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dossiê: comunicação e catástrofe volume 14 número 02

Figuras solenes, fatos causados

Narrativas de vida e morte no fotojornalismo

Figuras solenes, eventos qualificados

Narrativas de vida e morte no fotojornalismo

Paulo Bernardo Vaz1

Angie Biond2

Resumo

O propósito deste texto é contestar o caráter de excepcionalidade que parece atrelado às raízes da
figuração de vítimas de catástrofes para compreender sua posição como parte de um contexto ético-
político mais amplo, que empreende as narrativas contemporâneas do fotojornalismo, pautado em uma
concepção de vida e morte considerados. Aqui, o corpo assume um ponto de inflexão importante no
momento em que promove uma espécie de cesura entre fato e identidade. Exemplos do jornalismo nos
servem de base para esta discussão.

Palavras-chave

Corpo; Catástrofe; Fotojornalismo; Identidade; Visibilidade

Abstrato

Este artigo se propõe a contestar o caráter de excepcionalidade que parece estar relacionado às raízes
das figurações das vítimas de desastres para compreender sua real posição como parte de um contexto
ético e político mais amplo, que empreende narrativas do fotojornalismo contemporâneo a partir de uma
concepção de vida e a morte qualificada. O corpo leva um

1
ProfessordoProgramadePós- seguidosemComunicaçãoSocialFAFICH– UFMG.PesquisadordoCNPq
2
DoutorandadoProgramadePós- casadoemComunicaçãoSocialFAFICH– UFMG.BolsistaCapes

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ponto de viragem importante quando promove uma espécie de costura entre os acontecimentos e a
identidade. Alguns exemplos do fotojornalismo servem de base para discussão.

Palavras-chave

Corpo; catástrofe; fotojornalismo; identidade; visibilidade

O fotojornalismo, a cada dia, nos traz as porções do mundo e de seus acontecimentos.

Produzem e fazem circulares pequenas narrativas entrelaçadas gravadas por um tempo e espaço já

pactuados em uma espécie de “imagem-síntese” dos fatos, especialmente, aqueles aplicados ao

sofrimento humano. Funcionam, por vezes, como rastros de uma “enorme massa documental

que constitui, através dos tempos, a memória incessantemente crescente de todos os machos do

mundo.” (FOUCAULT, 2003, 211). São vidas infinitas abatidas por eventos infelizes,

mazelas e sortilégios de todo tipo que vão constituindo as tragédias cotidianas e parecem

consolidar, através do fotojornalismo, uma galeria de sofredores. Tão efêmeros quanto

intensos, seus personagens irrompem em páginas dos jornais, revistas, no jornalismo

televisivo e na internet, legitimados pelas lentes de profissionais, agências de notícias ou

mesmo por colaborações de amadores, participantes e sobreviventes dos diversos eventos.

Resguardadas as especificidades de cada narrativa, de cada meio, de modo geral, vimos

que seus personagens condensam a força expressiva dos eventos em seus corpos e,

simultaneamente, inscrevem discursos que tanto potencializam quanto qualificam seus sofrimentos.

Exprimem um pathos, inscrevem um ethos. À primeira vista, são personagens

que vigoram como figuras de um destino trágico, abatidas por eventos singulares, de caráter

dimensões brutais e amplas, porém, entrelaçadas aos eventos, são também consideradas religiosas em

seus lugares de pertencimento, configuram uma espécie de comunidade de viventes3 dotadas

de certa linguagem e gestual própria.

O propósito deste texto é, portanto, contestar o caráter de excepcionalidade que parece

atrelado às raízes da figuração de vítimas de catástrofes para compreender sua posição como

3
GiorgioAgambencompreendeoserviventeemduplaformação;tantodesignaa zoe, comooaspecto
advindodofatodeviver,masqueéumaproduçãodopoderenãoumdadonatural,comoa bios, aformade
viverprópriadeumgrupooupovoqueculminaemformas-de-vida.Otermoviventeconseguecondensar,
adequadamente,ocaráterambíguoelimítrofedohumano/inumano,investido/despojado, bios/ zoe, que
melhordesignaoestatutoontológicodafiguradeumsofredoremsuazonalimítrofedaexistência,tanto
naturalquantopolítica.VerAGAMBEN,Giorgio.Homosacer.Opodersoberanoeavidanua. Belo Horizonte:
UFMG,2004.

