as manifestações, algumas perguntas me inquietavam: quem está


convocando, ao mesmo tempo, tantas manifestações pelo Brasil? Que poder
é esse? Quem define os trajetos? Em que momento tamanha multidão vai
se dispersar? Por que essa raiva com relação a partidos políticos, centrais
sindicais, bancos e grande mídia representada pela Rede Globo? Por
que os meios de comunicação começaram condenando as manifestações,
identificando-as com bagunça, ação de vândalos, e que, horas depois, as
adotam e as consideram como a voz do povo, poder das ruas, desaprovação
do governo? Por que os políticos profissionais desapareceram das ruas e dos
meios de comunicação?

Enquanto eu me perguntava, algumas respostas que, há certo tempo, vinham


sendo gestadas, pediram para serem organizadas e tornadas públicas e é o
que tentarei fazer.

Tenho para mim que só consegue mobilizar quem conseguir tocar em


interesses, desejos, sonhos, direitos (conscientes ou subconscientes). Eu
me perguntava: que áreas da razão, da emoção, do desejo, do consciente ou
Artigo
do inconsciente foram estimuladas pelo povo na rua? De que falam naquele Recebido: 22/06//2013
momento as faixas, as aclamações e as vaias? Aprovado: 30/06/2013

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


196 Ivandro da Costa Sales

Falam explicitamente do preço exorbitante das passagens para os


trabalhadores pobres das grandes cidades; do sofrimento nos péssimos
transportes urbanos; da insegurança na iminência, previsão e efetivação dos
furtos e assaltos; da impunidade aos pequenos e grandes crimes; do repúdio
à corrupção que contamina as relações das pessoas, servidores, religiosos,
políticos; da aceitação/rejeição às organizações trabalhistas, políticas e
culturais atuantes no País. E de muita coisa indefinida da ordem do desejo.

Tudo indica, entretanto, que eram manifestações imediatas de um senso comum


que por definição é pouco profundo, obscuro, incoerente e até contraditório.

Julgo que Antônio Gramsci1, por tudo que passou e refletiu, e a quem tanto
prezo, está autorizado a nos ajudar a pensar este momento do Brasil. Ele
pede que estejamos atentos a aprofundar o que de bom senso sempre existe
no senso comum, ambíguo, confuso, obscuro e pouco coerente. Para Gramsci,
o bom senso, ou sabedoria, seria o senso comum mais apurado, um modo
de sentir, pensar, querer, se expressar e agir mais coerente e mais profundo.
Não se trataria de verdade ou certezas, mas de reflexão e aprofundamento.

1 Gramsci, autor italia- Que sabedoria existiria nas atuais manifestações do senso comum brasileiro?
no viveu intensamente
o fascismo italiano e
Suponho e creio que se estava exigindo a realização de direitos, interesses,
o período stalinista na desejos e sonhos os mais variados, alguns gritados, outros ainda adormecidos.
União Soviética. De
1926 a 1936 ele pas- Eu organizaria assim esses direitos, interesses, desejos e sonhos:
sou dez anos nas pri-
sões fascistas da Itália desenvolvimento de potencialidades físicas, biológicas, intelectuais, afetivas,
pensando em qual seria artísticas, religiosas, ambientais (desenvolvimento que se realizaria pelo
uma prática política trabalho, pela aprendizagem profissional e por uma educação escolar de boa
adequada ao atual está-
gio de desenvolvimento qualidade); reposição de energias desgastadas no trabalho, no desemprego, no
do capitalismo e das subemprego e, sobretudo, na falta de perspectiva de trabalho (reposição que
tentativas do constru- seria realizada por bons e acessíveis serviços de transportes públicos, saúde,
ção do socialismo.
educação, capacitação profissional, habitação, segurança, lazer); consideração
2 Como lamento o des- e aprofundamento da cultura ou dos modos de sentir, pensar, querer, se
conhecimento das obras expressar e agir das pessoas e grupos sociais; afeto, cuidados, amor; ter o
de Marx por parte dos que dizer sobre tudo o que diz respeito à própria vida e à vida da sociedade.
intelectuais que tentam
analisar a realidade so-
cial e política do Brasil Inspirado em Gramsci e Marx2, me limitarei a tentar interpretar esse desejo/
e as atuais manifesta- sonho de exercer poder sobre o próprio destino e os destinos da sociedade,
ções de rua. Lamento
sobretudo o desconhe-
algo insistentemente lembrado nas ruas deste País.
cimento de O Capital,
do Dezoito Brumário de Confesso que me dava tristeza e um sentimento confuso ao ver e ouvir os
Luis Bonaparte e sobre-
tudo da Guerra Civil na
xingamentos a alguns políticos e representantes de organizações da sociedade
França. civil presentes nas manifestações, eles que estavam ali justamente porque
Junho de 2013 no Brasil: a farsa perdeu a graça. E agora? 197

lutavam, a duras penas, em campo tão adversos aos interesses populares, pela
realização de direitos, desejos e anseios expressados pelos manifestantes.

