Dissert - ARAÇÁ AZUL - UMA ANÁLISE SEMIÓTICA
Dissert - ARAÇÁ AZUL - UMA ANÁLISE SEMIÓTICA
Dissert - ARAÇÁ AZUL - UMA ANÁLISE SEMIÓTICA
Orientador:
SÃO PAULO
2003
Para Carina,
pelo infalível e incondicional apoio,
pelas inúmeras contribuições a este trabalho,
por ter me apresentado a genialidade e a graça da cultura baiana,
pela inspiração de toda uma vida.
AGRADECIMENTOS
Aos mestres Luiz Tatit e Ulisses Rocha, pessoas abençoadas com raro talento
possuem.
Ao professor José Roberto Zan, por ter despertado em mim o interesse pela
Aos professores José Luiz Fiorin, Diana Luz Pessoa de Barros, José Miguel
Wisnik, Dilma de Melo Silva, Ivã Carlos Lopes e Antonio Vicente Seraphim
Fernando Faro, Claudiney Carrasco, Eduardo Andrade, Paulo Justi e todos aqueles
Von Dietrich e Helena Nader, todos grandes pesquisadores, pelo apoio constante.
pela ditadura militar. Essa combinação de fatores faz do Araçá Azul uma obra sui
generis na história da música popular. No entanto, não havia até agora nenhum estudo
escolhido foi a teoria semiótica, iniciada por Greimas e ampliada por Fontanille e
Tatit.
adotado, apontando suas limitações atuais e sugerindo novas frentes de pesquisa para
most radical tropicalist experience ever produced. It was created by Caetano Veloso, a
composer, singer and one of the most prolific Brazilian thinkers. At that time, he was
already recognized as a Pop-Star by the local public, due to the great success of his
song “Alegria, Alegria”. This was the first record edited by the composer after
returning from his political exile in London, which was imposed by the military
regime. This combination of events makes Araçá Azul a “sui generis” piece in the
history of popular music. Nevertheless, up to the present time no study of this LP has
The objective of this dissertation is to analyze in detail all the elements of the
album, not only the songs and experimental tracks, but also the visual project as a
whole, including the front, back and inner covers. The purpose is to show all the
strategies used to construct the signification of the album. The descriptive method
Fontanille and Zilberberg, and extended to the field of popular music, as postulated by
Luiz Tatit.
The present work not only unveils an important event in Brazilian musical
history, but also contributes to the discussion of the descriptive model adopted,
pointing out its limitations and suggesting new lines of research to broaden its
theoretical horizons.
1. Introdução.....................................................................................................8
2. Métodos
2.1. Introdução................................................................................................12
2.2. Breve panorama da semiótica .................................................................13
2.3. O modelo de Tatit....................................................................................20
2.4. Análise harmônica...................................................................................25
2.5. Estética tropicalista..................................................................................27
3. Projeto Visual
3.1. Capa .......................................................................................................38
3.2. Contracapa .............................................................................................43
3.3. Encarte Central ......................................................................................45
3.4. Encarte Interno ......................................................................................49
3.5. Conclusões .............................................................................................50
4. Projeto Musical
4.1. Viola, meu bem ..................................................................................... 51
4.2. De conversa ...........................................................................................66
4.3. Tu me acostumbraste .............................................................................83
4.4. Gilberto misterioso ................................................................................ 97
4.5. De palavra em palavra ........................................................................... 113
4.6. De cara / Quero essa mulher assim mesmo ............................................ 121
4.7. Sugar cane fields forever ....................................................................... 130
4.8. Júlia/Moreno ..........................................................................................151
4.9. Épico ......................................................................................................165
4.10. Araçá Azul ...........................................................................................178
6. Bibliografia ..................................................................................................189
7. Glossário ......................................................................................................192
8. Anexo ............................................................................................................196
Introdução 8
___________________________________________________________________________________
1. Introdução
embora citações apareçam, nenhuma dessas obras se propôs ao estudo da mais radical
expectativas em torno do Araçá Azul indagavam qual seria o teor das novas canções.
avesso da canção. Ele não foi o único disco experimental brasileiro da época, mas
seguramente foi o mais ouvido, e o que mais repercutiu. Enquanto a maioria dos
antes do exílio. Nele estão presentes elementos de várias tendências das artes de
Smetak, passando pelo bolero e rock’n’roll. Toda informação estética e sonora que
passou pelo Brasil foi aproveitada como matéria-prima para a composição do disco. O
Introdução 9
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elementos que compõem o álbum Araçá Azul, incluindo todo o material sonoro e
obra.
da hipótese de que o objeto a ser estudado, o LP Araçá Azul, não se limita ao material
contracapa e encartes fazem parte, junto com o material sonoro, de um projeto único.
Esses elementos não poderiam ser omitidos de uma análise que se propõe estudar a
obra como um todo. Os esforços analíticos foram então divididos em projeto visual,
composto pela capa, contracapa e encartes, e projeto sonoro, composto pelas dez
contemplada por um modelo descritivo único, que desse conta ao mesmo tempo da
novos estudos e pesquisas. Dentre elas destacamos a teoria desenvolvida por Luiz
meio de produzir um texto que possa ser apreendido por leitores oriundos das duas
possíveis leitores deste trabalho, optamos por realizar descrições mais detalhadas dos
glossário de termos musicais. Para o apoio de leitores que não têm familiaridade com
José Luiz Fiorin, e “Teoria semiótica do Texto”, de Diana Barros, esta última
“Harmonia & Improvisação”. Todas essas obras encontram-se listadas nas nossas
referências bibliográficas.
Apesar da força de coesão que faz com que o LP seja percebido como uma
auditivo, fato que orientou a organização do nosso texto. Nossa análise segue então o
roteiro sugerido pelo autor na escolha da seqüência das faixas, a exemplo do processo
Introdução 11
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de audição natural do disco. Após a análise de cada faixa, os dados obtidos serão
considerações finais, apresentamos uma rápida visão panorâmica dos resultados mais
2. Métodos
2.1. Introdução
música (que ainda poderia ser fracionada em ritmo, melodia, harmonia e arranjo). A
canção como uma “poesia musicada”, ora como “tema musical com letra”. Esses
respectivamente, eficientes para o estudo dos elementos individuais, mas que não dão
sistema de análise que pretende desvendar a sintaxe que ao mesmo tempo organiza e
constrói o sentido dos textos. Esse foi o ponto de partida da semiótica greimasiana.
abarcados pela acepção do senso comum. Ele pode ser tanto um texto lingüístico,
escrito ou falado, como também um texto visual (uma pintura), auditivo (uma sonata),
gestual (uma coreografia), plástico (uma escultura) ou até mesmo gustativo (uma
iguaria). Ele pode ser também uma combinação de vários textos diferentes: um filme,
um livro ilustrado, uma canção. Para que a análise possa dar conta desses textos
de cada forma de expressão, mas também estabeleçam relações entre elas dentro de
um mesmo campo teórico. Ela precisa ainda compreender o texto não só como um
objeto de significação, que forma um todo coeso graças às suas estruturas internas,
mas também como um objeto de comunicação, que estabelece relações com outros
1
FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. 2 ed. rev. São Paulo: Ateliê Editorial, 1996. pp.
28-29.
2
GREIMAS, Algirdas Julien. Sémantique structurale. Paris: Larousse, 1966.
Métodos 14
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indo do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. Ela estabelece uma
sintaxe e semântica próprias para a análise em cada um desses níveis, que têm
portanto uma estrutura autônoma, e descreve as relações que cada nível estabelece
com os demais.
qual o sentido do texto é construído. São oposições de termos gerais e abstratos, como
em comum entre si. Esses termos mantêm uma relação de contrariedade, estando em
contraditórios (ex: /não vida/ vs /não morte/), contrários entre si. Esses termos são
implicam nos termos contrários (ex: /não vida/ implica /morte/). A união dos termos
subcontrários gera o termo neutro (/não vida/ e /não morte/). Todos esses elementos
Termo complexo
relação de contrariedade
Vida Morte
relação de implicação
não-morte não-vida
Termo neutro
Figura 1
sujeito e objeto), e a relação entre os homens (que dá origem aos papéis de destinador
manipulação é um contrato fiduciário: para que se realize, o sujeito deve antes de tudo
persuasivo sobre o sujeito, este exerce um fazer interpretativo sobre aquele. Deste
Métodos 16
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contrato proposto. Para realizar o seu fazer interpretativo, o sujeito lança mão das
Verdade
Ser Parecer
Segredo
Falsidade
não-parecer não-ser
Mentira
Figura 2
3
BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1997. p. 45.
Métodos 17
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percursos. Temos então sujeitos dotados de modalizações complexas, tais como /crer-
em duas possibilidades: no caso de uma sanção positiva, o sujeito pode receber uma
recompensa pela sua performance; no caso de uma sanção negativa, recebe uma
punição.
4
Ibid. p. 33.
5
GREIMAS, Algirdas Julien; FONTANILLE, Jacques Semiótica das paixões. São Paulo: Ática, 1994.
Métodos 18
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presença de alguém que fala. Por outro lado, a instauração de uma terceira pessoa
ancoragem, recurso pelo qual o enunciador liga elementos textuais a seus referentes
externos, como locais, nomes e datas. Da mesma maneira, o enunciador pode usar
esses mesmos recursos para atestar a falsidade do seu discurso: tudo depende da
em percursos temáticos, que podem ou não ser recobertos por percursos figurativos.
dado pela relação entre vários percursos temáticos simultâneos, que se manifestam
pesquisas não se limitam ao percurso gerativo, mas abarcam também as relações que
se dão aquém e além do mesmo. No primeiro campo, temos estudos que investigam as
temporais, Zilberberg abre uma nova perspectiva para o modelo, oferecendo rico
texto musical, que trabalha diretamente com o tempo (por meio de recortes, com
arranjo.
A partir dessa teoria, Luiz Tatit vem propondo uma análise da canção que
relações existentes entre letra e melodia. Dessa maneira é possível perceber como se
dá a construção do sentido numa obra que usa dois sistemas de significação distintos:
apóia sobre uma cadeia fônica. A diferença básica entre as duas formas de expressão
advém do fato de que na fala, assim que a informação é transmitida, a cadeia fônica é
automaticamente descartada e esquecida. Isso acontece porque os sons da fala não são
perfil que tem a finalidade única de linearizar o que está sendo dito. Ela é regida pela
sistema musical. Estabelecer uma melodia dentro desse sistema é a estratégia utilizada
6
TATIT, Luiz Augusto de Moraes. Semiótica da canção – melodia e letra. São Paulo: Escuta, 1994.
Métodos 21
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resultado de um processo geral de aceleração, tem como foco principal o campo das
pulso rápido, evitando a sua dissolução. Esse processo recebe o nome de tematização.
campo das alturas. O pulso desacelerado tem como principal conseqüência o aumento
processo evidencia a fala que está por trás da voz que canta, ou seja, promove um
das canções, a teoria se aplica também a qualquer melodia incidente fora do contexto
canção.
Leis musicais
tematização Passionalização
Figurativização (fala)
Figura 3
exata da melodia nos versos “Vou me embora pro sertão, ô viola meu bem, ô viola /
Eu aqui não me dou bem, ô viola meu bem, ô viola”. Observamos o uso do refrão na
faixa “Quero essa mulher assim mesmo”. Temos desdobramento na faixa “Épico”, na
qual o final da melodia muda para marcar o retorno à tônica e o fim da estrofe: “Todo
evolução utilizam o recurso da surpresa. Essa oposição, por si só, já resolve a equação
Métodos 23
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oscilação entre graus imediatos e saltos intervalares, por exemplo, atua na percepção
segue:
7
TATIT, Luiz Augusto de Moraes. O cancionista: composição de canções no Brasil. São Paulo:
Edusp, 1996. p. 21.
Métodos 24
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confronto entre os efeitos de sentido provocados pelo texto musical e pelo texto
transcrição que “espacializa” a melodia, fazendo com que ela seja facilmente
visualizada junto com a sua letra. Esse diagrama serve como campo para a
Cada sílaba da letra da canção é anotada na linha correspondente à nota em que ela é
cantada:
tão, ô bem, ô
8
Intervalo é a distância entre duas notas musicais, medido em Tons.
9
O semitom é o menor intervalo possível entre duas notas na música ocidental.
Métodos 25
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disso, o perfil melódico pode ser rapidamente compreendido por leitores que não
conhecem escrita musical, como também pode ser imediatamente reconstituído por
ligados. O primeiro deles diz respeito à distribuição das notas internas de um acorde,
qual uma delas tem maior poder de atratividade (a tônica), e pela possibilidade de
movimentos harmônicos dentro desse eixo. Desta maneira, o sistema tonal estabelece
10
Tessitura é a distância entre a nota mais grave e a mais aguda de uma música.
Métodos 26
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harmônico. Neste estão previstas três funções harmônicas que descrevem a posição de
(subdominante-dominante-tônica).
pode admitir sua própria dominante, ou seja, pode ser preparado por outro acorde
(mesmo que fora do campo harmônico) ou até mesmo por uma cadência inteira. A
definido pelo acorde de tônica. A seqüência harmônica pode optar pela não resolução
escala menor, cada qual capaz de gerar um campo harmônico autônomo. O campo
harmônico menor gera algumas funções não previstas pelo maior (tônica menor,
subdominante menor). Normalmente, cada música é desenvolvida sobre uma das duas
Embora não tenha na distribuição interna das notas o seu foco principal, a harmonia
baixo).
descrita de maneira sistemática pela teoria semiótica. Mas por serem ao nosso ver
sucesso pessoal. O que sustentava a oposição era sobretudo uma disputa de mercado e
intencionalmente destoavam das dos demais, por não assumir nenhum dos lados desta
início do século.
Gilberto Gil, motivado por uma viagem feita a Pernambuco, em 1966, da qual
entanto, as primeiras reuniões por ele organizadas fracassaram, justamente pelo fato
de que suas idéias não encontravam lugar na rivalidade musical da época. Em torno
alegria” é um dos maiores símbolos do fazer tropicalista. Neste mesmo festival foi
música popular brasileira com a frase: “sou tropicalista”. Isso nos leva a crer que o
Não faz parte da proposta deste trabalho fazer uma análise profunda da estética
obras já realizaram, com grande êxito, esta tarefa. Podemos mais uma vez citar os
pressuposto teórico para tal empreitada é também extremamente original: a partir dos
11
FAVARETTO, 1979.
12
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
13
CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. São Paulo: Editora 34, 1997.
Métodos 30
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“polifonia”, centrado nos trabalhos de Oswald Ducrot, para tentar encontrar o “lugar
ao longo dos anos”15, consegue entender o texto não somente a partir do próprio, mas
principalmente através da relação que este mantém com outros textos com os quais
“dialoga”.
década de 60, em que alguns estilos eram defendidos por seus membros como
surgia como conseqüência inevitável do conjunto dessas atitudes, e por outras como
ora como rivalidade, ora como admiração, foi possível graças a uma série de fatores
14
LOPES, Paulo Eduardo. A desinvenção do som. Campinas: Editora Pontes, 1999.
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matrizes que definem e norteiam o trabalho de cada grupo. Ele propõe quatro
“(ser um herói jovenguardista) é dar valor a tudo o que seja considerado diferente e
um /dever-ser/ que rege um devir rítmico e cíclico, como numa espécie de eterno
retorno”17. Desta forma, este “herói’ não acredita em si como sujeito transformador.
Para ele, somente forças externas poderão agir para que este entre outra vez em
conjunção com os objetos eufóricos. Mas, ao mesmo tempo, não acredita nesta
/querer ser/ é caro apenas ao “herói”. E este, como vimos, não tem as outras
15
Ibid. p.16.
16
Ibid. p.188.
17
Ibid. p. 190.
Métodos 32
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para a ação, e esta portanto nunca é realizada. Esta configuração produz no sujeito
comum do termo “herói”. Ele acredita estar em conjunção com todas as competências
necessárias para transformar seu estado atual de disforia, e portanto está pronto para
certeza, fazendo com que outros sujeitos entrem em conjução com a competência que
possui. Ele está portanto em conjunção com um /dever fazer saber/, ou seja, é um
sujeito revelador. É desta maneira que ele transfere as competências individuais para a
coletividade.
com cada um desses outros sujeitos”.19 Ele tem em comum com o jovenguardista a
forma, parece que o fazer do sujeito tropicalista decorre da tensão entre categorias
semânticas opostas. Ele é dotado ao mesmo tempo do /saber ser/ e /saber não ser/,
/querer ser/ e /querer não ser/. Ele difere dos outros sujeitos principalmente por não
propor um posicionamento rígido frente às questões por estes levantadas. Assim como
seu discurso, o “herói” tropicalista é uma síntese de todos os outros. Outro ponto
18
Ibid. p. 202.
19
Ibid. p. 193.
Métodos 33
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• aspecto:
durativo (em
contraste com
a pontualidade
da fala)?.
“canção” vs. “canção” vs. “canção” vs. “canção” eufórica vs. disfórica
“fala” “não-canção” “canção disfórica”
“certa” vs. “errada” “dizível” vs. “indizível”
(Ibid. p. 309-310)
Métodos 36
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obra de Caetano Veloso, esta é muito maior e mais abrangente que o movimento iniciado
na década de 60. Caetano conseguiu e consegue ainda, de acordo com o célebre discurso
estruturas. Podemos observar uma inclinação de algumas de suas canções para cada uma
MPB apostólica. No entanto, esta aproximação não resulta em uma coincidência, mas
colocação da melodia em segundo plano. Seria possível entender a melodia de cada canção
como um texto autônomo, que também dialoga com outras melodias e, simultaneamente,
com as letras das canções. Essa perspectiva abriria novas possibilidades analíticas,
aprofundando ainda mais a capacidade “dialógica” deste texto sincrético que é a canção.