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parte de um contexto ético-político mais amplo, que empreende as narrativas do


fotojornalismo, pautado em uma concepção de vida e morte de religiosos. Buscamos
compreender de que modo tais figurações dos sofredores compõem uma estrutura complexa
dos dispositivos4 de inscrição (e escritura) que engendram e classificam as identidades a
a partir das vitimas como seus personagens. Para isso preciso é reconhecer, de saída, o
fotojornalismo em um estatuto ambíguo de (re)produção dos fatos; integrado à vida e ao
mundo, mas envolvido, concomitantemente, no campo dos relatos, das ficções e histórias que
subjazem e irrigam a própria vida social e cotidiana. O fotojornalismo é tomado como uma
espécie de operação ou exercício de poder5 que engendra uma produção de vida e morte
lutadores, isto é, predicadas, partindo da figura do sofredor, o vivente, como seu principal
ponto de inflexão.
Aqui, o tempo-espaço figurado do evento se entrelaça aos corpos dos personagens,
promovendo uma cesura do sujeito com o próprio evento e, em boa medida, fornecendo um
tipo de perfil identitário. Seu contorno biográfico se expõe através de uma forma onde sua
potência dramática se ritualiza nos gestos e expressões do rosto como uma grafia que tanto
intensifica o fato quanto confere uma identidade, uma posição aquele que sofre. São estes
arranjos figurativos que promovem os vínculos com o olhar e que habitam nossos juízos
tratando de organizar os diferentes eventos em um mesmo quadro de referência,
categorizando sofredores em infelizes (como simples vítimas) e, deste modo, criaram para diluir
a responsabilidade como causa pública6 , como aspecto ético-político, sob o caráter de
excepcionalidade dos eventos.
São dois movimentos que se cruzam na análise; um, que busca refletir sobre o conceito
do sofredor como um vivente, fundamentado na relação estética e política, tal qual proposta
por Agamben (2009), isto é, como um sujeito que se constitui em uma zona limítrofe da
existência humana e política. Outro, que tenta compreender como esta figuração, tipo de

4
OtermodispositivoétomadoaquiapartirdoconceitopropostoporAgamben,queconstitui“qualquer coisa
quetenhadealgummodoacapacidadedecapturar,orientar,determinar,interceptar,modelar,controlare
assegurarosgestos,ascondutas,asopiniõeseosdiscursosdosseresviventes”(AGAMBEN,2009,p.40).

ConformeAgambenosdispositivos“temsempreumafunçãoestratégicaconcreta,comotal,resultamdocruzamentoderelaçõesdepoderedere
5
Entendidocomoinseridonoconceitodedispositivoagambeniano;aquelequedáformaàvida.
6
TomadanamesmaacepçãopropostaporHannahArendtquantoatotemaouaspectoquesetratedo
bemcomum.ParaArendt,acausapúblicaconstituiumvaloreaomesmotempoumespaçoatravésdoquala
participaçãoentreiguaiséfundadoraepossívelàação política.ARENDT,Hannah.Acondiçãohumana.São
Paulo:Forense,Edusp,1981.

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operação articulada pelo fotojornalismo, designa uma relação mais complexa com a estrutura

de poder ao qual se apresenta, a saber, de uma política da desresponsabilização ancorada na

concessão da causa pública sob uma referência de excepcionalidade do evento, vinculada,

portanto, à consolidação ainda maior da condição do sofredor como sujeito imponderável nas

narrativas contemporâneas de vida e morte.

Sob a forma da sobrevivência infame

“Iêmen está ameaçado por uma catástrofe alimentar”. France Presse, 15/09/11

“ONU diz que um terço dos somalis se deslocou para fugir da fome”. folha de são

Paulo, 15/09/11

“ONU alerta que 750 mil podem morrer de fome na Somália, onde 4 milhões já são

independente”. O Globo, 09/05/11

“750 mil podem morrer de fome na Somália”. Carta Capital, 06/09/11

Algumas destas manchetes circularam nos principais veículos de jornalismo no mês de

setembro de 2011. Um relatório da ONU, publicado no início do mês, declarou que uma parte considerável

da Somália, país mais pobre da região do Chifre da África, na Península

Arábica, está prestes a morrer pelo flagelo da fome. Mais de um milhão de somalis já se

refugiou-se no Quênia e na Etiópia, e outro terço dos 22 milhões de habitantes, segundo o

documento, ainda perecerá nos próximos quatro meses. Estima-se que 1.200 somalis cruzem

as fronteiras rumo aos países vizinhos, diariamente.

