Pucviva 30
Pucviva 30
Pucviva 30
No momento em que decidimos enfrentar esse tema, o impacto da ação policial nos
morros do Rio de Janeiro repercutia como incêndio, o Brasil se preparava para as
festividades dos Jogos Panamericanos e a estátua do Cristo Redentor era eleita uma das
maravilhas do mundo. De lá para cá, os acontecimentos confirmaram que o incêndio é
gigantesco. Os bombeiros se mostraram impotentes. Ganhou força a tese de que fogo se
apaga com fogo. Por outro lado, bombeiros e incendiários comungam a possibilidade de,
unidos, fazer retroceder o fogaréu. O plano consiste em aumentar a repressão ao crime e
desenvolver programas sociais.
A face social desse programa vem no sentido de dizer: temos consciência de que só a
repressão policial não resolve a criminalidade. O nível elevado da tragédia atingiu a
classe média e transbordou em crise política. A essência do plano reflete o pensamento
social de camadas da classe média e de setores da política burguesa de que, se é preciso
guerra nas favelas, que se faça guerra.
O país está regido por uma política de guerra do Estado. Os fatos indicam que a regra é
matar a qualquer preço. Mas, os jovens mortos – muitos por execução – não são o crime
organizado. São arrastados à criminalidade pela burguesia narcotraficante – esta, sim, é
crime organizado -, que permanece impune, movimentando bilhões de dólares por meio
de bancos e negócios “lícitos”. E tem ramificação nos governos, parlamentos, judiciários
e corpo policial.
A tragédia está em que parte de nossa juventude pobre vem sendo dizimada. A fração
burguesa narcotraficante continua enriquecendo. A burguesia em geral se apropria de
parte desse enriquecimento. A classe média vê nos favelados seus perigosos inimigos.
Brutal contradição. Reflete a desintegração do sistema econômico e social.
É necessário combater a inversão da verdade e sua versão ideológica. A violência urbana
é produzida e praticada pela burguesia e seu Estado. O tráfico e o contrabando fazem
parte do mercado e das relações de propriedade. O desemprego e a miséria empurram
contingentes de jovens para os negócios da fração burguesa narcotraficante. Alta
concentração de riqueza e luxuosa vida burguesa; disseminada miséria e carência de tudo.
Essa realidade divide e enlaça minoria e maioria.
A favela é a parte mais visível do rosto da pobreza e da miséria. Não por acaso, a
população favelada, na cidade de São Paulo, em quatro anos, teve um acréscimo de 700
mil pessoas, chegando a 2 milhões. Segundo as autoridades, para reduzir a violência, é
preciso, no estado mais rico da federação, atingir uma meta de 300 presos por 100 mil
habitantes. Por esse critério, o interior está sendo coalhado de penitenciárias.
O Brasil tem cerca de 420 mil detentos, e os governantes calculam que são necessários
mais duzentos e cinqüenta presídios. 20% dos homicídios em São Paulo e Rio de Janeiro
são praticados pela polícia, uma das taxas mais altas do mundo. As mortes por
assassinato, no país, aproximam-se de 50 mil por ano. No Rio de Janeiro, a cada 100 mil
habitantes, 45 são assassinados; em Recife, 70; Vitória, 78,3. Em São Paulo, as chacinas
marcam o cotidiano das favelas e bairros pobres.
Este número da Revista PUCViva está dedicado à tarefa de elevar a consciência sobre a
gravidade da violência urbana e a necessidade de vê-la como produto da decomposição
social do capitalismo.
Violência urbana
A Revista PUCviva, neste número, trata da Violência Urbana, que se manifesta de forma
diferenciada nos vários âmbitos da vida social, por nós retratados por intermédio das
múltiplas violências: de classe, de gênero, de etnia, geracional, que ocorrem no trabalho,
nas ruas, nos bairros, na família, nas escolas, no esporte, nas instituições e que se
originam das formas de exploração econômica, dominação política e opressão social. As
violências que se (re)produzem na vida cotidiana são ancoradas nos aparatos repressivos,
coercitivos e ideológicos para manter a violência do capital. Inegavelmente, há um solo
sócio-histórico comum da Violência Urbana contido nas expressões da Questão Social,
apreendidas como o conjunto das desigualdades, resultantes da contradição entre capital e
trabalho, a qual é agravada pelo aprofundamento destrutivo do capitalismo
contemporâneo, no século XXI, de internacionalização e financeirização da economia na
ordem burguesa consolidada.
A lógica destrutiva do capital que recai sobre os trabalhadores e seus filhos é agravada
pela cultura da chamada pós-modernidade, que imprime o irracionalismo, o presentismo,
o efêmero, o fugaz, o preconceito, o racismo, a xenofobia, a intolerância e o
individualismo, que violentam e degeneram substancialmente as relações de sociabilidade
humana. O ciclo da violência constitui-se um dos elementos intrínsecos da degradação
humana e social dos nossos dias: a alienação se espraia, e a ausência de um projeto
classista é saudada pelos apologetas da ordem. O tecido social encontra-se esgarçado em
um processo de degeneração das instituições burguesas, num período de decadência
ideológica e de regressão histórica face à ofensiva do grande capital sobre a classe
trabalhadora.
A realidade social, aqui trazida pelas mãos de muitas autoras(es), nos remete a muitas e
diversificadas indagações, dúvidas, inquietações, reflexões políticas, acadêmicas,
teóricas, metodológicas, éticas, investigativas e organizativas. Todas elas, porém, em uma
mesma direção: no sentido de um posicionamento firme para o enfrentamento coletivo da
barbárie social em que estamos mergulhados. O trabalho, a política, a cultura, a arte, a
educação, as profissões e os partidos classistas podem se espraiar como práxis em uma
possibilidade e necessidade históricas permanentemente presentes na direção da
conquista de padrões civilizatórios fundantes para a conquista da história humana.
No ano de 2005, a ONU, em sua primeira avaliação completa sobre os direitos das
crianças e dos adolescentes no Brasil, fez duras críticas à situação existente, e assinalou
que, tendo aderido à Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, em 1990, e
estando obrigado a apresentar relatórios a cada cinco anos, o Brasil só enviou o primeiro
informe em 2003, o que revela a pouca importância atribuída aos direitos da infância e da
adolescência e às violências contra elas. Um dado muito preciso revela um aspecto grave
dessas violências: em 2004, a Pastoral do Menor constatou que, de 1.304 jovens cariocas
atendidos no Plano de Capacitação Profissional em 2003, 90% não tinha sequer a certidão
de nascimento (Jornal do Brasil, 6/5/04).
Tais situações de violência, que agridem a dignidade humana e impedem a paz social,
trazendo prejuízos de várias naturezas às vítimas diretas e indiretas, ativas e passivas, das
práticas violentas, serão gradativamente diminuídas e começarão a desaparecer no
momento em que se levar a sério a Constituição brasileira e os direitos e
responsabilidades que ela consagra. Com efeito, no artigo 1o da Constituição estão
expressamente consignados os fundamentos da República; entre eles, estão a dignidade
da pessoa humana e a cidadania. No preâmbulo da Carta Magna brasileira, ficou
estabelecido que o objetivo da Constituinte foi instituir um Estado Democrático de
Direito, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais. No artigo 23,
foram enumeradas as competências comuns da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios, indicando-se ações específicas que todos estão obrigados a desenvolver,
entre as quais, como dispõe o inciso X, está a obrigação de “combater as causas da
pobreza e os fatores de marginalização, promover a integração social dos setores
desfavorecidos”. A falta de iniciativas visando a esses objetivos configura omissão de
dever constitucional e dá fundamento para que o Ministério Público promova a
responsabilidade dos respectivos chefes do Executivo.
É importante lembrar que, segundo a Constituição, a efetivação dos direitos deverá ser
feita com a colaboração da sociedade, o que é coerente com a solidariedade natural que
decorre da própria natureza associativa dos seres humanos, sendo certo que todas as
riquezas em mãos de qualquer pessoa são o produto do trabalho de muitos. Tudo isso dá
fundamento para a criação de tributos e fundos especiais visando a tal objetivo. Mas, a
iniciativa privada poderá e deverá, espontaneamente, dar sua contribuição. Assim, por
exemplo, os bancos, que têm lucros fabulosos, poderiam destinar 0,1% desses lucros para
fundos de promoção humana e desenvolvimento social. O interesse é de toda a sociedade,
pois a garantia do respeito à dignidade humana e de efetiva integração na sociedade
beneficiará a todos, pois levará à eliminação das injustiças, permitirá o gozo tranqüilo das
riquezas e de todos os bens que a sociedade proporciona e, numa síntese, a conquista da
paz. O que se tem visto, porém, pelo noticiário dos jornais, é que, em lugar de assumir
sua responsabilidade e de agir com solidariedade, as camadas privilegiadas da sociedade
brasileira só pensam em termos de repressão e de punição. Bem ilustrativo disso é o fato
de que, de tempos em tempos, volta a ser proposta e defendida por meio da grande
imprensa a redução da idade de responsabilidade penal dos brasileiros, pela crença,
absolutamente equivocada, de que colocando na cadeira os adolescentes envolvidos em
práticas que a lei define como crime, estará resolvido, pelo menor custo, o problema da
violência praticada por menores ou com sua participação. Para que se perceba o
equívoco, é oportuna uma reflexão sobre essa proposta.
Sempre que um ato violento contra a pessoa humana é praticado por criança ou
adolescente com idade inferior a dezoito anos, há uma investida daqueles que pretendem
dar às crianças e adolescentes que praticam tais atos o mesmo tratamento dispensado a
um criminoso adulto. Ressurge, então, a proposta de redução da idade de
responsabilidade penal, havendo quem proponha dezesseis e até catorze anos como a
idade a partir da qual todos sejam igualmente tratados como criminosos.
Essas propostas revelam uma reação emocional de pessoas que, por medo ou indignação,
pensam na repressão como uma espécie de vingança ou como forma de intimidação, para
reduzir a criminalidade. Mas, também participam dessas propostas muitas pessoas que,
por se sentirem mais fortes, pensam imediatamente na prática de uma violência
legalizada como forma de sujeitar e imobilizar o mais fraco. Na realidade, as violências
praticadas por menores de idade que mais aparecem envolvem, quase sempre, crianças ou
adolescentes pobres, que dificilmente poderiam se defender num processo judicial.
Começando por este último aspecto, é por todos sabido, por força de ampla e constante
divulgação feita pelos meios de comunicação de massa, que os presídios brasileiros, salvo
raríssimas exceções, estão superlotados, e não oferecem condições mínimas para que o
preso receba apoio psicológico, educação para a convivência e treinamento para o
exercício de uma profissão. Além disso, é de conhecimento geral que, por todas essas
circunstâncias, os presídios, mantendo pessoas amontoadas e sofrendo muitas espécies de
violência física, psíquica e moral, promovem a desumanização do preso, além de
oferecerem as melhores condições para a troca de experiências entre criminosos e para a
formação de quadrilhas.
A par disso, é preciso deixar claro que não é verdadeira a afirmação, feita freqüentemente
com grande leviandade, de que o menor de dezoito anos pode cometer qualquer violência
e continuar agindo livremente, recebendo ainda proteção especial para continuar
praticando atos anti-sociais. Bastará uma simples leitura do que dispõe o Estatuto da
Criança e do Adolescente, lei número 8069, de 13 de julho de 1990, especialmente nos
artigos 112 e 121, para verificar que a lei brasileira prevê a imposição de uma série de
medidas sócio-educativas aos menores infratores, estabelecendo espécies diferentes de
medidas segundo as circunstâncias de cada caso e considerando que, sempre que
possível, o infrator deverá sofrer a imposição da medida tendo a vigilância e
acompanhamento de pessoal especializado, sendo mantido em ambiente familiar.