Lopes afirma: “O tropicalista parece dizer ao Apóstolo: “antes de pregar contra a opressão e
a alienação, certifique-se de que sua própria pregação não é opressora e alienante” (p. 207).
emepebistas apostólicas. Muito bem entendida a limitação do corpus deste trabalho, fica
complementando a análise proposta por Luiz Tatit, que é exclusivamente intrínseca e não
dialógica.
Projeto visual 38
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3. Projeto Visual
3.1. Capa
Ramos, com fotos de Ivan Cardoso. O primeiro aspecto a ser trabalhado na análise desta
capa é a sua originalidade em relação a outros LPs comerciais da época. A capa é o outdoor
de um LP. É normalmente através dela que o comprador trava o primeiro contato com o LP
enquanto produto, e é a capa (e não o conteúdo sonoro) que fica exposto nas lojas.
além de alguma imagem, gravura ou montagem que, supostamente, deveria manter relações
com o conteúdo do mesmo. Além de compor, junto com o material sonoro, uma totalidade
Na capa do Araçá Azul, no entanto, não há nenhuma inscrição verbal que permita
uma identificação quer com o conteúdo, quer com o autor. Todas as relações só podem ser
enquanto produto puramente comercial, pois a maneira como a capa foi concebida
espelho como elemento central, a identificação da obra pela capa só é possível pelo
Projeto visual 39
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fonográfica (Philips), no canto superior direito, porém pouco perceptível devido ao fundo
escuro em que se encontra. Por outro lado, a montagem é extremamente bem sucedida na
em posição oblíqua. Nesta, ele aparece com o corpo desnudo, trajando apenas uma sunga
vermelha. Seu rosto está parcialmente encoberto pelos cabelos e pela sombra dos mesmos.
folhas de palmeira contrastando com um céu azul. Ocupando o extremo direito, em posição
direita foi sobreposta a imagem de um pedaço do tórax, vestido com uma blusa preta.
acentuado pelo fato de o rosto estar encoberto. Essa busca nos é então apresentada como
interessante a oposição desta busca com a proposta tropicalista da década de 60. Enquanto
aquela lançava mão de diversas alegorias para caracterizar o fazer artístico, aqui Caetano se
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proposto pelo movimento tropicalista é trocado por uma paisagem praiana, natural,
composta pelas palmeiras, pela grama e pela indumentária mínima. Todos esses elementos
nos permitem classificar essa busca como uma busca de identidade, já estabelecendo uma
pela égide do /saber/. A modalidade do /saber/ estagna o curso do devir, para medir a sua
evolução. Confrontando essa cena com a trajetória de uma das figuras mais importantes do
movimento tropicalista, é possível deduzir que Caetano está nesse momento propondo uma
imagem do abdome do autor, no lado direito. É esta a imagem que está em primeiro plano,
e a montagem leva a crer que esta é a imagem que dá origem à imagem refletida. São dois
destaque para o umbigo, cicatriz deixada pela queda do cordão umbilical, remete à ligação
criação em estado embrionário. Com essa imagem, Caetano circunscreve um espaço dotado
de historicidade, onde convivem tanto sua obra como sua origem. Além disso, a gestação
refletindo não só sobre a sua individualidade, mas também sobre a sua obra – e ambas nos
são apresentadas pela imagem refletida no espelho. É interessante o efeito de sentido criado
por esse paradoxo: ao mesmo tempo em que Caetano exibe o seu interior despido, sua
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caracterizando a imagem da capa como sendo uma montagem manipulada. Nesta, o corpo
do autor está fragmentado. São dois os efeitos de sentido decorrentes dessa montagem. O
primeiro decorre diretamente do fato de a imagem do autor ter sido manipulada, não sendo
mais uma representação do mundo natural. A ação do homem como agente transformador
Geral”. Retirando cada elemento de sua posição natural, a fragmentação evidencia não só
(quando a partir dos elementos componentes, compõe a unidade). Todos esses efeitos de
definição de dois eixos (vertical e horizontal) e duas diagonais, ligando os ângulos deste
quadrado. É interessante notar que enquanto os eixos podem ser determinados a partir de
uma oposição simples (alto vs baixo e esquerdo vs direito), as diagonais são compostas de
maneira complexa, visto que cada ângulo precisa das informações dos dois eixos para ser
Projeto visual 42
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definido (alto/ esquerdo, baixo/direito, etc...). Além disso, o encontro das diagonais define
quase todo o corpo do compositor, e ocupa a posição central da capa. Os outros três objetos
(pé, barriga e tronco) estão alinhados com os eixos horizontal e vertical, e ocupam posições
periféricas. São imagens diretas (não refletidas) e fragmentadas. Temos então o seguinte
quadro de oposições:
Esta capa pode ser interpretada como a descrição de uma transformação: a passagem
notar que a “soma” dos elementos figurativos foi recoberta também por uma operação
objetos naturais (céu, plantas e o corpo nu – cores frias) e artificiais (a sunga – cor quente).
Projeto visual 43
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Estas oposições serão articuladas não só com os outros elementos visuais (como veremos a
3.2. Contracapa
compositor estão impressos em letra de forma, na cor azul. A imagem apresentada é a foto
araçazeiro, de folhas simples e aromáticas. Ele fornece o fruto de mesmo nome, o araçá,
comestível e muito apreciado, também conhecido como goiabinha. Fruta que vai do
que o araçazeiro está presente na maior parte do litoral brasileiro. Também está presente a
azul” não se limita à imagem do fruto, mas atinge toda a contracapa do álbum: o fundo e os
claro que eles não fazem parte da concepção artística da contracapa, mas estão presentes
música “Drume Negrinha”, versão da música “Drume Negrita”, última música do lado A
do disco Qualquer Coisa (1975), Caetano faz uma outra referência ao araçá, explicitando o
apresentado (supostamente à uma criança) como recompensa por dormir. No segundo, ele é
apresentado como elemento secreto (face oculta) de uma sanção positiva (não erra quem
(termo ausente) e artificial vs natural, já que o mundo natural não é monocromático. Com
apresentação de um araçá azul, é fortemente enfatizado, já que o azul é a única cor presente
nessa montagem.
Temos aqui uma organização espacial muito semelhante à capa. O talo em que se
encontra o fruto também é alinhado com a diagonal, só que desta vez a que liga os ângulos
O fruto é destacado do talo pela saturação da cor, e do fundo pela nitidez do foco.
O encarte central é uma montagem com várias fotografias. A página dupla foi
dividida em três colunas. A coluna central é a mais larga, ocupando mais da metade da área
disponível. Esta coluna central é dividida em três partes desiguais: a parte do meio é a
maior, e nesta Caetano aparece deitado na praia, de braços abertos, como que crucificado.
Na parte inferior desta coluna estão os nomes das músicas e os créditos. Na parte superior,
dinailton-d.morena-
Com esta afirmação, o autor já cria uma expectativa maior acerca do conteúdo da
obra, além de jogar com o duplo sentido, pois “entendidos”, na época, era uma gíria que
hoje se entenderia como “gay”. A escolha de uma expressão de duplo sentido, posicionada
forma interessante de apresentar a obra. É como se o autor desse uma “dica” sobre como a
informação vai ser tratada no trabalho. O duplo sentido é sempre uma tensão entre duas
mesmo tempo em que desvela uma possibilidade de revelação. É também uma retomada do
“Araçá Blue”, no encarte central e no encarte interno – no selo do disco o nome está em
português.
retângulo o título do disco em azul, com um fruto de araçá, também em azul. Nesta foto,
não há monocromia, sendo observado o verde das folhas atrás do fruto. Abaixo, Caetano
admirando-se outra vez no espelho, e mais abaixo olhando à frente, sério e introspectivo.
Na coluna direita, dividida em apenas duas partes, Caetano está no mar, ao lado de
garotos negros nadando e jogando bola. Abaixo, aparece à frente de um muro azul,
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descolorido. Nesta coluna existe a inserção de uma fotografia de Dona Edith, tia de
isotopia da identidade nacional, presente nas imagens do araçá, e dos garotos negros
jogando bola. Uma outra isotopia criada é a dos elementos de origem, com as imagens de
arara ou dia. Em latim, a mesma palavra “ara” tem outros significados. “Ara” é um lugar
coloca o cálice e a hóstia, para celebrar a missa. “Ara da cruz” é a cruz em que Jesus Cristo
foi crucificado. Ao mesmo tempo, “ara” representa uma identidade nacional, e um lugar
sagrado.
se opõe a toda uma constelação de elementos que apontam para a construção de uma
identidade nacional. A citação do cantor cubano Bola Nieve e o termo “blue” são as duas
únicas manifestações de elementos não nacionais em todo o projeto artístico visual do LP.
Essas duas citações trazem informações musicais: a voz suave do cantor cubano negro e o
para um estilo de música que exterioriza a dor interna, solitária e melancólica, não mais do
negro norte-americano longe de sua África (origem), mas do retirante do recôncavo longe
Projeto visual 48
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de sua terra e seus costumes. O azul do araçá ganha então um componente de significado
disfórico, e sua deformação cromática passa a ter um caráter de degeneração, de perda dos
valores de origem.
doméstica por quase toda a sua vida, negra e analfabeta, Clementina tornou-se um símbolo
samba. Dotada de uma voz estridente e de uma interpretação que beirava o rústico, a
simples citação de seu nome no encarte invoca não só uma importante parcela da música
de aproximação e síntese que encontrará eco no decorrer do LP. Ao unir esses três
produção musical das três regiões, mas também para a proximidade de sua origem étnica. A
escolha dos representantes não poderia ser melhor: temos a América de língua inglesa,
origem. O resultado disso é o prenúncio de uma percepção (que se tornará mais explícita
a contracapa. Nos dois primeiros quadrados, no canto superior esquerdo, podemos observar
o araçá preso ao talo diagonal, e logo abaixo mais um reflexo de Caetano no espelho, na
outra diagonal. Mas ao observar a montagem como um todo, fica evidente o forte contraste
Projeto visual 49
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entre os traços curvos e oblíquos que dividem os objetos da capa e os traços retos e
ortogonais que dividem as imagens do encarte central. A composição deste encarte tende
Aqui também podemos perceber uma oposição entre central e periférico. Nas
plano, com a dupla exceção no quadrante superior esquerdo (o compositor e o fruto). Todas
maior, quase todas as linhas são horizontais, e é a única representação de corpo inteiro de
todo o projeto gráfico. O corpo do compositor está paralelo às ondas e às linhas formadas
pelas falhas na grama em que está deitado. Essa orientação observada no plano da
expressão nos permite estabelecer uma nítida relação com o plano do conteúdo: Caetano
está alinhado com os elementos naturais que formam a sua paisagem de origem.
encoberto pelos cabelos, o nome das faixas e seus compositores, e a ficha técnica. No
verso, encontramos as letras das músicas e o selo da gravadora. A única cor é o azul.
Mais uma vez são apresentados os semas da busca de identidade (rosto encoberto) e
3.5. Conclusões
A análise dos elementos visuais elencou diversos traços de sentido que serão
sincrético desta obra. O estudo comparativo de outros LPs poderia propor uma tipologia de
relações entre projeto visual e projeto musical de um LP, e estabelecer parâmetros para
4. Projeto Musical
anônimo. Nos créditos, a indicação de que é cantado por Edith Oliveira, a dona Edith, tia de
e no pandeiro.
É possível notar claramente, mesmo em uma primeira audição, que esta faixa é
composta por dois momentos interligados porém distintos, cada qual perfazendo uma
construção do sentido desta faixa e a estratégia utilizada para compor uma unidade com
No primeiro trecho, desenvolvido no tom de Fá# maior, ouvimos apenas uma voz
já nessa primeira passagem. É muito freqüente a citação do instrumento musical nas letras
adjetivos ou apelidos (meu pinho). Na maioria das vezes, o arranjo musical se compromete
com o que está sendo dito pelo intérprete, e apresenta o instrumento citado na letra,
efeito é ainda mais acentuado quando ocorre a personificação do instrumento na letra, que
melodicamente às frases musicais entoadas pelo intérprete. Toda a canção transcorre como
algumas canções, o instrumento age como uma arma de defesa e ataque (é conhecido o uso
desta técnica para a encenação de “duelos”), em outras ele é um recurso para a distensão
Nesta canção ocorre algo muito diferente. Apesar de a viola ser incorporada e
personificada na letra, ela simplesmente não aparece no arranjo instrumental. Mas ela é
colocada no texto como segunda pessoa, e portanto está presente na cena instaurada pelo
discurso do trabalhador. Mas está muda. Esta ausência no plano musical acentua
drasticamente a tensão passional vivida pelo sujeito. A viola é o símbolo que representa
todo o sentimento de falta vivido pelo narrador, ou seja, atua no texto como um reforçador
Viola, meu bem 53
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do termo “sertão”. A intimidade e intensidade com que aquele se refere a esta mostra o
apego que existe entre o narrador e o sertão, definindo claramente o seu eixo de valores.
sentimento de falta que o sujeito nutre por esses objetos representa a ligação que ele
mantém com seus valores primordiais, com a sua origem. A busca da conjunção com esses
não decorre simplesmente da saudade. Há uma força externa, opressora, agindo para que a
viola se cale. Essa força é figurativizada pela imagem da ferrovia, a “Leste”. A “Leste” é o
Destinador, que o prende longe do objeto e ainda o coloca em conjunção com o anti-objeto,
o “trem”. Existe um contrato entre a “Leste” e o S1, pois este é empregado daquela, o que
pressupõe uma relação contratual entre Destinador e Destinatário. Do ponto de vista do S1,
maneira evidencia a competência da força opressora em opor-se a ele. Isso faz com que a
afirmação proferida pela voz solitária soe débil e desacreditada: “vou me embora pro
“espaço disfórico”. O sujeito “eu” está em conjunção com valores disfóricos, sincretizados
sincretizados no espaço “sertão”. A análise da letra da canção nos leva a crer que ele está
Viola, meu bem 54
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em estado de espera: tem a modalidade do /querer fazer/ ir embora, mas não a do /poder
fazer/. O diálogo estabelecido entre a letra e o arranjo sugere a presença de um /saber não
resignação (que estagna) estão em conflito, mas em equilíbrio. Esse complexo perfil
Este primeiro trecho, desenvolvido no tom de Fá# maior, tem a tessitura de uma
oitava, indo de uma nota Fá# no grave a outra nota Fá# no agudo. Isso significa que tanto a
nota mais aguda quanto a mais grave da canção são notas fundamentais do acorde de
rápido da marcação do atabaque (Andante – 109 batimentos por minuto), não fica
entoativo principal. A razão disso é o fato de a voz não se ater a um andamento preciso,
atabaque são diluídos pela livre interpretação vocal. Há na verdade uma dissociação entre
veracidade do seu conteúdo. O /fazer/ não consegue se projetar sobre o /ser/ para
transformar o seu estado, mas também não o abandona. Desta forma, o conflito passional
1
Sem pulsação determinada.
Viola, meu bem 55
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primeiro verso da canção, reiterada pela repetição exata da frase melódica no segundo
verso:
tão, ô bem, ô
bem, ô bem, ô
por ativar o uso da memória. Ela segura o andamento, e impõe uma distensão relativa sobre
Viola, meu bem 56
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a tensão de um pulso rápido. Essa tematização é um recurso que também sustenta, no plano
que gera o efeito de sentido de afirmação. Esse efeito é reforçado pelo fato de as notas
finais desses tonemas coincidirem com a fundamental dos acordes em que elas se
encontram. Temos então, além do efeito de distensão provocado pela curva descendente,
apresentação de uma segunda parte, definindo um novo tema. Esse novo tema apresenta, no
importante notar que este tema é a inversão do primeiro, executado em registro mais grave:
Sou Sou
em Les ma trem
-pre da -qui do
nova, o que gera surpresa e ao mesmo tempo expectativa de retorno. É uma estratégia para
Viola, meu bem 57
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manter o ouvinte atento, gerando um acúmulo de tensão. Apenas ressaltamos o fato de que
esta “novidade” é relativizada em parte pela própria tematização deste novo trecho, em
melodia desta canção. O pulso (não muito) rápido é desacelerado pelo uso da tematização.
A surpresa causada pela introdução da segunda parte é diluída com uma nova tematização e
A terceira parte da canção se opõe às duas primeiras por apresentar grandes saltos
intervalares. A melodia vai do extremo grave ao extremo agudo nos dois primeiros versos.
Esse movimento gera um acúmulo de tensão que atinge seu ápice no extremo agudo da
frase melódica, para ser então resolvida na frase descendente, que retorna abruptamente ao
extremo grave.
bem
ô
-qui não me vi
a dou -o
vi
Vou me em bem,
Viola, meu bem 58
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Ô -o meu
-o
vi -la -la
vi
(bem)
Esta grande frase descendente é um ícone de tudo o que falamos até agora. Ela
Além disso, essa nota é alcançada através de um salto intervalar. No entanto, esse
ponto de tensão é diluído pela resolução harmônica, e pelo fato de a nota mais aguda ser
É interessante notar que a frase eleita para este ponto importante é “eu aqui não me
dou bem”. O destaque é dado para o sentimento disfórico vivido pelo narrador, o que
certamente acentua a sua percepcão. Mas este acento não recai sobre a ação propriamente
dita, inscrita no verso “vou me embora pro sertão”. Este é mais um elemento que age para
reforçar a idéia de que esta frase relata muito mais um desejo do que a certeza de uma ação
futura. Logo após a frase descendente, o tema inicial é revisitado. Mas a melodia aos
narrador tivesse gastado toda a energia disponível para atingir o ápice de tensão, não lhe
restando forças para manter o fio melódico. Torna-se impossível crer na veridicção do
Viola, meu bem 59
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elementos que desaceleram a curva melódica. O prolongamento das vogais é claro nos
finais de todos os versos. Essa duração conferida às vogais deixa transparecer o processo de
maneira geral, toda a interpretação vocal, com a pronúncia clara e pausada, contribui para
disjuntivo e o alto teor de tensão passional relatado na letra da canção. O outro fator que
arranjo de base, composto apenas pelo atabaque. Apesar de ser este um instrumento de
marcação rítmica, não há um elo que o una com a voz. Esta parece desenvolver-se
observamos uma construção que confronta opostos: a marcação rítmica, que acelera, e os
consegue maior credibilidade para a letra, ao fazer com que seu conteúdo ecoe pelas
estruturas musicais.
mesmo tempo em que a segunda canção entra em fade in2. Esta nova canção também é um
samba de roda tradicional, também anônimo, mas desta vez uma execução coletiva se opõe
2
Fade é o nome dado ao processo de suavizar a entrada (fade in) ou saída (fade out) do som aumentando ou
praticamente todos os elementos desta canção se opõem à primeira. Por isso mesmo, a
diferença nas condições de gravação das duas canções. A primeira voz tem o timbre
característico de uma gravação em estúdio, pois seu som é claro, preciso e bem definido,
resultado típico de uma gravação feita em local fechado. Já na segunda canção, os timbres
são “embolados”, mal definidos, dispersos. Esta gravação foi feita certamente em local
A letra desta canção é composta apenas por pequenos versos, feitos com a junção de
culinária nordestina: aipim, mandioca e milho. Sem verbos, e sem uma narrativa explícita,
esta canção nada mais é do que uma apresentação de valores. Mais do que uma
Viola, meu bem 61
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de origem, tanto do sujeito instaurado na primeira canção como deste novo sujeito. E, como
A escolha de vegetais para representar esses valores não é casual nem irrelevante.