As salvaguardas estão limitadas por conta das zonas de conflito entre

grupos pró e anti-governo do presidente Ali Abdallah Saleh, que controlam a entrada e saída

de estrangeiros e mantimentos no local. As manifestações políticas se agravam nas cidades,

as mulheres sofrem com a desnutrição, discriminação e violência sexual, a mortalidade

infantil cresce em altos índices, a preservados sobe, os alimentos são cada vez mais reduzidos eo

período de seca agrava a realidade do país. O relatório ainda prevê que “ocorrerá um aumento

nas estatísticas de subnutrição e mortalidade nos próximos dois meses, em parte por causa da

maior ocorrência de doenças que devem chegar como consequência da temporada de chuvas.”

(Folha de São Paulo, 15/09/11)

As fotografias subsequentes circularam na imprensa junto às notícias da fome trágica

relatada pelo documento da ONU, no último mês.

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FIGURA 1
Foto: John Moore
Fonte: Getty Images Agency

FIGURA 2
Foto: John Moore
Fonte: Getty Images Agency

FIGURA 3
Foto: Ismail Taxta
Fonte: Agência Reuters

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As fotografias que seguiram conquistaram o World Press Photo, maior prêmio de


fotojornalismo internacional concedido aos fotógrafos e/ou veículos de imprensa. Em 1992,
1980 e 1974 as fotografias já tematizavam a fome em amplas dimensões na região da África.

FIGURA 4
Foto: Ovie Carter, Nigéria
Fonte: Prêmio World Press Photo, 1974

FIGURA 5
Foto: Mike Wells, Uganda
Fonte: Prêmio World Press Photo, 1980

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FIGURA 6
Foto: James Nachtwey, Somália.
Fonte: Prêmio World Press Photo, 1992

Este pequeno conjunto de fotografias detectadas traz o registro de uma situação


frequente ao povo africano, mas que se agrava sob eventos circunstanciais. Tanto nas edições
do World Press Photo, como nas fotos veiculadas recentemente pela imprensa, o sofrimento e
a morte é exposta como prova dos agravos da fome, justificados sem outros
complementos reflexivos, mas caracterizados pelo que parece ser próprio a um povo.
Mulheres e crianças esquisitas aparecem alheias às câmeras e aos olhos do mundo em
uma intensidade expressiva perturbadora. Seus corpos abatidos e esculpidos pelo flagelo
demonstra o impacto que tal fato provoca dia após dia. A fome é exposta (e se exposta) nos
corpos como uma verdadeira operação do tempo. Ela se apresenta, duplamente, por um
estado de permanência; tanto dos discursos que se firmam, ao longo do tempo, acerca de um
povo vinculado à fome crônica, quanto dos próprios corpos, que se mostram, sub
repticiamente, tolerado a um estado prolongado de inanição. Ao mesmo tempo, o corpo é
o que resta da fome; a fome, por sua vez, emblema de um povo.
Deste modo, o corpo, em especial, funciona como protagonista de uma identidade e
assuma o lugar da escritura e da inscrição do sofrimento de seus personagens, ao mesmo
tempo em que evidencia a passagem à operação retórica da qualificação de sua vida ou morte
qualificados. O corpo está para promover uma espécie de cesura com o próprio fato. o corpo
emprega uma força, na imagem, a partir de uma interseção entre o próprio fato e a dor. Em
boa medida, constitui o pathosformel da própria fome, pois designa “o indissolúvel
entrelaçamento de uma carga emotiva e de uma fórmula iconográfica.” (AGAMBEN, 2004,

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15) O corpo em sofrimento é o corpo abatido que produz paixões e faz afetos circulares que
constituem e vinculam valores.

Nos exemplares fotográficos acima, as atitudes corporais das personagens mobilizam

sempre algum tipo de disposição afetiva do olhar; seja comoção, repulsa, indignação,

perplexidade. Há uma similaridade estrutural de composição e tratamento temático entre as

fotografias vencedoras do World Press Photo e as demais veiculadas, recentemente, em


veículos diferentes.