Essa discussão retorna ao cenário público na freqüência com que algum delito grave é
cometido ou atribuído a algum adolescente. Os crimes que chamam a atenção e são
espetacularizados pela mídia envolvem, em sua maioria, estratos sociais diferentes: os
pobres (agressores) e os ricos (vítimas). No primeiro semestre de 2007, o assunto
retornou à mídia e o Congresso Nacional se mobilizou intensamente na discussão do
assunto com vistas à tramitação do projeto de lei de redução da idade penal, após o
trágico assassinato do menino João Helio, no Rio de Janeiro. A mobilização durou até a
crise da presidência do Senado, do setor aéreo e retornará quando[2]...
Subjetivar a causa dos problemas sociais faz com que as dificuldades sociais (relações
sociais destrutivas, estruturas contraditórias) sejam projetadas em um ou mais grupos de
pessoas. Os pesquisadores do tema têm a obrigação política e ética de esclarecer os
cidadãos de que a construção de um bode expiatório não dará conta de obter aquilo que
todos desejamos: a paz pública.
É deste modo que o indivíduo entra no mundo dos adultos, da cultura. Isso recoloca a
importância de bons modelos de aprendizagem social, de socialização, para as crianças e
adolescentes: em casa, na escola, na rua, nos meios de comunicação. Ou seja, o modo
como a criança e o adolescente pensam, sentem e se comportam revela seu entorno
social, os valores e padrões de conduta que circulam em seu meio social. :Hoje, o seu
meio social é o mundo. Então, outro equívoco é culpabilizar exclusivamente a família ou
outro grupo de pertencimento do adolescente por sua conduta.
Outro aspecto relevante a ser abordado diz respeito aos casos criminais de repercussão
nacional, devido à dramaticidade dos que são citados para justificar a mudança da lei.
Quantos são, no Brasil, os casos de adolescentes autores de ato infracional, com perfil
agravado, como se refere o Conanda?[14] É razoável mudar a lei a partir de alguns casos?
Quantos? Não temos dados quantitativos de levantamentos ou pesquisas que esclareçam
sobre isto. Portanto, não temos também dados sobre a possível articulação (sempre
tentada) entre quadros agravados de sofrimento mental e a prática de atos infracionais (as
psicopatias), o que acaba por demonstrar que a discussão sobre a redução da idade penal
é um embate entre mentalidades.
Contudo, sabemos que, se os adolescentes forem para o sistema penitenciário neste
período de extrema plasticidade de suas vidas (a formação da identidade), sairão de lá
com novos compromissos com a criminalidade. Então, podemos antecipar que haverá um
desperdício de vidas.
Essa consideração não minimiza a gravidade do delito praticado por alguns adolescentes
(quantos?), porque, como diz Boris Fausto, “não é possível reduzir a prática de crimes
exclusivamente a fatores sociais”. O crime constitui a humanidade de todos nós, ensinava
Freud, e a emergência e a atuação deste aspecto destrutivo de nossa constituição psíquica
depende de inúmeros fatores biográficos e das oportunidades (sociais, educacionais,
culturais) que temos ao longo da vida para transformá-la em potência produtiva - as
experiências de resiliência. Neste sentido, é fundamental responsabilizar os adolescentes
de acordo com a gravidade do delito, suas circunstâncias (como preconiza o ECA), e
garantir condições humanizadoras no cumprimento da medida – condições que lhe
permitam outro presente e outro futuro na sua relação com o outro, com o mundo e
consigo mesmo.
Para defender a não redução da idade penal, precisamos de convicções éticas, clareza e
vontade política para construir uma sociedade mais amorosa, além de competência
técnica e garantias de orçamento. Isto se sustenta em uma compreensão do fenômeno
para além das nossas emoções e em argumentos pautados pela lógica do desafio, não pela
lógica do fracasso no trato com o presente e com o futuro destes adolescentes.
Nesse sentido, como formadores das novas gerações, é necessário que sejamos potentes
para construir mentalidades - um processo histórico, para além do tempo da biografia
pessoal – que se revela em aspectos aparentemente insignificantes, como, por exemplo,
deixar de chamar o adolescente autor de ato infracional de menor (uma outra categoria de
gente) e passar a chamá-lo de adolescente, porque ele é, antes de tudo, adolescente, por
mais que o crime que praticou tenha sido bárbaro e dramático. É esta a complexidade
com a qual lidamos e que precisamos compreender.
A referência para esta reflexão é a ética da responsabilidade das gerações mais velhas
para com as novas e futuras gerações, o que exige olhar para além do tempo presente, de
nossos medos e do temor dos demais seres humanos, para além do tempo da nossa
biografia pessoal.
*Este artigo foi, em parte, apresentado como conferência na Jornada de Saúde Mental da
Secretaria Municipal da Saúde, em 23 de maio de 2007, em Belo Horizonte; em
exposição na Comissão de Direitos Humanos do Senado Federal, em 30 de maio de 2007,
em Brasília; e retoma aspectos abordados no artigo “O Futuro do Brasil não merece
cadeia”, publicado na Revista de Serviço Social & Sociedade, nº 77, editora Cortez,
2004.
[5] O estudo detalhado desde a década de 1960 até 2005 está no livro Adolescência-
Violência: desperdício de vidas. São Paulo, Cortez, 2006.
[7] Eric Hobsbawm em A Era dos Extremos – o breve século XX. . São Paulo,
Companhia das Letras, 1995.
[8] Na zona leste de São Paulo, os educadores de um projeto social que atende
adolescentes autores de atos infracionais em medida sócio-educativa de meio aberto
(Liberdade Assistida) contavam, perplexos, que uma criança de seis anos (com a chupeta
na boca) funcionava de “olheiro” de um ponto de droga de um bairro que é considerado
uma “fábrica de infratores”.
[9] O Brasil é o terceiro país do mundo em homicídio de jovens (15 a 24 anos), depois da
Colômbia e Venezuela; na faixa etária de 14 a 16 anos, é onde este índice mais cresceu. É
também o primeiro país do mundo em morte de adolescentes por arma de fogo, dentre os
65 países pesquisados. Dados do Mapa da Violência – os jovens no Brasil, de Julio J.
Waiselfisz, Brasília, 2006
[10] Eric Hobsbawm, em seu livro Era dos Extremos - o breve século XX, afirma que o
efeito mais perverso da desigualdade não é entre os povos e nações, mas se desenvolve
dentro de um mesmo país quando setores da população, em função de sua origem social,
não podem usufruir – no presente e no futuro - dos bens materiais, culturais, espirituais
de que outros setores usufruem; ou seja, sabem que seu destino social está traçado.
[11] Em São Paulo, 1% do total dos homicídios é praticado por adolescentes. Em torno
de 10% dos adolescentes envolvidos com atos infracionais são autores de homicídio.
[12] Ver o relatório OAB/CFP, março de 2006, elaborado a partir de vistoria nas várias
instituições nos diferentes estados do Brasil onde os adolescentes cumprem a medida de
internação; documentos do Ministério Público, depoimentos das mães da Amar
(Associação das mães e adolescentes em risco); a documentação em vídeo que a
primeira-dama do Rio de Janeiro fez em 14 ou15/3/07 das desumanas condições de
insalubridade em duas das trinta e oito unidades destinadas a adolescentes autores de ato
infracional, no Rio de Janeiro.
Em uma conferência célebre, proferida por Max Weber, tratando da política como
vocação profissional (“Politik als Beruf”), a política é apresentada como significando “a
participação no poder ou a luta para influir na distribuição de poder” (Max Weber,
“Ensaios de Sociologia”, 3a. ed., trad. por Waltensir Dutra, rev. téc. Fernando Henrique
Cardoso, Rio de Janeiro, 1974, p. 98). Quanto ao direito, ele tem, indubitavelmente,
relação com o poder, uma relação tão estreita que, muitas vezes, se encontra quem a
reduza às relações de poder, tendo como conseqüência a politização absoluta –
tendencialmente absolutista, autoritária, quando não, totalitária – do direito, que assim é
degradado à condição de uma espécie de disfarce da política, mero instrumento do poder.
Esse modo reducionista de tratar o direito, além de outras manifestações sociais, pode ser
encontrado entre defensores de um marxismo vulgar, que entendemos como uma
deturpação do pensamento original do excepcional conhecedor (também) do direito, até
por sua formação acadêmica, que foi Karl Marx. Ao mesmo tempo, há quem proceda da
maneira inversa, patrocinando uma redução, ainda que metodológica, da política, se não
ao direito, a uma forma jurídica de exercício do poder que é aquela predominante na
modernidade, qual seja, o Estado. Exemplo disso estaria presente nas escolas de
positivismo jurídico normativista, como as kelsenianas, mas também entre sociólogos,
como o apenas referido Max Weber, que completa a definição acima apresentada de
política como envolvendo relações de poder. “seja entre Estados ou entre grupos dentro
de um Estado” (id. ib.). Já no início de seu discurso, Weber anunciará o recorte por ele
adotado, para tratar de um assunto tão vasto, envolvendo a política, ao buscar
compreendê-la como “apenas a liderança, ou a influência sobre a liderança, de uma
associação política, e, daí, hoje, de um Estado” (id., grifos no or., p. 97).
Nesse passo, vale-se de um pronunciamento feito por León Trotski, sobre a força como o
fundamento de todo Estado, para consagrar o uso da força física como o meio empregado
tipicamente pelas associações políticas como tais. O autor passa a se referir a tal força por
uma denominação mais precisa, a de “violência”, sendo a utilização dela por certas
instituições sociais a condição para a existência do Estado, que mesmo não tendo apenas
esse meio para se impor, nem se deva considerá-lo, como em associações políticas
consideradas predecessoras do Estado, a exemplo do clâ, um meio normal, nem por isso
deixa de ser considerado por Weber o meio específico desse Estado,que na modernidade
apresenta ainda relações “especialmente íntimas” com a violência (id., p. 98). Em
seguida, Weber apresenta sua clássica definição do Estado como “uma comunidade
humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força física dentro de
um determinado território” (id. ib., grifos no or.).
De passagem, vale ainda lembrar que, também para o positivismo jurídico normativista
kelseneano, a ordem jurídica, a que se reduzem o direito e o Estado em sociedades
“evoluídas” - as modernas - é concebida como uma “ordem coativa” (Zwangsordnung).
“Coação” é um termo mais brando para referir-se à violência, quando associada com uma
ordem jurídica cuja legitimidade decorreria da legalidade e procedimentos
correspondentes, pelo menos formalmente, sendo este o ângulo que interessaria ao estudo
científico do direito como Kelsen, sabidamente, propugnava que se o empreendesse.
De uma perspectiva filosófica, contudo, podemos – e, a meu ver, devemos – nos ocupar
dessas questões, que não são consideradas aptas a um tratamento científico, de acordo
com o padrão ou paradigma predominante na modernidade, aquele positivista, com base
no qual se desenvolveu uma crença, não assumida como tal, na possibilidade de se atingir
uma verdade definitiva, desde que abdicando de uma certa dimensão dos problemas,
precisamente aquela que mais nos diz respeito, como sujeitos humanos afligidos por tais
questões, sobre o valor e o sentido de nossa existência.
Não é objetivo deste artigo abordar o tema da epistemologia, mas também não o é
considerar sem conexão a filosofia da ciência e a filosofia política, assim como a ética e a
filosofia do direito, como bem demonstram trabalhos de epistemólogos contemporâneos
dos mais acatados, como o já referido Karl Popper, além de Thomas Kuhn, cuja principal
obra, intitulada A Estrutura das Revoluções Científicas, anuncia a conexão entre os
fenômenos políticos e científicos, conexão que foi explorada à saciedade por Paul
Feyerabend, especialmente na sua obra mais conhecida, Contra o Método: Esboço de
uma Teoria Anarquista do Conhecimento.
