2014 Vaz & Biondi - catástrofesTRAD
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Angie Biond2
Resumo
O propósito deste texto é contestar o caráter de excepcionalidade que parece atrelado às raízes da
figuração de vítimas de catástrofes para compreender sua posição como parte de um contexto ético-
político mais amplo, que empreende as narrativas contemporâneas do fotojornalismo, pautado em uma
concepção de vida e morte considerados. Aqui, o corpo assume um ponto de inflexão importante no
momento em que promove uma espécie de cesura entre fato e identidade. Exemplos do jornalismo nos
servem de base para esta discussão.
Palavras-chave
Abstrato
Este artigo se propõe a contestar o caráter de excepcionalidade que parece estar relacionado às raízes
das figurações das vítimas de desastres para compreender sua real posição como parte de um contexto
ético e político mais amplo, que empreende narrativas do fotojornalismo contemporâneo a partir de uma
concepção de vida e a morte qualificada. O corpo leva um
1
ProfessordoProgramadePós- seguidosemComunicaçãoSocialFAFICH– UFMG.PesquisadordoCNPq
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DoutorandadoProgramadePós- casadoemComunicaçãoSocialFAFICH– UFMG.BolsistaCapes
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ponto de viragem importante quando promove uma espécie de costura entre os acontecimentos e a
identidade. Alguns exemplos do fotojornalismo servem de base para discussão.
Palavras-chave
Produzem e fazem circulares pequenas narrativas entrelaçadas gravadas por um tempo e espaço já
sofrimento humano. Funcionam, por vezes, como rastros de uma “enorme massa documental
que constitui, através dos tempos, a memória incessantemente crescente de todos os machos do
mundo.” (FOUCAULT, 2003, 211). São vidas infinitas abatidas por eventos infelizes,
mazelas e sortilégios de todo tipo que vão constituindo as tragédias cotidianas e parecem
que seus personagens condensam a força expressiva dos eventos em seus corpos e,
simultaneamente, inscrevem discursos que tanto potencializam quanto qualificam seus sofrimentos.
que vigoram como figuras de um destino trágico, abatidas por eventos singulares, de caráter
dimensões brutais e amplas, porém, entrelaçadas aos eventos, são também consideradas religiosas em
atrelado às raízes da figuração de vítimas de catástrofes para compreender sua posição como
3
GiorgioAgambencompreendeoserviventeemduplaformação;tantodesignaa zoe, comooaspecto
advindodofatodeviver,masqueéumaproduçãodopoderenãoumdadonatural,comoa bios, aformade
viverprópriadeumgrupooupovoqueculminaemformas-de-vida.Otermoviventeconseguecondensar,
adequadamente,ocaráterambíguoelimítrofedohumano/inumano,investido/despojado, bios/ zoe, que
melhordesignaoestatutoontológicodafiguradeumsofredoremsuazonalimítrofedaexistência,tanto
naturalquantopolítica.VerAGAMBEN,Giorgio.Homosacer.Opodersoberanoeavidanua. Belo Horizonte:
UFMG,2004.
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OtermodispositivoétomadoaquiapartirdoconceitopropostoporAgamben,queconstitui“qualquer coisa
quetenhadealgummodoacapacidadedecapturar,orientar,determinar,interceptar,modelar,controlare
assegurarosgestos,ascondutas,asopiniõeseosdiscursosdosseresviventes”(AGAMBEN,2009,p.40).
ConformeAgambenosdispositivos“temsempreumafunçãoestratégicaconcreta,comotal,resultamdocruzamentoderelaçõesdepoderedere
5
Entendidocomoinseridonoconceitodedispositivoagambeniano;aquelequedáformaàvida.
6
TomadanamesmaacepçãopropostaporHannahArendtquantoatotemaouaspectoquesetratedo
bemcomum.ParaArendt,acausapúblicaconstituiumvaloreaomesmotempoumespaçoatravésdoquala
participaçãoentreiguaiséfundadoraepossívelàação política.ARENDT,Hannah.Acondiçãohumana.São
Paulo:Forense,Edusp,1981.
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operação articulada pelo fotojornalismo, designa uma relação mais complexa com a estrutura
portanto, à consolidação ainda maior da condição do sofredor como sujeito imponderável nas
“Iêmen está ameaçado por uma catástrofe alimentar”. France Presse, 15/09/11
“ONU diz que um terço dos somalis se deslocou para fugir da fome”. folha de são
Paulo, 15/09/11
“ONU alerta que 750 mil podem morrer de fome na Somália, onde 4 milhões já são
setembro de 2011. Um relatório da ONU, publicado no início do mês, declarou que uma parte considerável
Arábica, está prestes a morrer pelo flagelo da fome. Mais de um milhão de somalis já se
documento, ainda perecerá nos próximos quatro meses. Estima-se que 1.200 somalis cruzem
grupos pró e anti-governo do presidente Ali Abdallah Saleh, que controlam a entrada e saída
infantil cresce em altos índices, a preservados sobe, os alimentos são cada vez mais reduzidos eo
período de seca agrava a realidade do país. O relatório ainda prevê que “ocorrerá um aumento
nas estatísticas de subnutrição e mortalidade nos próximos dois meses, em parte por causa da
maior ocorrência de doenças que devem chegar como consequência da temporada de chuvas.”