Em geral são mulheres vistas como mães junto às crianças e em posição de acolhimento

umas às outras, prestadas por uma solidariedade mútua que se define pela dor e sofrimento que

uma fome causa. As mãos, em todo seu gestual especial de encontros, parecem se oferecer como

índices desta união, tanto compartilhados por seus iguais, quanto solitários de outros. Os olhos

não encaram as lentes, não veem outros olhares, mas apenas se acolhem em um íntimo

próprio e desolador de seus semblantes.

Seus corpos são dados como os próprios personagens precários e encarnam a própria

fome em todo seu estado e intensidade possível. A esta altura, personagem e imagem se

confundem como registro, tanto frágil quanto incerto, da vida em seu limiar de morte. Assim,

as emoções de um fato catastrófico, aquele capaz de dizer vidas e sujeitos, se constituem

enquanto uma forma que qualifica seus personagens.

Através do corpo é possível vislumbrar a situação na qual se comportam os personagens,

mas vale ressaltar também que sua constituição páthica, além de expressar, plasticamente,

visualmente, a situação de dor e sofrimento, dá a ver e saber acerca do evento (fome que

denuncia a miséria e anuncia a morte), assim como seu ponto imediatamente reflexivo; uma

degradação de uma forma de vida especificada; a dos pobres, os miseráveis. De modo que as

fotografias, no fotojornalismo, parecem oferecer a dimensão única das condições de

sobrevida de um povo, indicando os quadros de referência adequados para o reconhecimento

dos seus personagens reais, da vida cotidiana. Assim, o fotojornalismo atribui ao sofredor

uma posição atrelada à sua identidade de classe, gênero, sexualidade ou etnia que remete

também a um elemento moral que o qualifica e justifica em dada situação.

Quando a figura do sofredor assume um papel de institucionalização, de objeto

transitável entre as tarefas da denúncia, do protesto ou do conhecimento é, simultaneamente,

investido de uma posição, de um lugar específico dado pelo gênero por onde perpassam as

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linhas de força das relações de poder que demarcam os lugares e as ocupações entre

personagens, imagem e espectador.

Foucault, no texto “A vida dos homens infames” (1974/2003), toma o trabalho com

pequenas e breves notas deixadas pelas ordens régias de morte ou confinamento, as letras de

cachet, como único rastro qualificador daquelas vidas ordinárias e cotidianas. O breve, mas

não menos importante encontrar essas vidas com um tipo de poder que lhes proclamava um

destino, deixou como seu único vestígio algumas poucas palavras em notas manuscritas. UMA

noção de arquivo em Foucault, sabemos, tem menos ouvido pelos enunciados do que com

as mesmas condições da enunciação. Assim, a existência de vidas deve-se exatamente

pelas notas que as tornaram indignas e que, por “um acaso qualquer, retornam, sob efeitos de

acasos múltiplos” (FOUCAULT, 2003, 243). No entanto, Foucault indica que é apenas sob

este mesmo tipo de registro que aquelas vidas, expulsos do mundo, convertidos como

indignas, fazem seu retorno ao real.

Podemos usar o mesmo movimento analítico para observar as vidas e mortes

classificados postos em jogo pelo fotojornalismo. Nenhum lugar das letras de cachet são as formas

visíveis que funcionam aqui a qualificação das figuras em seu aspecto de vida/morte

adensado pelo evento. Sua existência procede da aparição devota como registro de uma vida

sempre precária, sempre indignada, sempre marcada por eventos trágicos, neste caso, a fome

crônica. Do mesmo modo são estas imagens que conformam os “rastros” narrativos, que

consolidam e confiam modelos memorialísticos, historiográficos, literários...

discussão ainda premente é seu papel enquanto forma social e socializante. Este paralelo

permite notar que este tipo de representação fundamentada em identidades (étnicas, gênero,

classe, entre outras) investe, em geral, em particularidades gestuais, de linguagem, de um

ethos, que vão conformando uma noção de coletividade; de um grupo que compartilha das

mesmas e frequentes qualidades, como outro tipo de comunidade.

Somos acostumados a vê-los como sobreviventes em um espaço designado por sua

natureza fatídica, do não direito, relegados à revelia; os desvalidos. Contudo, a figura de um

(sobre)vivente, conforme Agamben, é sempre uma suspensão que se mostra também tática de

governamentalidade da vida. Sua figura produz uma desarticulação real do que é humano e

assim, humano e inumano funcionam como dois vetores no campo de força dos vida.

