Afetividade Do Educador

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A AFETIVIDADE DO EDUCADOR

MAX MARCHAND

NOVAS BUSCAS EM EDUCAÇÃO

Esta coleção está preocupada fundamentalmente com um aluno vivo, inquieto e participante;
com um professor que -não tema suas próJ?rias dúvidas; e com uma escola aberta, viva, posta
no mundo e ciente de que estamos chegando ao século XXI.

Neste sentido, é preciso repensar o processo educacional. É preciso preparar a pessoa para a
vida e não para o mero acúmulo de infor­mações.

A postura acadêmica do professor não está garantindo maior mobilidade à agilidade do aluno
(tenha ele a idade que tiver). Assim, é preciso trabalhar o aluno como uma pessoa inteira, com
sua afeti­vidade, suas percepções, sua expressão, seus sentidos, sua crítica, sua criatividade ...

Algo deve ser feito para que o aluno possa ampliar seus refe­renciais do mundo e trabalhar,
simultaneamente, com todas as lin­guagens (escrita, sonora, dramática, cinematográfica,
corporal, etc.).

A derrubada dos muros da escola poderá integrar a educação ao espaço vivificante do mundo
e ajudará o aluno a construir sua própria visão do universo.

É fundamental que se questione mais sobre educação. Para isto, deve-se estar mais aberto,
mais inquieto, mais vivo, mais poroso, mais ligado, refletindo sobre o nosso cotidiano
pedagógico e se per­guntando sobre o seu futuro.

É necessário nos instrumentarmos com os processos vividos pelos outros educadores como
contraponto aos nossos, tomarmos contato com experiências mais antigas, mas que
permanecem inquietantes, pesquisarmos o que vem se propondo em termos de educação
(dentro e fora da escola) no Brasil e no mundo.

A coleção Novas Buscas em Educação pretende ajudar a repensar velhos problemas ou novas
dúvidas, que coloquem num outro prisma, preocupações irresolvidas de todos aqueles
envolvidos em educação: pais, educadores, estudantes, comunicadores, psicólogos,
fonoaudiólo­gos, assistentes sociais e, sobretudo, professores . . . Pretende servir a todos
aqueles que saibam que o único compromisso do educador 6 com a dinâmica e que uma
postura estática é a garantia do não-crescimento daquele a quem se propõe educar.

íNDICE

Apresentação da Edição Brasileira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

Capítulo Primeiro - Justificativa desta Pesquisa . . . . . . . . . .15

Capítulo Segundo - Método para o Conhecimento Direto do

"Par Educativo" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Capítulo Terceiro - Os Tipos de "Pares Educativos" . . . . . . 35


Capítulo Quarto - Os Casos Amorfos: "Pares Educativos" Caracterizados pelo Egoísmo do
Professor e a Indiferença pela Criança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43

Capítulo Quinto - Os Casos de Tensão: "Pares Educativos" Caracterizados pelo Imperialismo do


Professor . . . . . . . . 53

Capítulo Sexto - Os Casos de Harmonia: "Pares Educativos" Caracterizados pela Troca e pela
Renúncia . . . . . . . . . . . . 77

Capítulo Sétimo - Para uma Higiene Afetiva do Educador: o "Par Educativo" Ideal . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . 91

Conclusão - Perspectivas de uma Educação Concreta . . . . . 105

APRESENTAÇÃO DA EDIÇÃO BRASILEIRA

Inevitavelmente minha leitura deste livro de. Marchand foi feita com olhos de profissional de
outra área, contígua à da pedagogia embora muito interessada nela. Daí à primeira impressão
de se tratar de um texto antiquado - porque descreve entrevistas muito diretivas para obter a
opinião de mestres e de alunos a respeito uns dos outros, porque admite implicitamente o
castigo físico, porque pressupõe que apenas por desejo racional e compreensão lógica se
possa alterar profundamente a postura afetiva do professor.

Num segundo momento, porém, sobreveio o impacto de estar frente a uma intuição
praticamente genial: o autor chega, a partir de sua reflexão de educador, a pontos
fµndamentais da psicologia dinâmica, tais como a noção de "díada" como unidade relacional, a
percepção da complementaridade dos papéis, a visão da comple­xidade de funcionamento dos
grupos.

A descrição que Marchand faz dos tipos .de "pares mestre-aluno" mostra-se incrivelmente
semelhante ao estudo da relação médico-pa­ciente, tema sobre o qual trabalhamos muito no
ensino de .residentes pediátricos, refletindo sempre sobre três tipos principais - a relação
autoritária, a relação puramente "técnica" e a relação afetiva. Por momentos seu texto se
aproxima da idéia do encontro rogeriano em situação de terapia, quando descreve o mestre
aberto aos senti­mentos do aluno e não lhe impondo um modelo, exatamente como essa
escola psicológica descreve um facilitador de grupo terapêutico.

Além disso, com grande clareza o autor se refere às situações de "falsa igualdade" entre
professor e aluno; admitindo a existência da desigualdade - o "saber" do mestre, o peso de sua
experiência já vivida - indica que isto não obriga a formação de uma relação autoritária,
exatamente porque há espaço para a afetividade e para a disposição de ouvir o aluno e deixar
que este faça opções pessoais. Parece-me que esta reflexão focaliza um dos pontos
fundamentais que atualmente perturbam não só a relação ·entre professor e aluno, como
também a relação entre pais e filhos; por medo do autori­tarismo, a "falsa igualdade" é
assumida e chega-se até a atitude de omissão ou negligência.

Enfim, este é um livro para suscitar mais reflexões e indagações, para indicar uma abertura ao
crescimento pessoal do mestre ê do aluno. Fala sobre afetividade e toca nossa própria
afetividade, pela sensibilidade, pelo humanismo, pela capacidade de doação à tarefa educativa
que seu autor demonstra.

Dulce V. M. Machado

INTRODUÇÃO

Sem dúvida, a educação apresenta um aspecto geral, à medida que se apóia em um conjunto
mais ou menos coerente de concepções abstratas, nas quais têm sua parte as exigências da
sociedade e os imperativos de um humanismo que procura o desenvolvimento da pessoa
humana. No entanto, ela não encontra de forma alguma toda a sua aplicação em um campo
assim tão abstrato.

Toda educação supõe a presença de dois seres bem concretos:

O que a dá e o que a recebe, um e outro reunidos em um par singular, cuja originalidade é tal
que não se pode achar-lhes a réplica em parte alguma, estando seus integrantes submetidos a
interações psicológicas recíprocas que, muitas vezes; os modificam profunda­mente, como
veremos a seguir. O estudo dessas modificações pode ser feito a partir de dois focos de
observação, segundo se considere

O mestre ou o discípulo. Comumente, julga-se que o ponto de vista do mestre sobre o aluno é
mais interessante, graças à perspicácia, à maturidade e à formação do educador. Mas,
somente ele estaria, em condições de apreciar a ação que exerce sobre seu aluno e a que dele
recebe? É preciso negligenciar o ponto de vista do aluno e renunciar a ver o mestre e o aluno
sob uma perspectiva nova? É preciso privar-se de perguntar diretamente à criança o que ela
sente perante seu mestre?

Não pensamos que o estudo das relações concretas do educador e do aluno possa ser
encarado de uma perspectiva tão limitada. Na verdade, numerosos educadores já se
preocuparam com o ponto de vista do aluno. E mesmo não sendo uma grande novidade, esta
atitude pode surpreender certos educadores pouco inclinados a saber o que a criança pensa
deles. Ou ver-se, muitas vezes, o pai ou a mãe importunar a criança de 3 ou 4 anos com
perguntas do tipo:

"De quem você gosta mais? Do papai ou da mamãe?" Professores e professoras interrogam, às
vezes, os alunos, sobre o professor que preferiam nas séries anteriores. Esta atitude que, aliás,
nada tem de louvável, procede muitas vezes, segundo educadores profissionais, de uma
curiosidade malsã ou de um certo imperialismo que faz desejar ocupar o primeiro lugar no
coração de uma criança.

Não é a primeira vez que se tenta levar em conta as reações do aluno. Em muitos
estabelecimentos educacionais existe uma caixa de sugestões que recolhe as queixas dos
alunos ou suas propostas para melhorar as condições de vida da escola e facilitar o
relacio­namento entre alunos e professores. Mas, estas não são as pesquisas sistemáticas
sonhadas por alguns pedagogos. Alguns pesquisadores, no propósito de ,estabelecer regras de
seleção referentes aos futuros educadores, e também de saber se para os alunos o bom
mestre se parece com o retrato ideal traçado por todos os manuais de pedagogia, já se
orientaram para um trabalho desse tipo. Assina­lemos a equipe de psicólogos que trabalhavam
com Stanley Hall em 1900 e que perguntavam aos alunos o que eles pensavam das qualidades
morais de seu mestre, de sua maneira de ensinar e do relacionamento que mantinha com eles.
( 1). Em 1932, o alemão Keilhacker, eµ1 sua obra O mestre ideal segundo a concepção dos
alunos interrogou cerca de 400 alunos de 1 O a 20 anos. Seu ques­tionário não era muito
amplo: resumia-se a uma única pergunta cuja resposta devia servir de tema a uma pequena
redação: "Como desejaria que fosse meu mestre"? (2) Esta tentativa foi um prolon­gamento
das pesquisas de Haeberlin ( 3 ) sobre as interações afetivas de pais e filhos e sobre o conflito
das gerações. Mais recentemente, em 19 52, ( 4) os alunos da Universidade Duke, na Carolina
do Norte, foram convidados a formular apreciações, elogiosas ou críticas, sobre a maneira de
ensinar dos professores, sobre seu comportamento, sua personalidade. Cada estudante foi
levado a responder a um questionário abrangendo doze séries de questões. Ainda mais, se
chegava a pedir aos alunos que concretizassem seu julgamento sobre cada um dos aspectos do
trabalho do professor por uma nota que variava de O a 10. Esta pesquisa pode ser criticada
pela complexidade de sua orientação. Em primeiro lugar, é um enfoque profis­sional e
pedagógico concernente ao valor do professor bastante sujeito a caução. Como é que alunos,
que ignoram tudo dos métodos_ pedagógicos, poderiam se permitir fazer um julgamento
sobre a aptidão profissional do professor? O enfoque afetivo é mais aceitável. Um jovem
sempre pode exprimir reações sentimentais que lhe são inteiramente pessoais. Na França,
também, há tentativas de voltar-se para educadores e pais visando uma possível melhora de
seu compor­tamento. Citemos, no âmbito da "Escola de Pais",(5) a conferência feita na
Faculdade de Medicina de Paris, em dezembro de 1953, por Mauco, diretor pedagógico do
Centro Claude Bernard, utili­zando respostas de crianças concernentes aos "efeitos dos
senti­mentos de inferioridade sobre o comportamento dos pais". Pode­ríamos citar, ainda, os
trabalhos de J. M. Lévy (6) e os do Dr. Robin (7) que procuram mostrar a maior ou menor
influência dos educadores e dos pais no comportamento das crianças.

Desejando continuar com essas investigações, gostaríamos de trazer algumas modificações aos
pontos de vista de Keilhacker, Cousinet, Dr. Robin ou dos pesquisadores da Universidade Duke.
Todos eles encaram as relações mestres-alunos sem considerar suficientemente as situações
concretas nas quais se acha a criança. Keilhacker, fugindo da realidade, quer obter o retrato de
um mestre imaginário, com sua pergunta: "Como gostaria que fosse meu mestre?" Quanto aos
pesquisadores da Universidade Duke, eles se situam em um plano, ao mesmo tempo, muito
geral, pedindo aos alunos para apreciar todos os seus professores, e muito restrito, no sentido
de que nenhuma questão é colocada aos próprios profes­sores. O objetivo de nosso estudo é
definir as relações existentes entre mestre e alunos, evitando o caráter muito amplo e ainda
muito abstrato das pesquisas precedentes, segundo um método que se propõe examinar um
dado professor e cada um de seus alunos�· Um e outro devem ser considerados como uma
única e idêntica unidade que chamaremos "par educativo", o qual dá origem a inte­rações
afetivas segundo relações que não podem ser analisadas senão examinando,
simultaneamente, cada um dos membros do par.