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FIGURA 1
Foto: John Moore
Fonte: Getty Images Agency
FIGURA 2
Foto: John Moore
Fonte: Getty Images Agency
FIGURA 3
Foto: Ismail Taxta
Fonte: Agência Reuters
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FIGURA 4
Foto: Ovie Carter, Nigéria
Fonte: Prêmio World Press Photo, 1974
FIGURA 5
Foto: Mike Wells, Uganda
Fonte: Prêmio World Press Photo, 1980
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FIGURA 6
Foto: James Nachtwey, Somália.
Fonte: Prêmio World Press Photo, 1992
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15) O corpo em sofrimento é o corpo abatido que produz paixões e faz afetos circulares que
constituem e vinculam valores.
sempre algum tipo de disposição afetiva do olhar; seja comoção, repulsa, indignação,
Em geral são mulheres vistas como mães junto às crianças e em posição de acolhimento
umas às outras, prestadas por uma solidariedade mútua que se define pela dor e sofrimento que
uma fome causa. As mãos, em todo seu gestual especial de encontros, parecem se oferecer como
índices desta união, tanto compartilhados por seus iguais, quanto solitários de outros. Os olhos
não encaram as lentes, não veem outros olhares, mas apenas se acolhem em um íntimo
Seus corpos são dados como os próprios personagens precários e encarnam a própria
fome em todo seu estado e intensidade possível. A esta altura, personagem e imagem se
confundem como registro, tanto frágil quanto incerto, da vida em seu limiar de morte. Assim,
mas vale ressaltar também que sua constituição páthica, além de expressar, plasticamente,
visualmente, a situação de dor e sofrimento, dá a ver e saber acerca do evento (fome que
denuncia a miséria e anuncia a morte), assim como seu ponto imediatamente reflexivo; uma
degradação de uma forma de vida especificada; a dos pobres, os miseráveis. De modo que as
dos seus personagens reais, da vida cotidiana. Assim, o fotojornalismo atribui ao sofredor
uma posição atrelada à sua identidade de classe, gênero, sexualidade ou etnia que remete
investido de uma posição, de um lugar específico dado pelo gênero por onde perpassam as
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linhas de força das relações de poder que demarcam os lugares e as ocupações entre
Foucault, no texto “A vida dos homens infames” (1974/2003), toma o trabalho com
pequenas e breves notas deixadas pelas ordens régias de morte ou confinamento, as letras de
cachet, como único rastro qualificador daquelas vidas ordinárias e cotidianas. O breve, mas
não menos importante encontrar essas vidas com um tipo de poder que lhes proclamava um
destino, deixou como seu único vestígio algumas poucas palavras em notas manuscritas. UMA
noção de arquivo em Foucault, sabemos, tem menos ouvido pelos enunciados do que com
pelas notas que as tornaram indignas e que, por “um acaso qualquer, retornam, sob efeitos de
acasos múltiplos” (FOUCAULT, 2003, 243). No entanto, Foucault indica que é apenas sob
este mesmo tipo de registro que aquelas vidas, expulsos do mundo, convertidos como
classificados postos em jogo pelo fotojornalismo. Nenhum lugar das letras de cachet são as formas
visíveis que funcionam aqui a qualificação das figuras em seu aspecto de vida/morte
adensado pelo evento. Sua existência procede da aparição devota como registro de uma vida
sempre precária, sempre indignada, sempre marcada por eventos trágicos, neste caso, a fome
crônica. Do mesmo modo são estas imagens que conformam os “rastros” narrativos, que
discussão ainda premente é seu papel enquanto forma social e socializante. Este paralelo
permite notar que este tipo de representação fundamentada em identidades (étnicas, gênero,
ethos, que vão conformando uma noção de coletividade; de um grupo que compartilha das
(sobre)vivente, conforme Agamben, é sempre uma suspensão que se mostra também tática de
governamentalidade da vida. Sua figura produz uma desarticulação real do que é humano e
assim, humano e inumano funcionam como dois vetores no campo de força dos vida.
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esta espécie de organização dos fatos reverberam em evidência e noções que perpassam
imaginários, conceitos, julgamentos. Esta forma com a qual o fotojornalismo acede a um
modo de organização e classificação dos sujeitos pela vida ou pela morte considerados constitui
um tipo de espaço político que opera por afeições. O infeliz, o pobre, o doente, o migrante ou
o preso são todas figuras enredadas por este espaço e que ratificam o caráter aporético de uma
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política que ainda se mantém por protocolos de inclusão e exclusão, mas, sobretudo, de
regulação, de modulação da vida.