Os vegetais extraem da terra os elementos necessários para sua vida, e nela vivem fincados
até serem arrancados por uma força externa. Com essa simples estratégia, o compositor
consegue apresentar de maneira muito clara os valores envolvidos nesta faixa, e de que
maneira o sujeito do discurso se relaciona com esses valores. Ao remeter-se aos vegetais,
que só vivem enquanto estão fincados em sua terra, ele mostra que para ele não há vida
possível longe dela. Além disso, ele reitera a presença de uma força externa que atuou para
afastá-lo (e como veremos, ainda atua, para mantê-lo longe). Quase como uma curiosidade,
ou ainda uma “coincidência criativa”, podemos ressaltar que é possível ouvir aqui a
respondendo cada verso proferido pelo sujeito, contrasta com a solidão da voz
desacompanhada da primeira canção, e também com o vazio deixado pela ausência da viola
no arranjo musical. O sentimento de solidão e inadequação (“eu aqui não me dou bem”) são
substituídos pela festa em comunidade. Desta maneira, o compositor vai agregando traços
lugar.
Esta segunda canção, em Si Maior, tem uma tessitura menor que a primeira, uma
quinta justa, indo da nota Si ao Fá#. Apesar de terem as duas canções o mesmo andamento,
esta apresenta uma tendência muito mais forte (ou ainda: muito menos questionada) à
tematização. A todo momento, o coro repete o refrão “xô, piau”, tonema descendente
finalizado pela nota da tônica, o que prende a melodia tanto à marcação rítmica dos
reforçada não só pelo atabaque, mas também pelo prato e palmas. A própria interpretação
recorrência deste minúsculo tema ocorre em intervalos curtos e regulares, assim como a
deste samba de roda. Tudo ocorre como se houvesse uma forte restrição à introdução de
elementos novos, que poderiam desestabilizar esta rígida estrutura rítmica, harmônica e
melódica.
-i -êêê
-o -pi
Xô, Minha mandi Xô, Meu a Xô, iau
-ca -im
linearmente, sem rupturas. É evidente que esse atabaque foi acrescentado por meio de uma
manipulação do material sonoro. A prova disso é que o atabaque não acompanha o efeito de
fade in e fade out que foi utilizado para suavizar a passagem entre as duas canções. Além
disso, seu timbre é o mesmo de ponta a ponta, ou seja, ele não sofreu mudança nenhuma
apesar das gravações terem sido feitas em locais diferentes. Ele foi “artificialmente”
composta por duas canções muito bem delimitadas. O atabaque atua para promover a
processo de absoluta ruptura. Esse é o único elemento do segundo trecho que não se opõe
perdida, estabelecendo uma ponte entre a primeira parte, na qual os objetos estão ausentes,
e a segunda, na qual eles estão presentes. Esta “ponte” é uma marca representativa da
compreensão do sentido global desta faixa. Vimos que as duas canções delimitam dois
espaços geograficamente distintos. Logo, aceitar que as duas canções foram interpretadas
pelo mesmo sujeito significa aceitar que elas ocorreram em tempos distintos. Mas a
presença linear do atabaque impede essa consideração. Ao manter uma pulsação constante
e sem rupturas, ele delimita um espaço de tempo único, não interrompido, confrontando a
Viola, meu bem 64
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oposição espacial a que nos referimos. Este fato desestabiliza o efeito de realismo que
O texto não nos apresenta nenhuma ação propriamente dita, capaz de fazer o sujeito
vencer essa distância que separa os dois estados, mas apenas sobrepõe os dois estados do
conjunção (resolução?). É justamente essa velocidade excessiva que cria o efeito onírico da
instantaneamente), somado ao efeito de linearidade criado pelo atabaque, que sugere que os
dois estados estão acontecendo no mesmo espaço e no mesmo tempo. Cria-se a figura do
sonho, da ilusão que vem aliviar a tensão da realidade. O sujeito de fato não está em
conjunção real com o objeto, e ainda se encontra em estado de espera. Tudo leva a crer que
Outro fator que apóia esta imagem é a debreagem utilizada. Ambas são enunciativas,
“aqui”, o segundo não menciona tempo nem espaço. Esse procedimento gera um efeito de
sentido de provérbio, de verdade absoluta, que tem por função apenas a de enumerar os
valores do sujeito. É a ausência de uma “âncora” temporal e espacial que “libera” esta
segunda canção para que ela possa se subordinar à primeira. Uma vez que o realismo da
segunda canção cai por terra, as duas imagens opostas, a dura e solitária realidade e a
e tristeza (blues?).
É importante também notar que o intervalo que existe entre os dois tons é de uma
quarta justa ascendente. Este intervalo tem grande poder resolutivo, pois representa o
Viola, meu bem 65
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primeira. É importante notar que esta relação só se faz entre as notas fundamentais de cada
uma das tonalidades (Fá# e Si), pois cada trecho tem sua harmonia completa funcionando
individualmente. Essa relação só pode ser percebida pelo ouvido depois de entrar o segundo
oposição entre os valores apresentados. É esta primeira faixa que dará o parâmetro para a
cidade para uma oposição do interno vs externo, ou ainda do “eu” vs “não-eu”. Estas
utilizadas nesta faixa, que atuam diretamente na construção do sentido de cada passagem.
De conversa 66
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4.2. De conversa
meu bem” observamos a justaposição de duas canções, cada qual funcionando como um
entanto, a faixa ainda está claramente circunscrita no âmbito daquilo que é o senso comum
para a definição do gênero canção: uma letra entoada sobre uma linha melódica. A
experimentação da faixa anterior atuou apenas no sentido de ressaltar o elo possível entre
nenhuma delas.
nessa faixa questiona os limites que separam fala e canção, o que nos obriga a uma reflexão
simultaneamente, cada uma estabilizada em uma nota diferente. É interessante notar que
mesmo estando cada voz produzindo uma palavra de maneira “natural”, plenamente
diferença entre os dois sistemas não será encontrada no nível acústico da produção do som.
Isso é conseqüência direta das propriedades do som, estudadas pela física ondulatória, que
prevê que não existe som que não tenha simultaneamente quatro propriedades: altura,
partir das nossas cordas vocais, todo som tem as quatro propriedades. É tentador concluir
que todo som é, em última análise, uma nota musical, mas isto implicaria em menosprezar
o sentido da palavra “musical”. Podemos dizer, com mais segurança, que todo som tem
“potencial” para ser uma nota musical. A diferença entre o som “musical” e o som “não
determinado sistema. Este sistema varia de uma cultura para outra, e varia dentro de uma
mesma cultura ao longo do tempo. Aquilo que é musical dentro de um sistema, pode ser
ruído para um outro. O que nos interessa aqui é comparar o sistema musical, no qual se
melódica” traçada pelas notas relativas a cada sílaba entoada ou cantada. Na canção, a
curva melódica é precisa e delimitada. Cada nota tem sua posição fixada em relação às
outras, tendo como pano de fundo um sistema de alturas. No caso da canção, o sistema
utilizado é invariavelmente o sistema tonal1. Isso implica em dizer que a melodia musical
oferecido pelo sistema tonal e, horizontalmente, relaciona-se com as outras notas que
compõem a melodia.
1
O sistema tonal é invariante em toda manifestação popular ocidental. A canção erudita contemporânea usa
freqüentemente outros sistemas, como o dodecafônico, por exemplo.
De conversa 68
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da informação, sendo imediatamente descartada após cumprir sua tarefa. Essas notas não
têm uma posição fixa em relação às outras, e também não estão orientadas a partir de um
sistema intrinsecamente organizado. É por isso mesmo que não é comum referir-se a essas
notas como uma melodia2. No entanto, este não é um suporte “passivo”, isento de
situação passional do falante. Ela pode revelar o grau e o tipo de comprometimento entre
aquele que fala e aquilo que é falado. A curva melódica da fala pode indicar se o texto
falado é dito com intenção de verdade (afirmação) ou não (ironia), se é o resultado de uma
cadeia fônica da fala, para mesmo dentro de um sistema muito mais rígido, obter os
mesmos efeitos de transmissão dos dados passionais do sujeito. Em maior ou menor grau, a
É evidente que toda essa problemática não é posta em questão na fala cotidiana. Na
primeira palavra desta faixa, no entanto, ocorre um fato que não faz parte do procedimento
2
Tatit prefere o uso do termo “cadeia fônica”.
3
Este termo é utilizado aqui com o sentido estritamente musical que é o de acontecimento simultâneo de
notas ou frases musicais.
De conversa 69
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sobrepostas, não há uma comparação direta “termo a termo” entre as notas de duas cadeias
palavra “bem”, ainda sobrepostas polifonicamente, mas desta vez não simultâneas. Mais
uma vez, é a sobreposição o fator que permite uma comparação mais próxima entre cada
evento, ressaltando o fato de que se por um lado a canção pode ser recoberta por elementos
“hum” e pela palavra “mas”, seguida de um breve silêncio. Já neste ponto fica evidente que
o texto lingüístico desta faixa também está estruturado de uma forma não convencional,
pois as palavras, quando identificáveis, não formam uma seqüência organizada, como
acontece na fala cotidiana. Elas apenas estão fornecendo indícios que vão refletir nos níveis
não são claramente identificáveis, o mesmo acontecendo com os atores do discurso. Tanto
4
Na faixa “Quem”, do LP “Tropicália 25 anos” – 1993, Caetano retoma esta experiência confrontando
pronúncias da palavra “quem” extraídas de gravações de diversas músicas brasileiras.
De conversa 70
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o título da faixa quanto a presença de várias vozes sugerem a idéia de uma conversa.
destinatário. Essas funções podem manter dois tipos de relação, contratual (quando se
estabelece) ou polêmica (quando se dissolve). Esses dois tipos de relação deixam marcas no
realizar uma análise prolífera no nível discursivo, os elementos presentes sugerem uma
Logo no início da faixa, temos uma relação contratual, na fase dos “cumprimentos”: “ah”,
“bem”. Logo depois, temos uma ruptura, com a palavra “mas”, entrecortada por silêncios.
provoca. O compositor baiano mostra que é possível, apesar da economia absurda de signos
após a ruptura provocada pelo “mas”, Caetano ilustra o conceito de “parada” utilizado por
Zilberberg para fundamentar seu ponto de vista sobre a análise semiótica: a parada é uma
que está sendo dito (plano do conteúdo) mas para a maneira como está sendo dito (plano da
expressão). Com esse procedimento, notamos que os elementos “musicais” que incidem
sobre a cadeia fônica da fala não atuam exclusivamente para criar os efeitos de
De conversa 71
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do sotaque. Fica evidenciada a consciência do compositor sobre o fato de que o sotaque não
é definido apenas pela maneira como os sons são pronunciados isoladamente (assunto
tratado pela fonética), mas também pela maneira como é composta a curva melódica da
cadeia fônica.
sobreposição de elementos nos permite fazer novas comparações entre os dois sistemas.
Pela primeira vez nesta faixa os dois sistemas são apresentados simultaneamente e outro
importante fator organizador do sistema melódico, ausente na fala, se faz presente: o pulso.
Embora a fala possua seu ritmo, ela não chega a estabelecer um pulso regular. A escolha de
determinada palavra do léxico para a construção de uma frase na fala cotidiana não leva em
conta o número de sílabas, e nem tampouco o pé. O resultado é uma rítmica absolutamente
constante. A questão rítmica na fala no entanto tem uma atuação de ordem intensa, atuando
não sobre o sistema como um todo, mas recaindo sobre seus elementos individualmente. E
este é um outro fator que atua na determinação do sotaque: a velocidade de pronúncia das
palavras varia de região para região. Já na música, a rítmica tem uma função de ordem
definida da faixa. Até este momento, não houve uma apresentação de nenhum dos dois
plenamente nenhum dos dois sistemas. O que faz diferir um sistema do outro é a
estamos diante da fala. Organizada para a compreensão lingüística a fala pode dispensar as
das conexões específicas do sistema lingüístico. Pode até exibir uma letra baseada apenas
absolutamente inteligível:
ser puramente fala, e começa a ser percebida como elemento musical. Em seguida, temos a
lingüisticamente:
lingüisticamente organizada, após esta longa trajetória construída a partir dos elementos
De conversa 73
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elementos mais simples. Trata-se de uma organização sintática que tem por finalidade não
dissolve. Com o novo ataque das vozes sobrepostas, a canção não consegue mais manter a
sua estrutura interna e desaba. A resultante é um amontoado de vozes, sons guturais, notas
Este é o final de uma primeira etapa da faixa, que deixou evidente a origem
maneira como eles se organizam em cada nível de profundidade. Esta faixa mostra que a
relação entre fala e canção é muito mais complexa do que a princípio poderia parecer. A
estruturação que faz nascer a canção dentro da fala é constantemente ameaçada por uma
força desorganizadora, como se a canção estivesse sempre por um fio, podendo a qualquer
momento “voltar” a ser fala e perder seu poder de preservação. O equilíbrio entre essas
duas forças é dinâmico e tenso. Por essa razão, Tatit já comparou o processo de composição
do que isso, o bom compositor consegue esse equilíbrio com tal graça que todo o esforço
5
Cf. TATIT, 1996
De conversa 74
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primeiro plano.
Na segunda etapa, as vozes trêmulas e os sons continuam. Uma voz canta uma
seqüência de notas, nítida citação do tema “Assim falou Zarathustra”, de Richard Strauss,
1968. Esta pequena melodia possui características muito interessantes. Partindo de uma
nota fundamental, a melodia alcança uma quinta justa e posteriormente uma oitava. Estas
duas notas são os dois primeiros harmônicos da série harmônica. Elas são portanto
som nesta seqüência de notas. Mais interessante ainda é o fato de que essas notas, apesar de
estabelecerem um ponto de origem com a fundamental, não são suficientes para a definição
tonal maior ou menor6. Elas formam portanto um “embrião” que pode se desenvolver em
dois sentidos distintos. E Strauss, ao invés de realizar a escolha e polarizar a música para
uma das duas tonalidades, enfatiza a ambigüidade, apresentando logo em seguida as duas
baseado em um conto de Arthur C. Clarke e elaborado a quatro mãos pelo autor e pelo
cineasta, narra a trajetória da espécie humana, desde sua origem primata, até um
evolução do homem primitivo ao Homo Sapiens. Ele marca o ponto de partida, ou origem,
da nossa espécie. O restante da narrativa é a busca desse objeto, ou seja, a busca desse
símbolo primordial, a busca da origem da espécie humana. Trata-se não de uma origem
6
O tom maior ou menor é definido pela qualidade do intervalo de terça.
De conversa 75
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reforçador para a isotopia da busca dos valores de origem, constante em toda a obra.
Em seguida, o som das palmas surdas se organiza, estabilizando um pulso. Uma voz
se estabiliza como principal, imitando o som anasalado dos repentistas nordestinos. Esta é a
só é possível graças às características sonoras de sua fala. Esta voz principal logo se
desestabiliza, assim como o ritmo criado pelas palmas. Então um novo ator é apresentado,
com vozes imitando um aboio. Por um instante, todas as vozes se organizam, criando uma
Ouve-se uma voz, imitando criança, dizendo “Tô com fome” algumas vezes. A idéia
de fome é reforçada também nos créditos da música, que informa que a percussão é feita
ossos, pois ao se percutir sobre o corpo, ele todo ressoa, e não só a pele e os ossos. Pele e
osso é a expressão usada para designar um corpo muito magro, o que reforça a idéia de
fome. Esse regime de escassez, simbolizado pela fome, ecoa pelo arranjo, através dos sons
curtos e secos das palmas surdas. Há uma forte ênfase na ruptura e na descontinuidade
neste trecho da canção, acentuando os valores remissivos. Existe uma união muito clara
reconhecível no repentista, ao qual Caetano também faz alusão. E assim como aconteceu
Surge um terceiro ator, também apenas identificável pelo sotaque. A voz do fundo,
notas, que serão utilizadas na música que se forma logo após, com as vozes inferiores se
estabilizando numa linha de baixo. Ouvem-se também percussões corporais e um coro que
entra no segundo verso da voz principal. O coro canta apenas com vogais e, sem o efeito
percussivo das consoantes, e assume um caráter etéreo e melodioso. Desta maneira, há uma
ênfase na continuidade neste trecho da canção. Este fato novo opõe-se nitidamente ao
trecho anterior, passando a realçar os valores emissivos, fazendo com que a entrada da
Ronaldo Bastos, indicada nos créditos entre aspas. No quarto verso, a voz se antecipa ao
coro, provocando um efeito de “eco”. Mais vozes entram, defasadas, e surge um piano
acompanhando a polifonia.