Por mais importante que seja a nossos olhos esta noção de "par educativo" na explicação das
situações concretas de um mestre e de seu aluno, nos guardaremos, entretanto, de aceitá-la
sem reser­vas. É preciso não esquecer que o aluno pode se achar "situado" não somente em
relação a seu mestre, mas, também, em relação a outras pessoas que podem ser, por exemplo,
seu irmão, seu pai, sua mãe ou o colega preferido, que formam com ele, outros tantos "pares"
capazes de influenciar o "par educativo" e orientá-lo de maneira diferente. Assim, uma criança
pode se opor a seu mestre ou se apro­ximar dele com o único intuito de agradar ou desagradar
a uma terceira pessoa. Tivemos um exemplo disso, observando a atitude de uma jovem que
não gostava de sua mestra senão por oposição à sua mãe.
Da mesma forma, podemos ver que os sentimentos do mestre por um aluno lhe são ditados,
às vezes, não por este aluno, mas por múltiplas lembranças de sua infância ou de seu passado
imediato, por numerosos fatores que nascem de sua posição social, familiar, conjugal ou
paternal, pelos sentimentos provocados pela saudade de um filho perdido, ou pelo desejo de
um que a vida não lhe quis dar. Todos estes fatores que contrariam a evolução normal do "par
educativo" serão apontados no momento oportuno. Mas, é bom assinalar, desde já, os
inevitáveis limites desta noção de "par educa­tivo". Esta restrição se faz tanto mais necessária
quando condições particulares, nascidas de circunstâncias geográficas e históricas
acres­centam, frequentemente, elementos perturbadores à evolução das relações individuais.
( 8)

Além do mais, é preciso considerar o período de após-guerra, a inquietação e o ceticismo que


engendram certos acontecimentos em uma época perturbada e imoral, que não faz senão
exacerbar a ten­dência das gerações em se oporem mutuamente. A geração jovem pode
censurar a precedente por não ter sabido construir um mundo mais coerente. Assim o jovem
que perdeu a fé no adulto se opõe a seu educador mais vigorosamente do que o faria em
circunstâncias menos · perturbadoras.

Tais são as razões suplementares que nos levam a não consi­derar como absolutamente
determinante apenas a presença do mestre e a do aluno no desencadear das interações
psicológicas do "par educativo", que não se pode, evidentemente, considerar como um puro
fenômeno, independente de todas as outras manifestações exteriores.

Dito isto, estamos mais à vontade para reafirmar a importância da noção de "par educativo" e
manifestar nossa perplexidade por ver que numerosos psicólogos que trabalham com crianças
consideram-na desprezível, com o risco de anular o aspecto concreto de suas pesquisas.

BIBLIOGRAFIA

1. Experiência citada por R. Cousinet, La formation de l'éducateur, P.U.F.,

1952, "Quelques méthodes de sélection", p. 73 a 76.

2. Ver Keilhacker, Le maitre idéal d'apres la concepcion des éleves, tr. fr.,

1934, Paris.

3. Haeberlin, Eltern und Kindern. Psychologische Bemerkungen Zum Konflit

der Generationen, 1922, Leipzig.

4. Cf. lournal des professeurs de l'enseignement du second degré, 79, boulevard Saint-
Germain, Paris, número de 4 de julho de 1953, pp. 654-55.

5. "Escola de Pais". Sede: Faculté de Médicine de Paris. Boletim: L'école des parents,
S.E.VP.E.N., 13, rua du Four, Paris (6e).

6. J.-M. Lévy, Maitres et éleves. Essai de psychologie affective, 1935, Paris. 7. Dr. Gilbert Robin,
L'éducation des enfants difficiles, 1944, Paris.

8 . · Parece-nos útil localizar no tempo e no espaço as investigações que fizemos. Os mestres e


os alunos que submetemos a estudo, entre 1951 e 1954, pertencem ao meio escolar algeriano.
Permitimo-nos indicar que as aplicações que pudessem ser tiradas desta experiência seriam
parti­cularmente úteis e oportunas na Algéria, onde as relações afetivas são chamadas a
desempenhar um papel de primeiro plano pelas razões que estão presentes no coração de
todos.

CAPITULO PRIMEIRO

Justificativa desta pesquisa

A) · A Pedagogia Atual e Suas Lacunas

Se quisermos caracterizar a pedagogia atual, poderemos dizer que ela se fundamenta,


sobretudo, na psicologia da criança. Sua característica essencial reside em seu empenho em
apoiar-se nessa psicologia, para respeitar melhor a idéia de que é impossível querer acelerar o
desenvolvimento da criança mediante um ensino prema­turo, mais aplicável ao adulto do que
a ela própria. Toda tentativa deste gênero ·seria tão ridícula quanto a do treinador que
exigisse, do potro, que corresse tão rápido quanto um cavalo treinado, ou da florista que se
obstinasse em querer transformar imediatamente seu botão em rosa desabrochada. Toda
maturidade exige um tempo, cuja duração é quase irredutível. As leis do desenvolvimento
psico­lógico, a estrutura e as formas desta psicologia geral nos levam a deixar de lado todo
exercício que não encontre eco no mundo mental da criança. Assim, os trabalhos de alguns
psicólogos, entre outros os de Piaget, sobre as noções que a criança pode ter do espaço, do
tempo, do eu e do não-eu, das relações, da síntese e da análise, justificam a eliminação nos
anos iniciais da escolaridade, de todas as partes do programa concernentes à cartografia, e ao
estudo das partes do mundo, e depois, à cronologia, aos exercícios teóricos de moral, e tudo o
que se refira ao encadeamento lógico dos fatos, sejam de natureza histórica ou científica.

Alguns pedagogos quiseram ir mais longo ainda na utilização dos dados psicológicos que a
criança nos fornece, transitando do caso geral para os casos concretos que cada aluno
apresenta. Um exame atento das psicologias individuais nos mostra toda uma gama de
manifestações originais, relativas, por exemplo, ao ritmo e à natureza da atividade, à coloração
afetiva com seus sentimentos e todos os seus desvios no contato com o mundo escolar, à
agilidade da inteligência. Chega-se, assim, a conhecer o comportamento de uma criança em
função de suas ações possíveis. De uma parte, podemos atenuar nela os sentimentos que
perturbam sua educação, para fazer nascer e desenvolver os que a favorecem, no intuito de
submetê-la a uma higiene afetiva tão importante quanto a higiene corporal. Por outro lado, a
educação e a instrução, de cada criança podem ser adaptadas às condições particulares de sua
psicologia, em uma ação educativa que repousa sobre uma individualização do ensino.

Este sistema pedagógico, por seu caráter científico de adaptação ao real ganha,
justificadamente, a adesão da maioria dos educadores. Infelizmente, parece-nos que no
estado atual de sua aplicação, ele comporta, no plano psicológico, graves lacunas que falseiam
todos os resultados. Nada mais louvável que considerar uma criança em particular, na sua
psicologia diferencial; mas, convém fazê-lo de uma perspectiva mais precisa. Parece que existe
a tendência de considerar a criança no mundo escolar como um fenômeno isolado. f: aí que
nos parece residir o erro de ótica que queríamos assinalar. f: preciso não esquecer que esta
criança se acha "posicionada" não somente em relação aos seus coleguinhas, mas, sobretudo,
em relação ao seu educador. Eis porque seria inútil estudar um · aluno sem examinar seu
respectivo mestre. Esta é a crítica que se poderia fazer ao estudo de Roger Gaillat "Analyse
caractérielle des éleves d'une classe par leur maí:tre", (1) que é, não obstante, bastante
concreto. Seu trabalho põe em evidência o caráter de cada criança, mas, falta­-lhe um
elemento importante: o caráter do mestre, cuja análise poderia levar ao estudo das interações
que resultam do confronto de caracteres diferentes. Fica-se, dessa maneira, · motivado a
prolon­gar o estudo da psicologia diferencial da criança em sua face complementar, que é a
psicologia diferencial do educador.

A interação dessas duas psicologias parece-nos facilmente constatável. O conteúdo da


psicologia afetiva da criança é, frequentemente, resultado da posição sentimental do mestre:
o autoritário provocará o temor inibitório no aluno; o que procura se fazer amar provocará na
criança reações de complacência; aquele que se mostra maldoso despertará sentimentos e
atitudes de oposição que levarão a uma educação contrária à desejada. Da mesma forma, os
educa­dores colocados em certas condições diante das crianças, não reagem
sentimentalmente da mesma maneira. Uns gostam sinceramente delas; outros não, e apenas
desejam se fazer amar em proveito próprio. Aquela educadora que não teve oportunidade de
ter seu lar, e que deve achar sua casa muito triste e muito fria quando retorna sozinha, à noite,
após a aula, pede que seus alunos lhe dêem o calor familiar que lhe falta. Outro educador,
muito propenso a fazer seus alunos rirem e a se descontraírem com jogos de palavras fáceis,
busca, no fundo, somente fazer-se admirar por eles. Um terceiro, muito orgulhoso dos
resultados que obtém, procura apenas o rendimento nos exames, não hesitando nem um
pouco em utilizar os procedimentos mais mecânicos e equívocos. Sem falar daqueles que,
vencidos pela vida, invejam a juventude dos alunos e se anti­patizam com alguns deles. (2)

As reações sentimentais do professor variarão em função de cada aluno, segundo seus êxitos
escolares, seu comportamento, seu caráter. Na prática pedagógica que coloca frente a frente o
educador e o aluno, podem surgir atração ou repulsão como resultados do confronto entre
dois caracteres. Todas estas atitudes sentimentais influem sobre as metodologias, com o risco
de alterá-las, e provocam na criança, rudes transformações afetivas mais ou menos
desfavoráveis ao ensino. A instrução dada por um mestre apresenta aspectos emotivos e
afetivos que lhe conferem um feitio original e pessoal, variando, por outro lado, com cada uma
das crianças que a recebe. O mesmo problema de aritmética explicado a todos os alunos de
uma classe terá diferente repercussão na consciência de cada criança, segundo seu caráter e
as reações afetivas que a presença do mestre desencadeia. É por isso que um mestre tem
muito mais poder do que um livro. A pedagogia esquece, assim, um elemento importante,
nascido desta presença recíproca: a qualidade do diálogo que se estabelece entre o educador
e o educando na presença concreta de dois seres colocados em uma dada situação, e que cria
entre eles um liame peculiar, ou os separa por obstáculos quase intransponíveis, O mesmo
mestre, frente a todos os seus alunos, não estabelece com cada um deles o mesmo diálogo,
que estará impregnado, ora por uma compreensão recíproca ou um acordo perfeito, ora por
uma hostilidade surda, sem que ele tenha mostrado dois rostos diferentes. Em um caso, dir-se-
á que o professor "atinge" este ou aquele aluno, no outro, que ele não consegue "entrar em
contato" com eles. Quando duas pessoas se encontram para conversar, não é de ime­diato
que se dá o confronto de dois caracteres na totalidade de seus aspectos. Primeiro, nos parece,
há uma tomada de posição senti­mental, irrefletida e muitas vezes repentina, motivando a
simpatia ou a antipatia que vai influir em todo o diálogo.

A educação supõe, assim, desde o primeiro contato com uma determinada criança, o
aparecimento do "par afetivo", cuja harmonia ou desacordo leva todo o ensino para os
numerosos (des)caminhos possíveis. É por isso que os retratos que traçamos de um mesmo
educador não são sempre idênticos; eles variam segundo o enfoque que sobre cada um deles
projeta uma criança em particular. O aluno e o professor devem, sem dúvida, ser estudados
separadamente, em função · de seus dados caracterológicos. Este estudo é necessário, mas,
não é suficiente. Em virtude da influência recíproca entre o educador e o aluno, a criança não
pode ser completamente estudada fora de seu relacionamento com o educador, que dá à sua
paisagem psicológica um colorido peculiar. O educador, do mesmo modo, não' pode ser
examinado fazendo-se abstração das crianças que o influen­ciam. É preciso ver o educador em
relação a seus alunos e, frequentemente, · em relação a um único aluno. Reciprocamente, o
aluno será descrito segundo a repercussão que nele provoque a presença do mestre. Os
caracteres tomarão então, um aspecto mutável, em razão da variação dos "pares afetivos" e
da diversidade dos alunos de que o educador deverá se encarregar. Podemos ver uma prova
dessas modificações no fato de que um educador de caráter irritável com certas classes, muda
inteiramente com outras, segundo a atmos­fera particular na qual se estabelecem as relações
entre ele e. seus alunos. Foi esta noção de "par afetivo"· educador-aluno que orientou nossas
pesquisas. Agindo assim, não fizemos senão aplicar ao domínio da educação, preocupações de
uma certa filosofia existencial que define o indivíduo por sua existência e as situações nas
quais se integra, de forma que o educador e o aluno se definem, tanto por si mesmos, quanto
pelo parceiro que lhes · assinala a educação. A característica de um e de outro será revelada na
tendência de sua adaptação ao outro, traduzindo-se segundo os casos, em simpatia ou
antipatia, em esforço de imitação ou de criação, em movimentos de aproximação ou de
oposição.