Há uma modificação a ser feita no próprio modelo de ciência jurídica, para torná-lo
adequado a uma concepção do direito comprometida ética e politicamente com a
sustentação e a promoção da subjetividade humana, nos quadros de uma ideologia que se
mostre compatível com sua diversidade e pluralismos, aquela que é aberta e se reconhece
provisória, inacabada, um processo em desenvolvimento: a democracia. É o que venho
procurando desenvolver, especialmente em obras recentes, como Teoria Processual da
Constituição (São Paulo, 2000, 2a. ed., 2002) e Teoria da Ciência Jurídica (São Paulo,
2001).
Cumpre manter, nos limites deste texto, a atenção à temática que ora nos ocupa. Para
isso, retornemos ainda uma vez a Max Weber, ao texto que vínhamos trabalhando. Após
a apresentação dos tipos de legitimação do poder, tidos como justificações internas para a
obediência e sujeição aos que o exercem, essa obediência se diz “determinada pelos
motivos bastante fortes do medo e esperança – medo da vingança dos poderes mágicos do
detentor do poder, esperança de recompensa neste mundo ou no outro – e, além de tudo
isso, pelos mais variados interesses” (ob. loc. ult. cit.). Nesse ponto, defrontamo-nos com
a justificação para o respeito ao direito e ao Estado que foi dada por autores fundadores
do pensamento político moderno, utilitarista e positivista, como Maquiavele Hobbes.
Ocorre que, com tais argumentos, meramente fáticos, não justificamos, sequer
explicamos, satisfatoriamente, por quê haveríamos de nos submeter à violência
organizada juridicamente, e com exclusividade, pelo simples fato de ser a violência
proveniente do Estado, sem a ela nos contrapormos, preterindo-o em favor de alguma
outra forma de associação e identificação, ainda que muito menor e menos poderosa, mas
que melhor nos contemplasse em relação a nossos interesses e esperanças, até para vencer
o medo, inclusive do próprio Estado. Realmente, o que presenciamos no momento é a
ubiqüidade da violência, em todos os planos e espaços de convivência, desde a família,
passando pela comunidade em que se mora, desde as menores até as grandes cidades,
para atingir a escala planetária, onde atuam Estados e organizações para-estatais que não
se limitam a exercer a violência em determinado território. Eis o tema urgente a ser
enfrentado, mais do que qualquer outro, na interseção entre filosofia política e jurídica,
para que uma regulamentação possível da nossa estada nessa vida como humanos, ou
seja, uma verdadeira “oikonomia” (de oikos, “casa”, e nomia, “regramento”).
Entendamos, primeiro, como se situa a violência, em face do poder e do direito, para em
seguida situá-la, assim como o poder e o direito, em face do ser em que os três encontram
seu fundamento, considerando que sequer existiriam, propriamente, se este ser não
existisse: o ser que somos, os humanos.
É assim que o direito pode ser atraído – e traído - pela força, negativa, malévola, desse
meio e instrumento por excelência do poder que é a violência, materializada em corpos
legislativos e de funcionários a serviço de uma legislação, desde os mais altos, agindo ou
omitindo-se de maneira a autorizar a violência, até aqueles que praticam concretamente
os atos de violência, como as corporações policiais. O “espírito das leis”, contudo, é a
justiça, esse elemento sutil que anima o direito, para torná-lo propriamente correto,
podendo se manifestar em situações concretas, desde que saibamos como partejá-la,
repartindo adequada e proporcionalmente com os envolvidos o que naquele momento e
desde antes lhes seja devido, em respeito à sua dignidade e igualdade de sujeitos às dores
e sofrimentos dos que se sabem finitos no infinito insabido.
O direito, então, entre o real da violência, que é atual, e o ideal da justiça, que é eterno,
seria a possibilidade, junto ao poder, o potencial de suprimir cada vez mais a violência,
nas relações humanas, para torná-las, propriamente, em relações proporcionais entre seres
dotados de humanidade, “com-paixão” uns pelos outros e por outros seres, que mesmo
sem serem humanos, nos emocionam e afetam, quando nos mostram tudo o que não
somos e que nos ultrapassa, existindo também.
O que me parece urgente é que se reconheça o quanto o direito e o poder que por seu
intermédio é exercido vêm gerando violência, nessa sociedade a um só tempo
extremamente produtiva e destrutiva, em escala planetária, que se formou no ocidente, na
modernidade, espalhando-se por todo o mundo. E isso não apenas por ser a condição
mesma de seu funcionamento, para dizer ainda uma vez com Max Weber, o “processo de
expropriação política” (ib., p. 103), que resultou na profissionalização dos que se
dedicam ao acúmulo de poder, tal como os que justificam a própria existência pelo
acúmulo indefinido de riqueza, dispensando-se de qualquer sacrifício, à diferença do que
ocorre em qualquer outro tipo de sociedade, aquelas que a modernidade só reconhece
como formas inacabadas dela mesma, em estágios primitivos de seu próprio
desenvolvimento, um desenvolvimento que, ao contrário do que se pensava – e a maioria
ainda parece pensar, se é que ainda pensa -, cada vez se nos apresenta como tendo por
etapa final a destruição, ao invés da redenção, da humanidade e, talvez, de tudo o mais
que compõe esse planeta singular em que nos encontramos.
Esse poder, em todas as sociedades de que se tem notícia, com exceção daquelas surgidas
na modernidade, é um poder que se ampara em uma força superior, a “justiça divina”, de
que nos fala Walter Benjamin no final de seu ensaio primoroso “Sobre a Crítica da
Violência” (e do Poder! – Gewalt), e não na força inferior, que é a violência mesma.
René Girard, em “A Violência e o Sagrado” (1972), sustenta a tese de que só o sacrifício
de alguém, o “bode expiatório”, pode catalisar a violência de todos contra todos, gerada
pelo desejo mimético que acomete o ser humano, desejando o desejo do outro, por não
saber por quê e o que deseja. Esses “bodes expiatórios”, em nossas sociedades modernas,
por serem modernas e racionais, contrárias à magia e aos mitos, se apresentam na forma
dos excluídos/incluídos dessas sociedades, ou seja, os que se acham internos e internados,
em domicílios, reformatórios, asilos, delegacias, prisões, hospitais e também naquela
instituição paradigmática dessas todas, segundo Giorgio Agamben (em Homo Sacer,
1995), que é o campo de concentração, para refugiados ou prisioneiros em geral, de status
indefinido.
Continuamos afirmando e confirmando para nós mesmos o que seria a nossa
superioridade, por nos mantermos a salvo dessa condição de mortos-vivos – até irmos
parar em uma instituição dessas, às quais ninguém está realmente imune (afinal, somos
todos iguais) -, sem esquecer que podemos também, a qualquer momento, ser atacados
por algum dos que lá estiveram ou para lá, por isso, terminarão indo. Tais instituições
nada mais fazem do que, ao tentar dissimular, revelar o nosso encarceramento na prisão
simbólica de nossos medos ancestrais, instigados cotidianamente pelos meios de
comunicação de massa, tornando assim mais presente do que real a violência em sua
forma extrema, que seria aquela dita urbana – como se urbanidade e violência fossem
noções compatíveis.
Francisco Fonseca
Prof. de Ciência Política da FGV-SP
Analisar o que se chama de violência e segurança pública implica adotar uma visão
necessariamente holística, isto é, incorporar diversas variáveis que, associadas, as tornam
em pontos de culminância de um conjunto de fatores econômicos e sociais, e políticos,
institucionais e organizacionais[2]. Observemos algumas das variáveis que compõem
esse quadro, que vão desde os aspectos objetivos até os simbólicos, associados à
complexidade da estrutura econômico-social, à forma como o Estado (em várias
dimensões) age e à dinâmica das políticas públicas, entre outros aspectos.
CONSTRANGIMENTOS E POTENCIALIDADES
DO ESTADO BRASILEIRO
Uma dessas dimensões diz respeito aos frágeis mecanismos de “controles sociais
democráticos” (questão fundamental a todas as esferas da vida brasileira). Controlar
democraticamente, por meio de regras, procedimentos e fóruns, todos aqueles que detêm
o poder – no caso do aparato policial e militar, o poder é de matar – é mais um dos
constrangimentos e desafios que compõem a visão holística da questão da
violência/segurança.
O CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO
COMO INDUTOR DA VIOLÊNCIA
Reitere-se que a demissão, em razão de seu caráter persecutório aos que ousaram
dissentir, assemelha-se fortemente ao assassinato político, ao banimento, à exclusão dos
que incomodam. É curioso e patético observar, nesse sentido, que muitos dos que, por
meios variados, inscreveram os nomes de professores nas listas de demissão, os que
“justificaram” tais demissões, ou então se calaram perante elas (o silêncio é, muitas
vezes, mais revelador do que as palavras), dizem-se defensores do “Estado de Direito
Democrático”, da postura “republicana”, das “instituições democráticas”, da sociedade
regulada por “procedimentos racionais”, do “convívio das diferenças”, da “liberdade”.
Atuaram de forma facínora, da mesma forma que o coronel Erasmo Dias, de tão triste
lembrança, que em 1977 (como se sabe) invadiu as dependências da PUC, e prendeu
centenas de estudantes. São formas de violência semelhantes, embora efetuada por meios
diferentes. Aliás, tornou-se patético a PUC exibir o documentário da invasão de 1977,
quando dá guarida a novos erasmos dias e pratica atos semelhantes intramuros! Afinal,
torturar, prender e matar (caso da ditadura militar pós-1964), de um lado, e de outro,
tornar-se temido, exercer toda forma de pressão psicológica ao estilo “sou amigo do rei”,
e ter o poder de demitir (ou inscrever nomes de colegas em listas para tanto), como o foi
o caso de diversos grupos dominantes na PUC-SP, formam uma linha contínua. É lógico
supor que esses mesmos “democratas autoritários”[7] possam levar aos “paredões” seus
adversários – dado que transformados em inimigos –, caso chegassem ao poder do Estado
numa eventual ditadura (que, esperemos, nunca mais ocorra). O fato simbólico
fundamental aqui diz respeito justamente a comportamentos análogos em situações
diversas.
Essas considerações são cruciais para que compreendamos que violência e segurança não
são temas distintos ou distantes de nosso cotidiano. Mesmo na Universidade, que se quer
um espaço privilegiado, devemos refletir sobre as formas simbólicas, mas muito reais e
tangíveis, de violência[8]. O que implica repensar o próprio sentido de segurança, pois
não é possível haver compromissos com valores democráticos na sociedade quando se
pratica internamente toda forma de violência!
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dados todos esses aspectos, variáveis e dimensões da questão da violência e da segurança
pública, notadamente no Brasil, algumas conclusões são possíveis, e podem ser assim
expressas: a) deve-se ressaltar a importância da distribuição de renda (diminuição das
desigualdades gritantes, justiça social, base social mais igualitária como colchão para a
democracia, democracia social), e b) do Estado de Direito Democrático (participação da
sociedade organizada, controles sociais, transparência, controle das autoridades,
legalidade) para a segurança pública. Com isso, o sentimento de pertencer à
“comunidade” poderá se fazer, o que se expressa por meio da maior igualdade social e da
legitimidade das instituições. De certo modo, a democracia social corresponde à
democracia política, isto é, uma sociedade extremamente desigual vê refletida essa
desigualdade nas instituições, o que faz da democracia algo muito frágil e tênue. Afinal,
entre a fome e o voto, parte significativa dos brasileiros, se um dia chamada a opinar, não
terá dúvidas.