O cantor pergunta à morena “quem temperou o cheiro do cravo”, ou seja, quem fez o cravo,
ou quem fez o cravo ter o seu cheiro característico. A mesma pergunta ele faz a respeito da
canela, buscando a origem das coisas comuns. E essa pergunta é direcionada à morena, que
tem a cor do cravo e da canela, fazendo com que o cantor acredite ter ela as respostas. A
De conversa 77
________________________________________________________________________________________
da fala e do canto. Também está procurando a origem negra da nossa música. Temos aqui
/fazer/ presente no processo de tematização. O pequeno tema que inicia com um salto
intervalar e encerra com um tonema descendente é repetido três vezes em cada estrofe. A
tem gana
-rou cheiro
ci -pe do cra
Ah, -vo
morena quem O
De conversa 78
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tem rena
-rou cor de
mo -pe cane
Ah, -la
cigana quem A
primeira. Vimos, na análise de “Viola, meu bem” que é nítida a manipulação do som em
canção, nem nenhum fator que possa contribuir para a descaracterização de algum dos
trechos enquanto canção. Já na “De conversa”, como acabamos de ver, a canção é algo que
e também com a maneira convencional de composição. Esse sentido de ruptura não seria
tão eficaz se esta faixa fosse a primeira do LP. Há uma intencionalidade clara no sentido de
constantemente quebrados.
texto ao mesmo tempo como objeto de significação e objeto de comunicação. Desta forma,
fiduciários. Esta dupla acepção do texto dá ao modelo semiótico uma grande flexibilidade,
pois com as mesmas ferramentas de análise é possível dar conta do texto em si, e das
biográficas, declarações na mídia, e obras anteriores, que também não passam de textos,
não se confunde com a pessoa Caetano Veloso. O fato é que, mesmo no auge da fase
Londres, são discos de canções. Até mesmo os happenings tropicalistas aconteciam sob o
mote de canções, e Caetano havia deixado o Brasil após um estrondoso sucesso: a canção
“Alegria, alegria”. Todos esses fatores bastam para aceitar que seus enunciatários/ouvintes
seus gestos, de que este seria um compositor de canções. A expectativa que circulava sobre
o Araçá Azul era de como seriam as canções, mas nunca se seriam canções. Ao apresentar
ruptura deste simulacro. Essa ruptura foi grande o suficiente para provocar reações
generalizadas de vingança.
7
VELOSO, 1997. pp. 486-487.
De conversa 81
________________________________________________________________________________________
Podemos então entender a faixa “De conversa” como uma dupla ruptura: a primeira
Segundo Caetano Veloso, em seu Verdade Tropical, o título “De conversa” também
referencia João Gilberto, que tinha acabado de gravar o samba “De conversa em
utilizados nessa faixa. João Gilberto é considerado o “grau zero” da música popular
brasileira. Sua interpretação vocal deriva diretamente da fala, ou melhor, sua interpretação
ressalta a fala que existe por trás da canção. Essa faixa pode ser entendida como a
radicalização, ou ainda a experimentação sobre seu procedimento musical. Além disso, ele
foi a figura central da bossa-nova, movimento que representa um marco em nossa música,
americano. Para muitos, inclusive para o próprio Caetano Veloso, ele representa o “elo
perdido” entre o passado musical brasileiro e sua modernidade. Dessa forma, sua citação
(relacionados à origem) aos valores novos. Dentro da ruptura que representa esta faixa, o
A mesma função tem a citação feita de Milton Nascimento ao utilizar a sua “Cravo
e canela” como música incidental. Mais uma vez, dentro da ruptura, o compositor consegue
restabelecer laços com os valores que, para ele, realmente importam. De uma certa forma,
8
Ibid. p. 485.
De conversa 82
________________________________________________________________________________________
há uma desvalorização da estética experimental enquanto técnica em si, pois ela é colocada
a serviço dos valores de origem. Fazer música experimental, sob esta ótica, seria uma
maneira de discutir e repensar a música brasileira. Ao afirmar que a frase “Eu quero ver
você alegre” se destinava diretamente a Milton Nascimento, como uma “[...] oração para
que ele superasse aquela tristeza imensa que o prostrava [...]”, surge uma mensagem com
características ufanistas. Esse aspecto ufanista já despontava por trás das críticas presentes
[…] eu não era inocente ao fato de que toda paródia de patriotismo é uma forma de
patriotismo assim mesmo – não eu, o tropicalista, aquele que antes ama o que satiriza, e não
satiriza facilmente o que odeia.9
9
Ibid. p. 338.
Tu me acostumbraste 83
________________________________________________________________________________________
4.3. Tu me acostumbraste
A inclusão da canção “Tu me acostumbraste” abre uma nova dimensão para o leque
acompanhada por violão, um assovio constante e poucas notas de piano, no registro agudo.
Esta é a terceira vez em que Caetano grava uma canção do repertório hispano-americano –
apenas o começo de uma prática que se tornaria constante na obra do compositor baiano, e
de Barro
Caetano Veloso
Tu me acostumbraste 84
________________________________________________________________________________________
Pinherinho Jr.
Celedonio Flores
Até este ponto, o LP Araçá Azul apresentou uma canção manipulada em estúdio
mais um grande choque na seqüência do disco. A intensidade desse choque é ainda maior
devido à ausência de uma introdução musical para a canção: ela já inicia no primeiro verso.
Fica muito claro aqui um procedimento que viria a ser “marca registrada” do fazer musical
inclusão de uma faixa experimental representou uma ruptura com a expectativa dos
obra também está propondo um novo contrato, que está sendo manifestado na capa,
ruptura interna deste contrato. O que acontece na realidade é uma velocidade muito
semióticos muito distintos, o que dificulta a apreensão e a ligação do sujeito (no caso, o
disco, em outro nível, Caetano promove uma sutura. Caetano canta o bolero com uma voz
leve e suave, aos moldes de João Gilberto, opondo-se à tradicional força que os cantores do
canção. Há uma revalorização tanto do bolero, tipicamente tachado como gênero “brega”
oposição entre brega e moderno foi freqüentemente empregada nas composições, arranjos e
percebe-se um choque entre a leveza do falsete e uma certa aspereza no timbre da voz,
o que parece constituir esta faixa, essa artificialização da voz faz a ponte entre o contexto
experimental e o não-experimental. Fica claro que a intenção não é opor estes dois
semelhanças. A evidenciação de uma técnica de estúdio em uma canção formal traz a tona
o momento e o ambiente da produção deste texto auditivo, sendo portanto uma genuína
marca do momento da enunciação. Graças a esse elemento, há uma marca no texto que se
evidente que não há nenhuma diferença entre o ambiente de produção desta ou de qualquer
outra canção gravada industrialmente, mas a presença desta marca no texto faz com que a
a atenção para a oposição natural vs artificial dentro de uma canção, Caetano aponta com
grande clareza para o paradoxo entre produto cultural e produto industrial. Há uma
reafirmação (do óbvio) de que toda canção gravada é sempre um produto industrial, sempre
1
Veloso, 1997. p. 486.
Tu me acostumbraste 87
________________________________________________________________________________________
manipulada em estúdio. Mas, pelo menos até este ponto da nossa análise, não é possível
tradicionalmente ligado ao nível discursivo, que são os efeitos de sentido gerado por marcas
da enunciação. No entanto, a pesquisa atual ainda não se debruçou sobre a canção para
fazer uma análise mais detalhada neste nível do percurso gerativo, atendo-se sobretudo aos
Tu me acostumbraste
E tu me enseñaste
Sutil,
llenando de inquietud
Mi corazón
Tu me acostumbraste 88
________________________________________________________________________________________
Yo no concebía
Como se quería
En tu mundo raro
Y por ti aprendí
Neste texto as funções actanciais são nítidas. O destinador “tu” determina os valores
(“todas essas cosas”, “tu me enseñaste que son maravillosas”) e doa ao destinatário “eu” os
valores modais do /querer fazer/ e /saber fazer/ (“llenando de inquietud”, “Yo no concebia
como se queria”, “Y por ti aprendi”). Fica explícito também que a manipulação se deu
destinatário e sujeito. Na última estrofe, há uma ruptura de contrato entre o destinador “tu”
e o destinatário “yo”, ao mesmo tempo em que finda a conjunção entre sujeito e objeto. O
destinatário se questiona por que o destinador não o ensinou a viver sem este contrato.
destinatário no mesmo ator “yo”. Essa busca por um novo destinador que doaria o /saber
fazer/ viver já poderia ser notada na reflexividade da pergunta (“por eso me pregunto”).
Tu me acostumbraste 89
________________________________________________________________________________________
subjetivação. Isso realça o caráter passional da canção. É possível observar dois percursos
enseñaste”.
disjunção. O elemento novo é que desta vez não se trata de valores primordiais, ligados à
origem do sujeito. Ao contrário, esses valores foram adquiridos (ou melhor, tornaram-se
me enseñaste”), até o ponto em que eles se tornaram imprescindíveis (“como se vive sin
ti”). Esse é um tipo de disjunção diferente daquele trabalhado na primeira faixa. Em “Viola,
meu bem” fica clara a oposição entre origem e presente, a primeira eufórica. Apesar de
estar em disjunção com os valores eufóricos, estes estão claramente definidos e localizados,
está modalizado pelo /querer ser/ conjunto, ou seja, possui o sentimento de falta, mas não
sabe mais exatamente onde estão os valores ausentes. A busca final do sujeito não é
mesmo tempo em que o sujeito sabe não poder mais voltar ao estado inicial (/saber-não-
poder-ser/), antes da modalização exercida pelo destinador, ele ainda não sabe ao certo
quais valores buscar agora. Ele está perdido, em busca de um /saber ser/ (“por que no me
melodia que privilegia o percurso, que valoriza as durações e amplia a tessitura. De fato,
toda a interpretação está marcada pelo prolongamento das vogais. Podemos perceber, em
toda a primeira parte, movimentos conjuntos tanto de ordem intensa (graus imediatos)
-das cosas
me a -braste to e
Tu -cos -sas
-tum
A
Tu me acostumbraste 91
________________________________________________________________________________________
ma -llosas
-se
Que
acréscimo atinge seu ápice na segunda parte, quando a melodia chega no extremo agudo,
exatamente com o adjetivo que qualifica o fazer persuasivo do destinador: “sutil”. Essa
segunda parte alterna o uso de graus imediatos e saltos intervalares, ressaltando mais uma
-til -gaste
lle a
mi -> ten
-ta
Su -ción
Como -na
u
-do ->
Lle
-nan de in -tud
-quie -zón
co
-ra
Mi
Tu me acostumbraste 93
________________________________________________________________________________________
ascendentes:
por -di
tu _ raro E ti a
-mo -ria En mun -pren
no -bia co se -do
Jo con -que
-ce
Tu me acostumbraste 94
________________________________________________________________________________________
esta é parte da “estratégia” do sujeito para reter o objeto por mais tempo, retendo o próprio
tempo. Como que prevendo a inevitável disjunção final, o sujeito retarda a evolução da
-gun -das
e ver
“como se vive”. Esta é a pergunta que resume todo o plano do conteúdo lingüístico. Sua
posição estratégica lhe confere um grande teor de tensão passional: ela é colocada logo
após uma melodia descendente que praticamente atravessa toda a tessitura; ela parte do
extremo grave e desenha uma curva ascendente. A resolução dessa tensão se dá com o
que
-> no
me en -ve
-se
Por -ñas vi sin->
ti ->
-se
-te -mo
Co
melódico devido à transposição oitava acima. Essa leveza, ressaltada pelo emprego do
Tu me acostumbraste 96
________________________________________________________________________________________
falsete nas notas agudas, fragiliza a imagem do “eu lírico” da canção, mostrando mais
com muita força, para a nossa “aquarela” de significados colhidos a cada faixa do LP, a
entre as oposições estabelecidas nas três primeiras faixas do LP e no material visual da capa
Liberdade Opressão
Natural Artificial
Sertão Cidade
Tabela 2
Glberto misterioso 97
________________________________________________________________________________________
acorde ao violão (Sol Maior) e uma voz, entoando a nota Sol, registro agudo, nota longa,
dizendo a palavra “sol”. A voz realiza então um rápido portamento1 descendente até chegar
em Ré, acompanhada pelo breve ataque do acorde D7(9) (Ré com sétima e nona),
dominante de Sol. O violão realiza um arpejo neste mesmo acorde, até o retorno da nota-
palavra Sol. Neste momento, o violão passa a tocar a nota Fá. Não há nenhuma marcação
de pulso: tudo transcorre absolutamente ad lib2. Enquanto sustenta a nota sobre a palavra
ponto de vista fonético (variando a abertura da vogal “o”), quanto musical (mudando
sutilmente a afinação da nota). Tudo é feito de maneira a não descaracterizar nem o fonema
nem a nota musical. Aparentemente, o intérprete está buscando a essência do som emitido,
tateando os limites dos sistemas, mostrando a “folga” existente entre uma nota e outra,
entre um fonema e outro3. As notas Sol (da voz) e Fá (do violão) caracterizam o acorde G7
gil em gendra
em gil rouxinol
1
O termo portamento é usado para designar a transição suave e contínua entre uma nota e outra.
2
ad lib é o mesmo que ad libitum: sem pulsação determinada
3
Em música, esta “folga” é representada pelos “comas”. O sistema ocidental estipula o semitom como menor
intervalo entre as notas, mas o ouvido humano consegue diferenciar até nove espaços diferentes dentro deste
intervalo. Este espaço é denominado “coma”.
Glberto misterioso 98
________________________________________________________________________________________
Este verso é definido nos créditos do encarte central como “o verso misterioso de
Souzândrade”. Ele está na 72ª estrofe do Canto X do poema longo Guesa. A grafia do
melodicamente uma parábola com a concavidade para cima, provocando sentido resolutivo,
potencializado pelo fato de a melodia acabar em Dó – e este ser ao mesmo tempo a tônica
primeiro, uma parábola com a concavidade para baixo, com sentido suspensivo.
-xi
trecho. Os dois versos são acompanhados pelos mesmos acordes, dispostos de maneira
diferente.
Glberto misterioso 99
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Todos os acordes são de estrutura dominante (acorde com sétima). Esse tipo de
em especial o Baião. No primeiro verso, temos a finalização em F7 (Fá com sétima), acorde
de função subdominante: ele não oferece repouso harmônico, mas também não apresenta
um alto grau de tensão. Já o segundo verso termina com G7 (Sol com sétima), acorde
fundamental deste acorde, nota sol. Esse fato, somado à ascendência da curva melódica,
dilui o aspecto conclusivo do tonema descendente: temos aqui um ponto de tensão que
espera resolução.
Este trecho tem o pulso bem marcado pelo violão e percussão, em ritmo de marcha,
com destaque para o triângulo. O andamento é moderado: 130 BPM (batimentos por
minuto). Após uma pausa, a voz retoma cantando o mesmo verso 14 vezes, uma oitava
acima, com o andamento acelerado para 180 BPM. A percussão é resumida a um tambor,
piano apresentam diversas vezes o semitom formado pelas notas Si e Si bemol, tanto
4
Um intervalo harmônico é formado por notas atacadas simultaneamente. Já o intervalo melódico é composto
por notas soando sucessivamente.
Glberto misterioso 100
________________________________________________________________________________________
A voz passeia livremente pelas mesmas notas, explorando os comas, assim como no
início da faixa, só que desta vez a amplitude deste “passeio” é maior. Na primeira parte,
havia um deslocamento suave em torno de um único ponto (uma nota). Agora, a voz se
desloca de uma nota para outra. Sutilmente, o intérprete está tentando testar os limites entre
execução: quando rápida (plano intenso), a freqüência do vibrato não chega a colocar em
percurso (plano extenso) capaz de anular tanto a percepção da nota-alvo no vibrato, como
os degraus do portamento.
conjunto de números reais: entre um ponto e outro, infinitas divisões são possíveis. O
ouvido humano realiza um recorte, que está relacionado com a sua capacidade física de
discernir sons de alturas diferentes: são os comas. Por sua vez, o sistema temperado realiza
um outro recorte, que divide a oitava em doze partes iguais: os semitons. Trata-se da escala
cromática. Finalmente, temos o recorte da escala, que dentro do sistema tonal escolhe sete
tonalidade. Uma vez estabelecido um sistema, que em última análise é definido pelo recorte
piano passa a arpejar o acorde C7 (Dó com sétima), formado pelas notas Dó, Mi e Sib, no
Glberto misterioso 101
________________________________________________________________________________________
entanto sem deixar de insistir na nota Si. O fato notável é que Si é sétima maior de Dó,
incompatível com Sib, sétima menor. Dentro desse contexto, o choque entre essas notas é
enorme. Mais do que um simples choque melódico, Caetano consegue com esse
procedimento colocar em xeque todo o sistema que rege a harmonia da música popular.