B) Utilidade de um Estado Concreto do Educador

Podem nos objetar que um estudo deste tipo não é muito útil. A descrição de mil retratos
fodividuais de educadores e o estudo das variações destes retratos em função dos diferentes
alunos podem, sem dúvida, apresentar um interesse documental de curiosidade, mas, parece ·
estéril no sentido de que quase não conduz a ideias gerais fecundas, 'as únicas que, afinal,
poderiam servir de meios de ação sobre o educador em geral, principalmente em nossa escola,
cuja amplitude exige, precisamente, soluções de caráter mais geral que concreto. Nosso
propósito é mostrar que este estudo, por limitada que pareça sua utilidade, é capaz de exercer
uma influência apre­ciável sobre o caso particular de cada educador.

Os educadores têm necessidade de cuidarem de sua vida mental, já que sua afetividade se
acha mais ou menos alterada pelo seu ofício. Não falaremos, é claro, dos que já estavam
doentes ao in­gressar na carreira, e só Deus sabe como eles são numerosos! É verdade que se
lhes abrem inteiramente as portas do ensino, sem examiná-los neste aspecto particular,
quando um exame caracterológico minucioso teria podido, de princípio, revelar certas
tendências contrárias à educação, de modo a desaconselhar a alguns deles, a carreira do
magistério. Um rapaz que manifeste uma agressividade e uma necessidade de poder tais que,
transpostas para o plano patológico podem converter-se, por exagero, em tendências sádicas,
pode muito bem, como mostrou Szondi, ( 3) ser cocheiro, amestrador de animais, dentista,
britador, veterinário, mas não educador. Um outro que apresente uma feminilidade passiva,
com um vivo desejo de ser amado e dominado, poderá orientar-se para as artes ou o comércio
de luxo, mas, nunca para o ensino. E que dizer daquele paranoico caracterizado por um desejo
de se expandir, de se dar importância? Teria mais êxito· no campo da criação artística do que
no que da educação. Enfim, é lamentável que se faça passar nossos futuros educadores por
tantas provas de verificação de conhecimen­tos e que se esqueça de olhar; frequentemente,
se seu caráter é adequado às tarefas que o ensino requer. Teríamos coragem de destinar à
carreira docente um jovem que se sabe de antemão con­denado aos mais graves fracassos
pedagógicos? Bem ou mal orien­tados, todos podem· ser mais ou menos modificados em seu
caráter que, como mostrou P. Mesnard, ( 4) não é absolutamente imutável. É possível cuidar
do educador, modificando-o em sentido favorável. Para Madeleine L. Rambert, ( 5) um dos
melhores remédios, quando uma criança está psiquicamente doente, consiste em "tratar dos
pais". Mutatis mutandis, o que se aplica à relação pai-aluno, se aplica também à relação
educador-educando. Como Madeleine L. Rambert, poderíamos dizer que cuidar do educador
é, muitas vezes, a melhor solução para o problema da criança difícil.

É possível que esta ideia choque a numerosos educadores. Porém, como negar todos· os
sentimentos, confessados ou não, que a presença de uma criança suscita? Mesmo aqueles que
as amam não são sempre irrepreensíveis. Há tantas maneiras de amar e de "desamar" uma
criança! Há tantos educadores que se amam nas crianças, as quais se tornam para eles
instrumentos de satisfações pessoais. Há os que pedem· às crianças grandes esforços nas
tarefas da aprendizagem, crendo agir para seu bem-estar e desenvolvimento de sua
personalidade, mas, no fundo, não buscam senão obter um excelente resultado nos exames, e
se sobressair em relação aos demais colegas. O amor pela criança não passa, assim, de uma
glo­ríola profissional, de puro interesse pessoal que aparece no professor sob a forma de
egoísmo. Outros amam, no aluno, o que foram na sua juventude, ou o que gostariam de ter
sido, e procuram moldá-lo à imagem de suas ilusões perdidas. Outros ainda, tentando ir além
desta pobre nostalgia de uma juventude irremediavelmente perdida, procuram fazer nascer na
consciência das crianças as ideias que lhes são caras, e que poderão, então, contemplar como
em um espelho.

Quem falará da inquietação e do egoísmo destes educadores, que procuram interiormente a


afeição de seus alunos, ao lhes dar o ensino a que têm direito? Quem cantará um dia os
acentos desespe­rados desta busca de amor, discreta, mas pouco generosa, condenada desde
o início aos mais dolorosos fracassos?

. Não se deve, então, gostar de nossas crianças? É preciso mos­trar-lhes uma face diferente?
Mais ainda, odiá-las, para desencadear relações salutares? E se é preciso amá-las, como fazê-lo
para·�levar a bom termo nossa tarefa? Que sentimentos devemos combater ou desenvolver
em nós próprios, conforme os fins da educação e, reciprocamente, que sentimentos
correspondentes devemos encorajar ou desestimular no aluno em face do educador?

Para poder responder a todas estas questões, devemos tentar conhecer as interações· afetivas
entre mestres e alunos. Poderemos, assim, combatê-las ou corrigi-las quando forem nocivas. É
por isso que quisemos estudar os "pares educativos" na sua vida concreta, com objetivos mais
remotos, quais sejam: uma possível classificação dos grandes tipos existenciais de "pares
educativos", a apresentação de um "par' educativo" ideal, e finalmente, uma formação mais
apropriada do futuro educador.

BIBLIOGRAFIA

1. Roger Gaillat, Analyse caractérielle des éleves d'une classe par leurmaftre, P.U.F., 1954.

2. Queremos igualmente, evitar a evocação de alguns "pares educativos" na acepção que lhes
deram Sócrates ou André Gide. No que concerne a este último, pensamos ter mostrado
suficientemente em nosso Complexe pédagogique et didactique d' A. Gide ( ed. Fouque, Oran),
o caráter perturbado e equivocado da educação gideana, que repousa em uma pedagogia
amorosa não isenta, no educador, de egoísmo e perversidade.
3. Cf. Psyché, n.0 23-24, pp. 1155-56, artigo de Ruth Bejarano sobre Szondi.

4. P. Mesnard, Education ei Caractere, prefácio de P. Joulia, P.U.F., 1953.

5. Madeleine L. Rambert, La vie affective et morale de l'enfant, Niestlé, Neuchâtel, 1938.

CAP1TULO SEGUNDO

Método para o conhecimento direto do "Par educativo"

Somente uma entrevista oral com uma criança, sob a forma de conversa amigável, pode nos
fornecer um testemunho direto e sincero. É claro, que é necessário adaptar cada entrevista à
idade e às par­ticularidades da criança. Em primeiro lugar, é preciso que ela seja familiar,
tranquila, confiante, com questões colocadas da forma mais assistemática possível, o
entrevistador se achando só com seu inter­locutor. As perguntas serão numerosas para
facilitar a análise que o sujeito deve fazer de seus próprios sentimentos e deixar à entrevista
oral um campo de investigações tão amplo quanto possível. A ordem das questões e sua
natureza serão suscetíveis de receber modificações ou acréscimos segundo as condições
particulares de cada sujeito, A título de exemplo, indicamos a maneira "de conduzir a
entrevista com uma criança de 6 a 14 anos, e depois, com um aluno de 15 a 18 anos.

A) A Entrevista Particular com uma Criança de 6 a 14 Anos

Para crianças de 6 a 14 anos previmos inúmeras perguntas: as primeiras se propõem saber se o


mestre se acha presente ou ausente em cada criança. Pode acontecer que esta criança, fora da
escola, não pense absolutamente no mestre, que não a afeta de forma alguma, ou ao
contrário, que ela sinta sua presença quase constantemente, em seus pensamentos, seus
sonhos, suas ações, seus sentimentos. As crianças podem ser colocadas em um ou outro
grupo, com a ajuda das seguintes perguntas:

Quando você escreve uma carta para um parente, em casa, você pensa
em seu professor? De noite, você sonha com ele? No sonho, tem a impressão
de ter a mesma atitud� e os mesmos sentimentos que tem na aula? Quando vê
uma coisa bonita, você pensa nele? Se lhe acontece fazer uma boa ou má ação,
tem a impressão de ter o mestre diante de você?

Algumas crianças respondem negativamente a estas perguntas. Tudo se passa como se o


mestre não existisse para elas. A indiferença mais ou menos clara que sentem reduz,
evidentemente, o alcance da relação educativa e a importância da entrevista. Pelo contrário,
outras crianças demonstram que laços estreitos as unem ao mestre. Toda a sua vida
extraescolar é marcada pela presença do mestre cujo ensinamento orienta cada uma de suas
ações. Esta presença, por sua vez, pode determinar atitudes de aproximação ou hostilidade.

As perguntas tentam descobrir a posição da criança em suas manifestações de amor (amor


mais ou menos consciente, amor consciente e generoso; amor-camaradagem, amor
incompreendido, amor ciumento e amor espiritual voltado para os valores morais
representados pelo mestre). Aquelas que se referem ao ódio ou ao distanciamento da criança
em relação ao mestre se propõem a revelar os casos de ódio oculto, dissimulado, aberto ou
transferido para um outro objeto. No decorrer da entrevista, conforme o interesse que
apresente a originalidade de uma criança, podem ser feitas outras perguntas, impossíveis de
serem estabelecidas a priori. Basta apenas provocar as reações da criança com perguntas
deste tipo:

Quando o mestre o repreende, ou lhe bate, você tem a impressão de


gostar mais de seus colegas, de se aproximar deles, de querer mais fortemente
brincar com eles? (Amor de transferência). Você tenta agradar ao mestre
trabalhando bem, oferecendo-lhe flores? (Amor generoso). Gosta que ele
brinque com você? Neste caso, sente-se à vontade com ele? (Relações de
camaradagem). Quando você faz uma ação má, conta a seu mestre sem
embaraço e sem vergonha? (Confiança). Quando o mestre não a nota, ou não
a ama bastante, ou prefere um de seus colegas, você finge estar doente ou
tenta machucar-se para que ele lhe preste atenção? Tentou, às vezes,
trabalhar mal para que o pro­fessor se interessasse por você? (Amor
ciumento). Depois de ter sido batido, ou repreendido, ou punido pelo mestre,
tentou, às vezes, quebrar alguma coisa às escondidas, fazer de propósito
alguma coisa errada, borrar o caderno, ser insuportável com seus pais, ou
judiar dos animais? Alguma vez se vingou em um mestre afável e bondoso
daquilo que lhe havia feito sofrer um outro mais severo? (Hostilidade
transferida). Às vezes, se vingou em você mesmo das maldades de um mestre,
não comendo, escrevendo com a mão esquerda, inclinando a escrita em uni
outro sentido? Dizendo palavrões? Roendo as unhas? Espetando-se com a
caneta? (Hostilidade transferida para si próprio). Às vezes, você tentou se
vingar do mestre fazendo o contrário do que ele queria vê-lo fazer, realizando
más ações. (Hostilidade transferida para os valores morais). Quando lhe
batem, tenta agravar as consequências das pancadas que recebe para que o
mestre tenha remorsos mais intensos? Você finge cair ou se machucar quando
o mestre o em­purra levemente para pô-lo na fila? Você faz guerra ao mestre?
Zomba dele? Dá-lhe um apelido? (Hostilidade aberta). Tem a impressão de ter
um vazio na cabeça quando interrogam, ou de misturar tudo o que sabe? Tem
a impressão de que o professor o fixa com os olhos quando você não o está
olhando? (Temor inibitório).