Os múltiplos desafios significam jamais oferecer tal dilema à sociedade, mas sim
articular – de maneira holística – igualdade social à democracia, sociedade ao Estado,
legalidade à legitimidade, e perspectiva de vida aos pobres no interior do capitalismo
periférico (com o objetivo de desenvolvê-lo). Especificamente quanto às políticas
públicas de segurança pública, o grande desafio é olhá-las de forma contextualizada e
compreendê-las como articuladas às estruturas capitalistas e do Estado e da sociedade no
Brasil, em suas múltiplas dimensões. Só assim poderemos avançar de forma crítica,
eficaz e democrática a uma sociedade menos desigual, menos violenta e menos insegura.
Por fim, a questão da violência simbólica, infelizmente tão bem sintetizada pela PUC-SP
no episódio das demissões em 2006, alerta para a entronização de uma sociedade violenta
no cotidiano acadêmico, com o agravante de pretender analisar a sociedade com olhos
distantes. Trata-se de uma armadilha que se deve evitar!
[1] Este artigo reflete duas pesquisas que respectivamente coordenei e participei,
juntamente com Izidoro Blikstein, Ruben Keinert, Fabio Storino, Hironobu Sano e
Luciano Bueno, todos da FGV-SP, junto à Secretaria Nacional de Segurança Pública
(Senasp), em 2005. Ambas serão publicadas, em 2007, nos Cadernos de Gestão Pública e
Cidadania da FGV/SP, com os seguintes títulos: “O Sistema Nacional de Armas (Sinarm)
como Sistema de Gerenciamento do Estoque Legal de Armas no Brasil:
Uma Contribuição às Políticas Públicas” e “Armas de Fogo no Brasil: Uma Investigação
sobre seus Valores e Significados”.
[2] Não abordaremos causas psicológicas, tendo em vista o objetivo deste texto voltar-se
à análise de estruturas sociais, econômicas e políticas.
[3] As análises de Victor Nunes Leal, em “Coronelismo, Enxada e Voto”, Sônia Draibe,
em “Rumos e Metamorfoses”, e de Francisco Weffort, em “O Populismo na Política
Brasileira”, contribuem para essa análise.
[4] Cf. FONSECA, Francisco. O Consenso Forjado.
[5] Deve-se mencionar o papel da mídia como agente de poder que, por vezes, promove
simbolicamente a violência. Seus órgãos normalmente são empresas privadas que,
contudo, atuam como intermediadoras da esfera pública. Como se voltam ao público de
classe média – leitor de jornais no Brasil –, expressam seus interesses, e também os do
Capital, o que implica atuar de forma enviesada. No caso específico da segurança
pública, não abordam o papel da extrema desigualdade social como fonte da violência,
assim como a histórica cooptação do Estado pelas elites. Dessa forma, a mídia de modo
geral contribuiu fortemente para a desqualificação das temáticas vinculadas aos Direitos
Humanos, que nada mais são que a expressão do Estado de Direito Democrático. Além
disso, não contribuiu com a redemocratização no que diz respeito ao conflito entre
Capital e Trabalho, pois via de regra propugnou pela criminalização dos sindicatos que
fizessem greves, assim como dos movimentos populares e sociais. De toda forma, a
mídia, em tese, faz parte da sociedade, embora atue como poder paralelo ao definir
agendas e formar opiniões. Trata-se de um poder brutal, que também pode contribuir para
a democratização, embora não seja essa a experiência da mídia no Brasil. O fato de o
controle social sobre a mídia, que é essencial à democratização dos meios de
comunicação, não ter vingado no Brasil é uma amostra de seu poder sobre a sociedade e
sobre o Estado, diferentemente da experiência de outros países.
[6] Ver meu artigo sobre minha demissão no número 26 da Revista PUC (abril a junho de
2006), intitulado “Veto, demissão e barbárie”. Esta edição é dedicada integralmente à
análise da “crise da PUC”.
[7] Título de um livro de João Almino sobre os constituintes de 1946 que proclamavam a
democracia e agiam autoritariamente. Cf. ALMINO, João. Os Democratas Autoritários.
São Paulo, Brasiliense, 1980.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BITTNER, E. The functions of the police in modern society. Chevy Chase, National
Institute of Mental Health, 1970.
ZALUAR, A. Violência e crime. In: Miceli, S. (org.). O que ler na ciência social
brasileira (1970-1995). São Paulo: Anpocs: Sumaré, 1999.
Francisco Fonseca
Prof. de Ciência Política da FGV-SP. Foi professor, durante dez anos, do Departamento
de Política da PUC-SP..
A violência racial no Brasil
Dojival Vieira
Jornalista, Editor de Afropress - Agência Afro-Étnica de Notícias
Ambos morrem cedo, muito cedo, com vantagem para o guerrilheiro vietcong. Enquanto
um combatente no Vietnã, enfrentando a maior potência militar do planeta, tinha uma
expectativa média de vida de oito anos, o jovem negro do Capão Redondo não deve
esperar viver mais do que cinco, a partir do momento em que passa a pertencer aos
quadros dos soldados do tráfico.
Nascer negro, no Brasil, como se vê, não significa apenas ser candidato a viver nos piores
indicadores de carência e pobreza, ganhar cerca de 54% menos, não freqüentar escolas
públicas de qualidade e estar condenado a condições subalternas. Significa,
principalmente: morrer mais cedo.
A violência urbana, contudo, tem se encarregado de encurtar ainda mais a precária vida
dos jovens pobres – na sua imensa maioria, negros.
O curioso é que esse quadro não se altera, ano após ano. Aparece quase todos os dias na
mídia, em estudos acadêmicos, nos indicadores sócio-econômicos e no Mapa da
Desigualdade Racial, produzido pelo PNUD. Sua repetição, de tão freqüente, tornou-se
monótona. É como uma aberração que, por alguma razão, naturalizou-se. Passou a ser um
dado que não provoca mais espanto, nem perplexidade nas pessoas.
A violência dos baixos salários e das condições de vida sub-humanas (de acordo com
Estudo do IPEA, 63% da população que vive abaixo da linha de pobreza é negra, e o
mesmo ocorre com a condição racial dos 70% que vivem abaixo da linha de indigência)
se soma a um outro tipo de violência, não menos perversa, nem menos cruel: a violência
do Estado.
GENOCÍDIO
Estudos recentes divulgados pela ONU, no ano passado, atestam que 70% dos jovens
com idade entre 15 e 24 anos, vítimas de homicídio no Brasil, são jovens negros, o que
caracteriza uma espécie de genocídio que, do mesmo modo, vem se naturalizando, ano
após ano. Isso não provoca mais reação de indignação da sociedade civil organizada, nem
das organizações de direitos humanos.
É chocante como pessoas bem informadas, que desenvolveram uma notável sensibilidade
para determinadas questões, perderam a capacidade de se indignar com dados como
esses. Não é muito diferente o que acontece com a indiferença em face da morte de
dezenas de crianças indígenas por desnutrição – ou seja, fome – nos últimos dois anos.
É como se crianças morrerem de fome não fosse tão grave por serem crianças indígenas,
eis a que ponto chega essa espécie de embotamento social. As mesmas pessoas que
sentem repulsa e ânsia de vômito pelo assassinato do menino João Hélio, de uma família
de classe média, no Rio, por delinqüentes juvenis, que o arrastaram depois de o garoto
ficar preso ao cinto de segurança, não conseguissem reagir à tragédia de crianças de um
ou dois anos morrerem por falta de comida – o mais recente capítulo do genocídio de 507
anos, responsável pela redução das populações indígenas de 6,5 milhões, no século XVI,
para apenas pouco mais de 700 mil, neste século.
Sob esse aspecto, entretanto, não há nenhum acordo quanto ao fato de que a desigualdade
racial e de gênero por aqui são os dois elementos estruturantes da desigualdade social
brasileira, obscena mesmo para os nossos padrões.
Antes que alguém tire conclusões apressadas, é bom esclarecer: não estamos falando dos
grotões atrasados, onde as relações de produção não chegaram ao padrão capitalista.
Estamos falando do Brasil mais desenvolvido e industrializado. Tome-se, por exemplo, a
região do ABC paulista.
Nos últimos trinta anos, essa região, com ênfase em São Bernardo do Campo, esteve no
centro dos acontecimentos políticos, econômicos e sociais do país. Pode parecer
redundante lembrar, mas trata-se da região-berço do novo sindicalismo que se espalhou
pelo país, berço da CUT e do PT – o partido político hoje no Governo Federal, e que teve
um papel fundamental na luta pelo fim da ditadura e pela redemocratização do país.
Vejamos quais são os indicadores sócio-econômicos e raciais dessa cidade, que tem,
segundo o Censo do IBGE de 2000, em estudo do Observatório Afro-Brasileiro,
coordenado pelo Professor Marcelo Paixão, da UFJR, 695.719 mil habitantes, dos quais
194.358, isto é, 27%, são afro-descendentes – pretos e pardos, de acordo com o critério
do IBGE.
Mas, não é só em termos de ganho salarial que o homem negro perde. A professora
Nadya Guimarães, da USP, em estudo recente, chegou a uma conclusão interessante a
respeito das desigualdades de natureza racial na região de onde saíram as principais
lideranças sindicais do país, inclusive o próprio Presidente da República. Um homem
negro, de acordo com o estudo, tem um tempo médio de permanência no emprego de 50
semanas, enquanto que, para um homem branco, esse tempo chega a 70 semanas.
A tradução dos dados não exige grande esforço: o negro é o último a ser admitido e o
primeiro a ser alcançado nos cortes de pessoal que as empresas realizam com a
periodicidade costumeira.
Mas, as desvantagens não ficam por aí: em São Bernardo do Campo, a taxa de
analfabetismo da população negra maior de 15 anos de idade chega a 8%; a taxa da
população branca é 3%; a taxa de analfabetismo funcional da população negra chega a
20%, e a da população branca, a 11%. Embora represente 27% da população, sua
participação na composição racial da população analfabeta funcional e analfabeta maior
de 15 anos chega a 41% e 47%, respectivamente.
Nas demais cidades da região, a situação se repete de forma quase tediosa: em todas, o
dado comum em todos os indicadores é a desvantagem dos negros. Por que será que isso
acontece em uma cidade e numa região que, ainda hoje – apesar da conhecida evasão de
muitas empresas –, é o coração industrial do Brasil?
Segundo Guerreiro, “a ideologia racista inculcada nas pessoas e nas instituições leva à
reprodução, na sucessão das gerações e ao longo do ciclo da vida individual, do
confinamento dos negros aos escalões inferiores da estrutura social, por intermédio de
discriminação de ordens distintas, explícitas, veladas ou institucionais, que são
acumuladas em desvantagens”. Trata-se da naturalização das posições de invisibilidade e
de subalternidade reservadas à população afrodescendente. A institucionalização da
violência racial, portanto, há séculos.
O ETERNO SUSPEITO
Uma amostragem aleatória de 2.250 pessoas, com idades entre 15 e 65 anos, revelou o
que não é segredo para ninguém: a ocorrência de revista corporal também varia
sensivelmente conforme idade, gênero, cor e classe das pessoas abordadas.
É muito nítido que a polícia não só suspeita menos de pessoas brancas, mais velhas e de
classe média que transitam pelas ruas da cidade, como tem maior “pudor” em revistá-las
– procedimento fortemente associado à existência de suspeição, e via de regra,
considerado humilhante.
A pesquisa revela que os auto-declarados pretos foram revistados em proporção
significativamente maior do que os auto-declarados brancos – 55% contra 32,6%, relatam
as professoras Silvia Ramos e Leonarda Musumeci, em Elemento Suspeito, livro sobre a
abordagem policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro, editado pela Civilização
Brasileira.