Esta parece ser a função primordial desta faixa: questionar os sistemas. Os dois pilares da
música ocidental são revistos: a divisão da escala em doze notas (sistema temperado) e a
como na segunda faixa), preparando o retorno do trecho cantado. Desta vez, só é cantado o
um breve fade out, e depois mais um retorno, com o acompanhamento do atabaque (mais
uma ligação, desta vez com a primeira faixa). Esta faixa é essencial para construir a
anteriormente explorados. Além disso, como veremos mais adiante, ela antecipa muito do
No início da faixa, Caetano realiza uma operação que em música recebe o nome de
solfejo: entoar as notas dizendo o seu nome. Ao alterar a afinação das notas entoadas, ele
está “friccionando” o sistema metalingüístico usado para nomear essas notas e o sistema
musical no qual elas estão inseridas. O que deveria ser, no sistema temperado, uma relação
O “verso misterioso” surge como uma imensa força estabilizadora. Aqui temos uma
segunda parte está invertida. A primeira frase tem sentido conclusivo (resposta), e a
Caetano mostra, sutilmente, a enorme e poderosa interação existente entre texto e melodia
na canção, já que uma mesma frase assume significados opostos apenas com uma pequena
mudança da linha melódica. Esse efeito é ainda maior com a inversão da seqüência lógica.
frase, resolutiva.
ainda “engenhar, inventar”. O verbo assume então a forma de um /fazer ser/. O sujeito
operador “Gil” transforma (/fazer/) o seu próprio estado (/ser/). O termo “rouxinol” remete
diferentes do mesmo texto. Há neste experimento uma sintonia muito fina entre o que é dito
(lingüisticamente) e como isto está sendo dito (melodicamente). Temos uma melodia que
mesmo acontece no texto lingüístico: “Gil engendra em Gil”. Este mesmo movimento
também aparece no plano da expressão do texto lingüístico, com a aliteração do som das
movimento contínuo. Este efeito também pode ser associado ao som de um trem em
confrontação entre essas consoantes é ainda maior devido à periodicidade rítmica: elas
estão nas sílabas que recaem sobre os tempos fortes da melodia. Essa periodicidade foi
erro de prosódia em “rouxinol” que, com o deslocamento da sílaba tônica, passa a ser
(sonoro vs surdo) fica ressaltado. Essa bela construção poética tem eco no plano do
conteúdo, já que a transformação operada pelo sujeito, como vimos, é justamente um fazer
nota e testa seus parâmetros, mudando a afinação. Ao mesmo tempo, ele procura outras
movimento, ele usa duas notas contíguas mas harmonicamente incompatíveis, e explora o
espaço existente entre elas. No segundo movimento, temos uma harmonia de quatro
iguais e uma quarta que difere em apenas um traço. Temos também uma mudança na
própria descrição do título da faixa: no selo do disco e no encarte central a faixa é intitulada
Glberto misterioso 104
________________________________________________________________________________________
“Gilberto Misterioso”; no encarte interno, temos “Gil Misterioso” (ao analisar a letra da
canção, é possível concluir que o acréscimo de sentido é dado pela forma “Gilberto”). É
Ao invés de apontar para a solução das tensões que foram levantadas, o compositor
prefere deixá-las ressoando, embaralhadas, sem uma resolução definida. A busca inicial da
com o gesto de cantar, Caetano faz ainda surgir a oposição entre o fazer mecânico,
dessemantizado, e o fazer criativo, sem no entanto apontar euforicamente para nenhum dos
dois. A euforização se dá sobre o próprio eixo estabelecido, e não sobre os pólos. Mais do
que uma sanção, o compositor atua no sentido de apresentar as informações. Assim como
como a busca da essência do som, é executada com total liberdade rítmica. Ela é marcada
5
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de. Revisão de Sousândrade. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1982. p. 80.
Glberto misterioso 105
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etapa é concebida sob o regime de aceleração, com o pulso rápido e definido. A abrupta
ambíguo. Ao mesmo tempo em que fica evidente o poder organizador do pulso acelerado,
competente para engendrar o /fazer/, há uma opressão sobre a liberdade divagante do /ser/,
manifestado na primeira etapa. Mais uma vez não há dados suficientes para estabelecer um
sentido para o eixo, deixando claro que a intenção não é a de julgar, mas simplesmente
fazer ver. O autor claramente não pretende “resolver” o mistério citado no título da faixa:
Caetano Veloso, Gil protagonizou o movimento tropicalista do início ao fim. Ele é parceiro
de Caetano em três faixas do LP Tropicália, Panis et circenses, e tem uma parceria com
Torquato Neto e outra com Capinam. Ele pode ser considerado o “fundador” do
tropicalismo, na medida em que foi a partir de suas idéias que o movimento começou a ser
traçado. Neste LP, há uma outra referência direta a Gil na segunda faixa: no meio das vozes
sobrepostas, pode-se ouvir: “Gilberto Gil eu gosto pra caramba”. A presença de Gilberto
Mutantes” (citados no encarte, faixa 5), e Rogério Duprat (arranjador da faixa 9).
Trata-se, realmente, de uma linguagem que apresenta níveis estilísticos vários, uma
linguagem sincrética por excelência, abrindo-se num verdadeiro feixe de dicções, que tanto
vai se alimentar nos clássicos da língua, quanto se projeta em invenções premonitórias do
futuro da poesia.6
de vozes que se sobrepõem em “De conversa” é apenas um pequeno exemplo dentro dos
imensos paralelos que irão se constituir nas demais faixas. Na “Gilberto misterioso”, o
primeiro elo construído pelo compositor pode ser definido pela expressão empregada na
análise que transcrevemos: “tudo cambia”. Aqui, todos os elementos que constituem o texto
melodia – nem o título da canção escapa à força transformadora que atua nesta faixa.
Souzândrade. O Guesa é um poema longo, com mais de treze mil versos e composto de
6
Ibid. p. 26.
7
Ibid. p. 56
Glberto misterioso 107
________________________________________________________________________________________
treze cantos. É a obra prima de Sousândrade: a ele o poeta dedicou cerca de trinta anos de
sua vida.
O guesa – cujo nome significa errante, sem lar – era uma criança roubada aos pais e
destinada a cumprir o destino mítico de Bochica, deus do sol. Educavam-no no templo da
divindade até os 10 anos de idade, quando deveria repetir as peregrinações do deus,
culminando com o percurso da “estrada do Suna” e o sacrifício ritual, aos 15 anos [...]; no
plano histórico e social, assimila a esse destino o do selvagem americano, o ameríndio,
sacrificado pelo conquistador branco. [...] o novo guesa, hipostasiando seu destino nos
povos aborígenes da América destruídos ou colonizados pelo europeu, transfere seu
inconformismo para uma cosmovisão reformadora, na qual propõe uma hierarquia de
valores, como perspectiva de uma nova civilização americana. [...] De um lado, condenava
as formas de opressão e de corrupção, profligando o colonialismo e satirizando as classes
dominantes (a nobreza e o clero); de outro, preconizava o modelo republicano, greco-
incaico, colhido na República social utópica de Platão e no sistema comunitário dos Incas,
ou ainda numa livre interpretação das raízes do cristianismo.8
faixa do LP. Afastados do seu lugar de origem, ambos enfrentam o choque entre os valores
nona faixa deste LP, este afastamento também se transformará, assim como na obra de
entanto, em Araçá Azul os movimentos de afastamento e opressão não são tão violentos
como no guesa. A fuga dos valores de origem não é violentamente imposta como uma
condição vital (o guesa é arrancado dos pais). Ao contrário, aqui tudo parece ocorrer
melancolicamente.
8
Ibid. pp. 40-41.
Glberto misterioso 108
________________________________________________________________________________________
Como vimos na análise de “Tu me acostumbraste”, este parece ser um projeto maior
dentro da obra de Caetano Veloso. Já aqui neste LP, não faltam indicativos: o canto em
espanhol, a citação do cantor cubano Bola de Nieve e o compositor Frank Domingues. Mais
9
LOBO, Luiza. Épica e modernidade em Souzândrade. Sao Paulo: Presença/Edusp, 1986. p. 12.
10
Ibid. p. 12.
11
CAMPOS, 1982. p. 11.
Glberto misterioso 109
________________________________________________________________________________________
perceber que as semelhanças entre a obra do poeta maranhense e o LP Araçá Azul não
tema que percorre todo o poema. Alguns trechos são dedicados a descrever greves e
12
CAMPOS, 1982. pp. 334-350.
Glberto misterioso 110
________________________________________________________________________________________
que mantém o sujeito afastado em “Viola, meu bem”, e que compõe a paisagem
musical/visual descrita em “Sugar cane fields forever”. A degradação dos centros urbanos –
“Épico”.
época, Sousândrade não se lançou ao nacionalismo exacerbado, que na “defesa” dos valores
nacionais pouco fazia além de copiar fórmulas consagradas pelas correntes literárias
antropofágico.
Este inusitado e importante fato também foi salientado por Luiza Lobo:
13
CORTANZE, Gérard de. Lecture de l’enfer. In: ______ . O inferno de Wall-Street. Paris: Éditions Seghers,
1981. p. 151.
14
LOBO, 1986. p. 13.
15
Ibid. p.14.
Glberto misterioso 111
________________________________________________________________________________________
Em Araçá Azul, a antropofagia se manifesta não só através das letras mas também
na instrumentação, nos arranjos, nos ritmos. Essa questão foi crucial num dado momento da
história da música brasileira, quase quatro décadas depois da semana de arte moderna de
22. Avesso à polarização estilística que provocou uma cisão na MPB, gerando dois
Araçá Azul evidencia essa proposta em diversas passagens, como na apresentação do samba
manifestação do discurso antropofágico no Brasil. É interessante notar também que, por ser
16
Ibid. p. 14.
Glberto misterioso 112
________________________________________________________________________________________
certo teor “didático”. Apesar de toda a faixa versar sobre a valorização do mistério, a
A quinta faixa, “De palavra em palavra”, inicia com as palavras “som”, no agudo, e
“mar”, no grave. Essa última palavra termina com uma respiração, manipulada com o efeito
cena musical. Além dos canais esquerdo e direito, que permitem perceber a posição da
aparente entre a fonte e o ouvinte. Sons com maior reverberação parecem estar em um
plano mais profundo. Da maneira que foi utilizada nesta faixa, o efeito resultante se
o reverb normalmente é utilizado para a composição de uma cena estática. Esse sentido de
A acepção primeira desta introdução é evidente – o som do mar. Com isso a música
ganha um aspecto “pictográfico”, desenhando uma paisagem através dos seus signos (som,
alto, mar, abaixo, onda). A tridimensionalidade fica por conta do plano vertical estabelecido
aproximando.
“amarelanil”. A construção deste arranjo é interessante: temos uma voz central que entoa a
palavra toda, e duas outras vozes que entoam apenas o fragmento “maré”. Estas duas vozes
adicionais estão nos limites opostos da tessitura, como que emoldurando a voz principal. A
paisagem inicial ganha cores: podemos extrair daqui as palavras “amarelo”, “anil”, além de
“mar” e “maré”.
De palavra em palavra 114
________________________________________________________________________________________
Uma nova seção inicia com o retorno das palavras som e mar. Ao invés de uma
repetição, temos aqui uma dupla oposição. A palavra som está no grave e a palavra mar no
agudo – temos uma inversão da posição no campo das alturas. Além disso, as duas palavras
como na introdução. Ao fazer isso, fica evidente a tensão do intervalo que as separa (sétima
maior). Esse intervalo tem algumas propriedades interessantes. Os acordes podem ter duas
formações na sua estrutura de base: a tríade (três notas) ou a tétrade (quatro notas). A tríade
é formada pela fundamental, a terça e a quinta. A tétrade tem as mesmas notas da tríade e a
sétima. A aceitação da tétrade como estrutura de base do acorde em música popular se deu
através da difusão do jazz, que no Brasil influenciou diretamente a bossa-nova. Esse fato
lançou diversas polêmicas equivocadas sobre o significado dessa estrutura. Para alguns, ela
(leia-se: menos valiosa). Para outros, essa harmonização seria o símbolo da deterioração
das origens da nossa música. Nada disso pode ser comprovado musicalmente – seria o
que este último deturpou as origens da música européia. Polêmicas a parte, o fato é que
aceitar a tétrade significa aceitar um acorde que tem relações internas mais tensas (a
tensão da tétrade, ou seja, a tensão resultante de incluir mais uma nota na tríade perfeita é a
De palavra em palavra 115
________________________________________________________________________________________
A faixa continua com várias vozes que falam e depois gritam em um crescendo de
intensidade a palavra silêncio. Por si só, o “grito de silêncio” já contém uma oposição
paradoxal básica: é o extremo da intensidade sonora clamando pela anulação desta mesma
intensidade. Dentro deste contexto, este grito parece ser um pedido de negação da
modernidade representada pelo intervalo apresentado. O silêncio se faz, mas logo depois
ouve-se a palavra não e de novo som, no agudo, deixando clara a idéia de que a faixa
Fica clara mais uma vez a tentativa de decompor a palavra e o som. Criou-se
também uma nova figura em música, dando dimensão espacial ao som, à semelhança do
por/dedicada a Augusto de Campos”, e conta com “a presença & help de Arnaldo dos
Mutantes”. Segundo o próprio Caetano, foi o poeta concretista Augusto de Campos que
chamou sua atenção sobre as possibilidades dentro da palavra amaralina, e que a partir daí
criou a palavra palindrômica, que, na gravação da faixa, foi justaposta a uma reprodução
é uma montagem da qual se extrai amarelo, anil, anilina, amaralina, mar e rama. Caetano
como que “decompõe” a palavra e exterioriza seus componentes: amarelo (sol), anil (azul,
1
Cf. WISNIK, José Miguel.. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras - Círculo do Livro, 1989,
p. 116: “A ampliação da faixa daqueles intervalos aceitos como consonância iria seguindo historicamente os
passos da série harmônica” e p. 134: “A história do sistema tonal é a história da administração desse jogo
relativístico, à medida que se admitem graus cada vez maiores de defasagens de freqüencias ou de tensões
harmônicas”.
2
Cf. VELOSO, 1997. p. 490.
De palavra em palavra 116
________________________________________________________________________________________
céu e mar), anilina (corante, o que dá cor à), mar e amaralina, que designa tanto a praia
como o bairro de Salvador em que Caetano morou. É interessante notar que desta mesma
invertidas mecanicamente, as vozes altas e estridentes pedindo silêncio, esse silêncio sendo
ordem natural vs ordem inversa. Só que aqui não temos nenhuma sobredeterminação
explícita da categoria fórica: a oposição aparece apenas como uma possibilidade natural.
praia de Amaralina, todas essas figuras remetem à Bahia, terra natal do compositor. A outra
isotopia é temática, a isotopia da inversão. O tema central retratado nessa faixa é justamente
O título da faixa é mais uma alusão à gravação da “De conversa em conversa” por
João Gilberto. Aqui, adequada à proposta do álbum, o título propõe uma análise mais aguda
pelo maior protagonista da bossa-nova já havia sido incorporada ao material sonoro com a
interessantes para a composição do sentido final. Há uma oposição clara entre grandes
outro. Como vimos, as palavras iniciais som e mar estão separadas por intervalo de sétima.