As perguntas se tornam cada vez mais numerosas e "fechadas" a partir do momento em que
se descobre uma direção afetiva na qual a criança se acha engajada.

B) A Entrevista Particular com um Aluno de 15 a 18 Anos

Para os jovens de 15 a 18/ anos, as perguntas se tornam mais precisas quando referidas à
preferência ou à hostilidade que um adolescente pode experimentar por um de seus
professores. Nesta idade, o adolescente, mais do que a criança, toma consciência daquilo que
o aproxima ou o afasta do adulto e o momento da tomada de posição, do amor total ou do
ódio declarado.

No que concerne à preferência dada a um professor, as perguntas procuram levar o aluno a


precisar as razões dessa preferência:

Faça o retrato do seu professor preferido. Ele o atrai por sua dicção,
sua voz, suas expressões, seu talento? (Razões estéticas). Admira-o pela
clareza de suas explicações, pela qualidade e interesse de seus cursos? (Razões
pedagógicas). Ele tem um "fraco" por você? Ele lhe dá boas notas ou poucas
tarefas? (Razões egoístas e pessoais). Você o admira pela coragem que
demonstrou durante a guerra, pelo ardor com que defende suas convicções
religiosas ou políticas, pela sua retidão, por sua personalidade forte? (Razões
morais e intelectuais).

Delineada a preferência, deve-se procurar descobrir seus efeitos no comportamento do


adolescente:

Você tem a impressão de que, em igualdade de condições, se sai


melhor com um professor de quem gosta? Estaria pronto a fazer grandes
coisas por ele, e a segui-lo em tudo? Se você é o preferido de seu professor,
chega a tomar certas liberdades na aula?

É claro que, como no caso das crianças de 6 a 14 anos, outras perguntas podem ser colocadas
no decorrer da entrevista, que deve respeitar a originalidade e a espontaneidade do
adolescente que aceita se abrir sem constrangimento.

Nos casos de oposição ao educador, devem ser consideradas todas as reações de hostilidade
do adolescente expressas nas diversas · manifestações de desordem. No entanto, esta
expressão tã9 signifi­cativa do comportamento do aluno, deve ser analisada e utilizada com
discernimento. Quando pedirmos a um aluno para precisar as circunstâncias nas quais ele é
levado a participar de uma desordem, será preciso eliminar como inútil para nosso estudo,
tudo aquilo que possa se referir à desordem considerada como uma simples descarga física. É
o que se pode constatar quando se observa alunos que entram, por exemplo, para uma aula
de desenho, após uma prova bimestral de duas horas. É claro que eles não odeiam seu
professor de desenho: basta ver como lhe sorriem ao entrar na classe, mas, também não · o
temem. Como ainda estão sob o impacto do tenso esforço que acabam de dispender,
começam sua aquarela de uma forma um pouco displicente. Depois, um se põe a resmungar,
outro derruba de propósito seus potes de tinta, com um barulho muito forte, um terceiro se
levanta. Um quarto, que borrou seu desenho, solta um palavrão. Depois, tudo volta ao normal;
simples desordem de descarga intelectual e física, que o professor erraria se tomasse muito a
sério e que, em todo caso, não é absolutamente dirigida contra sua pessoa. Seria um erro dar
importância a esta forma de oposição e ver nela uma expressão de relações afetivas entre
pro­fessor e alunos. Pelo contrário, estes últimos manifestam uma certa neutralidade frente
ao mestre, mediante uma reação que é mais fisiológica que afetiva.

Do mesmo modo, não devemos levar em conta o que · se refira à desordem provocada por
companheirismo. Às vezes, os alunos não buscam, de forma alguma, "perturbar" este ou
aquele professor. Se o fazem, é de um modo abstrato, para se afirmar diante do adulto em
geral, reforçando sua coesão em um grupo mais ou menos secreto que tem seus ritos, seus
mistérios, suas palavras de senha, seus exa­geros verbais inacessíveis ao adulto. É um tumulto
deste gênero que nos descreve J.-P. Sartre em "L'Enfance d'un Chef', no qual estu­dantes
secundaristas empregam expressões que não podem ser com­preendidas pelo professor e que
pertencem a um grupo que tem suas tradições e seu cerimonial. E evidente que tais reações se
inscrevem sobretudo, no âmbito de um estudo de sociologia· da educação ( 1 ) aplicada às
relações do mestre e da coletividade.

A desordem poderá ser considerada como uma reação individual de um aluno ao seu professor
apenas no caso de nos acharmos diante de um líder ou um provocador. Este último poderá nos
indicar suas intenções respondendo, por exemplo, a perguntas do tipo: "Você faz "bagunça"
mesmo sendo bem-visto pelo mestre?" O aluno preferido poderá, algumas vezes, certo da
indulgência do mestre e da impunidade, provocar um tumulto para se divertir e para mostrar
aos demais alunos que ele pode se permitir tudo, até mesmo fazê-los sofrer uma punição em
seu lugar. Esta outra pergunta: "Acontece de você perturbar um professor inofensivo?", pode
nos levar, mediante um exame do que se pode chamar µm tumulto por transferência, à noção
de reação de hostilidade indireta. Pode acon­tecer que um aluno deteste um professor que o
submete a uma disciplina férrea. Como não se usa rebelar contra ele, deixa extra­vasar a sua
revolta na aula seguinte, dirigindo sua ação contra um professor indulgente, que pagará pelo
outro.

Uma pergunta: "Você costuma perturbar um professor simpá­tico?", leva a respostas que
podem mostrar a existência de uma desordem como tentativa de aproximação e
camaradagem com o professor. Por exemplo, um aluno pode interromper uma aula para
colocar questões mais ou menos inesperadas. Se o professor res­ponde, é levado a fazer
confidências pessoais com as quais os alunos se divertem imensamente, até que acabam· por
interessar-se: o tumulto, começado como uma certa oposição, morre em uma atmosfera de
amistosa aproximação.

Enfim, esta última pergunta: "Você organizou uma desordem para se vingar de um
professor"?, revela os verdadeiros opositores ao mestre, os quais dão prova de zombaria
maldosa (alusão às enfermidades do mestre, à sua obesidade, à sua vida privada, que não
hesitarão em evocar por meio de· desenhos ou palavras convencionais), de crueldade ( armar
ciladas na sala de aula, com cadeiras desequilibradas · ou bombas fedorentas que atingem o
professor, desencadeando a hilaridade geral), de espírito de organização ( um aluno, em um
tumulto combinado, inicia na hora H uma ação coordenada, na qual cada um desempenha um
papel que lhe foi assinalado pelo instigador da desordem, sendo este último o verda­deiro
oponente do mestre).

Poderemos, ainda, determinar certas formas de oposição com as seguintes perguntas


suplementares:

Você faz caricaturas de seu professor? Costuma imitar sua voz


ou seus tiques? Costuma provocar seus discursos habituais sobre suas
ocupações preferidas (arte, política), ou favorecer suas manias? Riu
mais do que o razoável com suas brincadeiras? (Zombaria). Costuma
fazer muito barulho na sala de aula, arriscando-se a atrair o diretor ou
um vigilante para humilhar seu professor? Costuma preparar-lhe
armadilhas, fazendo-lhe perguntas insidiosas, de duplo sentido, às
quais ele não poderá responder senão muito mal, ou fazendo alusões à
vida particular da classe, sem que ele se dê conta disso? Você costuma
apresentar um ar falsamente atento, entregar, de propósito, uma folha
em branco, exagerar a excentricidade de sua postura, acentuar tudo
que possa desagradar a seu professor? (Hostilidade dissimulada). Você
costuma fazer o contrário do que ele pede, dizer que detesta a matéria
que ele ensina, · fazer gestos obscenos em sua direção, exteriorizar seu
desprezo pelos valores que ele transmite? (Hostilidade dirigida contra
os valores).

Estas respostas não serão inteiramente utilizáveis a menos que sejam relacionadas com
aquelas que o entrevistado pode ser levado a dar às perguntas referentes à atitude que
manifestou, no passado, em relação ao mesmo professor. Pode-se também confrontar suas
respostas com as que é capaz de dar em uma entrevista sobre o mesmo assunto realizada
algum tempo depois. Pode-se então per­guntar ao aluno, se as reações experimentadas frente
ao professor continuaram as mesmas. Serão observadas variações devidas a urna
conscientização mais clara das necessidades pedagógicas e educativas que orientam,
frequentemente, a atitude dos mestres, sem que estes estejam animados por uma maldade
qualquer em relação aos alunos. Perguntas como:

Você tem a impressão de que no fundo, seu professor não é


tão mal quanto você achava? Não acha que ele agia pensando no seu
interesse? Percebeu que atrás de seus modos ríspidos se ocultava uma
afeição profunda por você?

Podem levar o aluno a estabelecer as modificações de sua posição afetiva no "par educativo".
Estas variações serão mais sensíveis ainda, quando se trata de adolescentes aos quais se pede
que comparem os sentimentos que experimentam atualmente em relação a seus antigos
mestres, com aqueles que tinham quando frequentavam suas aulas. Perguntamos a jovens de
18 a 20 anos, de um curso de formação de professores primários, se eles experimentavam a
mesma impressão quando reviam hoje seu antigo mestre. Frequentemente, inegáveis
mudanças tinham transformado os vínculos que os uniam. A vida do "par educativo" aparece
tão complexa e instável que até se faz necessário continuar as entrevistas por meio de uma
observação que se estenda ao longo do tempo.

C) A Entrevista com o Educador Correspondente

Paralelamente às entrevistas com o aluno, interessa descobrir o comportamento do mestre


que agiu sobre ele. Uma entrevista com o professor é algo muito delicado e exige grande
discrição. Deve ser realizada com muito tato e uma grande circunspecção. Se procurar­mos ver
claro nas respostas do mestre, será possível perceber que os sentimentos da criança por ele
são, muitas vezes, o eco de sua indi­ferença, de sua tirania a respeito de coisas insignificantes,
ou do seu rancor contra tudo aquilo que provenha da adolescência, de seu desejo de se fazer
amar ou admirar, de sua generosidade ou de seu amor. Enfim, a atitude de um professor de
personalidade forte, que vive verdadeiramente os valores que ensina, pode explicar o
profundo respeito ou admiração que o adolescente experimenta por ele. Evidentemente, estas
entrevistas não podem conter perguntas previamente fixadas. As informações recolhidas não
serão sempre dignas de fé e não terão o valor daquelas que se pode esperar de uma entrevista
com uma criança. Mais informados sobre as coisas pedagógicas, e mais reticentes para
confessar certas posições que poderiam ser censuradas, não estão nada dispostos a responder
a perguntas incômodas, mesmo no decorrer de uma entrevista· familiar e cordial. Aliás, muitos
deles as conhecem mal, e ignoram sincera­mente, por falta de uma análise séria da própria
conduta, o caráter discutível de sua atitude frente às crianças. Um mestre que pro­cure se
fazer amar pelas crianças quase não suspeita da tirania que exerce sobre elas. O melhor é
examinar o mestre sob o ponto de vista pedagógico e educativo, de uma forma indireta, no
decorrer de entrevistas em que não se tratará de pedagogia nem de educação, ou melhor
ainda, observá-lo quanto ao seu comportamento profissional na aula. O modo como um
mestre pede às crianças que façam uma redação livre, induzindo-as a tratar de temas que lhe
dariam prazer, diz muito mais da extensão de seu imperialismo do que as respostas mais ou
menos preparadas que ele poderia dar a certas perguntas. Quando estivermos de posse de um
conjunto abundante de informações sobre o aluno e o mestre, deveremos evitar tirar delas
uma interpretação prematura, pois, numerosos fatores aberrantes poderiam nos levar a
aceitar conclusões errôneas.
D) Interpretação dos Resultados: os Fatores Aberrantes

Evitemos buscar a causa do amor, do ódio, ou da indiferença de uma criança em relação ao


seu mestre unicamente na atitude deste último. Já sugerimos que fatores externos ao mestre
podem agir sobre a criança.

Lembremos aqui a importância dos fatores históricos � geográ­ficos, principalmente quando se


trata, como foi o caso de nossa investigação, de alunos e mestre tomados no meio argelino.