Desnecessário acrescentar que o que vale para o Rio vale para São Paulo e para todos os
demais grandes centros do país – Brasília, Recife, Salvador etc. –, onde a combinação de
pobreza e raça constituem a senha para a morte.
SAINDO DO GUETO
Mas, se os indicadores são tão óbvios, monótonos até, de tão repetitivos, por que a
sociedade não reage? Melhor dizendo: por que os setores organizados da classe média –
inclusive aqueles que se declaram de esquerda – não reagem?
Afinal, é a mesma classe média capaz de sair às ruas em passeatas pela paz, quando um
dos seus é atingido pela violência. A repercussão na mídia é imediata, e a comoção,
instantânea. Entretanto, considera muito natural – quase um dado da realidade – quando
jovens negros são alvos da chacina que acontece do outro lado da rua.
Na prática, há um divórcio entre a pobreza negra e a classe média branca – mesmo a que
tem tendências progressistas -, o qual é mantido pelo mito e pela mentira da democracia
racial, que representa uma espécie de senha para o silêncio geral diante da violência do
racismo e da discriminação apontada nos indicadores.
O muro do apartheid é invisível, mas está lá. Não há dúvida quanto à sua eficácia para
neutralizar a reação organizada dos setores da sociedade capazes de paralisar o ciclo de
violência. É como se houvesse um pacto silencioso baseado no princípio de que “se não
são dos nossos, não nos diz respeito”. O matar e o morrer passam a ser um
desdobramento da própria vida e da violência em que vive, ou melhor, tenta sobreviver a
parcela da população negra, que é alvo.
Foi um negócio privado, sim, mas mantido, sustentado e avalizado pelo Estado por meio
de Leis, como as Leis da Terra (1850), do Ventre Livre (1871), Sexagenário (1885) e
Áurea (1888). Essa última foi o derradeiro ato de uma série de normas jurídicas adotadas
para satisfazer as pressões inglesas – ou seja, as chamadas “leis para inglês ver”.
Não por acaso, a Abolição no Brasil, sacramentada por intermédio da Lei Áurea e
concretizada quando a maioria da população negra escravizada já havia se evadido para
os quilombos, não representou a inclusão de nenhum negro aos direitos básicos da
cidadania; como escola, trabalho e moradia, dentre outros.
A resistência do Estado brasileiro, ainda hoje, quase 120 anos depois da abolição do
regime de trabalho escravo, em assumir suas responsabilidades por reparações, até
mesmo com ações afirmativas e cotas (o Estatuto da Igualdade Racial e o PL 73/99
dormem um sono profundo nas gavetas do Congresso) é o indicador mais evidente de que
a opção das elites dominantes continua a mesma: desejam seguir praticando a violência
seletiva, que tem pobres e negros como alvos preferenciais.
Do mesmo modo que a pobreza, para os brancos, não é algo aleatório, mas sim produzido
com a lógica e a racionalidade próprias do modo de produção capitalista, para a
população negra, tampouco o é, pois é fruto da desvantagem que carrega pelos 350 anos
de escravismo e mais 120 anos de uma modalidade de racismo que é, possivelmente, a
pior existente no mundo: o racismo camuflado e hipócrita que jamais ousa dizer seu
nome no Brasil.
Ou seja: os negros são pobres porque são negros, uma vez que carregam a desvantagem
histórica de terem tido seus antepassados escravizados durante séculos.
Sem essa compreensão, será mantida a ideologia da democracia racial, que camufla e
mascara (como é, aliás, o papel de qualquer ideologia), e que seguirá fazendo vítimas: as
mesmas de sempre.
Dojival Vieira
Jornalista, Editor de Afropress - Agência Afro-Étnica de Notícias; presidente da ONG
ABC SEM RACISMO; Membro da Comissão do movimento Brasil Afirmativo..
Anarco-abolicionismo penal
Acácio Augusto
Pesquisador do Nu-Sol
Este artigo apresenta brevemente a história das lutas anarquistas contra as prisões,
associada às práticas do abolicionismo penal e seus efeitos no Brasil. Desta maneira,
busca apontar não só para a possibilidade da abolição da prisão para jovens, mas,
também, para uma vida apartada das respostas punitivas a uma situação conflituosa. Com
efeito, aparta-se das atuais soluções que se dizem contrárias ao encarceramento, mas que
funcionam como restauradoras da prática punitiva, combinando controles eletrônicos a
céu aberto com internação.
Libertários
Willian Godwin afirmou, com vigorosa coragem, no final do século XVIII, que a questão
da punição talvez fosse a mais fundamental da ciência política[3]. Com esta afirmação,
iniciou uma tradição mutante, entre libertários que combatem o sistema penal, em
proveito da liberdade do indivíduo em relação ao Direito, ao Estado e à Comunidade.
Essa tradição emerge em meio aos combates anarquistas em torno da prisão e da
instituição do Direito como maneira específica de dominação burguesa, para defesa da
segurança e da continuidade da propriedade privada. Esta crítica encontra-se em
Proudhon[4], no jornal fourrierista La Phalange[5], na imprensa anarquista da segunda
metade do século XIX e nos confrontos dos anarco-terroristas no final do mesmo
século[6].
Os anarquistas, em meio aos seus movimentos de libertação, inventaram práticas que não
só colocavam em questão a continuidade do Estado e da dominação burguesa pelo
Direito fundado na propriedade privada, como também questionavam uma vida baseada
no exercício centralizado da autoridade. Tal prática não se encontra alocada apenas nas
instituições como uma forma específica de dominação, mas também se manifesta na
maneira como cada um lida com o sexo, com a educação de crianças e jovens, com as
relações de produção e com o trabalho. Essa maneira singular de atuar politicamente,
demolindo a autoridade centralizada em suas mais cotidianas manifestações, levou Edson
Passetti a apresentá-la como heterotopias: maneiras de experimentar a utopia, não como
finalidade, mas como experiência do presente[7]. Este deslocamento possibilitou uma
outra maneira de atuação para os libertários. Desvencilha-os de uma obrigatoriedade
histórico-temporal e leva-os para uma atuação histórico-política no espaço, inventando
outras possibilidades de enfretamento da ordem, liberadas da revolução como solução
final.
A histórica luta dos anarquistas encontra eco em uma prática libertária recente que
investe na abolição do sistema penal. Na passagem da década de 1960 para 1970,
emergiu, na Europa, um grupo de estudiosos do Direito conhecidos como abolicionistas
penais. Segundo Passetti, “o abolicionismo penal é uma prática libertária interessada na
ruína da cultura punitiva da vingança, do ressentimento, do julgamento e da prisão.
Problematiza e contesta a lógica e a seletividade sócio-política do sistema penal moderno,
os efeitos da naturalização do castigo, a universalidade do direito penal, e a ineficácia das
prisões [...], e opera fora da órbita da linguagem punitiva e da aplicação geral das penas,
para lidar com a infração como situação-problema, considerando cada caso como
singularidade”[8].
Anarco-abolicionismo penal
Uma associação entre a anarquia como vida apartada do governo, fundada em costumes
que abolem a autoridade centralizada, e o abolicionismo penal como um estilo de vida
que se aparta do julgamento e da punição constitui-se, como sugere Salete Oliveira, em
uma parceria-força[10], que emergiu, no Brasil, a partir da década de 1990, investindo no
fim da prisão para jovens.
O estudo instaurador dessa prática nasceu de uma pesquisa coordenada por Edson
Passetti, realizada entre os anos de 1993 e 1994, e publicada como livro com o nome de
Violentados: crianças, adolescentes e justiça. De maneira corajosa, já nos primeiros anos
de promulgação do E.C.A. (Estatuto da Criança e do Adolescente), explicitou o
redimensionamento do suplício para o interior da família e a violência das instituições
contra crianças e adolescentes ultrapassando internamentos e unidades disciplinares.
Nesse livro, são questionadas as práticas jurídicas direcionadas aos jovens no Brasil, com
seus especialistas e técnicos reprodutores de uma sociabilidade autoritária que cerceava a
liberdade dos jovens, encarados como propriedade da Família, do Estado e da Sociedade.
Assim, torna-se evidente a permanência da mentalidade retrógrada de juízes que
utilizavam o E.C.A. a partir de uma analogia com o Código Penal de 1940, reproduzindo
as medidas dos antigos Códigos de Menores (1927 e 1979) e optando quase sempre pela
medida sócio-educativa de internação, igualando medida sócio-educativa e pena.
Em face da guerra que é a política, este estudo se perguntava: “Por que não a paz?”. Com
a continuidade de uma política penal que reproduzia uma lógica de associação entre
pobreza e violência e uma mentalidade punitiva incapaz de garantir a liberdade e a
integridade física de jovens violentados por pais, avós, tios, padrastos e policiais, enfim,
por todos que, segundo a lei, deveriam zelar por seu pleno desenvolvimento, surgia uma
proposta que privilegiava a leitura do E.C.A. pelo seu viés pedagógico, enfrentando suas
limitações como estatuto jurídico, e introduzindo uma possibilidade conciliatória. Enfim,
surgia “uma proposta que jamais será aceita (a desativação da FEBEM)”, fazendo eco às
propostas abolicionistas, com atenção ao círculo vicioso das reformas penais, e
investindo na possibilidade de não mais internar em “mini-prisões” os jovens envolvidos
em atos infracionais[11].
Mais de dez anos após este estudo, a prisão para jovens no Brasil continua, desdobrada
em controles a céu aberto, regulados pelo Estado e financiados pelas fundações
empresarias. A mudança de nome de FEBEM (Fundação do Bem Estar do Menor) para
CASA (Centro de Atendimento Sócio-Educativo ao Adolescente) apenas confirma o
ciclo vicioso das reformas que garantem a continuidade da prisão para jovens como
campo privilegiado de experiências penais e fabricação de soluções que ecoam em todo o
sistema penal. Neste sentido, recentemente, é inegável que o uso de medidas sócio-
educativas ensinou e preparou a entrada em vigência do regime das penas alternativas.
Se a punição é uma forma de interação social, cujos limites se chamam asilo, manicômio,
orfanato, internato e prisão, a breve exposição das experimentações de anarquistas e
abolicionistas aponta para uma mudança na mentalidade punitiva das pessoas. Como
anunciavam os libertários e já havia mostrado Michel Foucault, em Vigiar e Punir[12], as
reformas penais não passam de maneiras de perpetuar os regimes das penas, que não se
encontram somente nas instituições de confinamento, mas no cotidiano da vida das
crianças, jovens e adultos em circuitos de obediência naturalizada, transcendental ou
cientificamente justificada à hierarquia.
[2] Sobre o funcionamento da Liberdade Assistida (L.A.), ver: Souza Santos, Thiago.
“Liberdade Assistida: uma tolerância intolerável”. In: Verve, n. 9, São Paulo, Nu-Sol,
2006, pp. 115-128.
[3] Godwin, Willian. “Crime e punição”. Tradução de Maria Abramo Caldeira Brant in
Verve, n° 5. São Paulo, Nu-Sol, 2004, pp. 11-84.
[4] Resende, Paulo-Edgar A. e Passetti, Edson (orgs). Proudhon. São Paulo, Ática, 1986.
[5] Foucault, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 2002, pp. 253-254.
[6] Maitron, Jean. “Émilie Henry, o benjamim da anarquia” in Verve, n. 7, São Paulo,
Nu-Sol, 2005, pp. 11-42. Ver também, a respeito dos embates anarquistas, Augusto,
Acácio. “Os anarquistas e as prisões: notícias de embate histórico” in Verve, n. 9, São
Paulo, Nu-Sol, 2006, pp. 129-141; ver ainda “Terrorismo anarquista e a luta contra as
prisões”. In: Passetti, Edson e Oliveira, Salete (orgs) Terrorismos, São Paulo, Educ, 2006,
pp. 139-148.
