CHIARAGente Quer Luzir para Marcelo Jacques - OK

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“Gente quer luzir”: figurações de “um outro-real, um ultra-real”


no enfoque da pobreza

Ana Cristina de Rezende Chiara


Profª. Adjunta de Literatura Brasileira da UERJ

Gente quer luzir. Os mendigos drogados na calçada de NY sonham com


pirulitos de metadona. A princesa inclina a cabeça e diz sim. O mendigo
cineasta de Montreal explode a tela com imagens reais demais. A negra na
esquina do Leblon para o tempo. As crianças se exercitam nos sinais,
passarinhos sujos voando sobre o canal do Jardim de Alá. Aquele se lava
no chafariz, na cena de Fellini, dois se amam sob pedaços de papelão. Dá
pra ver o movimento. Adolescentes chupam chupetas nostálgicos. Outros
preferem um cheirinho de cola. Muito bom. Pernas feridas. Bocas sem
dente. Barrigões com bebês. Sexo a seco. Figuras recortadas da cidade.
Brilham. Dançam.
Da série Formas do irrespirável, inédito – Ana Chiara

Perdeu o apetite, só tinha a grande fome.


Clarice Lispector. A hora da estrela – Clarice Lispector

o Nikos , assim para te dar um exemplo, escreveu que quando ele


encontrava um mendigo na rua , tinha vontade de dizer: me dá o seu
tempo.
Fluxo-floema – Hilda Hilst

“Rafael, de 25 anos, finge que é passarinho, mas passou a vida trancado. André, 20
anos, reza dias inteiros e grita o tempo todo. Leandro, 20 anos, engole esponjas de aço e
cremes de cabelo. João Guilherme, 11 anos, come compulsivamente. Eles se automutilam e
agridem até suas mães” (Aggege, Soraya. “A vida segregada do brasileiro autista”, O Globo,
16 jul. 2006), diz a reportagem de 16 de julho de 2006, de O Globo, que investiga as
responsabilidades do Estado com relação ao tratamento de autistas pobres. Soraya Aggege,
que assina a matéria, continua: “as mães geralmente são o principal elo do autista com o
mundo. Talvez por isso elas apanhem mais. Dentes e braços quebrados são consequências
comuns nessas relações. Para muitas delas, no entanto, eles são anjos que as fazem conviver
em um outro mundo, onde simplesmente as regras são diferentes”. Uma das mães diz sobre o
filho: “O que ele me ensinou é como se ele vivesse em um país estrangeiro e me levasse para
lá sempre. Mas ninguém mais consegue entrar”. Parece, então, que as mães atribuem ao
isolamento dos meninos autistas um valor de excepcionalidade como das experiências
extáticas dos místicos. Repercute na memória a frase de Santa Teresa em seu Livro da vida:
Este sofrimento é semelhante às agonias da morte, mas traz em si tamanho contentamento que
não tenho termos de comparação.[...] Digo não sabe porque a imaginação nada lhe apresenta.
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Acho até que as suas faculdades não agem em grande parte do tempo em que ela está assim.
A dor as suspende, assim como o júbilo o faz na união e no arroubo (Santa Teresa de Jesus. O
livro da vida. São Paulo: Ed. Loyola, 1995: 129).