Evoquemos, igualmente, os fatores que podem influenciar a ati­tude de um aluno para com
seu mestre, uma vez que a criança se acha comprometida em outras· relações afetivas com as
pessoas de seu círculo imediato.

Da mesma forma que devemos nos preocupar com a pos1çao afetiva do aluno frente aos seus
colegas, seu pai ou sua mãe, esta­mos obrigados a considerar certos- detalhes que, à primeira
vista, parecem estranhos ao nosso problema (situação familiar do pro­fessor, seu passado,
situação familiar da criança, classificação na escola, rejeição por uma determinada matéria do
currículo). Uma criança que perdeu seus pais, que é a primeira da classe em mate­mática, ou
que é a última, ou que é mimada em casa, estará mais ou menos predisposta às reações de
afeição ou hostilidade, sem que a presença do professor tenha aqui um papel determinante.

Basta dizer por ora, quanto é importante não aceitar sem dis­cussões uma resposta do aluno.
Enfim, e de um modo mais geral ainda, teremos que considerar a psicologia da criança, à
medida que ela desencadeia certas respostas de preferência a outras. Uma criança assinala,
principalmente, o que a incomoda. Ela não tem consciência de como sua ação é · favorecida
pelas qualidades pedagógicas de seu mestre, da mesma forma que não sente seu estômago
quando ele funciona regularmente. É por isso que suas respostas terão 'Um cará­ter mais
negativo que positivo.

Idênticas precauções deverão ser tomadas quando se quiser entrevistar um professor, ou


observar a atitude que ele adota perante seus alunos. Pode acontecer que as crianças não
sejam a causa direta de seu comportamento. Se um mestre foi educado com rigor, por pais
autoritários ou mestres severos, se teve grandes infelicidades na vida, se perdeu um filho, ou
se não o teve, ele se achará colocado, diante de certas crianças, em condições afetivas
particulares, à medida que uma criança lhe recordará a imagem do que ele foi outrora, ou do
filho que perdeu, desencadeando nele ímpetos afetivos ou quei­xas nostálgicas. Esse
professor, cuja mocidade e a vida sentimental foram mais ou menos sacrificadas a estudos
fastidiosos, poderá procurar os jovens ou, pelo contrário, ter ciúmes de sua beleza, sua
juventude, sua despreocupação, sem que sua atitude seja uma res­posta direta ao
comportamento das crianças.

Traçadas as linhas de nossa investigação, resta-nos estabelecer, à luz dos resultados obtidos,
os diferentes tipos de "pares educativos".

BIBLIOGRAFIA

1. Ver Roger Cousinet, La vie sacia/e de l'enfant. Essai de sociologie enfantine, ed. du
Scarabée, 1950.

CAPITULO TERCEIRO
Os tipos de "Pares educativos"

A) Preponderância do Papel do Mestre

Todo exame das interações afetivas do mestre e do aluno nos revela que a vida do "par
educativo" está submetida à iniciativa preponderante do professor. É ele que anima a relação,
que lhe imprime caracteres particulares, que suscita as reações do aluno pela simples presença
e pela atitude que adota desde o início. Isso parece, aliás, normal, se se pensa que ele
desempenha, por sua função, o papel de mestre, que o obriga a tomar a orientação moral e
intelectual da criança. Cada mestre dá a esta orientação o impulso inicial, à sua maneira,
segundo sua própria originalidade.

B) Diversidade do Papel e das Atitudes do Mestre

Tivemos a prova desta diversidade nas respostas que nos foram dadas por duzentos
professores primários à pergunta: "Que senti­mentos se pode ter em relação às crianças de
uma classe?"

1) Diversidade dós impulsos iniciais

As respostas revelam uma certa confusão, mas, são unânimes em assinalar as variações das
atitudes afetivas, em função dos alu­nos, dos meios sociais de onde provêm e do
desenvolvimento peda­gógico do mestre.

Uma professora, desde o início, manifesta à sua maneira, um amor concreto por todos os
alunos, em cada um dos quais descobre uma atraente originalidade:

Nunca me interessei por crianças antes de ser professora. Não lhes


fazia mal, porém, não me ocupava delas. Mas, desde que tenho alunos,
penso que as crianças têm neces­sidade de alguém que cuide delas:
Tento me aproximar delas, compreendê-las, conhecê-las, amá-las. Meu
objetivo é instruí-las com o método que melhor lhes convenha, pois
cada uma é um caso particular. Não há duas que reajam da mesma
maneira, que vivam nas mesmas condições, que tenham caracteres
semelhantes. Cada uma é um caso especial.

Ou, então, pelo contrário, um professor liga-se às crianças de uma maneira abstrata, desde o
primeiro contato:

Somente contam o trabalho, os resultados e a ajuda que se deve dar a


certas crianças. De qualquer modo, o mestre deve evitar todo
sentimentalismo. A criança que lhe foi confiada não deverá sofrer nem
por ele nem para ele. Bastará ao mestre despertar em seu aluno o
interesse inte­lectual e um certo desinteresse pelos outros planos, que
poderia se traduzir assim: estética e fair-play.

Outros insistem no desinteresse absoluto que deve regular todas as reações do educador:

Devemos tentar amar nossos alunos, mas com desinteresse: amá-los, é


esquecer-se de si mesmo (eu para eles e não eles para mim); isto
supõe abandono da tranquilidade, renúncia ao sucesso pessoal e à
popularidade, aceitação da ingratidão. Devemos respeitar sua fraqueza
(física, inte­lectual, sentimental), sua intimidade, sua fé religiosa, e, se
for o caso, sua grandeza (eles têm uma dignidade, uma
individualidade, são pessoas humanas).

2) A diversidade das atitudes possíveis do mestre

Cada professor; tendo dado à associação que forma com seu aluno, um impulso que lhe é
particular, deve lutar contra sentimen­tos que o arrastam, muitas vezes, para caminhos
divergentes. Citemos esta professora, que combate um amor exclusivista:

No ano passado, tinha uma aluna de quem particularmente gostava;


parecia-me que tinha todas as qualidades físicas, morais e intelectuais.
Ela bebia minhas palavras e seguia integralmente meus conselhos. Eu a
sentia toda impregnada de mim. E, no entanto, estou certa de que, aos
olhos dos outros alunos, ela não aparecia como o objeto dos meus
favores. Ela era notável, mas eu não queria que ela se destacasse;
acabei por enfatizar alguns de seus desa­certos, aliás, bem raros, pois
não desejaria nunca que esta inegável superioridade que ela
manifestava do ponto de vista intelectual, acarretasse uma ponta de
orgulho que pudesse estragá-la. Ela era feliz por ser a primeira, um
pouco orgulhosa, sem dúvida, mas, apenas o necessário, sem nenhum
convencimento, pois, eu me empenhava em lhe mostrar que não fazia
senão seu dever.

Ou a indiferença em relação a um aluno não dotado:

Se, às vezes, abandono uma aluna, é porque tendo tentado de tudo


para desenvolver seu espírito, aí não encontrei senão uma barreira . . .
Então, vencida, abandono-a um pouco, intelectualmente. E se ela não
compreende, isso me deixa indiferente (não é culpa minha!). Tento,
apesar de tudo, não deixá-la perder completamente a confiança em si
própria, permanecendo sempre objeto de meu afeto. Por isso, faço-a
participar frequentemente das atividades que não exigem muita
inteligência. Eu a encarrego de pequenos trabalhos simples, mas que
lhe deem prazer: apa­gar a lousa, ajudar a cuidar de uma colega,
molhar os vasos de flores, até mesmo treinar suas colegas para
inter­pretar as canções ...

Uma outra professora se esforça para resistir ao ódio:

São raras as alunas dissimuladas e mentirosas, que se com­portam


direitinho na frente da professora e que, em famí­lia, sentindo-se
apoiadas e mimadas, inventam histórias para desculpar a sujeira do
caderno ou os maus resultados de uma redação. Mas, tenho uma
dessas este ano! Feliz­mente, minhas lições de moral a têm corrigido,
transfor­mado. Ela poderia se tornar perigosa e como não tolero
mentiras, creio que acabaria por odiá-la.

Um professor procura reagir contra um sentimento de hostilidade que às vezes o invade:

Não sou indiferente, e meu amor que é feito de piedade e de


inquietação quanto a seu futuro transforma-se, frequentemente, em
uma hostilidade nascida do cansaço e do nervosismo. Mas esta
hostilidade não dura. E depois. . . acontece uma pequena satisfação,
uma resposta inteligente, que apaga rapidamente muitas decepções.

Ou contra sua parcialidade:

É difícil não ter favoritos na classe. O pior é que esta preferência recai,
inevitavelmente, sobre os melhores alunos. Esta preferência se revela
no fato de que se lhes per­doam muitas coisas, enquanto outros
alunos serão imedia­tamente punidos por suas faltas. Nossa afeição
deveria diri­gir-se sobretudo para estes últimos, certamente aqueles
que mais precisam de nós. Tenho um aluno que é mau, menti­roso,
insolente. Quando o retenho depois da aula, sai na minha cara. Digo-
lhe para voltar. Ele foge. Minha primeira vontade foi mandá-lo
embora, livrar-me dele. Mas, não pude fazê-lo: coloquei-me em seu
lugar (inquietação, pie­dade) e fico contente de não ter cedido àquele
primeiro impulso. O pior é que este aluno não percebe isto. E não
encontro nenhum jeito de fazê-lo compreender.

Uma professora nos conta como tentou percorrer o caminho inverso, partindo de um amor
egoísta para chegar a um amor desinteressado:

Quando eu comecei, no interior, esperava muito de meus alunos e


procurava atraí-los; fiquei decepcionada com sua ingratidão. Não
compreendia que antes de procurar receber seu devotamento é
preciso motivá-lo. Em L ..., não me pergunto mais se os alunos gostam
de mim. Não tenho tempo para mergulhar em especulações afetivas
estéreis. Não procuro adotar uma atitude indiferente ou amável. Sou·
eu mesma, sem constrangimento; eu os castigo frequentemente, sem
remorsos e sem falar muito; proporciono-lhes também prazer, muitas
vezes espontaneamente. Eles ficam felizes na aula, sinto-o, e, às vezes,
em detrimento de uma disciplina que deveria ser· mais rígida. . . é
preciso gos­tar de suas crianças. É preciso compreendê-las e dar-se
bem com elas. Este sentimento do mestre provoca o dos alunos. Mas,
este amor deve ser lúcido e desinteressado. Não se pode exigir muito
em troca. Basta sentir que a criança fica satisfeita na classe para ter a
sabedoria de não exigir mais. Não somos senão um momento de sua
vida, outros as trabalharão em seguida. . . esperar seu
reconhe­cimento seria insensato. Quando o rosto de um de meus
antigos alunos se abre ao me ver, fico recompensada pelos meus
esforços passados. Sei que ele me esquecerá, mas guardará a
lembrança agradável de uma classe onde se sen­tiu feliz porque era
amado ...

Enfim, uma professora, que ensina em uma escola de um bairro franco-muçulmano muito
pobre, em O ..., indica-nos como, com um coração a princípio puro, acaba por fixar-se no amor
pela infân­cia (reduzido ao estado infantil), sem se dar conta de que ela acom­panha este amor
com uma repulsa pelo adulto que o aluno será amanhã:

Não procuro ser indiferente à criança transferindo meu amor para o


homem que ela será amanhã. Absolutamente não! Ao contrário,
prefiro-as crianças. São garotos pobres, desnutridos, passando frio,
com uma herança catastrófica; são comoventes como pobres seres
indefesos, enquanto pequenos, mas, mais tarde!!! Que humanidade!

C) Os Tipos Existenciais

Em outras palavras, o mestre aparece sempre livre de escolher uma atitude e um


comportamento particular diante de suas crian­ças. Colocado no interior de uma relação
educativa, em face de um aluno, pode encarar esta situação de três perspectivas diferentes.

Na primeira, o professor procura ignorar completamente o interesse e a vida íntima da criança;


O aluno não se justifica, mais ou menos conscientemente, a não ser que se coloque a seu
serviço. A coletividade escolar não tem outra finalidade senão a de lhe pro­porcionar
satisfações pessoais na busca do proveito, de uma boa reputação, ou da realização de certas
ambições. Esta é a posição que examinaremos no "par educativo" caracterizado pelo egoísmo
do professor e a indiferença pela criança.