O fotojornalismo articula suas imagens a esquemas cognitivos, afetivos e morais que
atribuem (ou negam) certos valores ao outro. Põe tanto o espectador quanto o outro em
lugares de pertencimento. Ao tratar a fome e suas vítimas como sobreviventes ou infelizes
apenas se enfatiza seus efeitos, apenas se oferece um corpo para uma condição ou situação,
funciona como exemplares na demarcação de um rosto7 e assim se expõe um evento como
fatalidade em si; recortado e esvaziado de suas condicionantes.
Ao lado disso, as narrativas midiáticas deste tipo de evento parecem não deixar espaço
suficiente para se problematizar a responsabilidade ou qualquer outro pilar possível que
engendrar o poder da ação humana. Ao contrário, exploram o que se denomina de paixões
tristes8 que se baseiam, principalmente, no arrefecimento ou na banalização. O impacto de
um rosto vigora como a força mais intensa quando deveria adensar a discussão sobre as
princípios éticas e políticas que advém dele mesmo.
Pensar a fome, sob este aspecto, nos levaria a duas vertentes possíveis nesta relação
com a prática fotojornalística: em uma delas, estariam reafirmadas velhas fórmulas de um
discurso moral e religioso que mitifica o merecimento, a punição divina, pré-destinada a um
povo (originalmente) remetendo à noção de culpa ancestral quando explora a piedade, o
apelo ou a comoção em seu registro sensacional de um evento. Na outra vertente seria a
discussão de seus pedidos históricos, a ineficácia das instituições provedoras do bem
comum e do tratamento das causas sociais, devidamente documentadas (aliás, projeto
fundador do fotojornalismo no período moderno). Porém, tanto em uma quanto noutra, a
a vitimização permanece como pano de fundo de uma lógica que desresponsabilidade o próprio
processo de visibilidade ao qual está vinculado.
7
EmoutromomentodiscutimosoconceitoderostotrazidoporAgambendomodocomodiscutimossua
apropriaçãopelofotojornalismo.Emresumo,trata-sedeumaespéciedeíndicedeidentidadeaomesmo
tempoemqueseconstituizonadedisputapolítica.Oconceitotambémtemdiálogocomanoçãoderostidade
talqualGillesDeleuzeeFélixGuattaripropuseram.VerAGAMBEN,Giorgio.Moyenssansfins.Notessurla
politique.Paris:RivagePoche,2002.DELEUZE,Gilles,GUATTARI,Félix.AnoZero- Rostidade.In:Milplatôs.
Vol.3.SãoPaulo:Ed.34,1996.
8
PeterPálâneaPelbartretomaanoçãodepaixõestristestratadanafilosofiadeleuzianacomoindicaçãoexpressiva
deumacondiçãocontemporâneadadiminuiçãodapotênciadeagir.Outrasquestõesdecorrentesdesta
relaçãosãocolocadaspeloautoremerecemdestaque.PELBART,PeterPál.Elementosparaumacartografiada
grupalidade.In:FátimaSaadi;SilvanaGarcia.(Org.).
SãoPaulo:ItaúCultural,2008,p.33-37
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É preciso pensar o gesto para além de seu produto. Como vimos na analítica
foucaultiana é preciso pensar, para além dos enunciados, as condições mesmas dos
enunciados, em nosso caso, da visibilidade, que tanto delimitam quanto qualificam vidas e
mortes por topos de identidade. A inscrição nestes eventos é instância possível de produção
importante relembrar) que o julgamento é uma atividade interacional, aberta, “em que ocorre
Neste sentido, Hannah Arendt propunha bem o “corpo e a fala como dois recursos
essencialmente para habitar o espaço visível” (ARENDT, 1981, 188). Contudo, a “posse” destes
sobre processo este, portanto, não poderia prescindir das condições nas quais se encontram
estes “corpos e falas”, mas tentar compreendê-los, isto, sim, atravessados pelas mediações
que intervém nas suas práticas confortáveis com o mundo, social e político. No entanto, querer
que as instituições do visível asseguram estes recursos não resolvem aspectos de sofrimento
políticas, sabemos, complexas e conflituosas, porém, retirar dos indivíduos esta possibilidade
conduzir à redução de sua capacidade de agir, na medida em que o lugar e o acesso a este
Em uma proposta claramente divergente, mas com objetivo comum, Agamben nos
tempo é possível compreender que é no próprio corpo natural que está sua política. ó ser
vivente é uma forma-de-vida e apenas “enquanto o próprio corpo pode transgredir os confins
ético-político. Associado ao ver está o funcionamento de um processo que faz ver e não se
trata aqui de um revelar dos fatos, eventos, realidade, da verdade ou de sua exposição apenas,
mas de um constitutivo mais complexo do campo visível em nosso tempo. Como afirma
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Agamben, não há um retorno a nenhum ponto originário; corpos e falas são atravessados
pelas mediações, existem através deles ou são o que restam deste encontro. Só a partir
estas “zonas de indiferença e estes terrenos incertos” (AGAMBEN, 2009) é que devemos
pensar as vias e modos de uma nova política (do visível).
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