O insulto e xingamentos, sem distinção, aos políticos profissionais e


representantes políticos da sociedade civil talvez revelem um ato de amor à
política e uma rejeição ao modo de exercê-la. Não seria uma rejeição às formas
de representação política? Não estariam os manifestantes e todo o Brasil
dizendo que não se sentiam representados pela Democracia Parlamentar
Representativa e pelas formas de luta de organização da sociedade civil?

Precisaria de muito esforço para sentir/saber que a nossa “Democracia”


se baseia na compra de votos por dinheiro, empregos e cargos? Alguém
desconhece o enorme poder que grupos econômicos exercem no executivo,
legislativo e judiciário? Não se tem certeza que vereadores, prefeitos,
deputados, senadores, governadores, presidentes, dirigentes das organizações
profissionais e políticas da sociedade civil, proprietários de meios de
comunicação não nos representam, mas mandam demais na nossa vida? Eles
nos governam e os empresários brasileiros e multinacionais os governam.

Talvez ainda não se consiga analisar que no modelo de Democracia


Parlamentar, com mandatos universais, irrevogáveis, camuflados num
discurso de Bem Comum, se esconda o processo fundamental da sociedade:
parceria, aliança, confronto de interesses semelhantes, diferentes, contrários
e contraditórios. São interesses cuja maioria, tenta, com poucos meios,
conseguir seus mínimos interesses/direitos/sonhos, enquanto uma minoria,
com muitos meios, tenta perpetuar os seus interesses e privilégios. Ainda mais
oculta-se a relação necessária dos candidatos com os grupos que financiaram
suas campanhas. E por só poderem ser substituídos ou cassados depois de
um longo, custoso e penoso processo, os mandatos viram um bom emprego
para parentes e amigos.

Assombrada, a presidenta da República anunciou, (corretamente, penso eu),


a necessidade da convocação de uma Assembleia Constituinte para uma
reforma política. É justamente dessa reforma que quero falar.

Insisto, há certo tempo, que é urgente repensar a concepção de Estado e de


Democracia. Estado não é, nem nunca foi, algo fora e acima da sociedade.
Estado é uma função permanente: a de gerir os interesses, direitos, anseios
dos diferentes grupos da sociedade. E nas sociedades de classe a função
estatal garante, fundamentalmente, os interesses dos grupos economicamente
fortes que financiaram as campanhas dos partidos e candidatos.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


198 Ivandro da Costa Sales

Quando não existiam os mais diferentes grupos econômicos, políticos,


profissionais, culturais, religiosos, de gênero, de etnia, de moradia, de geração,
de território e quantos mais de muitas ordens, a gestão da sociedade era feita
quase só pelo governo, que ficou identificado com o Estado. Será que ainda
não está claro que todos esses grupos estão querendo ter o que dizer sobre
seus destinos e os destinos da sociedade? Então, por favor, não continuar
confundindo governo com Estado. O governo é o braço governamental do
Estado que tem outro braço, igualmente ou mais importante do que o governo.
É o braço civil do Estado formado pelas organizações da sociedade civil.
Em vez, então, de identificar governo com Estado e pensar as organizações
da sociedade civil como coadjuvantes, fiscalizadoras ou controladoras do
Estado, tente-se definir melhor a função estatal do governo e a função estatal
da sociedade civil. E tente-se pensar as organizações da sociedade civil como
cogestoras de políticas públicas. É algo bem mais digno e mais verdadeiro
do que essas funções subalternas a elas atribuídas. É pena que os diferentes
formatos criados pela Constituinte de 1988, (Plenárias, Conferências,
Conselhos) foram todos aprisionados nas malhas da Democracia Parlamentar
Representativa, que estrebucha, e se tornaram uma brincadeira.