O educador pode, também, ao invés de desprezá-la sistematica­mente, preocupar-se com a


vida da criança, com a intenção de con­quistá-la e apropriá-la para si próprio. Dir-se-á, para
empregar termos comumente utilizados em psicologia da criança, que o professor a reduz a si
próprio, ou que a assimila segundo as exigências de seu egocentrismo. Redução da criança,
assimilação pelo professor, trans­formação do aluno em objeto mediante a produção nele, de
auto­matismos, à vontade do professor, segundo seu desejo de dominar, de se fazer amar ou
de impor suas, ideias, tais são os termos que nos parecem mais adequados para sugerir o
imperialismo do professor, sob cujo signo o "par educativo" também poderá ser estudado.

Finalmente, a terceira perspectiva consistirá em conhecer a vida da criança para respeitá-la e


·enriquecê-la, quer estabelecendo uma troca afetiva e intelectual com ela, quer enriquecendo-
a, com tudo o que o professor lhe traz, generosamente, ao praticar a doação de si próprio sem
exigir retorno. Este será o "par educativo" caracterizado pela troca e a· renúncia.

Na primeira perspectiva, o "par", que nenhum elo recíproco chama verdadeiramente à vida,
acha-se situado no que chamaremos de casos amorfos. Na segunda, o conflito se instala no
interior da relação professor-aluno: serão os casos de tensão. Enfim, na última, mestre e aluno
se reúnem no feliz encontro que descobriremos nos casos de harmonia.

Esta classificação dos tipos existenciais somente pode ser tomada como indicativa: ela não
permite fixar este ou aquele professor num determinado tipo. Ele pode sempre mudar de
atitude, e mesmo que não o faça, não se pode apreendê-lo definitivamente. Age sobre o aluno
ao mesmo tempo que este provoca uma reação nele; um· e outro, pelo jogo instável de duas
presenças, aparecem-nos com a maior mobilidade. Tudo o que se pode apreender deles é o
vínculo das relações vivas que impede de considerá-los um sem o outro. Veremos que, dado
um ponto de partida, segundo a preferência que o professor tenha por uma das possíveis
atitudes do adulto perante a criança; se organiza toda uma cadeia de reações mais ou menos
previsíveis a partir dessa tomada de posição inicial.

CAPITULO QUARTO

Os casos amorfos: "Pares educativos" caracterizados pelo egoísmo do professor e a indiferença


pela criança
No primeiro dos tipos existenciais que assinalamos, o professor, que se desinteressa de tudo o
que acontece no coração do aluno, não se preocupa nem com seu amor nem com seu ódio.
Procura viver somente para si, sem procurar atrair a criança. Pede à sua classe, apenas que
seja uma fonte de vantagens pessoais. Não se trata de imperialismo direcionado para q
conquista das crianças, como veremos no próximo capítulo, mas de um egoísmo que se ·
converte em razão moral da conduta do professor na classe.

Examinemos alguns desses educadores que, através das crianças, somente procuram satisfazer
seu interesse Pessoal. Ao mesmo tempo, tentaremos conhecer as reações que esta atitude
provoca no aluno.

A) Exame de alguns mestres egoístas e das reações que sua atitude provoca nos alunos

1 ) Os que gostam da vida confortável

O sr. D ..., encarregado de uma escola primária, com todos os seus cursos (meninos e meninas
de 6 a 14 anos), procura uma vida confortável na classe. Sua felicidade consiste em ficar
tranquilamente sentado à sua mesa, enquanto as crianças fazem uma longa cópia em seu
caderno. Deseja que a sala de aula seja florida, decorada e mantida muito limpa pelos alunos.
Leva em conta apenas seu inte­resse e sua tranquilidade o pessoal no arranjo de seu ambiente
ou no dos alunos, na distribuição dos programas, na disposição dos horários, na escolha dos
exercícios. Não gosta de dar aulas de educação física e empreender excursões didáticas
cansativas e trabalhosas. No entanto, não deixa de ter competência pedagógica. Ele tem, aliás,
intenção de dar uma mostra de suas qualidades em uma pequena obra que submete à
aprovação de seus alunos, à medida que a redige. No ano anterior, consagrou-se ao estudo
dos cogumelos e, com a colaboração dos alunos, rapidamente transformou sua classe em sala
de expo­sição das principais famílias de cogumelos. Que importam as maté­rias curriculares e
o programa de ensino! O que acontece é que este professor quer ignorar o interesse da
criança, que está ali somente para seu serviço pessoal, para seu proveito, como alvo das lições
particulares que ele obtém ao insistir, nas suas relações com os pais, sobre as deficiências ·da
criança e sobre as notas exageradamente baixas.

Interroguemos as crianças desta classe. Não parecem se opor ao mestre. Pedro P ... fica
contente de lustrar a mesa e limpar a sala e o pátio do recreio. Ele é sempre o primeiro a
solicitar trabalhos deste tipo. Obedece facilmente ao mestre e mantém seu caderno
impecável, cuidando particularmente dos exercícios de cópia. Res­ponde às nossas perguntas
de uma forma espontânea, dizendo que se dá bem com o professor. É evidente que este tem
interesse em moldar rapazinhos deste tipo, que não lhe deem nenhuma preo­cupação e que
tenham a ilusão do trabalho, apesar da fraca atividade intelectual que lhes é pedida. Também
João-Pedro C ... aceita com entusiasmo servir o professor. A limpeza do jardim, as idas aos
armazéns da aldeia, todas as pequenas tarefas da vida doméstica são desempenhadas por ele
com boa vontade, com tanto mais soli­citude quanto ele não gosta nem um pouco dos
exercícios escolares. É um servidor nato. Pede aos pais para pagarem aulas particulares para
ser bem-visto pelo professor ou para obter melhores notas na aula. Gosta de se apresentar
diante do professor carregado de flores ou levando ·presentinhos. Conforme o caso, responde
às solicitações do professor com servilismo, docilidade, generosidade ou alegria, sem sentir-se
profundamente afetado com isso.
Denise M ..., 13 anos, é uma aluna aplicada, meiga com os alunos do curso preparatório. Não
lhe faltam qualidades pedagógicas e sabe corrigir com paciência os erros dos alunos. É a ela
que cabem as tarefas pedagógicas da classe. Monitora nomeada, é uma espécie de mestra
auxiliar que cumpre seu trabalho com zelo e satisfação. Infelizmente, não se fala se ela
conseguirá seu certificado, porque não tem a preparação sólida que o professor se esquece de
lhe dar. Ela é ajudada, no seu trabalho pedagógico, por Ahmed B ... (12 anos), que se
encarrega da disciplina. Ele é o guardião da ordem escolar, anotando cuidadosamente o nome
dos desordeiros no quadro, enquanto o professor redige uma carta, sentado à mesa. Ele está
orgulhoso e feliz por ter essa incumbência.

É desse modo que cada criança da classe tem sua parte nas tarefas materiais, pedagógicas ou
disciplinares, requeridas por uma pequena sociedade organizada exclusivamente no interesse
de seu chefe.

Quase todas as respostas dos alunos deixam de assinalar rela­ções estreitas entre eles e o
professor. A total indiferença deste quanto aos sentimentos e a � vida interior do aluno não
desperta na criança nem amor nem ódio. Só um, Renato A ..., de natureza inteligente e muito
meiga, se lamenta de que o professor não lhe dê muitos "verdadeiros problemas" e "exercícios
difíceis". Um dia, disse ao professor que não queria mais fazer as pequenas tarefas materiais
que são o quinhão cotidiano dos alunos de sua classe. O professor o puniu e zombou dele
diante de todos os seus colegas. Desprezado pelo professor, experimenta agora, em relação a
ele, sentimentos de oposição que o impelem a não mais se interessar pelo trabalho escolar.

Ainda que o relacionamento professor-aluno, nos casos precedentes, pareça muito


inconsistente para que se possa verdadeiramente falar da existência de uma "relação
educativa" que desaparece numa atmosfera de indiferença mais ou menos recíproca, o jovem
Renato A . . . e seu professor dão origem a um "par" caracterizado por uma hostilidade, pouco
pronunciada, sem dúvida, mas real de ambas as partes.

2) Os que gostam de prestígio profissional

a) O sr. A ..., em uma classe primária (meninos, idade média de 11 anos) procura através de
seus alunos, a possibilidade de aumentar seu prestígio profissional, seja junto aos colegas, seja
junto aos superiores. Quer experimentar todos os métodos possíveis, submetendo os alunos a
todos os regimes, desde o da disciplina rígida até o da liberdade total, passando pelo da
liberdade contro­lada. Tentará, no decorrer do mesmo ano, a imprensa escolar, com a
utilização do texto livre, a individualização do ensino com o trabalho com fichas, para voltar
aos métodos tradicionais algumas semanas antes do exame. O essencial, para ele, é ter a
reputação de um pedagogo original, de um experimentador de primeira ordem, curioso da
pedagogia. Que importa se o aluno é transformado em cobaia!

Ele toma a atitude do cortesão que adula os superiores pondo em prática, o mais rápido
possível, as instruções dos inspetores, mesmo que apareçam como a expressão de certas
manias; mediante a exibição ostentatória de um material que transforma a classe em sala de
exposições sem proveito para as crianças; pelo cuidadoso preparo de uma lição, que reserva
habilmente para uma possível inspeção; enfim; por exercícios escritos que são passados a
limpo tendo em vista obter cadernos aparentemente de alto nível, que possam iludir um
diretor ou inspetor muito afoito. O cortesão não procura agradar apenas aos chefes. Ele sabe,
também, bajular os pais dos alunos e o orgulho que 'eles sentem por seus filhos; e se dobra às
suas exigências, mesmo que elas provoquem procedimentos antipedagógicos como aquele,
tão frequentemente reclamado pelos pais, de longos deveres de casa. Como ele quer passar
por um exce­lente professor, exigente e competente, será sempre severo, tanto mais que,
fazendo-o em nome da perfeição que representa aos olhos dos alunos, se empenha em
acentuar a distância que os separa. Os alunos reagem, de modo geral, com sentimentos de
respeito e de admiração. Ficam deslumbrados com seu professor e comparam,
orgulhosamente, o trabalho que fazem com ele, com o das classes vizinhas. Aqui, igualmente,
não seria o caso de "par", dada a ausência de qualquer sentimento do professor em relação às
crianças.

b) O sr. R ..., como o sr. A ..., parece preocupado com sua reputação. Em uma classe terminal
do curso primário, começa por declarar, desde o primeiro contato com os alunos, que todos
eles são de um nível muito baixo e de uma "burrice" incrível. Esta afirmação, feita na classe ou
fora dela, tanto na frente dos alunos quanto na dos pais ou dos colegas, se traduz em notas
sistemati­camente baixas desde os primeiros exercícios, com um número exagerado de zeros.
Fica-se obrigado a supor a coragem extraordi­nária de que deverá dar provas para levar seus
alunos a um nível conveniente. Pouco delicado para com os colegas que o precederam,
protege-se de suas eventuais críticas e se prepara habilmente uma escapatória, afirmando a
falta de inteligência de todos os seus alunos. É guiado em seu trabalho pedagógico, pela ideia
de que apenas contam os resultados dos exames finais.

O ensino perde rapidamente, com ele, toda virtude educativa e formadora através da
aprendizagem de mecanismos e truques produtivos nos exames (meios mnemotécnicos
aplicados a esquemas uniformes, séries de frases feitas que, correspondendo a certos temas
tipo, podem ser inseridas nas provas). O ensino se apresenta redu­zido em seu conteúdo,
simplificado, esquematizado, fácil de reter em uma forma dogmática submetida a repetições
maciças. A memória da criança é solicitada quase que constantemente. · Todas as estatís­ticas
concernentes à porcentagem de aprovados em relação ao número de candidatos que se
apresentaram para os diversos exames, figuram com destaque nos lindos quadros afixados nas
paredes ou mesmo publicados nos jornais locais·. Os alunos fracos, que talvez tivessem uma
pequena chance nos exames, mas que arriscariam diminuir esta porcentagem, são
sistematicamente deixados de lado e não são inscritos na lista dos candidatos. Aliás, o sr. R...
demonstrará aos pais que a criança não tem absolutamente nenhuma possibilidade. . Os
alunos fortes que, por causa de suas aptidões particulares, poderiam ser orientados para
exames de resultados menos espeta­culares, são sistematicamente arrastados para exames de
grande publicidade.