A comparação com anjos remete também a Walter Benjamin e a alguns de seus anjos
incompletos, figuras efêmeras e incapacitadas, anjos doloridos, mas cintilantes (cf. Gagnebin,
Jeanne Marie. “O hino, a brisa e a tempestade: dos anjos em Walter Benjamin”, O Percevejo. Revista
de teatro, crítica e estética. Ano 6. N.6. 1988: 18-29). Segundo Gagnebin, para o filósofo alemão,
os anjos são figuras intersticiais, figuras que se situam no limiar de uma aparição e de um
desaparecimento, figuras fugazes e iluminadoras. Embora de lume fraco, esses anjos autistas,
em suas intensas relações com suas mães, funcionam como uma interdição à leitura fluida da
reportagem. Eles demandam mais do que uma simples piedade, eles obrigam a repensar as
relações entre a privação e o excesso em que mergulha até a raiz nossa sociedade.
O efeito perturbador da reportagem decorre da desordem provocada na expectativa de
leitores de jornal. Onde esperam o factual, deparam com imagens verbais desconcertantes
construídas por uma espécie de aberração entre o que se diz e o modo como se diz. A vida
miserável de pessoas entregues a uma disfunção mental e sem condições de tratamento
adquire um inesperado contorno. Algo se intromete entre o leitor e as páginas do jornal, uma
vacilação entre a razão e a perplexidade. Um espaço vago a ser preenchido por uma relação
desconhecida entre o olho que vê, lê, e aquilo que é visto, lido. O que explicaria esse enfoque
que torna o real algo além do que pode abarcar a compreensão imediata dos fatos?
Entre a imagem do passarinho, a reza misturada a gritos, a dieta sensual, e a dor das
mães se imiscui uma compreensão inesperada de que há outros estados da consciência e dos
corpos que por mais irrespiráveis que sejam nos projetam num outro-real: um ultrarreal. A
devoção das mães pelos filhos-anjos é quase religiosa, e o amor por esses “meninos do
porão”, como os chama um dos psiquiatras entrevistados, sustentam-nas em seus cotidianos
massacrantes. Buscariam talvez compensações para suportar o sofrimento, mas não gostaria
de pensar por meio de psicologismos redutores. Quero entender a partir dessas imagens dos
meninos autistas como e por que certas imagens verbais e visuais da miséria, do isolamento,
da pobreza provocam um tipo de choque diferente do sentimento de compaixão passiva que
as imagens costumeiras da pobreza/privação costumam provocar. Considero aqui imagens da
pobreza, da miséria, da privação, imagens de estados extremos, próximos do êxtase,
contrapondo-se aos clichês sobre a miséria.
É por demais conhecida a aterradora experiência de Georges Bataille diante do
suplício de um rapaz chinês. Bataille recebeu um negativo de uma das fotos do suplício à
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qual frequentemente voltava e, mais tarde, obteve ainda outras imagens da tortura: “Estou
obcecado pela imagem do carrasco chinês da minha fotografia em seu trabalho de cortar a
perna da vítima na altura do joelho” (Borges, Augusto Contador. “Georges Bataille: imagens
do êxtase”, Agulha – revista de cultura, 9, Fortaleza; São Paulo, fev. 2001) 1; em outro
comentário, Bataille se refere à vítima:

O jovem e sedutor chinês [...] entregue ao trabalho do carrasco, eu o amava:... eu o amava de


um modo no qual o instinto sádico não tomava parte: ele me comunicava sua dor, ou antes, o
excesso de sua dor, e era justamente isso que eu buscava, não para me deliciar, mas para
arruinar em mim aquilo que se opõe à ruína (Borges, Augusto Contador. Op. cit.). 

Estimulado por essa vivência Bataille escreverá o livro A experiência interior, o


primeiro que assina com o nome verdadeiro, e sob o influxo das intrincadas reações às fotos,
neste livro estuda a possibilidade de um descarte de saber prévio e o mergulho no em si-
mesmo da experiência. Um movimento de ascese e de excesso, abrindo a percepção a estados
não racionais, não preconcebidos por uma razão universal. A bela epígrafe nietzscheana “a
noite também é um sol” confere a medida do que será revolucionado pelo pensamento do
transe. Bataille provoca o pensamento até superar os limites do senso-comum por meio de um
processo de despossessão de si mesmo, dos saberes prévios, dos sentidos estabelecidos. Ele
afirma:
Antes que a sorte me abandonasse, frequentemente achei de antemão o contra-senso como um
pequeno fragmento de osso que se quebra atrozmente quando se saboreia uma garfada. Hoje
nem garfada, nem sabor. Somente o contra-senso, verdade deserta, criando o deserto,
entrevista, dilacerando através da folhagem das árvores sob o pálido azul do céu (que é
ausência do homem e de qualquer sentido) (Georges Bataille, Georges. A experiência interior.
São Paulo: Ática, 1992: 183).

