Carlosletras, 1 A LITERATURA DO COLONIZADO
Carlosletras, 1 A LITERATURA DO COLONIZADO
Carlosletras, 1 A LITERATURA DO COLONIZADO
Resumo: Na história literária do Brasil, a voz e a autoria dos povos nativos ficaram silenciadas
por quase quinhentos anos. A literatura indígena contemporânea brasileira começou a ser
percebida de forma significativa no final do século XX. O presente artigo foi baseado na
metodologia empregada de pesquisa bibliográfica da narrativa indígena: A Terra dos Mil Povos:
história indígena do Brasil contada por um índio, do autor indígena Kaka Werá Jecupé e pesquisa
teórica da crítica literária pós-colonialista. O artigo estabelecerá uma breve relação entre o
discurso não hegemônico da literatura indígena (nomeado por Thomas Bonicci de contradiscurso)
e a visão etnocêntrica europeia à qual os indígenas foram descritos nos livros didáticos, históricos
e nos romances literários. Foram feitas duas suscintas pesquisas de campo sobre as obras literárias
de autoria indígena disponíveis no acervo da biblioteca da Universidade do Estado de Mato
Grosso – UNEMAT, da cidade de Sinop, e aos acervos do Programa Nacional Biblioteca da
Escola - PNBE dos anos de 2006, 2008, 2009, 2010, 2011, 2012 e 2013. Como conclusão,
percebeu-se que a obra indígena estudada promove o diálogo e o contradiscurso ao cânone
literário europeu e que a quantidade das obras disponíveis nos acervos pesquisados é insuficiente
para a releitura dos conceitos e estereótipos construídos sobre o indígena.
Palavras-chave: Letras; Literatura brasileira; Literatura indígena; Análise bibliográfica; Pós-
colonialismo.
Abstract: In the brazilian colonization, the flight and the authorship of the native people was
silenced for almost five handred years The brazilian indigenous contemporary literature begins to
be significantly perceived in the late twentieth century. The presente article was based on the
methodology employed of bibliography research of indigenous narrative: A Terra dos Mil Povos:
história indígena do Brasil contada por um índio, from the author Kaka Werá Jecupé and teoric
research oh the literary critic post colonialist. This article will make a relationship between the
non-hegemonic discourse of lindigenous literature (appointed by Thomas Bonicci of
countercourse) and the etnocentric european vision which the indigenous people have been
described throughout history and literary novels. Two surveys were done about literary works by
indigenous author available in the University of Mato Grosso State library collection ans the
1
Pesquisadora da Unemat. Email: [email protected]
2
Pesquisador da Unemat. Email: [email protected]
collection of Nacional School Library Program in the years 2006, 2008, 2009, 2010, 2011, 2012
and 2013. As a conclusion it was noticed that indigenous literary work studied prootes dialogue
and couter-discourse to the literary european canon and the literary works available in the
researched collections are insufficient rereanding the concepts and stereotypes built about the
indigenous people.
Keywords: Letters; Brazilian Literature; Indigenous Literature; Post-colonialism.
Introdução
A partir da década de 1990, os indígenas do atual território brasileiro romperam
o silêncio de suas autorias narrativas, iniciando e ganhando popularidade com a
publicação de suas obras literárias. Anterior a esse período, o que existe é uma ausência
dos relatos no mercado editorial, sobretudo no ambiente escolar e na academia. O
indígena era figurado pelo olhar do colonizador, sob “uma visão que não pode escapar à
formação dos cronistas do século XVI e posteriormente aos projetos 3 nos quais estão
inseridos” (THIEL, 2012, p. 17). Um conhecido exemplo é a carta do achamento de Pero
Vaz de Caminha, depois Basílio da Gama, “que via o índio como ‘homem natural’; Frei
Santa Rita Durão, que os apresentava como ‘os comedores de carne humana’” (SOUZA,
2018, p. 68) e os antigos relatos do mercenário viajante Hans Staden que circularam em
grande parte da Europa no século XVI. O nativo, nesses textos, foi descrito, ora como
bárbaro, selvagem, primitivo e canibal, ora como nobre e inocente (sem deixar de lado a
condição primitiva), como na construção da imagem do “bom selvagem”4.