[7] Passetti, Edson. “Heterotopias anarquistas”. In: Verve, n. 2, São Paulo, Nu-Sol, 2002,
pp. 141-173; e Passetti, Edson. “Vivendo e revirando-se: heteretopias libertárias na
sociedade de controle”. In: Verve, n. 4, São Paulo, Nu-Sol, 2003, pp. 32-55.
[8] Passetti, Edson. “Ensaio sobre um abolicionismo penal” in Verve, n° 9, São Paulo,
Nu-Sol, pp. 83-84.
[9] Ver Passetti, Edson (coord.). Curso livre de abolicionismo penal. São Paulo/Rio de
Janeiro, Nu-Sol/Revan, 2004. & Passetti, Edson (org.). Conversações abolicionistas: uma
crítica do sistema penal e da sociedade punitiva. São Paulo. IBCCrim, 1997.
[11] Passetti, Edson et alli. Violentados: Crianças, adolescentes e justiça. São Paulo,
Imaginário, 1999, pp. 170. Limito-me, aqui, apenas traçar um breve percurso da
emergência dessa associação entre anarquia e abolicionismo penal. Os desdobramentos
dessa prática podem ser acompanhados a partir das pesquisas do Nu-Sol e de suas
publicações, como a Revista Autogestionária Verve, o boletim eletrônico mensal
Hypomnemata e nos comentários semanais em Flecheira Libertária, problematizando a
anarquia e o abolicionismo penal. www.nu-sol.org
[12] Foucault, Michel. Vigiar e punir. Trad.: Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 2002.
Acácio Augusto
Pesquisador do Nu-Sol; Mestrando no programa de Estudos Pós-Graduados em Ciâncias
Sociais da PUC-SP; bolsista CNPq, Integrante do Centro de Cultura Social de São Paulo
(CCS-SP).
Vida e morte nas ruas de São Paulo
Este artigo refere-se à análise realizada a partir de minha experiência de trabalho nas ruas
do centro da cidade de São Paulo, nos anos de 2005 e 2006, como redutora de danos
relacionados ao uso e abuso de substâncias psicoativas1 (SPAs) e assistente social na
organização não governamental Centro de Convivência É de Lei.
Neste início do século XXI, é quase impossível conceber a vida fora das cidades, ou ao
menos, sem ter a referência da vida urbana. O urbano constitui-se em espaço de
admiração, produção social de riqueza e apropriação desigual, fruição social e coletiva, e
diferenciações que se imbricam com a questão material.
Como um reflexo condensado e síntese do que acontece nas periferias e por toda cidade,
no centro, todo dia se cruzam dois milhões de pessoas: trabalhadores do comércio, de
empresas públicas e privadas, em serviço público, bancários, profissionais liberais, do
sexo (homens, mulheres e travestis), camelôs, catadores de papel e papelão, catadores de
latinhas, engraxates, caixeiros-viajantes, artesãos, feirantes, panfleteiros, “homens-placa“,
crianças trabalhando; moradores de edifícios clássicos e simples, moradores em cortiços,
pensões, hotéis e ruas; turistas nacionais e estrangeiros, transeuntes em circulação, em
divertimento e a passeio; empresários, banqueiros, comerciantes; representantes dos
poderes executivo, legislativo e judiciário; estudantes; religiosos em pregação;
manifestantes em protestos e reivindicações; músicos, malabaristas, estátuas humanas,
cuspidores de fogo; boêmios e botequeiros…
Não há, na cidade, região mais rica em aparelhos culturais, de saúde ou educação. O
centro da cidade de São Paulo aparece cheio de luz, de lojas de videogames e fliperamas,
serviços, comidas, fácil locomoção, em que o corpo sensório se inebria pelos estímulos
visuais de cores irreais num mundo do prazer e do imaginário.
A rua como espaço público apresenta relações de consumo, de lazer, de afetos, de
violência, de uso, abuso e comércio das drogas. A faixa etária da população que está
vivendo a sociabilidade das ruas mediada pelo uso e abuso de substâncias psicoativas está
na larga faixa dos sete aos vinte e um anos.
Nas ruas, a criança mantém uma rotatividade cruel. O sumiço de meninos é recorrente,
desaparece um e outro logo o repõe: parecem bonecas que estavam com defeito. Jogadas
no lixo, em poucos dias são repostas por outras, prontas a inalar a fumaça industrial.
Cabe ressaltar que toda a população em situação de rua está sujeita à violência policial,
ao preconceito, à discriminação, ao estigma fortemente presente em uma sociedade de
classes, de exploração e opressão social. Essa situação é fortemente agudizada na
existência de novas gerações que nascem e crescem nas ruas desprovidas das condições
básicas de vida, em uma situação de barbárie social.
A “Operação Limpa” comandada pela Policia Militar e pela Guarda Civil Metropolitana
resultou em repressão a centenas de pessoas: humilhação, espancamentos, prisões,
violência física e moral, apreensão e destruição dos insumos de prevenção que as pessoas
que usam e abusam das SPAs recebem dos redutores de danos e o fechamento de hotéis.
Uma das práticas dispensadas aos moradores de rua pela prefeitura de São Paulo para
fazer a “limpeza” de locais como o vale do Anhangabaú e a Praça da Sé é utilizar
caminhões-pipa, jogando água, durante a noite, naqueles que dormem na região, para
expulsá-los[3].
A Investida Conservadora
Pode-se observar, sobretudo, os fortes vínculos da Viva o Centro com o PSDB/PFL nos
governos estadual (Geraldo Alckimin, Cláudio Lembo e José Serra) e municipal (José
Serra e Gilberto Kassab). Esta relação de interesses entre o Viva o Centro, o Executivo e
parte do Legislativo é de suma importância para a concretização de leis, esforços da
polícia e efetividade de objetivos que somente são possíveis com a ação do poder
público. A criação do Pró-Centro, pela pressão do Viva o Centro, impulsionou a
“Operação Limpa”.
“O que tem que acontecer no centro aqui em São Paulo, na minha opinião, é faxina, é
limpeza, depois sim para vir algum construtor, que tenha o maior interesse em construir
aqui uma grande torre, um grande prédio, um grande shopping no Centro, mas como é
que a gente vai trazer o nosso convidado para cá, se a gente tem vergonha de trazer um
convidado dentro do nosso escritório? Eu tenho vergonha! (palmas) É prostituição,
senhor secretário! (…)” (Frúgoli Jr. 2000:93).
Um orçamento um pouco maior, para a execução dessa política pública, foi destinado em
algumas experiências implementadas por governos democráticos e populares. Veio
acompanhado de pressão e mobilização dos movimentos sociais que lutaram por
orçamento e implementação de políticas sociais públicas. Destaca-se, porém, que a partir
do avanço da gestão neoliberal na esfera do Estado, há uma drástica diminuição de
recursos orçamentários voltados às políticas sociais universais, e há uma ampliação de
programas sociais compensatórios.
As pessoas que usam drogas psicoativas são consideradas, em grande parte, de forma
extremamente preconceituosa e estigmatizada, em que a moral conservadora orienta-se
por uma conduta sócio-cultural repressora, punitiva e de culpabilização.
O despreparo policial para lidar com a população em situação de rua e das pessoas que
usam e abusam de SPAs se manifesta por uma polícia truculenta. Torna-se premente uma
vigilância social e coletiva no sentido de denunciar e combater as arbitrariedades e
abusos de poder.
A chacina dos moradores de rua ocorrida em 2004 e a ação de “limpeza” da população
com esguichos de caminhão pipa, em maio e julho de 2007, evidencia claramente esta
prática, tornando explícito o papel do Estado de legitimador da desigualdade e de
controle social.
“Violação do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da
Constituição Federal): Atuação repressiva do poder público, que deveria garantir a
segurança e as condições essenciais de sobrevivência da população vulnerável”.
Violação do direito à cidade sustentável (art. 2o, inciso I, do Estatuto da Cidade, Lei
Federal n. 10.257): Negação do direito à terra urbana, à moradia, ao transporte e aos
serviços públicos, ao trabalho e ao lazer previsto, bem como do acesso a programas e
projetos de inclusão social e habitacional.
Concluindo
As ações autoritárias, policialescas, repressoras e punitivas agravam o quadro de
complexidade da população que vive em situação de rua e dos indivíduos que usam e
abusam das drogas psicoativas. Estas ações aprofundam o preconceito, os estigmas, a
intolerância, a intransigência, a discriminação, o racismo e a opressão de classe e etnia.
2 A Cracolândia é o espaço público urbano formado pelo quadrilátero das ruas Mauá,
General Couto de Magalhães e avenidas Duque de Caxias, Cásper Libero, Ipiranga e Rio
Branco onde vive uma população estigmatizada por sua condição de ter a rua como único
meio de sobrevivência e moradia e por fazer uso de drogas psicoativas
3 Outra medida adotada na região central foi a instalação de uma “rampa mendigo” sob
um viaduto, no cruzamento da Avenida Paulista com a Avenida Doutor Arnaldo. A
ocorrência de assaltos na área, em instantes de engavetamento de trânsito, foi o
argumento usado pelo subprefeito Matarazzo em 22 de setembro de 2005.
Referências Bibliográficas
BRITES, Cristina Maria. Uso de droga injetável e redes de interação social - Prazer e
cuidados com a saúde, é possível? Dissertação de Mestrado. São Paulo: PUC/SP, 1999.
RODRIGUES, Thiago. Narcotráfico, uma guerra na guerra. São Paulo: Desatino, 2003.
ROSA, Cleisa Moreno M. e outros. População de Rua: quem é, como vive, como é vista.
São Paulo: Hucitec, 1992.
Site consultados:
http://dossie.centrovivo.org/Main/CapituloVIIParte2
http://www.midiaindependente.org
http://www.comciencia.br/comciencia/?section=8&edicao=25&id=284
Wagner Hosokawa
Assistente Social formado pela PUC-SP
Apresentação e análise
Conhecendo o sistema carcerário apenas pelo olhar da mídia, muitas vezes não
observamos os rostos ou identidades dessas pessoas que perdem nomes e naturalidades,
entre outros pertences da sua individualidade. O que é apresentado nos programas de
linha policial a partir da lógica “mocinho e bandido” esconde a realidade presente na
diária reprodução da ideologia dominante que limita as relações sociais, na sociedade
capitalista contemporânea, e torna a população carcerária em meros casos que “infringem
a ordem estabelecida pela legislação penal vigente”.
A criminalização da questão social não deve ser apontada apenas como uma manifestação
pura e simples do individuo, mas como resultante dos aspectos sócio-econômicos,
políticos e culturais pelos quais se apresenta. A própria reorientação do capitalismo na
década de 1990, que aumenta sua acumulação via reestruturação produtiva, gera
mudanças no processo de desenvolvimento industrial no Brasil, deslocando inclusive
suas prioridades para o mercado financeiro, com métodos de produção cada vez mais
dinâmicos, rápidos e quantitativos. Esses fatores reduzem significativamente os postos de
trabalho, e sao elementos do período neoliberal em nosso país.
Isso se aplica ao modelo de Estado Mínimo adotado pelos governos desde o fim da
década de 1980, num projeto que combina a desaceleração do desenvolvimento produtivo
e o fortalecimento do mercado de capitais como política econômica na América Latina,
inclusive no Brasil. Essa opção impôs uma idéia de que a melhor distribuição de renda
acontece como conseqüência natural do crescimento econômico, da estabilidade
monetária e do equilíbrio financeiro.
Passada mais de uma década, esse modelo não se mostrou eficaz, e mais uma vez ocorreu
o seu inverso: aumento de desempregados na última década, queda de poder aquisitivo e
renda e aumento dos crimes voltados contra o patrimônio.