Bataille convocará a força desse espaço desértico, onde o homem fará da fraqueza sua
potência máxima. O homem do contrassenso reúne forças além de sua capacidade, reúne as
forças do excesso de uma verdade grande demais para ser abarcada pelo pensamento. O
suplício do chinês desencadeará uma reação análoga no observador:

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“Em 1905, na China imperial, um jovem chamado Fou Tchou Li foi considerado culpado pelo assassinato de
um príncipe, Ao Han Ouan e submetido ao terrível suplício dos Cem pedaços. Por clemência (sic) do imperador,
a vítima não foi queimada como era previsto, mas esquartejada viva em cem pedaços. Dois franceses assistiram
à execução e a documentaram. Um deles, Georges Dumas, publicou uma das fotos em 1923, em seu Tratado de
psicologia. Dumas intrigara Bataille observando que, por piores que fossem o meticuloso trabalho do carrasco e
as dores da vítima, o que se via em seus olhos revoltos era uma expressão de êxtase. É bem verdade que o
supliciado encontrava-se sob efeito de injeções de ópio, não para mitigar seu sofrimento, como se poderia supor,
mas para prolongá-lo ainda mais. O enigma estava criado.”
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(...) entro num beco sem saída. Aí toda possibilidade se esgota, o possível se esquiva e o
impossível maltrata. Estar frente ao impossível – exorbitante, indubitável –, quando mais nada
é possível, é, aos meus olhos, fazer uma experiência do divino; é o análogo de um suplício”
(Bataille, Georges, op. cit.: 39).

Exorbito, portanto, da esfera conhecida da comiseração diante de imagens da pobreza


e da privação e deixo que meu pensamento resvale como o das mães dos “meninos do porão”
e me contamino com a miséria do outro, com a violência desse estado. Afundo na violência
da miséria para compreendê-la, tornando o meu olhar tão miserável quanto aquilo que vê,
para fazer com que a miséria seja um modo de conhecimento além da superfície das imagens
e das palavras, algo que não me permita uma leitura fluida, um virar a página e esquecer.
Proponho-me ainda experimentar a crueldade diante da dor dos outros. E que esta crueldade
não se confunda com a simples maldade, mas que radicalmente me lance na crueza de um
mundo a descobrir. Não foi esse o drama de linguagem encenado pelo narrador de A hora da
Estrela? (Lispector, Clarice. A hora da estrela. 9ªed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984).
Para tanto é necessário vencer as barreiras dos preconceitos e prejulgamentos,
renunciar ao anteparo ideológico da boa consciência e ultrapassar os limites da minha própria
condição. O desconcertante em Macabéa de Clarice vem de seu extremo lirismo e delicadeza
que resiste a toda forma de brutalização. Ler Macabéa como nordestina subalterna, vitimada
pela cidade, é dissolvê-la numa corrente que convoca no máximo os bons sentimentos
humanistas e uma revolta fraca e momentânea. Talvez o que Susan Sontag chama de
“compaixão e repugnância” (Sontag, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo:
Companhia das Letras, 2003: 17).
David Lapoujade, ao estudar a relação de imbricação da religiosidade no mundo laico
capitalista dos Estados Unidos, afirma: “(...) a caridade não supõe nenhuma simpatia por um
sujeito, mas faz do outro o objeto de um cuidado. (...) ela se pretende medicinal ou curativa ,
pois só pode ter acesso a objetos que reclamam sua ‘força de trabalho’”( Lapoujade, David.
“Cinismo e piedade (Made in USA)”. Em: Lins, Daniel (org.). Nietzsche e Deleuze –
Bárbaros, civilizados. São Paulo: Annablume, 2004: 77). No entanto, Clarice, ao
performatizar um narrador homem que não vai “lacrimejar piegas”, encena o confronto
agônico entre a repulsa e a simpatia, entre a crueldade e o amor diante da pobreza e do
desamparo de Macabéa, sem se deixar capturar numa rede de bons sentimentos. Isto porque a
nordestina deve permanecer como espanto para o pensamento. Ao se perguntar sobre
Macabéa, o narrador não poderá fechá-la num conceito apenas: se a pobreza dela era “feia e
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promíscua” (Lispector, Clarice. Op. cit.: 28), ela também “vivia de si mesma” (Lispector,
Clarice. Op. cit.: 45), o que provoca inevitável desconcerto diante dessa alteridade irredutível,
pois a nordestina tinha em si mesma uma certa “flor fresca” (Lispector, Clarice. Op. cit.: 47).
A perplexidade do narrador diante da possibilidade de momentos gloriosos em meio a toda
mesquinhez de um cotidiano apagado, sujo, pobre, pode passar a ser a perplexidade do leitor:
“quem sabe achava que havia uma gloriazinha em viver?” (Lispector, Clarice. Op. cit.: 34).
Clarice Lispector coloca o leitor não diante de uma pobreza que iguala a todos, mas o obriga
a ver um outro naquele pobre, dá-lhe uma subjetividade como uma frágil flor, e esse olhar
trocado volta-se para a própria fragilidade de quem lê, a fragilidade dos que possuem muito.
Deixo por enquanto Macabéa ouvindo a rádio MEC e penso juntamente com um fotógrafo do
pensamento do transe.
O fotógrafo Arthur Omar, na entrevista sobre a mostra de sua série Antropologia da
Face Gloriosa2, explica como se dá sua relação com a arte da fotografia. Para fotografar,
Omar coloca-se em total disponibilidade diante do que conhecemos como o material a ser
fotografado – no caso são os rostos de foliões de rua do carnaval do Rio de Janeiro –, de
modo a deixar que haja uma espécie de fusão, uma total sincronicidade com o fotografado de
tal ordem, que o olho que vê torne-se o que é visto, ou seja:

(...) através do ato fotográfico [...] onde o sujeito se insere num tipo de temporalidade
diferente, muitos fotógrafos podem se tornar eles próprios gloriosos. Pois é somente
tornando-se gloriosos, ou deixando-se atravessar pelo pequeno e fragmentário êxtase
fotográfico, que eles podem entrar em fase de vibração sincronizada, com a glória que está
atravessando o rosto do outro, ou melhor, o ser mesmo do seu objeto que ele não perceberia
se não batesse no mesmo ritmo ou na mesma freqüência (Omar, Arthur. Antropologia da face
gloriosa. São Paulo: Cosac&Naify, 1999: 41).

Segundo Arthur Omar, desaparece nessa relação fusional o distanciamento que dá


chance ao retrato, ao sociologismo, pode-se entrar num circuito imaterial de um ultrarreal, um
outro-real, num circuito de forças gloriosas, de estados gozosos. Como poderemos ver numa
de suas fotos – todas em grandes dimensões –, o olho que vê é o olho visto e vê não com a
pupila, mas com o branco dos olhos. Ao explicar uma foto da exposição intitulada Não te
vejo com a pupila, mas com o branco dos olhos, o artista se aproxima do pensamento do
transe de Georges Bataille na definição de uma experiência extática:
Em todas as representações plásticas de místicos em êxtase, os olhos sempre aparecem
revirados para cima. Aparentemente porque estariam em contato com realidades superiores,
acima deles. Mas ao posar para esta foto, descobri algo mais. Na verdade, o que o místico faz
2
Série de fotografias composta por fragmentos-flagrantes colhidos no carnaval de rua do Rio de Janeiro entre
1973 e 1996. Em: Catálogo da exposição realizada no MAM , Antropologia da Face Gloriosa, de 22 de janeiro
a 25 de abril de 1999.
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ao revirar os olhos para cima, não é olhar para deus, mas vedar a sua pupila com as pálpebras,
deixando aberto e solto no espaço o branco dos olhos, para que ele receba não apenas o que
vem de cima, mas o que vem de todos os lados do cosmos. (Omar, Arthur. Op. cit.: 41).