A grande questão atual é a afirmação do poder da sociedade civil em


ter o que dizer sobre os destinos da sociedade. Tenho certeza de que as
formas tradicionais caducaram. Deus nos livre das estatizações soviéticas
e cubanas sob comando do governo e nos salve, ao mesmo tempo, do
centralismo monárquico da igreja católica! Deus nos livre das organizações
sindicais burocratizadas! E sobretudo nos livremos dos partidos, sem
representatividade, criados na marra e na pressa para assegurar poder e
fazer chantagem com o governo na busca de cargos.

Novas formas de representatividade e participação devem ser criadas. Não


confundir, entretanto, novas formas de discutir e decidir sobre o que interessa
com imposição de fôrmas e modelos velhos. Partido, entretanto, entendido
como uma concepção de mundo organizada e militante deve existir, já que o
senso comum e o querer coletivo devem ser construídos e apurados. Como?
Devemos procurar e testar várias outras formas. As redes sociais, no Brasil,
na Síria, no Egito, na Grécia, nos Estados Unidos estão dando um grande
recado. Preparemo-nos, entretanto. Vem por aí chumbo grosso para controlar
a internet. Os grupos econômicos, políticos e culturais dominantes não
suportarão tamanha liberdade e poder!

E a reforma política? Nada acontecerá de revolucionário na sociedade se não


se contestar a ordem capitalista que transforma em mercadoria e capital as
pessoas e todos os outros elementos da natureza. Trata-se de um sistema cujo
Junho de 2013 no Brasil: a farsa perdeu a graça. E agora? 199

objetivo é o lucro e a acumulação do capital conseguidos pela exploração


grosseira e refinada de todas as categorias de trabalhadores e dos que viverão
da venda da sua força de trabalho. Temos que buscar sair da lógica do capital.

Não adianta em nada aperfeiçoar o sistema eleitoral, mudar o modo de


financiamento de campanhas, reestruturar o sistema partidário, se as
organizações governamentais e civis não definirem conjuntamente taxa e
montante de lucro, taxa de juros, reforma agrária, política ambiental, além
de todas políticas públicas ditas sociais. Se, portanto, as organizações da
sociedade civil não interferirem na ordem econômica, nada feito, e discursos
da democracia se tornam só edificantes e sem eficácia.

Que ingenuidade pensar que o Congresso atual, assegurador e desfrutador,


em sua grande maioria, da ordem econômica e política atual, possa e queira
fazer uma reforma política mais profunda. Penso que nem remendos mais
profundos eles são capazes de fazer. Assistam, por favor, plenárias das
câmaras municipais, assembleias estaduais, congresso nacional e sessões
do judiciário.

Só uma constituinte convocada para a reforma política e composta por


representantes de todos os grupos da sociedade, sem nenhum privilégio aos
atuais congressistas, poderia fazer uma reforma política decente. E é até
provável que, no ambiente político e psicológico atual, e nós na rua, essa
reforma aconteça mais rapidamente do que uma outra vinda do Congresso
Nacional ou da Justiça eleitoral.

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


200

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da edição temática, relacionado ao campo inglês e francês. Textos em português,
das políticas públicas. Em Temas livres são espanhol e francês devem apresentar títulos,
reservados assuntos diversos, em sintonia resumos e palavras-chave na língua original
com a linha editorial do Periódico. Resenhas e em inglês. Artigos em inglês devem conter
são textos concisos comentando publicações títulos, resumos e palavras-chave na língua
recentes de interesse de O Público e o privado. original e em português.