(AGAMBEN, 2009, 40)

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Para Agamben, quando se invoca a assimetria entre os direitos ativos da cidadania e


os advindos de uma condição natural de homens nascidos, não se trata apenas de um
elemento revelador de uma política moderna passada, mas contém um elemento significativo
da biopolítica, que indica a necessidade permanente de redefinir qual vida está dentro ou fora
dos direitos de um Estado. É uma vida que se controla a partir da exceção. Apátridas,
clandestinos e refugiados, mas também outros grupos somam-se hoje a esta comunidade de
viventes, como os famélicos somalis; espécies de figuras solenes, dados exatamente por serem
somalis, por pertencer a uma classe e identidade étnica.
Se, conforme Agamben (2004), na política moderna, “antes do direito do cidadão estava
a captura política do corpo”, na figura do homo sacer, hoje, podemos dizer, o corpo continua
na pauta do poder, mas através de nova configuração, como um local de disputas políticas das
identidades. Contudo, o corpo abatido que sofre é também o que resiste na imagem, tal qual
os rastros que, embora apagáveis, restam, icônicos.

O sofrimento como figura midiática do comum


Até aqui vimos que o sofrimento promovido pelo flagelo da fome traz, sob a forma de
uma aparência precária, a constituição de um tipo de vida, de um grupo em especial, cuja
vida/morte surgem predicadas, qualificadas. O fotojornalismo, ao investir seus registros de
uma conformação visual, plástica e gestual consegue estabelecer um regime do visível para o
qual se ancora identidades. A questão é que esta relação, uma vez observada, não pode
prescindir de uma discussão mais apurada de suas referências éticas e políticas. UMA
caracterização, a qualificação de situações de sofrimento e morte, traz consigo também uma
qualificação de vida, de tipos de vida. Dentro de um contexto cultural do ocidente estas
variantes não se encontram desconexas, prática ou politicamente.
O fotojornalismo, ancorado em um caráter indicial acentuado, traz a conformação
visual das diversas realidades do mundo, mas também inclui, neste trabalho, o modo como

esta espécie de organização dos fatos reverberam em evidência e noções que perpassam
imaginários, conceitos, julgamentos. Esta forma com a qual o fotojornalismo acede a um
modo de organização e classificação dos sujeitos pela vida ou pela morte considerados constitui
um tipo de espaço político que opera por afeições. O infeliz, o pobre, o doente, o migrante ou
o preso são todas figuras enredadas por este espaço e que ratificam o caráter aporético de uma

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política que ainda se mantém por protocolos de inclusão e exclusão, mas, sobretudo, de
regulação, de modulação da vida.
O fotojornalismo articula suas imagens a esquemas cognitivos, afetivos e morais que
atribuem (ou negam) certos valores ao outro. Põe tanto o espectador quanto o outro em
lugares de pertencimento. Ao tratar a fome e suas vítimas como sobreviventes ou infelizes
apenas se enfatiza seus efeitos, apenas se oferece um corpo para uma condição ou situação,
funciona como exemplares na demarcação de um rosto7 e assim se expõe um evento como
fatalidade em si; recortado e esvaziado de suas condicionantes.
Ao lado disso, as narrativas midiáticas deste tipo de evento parecem não deixar espaço
suficiente para se problematizar a responsabilidade ou qualquer outro pilar possível que
engendrar o poder da ação humana. Ao contrário, exploram o que se denomina de paixões
tristes8 que se baseiam, principalmente, no arrefecimento ou na banalização. O impacto de
um rosto vigora como a força mais intensa quando deveria adensar a discussão sobre as
princípios éticas e políticas que advém dele mesmo.
Pensar a fome, sob este aspecto, nos levaria a duas vertentes possíveis nesta relação
com a prática fotojornalística: em uma delas, estariam reafirmadas velhas fórmulas de um
discurso moral e religioso que mitifica o merecimento, a punição divina, pré-destinada a um
povo (originalmente) remetendo à noção de culpa ancestral quando explora a piedade, o
apelo ou a comoção em seu registro sensacional de um evento. Na outra vertente seria a
discussão de seus pedidos históricos, a ineficácia das instituições provedoras do bem
comum e do tratamento das causas sociais, devidamente documentadas (aliás, projeto
fundador do fotojornalismo no período moderno). Porém, tanto em uma quanto noutra, a
a vitimização permanece como pano de fundo de uma lógica que desresponsabilidade o próprio
processo de visibilidade ao qual está vinculado.