A soltura e opacidade do branco impedem a formação de um julgamento imediato,


colocando a entrega ao outro no mesmo plano vertiginoso com que a câmera registra em
segundos e secretamente sem que o olho consiga perceber. As fotos de Artur Omar distorcem
fisionomias, exageram, esticam ao máximo, são “defeituosas”, granuladas, estouradas, são o
antirretrato. São estados alterados. O espectador é tragado numa revolta do objeto contra o
sujeito. Como diz o artista: “acho que o centro da imagem é um aparelho de sucção violenta ,
ao qual, um dia enviaremos o olho em missão tripulada” (Omar, Arthur. Op. cit.: 56). Se
nestas fotos se suga o espectador para um centro, este centro é um equivalente do
redemoinho, força neutra de onde se pode sair apenas pelo deslocamento da perspectiva. As
fotos de Arthur Omar contrariam o que Susan Sontag chama de retórica da dor. A retórica da
dor é invariável: reitera, simplifica, agita, cria ilusão de consenso: “E as fotos das vítimas de
guerra são elas mesmas, uma modalidade de retórica. Elas reiteram. Simplificam. Agitam.
Criam a ilusão de consenso” (Sontag, Susan. Op. cit.: 11).
Num outro extremo da fotografia como arte, encontramos o trabalho de Sebastião
Salgado. Trata-se, como todos reconhecem, de fotos de extrema beleza e impacto sobre o
espectador. No entanto, poder-se-ia perguntar que tipo de recepção impactante é esse? Ao
examinar o trabalho Exodus (2000)3, Karl Erik Schollhammer observa o efeito das fotos de
Sebastião Salgado:

Não nos é permitido desviar o olhar! Somos fitados pelo olhar, às vezes hostil, do sujeito
fotografado, de maneira que não nos é permitido baixar o olho. O espectador é, assim,
exposto à catástrofe da história, encarnado no olhar hostil do “outro próximo”, perdendo seu
domínio representativo e virando, ele mesmo, o objeto passivo e culpado deste olhar. Nesse
ponto, a relação paradoxal no trabalho de Salgado aparece como a dificuldade que distingue
suas fotos da superexposição pornográfica das vítimas de catástrofes, promovida pela
imprensa global, que apenas contribuem para a redundância, insensibilidade e banalidade
acerca do sofrimento humano. (Schollhammer, Karl Erik. “Imagens na margem do mundo
globalizado”. Em: Além do visível: o olhar da literatura. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007: 189).

O trabalho de Salgado, segundo observações de Karl Erik Schollhammer, provoca


no espectador um olhar “universal” sobre a pobreza. E, por mais contundentes, as cenas
captadas acabam por reafirmar a retórica da dor, como se ouvíssemos ao fundo a música dos