Partimos dos mesmos pressupostos que direcionam o trabalho realizado pelo Instituto
Terra Trabalho e Cidadania (ITTC)[1], que coordenou, de 1999 a 2001, uma pesquisa
minuciosa para conhecer a população carcerária da penitenciaria Mário de Moura
Albuquerque (P1, na cidade de Franco da Rocha-SP)[2].
Nosso objetivo aqui é construir um desenho das identidades dos presos para conhecê-los,
individualmente e coletivamente, nas relações sociais existentes antes do delito e no dia-
a-dia do cumprimento da pena. Nossa interrogação também diz respeito ao modo de
estabelecer as relações com estas informações e criar possibilidades no processo de
ressocialização dos presos.
A pesquisa, apesar da importância e riqueza dos seus dados, ainda não foi totalmente
analisada ou organizada de forma completa, pois alguns elementos novos são atualizados
pelo tempo, pelas mudanças na legislação, pelas penas já cumpridas ou deslocamento dos
presos para outras unidades penitenciárias. Também é preciso considerar uma margem de
diferença em alguns dados, devido à negativa ou desconhecimento do preso a respeito da
questão apresentada pelo entrevistador. Assim, algumas análises não dizem respeito ao
universo total pesquisado, mas esse cuidado foi adotado, para que não se generalize
aquilo que se mostrou parcialmente na visão dos entrevistados.
Uma das primeiras categorias que destacamos é sobre o trabalho. 270 dos entrevistados
citaram pelo menos uma categoria de trabalho no item “profissão”, contra 54 que não
responderam por não terem clareza sobre seu ofício, antes de cometerem o crime. Isto
significa que apenas 16% não declararam ter exercido uma profissão ou trabalho.
Sobre a idade dos condenados, a ausência de perspectiva entre os jovens está refletindo
inclusive no seu ingresso nos crimes comuns, seja o furto, seja o roubo, e no universo da
nossa pesquisa, temos 153 jovens de 18 a 25 anos já condenados. É a faixa etária de
maior concentração, são 47% de jovens alijados do convívio social. Portanto, a maioria é
de trabalhadores e jovens.
Também é relevante o número de presos que tiveram passagem pelo sistema FEBEM
(Fundação do “Bem-Estar” do “Menor”)”[4]. Cerca de 60 entrevistados responderam
positivamente quando perguntamos se o preso em questão já esteve interno num sistema
ou participou de outras medidas sócio-educativas[5].
Deixamos claro que não apresentamos uma opinião de intervenção “moral”, como se
apresentam nos instrumentos da ideologia dominante[6] que querem imputar sobre a
população carcerária a responsabilidade única pelo crime, como se houvesse divisão entre
“bons ou maus”, desconsiderando as diferenças de classe, de oportunidade e de inserção
social existentes em nossa sociedade.
Os crimes contra o patrimônio[8] representam apenas 26%, em 1943, dos motivos totais
de condenações. Em meados de 1985 quase 58%. Se considerarmos nossa pesquisa,
realizada em 1999-2001, dos 327 pesquisados, 199 foram condenados por roubo, outros
22 por furto, 47 por tráfico, e apenas 18 por “matar alguém”.
Nos relatos dados pelos pesquisados no item “causa do delito”, em que se perguntava
“por que realizou tal atividade criminosa”, temos 106 respostas abertas que afirmam que
cometeram crime de furto e roubo em função de “desemprego”, “necessidade financeira”,
“ajudar a família” e “melhorar as condições de vida”.
Na mesma matéria, há apontamentos sobre que tipo de relação o Estado vem fazendo
sobre a questão da segurança e criminalidade. ”(...) o Estado usa o enorme número de
capturados para sustentar o sucesso da ação policial e frisar uma falta de relação direta
entre o melhor policiamento e a queda da criminalidade. Mas a quantidade de presos,
dizem os estudiosos de segurança, não necessariamente reflete eficiência da força
estatal”.
Como conseqüências disso, há uma inserção cada vez maior de presos e presas
cumprindo pena em condições questionáveis, segundo informações inclusive de
organizações de defesa dos direitos humanos, e constantes crises no interior do sistema
penitenciário.
A partir daqui, apresentamos uma análise dos dados da pesquisa para que nos leve a
entender o cotidiano dos presos.
No item “situação carcerária”, a questão sobre “quais cursos gostariam que fossem
oferecidos na Penitenciária” recebeu as seguintes resposta: 139 indicações em cursos de
informática, 109 de elétrica, 88 de enfermagem, 125 de desenho mecânico e 61 de outros.
Destacamos a iniciativa do preso para qualificar-se, atualizar-se ou formar-se em algum
curso técnico que possibilite apreender mais conhecimento durante o cumprimento da
pena e que lhe possibilite algum trabalho no cárcere ou quando do seu regresso à
sociedade.
Sobre as atividades realizadas pelos presos, foi perguntado: “quais atividades culturais e
educacionais que participa”. Temos 160 respostas para “atividades religiosas”, seguidas
de 130 para “festas” e 79 para “palestras”, ou seja, esses mesmos presos participam de
algum tipo de ocupação do próprio tempo, dedicando-se a alguma atividade, mesmo que
tenha valor subjetivo, como no caso da religiosa. Porém, as ofertas são ínfimas, restritas
em diversidade e qualidade[12].
A identidade e o perfil do grupo de presos da P1 ganha mais uma característica: eles são
jovens, trabalhadores e se sentem pertencentes a uma família. É uma informação
importante para podermos traçar ações e políticas públicas para a sociedade e para o
público no sistema penitenciário.
Sobre a comunicabilidade com o “mundo exterior”, temos, nas respostas sobre as visitas,
220 entrevistados que afirmaram receber algum tipo de visitante, acrescidos de outros 50
detentos, que declararam receber visitas esporádicas. Ainda sobre as visitas, na categoria
“recebe visita de quem”, são citados desde “familiares” genericamente, e,
especificamente, citados com maior freqüência, “pai, mãe, filho(a), esposa e irmã”,
seguidos de primos(as), tias(os), namorada, avô e avó. Sobre o “recebimento de
correspondência”, cerca de 260 recebem cartas de pessoas, familiares ou amigos(as).
Vale destacar a presença marcante de presos da cidade de São Paulo, em torno de 137(na
sua maioria da zona leste, norte e sul – nesta ordem), e de cidades da grande São Paulo,
como Guarulhos, o grande ABCD, Osasco, Santa Isabel e Suzano, entre outras. Algumas
cidades do interior são mais citadas, como Campinas e Ribeirão Preto, e ainda
encontramos presos oriundos de cidades como São José do Rio Preto, Teodoro Sampaio,
Registro e Amparo, que somadas, representam 52 dos detentos do interior do estado de
São Paulo.
Na questão “escolaridade”, temos: presos com primário completo são 35, e com primário
incompleto, 100, seguidos de 121 presos com ginasial incompleto e apenas 21 com
ginasial completo. 14 apresentavam ensino médio incompleto, e 4 tinham completado o
ensino médio; 4 tinham ensino superior incompleto, e 2 completaram esse nível de
estudo. Apenas 6 não informaram sua escolaridade, e 20 afirmaram ser analfabetos. A
falta de um programa educacional interno que viabilize ampliar estas faixas de
conhecimento e oportunizar a alfabetização é uma situação a ser considerada.
Outros 118 estão atuando em algum tipo de trabalho, em oficinas de trabalho, atividades
internas da administração, na cozinha ou em atividades externas. Assim, a chamada
“ociosidade” nos presídios é o que impera, não pela recusa do preso, não pela ausência de
qualificação, não pela falta de interesse do preso em aprender o novo, mas pela ausência
de ações constituídas para exercício de trabalho ou desempenho de atividades.
Com relação a outros direitos e garantias, destacamos o item: “há contagem de remição
da pena[14]?”. Temos 200 respostas positivas, porém, quando perguntado: “você
controla?”, há apenas 129 respostas afirmativas. Isso mostra o não acompanhamento do
preso em relação ao seu direito, pela ausência de informações que o auxiliem no
acompanhamento dos seus direitos.
Ainda na questão da saúde, e mais especificamente sobre saúde mental, cabe expor os
resultados do item “saúde mental antes de ser preso”, na questão “você sofreu algum tipo
de agressão?” Temos 119 respostas, que foram divididas e classificadas pelo tipo:
espancamento, 116; violência sexual, 2; e tortura, 31. Os outros tipos de agressão são:
humilhação, 79; ameaça, 61, e extorsão, 28. É importante ressaltar que temos várias
respostas múltiplas por isso supera - e muito - os 119 que responderam afirmativamente.
Esses resultados são seguidos pela pergunta seguinte: “se foi agredido fisicamente, por
quem foi?” Mesmo que haja um grande número de entrevistados que “afirmam” sofrer
algum tipo de agressão por parte de autoridade policial, a pesquisa não se aprofundou
suficientemente nesta questão.
Não há como afirmar quais são as razões ou situações que envolveram a agressão, seus
motivos, porém cabe afirmar que não há amparo legal ou moral que justifique a violência
como procedimento sobre uma população contida, privada da liberdade e que deveria ter
sua integridade física e moral assegurada pelo Estado.
Conclusão
Nem Santos, nem Demônios:
Desmistificando a imagem projetada para a sociedade, reconstruindo rostos.
[1] O ITTC é uma organização não governamental que atua na defesa dos direitos
humanos. E em São Paulo, hoje, tem sua ação, prioritariamente, voltada ao atendimento
de presas estrangeiras, em convênio com Secretaria da Administração Penitenciaria
(SAP), e presas brasileiras em geral, distribuídas pelos “presídios” da capital paulista.
[3] A pesquisa possui nove categorias, sendo: 1) dados gerais; 2) dados processuais; 3)
dados sociais; 4) situação carcerária; 5) trabalho; 6)saúde; 7)saúde mental; 8) saúde
atendimento; 9) hábitos; no item citado os dados “causa do delito” estão contidos nos
dados processuais
[4] O sistema FEBEM citado refere-se à medida de internação e medidas em meio aberto
que compõem o artigo 122, que trata das medidas sócio-educativas (cap. IV, seção VII),
contidas na lei 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
[6] Sobre “as classes sociais e o estado”, V. Lênin, 1917, do livro “O Estado e a
revolução”, cap. I. Nesse capítulo, autor trabalha sobre a literatura marxiana para analisar
como se reproduz, na sociedade capitalista, a diferença entre as classes, e como o Estado,
as forças armadas e inclusive as prisões atuam na forma repressiva do capital para conter
revoltas ou ações contrárias aos objetivos dominantes.
[12] Ressaltamos o que está estabelecido pela Lei de Execuções Penais (LEP), no seu
artigo 41, com referência aos direitos do preso: “V - proporcionalidade na distribuição do
tempo para o trabalho, o descanso e a recreação; VI - exercício das atividades
profissionais, intelectuais, artísticas e desportivas anteriores, desde que compatíveis com
a execução da pena; Vll - assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e
religiosa”.
[14] O condenado que cumpre pena em regime fechado ou semi-aberto pode remir
(abater) pelo trabalho parte do tempo de execução da pena na proporção de um dia de
pena por três horas de trabalho (art. 33 da LEP). V. Manual dos direitos dos presos,
publicado pelo ITTC (Instituto Terra, trabalho e cidadania).
Referências Bibliográficas
OLIVEIRA, Isaura de Mello Castanho; PAVEZ, Graziela Acquaviva, e SCHILLING,
Flávia, Reflexões sobre violência e justiça. São Paulo, Educ, (ANO).