2. Enviar à Revista os originais em 2. O artigo deve apresentar no máximo


arquivo eletrônico para o endereço 40.000 caracteres (sem espaço), incluindo
[email protected], formatados notas e referências, digitados em espaço
em processadores de texto compatíveis duplo, na fonte Times New Roman, corpo
com o sistema Windows ou Macintosh, 12, margens de 2,5 cm, em processador
identificando autores (nome completo, Word ou em outro compatível.
titulação), instituições a que pertencem,
endereço para correspondência e endereço
3. O texto pode ser estruturado (não
eletrônico.
obrigatoriamente) observando-se as
seguintes partes: Introdução, Metodologia,
3. A aprovação dos textos será efetuada
Resultados, Discussão e Conclusões.
mediante o exame do Conselho Editorial e
Tais seções devem apresentar títulos e
de pareceristas ad hoc levando-se em conta
eventualmente subtítulos.
a adequação à linha editorial da Revista,
bem como o conteúdo e relevância das
contribuições. 4. O título do artigo deve dar uma idéia
precisa do conteúdo do trabalho e ser o mais
4. Os artigos publicados na Revista devem curto possível.
ser encaminhados com autorização dos
respectivos autores, passando, após 5. O Resumo deve ser auto-contido,
aprovação, a serem de propriedade da devendo sumariar objetivos, métodos de
Revista, ficando proibida a reprodução total pesquisa, orientação teórica, resultados e
ou parcial, em qualquer meio de divulgação, conclusões do trabalho, não excedendo o
sem a autorização prévia deste Periódico. tamanho de 1.200 caracteres (sem espaço).
O resumo deve ser seguido por uma lista
5. Conceitos e opiniões expressos nos de 2 a 5 palavras-chave, importantes para
diversos artigos, assim como exatidão, fonte a indexação do artigo. O abstract deve
das citações e revisão ortográfica, são de ser uma versão em inglês do resumo em
exclusiva responsabilidade do(s) autor(es). português, com o mesmo limite de tamanho,
acompanhado de key words.
6. Questões éticas relativas a pesquisas
com seres humanos, se for o caso, devem 6. Devem ser evitadas linhas órfãs (linha
ser acompanhadas da informação de única em um parágrafo ou no início ou fim
autorização do Comitê de Ética, conforme de página). Para ênfase no corpo do texto

O público e o privado - Nº 21 - Janeiro/Junho - 2013


202

deve ser utilizado, preferencialmente, o from : http://www.germany.eu.net/books/


tipo itálico. carroll/alice.html. ISBN 0681006447.

7. As Resenhas devem contemplar informes 1.6. Tese acadêmica:


breves sobre livros publicados nos últimos
2 anos, em no máximo 2.500 caracteres DINIZ, Arthur J. A. Direito internacional
(sem espaço). público e o estado moderno. Belo Horizonte:
Faculdade de Direito da UFMG, 1975. (Tese
Referências Bibliográficas de Doutorado).

1.Recomenda-se o sistema autor-ano para Outros Elementos do Texto


citações bibliográficas. As referências,
listadas em folha separada ao final do texto, 1. Quadros, gráficos, tabelas, mapas e
devem ser em ordem alfabética, por autor. fotografias devem se integrar ao arquivo do
Deverão conter nome do(s) autor(es), título, texto, devendo estar em formato eletrônico,
local (cidade) da publicação, editora e data, devidamente legendados. A legenda deve
conforme os exemplos abaixo listados: ser centralizada, numerada e deve conter,
se necessário, referência imediata, fonte
1.1. Livro: ou autoria. Aqueles elementos gráficos não
incorporados ao texto em formato eletrônico
FURTADO, Celso. A formação econômica não poderão ser processados e o artigo será
do Brasil. São Paulo: Ed. Nacional, 1984. devolvido a (os) seu(s) autor(es).

1.2.Coletânia: 2. As legendas de quadros, gráficos, tabelas,


mapas e fotografias devem obedecer às
CAROSO, Carlos (org.). Cultura, tecnologias normas da Associação Brasileira de Normas
em saúde e medicina: perspectiva Técnicas (ABNT).
antropológica. Salvador: EDUFBA, 2008.
3. Deve ser inserida uma linha em branco
1.3. Artigo em coletânea: entre o quadro, gráfico, tabela, mapa e
fotografia e o texto procedente.
POCHMANN, M. Desempregados do Brasil.
In: ANTUNES, Ricardo. (org.). Riqueza e 4. Não deve ser deixada uma tabela ou
miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: figura sozinha numa página onde ainda há
Boitempo, 2006. espaço remanescente de pelo menos cinco
linhas de texto.
1.4. Artigo em periódico:
5. Fontes matemáticas ou outras fontes
DUARTE, Luiz F. D. Pessoa e dor no diferentes das utilizadas nos estilos
Ocidente. Horizontes Antropológicos, Ano descritos acima deverão ser integradas ao
4, n. 9, outubro de 1998. texto e cópias dos arquivos dessas fontes
deverão ser fornecidas juntamente com o
arquivo do texto original.
1.5 Artigo em formato eletrônico:

CARROLL, Lewis. Alice´s Adventures


in Wonderland [online]. Texinfo ed. 2.1.
Dortmund, Germany: WindSpiel, Nov.
1994. [cited 10 February 1995]. Available

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