O exame do comportamento dos alunos perante o sr. R... revela reações bem parecidas com as
precedentes. Todos acham que têm um bom professor, que os faz trabalhar e que lhes parece
muito qualificado para fazê-los serem aprovados no exame. Um deles nos disse que está
contente por se achar nesta classe. Seu pai lhe repete todos os dias que ele tem sorte por estar
com o sr. R ..., quando poderia estar na classe vizinha, onde não se faz nada. De um modo
geral, as crianças manifestam respeito e admiração por seu professor, e, se dão bem com ele.
Este chega a responder de uma forma sentimental à maneira de trabalhar das crianças: porque
uma criança se põe a compreender suas lições e a realizar algum progresso, este professor
chega a mudar o comportamento diante dela. Mas, seu sentimento não tem senão uma
origem profissional ou pedagógica e carece de profundidade. Às vezes, ele perde a calma. Suas
cóleras não são motivadas pelas reações afetivas do aluno, com as quais pouco se importa,
mas, pelas falhas intelectuais das crianças que trabalham mal. Um aluno, o mais atrasado de
sua classe, não acerta nenhum de seus exercícios e aparece como um escândalo pedagógico
aos olhos do professor, que se exalta até o ponto de rasgar brutalmente a página do seu
caderno ou a bater nele. Não se trata, para o professor, de manifestar qualquer hostilidade
para com o aluno, mas de exteriorizar o mesmo despeito e o mesmo ner­vosismo que leva um
operário a jogar longe, com violência, uma matéria-prima demasiado resistente. Tampouco,
neste caso, se pode falar em vínculos afetivos entre o aluno e o professor, pelo menos neste
último que, zelando apenas pela qualidade dos resultados dos quais quer se orgulhar, continua
a ignorar a vida interior do aluno. As relações entre alunos e o professor se. situam no plano
bastante abstrato do trabalho intelectual e revelam uma tonalidade afetiva bastante neutra
que quase não oferece variações.

3) Os que gostam do trabalho pedagógico fácil

A sra. J... é professora de matemática em uma classe primária de terceiro ano (meninas). Ela
faz o serviço para o qual é paga. É tudo. É, em suma, uma empregada como outra qualquer, ou
uma operária para a qual o material a ser trabalhado· é o aluno. Não tem · mais amor ou
aversão pelo aluno do que o fabricante de carros pela chapa de metal. Como este último, ela
se interessa, sobretudo, em escolher o material mais fácil para trabalhar.

Sua tendência mais ou menos declarada será atrair para si as melhores alunas, "arranjando" à
sua maneira os exames de promoção, e ameaçando com o regulamento para conseguir excluir
de sua classe uma aluna muito fraca. Para ela, quanto mais elevado é o nível da classe no início
do ano escolar, mais ela fica satisfeita, mais seu trabalho será facilitado; as séries boas são
aquelas em que a matéria prima é excelente. As alunas, no conjunto, respondem a esta atitude
com um vago respeito convencional. Elas se sentem, relativamente à vontade diante de sua
professora, que não procura nem submetê-las pela força, nem prendê-las por uma afeição
constrangedora que exigiria retorno. Notamos, no entanto, uma aluna, lúcida o bastante para
se dar conta da falta de entusiasmo da professora, desinteres­sar-se de seu trabalho, e uma
outra que se lhe opõe, desleixando voluntariamente sua tarefa. Mas, no conjunto, e da mesma
forma que nos primeiros casos que consideramos, trata-se aqui de ausência de relação
educativa. Alunas e professora, mutuamente indiferentes, apenas apresentam relações
tradicionais de respeito e de obediência nas suas manifestações exteriores.

B) Evolução das relações afetivas no interior do "par educativo" submetido ao egoísmo do


professor

1) Reações afetivas dos professores nos casos de tendências contrariadas

O professor que não pode satisfazer seu egoísmo com nenhum · de seus alunos, parece reagir
de uma forma abstrata e geral. Por exemplo, o profissional ambioso, insatisfeito, se converterá
no des­truidor de tudo o que existe no âmbito escolar. No caso de fracasso pro­fissional, ele
vai procurar criticar tudo. Para ele, as crianças são todas degeneradas e retardadas. É incrível o
elevado número de anormais que ele descobre em sua classe, quando não pode alcançar os
resul­tados que alimentariam sua vaidade. A administração, sempre incoerente, os programas
sobrecarregados, a sociedade decadente e pervertida que dá maus exemplos aos alunos, o
Estado, incapaz de oferecer boas condições materiais propícias para um ensino útil, são os
temas mais correntes de sua argumentação, juntamente com o da "criança degenerada".
Concretizará todos os seus rancores, aliás, na maneira de avaliar os alunos. As notas baixas
serão numerosas, e ·o professor não se dará conta nem de longe, de que ele é o res­ponsável
pelas más notas que atribui a um exercício que suas expli­cações ou o seu trabalho profissional
não conseguiram tornar produtivo.

2) Evolução dos sentimentos do aluno para com os mestres egoístas


Da parte da criança, as reações afetivas desfavoráveis só virão muito tempo depois. Na
impossibilidade de interrogá-las vários anos 'após suas primeiras respostas, perguntamos a
adultos que se acharam na sua juventude frente a professores desse tipo, o que pensam deles,
boje. Pode-se ver como passaram do respeito convencional, da vaga admiração, da indiferença
polida, ou mesmo do contentamento experimentado durante seu período escolar, ao·
desprezo que sentem hoje por seu antigo professor. Diz um deles:

Tratava-se de um professor que dava aula mal, multipli­cando as lições


de cópia para ter longos minutos de liber­dade, que utilizava para pôr
em dia sua correspondência, conseguindo poucos resultados nos
exames, distribuindo grande quantidade de "cascudos" para se
beneficiar de uma tranquilidade toda pessoal na classe. Parece-me,
hoje, de uma · nulidade quase inconcebível.

Um antigo aluno, outrora respeitoso em relação ao seu mestre, experimenta agora, por ele,
desprezo e hostilidade. Um ' outro que, apesar dos resultados obtidos nos exames com um
professor mais preocupado com o rendimento do que com a formação, conheceu muitas
decepções na sua carreira, por não ter um método de tra­balho que se1,1 professor não lhe
ensinou, diz que o reconhecimento que experimentava por -seu professor desapareceu
completamente. Enfim, um aluno que · apreciara vivamente a habilidade profissional e a
utilização de métodos atraentes, constata que se rompeu o encanto de outrora. A admiração
de então deu lugar à oposição pedagógica do adulto, que censura o professor por ter
procurado apenas se · fazer valer pelo emprego ostensivo de métodos originais, em lugar de
trabalhar no exclusivo interesse do aluno.

No conjunto, as reações do aluno quando estava na escola ou quando se torna adulto, quase
não têm intensidade. Elas marcam, a custo, a vida do professor e a do aluno, do mesmo modo
que o "par educativo" é quase· inexistente ou inconsistente. Por essa razão, pudemos agrupar
todas as nossas observações na série de "pares educativos" amorfos.

CAPlTULO QUINTO

Os casos de tensão: ''Pares educativos'' caracterizados pelo imperialismo do professor

A) Observação de alguns professores e das reações que despertam nos alunos

Nos casos examinados precedentemente, vimos que o egoísmo do professor é acompanhado


de uma indiferença para com a vida pessoal do aluno. Estes não são, para o professor, senão
um meio para obter certas satisfações materiais e pessoais. Por isso sua posição frente à classe
fica num plano geral e provoca reações mais intelec­tuais e escolares que afetivas. Não
acontece o mesmo nos casos de imperialismo, nos quais o professor deseja conquistar as
crianças, sempre se esforçando por considerar concretamente cada um dos casos particulares
que se apresentam no seu relacionamento com elas. É o que poderemos ver pela ·observação
do comportamento de alguns professores e das reações que provocam em seus alunos.

1 ) Os professores ávidos de afeto e admiração

a) O sr. N ..., que ensina no 2.0 ano, curso médio, de uma escola de meninos (idade média de
12 anos), só tem um desejo: ser amado por seus alunos. Não é um amor a longo prazo que ele
quer: ele não procura se fazer amar pelo homem de amanhã, mas, imediatamente, pelo
menino de hoje. Tenta conquistar seus alunos com uma indulgência excessiva, com atitudes de
ternura acompanhadas do vocabulário correspondente, com maneiras de companheiro que
vão até ao ponto de fazê-lo adotar a linguagem de seus alunos. Para agradá-los, chega a descer
a seu nível. Uma grande demagogia ins­pira todos os seus atos. Para ele, os alunos têm sempre
razão e não hesita em ser seu cúmplice perante o diretor da escola ou seus pais. Que lhe
importa ser desprezado mais tarde, se o amam agora! Tem seus preferidos, que correspondem
facilmente à sua afeição; um deles o agrada particularmente. Considera-o como seu próprio·
filho. Não tendo tido a alegria de ter um filho em seu lar, não resiste à tentação de pedir a uma
criança a afeição da qual seu coração paternal foi privado. Esta ternura não é isenta de tirania
e de inquietação. f: a criança tal qual é hoje que ele quer imobilizar em seu desenvolvi­mento.
"Ah! Se ele pudesse permanecer sempre assim", é o desejo egoísta que se ouve às vezes ele
formular, semelhante à mãe, exclusivista que continua a vestir seu filho de uma forma muito
pueril e a fazê-lo viver "agarrado às suas saias", como que para imobilizá-lo na posição mais
favorável à submissão que ela deseja. O mestre não para de pensar nessa criança, não
consegue evitar uma forma equívoca de pedir um olhar no decorrer de uma aula, de preparar
especialmente uma lição, destinada em princípio a toda a classe, mas, na realidade a este
único aluno, ou ainda, de insistir em fazer alusões às lembranças pessoais dessa criança para
criar uma espécie de intimidade com ela. Às vezes, pode-se adivinhar sua preferência secreta,
até no tom ríspido de certas expressões como: "Anda, sua besta!"

Parcial em seu comportamento frente às crianças, subjetivo na sua forma de trabalhar, o sr.
N... acaba por apresentar uma peda­gogia amorosa que se propõe conquistar as crianças pela
facilidade do trabalho, pela apresentação original e atraente das lições. Dá uma importância
excessiva aos capítulos que agradam à criança e elimina do programa certas dificuldades
aborrecidas. Suas maneiras sedutoras e femininas permanecem firmes no propósito de obter a
submissão terna de uma criança, cujo reconhecimento ele solicita sob a forma de
pensamentos e atos que não devem mostrar nenhuma divergência com ele. Submete as
crianças à sua direção que, por ser afetuosa, não é menos constrangedora. Mesmo quando
fazem leituras pessoais ou trabalhos livres, impõe-lhes sua presença amigável, passando e
tornando a passar atrás deles. Se os alunos fazem uma pesquisa literária em grupo, ele se
integra na equipe onde quer repre­sentar o papel de conselheiro afetuoso. Se deve avaliar os
alunos, é naturalmente levado às boas notas para conquistar-lhes a afeição. Por outro lado, é
pouco firme em suas notas, mudando-as no último instante segundo suas preferências e as
reações dos alunos. Nunca tem a mesma forma de · dar notas ao mesmo aluno e sempre aplica
ao máximo o critério afetivo. De modo geral, tudo indica que, para ele, a criança não é um ser
original, que precisa desenvolver-se livremente, mas, um ser diferente dele que é preciso
conquistar e reduzir a si, não pela força como muitos podem pensar, mas pelo amor.

Interrogamos a maioria dos alunos deste professor. Uns respondem com docilidade e
dedicação à exigência de afeto que lhes é dirigida.