Nos séculos XVIII e XIX o nativo passa a fazer parte de uma concepção em que
é retratado como o personagem adequado na construção da identidade nacional de um
povo brasileiro que buscava uma “afirmação cultural” (THIEL, 2012, p. 44). Marcado
pelo romantismo europeu inspirado por Lord Byron, Alfred du Musset e outros, o
indianismo reforça o passado mítico, representa o indígena idealizado, exótico, puro,
marcado pela coragem, honra etc. Nessas perspectivas, segundo Santos, (2009 b, p. 68):
“o índio é delineado a partir de denominadores comuns em alguns casos e de caracteres
3
Projetos de construção do discurso colonizador.
4
Termo utilizado por Jean-Jacques Rousseau, no século XVI.
próprio nativo, o que não acontece em outras obras literárias com proposta temática
semelhante. Nesse sentido, o conto de Rosa insere certa mudança no espaço canônico
literário ao situar o indígena como agente de seu curioso processo de se metamorfosear
em animal, o que pode ser considerado, simbolicamente, como um importante retorno ao
universo mítico totêmico indígena.
Outro expoente da literatura chamada indigenista, são as obras publicadas pelos
Irmãos Villas Boas, como A marcha para o oeste publicado pela primeira vez em 1994.
Os Villas Boas também atuaram de maneira imprescindível na demarcação das terras do
Parque Nacional do Xingu e na intermediação para a migração das populações indígenas
que tiveram seus territórios invadidos por garimpeiros para o Parque.
O processo colonizador ao qual a América Latina passou, gerou uma relação de
força entre o colonizador e os povos nativos considerados inferiores e colonizados. Essa
relação de força se manifestou (e ainda se manifesta) de diversos formatos. Talvez a mais
forte aparição seja pela força do discurso empregado e construído ao longo da formação
da história desses povos, tanto na colônia, como na metrópole. O discurso de poder ao
qual tratamos aqui abrange concepções científicas, religiosas, históricas e literárias. Esse
discurso é construído por quem detém uma autoridade para se forjar um conceito de
verdade que lhe seja útil aos interesses de manutenção da relação colonizador-colonizado.
É evidente que o poder, com todas as suas consequências, é exercido para que surta o
máximo efeito possível. Gerações de europeus se convenciam de sua superioridade
cultural e intelectual diante da ‘nudez’ dos ameríndios; gerações de homens,
praticamente de qualquer origem, tomavam como fato indiscutível a inferioridade das
mulheres. Nesses casos, estabeleceu-se uma relação de poder entre o ‘sujeito’ e o
‘objeto’, a qual não reflete a verdade. (BONICCI, 2009, P.253).
1. O Livro
Káká Wera Jecupé nasceu em 1964 em São Paulo. Filho de pais tapuias, também
chamados de txucarramães, juntaram-se com o povo Guarani nos anos de 1960. O escritor
mostra-se estudioso das práticas dos povos indígenas e, desde a década de 1980, atua
como defensor dos saberes e da cultura dos povos nativos, além de liderar consideráveis
projetos que objetivavam resgatar e difundir a sabedoria indígena como forma de lutar
contra imposições externas sobre suas tradições religiosas milenares. Jecupé é autor de
várias obras, tais como Tupã Tenondé no pé (2001), Oré Awé Roiru'a Ma - Todas as
Vezes que Dissemos Adeus (2002); As Fabulosas Fábulas de Iauaretê (2007); O Trovão
e o Vento: Um Caminho de Evolução pelo Xamanismo Tupi-Guarani (2016); A Águia e
o Colibri - Carlos Castañeda e Ancestralidade Tupi-Guarani: Trilhas com
Coração (2019) (em coautoria com Roberto Crema).
O livro A terra dos mil povos: história indígena do Brasil contada por um índio
(1998) é de leitura muito acessível e narra de maneira simples e peculiar, um pouco dos
elementos que compõem o universo físico e metafísico de alguns povos indígenas. Não
escrevo povos indígenas brasileiros porque existe uma grande discussão sobre o fato de
os indígenas se considerarem ou não brasileiros. Isso se dá porque hoje o que
denominamos território brasileiro foi estabelecido pelos europeus.