7
EmoutromomentodiscutimosoconceitoderostotrazidoporAgambendomodocomodiscutimossua
apropriaçãopelofotojornalismo.Emresumo,trata-sedeumaespéciedeíndicedeidentidadeaomesmo
tempoemqueseconstituizonadedisputapolítica.Oconceitotambémtemdiálogocomanoçãoderostidade
talqualGillesDeleuzeeFélixGuattaripropuseram.VerAGAMBEN,Giorgio.Moyenssansfins.Notessurla
politique.Paris:RivagePoche,2002.DELEUZE,Gilles,GUATTARI,Félix.AnoZero- Rostidade.In:Milplatôs.
Vol.3.SãoPaulo:Ed.34,1996.
8
PeterPálâneaPelbartretomaanoçãodepaixõestristestratadanafilosofiadeleuzianacomoindicaçãoexpressiva
deumacondiçãocontemporâneadadiminuiçãodapotênciadeagir.Outrasquestõesdecorrentesdesta
relaçãosãocolocadaspeloautoremerecemdestaque.PELBART,PeterPál.Elementosparaumacartografiada
grupalidade.In:FátimaSaadi;SilvanaGarcia.(Org.).
SãoPaulo:ItaúCultural,2008,p.33-37

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É preciso pensar o gesto para além de seu produto. Como vimos na analítica

foucaultiana é preciso pensar, para além dos enunciados, as condições mesmas dos

enunciados, em nosso caso, da visibilidade, que tanto delimitam quanto qualificam vidas e

mortes por topos de identidade. A inscrição nestes eventos é instância possível de produção

de julgamentos, assim como da memória ou do imaginário. Mas que se ressalve (e é sempre

importante relembrar) que o julgamento é uma atividade interacional, aberta, “em que ocorre

esse 'compartilhar-o-mundo'”. (ARENDT, 2004, 31)

Neste sentido, Hannah Arendt propunha bem o “corpo e a fala como dois recursos

essencialmente para habitar o espaço visível” (ARENDT, 1981, 188). Contudo, a “posse” destes

recursos dispõem de modos diversos de participação no campo do visível. Uma reflexão

sobre processo este, portanto, não poderia prescindir das condições nas quais se encontram

estes “corpos e falas”, mas tentar compreendê-los, isto, sim, atravessados pelas mediações

que intervém nas suas práticas confortáveis com o mundo, social e político. No entanto, querer

que as instituições do visível asseguram estes recursos não resolvem aspectos de sofrimento

políticas, sabemos, complexas e conflituosas, porém, retirar dos indivíduos esta possibilidade

conduzir à redução de sua capacidade de agir, na medida em que o lugar e o acesso a este

o espaço é afetado diretamente pelas posições que ocupam.

Em Arendt, a aparência, o espaço visível, é tanto poiésis quanto a posição. Em sua

proposta de fenomenologização da vida contemplativa, na qual vigora uma inter-relação

complexo entre pensar, querer e julgar no domínio da visibilidade, a valorização do mundo da

aparência é fundamental a uma ética da ação como iniciativa livre e responsável.

Em uma proposta claramente divergente, mas com objetivo comum, Agamben nos

indica a impossibilidade de discernimento entre corpo biológico e político, entre o

comunicável e dizível, de modo que só admitindo esta indistinção premente em nosso

tempo é possível compreender que é no próprio corpo natural que está sua política. ó ser

vivente é uma forma-de-vida e apenas “enquanto o próprio corpo pode transgredir os confins

que a moral e a lei impõem à experimentação” (AGAMBEN, 2004, 191).

Para nós, pensar o compartilhar do mundo através de imagens é um indicativo

ético-político. Associado ao ver está o funcionamento de um processo que faz ver e não se

trata aqui de um revelar dos fatos, eventos, realidade, da verdade ou de sua exposição apenas,

mas de um constitutivo mais complexo do campo visível em nosso tempo. Como afirma

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Agamben, não há um retorno a nenhum ponto originário; corpos e falas são atravessados
pelas mediações, existem através deles ou são o que restam deste encontro. Só a partir
estas “zonas de indiferença e estes terrenos incertos” (AGAMBEN, 2009) é que devemos
pensar as vias e modos de uma nova política (do visível).

Referências bibliográficas

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