IANNI, O. “A questão social”. In: São Paulo em Perspectiva. São Paulo, Jan/Mar. 1991.
COMPLETAR REFERÊNCIA
Wacquant, Loic, “Porque punir os pobres: uma nova gestão da miséria nos Estados
Unidos” Instituto Carioca de Criminologia – editora Freitas Bastos;
Yazbek, Maria Carmelita, Revista Temporalis – Abepss, ano II, n° 03 jan a jun / 2001 –
“A questão social no capitalismo”, texto Pobreza e exclusão social: expressões da questão
social no Brasil.[GK1]
Wagner Hosokawa
Assistente Social formado pela PUC-SP.
Violência doméstica e familiar
uma demanda a ser enfrentada
Os dados da OMS sobre violência são alarmantes. Uma pesquisa encomendada pela
ONU e realizada por Ongs e universidades brasileiras, desde 2001, com 1.172 mulheres
entre 15 e 49 anos de todas as classes sociais, de São Paulo e Pernambuco, e divulgada
pela Organização Mundial da Saúde, OMS, no final de 2005, mostra um quadro
preocupante em relação à violência de gênero:
27% das paulistas e 34% das pernambucanas já sofreram violência doméstica infligida
por seus maridos;
Destas, 40% em SP e 37% em PE, admitiram ter sofrido pelo menos uma vez
escoriações, cortes, perfurações na pele, ruptura dos tímpanos e queimaduras. Uma em
cada três destas vítimas teve de ser hospitalizada em conseqüência das agressões;
10% das paulistas e 14% das pernambucanas já sofreram violência sexual, ou seja, foram
obrigadas a manter relações sexuais pela força ou por ameaças;
essas mulheres apresentam mais chances de ter problemas de saúde do que as que nunca
sofreram violência, e também são duas vezes mais suscetíveis a cometer suicídio;
entre 8% e 11% sofreram violência física durante a gravidez, sendo que um terço
corresponde a gestantes atingidas na região do abdômen.
em São Paulo, 25% das entrevistadas diz ter enfrentado violência física ou sexual desde
os 15 anos, apontando seus pais e parentes do sexo feminino e masculino como
responsáveis (CRESS, 2006).
Este artigo está angulado em três pontos. No primeiro, ensaiamos uma incursão teórica
em torno do debate teórico e das possíveis mediações presentes na situação da violência
na relação com o poder. No segundo, algumas determinações postas no contexto da
situação da violência doméstica e familiar. No terceiro, algumas considerações sobre a
questão ética e política da estratégia de empoderamento das mulheres. Finalmente, nas
considerações finais, indicamos alguns pontos para reflexão quanto às formas de
enfrentamento dessa questão.
Violência e poder
Segundo essa autora, a ideologia da ordem patriarcal foi forjada para dar cobertura a uma
estrutura de poder pela qual as mulheres se convencem de que a subalternidade é natural.
Uma realização determinada das relações de força tanto em termos de classes sociais
quanto em termos interpessoais. Consideramos haver diferença entre a relação de força e
a de violência (ainda que esta seja uma realização particular daquela). A pura relação de
força visa, em última instância, a aniquilar-se como relação pela destruição de uma das
partes. A violência, pelo contrário, visa manter a relação mantendo as partes presentes
uma para a outra, porém uma delas anulada em sua diferença e submetida à vontade e à
ação da outra. A força deseja a morte ou supressão imediata do outro. A violência deseja
a sujeição consentida ou a supressão mediatizada pela vontade do outro que consente em
ser suprimido pela desigualdade. Assim, a violência perfeita é aquela que obtém a
interiorização da vontade e da ação alheias pela vontade e pela ação dominada, de modo a
fazer com que a perda da autonomia não seja percebida nem reconhecida, mas submersa
numa heteronímia que não se percebe como tal. Em outros termos, a violência perfeita é
aquela que resulta em alienação, identificação da vontade e da ação de alguém com a
vontade e a ação contrária que a dominam (Chauí, 1984: 35).
Chauí considera a violência sob dois outros ângulos além do entendimento de violação ou
transgressão de normas:
Em primeiro lugar, como conversão de uma diferença e de uma assimetria numa relação
hierárquica de desigualdade com fins de dominação, de exploração e de opressão. Isto é,
a conversão dos diferentes em desiguais e a desigualdade em relação entre superior e
inferior. Em segundo lugar, como a ação que trata um ser humano não como sujeito, mas
como coisa. Esta se caracteriza pela inércia, pela passividade e pelo silêncio, de modo
que, quando a atividade e a fala de outrem são impedidas ou anuladas, há violência
(Chauí, 1984: 35).
A revisão desta perspectiva apontou para a incursão teórica nos meandros da situação da
violência, superando o antagonismo reducionista da relação para a dimensão da
complementaridade e contradição. Ou seja, não podemos colocar a mulher passivamente
na situação de violência, pois os dois pólos do poder instalado na situação de violência,
“algoz e vítima”, complementam-se contraditoriamente. De alguma forma, a mulher é
parte constitutiva dessa relação, mesmo que de forma alienada ou subjugada pela força ou
pelo medo.
A questão da cumplicidade pela dependência também é apontada por Cardoso (1984: 18):
Entendemos que o exercício não se esgota neste ponto, pois são várias determinações
presentes na situação de violência que permitem a construção de outras mediações. Nesta
perspectiva, as relações de poder presentes na situação de violência têm de ser analisadas
contemplando os meandros invisíveis do imaginário social, da moralidade, da
sexualidade e do discurso internalizado nos níveis da concepção de mundo, das relações
sociais e da identidade do homem e da mulher.
A maior parte das situações de violência tem lugar em relações afetivas. Pela sua
excelência, o espaço privado media as relações de violência, materializadas na divisão
sexual do trabalho e subjetivamente asseguradas pela referência simbólica do lugar da
mulher na família. Pela ordem patriarcal de gênero, cabe à mulher a preservação da
família e dos vínculos afetivos, incluindo-se nestes os vínculos conjugais. Assim, em
nome da indissolubilidade da família e da relação conjugal, tudo deve ser tolerado e
preservado no campo da privacidade do lar. Por essas regras, “roupa suja se lava em
casa”, “em briga de marido e mulher não se mete a colher” etc. Esse tipo de imaginário
concorre para a resistência da mulher para tornar pública a violência que sofre, calada,
muitas vezes reposta no dia-a-dia por motivos banais, na nobre tarefa de preservar a
unidade familiar.
Segundo Cardoso (1985:18):
Ao prescrever para a mulher um papel passivo e submisso, a sociedade cria espaço para o
exercício da imposição. A socialização tradicional impõe às mulheres que abdiquem de
certas profissões, desejos, prazeres e que fiquem confinadas a certos ambientes. Isso,
porém, não é entendido como violência, embora seja uma violência institucionalizada. A
denúncia e a consciência desse tipo de violência só foi possível porque já existe uma
prática contrária, ou seja, já se abriu espaço para a discordância, uma vez que o que era o
reino privado de cada um passou a ser público e transformado em questão política.
Revela-se o lado não-manifesto (reprimido) das situações cotidianas”. [2]
A nucleação da família em torno das relações entre marido e mulher, e entre pais e filhos,
produto da forma de organização social a partir do mundo do trabalho, favoreceu a
potencialização das emoções e as manifestações afetivas no espaço do privado. A família
contemporânea ganhou status de agente de proteção social, passando a ter uma
importância cada vez maior na socialização e proteção dos seus membros. Como espaço
da intimidade, a família ficou responsável pela produção e reposição dos afetos,
aparentemente não disponíveis no mundo perverso e cruel do trabalho.
A família nuclear burguesa caracteriza-se por um conjunto de valores, que são o amor
entre os cônjuges, a maternidade, o cultivo da mãe como um ser especial e do pai como
responsável pelo bem-estar e educação dos filhos, a presença do amor pelas crianças e a
compreensão delas como seres em formação e necessitados, nas suas dificuldade de
crescimento, de amor e de compreensão dos pais. Seria ainda próprio dessa situação o
distanciamento cada vez maior da família em relação à sociedade circundante,
circunscrevendo-se, dessa maneira, uma área doméstica privada em oposição à área
pública; esta última é sentida pela família como sendo cada vez mais hostil e estranha, e
não digna de confiança.
No debate acerca da sexualidade, Chauí (1984 e 1991) levanta uma das contradições
presentes: em um momento em que se abriram as possibilidades para as fantasias e a
erotização das relações sociais, cada vez mais a repressão sexual é exercida às avessas, ou
seja, pela reificação da sexualidade. Desse aspecto, Chauí deriva a indagação se podemos
falar em violência apenas sobre as mulheres. Mais ainda, levanta que a mídia tem
veiculado mulheres indiretamente violentas, particularmente com outras mulheres, pois,
quando incrementam uma imagem de “fêmea desejável que a maioria das mulheres não
pode realizar (seja porque fisicamente não correspondem à imagem criada, seja porque
economicamente não dispõem de recursos e tempo para se fabricarem naquele padrão,
seja, enfim, porque seus desejos não se satisfazem através dessa imagem), estas correm o
risco da rejeição por parte de seus parceiros, sentindo-se indesejáveis, repugnantes e
desagradáveis” (Chauí, 1984: 59).
Podemos continuar instigando o debate na busca de outras mediações por onde a situação
da violência doméstica se objetiva. Sabemos que não esgotamos todas. No entanto, resta
uma questão: como podemos enfrentar essa questão no campo da ética e da política no
exercício profissional?
Nos projetos coletivos de empoderamento das mulheres, a direção somente pode ser
política: “trata-se mesmo da necessidade de um salto de qualidade para por as mulheres
no mesmo patamar que os homens, não esquecendo, porém, de humanizar os homens”
(Saffioti, 2004: 117), pois “trocar homens por mulheres no comando daria, com toda a
certeza, numa outra hierarquia, mas sempre uma hierarquia geradora de desigualdades”
(Saffioti, 2004: 94)
Para Heller (1992: 197), essa questão do empoderamento das mulheres também tem um
sentido, uma direção:
Nós, mulheres, temos de elaborar formas de expressão nas quais se manifeste a
igualdade, a paridade, afim de podermos - através dessa nossa prática - participar em uma
luta comum.
A não dominação e a não opressão devem estar, portanto, no horizonte ético de qualquer
forma de luta ou resistência. Não podemos nos esquecer que os homens, na questão da
violência doméstica, também são oprimidos e dominados.
Formas de enfrentamento
Nos limites deste artigo, na perspectiva de apontar caminhos indicativos para ações
programáticas, finalizamos indicando alguns pontos para reflexão.
A luta contra qualquer forma de violência deve ser pautada na perspectiva da luta pelos
direitos e uma relação igualitária entre os sexos.
Informar e esclarecer acerca dos direitos no tocante à proteção das pessoas envolvidas.
BIBLIOGRAFIA
_____ Repressão sexual. Essa nossa (des)conhecida. São Paulo: Brasiliense, 1991.
D’INCAO, Maria Ângela (org). Amor e família no Brasil. São Paulo: Contexto, 1989.
HELLER, Agnes. “O futuro das relações entre os sexos”. In: Encontros com a
Civilização Brasileira. V. 26. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
[1] A “violência familiar envolve membros de uma mesma família extensa ou nuclear,
levando-se em conta a consangüinidade e a afinidade” (Saffioti, 2004:71). Pode ocorrer
no interior do domicílio ou fora dele. A violência intrafamiliar extrapola os limites do
domicílio. A “violência doméstica apresenta pontos de sobreposição com a familiar.
Atinge, porém, também pessoas que, não pertencendo à família, vivem, parcial ou
integralmente, no domicílio do agressor, como é o caso de agregadas (os) e empregadas
(os) domésticas”. (Saffioti, 2004:71)