A frase seguinte, amarelanil, parte do centro da tessitura, descendo por graus conjuntos até
retornar ao centro por um salto de quatro tons. Mais interessante é o “eco” das sílabas ma e
re sete tons e meio abaixo e uma oitava acima, tocando os extremos da tessitura. Dessa
A seqüência anilina é uma pequena parábola com a concavidade para baixo, onde as
notas são separadas por intervalo de semitom. Apesar do semitom ser o menor intervalo
possível entre as notas na cultura ocidental, essa seqüência ainda contrasta com a palavra
amaranilanilinalinarama, que permanece numa nota só. Mais uma vez, opõe-se um
perfazendo um motivo). E, com essas duas operações, fica evidente todo o processo de
-ma
-re
a -nil
-ma
-re
-i
-ni li
-a -i
a -na
-ma
mar->
amaranilanilinalinarama amaranilanilinalinarama -i
-ni li
-a -i
a -na
Som->
De palavra em palavra 120
________________________________________________________________________________________
Som->
(SILÊNCIO) não->
De cara – Quero essa mulher assim mesmo 121
________________________________________________________________________________________
A sexta faixa recebe o título “De Cara”, seguido pelos nomes de Lanny e Caetano
Veloso. Os nomes não estão entre parênteses, como nas demais canções – tudo indica que
eles não são os compositores desta faixa. Logo após vem o título verdadeiro, “Quero essa
mulher assim mesmo”, e a indicação “do genial Monsueto Menezes” – este sim, o
compositor da canção. Ao ouvir a faixa, nota-se que essa música é executada sem cortes em
toda a faixa. No entanto, Caetano preferiu intitular a faixa de “De cara” ao invés de colocar
apenas o nome da música como em “Tu me acostumbraste”. Com isso, ele sugere a idéia de
que “de cara” é uma expressão, e não um título, e pode indicar que a música foi gravada
década de 70. O arranjo dado a esta faixa mais uma vez deixa clara uma das faces da
composta como samba, essa faixa soa extremamente bem como um rock’n’roll (“é a mesma
Essa canção joga com o duplo sentido da expressão “assim mesmo”. Essa expressão
pode assumir o sentido de resignação (que ficaria explícito se a expressão fosse “mesmo
sujeito aceita estar em conjunção com valores disfóricos. No segundo, teríamos o efeito de
“desentoada”) como disfóricos. Já a segunda, como eufóricos. Mais uma vez trabalha-se
“desentoada”. Há uma recorrência de termos que sugerem o rompimento com regras legais
no gênero samba gera um impacto ainda maior do que a prática tropicalista de compor
gêneros brasileiros com instrumentos elétricos. Fica claro que a proposta não se limita a
uma modernização do fazer musical no Brasil, mas também possibilita uma ampla releitura
do passado. Dessa forma, a faixa sugere a aceitação dos valores externos. Essa aceitação se
dá tanto na música, pela escolha do estilo, como na letra. Seja com resignação, seja com
plena aceitação, o sujeito aceita os valores creditados a “essa mulher”. A rigor, o emprego
do termo “essa”, e não “esta”, poderia sugerir que os valores aceitos estão fora do campo de
atuação do sujeito, o que enfatiza o sema “externo” dessa aceitação. No entanto, o uso da
linguodental “t” em “esta”, que impõe o corte da passagem de ar, sugere mais a idéia de
marcada por um projeto entoativo que adota o regime da aceleração. Podemos notar a forte
-sim -sim
mes mes
-mo -mo
De cara – Quero essa mulher assim mesmo 125
________________________________________________________________________________________
Ao mesmo tempo em que se rompe com a afirmação inicial, obtém-se um efeito ainda
mes
Essa mulher
as- -mo eu
A estrofe encerra com mais uma descida, desta vez até o ponto mais baixo da
A partir deste ponto, a melodia apenas alterna dois temas, para enumerar as
qualidades do objeto:
-na -na
bara alu
-ti -ci
Quero essa mulher Quero essa mulher
as as
-a -la
despen- deca
-te -be
Quero essa mulher Quero essa mulher
as as
-ga -ca
embri into
-a -xi
Quero essa mulher Quero essa mulher
as as
-na -a
desa desen
-fi -to
Quero essa mulher Quero essa mulher
as as
-sim mesmo
De cara – Quero essa mulher assim mesmo 128
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O primeiro tema desta segunda seção é uma repetição daquela afirmação inicial, só
que com tessitura reduzida. O segundo também é, em parte, um reflexo da quebra para o
agudo que já havia acontecido na primeira parte. É interessante a justaposição destes dois
temas. Enquanto o primeiro reflete uma afirmação categórica, ou seja, a aceitação plena dos
melodia desta canção sugere que o sujeito sabe que essa aceitação é algo tenso. Ao invés de
“resolver” a tensão criada pelo duplo sentido (“assim mesmo” ou “mesmo assim”), o
compositor explicita esta tensão na melodia. De fato, todo o arranjo colabora para a
manutenção deste clima tenso, desde a escolha do gênero, até as características do solo e
contratos sociais rompidos pela aceitação daqueles valores. Extremamente bem construída,
a oposição entre a distensão do primeiro tema e a tensão do segundo faz com que a tensão
passional embutida na letra seja absolutamente convincente. Com o uso desta estratégia
construção do sentido nesta obra. Todos os valores creditados ao objeto instaurado pela
letra apontam para a idéia de rompimento, de transgressão. Com resignação ou não, esses
valores são plenamente aceitos pelo sujeito. Esse objeto transgressor é apresentado em uma
canção que realiza uma operação de síntese entre os gêneros que simbolizavam toda a
De cara – Quero essa mulher assim mesmo 129
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rivalidade da época tropicalista: o samba e o rock. Essa canção assume e impõe toda a
O lado B começa com a faixa “Sugar Cane Fields Forever”, evidente citação da
música dos Beatles “Strawberry Fields Forever”. Assinada por Lennon e McCarthney, esta
canção foi lançada pela primeira vez em 13 de fevereiro de 1967 em um compacto, junto
com “Penny Lane”. Posteriormente, ela foi incluída no álbum Magical Mystery Tour,
lançado em novembro de 1967. Mais do que apenas retomar o diálogo com o rock
instaurado na faixa anterior, a citação desta canção dos Beatles representa um ponto crucial
fonográfico, é evidente que tanto as canções como também a postura de seus integrantes
influenciaram diretamente, em curto espaço de tempo mas de forma bem diferente, dois
As referências aos Beatles na jovem guarda são claras e diretas: dezenas de canções
foram traduzidas para o português e gravadas pelos seus intérpretes. O próprio “rótulo”
atribuído ao gênero musical por eles defendido é uma menção aos Beatles: a expressão “iê-
cabelo, tudo na jovem guarda era uma referência direta aos Beatles, ou aos valores que eles
dos defensores da “tradição musical brasileira”, a jovem guarda repetiu, no universo local,
o sucesso de público que os Beatles alcançaram mundialmente (sucesso que rendeu o título
nas canções dos Beatles. Essa relação já seria suficiente para explicar, por exemplo, a
escolha dos Beat Boys para a apresentação da canção “Alegria, alegria” no festival da
Record. No entanto, outros fatores apontam para um diálogo muito mais próximo do que
este. A escolha do grupo Mutantes para levar adiante a proposta tropicalista, por exemplo, é
um desses fatores. A leitura dos Beatles feita pelos Mutantes difere bastante do estilo dos
Beat Boys. Enquanto os Beat Boys (assim como a jovem guarda) aproximavam-se dos
Beatles por imitação, a leitura dos Mutantes era acima de tudo antropofágica:
1
Esta canção de Lennon & McCarthney foi apresentada pela primeira vez em um single homônimo, em 23 de
agosto de 1963 (Parlophone R 5055 - UK)
2
Veloso, 1997. p. 171.
Sugar cane fields forever 132
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A fricção entre o tema afro-baiano e o som deles [dos Mutantes] era instigante –
Beatles + berimbau ou Beatles x berimbau.3
acordes enriquecidos por tensões (as então chamadas dissonâncias) que lhe emprestavam
delicada sofisticação, a típica composição no estilo rock usa acordes mais simples na sua
estrutura interna, ligados por uma estrutura maior que é o campo harmônico4 da tonalidade
harmônicos diferentes) foi muito usado pelos Beatles, e acabou tornando uma característica
quanto tematicamente, enquanto os arranjos ficaram cada vez mais ricos e complexos. A
3
Ibid. p. 180, sobre a apresentação de “Domingo no parque”
4
Campo harmônico é o conjunto de acordes formados por notas de uma mesma escala.
Sugar cane fields forever 133
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procura da canção “redonda”, lírica, de melodia límpida e cristalina (“Here, there and
Everywhere”, “The long and Widding Road”, “In my life”), há também uma intensificação
sonora em estúdio, mas também na estrutura das composições, nos arranjos, nas letras e na
interação destas com as melodias (“I am the Warlus”, “Number nine”, “Within you, without
you”). De certa forma, a trajetória dos Beatles reflete um período da história da música
brasileira, que também passou (não obrigatoriamente na mesma ordem) por uma busca
lírica (na bossa-nova), pela alienação ao mesmo tempo ingênua e criativa do iê-iê-iê da
é o fato de que a absorção da informação oriunda dos Beatles entrou no fazer tropicalista
título da música da banda londrina ao substituir “Strawberry” por “Sugar Cane”. Não há,
até o Araçá Azul, nenhuma citação direta aos Beatles, mas apenas referências aos
5
Ibid. p. 169.
Sugar cane fields forever 134
________________________________________________________________________________________
procedimentos por eles empregados. Por isso mesmo, há aqui também um certo
singular. Letra, melodia, arranjo, forma e história concorrem para fazer dela um verdadeiro
6
Ibid. p. 247.
7
Ibid. pp. 271-272.
Sugar cane fields forever 135
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That is you can’t you know tune in but it’s all right
Isto é você não consegue, você sabe, afinar, mas está tudo certo
O conceito de “arranjo” é muito mais amplo do que possa parecer para o ouvinte
comum. Ele normalmente é confundido com “arranjo de base”, que é a instrumentação que
tipicamente acompanha uma melodia, cantada ou não, e é responsável pelo aspecto rítmico
musical, incluindo o arranjo de base, mas também a ordem em que as estrofes serão
arranjo. Uma música não tem arranjo: ela é um arranjo. Visto desta maneira, em uma
música gravada, o arranjo é um processo que tem como ponto de partida a composição e
estúdio, é um importante elo de ligação entre a “Strawberry Fields” e todo o LP Araçá Azul.
8
A dinâmica é responsável pela escolha e variação de intensidade e andamento
Sugar cane fields forever 138
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canção. Na realidade, esse apêndice é criado com um fade out antecipado, antes do final
seguido por uma curta retomada. Com esse procedimento, os Beatles criam uma
sobreposição dos instrumentos típicos de uma banda de rock (guitarra, baixo, bateria e
neste álbum.
história dos Beatles. Alguns trechos da música foram gravados em tons diferentes e
fita em outra velocidade. Alguns ruídos também foram inseridos através da manipulação
em estúdio: temos por exemplo o som de pratos de bateria tocados “ao contrário” na
segunda estrofe da canção. Este mesmo procedimento foi usado na faixa “De palavra em
gravados separadamente, e depois mixados com o restante da banda. Apesar de toda esta
Sugar cane fields forever 139
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colagem, a faixa ainda tem o claro propósito de parecer ser um todo coeso. A transição
entre as partes nunca é abrupta, e o “apêndice” é inserido com fade, o que suaviza a sua
aparição.
Azul. “Strawberry Fields” é uma música feita a partir de reminiscências da infância de John
Lennon, assim como Penny Lane para Paul McCarthney. A capa do compacto em que elas
foram lançadas era composta por fotos dos dois compositores quando bebês. A busca de
Lennon freqüentava quando criança. Nos versos iniciais da primeira estrofe (“É fácil viver
com os olhos fechados”, “Compreendendo mal tudo o que vê”) há uma manifestação de
lucidez que aparentemente destoa do resto do texto. A letra desta canção mostra um sujeito
acho que está em minha árvore”, “Sempre não às vezes pense que sou eu”). No entanto, o
sujeito constrói sua identidade justamente a partir desta condição. Isso pode ser visto
principalmente nas afirmações finais de cada estrofe, em que o ele, a despeito de sua
desorientação, manifesta sua opinião sobre o que acabou de afirmar (“Isso não importa
muito para mim”, “Isso eu acho que não é tão mal”, “Isso eu acho que discordo”). Nesta
Os Beatles teceram um arco gradual que vai do Please, please me ao Abbey Road,
vivenciado pela platéia brasileira na explosão tropicalista se deve em parte pela ausência da
Sugar cane fields forever 140
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gradação entre estes dois opostos no fazer musical da época. O experimentalismo da síntese
tropicalista entre o iê-iê-iê e o folclore nacional, com todos os seus conteúdos musicais e
não musicais, aconteceu sem historicidade e sem aviso prévio para a maioria do público
consumidor de música da época, a despeito dos mais de 40 anos de antropofagia. Esse fato
mesmo tempo em que o Araçá Azul retoma o experimentalismo tropicalista, ele de certa
forma recompõe o elo estabelecido com essas fontes não explicitamente apresentadas no
Panis et Circenses.
A estrutura da faixa “Sugar cane fields forever”, a mais longa do álbum, difere
muito da canção dos Beatles. Em “Strawberry Fields”, toda a manipulação é feita para criar
Sugar Cane, temos uma sucessão de trechos recortados quase sempre sem transições
suaves, com mudança súbita de tom e andamento. Alguns desses trechos são pedaços de
sambas de roda e pequenas canções autônomas, que são apresentados e depois dissolvidos
seu caráter.
A introdução da faixa é feita por um pequeno solo livre, ad lib, em flauta de bambu.
Essa é uma interessante referência à canção dos Beatles, que inicia com um solo de flauta
plano musical da citação feita pelo título. Esse solo é coberto pela entoação dos versos:
Sugar cane fields forever 141
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Verdes mães
Verdes mães
Mães
acompanhada pelo prato, por um atabaque e pelo coro que canta e palmeia.
Lá na beira da lagoa
A melodia do refrão é dobrada pelos violinos, até ser parcialmente encoberta por
eles. O samba de roda passa para o segundo plano, e a orquestra realiza um pequeno trecho
orquestra.
forma ritualística da festa de terreiro, Caetano apresenta uma versão musical do sincretismo
orquestra atonal, acompanhada por Caetano entoando num ostinato a frase “eu quero”, com
verbo sem objeto cria um interessante efeito, ainda mais acentuado pelo acompanhamento
tonalismo, este verbo sem objeto também quebra uma sintaxe lingüística. Este movimento
coordenado entre o plano musical e lingüístico deixa a entender que o que rege este trecho
não é a desorganização (como na “Strawberry Fields”) mas sim a proposição de uma nova
organização, em outro nível. A relação metonímica entre estes dois planos desacelera as
passagens bruscas que ocorrem na seqüência sintática dos trechos apresentados. A força
pela repetição insistente mas também pela forma descendente da melodia que sustenta a
frase. Essa força também é mais um elemento reestruturante, que empresta coesão à
A roupa no coarador
A roupa no coarador
Nesta primeira parte da faixa, esboça-se uma estrutura por sobre a polifonia
aparentemente desorganizada:
primeira parte encontra uma fina ressonância na letra do segundo samba de roda. Também
ali temos a estruturação de uma nova ordem representada pela figura do guarda civil, e a
Entra sozinho um violão acompanhando a melodia no registro grave “Oi, quem não
tem balangandãs”, cantada à maneira de Dorival Caymmi. O violão executa uma batida
sincopada, típica do samba, mas mantém sua célula rítmica inalterada em toda a passagem.
surpreendente: é um imenso alívio para toda a tensão até então acumulada. Este é o
primeiro trecho da faixa que apresenta uma melodia acompanhada nos moldes
tal.
É interessante ter sido este o momento escolhido para apresentar alguns elementos e
valores inscritos no texto e na melodia. Há uma citação dupla a Dorival Caymmi, tanto pela
letra quanto pela interpretação vocal. Os balangandãs são apresentados em “O que é que a
Sugar cane fields forever 145
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baiana tem?” como sendo a síntese de todas as competências necessárias para a legitimação
da baiana, cuja veridicção seria premiada com a entrada no Bonfim. Essa é uma ponte para
da mistura das raças negra e branca. Ele é a personificação da síntese entre Europa e África,
acima de tudo, uma democracia étnica. “Lato” é “largo, amplo, dilatado, extenso”9. “Nato”
etnia, que é sempre necessariamente congênita, ele ganha um sentido mais amplo. A
justaposição dos adjetivos “nato” e “lato”, como se estes saíssem da palavra “mulato”,
metade os acentos métricos da frase estão em fase com os acentos da batida do violão10:
9
Dicionário Aurélio
10
Nesta transcrição, o “v” indica o acento musical (tempo e contratempo), e o sublinhado indica o acento
métrico linguístico.
Sugar cane fields forever 146
________________________________________________________________________________________
v v v v v v
v v v v v v
desordem. É mais uma manifestação no plano musical dos conceitos trabalhados nesta faixa
e no álbum. Neste caso específico, a transformação recai sobre a interação (desta vez
interação rítmica) entre letra e melodia. Até este momento, nesta faixa, as oposições
canção, na relação entre sílaba e nota (plano intenso). A instabilidade, nesta faixa, atingiu
Da ferida no dente
tornam-se mais marcados. O arranjo faz uma clara referência ao Trem caipira, de Villa-
Lobos, que também propôs esta “onomatopéia musical”. Volta o samba de roda:
Caetano entra repetindo três vezes a expressão “verde vênus”. Por alguns instantes,
o samba de roda retorna ao primeiro plano. Caetano volta repetindo a frase “ir, ir indo”. O
uma atmosfera ritualística árida, quase macabra. Mais uma vez, o arranjo é um elemento de
extrema importância para a sobremodalização do que está sendo dito. Com o clima
disfórico, cria-se a impressão de que o artista está dizendo “ir indo” com o intuito de dizer
trabalho vs ócio. As duas frases principais (“vadeia, tô vadiando” e “eu vim aqui vou
trabalhar”) são apresentadas na letra sem nenhum elo de ligação. Não há no plano
lingüístico nenhuma marca que possa hierarquizar as duas afirmações. Não se apresenta
uma polarização fórica que possa estruturar a oposição. A oposição fica por conta da
tensão, em uma flagrante oposição. A retomada da primeira parte anula essa tensão,
O outro trecho está como que incrustado neste samba de roda, as transições são
feitas em fade, sem cortes abruptos. Esta oposição cria um efeito semelhante ao da primeira
faixa do disco, ao apresentar duas situações distintas mas musicalmente ligadas. O ritual
trecho.
Sugar cane fields forever 149
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odiê, odiá
odiê, odiá
odiê, odiá
odiê, odiá
origem do autor. Mas desta vez, há um fato novo. No final da exposição do samba de roda,
Caetano sobrepõe sua voz ao coro, que logo desaparece, deixando o cantor a capela. É uma
passagem extremamente forte. Temos uma impressão clara de que há a presença não de um
intérprete, mas sim de um personagem. Mais do que em qualquer parte do LP (com exceção
Sugar cane fields forever 150
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comparável à mudança de pessoa do discurso: neste trecho, Caetano está de fato falando em
primeira pessoa.
do LP. Ela desenvolve mais uma vez a oposição natureza vs cultura, colocando a primeira
como eufórica. Essa oposição é realizada de diversas formas no plano discursivo, através
das figuras criadas: Nordeste (“Mulato do litoral”, “Santo Amaro”) vs Sudeste (“São
no nível temático, como uma oposição liberdade vs opressão, lazer (“vadeia”, “fevereiro”)
seu arranjo é paralelo ao trabalho nas faixas “De conversa”, “Gilberto misterioso” e “De
palavra em palavra”. A busca pelos valores de origem está presente no projeto visual e nas
faixas “Viola, meu bem” e também na “Gilberto misterioso”. Estas duas faixas também
exploram a imagem da ferrovia. Abrir o lado B com “Sugar cane fields forever” é um
No final da última canção apresentada ocorre um fato até então inédito e de extrema
importância. Pela primeira vez no LP temos uma referência topográfica precisa ilustrando a
oposição liberdade vs opressão. Ao invés de opor sertão vs cidade, o autor prefere Santo
Amaro vs São Paulo. Santo Amaro é a cidade natal do compositor, no recôncavo baiano, e
São Paulo é o palco dos principais acontecimentos do tropicalismo. Ao demarcar com mais
então não experimentado. Este será um importante fator para a performance que será
descrita em “Épico”.
Júlia / Moreno 151
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4.8. Júlia/Moreno
musicalizar uma poesia concreta. Sua letra, aqui transcrita tal como foi apresentada no
uma júlia
um quiçá moreno
um moreno
Júlia / Moreno 152
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Ele prossegue, afirmando que “os mais afoitos” viram, na oposição dos nomes Júlia e
concreto musicado”.
A forma escolhida para a música, por mais paradoxal que possa parecer, é a da
canção tradicional, completamente “rígida” do ponto de vista métrico. Sua estrutura básica
acelerado, mas constante, com dois acordes por compasso. Cada verso da letra é
mais perfeita e estável estrutura em música. No último verso, quando a frase lingüística se
seqüência. Um procedimento similar a este já havia sido usado por Caetano Veloso e
Uma experiência como esta abre imensas possibilidades de estudo sobre a relação
importante notar que por “poema concretista” entendemos todo e qualquer poema que tenha
na disposição espacial de sua grafia mais um elemento poético a ser considerado. A questão
que se coloca aqui se apresenta de forma dupla: por um lado, é preciso analisar de que
1
O compositor afirma ter sido exatamente esta a razão da composição (VELOSO, 1997. p.488.)