Jecupé descreve o que é ser índio, seus mitos, alguns embates com os brancos e
outros elementos culturais baseado nas histórias contadas pelos seus antepassados que
são frequentemente recriadas e atualizadas. O livro é maciçamente formado por essas
Ao contar sua história, um índio, um clã, uma tribo parte do momento em que sua
essência-espírito permeou a terra e relata a passagem dessa essência espírito pelos
reinos vegetal, mineral e animal. Há tribos que começam a sua história desde quando
o clã eram seres dos espíritos das águas. Outras trazem a sua memória animal como
início da história, assim como há aquelas que iniciam a sua história a partir da arvore
que foram. (JECUPÉ, 1998, p.14)
pela civilização” (JECUPÉ, 1998, p. 71), ou seja, a partir do ano 1500 até o ano 1998,
ano da publicação da obra. Nesse momento, os fatos históricos são narrados destacando
eventos diretamente relacionados aos povos indígenas.
1839 – Rendição dos cabanos. Epidemias e a atroz perseguição às tribos que com eles
combatiam devastam enormes éreas da Amazônia.
1840 – Início da fase extrativista de gomas elásticas da Amazônia, principalmente da
borracha (1879-1910), e dará cabo de inúmeras etnias tribais.
1843 – O governo imperial autoriza a vinda de padres capuchinhos para catequizar os
índios. (1998, p 79)
Fonte: https://ensinarhistoriajoelza.com.br/indios-brasileiros-retratados-por-um-holandes/-
blog:%20Ensinar%20História-Joelza%20Ester%20Domingues.
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De Acordo com Bonicci 2009, modalidade de Worlding que é maneira pela qual a colônia começou a
existir como parte do mundo eurocêntrico. É a formação do imaginário que os europeus tinham das colônias
por meio do material de divulgação midiática produzido na época.
resistência cultural dos Tapuia. Fazendo uma interpretação e uma tradução da realidade,
inicialmente baseada na oralidade da língua original para a língua portuguesa, Jecupé se
faz presente demonstrando que as narrativas têm mais de um ponto de vista. A história e
a literatura podem e devem ser contadas a partir da multiplicidade de percepções sobre o
processo colonizador de forma polifônica. Bonicci relaciona tal fato com o fenômeno da
‘reescrita’ e conta:
A reescrita faz parte do contradiscurso, originalmente usado por Terdiman (1985) para
demonstrar os métodos empregados pelo discurso da periferia contra o discurso
dominante do centro imperial. A seleção gira em torno de certos textos
particularmente preeminentes e simbólicos que o discurso dominante irradiava para
impor sua ideologia. A reescrita tem por finalidade a quebra da ocultação da
hegemonia canônica e o questionamento dos vários temas, enfoques, pontos de vista
da obra literária em questão, os quais reforçavam a mentalidade colonial. (BONICCI,
2009, p 271.)
proposto por Bonicci (2009) e pós abissal proposto por Santos (2009 a) e dissemina esse
vasto conhecimento respeitando a cultura e a história de outros povos que habitavam essa
terra.
Referências
CAMINHA, Pero Vaz de. A carta de Pero Vaz de Caminha. [S. l.]: Acervo Digital.
Disponível em: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta.pdf.
Acesso em: 26 out. 2020.
JECUPÉ, Kaka Werá. A terra dos mil povos: história indígena do Brasil contada por um
índio. São Paulo: Peirópolis, 1998.
MACIEL, Sandra Mara Pinheiro. O diferente – O “Outro” – em A Terra dos Mil Povos.
Revista Scripta Alumni, Campos de Andrade, n. 5, p. 28, 2011.
SOUZA, Ely Ribeiro de. Literatura indígena e direitos autorais in DORRICO, Julie.
DANNER, Leno Francisco. CORREIA, Heloisa Helena Siqueira. DANNER, Fernando
(org.). Literatura indígena brasileira contemporânea: criação, crítica e recepção. Porto
Alegre, RS: Editora Fi, 2018.
THIÉL, Janice. Pele silenciosa, pele sonora: a literatura indígena em destaque. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2012.