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Êxodos (2000) – O projeto de Êxodos se baseia numa seleção de mais de 80.000 fotos tiradas durante a última
década que representa um resumo de sua carreira de fotografo documental. O livro tem quatro partes separadas
– Migração e refugiados; a Tragédia Africana; América Latina: o êxodo rural e a desordem urbana e Ásia, o
novo rosto urbano do mundo – cada uma com sua lógica intrínseca e narrativa própria.
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Titãs “miséria é miséria em qualquer canto...”. Nos retratos de Salgado, podemos contemplar
as fotos das crianças refugiadas de várias nacionalidades diferentes que, vistas em conjunto,
reforçam essa ideia de que os males se espalham pelo planeta afetando as pobres criancinhas,
condenando-as ao mesmo tipo de exílio na pobreza. Talvez, por sua extrema qualidade
estética, possam até ser incluídos no que Ivana Bentes classifica, quanto a um certo cinema
dos anos 90, como cosmética da fome “filmes em que a linguagem e a fotografia clássicas
transformam o sertão num jardim ou museu exótico, a ser resgatado pelo grande espetáculo”
(Bentes, Ivana. “Quando o árido vira fome”. Em: <
http://jbonline.terra.com.br/destaques/glauber/glaub_arquivo41.html>). A espetacularização
da dor comove, mas talvez não mova.
Isso não acontece nem na Antropologia da face gloriosa nem nas recentes Zootopias,
ambas reuniões dos trabalhos de Omar que singularizam, de um modo radical, o instantâneo
de um rosto de modo que, a cada foto, o espectador tenha de retirar de si recursos perceptivos
inusitados. “São faces sem retrato”, explica o fotógrafo-poeta. São faces que barram a
retórica da dor e da piedade para magnetizar o espectador, “cada face gloriosa deve ser um
ato de fundação, um momento fundamental” (OMAR, Arthur. Op. cit.: 1997: 24).
No artigo, “Marioswald pós-moderno”, Eneida Maria de Souza recupera uma trilha de
imagens dionisíacas às quais o pensamento crítico de Silviano Santiago imprime força
suplementar, ao fazer delas uma teoria “pagã do dispêndio, da alteridade e da falta como
categorias formadoras do sujeito” (Souza, Eneida Maria de. “Marioswald pós-moderno”. Em:
Cunha, Eneida Leal. (org). Leituras críticas sobre Silviano Santiago. Belo Horizonte:
UFMG; São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2008: 23-50). Trata-se das imagens da negra
no carnaval que despertaram em Mario de Andrade “o sentimento religioso da vida” e das
reapropriações dessa imagem feitas por Silviano em seus ensaios críticos e textos ficcionais
“imprimindo-lhe significados conforme o contexto” em que se encontram. Essas imagens
concorreriam para uma transfiguração da dor, um deslocamento deste significante do
sentimento de autopiedade para a explosiva erótica de uma felicidade extraída do apetite de
vida, da grande fome de viver.
Quando assisti ao documentário Estamira, do diretor Marcos Prado, reconheci as
referências a essas forças que explodem as imagens da pobreza por um desvio violento e que,
ao invés de olhar para o outro, falar pelo outro, permitem que eu seja olhada e falada por este
outro. Como ainda não se utilizava de recursos realistas como o cheiro do lixão invadindo a
sala do cinema, pude resistir ao abalo provocado pela força do que aquela mulher me dizia:
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(...) porque eu não estava precisando desse remédio. Quem sabe sou eu, quem sabe é o
cliente. Fica se viciando, dopando,vadiando pra terra suja, maldita, excomungada, desgraçada,
mais ainda. Quê que há? Manjado, desmascarado, desgraça...Os limites. Toda coisa tem
limite. Esses remédios são da quadrilha da armação dopante pra cegar os homens pra querer
Deus. Deus falsário, entendeu? Esses remédios são dopantes pra querer Deus falsário,
entendeu? [...] Vocês não aprendem na escola, vocês copiam, vocês aprendem é com as
ocorrências. Eu tenho neto com dois anos que já sabe disso. Tem dois anos que ainda não foi
na escola copiar hipocrisias e mentiras charlatais” (Prado, Marcos. Jardim Gramacho. Rio de
Janeiro: Argumento, 2004: 120).

Da mesma forma que Estamira me desloca de meus preconceitos de classe, a literatura