Júlia / Moreno 153
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auditivo. Por outro, como determinar quais arranjos sonoros necessitariam de uma grafia
presente trabalho. No entanto, faremos uma análise isolada desta canção para podermos
entender quais as estratégias empregadas na sua composição, e qual o critério para a grafia
crescimento progressivo de uma frase inicial (“uma talvez júlia”) até a sua apresentação
final (“uma talvez júlia não tem nada a ver com isso”). Cada verso é construído a partir do
“apêndice”, extraído do primeiro verso (“uma júlia”). O início da segunda parte pode ser
percebido ao mesmo tempo pela mudança da frase inicial (“um quiçá moreno”) mas
também pelo recomeço de um novo ciclo de crescimento, até a exposição final (“um quiçá
moreno não tem nada a ver com isso”). Assim como na primeira parte, esta segunda encerra
com um apêndice extraído do seu primeiro verso (“um moreno”). Isso faz da letra desta
canção uma dupla construção que se desenvolve de cima para baixo em cada uma das
partes.
A descrição acima não discrimina sua fonte: ela se aplica perfeitamente tanto ao
material sonoro quanto ao material gráfico. A única relação que ainda não foi estabelecida
entre as duas mídias poderia passar desapercebida por uma análise mais superficial, mas é
absolutamente indispensável. Ela decorre da percepção daquilo que nos permite identificar
e discriminar uma unidade autônoma: o verso. No texto escrito de uma letra de canção,
Júlia / Moreno 154
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elaborada quase sempre em verso livre, estamos habituados a reconhecer a unidade “verso”
(composto por uma quantidade variável de palavras ou fonemas) não só por seu
componente semântico, mas também por sua grafia. Geralmente, cada verso ocupa uma
linha na página. Ou seja, a identificação é feita graças a uma percepção espacial, que só é
possível quando a grafia estabelece uma pauta (métrica?) que sirva de referência. O
substituição à tradicional seqüência vertical, de cima para baixo, formada por palavras
horizontalmente alinhadas. Essas novas “pautas” podem assumir as formas mais diversas:
novas disposições espaciais, tamanho do tipo, outros símbolos gráficos além do alfabeto,
cores, etc...
da unidade “verso” é a pausa. No entanto, as pausas da fala natural são empregadas para
separar orações, unidades que nem sempre se confundem com os versos (é por essa razão
fala). Além disso, a fala natural não tem uma métrica fixa que possa servir de pauta. Esse é
propõem, cada uma a seu modo, superar esse problema. É freqüente a associação de cores à
relação com um possível correspondente sonoro. Isso decorre de uma característica sua que
2
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Teoria da Poesia Concreta. São
Paulo: Brasiliense, 1965.
Júlia / Moreno 155
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não está presente nos demais. Para a determinar posição, precisamos de uma informação
crucial: a distância relativa a um outro ponto de referência. Em outras palavras, para ser
possível a determinação de uma posição qualquer, é necessário um eixo. Esse eixo pode ser
estabelecido pelas margens físicas do papel (ou qualquer outro substrato material em que o
texto esteja grafado), ou pode ser construído pelos diversos elementos grafados. Neste caso,
o eixo construído estará inevitavelmente dialogando com o eixo “físico” determinado pelo
substrato material. Uma vez estabelecido um eixo de referência, os objetos do texto podem
deslocamento, por sua vez, pode seguir alguma periodicidade, ou pode ser aleatório. A
por essa razão que a música é indiscutivelmente a melhor amiga da poesia concreta.
ritmo é uma palavra complexa que sintetiza todos os elementos musicais diretamente
relacionados com o tempo. Isto engloba a duração individual de cada nota, a relação de fase
O uso popular deste conceito embora simplificado não está errado, pois a composição do
gênero depende mesmo de todos esses elementos. Na canção que estamos analisando, dois
cantado inicia no primeiro tempo de cada um desses grupos de quatro compassos (em
música usamos o termo “cabeça do compasso”). Em relação ao “eixo” determinado por esta
seqüência, temos uma relação de fase: o ponto de ataque de cada verso está perfeitamente
elemento novo. Cada verso repete as notas do verso anterior, cada uma na mesma altura e
com a mesma duração individual, e acrescenta um novo elemento. Isso quer dizer que a
partir do verso inicial, a duração total de cada verso aumenta progressivamente. Desta
em branco” do papel na letra grafada, que diminui a cada verso. Isso justifica um não
alinhamento no lado direito do texto. Já a separação entre o último verso (“um moreno”) e
A escolha dos acordes que formam a seqüência básica também tem um papel
E7M/G# Go F#m7 B7
começa no acorde da tônica (E7M – situação de distensão máxima), que aparece com uma
inversão de baixo (G# - terça no baixo). Isso enfraquece um pouco o poder de distensão
deste acorde: apesar de oferecer a sensação de repouso, ela não é absoluta – com a inversão,
o repouso é atenuado. O segundo acorde (Go - Sol diminuto) é uma preparação para o
último acorde (função dominante). O F#m7 (Fá sustenido menor com sétima) é um acorde
entre o G#o e o B7. O último acorde (B7 – Si com sétima) é o acorde de função dominante
da tonalidade: tenso, ele prepara o retorno da tônica. Com a repetição da seqüência, o ciclo
que se repete até o fim da primeira parte. A coesão da seqüência é potencializada pela
cadência final (F#m7 – B7), e também pela presença do baixo que caminha cromaticamente
(de semitom em semitom) nos três primeiros acordes. Desta forma, temos o máximo de
de salto (baixo cromático). Além disso, o poder de resolução do acorde da tônica, ou seja,
sua capacidade de fechar o ciclo, foi atenuada pela inversão. Apesar de resolver
satisfatoriamente o acorde dominante que o precede, ele não consegue imprimir uma
sensação de “resolução final”. Temos a sensação de que a seqüência ainda não chegou ao
fim, pois a tensão foi apenas parcialmente relaxada. É um impulso a mais para que o ciclo
O fato de ter uma seqüência que fecha (ainda que parcialmente) um ciclo a cada
determinada pela periodicidade dos pontos de ataque do verso, ela também é determinada
Após a exposição dos seis versos, que ocupam seis grupos de quatro compassos,
temos uma mudança tanto na harmonia quanto na estrutura rítmica. O compositor introduz
G#7M B7(13)
Além de provocar uma ruptura tanto do ritmo harmônico de dois acordes por
interpretações são possíveis: ele pode representar uma rápida modulação para o tom de G#
maior – o B7(13) representaria então a preparação para o retorno da tonalidade original; por
outro lado, ele pode ser interpretado como um “acorde diatônico cromaticamente
alterado”3. Esta é a designação para um acorde que não pertence ao campo harmônico da
tonalidade, mas é construído a partir de uma nota da escala desta tonalidade. Em outras
palavras, apesar de ser uma surpresa, existe uma força de coesão que explica sua aparição.
Foi esta série de rupturas que nos levou a designar este verso como sendo um apêndice da
primeira parte.
3
CHEDIAK, Almir. Harmonia e improvisação. Vol. I. Rio de Janeiro: Lumiar, 1986. p. 116.
Júlia / Moreno 159
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A entrada da segunda parte força uma nova interpretação harmônica dos acordes do
apêndice. Isto porque ela é exatamente igual à primeira, só que transposta um semitom
então uma cadência deceptiva: o B7, que preparava o retorno à tonalidade de Mi, não
“resolve” sua tensão. Já o G#7M pode ser interpretado como Ab7M (Lá bemol com sétima
Mib (ele é o quarto grau de Mib). Temos aqui uma genial combinação de acordes: o G#7M
é surpresa em Mi, mas harmoniza com Mib. O B7 prepara Mi, mas é inesperado em Mib. O
relação de semitom
melodias das duas partes começam e acabam na mesma nota. Esse movimento involutivo
aumenta ainda mais a proximidade e a coesão entre as duas partes. Tudo nesta canção
conspira para fazer com que as duas partes, embora claramente distintas, permaneçam
visceralmente ligadas.
4
É comum a modulação ascendente por meio tom, às vezes várias vezes seguidas, especialmente no final das
canções. Este procedimento aumenta o “nível de energia” da canção, principalmente por levar o intérprete a
atingir notas cada vez mais agudas.
Júlia / Moreno 160
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O apêndice da segunda parte é feito apenas pelo acorde Fm7 (Fá menor com
sétima), que permanece nos dois compassos. A canção então realiza então uma segunda
mudança ocorre no apêndice da segunda parte. Ele é composto pelo mesmo Fm7, que dura
apenas um compasso, e um E7M (Mi com sétima maior), durando dois compassos. Esse
acorde é o primeiro acorde da música, só que sem a inversão. Ele seria uma perfeita
resolução final para a primeira parte. No entanto, ao aparecer na tonalidade de Mib menor
(estamos no apêndice da segunda parte), ele soa um Fb7M (Fá bemol com sétima maior),
relativamente tenso que espera resolução em Mib5. Nesse interessante jogo, Caetano
consegue deixar para o final da canção uma tensão não resolvida usando exatamente o
As duas partes iniciam com o uso de termos que expressam o sentido de dúvida
reconhecido como um nome próprio. O termo “moreno” tanto poderia ser um nome
possibilidade. A construção do primeiro verso de cada parte apresenta então dois sujeitos
5
CHEDIAK, Almir. Harmonia e Improvisação. vol. I, p. 96
Júlia / Moreno 161
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“uma” e “um”. Os dois versos encerram com uma negativa: “não tem nada a ver com isso”
e “nem vai querer saber qual era”. Os sujeitos permanecem sem qualquer laço juntivo com
o objeto designado pelo pronome “isso”. Esse objeto parece ser a própria canção, que se
materializa à medida que os versos vão sendo construídos. No apêndice, logo após o verso
ser finalmente apresentado por completo, os sujeitos são reapresentados (“uma júlia”, “um
uma mudança tanto no perfil como no tonema de cada verso. Até a chegada do verso final,
Até a exposição final, o que rege a melodia é – assim como a letra – a indefinição.
A melodia da primeira parte forma uma frase ascendente composta por cinco graus
imediatos (“Uma talvez júlia não tem nada a”). Há um acúmulo progressivo de tensão que
colapsa com o salto para o grave (“ver com”), e o reequilíbrio final (“isso”). O apêndice é
formado por um salto para o grave, com o imediato retorno (“uma júlia”). O sentido global
interrompida duas vezes (“nem vai” e “saber”). A última interrupção acaba com um salto
que atinge o pico da tessitura. Esta melodia é visivelmente mais tensa e também mais
Júlia / Moreno 162
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fragmentada que a primeira. Três versos terminam em tonema descendente, o que confere
um grau resolutivo à melodia: “um quiçá moreno nem”, “um quiçá moreno nem vai”, “um
quiçá moreno nem vai querer saber”. Os outros três (dentre eles o verso final) acabam com
tonema ascendente, alcançado através de um salto, o que acentua ainda mais o caráter
inconclusivo destes fragmentos. No verso final, isso é ainda mais acentuado pelo fato do
salto alcançar o pico da tessitura. O aspecto geral desta melodia ressoa diretamente com
alguns dos elementos analisados na letra. Temos aqui uma tensão gerada tanto pela
incerteza da frase que se constrói aos poucos, como pelo perfil fragmentado da melodia e
sua finalização em tonema ascendente. Toda a expectativa criada pela segunda parte
não há uma resolução completa desta expectativa – apenas o retorno ao nível de suspensão
anterior. Há um alinhamento perfeito entre letra, melodia e harmonia, tornando essa canção
branco” de tamanho inversamente proporcional. No arranjo desta canção, este espaço foi
improviso fica por conta da flauta transversal, instrumento de timbre doce e suave. Na
segunda, temos uma guitarra elétrica com distorção, que produz um timbre mais áspero e
parte que sustenta plenamente a oposição desta melodia, mais agressiva, com a primeira,
mais suspensiva. Há uma mudança na levada da bateria que também contribui com o
oposição doce vs áspero e suave vs agressivo, a partir dos solos da flauta e da guitarra,
respectivamente. Este cuidado aumenta ainda mais a eficácia desta canção, ampliando a sua
Dentro do contexto do LP, essa faixa atualiza algumas questões colocadas pelas
outras faixas e também pelo material visual. Temos aqui uma grande ênfase no tema do
desdobramento. Esse desdobramento é de certa forma oposto ao apresentado pela faixa “De
palavra em palavra”. Naquela, o compositor partiu de uma palavra complexa e dela extraiu
Também temos aqui uma fina ressonância com a capa do LP. A indecisão do gênero
criação, e sua reverberação nas estruturas da canção. Outro fato também merece atenção:
nenhum sujeito é de fato instaurado – tudo transcorre permeado por um /não saber ser/.
Como os sujeitos são hipotéticos, não é possível dizer se a indecisão manifestada é interna
uma indecisão relativa a orientação sexual. Como isso, temos um pequeno detalhe paralelo
à expressão (que também é de duplo sentido) inscrita no encarte central: “um disco para
entendidos”.
nada a
não tem
Júlia isso
-ma
qual era
querer
Moreno
quiçá saber
Mo-
Épico 165
________________________________________________________________________________________
4.9. Épico
vezes, trata-se de uma pequena frase ou palavra que sintetiza o que está sendo dito. No caso
realizados por heróis, inspirados por deuses e entes mitológicos. A narrativa épica é sempre
maniqueísta: a luta do herói representa a luta entre o bem e o mal, dentro de um sistema
ideológico que representa uma verdade absoluta e incontestável. O traço épico pode ser
007”, o “super-homem”, “Star Wars” e os “westerns” americanos são exemplos dos épicos
modernos. É importante notar que o centro da narrativa épica é a ação do seu herói, e esta é
sempre uma ação restauradora. Graças a ela, os valores ideológicos são restaurados e
perpetuados. A escolha deste título nos obriga a interpretar a letra desta canção à luz dessas
novas informações.
Ê, saudade,
Ê, Hermeto
Ê, cidade,
Ê, começo,
Ê, João
ataque forte e preciso, este trecho remete diretamente aos arranjos dos filmes de ação, em
especial “GoldFinger”, protagonizado por James Bond. Os tímpanos são também mais uma
referência ao épico de Stanley Kubrick, “2001, uma odisséia no espaço”. Há portanto uma
aproximação não só temática (pelo uso do título “épico”) mas também estética.
apresentada pela flauta transversal. É interessante notar que a flauta expõe exatamente o
tema inicial que será cantado pelo intérprete. Há aqui uma antecipação que quebra a
surpresa do tema cantado (quando surge a voz, a melodia já é uma repetição). Essa
1
O grifo está de acordo com o incarte interno.
Épico 167
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É interessante notar que o arranjo desta faixa tem três protagonistas claramente
apresentados sempre juntos, construindo a ilusão de que se trata de uma gravação ao vivo.
É interessante notar que esses três protagonistas são descritos nos créditos. O intérprete é
Rogério Duprat. Os ruídos são identificados como sendo oriundos da “Avenida São Luiz”.
Essa é a segunda citação direta a um local específico no álbum. Essa descrição também
acontece na letra: “vivo entre São Paulo e Rio”. Com isso, o compositor consegue uma
ancoragem que promove um efeito de sentido de realidade em um grau até então não
e outras mais suaves e esparsas. Essa oposição não se dá apenas pelas intervenções da
uma separação dos canais esquerdo e direito. As duas primeiras estrofes são cantadas com
menos intensidade, com a voz isolada no canal direito. O mesmo acontece com a última
frase (que parece ser uma estrofe interrompida). As intervenções da orquestra (no canal
esquerdo) são esparsas e de fraca intensidade. A terceira e quarta estrofes são cantadas em
definida, devido a sua pequena tessitura, ela remete para a escala Lídio b7, cuja maior
característica é o intervalo #11 (décima primeira aumentada), que propicia o típico “sabor”
por alguns saltos intervalares. Todos os tonemas são descendentes, o que enfatiza o caráter
sobre a interpretação, com o alongamento das vogais no final das estrofes. Nesta faixa, o
canto não é ritmicamente preciso, mas também não é totalmente livre. Tudo ocorre como se
ele estivesse deslizando suavemente em torno de uma estrutura rítmica de fundo que não é
evidenciada, exatamente como no canto gregoriano. Por muito tempo, a Igreja proibiu o uso
sem acompanhamento instrumental, e preso à escala modal (que não opõe os movimentos
consegue aqui uma estranha harmonização entre o canto modal nordestino desta faixa e os
ruídos dos carros e buzinas. Apesar do choque conceitual, o resultado final é extremamente
população contra a poluição. Mais uma vez fica clara a intenção de compor uma cena
arranjo da orquestra, nas buzinas do carro (poluição sonora), e na imagem dos canos de
descarga (poluição do ar). A inclusão das “revistas de Walt Disney” no bloco que protesta
extremamente bem sucedido da indústria de cultura de massa, cujo produto – assim como a
música popular – é freqüentemente associado à idéia de lixo cultural. Por outro lado, ela
2
Cf. ANDRADE, Mário de. Dicionário musical brasileiro.Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.