de A hora da estrela é capaz de tornar a dor inédita e cada vez mais cruel. Leio a hora
extrema e gloriosa do atropelamento de Macabéa como um desses instantâneos da dor em que
a luz explode a significação. O sem sentido da morte está inscrito nessas últimas respirações,
misturadas ao vômito de sangue. Não quero, recuso-me a sentir piedade neste momento cruel
e glorioso da nordestina em que ela alcança, sem o saber, o agudo âmago de seu desejo, tem a
sua irônica, mas incomparável hora de estrela. “A morte é um encontro consigo. Deitada,
morta, era tão grande como um cavalo morto” (Lispector, Clarice. Op. cit.: 97). Experimento
o júbilo em acompanhar uma vida que se cumpre, momento seguido de um grito de vitória
por eu-leitor ter sobrevivido a esta morte. É a essa euforia escandalosa à qual o leitor pode
chegar ao término do romance: “E – agora só me resta acender um cigarro e ir para casa.
Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?!/ Não esquecer
que por enquanto é tempo de morangos./ Sim” (Lispector, Clarice. Op. cit.: 98). A afirmação
de vida da última palavra do romance, o Sim inequívoco e desapiedado, torna-se o osso do
contrassenso batailleano, é o recurso que desmobiliza a retórica da dor: a crueldade da arte
permite a confrontação com a minha crueldade.
E se a piedade impede o reconhecimento de qualquer possibilidade de alguém ser
feliz fora dos parâmetros de felicidade burguesa/capitalista e consola com um estado de
culposa consciência quem busca diminuir a permanente fome de comida dos pobres, a
piedade não é suficiente para estancar neles a fome de vida, a vontade de felicidade, a
possibilidade de serem como Macabéa uma certa “flor fresca”. E talvez impedir-lhes – por
manter o olhar piedoso que os acalenta e os afasta, por não conceder-lhes o direito à alegria
gozosa, mantendo-os discursivamente na condição de pobres, incapacitados, excluídos,
miseráveis, infelizes, necessitados – não admitir neles essa avidez – essa fome potente e
ameaçadora – do que é a grande vida que explode nas fotos de Omar, nas imagens da negra,
no discurso paranóico-lúcido de Estamira e no destino de Macabéa – mantê-los infelizes à
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distância, talvez seja essa a forma mais sutil e perversa de barrar sua entrada no clube. Talvez
para a piedade culposa seja forçoso guardar os anjos do porão somente no lado da fome, da
doença, da miséria, com seus doloridos rostos voltados para trás como se fossem ruínas; pois
assim a tarefa se estende adiante e a longo prazo, a tarefa os mantém ali carentes e
necessitados de ajuda.
À crueldade da arte cabe deixar que, livre das imposições racionalizantes, alguém em
permanente jejum force a passagem para a dimensão da miséria e admita a potência guardada
ali e, de um modo mais respeitoso para a própria força desse olhar inaugural, possa se ver
livremente na face do Outro uma face singular, ameaçadora e nova: “E quando se presta
atenção espontânea e virgem de imposições, quando se presta atenção a cara diz quase
tudo” (Lispector, Clarice. Op. cit.: 66).

Resumo:
Este artigo discute imagens da pobreza, que figuram tanto na literatura quanto em outras
linguagens, em perspectiva comparatista e desconstrutora do olhar preconceituoso e/ou
piedoso. O foco da discussão é o conceito de êxtase (Bataille) e de face gloriosa (Arthur
Omar). Os objetos são: A hora da estrela (Clarice Lispector), as fotos do projeto Êxodus
(Sebastião Salgado) e o documentário Estamira (Marcos Prado).

Palavras-chave: Êxtase, face gloriosa, A hora da estrela, Êxodus, Estamira.

Abstract
This article discusses poverty images, which appear in literature as much as in other
languages, in a comparatist perspective and deconstructive of  prejudiced and/or merciful
view. The focus of the discussion is the concept of ecstasy (Bataille) and of glorious face
(Arthur Omar). The objects are: A hora da estrela (Clarice Lispector), the photos of Êxodus
project (Sebastião Salgado) and the documentary Estamira (Marcos Prado).

Keywords: Ecstasy, glorious face, A hora da estrela, Êxodus, Estamira.

Resumé

Dans cet article on étudie des images de la pauvreté que figurent dans la littérature autant que
dans autres langages , sous un rapport comparatif et desconstructeur du regard du prejugé ou
de la pitié. On a s´appuié sur les concepts d ´extase (par Bataille) et de la Face glorieuse (par
Arthur Omar). Les objets sont A hora da estrela / L´Heure de l´étoile (Clarice Lispector), des
photos du project Êxodus (Sebastião Salgado) et le docummentaire Estamira (Marcos Prado).

Ana Cristina de Rezende Chiara (Ana Chiara)


Ana Cristina de Rezende Chiara, (Ana Chiara) é doutora em Letras pela PUC-Rio e
professora adjunta de Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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(UERJ) desde 1995. Dedica-se à pesquisa nos seguintes temas: corpo, sexualidade, memória.
Interessa-se, no momento, por imagens que apresentem a emergência da transitoriedade das
formas ou de formas corporais inéditas e, sobretudo, as possibilidades de a linguagem da arte
enunciar essas formas no conjunto das transformações culturais contemporâneas. É autora
dos livros Pedro Nava: um homem no limiar (EDUERJ, 2001) e Ensaios de Possessão
(Irrespiráveis) (Caetés, 2006), e do inédito Teoria em Transe. Participa do GT ANPOLL de
Literatura Comparada e Coordena o GPESq Corpo & Experiência.
(http://gpcorpoexperiencia.blogspot.com/).

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