Épico 170
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participação no bloco dos que protestam contra a poluição tanto pode ser uma simples
apresentado nas diversas faixas, podemos fazer uma outra interpretação do termo
“poluição” nesta faixa. Até então, o tema central de quase todas as faixas apoiava-se sobre
pela oposição eufórico vs disfórico. Desta maneira, a poluição aqui pode muito bem
representar o sentido de “valores externos”, que por sua vez implica em outros: perda de
identidade e opressão. Neste contexto, a citação a Walt Disney, o elemento externo, dentro
do bloco opositor, constrói um paradoxo que tem o poder de diluir o maniqueísmo das
oposições trabalhadas até então. Pela primeira vez, o representante dos valores externos não
é visto como um elemento disfórico. Mais do que um inimigo, ele é visto (mesmo que com
dentro da própria proposição. Na segunda estrofe, temos a invocação: o “bruxo dos sons”
de ser maior músico do Brasil. Nada poderia ser mais livre e criativo que sua relação com a
música: para ele, a arte dos sons não impõe qualquer tipo de limite, seja ele estrutural,
assim como a sonoridade por ele buscada transcende os limites dos instrumentos
convencionais: sua música tanto pode brotar de um piano, como de instrumentos feitos a
partir de sucata, ou até mesmo de animais. Muito mais do que um virtuoso agindo dentro de
Esse é o elo que o une a Walter Smetak, músico, compositor, filósofo e pesquisador
sueco. Smetak veio residir no Brasil em 1936, e mudou-se para Salvador em 1957, para
atuar na Universidade Federal da Bahia. Ele foi um dos poucos adeptos do microtonalismo
Mais do que colocar novas notas à disposição, esse tipo de abordagem esbarra em questões
mais profundas, sobre a própria essência do som e da sua percepção pelo homem. Há
declarações de Smetak afirmando seu interesse pelo “mistério do Som”. Esse interesse o
Sua citação é também mais uma referência de Caetano ao que lhe é próximo, pois além de
amigo íntimo, foi Caetano quem o ajudou a produzir seu primeiro LP, em 1974. É
insere.
Épico 172
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busca da origem, da essência, do mistério. Mas assim como na primeira estrofe, essas duas
entidades ressoam com a presença de um outro elemento, a “Musak”. Este termo é utilizado
especificamente desta faixa, é possível concluir que “Musak” aqui representa toda a cultura
de massa, ou mais ainda, todo o “lixo cultural” que já tinha sido mencionado na primeira
estrofe. Mais uma vez, não se faz uma confrontação do tipo eufórico vs disfórico: os termos
são simplesmente justapostos pela conjunção “e”. É interessante notar que no encarte esta
conjunção é grafada como “&”, enfatizando a presença do elemento externo, só que desta
vez utilizado justamente como elemento conjuntivo. Ao invés da oposição, que vinha se
manifestando em quase todas as faixas, estamos observando aqui uma verdadeira absorção.
Há também uma sutil ironia ressoando entre o termo “Musak” e as “musas” do épico
clássico, como se aquele fosse uma distorção lexical destas. Afinal, “Musak” é exatamente
o termo “musa”, com a adição da letra “k”, inexistente no nosso alfabeto (mais uma
O interlúdio orquestral mostra que estamos diante de uma passagem (em música
segunda parte, composta pelas estrofes três e quatro, apresenta como já vimos algumas
Brasil”), “aqui” (“entre São Paulo e Rio”), e “agora” (presente do indicativo). A narração
Épico 173
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intensidade coloca a voz em primeiro plano no arranjo. Por um lado, temos uma retomada
liberdade vs opressão (“não posso”). Por outro, temos uma atualização de todos esses
valores: o sertão agora é o “nordestino do Brasil”, a cidade é “São Paulo” (definida na letra
e sugerida nos créditos também). A oposição relatada neste discurso, embora ainda seja a
mesma, está mais ancorada, menos abstrata. No encarte, a grafia de “nordestino” ressaltou
estar no comando do seu destino (“faço, não peço”), virando (“o avesso”) o rumo de sua
acompanhamento dos ruídos da avenida e buzinas de carro. Dessa forma, todo o estado
sua performance. Os elementos externos não são mais anti-sujeitos, mas sim coadjuvantes
da ação. Essa situação representa um passo além na aceitação dos valores externos, uma
não luta contra os valores disfóricos, mas os utiliza para conjuntar-se com os valores
Épico 174
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recomeço. A chave para a compreensão da citação de “João” está no tema apresentado pela
flauta, duplamente escondido. Por um lado, temos uma repetição de um timbre – a flauta já
havia sido apresentada como introdução à voz. Por outro lado, as cinco primeiras notas do
tema aqui exposto coincidem com o tema principal da melodia entoada. As quatro notas
nova é vista como uma aceitação complexa da modernidade. Mais do que uma aceitação,
ela funda uma modernidade, que incorpora criativamente (ao analisar esta faixa,
poderíamos dizer: ardilosamente) os elementos externos, a poluição dos timbres e das notas
“desafinadas”. A opção por uma citação “escondida” no final da canção também não é
casual. Esta é uma maneira de afirmar que todos os elementos aqui descritos já estavam
tes-
pro- tan-
do
ê do ção
ê ê -> Todo mun- con- po- a-
ê tra lu-
Ê saudade a i- té as
Walt
de Dis-
ney
tas
vis- con- po-
a ição
e-
Sm- ta-
k
iê k ta-
iê ê -> Smeta- e k a-
iê mu Sm-
Ê Hermeto sa e- ke
Épico 176
________________________________________________________________________________________
Sm- ta-
k k
sa- e k
mu- mu- e
sa- razão
to
sin- fri-
o
ê si-
ê ê -> Sinto calor nor- no- il
ê des- do
lo e
Pau- ri-
o
São
tre por pos-
vo en- que so
não chorar
Épico 177
________________________________________________________________________________________
não
ço pe-
ê fa- ço ves-
ê ê -> Destino eu te- rei- so
ê nho- to ao
fra-
os cas-
sos
dos ê
to- nas das ê ê->
tei- pa- de ê
Não é segredo
Esta faixa é uma bela e curta canção de melodia relativamente simples, realçada
pela harmonia muito bem elaborada do seu acompanhamento de violão. A primeira parte é
composta por uma seqüência de dois acordes. O primeiro deles é formado pelas notas Mi,
Sol#, Sol e Si. A partir de sua fundamental, temos os intervalos de terça maior, terça menor
harmônico da série harmônica). Justamente por isso, sua presença na construção dos
acordes é facultativa, já que ela não promove nenhuma mudança substancial nos acordes
acordes: o maior e o menor. Nesta faixa, o acorde utilizado apresenta as duas terças, fato
contextos, quando temos a terça maior (no caso Sol#) junto com a terça menor (Sol), esta
última pode ser interpretada como #9 (nona aumentada), enarmônica da terça menor. No
entanto, isso só ocorre em acordes dominantes, maiores com sétima menor. Nesta canção, o
No campo da harmonia, muito pode ser dito em relação à oposição maior vs menor.
tensões diferentes: a teoria musical tem ferramentas mais do que suficientes para abordar a
questão do ponto de vista técnico. No entanto, ao tentar definir a diferença entre o efeito de
sentido que cada um desses acordes produz ao ser ouvido, entramos em um perigoso
característica maior e menor destes acordes. Mas essa oposição pode facilmente ser
destruída por outros elementos musicais (andamento, melodia) o que comprova que esta
acepção não pode ser verdadeira. No livro O som e o sentido, de José Miguel Wisnik,
temos uma interessante definição sobre o ethos dos modos gregos, atribuída a Ricardo
Breim. Este classifica os sete modos gregos em uma seqüência que vai do mais aberto ao
mais fechado, ou seja, a partir dos que têm os maiores intervalos em relação à fundamental
até os que têm os menores intervalos. Segundo ele, esta oposição entre aberto vs fechado
pode ser associada a uma relação luminoso vs escuro.1 Embora esta definição tenha sido
utilizada para classificar escalas e não acordes, é interessante notar que as três escalas mais
abertas formam acordes maiores, enquanto as três escalas mais fechadas formam acordes
menores. A oposição maior vs menor pode então ser estabelecida sobre um aspecto de
1
Cf. WISNIK, 1989. p. 236
Araçá azul 180
________________________________________________________________________________________
e escuro. Ao colocar estas duas informações em uma mesma estrutura, mais do que
produzido com o deslocamento de meio tom na terça maior (Sol#). Temos então Mi, Lá,
A segunda parte é construída com dois acordes de A (Lá) com nona adicionada,
primeiro acorde A tem a 11ª aumentada, o que além de proporcionar um brilho ainda maior,
é uma referência ao modo lídio, citando um fazer musical com sabor tipicamente
nordestino.2
Existe uma forte ligação entre a estrutura da letra e da harmonia nesta canção. O
acorde híbrido se relaciona diretamente à descrição do objeto “Araçá Azul”: este também é
nome mais belo do medo”. Utilizando um interessante jogo de linguagem, o autor reafirma
o mistério do objeto descrito (“é segredo”) negando-o (“não é segredo”). Temos aqui
2
Cf. a análise de “Épico”, p. 127.
Araçá azul 181
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(manifestada em morte), há uma consciência de sua inevitabilidade (eu não vou morrer tão
cedo). Há uma aceitação da dualidade deste objeto complexo, manifestada também na letra
da canção.
“Araçá Azul” (que aparece nos créditos dessa música como “Araçá Blue”). Por um lado, é
um araçá deteriorado, que perdeu sua cor amarela viva e transformou-se num azul artificial,
poluído. Sintetiza a própria trajetória do nordestino que, vivendo num ambiente hostil e
original. A deteriorização gradual opera uma progressiva diluição da identidade, a tal ponto
que o sujeito não é mais capaz de entrar em conjunção plena com esses valores primordiais,
mas não profunda o suficiente para conjuntá-lo euforicamente com os valores novos. Essa
Este fato faz com que esta faixa seja diferente de todas as outras. Não temos aqui um
elemento opressor que force sua ligação com objetos disfóricos, e nem uma busca a
elementos primordiais. Não existe sequer um conflito que possa separar elementos
eufóricos e disfóricos, associando-os a uma outra oposição qualquer. A busca cessa com a
em que se encontra o sujeito. Notamos uma ampla tessitura, e uma predominância de saltos
Araçá azul 182
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intervalares. A primeira parte da canção é composta por duas pequenas frases melódicas, a
primeira com tonema descendente (que termina com o extremo grave) e a segunda
contradição observada tanto no plano harmônico quanto no lingüístico. Após uma grande
distensão, que repousa sobre o extremo grave e sobre a tônica da canção (é segredo), a
melodia alcança o extremo agudo em apenas três notas, causando um súbito e dramático
aumento da tensão (não é segredo). A canção prossegue com uma variação do primeiro
tema (com fé em Deus eu não vou morrer tão cedo), repetida três vezes. Essa repetição de
extrema semelhança entre o tema inicial e o refrão retira todo o poder de surpresa deste.
segredo
é
çá
a
ra-
se- do
Araçá azul 183
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do medo
lo
çá
a
ra-
ca do
fé vou
em mor-
eu rer
ce
tão do
Araçá azul 184
________________________________________________________________________________________
çá
a
ra-
A- zul é
que-
brin- do
Considerações finais 185
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5. Considerações finais
análise – o LP Araçá Azul – se organizaria em um todo coeso. Isso significaria admitir que
o LP não seria apenas uma coletânea de canções, e que nele encontraríamos informações
suficientes para alinhar em um mesmo eixo todo o material sonoro (as dez faixas) e visual
(capa, contracapa e encartes). Esta hipótese foi amplamente confirmada pela reiteração
relações com os valores de origem, e a tensão decorrente do choque entre valores internos e
externos. Essa discussão se manifesta não só do ponto de vista temático, descrito pela
trajetória de sujeitos instaurados sobretudo pelas letras das canções, mas surge também na
medida que a discussão se aprofunda, o autor apresenta os impactos dessa tensão sobre a
Partindo daquilo que lhe é muito próximo, ou seja, os valores próprios da cultura do
oposição, como por exemplo o sertão e a cidade urbana, em outra eles estão juntos para
construir a idéia de identidade nacional. Mais adiante, a identidade nacional pode dar lugar
uma oposição promove uma ruptura, em um determinado nível, ela se reorganiza e realiza
uma sutura, para a construção de uma nova oposição em outro nível. Se em algumas faixas
podemos observar oposições maniqueístas, fica claro que no conjunto da obra prevalece
estes são os temas centrais desenvolvidos pelo texto lingüístico. Em outros, são os
do sujeito ecoa profundamente no plano estrutural do LP. Enquanto o sujeito opera sua
busca de valores e a definição do seu /ser/, o mesmo acontece com forma e a estrutura da
manifestada visual e sonoramente. À medida que ele questiona o sistema de valores ao qual
está ligado, realiza-se uma desestabilização dos sistemas melódico, harmônico e lingüístico
sobre os quais o texto é construído. A incorporação progressiva dos valores externos produz
de cristalizar uma tendência, Caetano prefere valorizar o acorde tenso produzido pela
As dez faixas do LP podem ser reorganizadas em uma seqüência lógica que tem
como pano de fundo a relação entre o sujeito e seus valores. Em “Viola, meu bem” temos
um sujeito separado de seus valores de origem, e ligado a eles pelo sentimento de falta. Em
“De conversa”, o sujeito fragmentado busca um /saber/ acerca dos valores de origem
/ser/. “Sugar cane fields forever” é a faixa mais complexa: nela convivem a aceitação dos
Em “Quero essa mulher assim mesmo”, há a aceitação plena dos valores externos,
manifestada como uma ruptura das regras vigentes. Em “Épico”, há um enorme ganho de
A partir da análise, é fácil perceber que estamos diante de uma obra alinhada com a
estética tropicalista. No entanto, existem nela marcas que a distanciam das outras produções
passagens desvelam o hiato existente entre ela e o Tropicália - panis et circenses. Para que
se mostra um pouco distante dela. Algumas rupturas realizadas pelo tropicalismo surgem
aqui em forma de sutura, na medida em que alguns elos são explicitados. A violência da
antropofágico, sendo este por sua vez uma atualização da produção sousandradina.
esperamos ter contribuído tanto para a expansão do conhecimento acerca do tema, como
aqui elencados com outra obra do movimento tropicalista, em um estudo comparativo, para
Veloso. Com isso, poderíamos determinar se o Araçá Azul é de fato uma manifestação
intensa de elementos por ele trabalhados ao longo de sua carreira, ou se representa um fato
isolado.
Três outras questões surgiram no decorrer de nossa análise, e que poderiam ser
possível precisar melhor de que maneira cada projeto gráfico se posiciona dentro do
mercado fonográfico, já que ele atua ao mesmo tempo como parte de um todo artístico e
como parte de uma estratégia de marketing. A segunda questão surgiu ao analisar a faixa
descritivo para que este possa dar conta dos fatos harmônicos em música popular. É
6. Bibliografia
ANDRADE, Mário de. Dicionário musical brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999.
BARROS, Diana Luz Pessoa. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1997.
CALADO, Carlos. Tropicália: a história de uma revolução musical. São Paulo: Editora 34,
1997.
CAMPOS, Augusto de. O balanço da bossa e outras bossas. São Paulo: Perspectiva, 1998.
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de. Souzândrade. São Paulo: Agir, 1979.
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Teoria da Poesia
FAVARETTO, Celso. Tropicália: Alegoria, alegria. 2. ed. rev. São Paulo: Ateliê Editorial,
1996.
GIL, Gilberto. Todas as letras [Organizado por Carlos Rennó]. São Paulo: Companhia das
letras, 1996.
GREIMAS, Algirdas Julien; FONTANILLE, Jaques Semiótica das paixões. São Paulo:
Ática, 1994.
1975.
PERSICHETTI, Vicenti. Twentieth century harmony. New York: W.W Norton & company
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RISÉRIO, Antonio. Avant-garde na Bahia. São Paulo: Instituto Lina Bo e P.M. Bardi,
1995.
SOUZÂNDRADE, Joaquim de, O inferno de Wall Street, Paris, Éditions Seghers, 1981.
THÜRLEMAN, Félix. Trois peintures de Paul Klee: essai d’analyse sémiotique. 1979. 154
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997
_______. Alegria, alegria. [Organizado por Wally Salomão]. Rio de Janeiro: Pedra Q
Ronca, s.d.
Département des arts et lettres de l’université de Quebec à Chicontini. Vol. 18, n.1,
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras - Círculo do
Livro, 1989.
Glossário 192
________________________________________________________________________________________
7. Glossário
Acorde: sobreposição de três ou mais notas. Sua estrutura de base pode ser a tríade ou a
tétrade.
Atonal: sistema que dissolve o jogo de atratividades do sistema tonal. A harmonia tonal não
Cadência deceptiva: situação em que a tensão do acorde dominante não resolve no acorde
Cifra: conjunto de letras e números utilizado para representar os acordes. Às notas La, Si,
Empréstimo modal: situação em que um acorde de uma tonalidade menor surge em uma
Escalas homônimas: escalas diferentes construídas a partir da mesma nota. Ex: Dó maior e
Dó menor.
Escalas relativas: Diz-se das escalas maiores e menores construídas com as mesmas notas.
Ex: Dó maior e Lá menor. A escala menor inicia no sexto grau da escala maior.
Função harmônica: sensação auditiva que determinado acorde produz quando tocado. As
seqüência.
Intervalo: é a distância entre as notas, medidas em tons. Sua classificação é feita a partir de
Inversão: situação em que a fundamental do acorde não é a nota mais grave do mesmo.
1
WISNIK, 1989. p. 71
Glossário 194
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Ritmo: Em uma acepção mais ampla, ritmo é uma palavra complexa que sintetiza todos os
Semitom: menor intervalo possível entre duas notas no sistema temperado, sobre o qual é
baseado o tonalismo.
Tessitura: intervalo compreendido entre a nota mais grave e a mais aguda de um trecho
musical.
Glossário 195
________________________________________________________________________________________
Tétrade: estrutura de base do acorde formada por quatro notas em intervalos de terça.
Timbre: propriedade do som relacionada à forma da onda sonora. Cada instrumento produz
uma onda sonora de forma diferente. Por isso mesmo, costuma-se falar “timbre de
Tonal: sistema que estabelece um centro de repouso harmônico com o qual todos os outros
acordes dialogam.
Tríade: estrutura de base do acorde formada por três notas em intervalos de terça.
Anexo 196
________________________________________________________________________________________
8. Anexo
8.1. Capa
8.2. Contracapa
Anexo 197
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