Renato M... não procura senão agradar a seu professor, mas, Infelizmente, não é um bom
aluno. O amor que lhe dedica inibe frequentemente seu trabalho, provocando-lhe o medo de
não ser bem-sucedido e de desagradá-lo. Cada vez que se engana tem a impressão de ser uma
criança ingrata, que não sabe agradecer ao professor como seria preciso, a tal ponto que acaba
por perder todos os seus recursos mesmo diante · das tarefas fáceis. O único trunfo que lhe
resta é fazer proezas no decorrer das aulas de educação física, para deslumbrar o professor,
mesmo com o risco de se ferir e tudo o que pode oferecer-lhe.
João B ... adora seu professor. Passa e torna a passar várias vezes diante dele, de manhã, para
cumprimentá-lo. Prodigaliza-lhe mil sorrisos e olhares atenciosos. De família muito pobre,
tenta por todos os meios oferecer-lhe alguma coisa. Confessa-nos que um dia roubou flores na
porta do cemitério para trazê-las, cheio de orgulho e vermelho de · emoção, para s·eu
professor bem-amado.

João M... se diz o "queridinho" do professor. f: sempre ele que traz o giz, que apaga a lousa e
que vai buscar o seu casaco no fim da aula. O professor o recompensa com um belo sorriso.
João confessa que, de tempos em tempos, aproveita para pedir um favor, ou denunciar um
aluno indisciplinado, ou ainda para tomar com orgulho, a liberdade de se fazer de palhaço em
classe, sem correr o risco de ser castigado. Busca assim, se fazer admirar a qualquer custo, mas
não tem a simpatia de nenhum de seus colegas.

Pedro S ..., no mês anterior, era o preferido do professor, e fazia tudo o que podia para agradá-
lo e mostrar-lhe sua afeição. Mas tudo isto agora acabou. O professor, sem motivo aparente,
tirou-lhe toda sua estima e lhe dá notas muito baixas, mesmo que seus deveres estejam tão
certos quanto antes. f: verdade que, há algum tempo, ele toma aulas particulares com um
professor de uma escola vizinha, do qual fala sem parar. O professor que deseja se fazer amar
não hesita, assim, em deixar claro para seu preferido uma atitude desdenhosa e hostil, que
indica desfavorecimento.

Outros alunos, ao contrário, se rebelam contra essa tutela afetuosa. Paulo E... confessa:

Não gosto que se ocupe de mim todo o tempo. O professor me


pergunta sempre o que penso, mas, não percebe o que se passa
conosco. Ele me trata com intimidade, mas não gosto disso.

Gazetear a aula é a única coisa que agrada a Luís S... O professor, no entanto, só pensa em
mimá-lo. Luís S... não pode sonhar na classe sem que ele lhe diga: · "Meu Luizinho, como estás
triste! O que está acontecendo? Estás doente? Tens algum aborrecimento?" São sempre
perguntas embaraçosas, feitas por um professor que passa seu tempo a prevenir ou a cuidar
dos desejos de seus alunos,

Luís S... está cansado deste afeto incômodo e da "terna tirania" de seu professor. De vez em
quando, a "gazeta" o faz esquecer os encantos de sua gaiola florida. O professor não
compreende este "menino malvado" que quer escapar, quando alguém se ocupa dele de uma
forma tão suave e tão atenciosa! · Esta criança rebelde aparece-lhe como um monstro de
ingratidão, a tal ponto que· acaba por corrigi-lo sem piedade, aumentando ainda mais os
castigos. Aquele a quem chamava antes de "Luizinho" tornou-se "um inútil", "um mau
exemplo". É assim que a reação da criança atua sobre o professor, habitualmente afetuoso,
para torná-lo impie­doso com este aluno que é objeto de mil vexames. Ao perceber que o
aluno não se resolveu a amá-lo, o sr. N ... ' deixa eclodir seu despeito e seu rancor. Se tem seus
"preferidos", tem também suas "vítimas". Entretanto Luís S... não se queixa desta severidade
exagerada. "Trabalho melhor quando o professor me repreende e não espera nada de mim",
diz-nos ele. Parece que ele reencontra seu equilíbrio diante do professor à medida que este
muda seu desejo de amor em hostilidade.

b) O sr. R. . . é professor em uma escola comum de meninos e em outra de meninas. Nós o


observamos atuando em classes de primeira série em ambas as escolas. Como o professor
anterior, o sr. R ... busca à afeição de seus meninos procurando contrariá-los o menos possível,
multiplicando as boas notas e dando provas de uma indulgência sistemática. O desejo de ser
amado se complica nele com uma necessidade de confidências destinadas a valorizá-lo. "O
primeiro curso que nos deu foi uma oportunidade para nos contar sua vida", disse um aluno. É
desse modo que ele tenta estabelecer uma espécie de intimidade com seus alunos. Alguns
respondem com entusiasmo a esta tentativa de aproximação, e se envolvem com ele a ponto
de esposar-lhe as ideias, a forma de suas frases, seus tiques verbais. Estão sempre prontos a
defendê-lo se alguém o ataca e a afirmar, com parcialidade, que ele é o melhor professor da
escola.

Outros não manifestam o mesmo entusiasmo. João S... não gosta da bondade do professor
que, a seus olhos, se transforma rapidamente em fraqueza e injustiça.

Ele modifica suas notas, diz-nos, quando um aluno reclama e pretende


merecer uma nota mais alta por ter dedicado muito tempo à sua lição.

Pedro V... não hesita em se opor vigorosamente ao professor, zombando de suas confidências.
Escreve "Viva a Marinha" em todos os quadros-negros, antes do início da aula, para
ridicularizar o pro­fessor que lhes contou de suas façanhas como oficial durante a guerra.
Confessa-nos que não hesita em rir mais do que o razoável de uma "tirada" de seu professor e
em incomodá-lo, fazendo-lhe perguntas de duplo sentido. Mais ainda, frequentemente
assume a liderança de uma desordem, ocupando-se de todos os detalhes.

Renato S... se insurge contra os desordeiros:

Não faço desordens. Sofro pelo sr. R... e tenho dó dele. Não
compreendo os alunos que encontram em sua extrema benevolência,
alguma coisa de degradante.

Este aluno reage à oposição de seus colegas aproximando-se ainda mais de seu professor, o
qual, por sua vez, responde à hostilidade de alguns alunos lançando-se irrefletidamente na
estima de Renato S ..., que sabe fraco e tímido, e dando provas de uma severidade injusta em
relação àqueles que suspeita serem os instiga­dores dos colegas contra ele.

Na sua classe de meninas, consegue captar melhor a afeição das alunas. Simone T ..., sua
preferida, age frequentemente movida pelo orgulho de mostrar às suas companheiras, que
pode se permitir o que as outras não ousam fazer. Ela nos confessa que chega a rir ou fazer
gracinhas, ou cantarolar durante as aulas.

Joana B ... nutre uma admiração sem limites por seu professor, a quem orna de mil qualidades.
Está tão profundamente envolvida no plano afetivo, que experimenta para com ele um
verdadeiro amor, sem dúvida muito puro e pouco consciente, mas nitidamente caracterizado
através das respostas sinceras e inocentes que citamos in extenso:

Este ano, meu professor preferido é o sr. R... É um homem de uns


trinta anos, de cabelos escuros e olhos castanhos sempre risonhos. Ele
tem um ·bigodinho e um sorriso muitas vezes zombeteiros. Quanto à
moral, é certamente otimista. Seu caráter é formidável. É bom, justo e
gosta de sua profissão. É até elegante demais, pois algumas de suas
alunas zombam dele. Creio que tem o mesmo ideal político e moral
que eu. Perdoa tudo e não castiga nunca, mas não é por isso que o
amo. Ele me agrada, sim, por sua juventude. Há uma razão para
admirá-lo: é ter sido um ótimo aluno, já que se tornou professor muito
jovem. Ele me impressiona muito por sua voz. Acho-o absolutamente
formidável por isso. Provavelmente é com ele que trabalho melhor.
Perturbo-me muito quando ele me interroga, pois tenho medo de me
enganar e · ainda que não perca o fio de minhas ideias, acontece-me
de gaguejar. Até agora não gostava nada da matéria que ele ensina.
Ignoro seus sentimentos a meu respeito. Mesmo que não sentisse
nenhum afeto por mim, eu o amaria; se eu faria uma ação má para
agradá-lo? Não sei, se fosse para prestar-lhe um serviço. Talvez. Faria
grandes coisas · por ele, mas com meus recursos. Fazer-lhe juramentos
e obedecê-los? Sim, mas em certas condições. Talvez a verdade esteja
acima dele, mas a justiça não. Absolutamente não. Pois ele é, até
agora, uma das pessoas mais justas que encontrei. Parece-me ser a
primeira pessoa à qual recorreria em caso de necessidade. Seus
conselhos · não poderiam ser senão excelentes e os seguiria com
alegria, mesmo que isso me custasse... sim, eu o considero muito bom
companheiro. É quando ele se mostra assim que o prefiro. Sim, seria
fan­tástico sair com ele a passeio, ao cinema, pois, como o disse, ele é
um companheiro maravilhoso. Eu o preferi aos outros professores,
sempre, desde o primeiro dia. Nunca faço caricaturas dele. Se o imito,
é sem maldade e antes, maquinalmente. Não gostaria de armar-lhe
ciladas e sofro quando outras alunas o fazem.

E conclui com este retrato ditirâmbico, onde não vê senão uma única sombra que a faz desejar
que ele seja mais severo com certas alunas:

Não desejaria ter nenhum outro professor senão o que tenho neste
momento e que já apontei, o sr. R... Amo-o por tudo: por sua maneira
de ensinar, por sua habilidade para nos fazer estudar, por seu talento,
por sua justiça, pelo seu bom-humor inabalável, pela facilidade com
que se põe em nosso nível, pela variedade de suas explicações que
certas alunas acham medíocres, mas que são interes­santes quando a
gente se dá ao trabalho de escutá-las. Parece-me que só lhe falta uma
única coisa. Penso que deveria se mostrar um pouco mais severo, pois
suas alunas perturbam-no em excesso. Principalmente algumas delas.
Fora isso, é um professor formidável, que eu gostaria de ter sempre,
sempre ...

O sr. R... acha que esta dedicação é uma justificativa para seu mérito, para sua habilidade em
se fazer amar. Ele aí vê, também, uma compensação pelo que sofre, às vezes, na sua classe de
meninos, onde desejaria acabar com certas zombarias que jovens incapazes, a seus olhos, do
menor reconhecimento, continuam a dirigir-lhe. Sente que com eles se tornaria rapidamente
sensível a uma política de repressão e que antes preferiria ser detestado do que amado por
estes meninos, tão pouco interessantes. Desapontado e pessimista, se pergunta se não seria
melhor reduzi-los à obediência, ainda que à força.

2) Os professores dominadores

a) A sra. B . . . é encarregada da 2. ª série, curso médio, de uma escola primária feminina (idade
média: 11 anos), que ela dirige de uma forma muito autoritária, submetendo suas alunas à
mais rigorosa obediência. Mesmo quando se orienta, como foi o caso do ano anterior, para
métodos modernos que tendem a dar maior importância à iniciativa· do aluno, à sua
espontaneidade, à sua liber­dade, não pode esquecer seu desejo de autoridade. O texto livre é
então fortemente sugerido, os textos para imprimir são revistos e corrigidos, a excursão toma
rapidamente um caráter militar, as equipes não escapam à sua tutela. Este ano ela voltou aos.
"bons" métodos tradicionais, nos quais seu despotismo pôde se exercer mais facilmente.

Fátima A... aceita a tutela da professora. Ela se encarrega das tarefas miúdas e denuncia as
colegas que erram. É bem-vista pela professora.

Algumas das alunas que sonharam com sua mestra revelam, nas descrições, um desejo de
vingança:

Sim, sonhei que minha professora estava na classe, con­tando a


história de duas bonecas, uma bela e outra feia, quando de repente,
duas bonecas brotaram do chão e me lançaram sobre ela. No sonho,
não tinha medo dela como na classe, onde é muito severa.

Ou o sentimento confuso de ter apanhado a professora em erro:

Um dia, eu sonhei que a professora me havia punido porque ela lia seu
jornal e foi surpreendida pelo barulho que fiz quando derrubei a
caneta. Tive a impressão de não ter a mesma atitude que na classe.

Ou, enfim, castigos exemplares e abomináveis:

Uma noite, eu sonhei que minha professora nos cortava o pescoço

Ou a impressão de uma vigilância desagradável e obsessiva:

Sim, eu sonhei que ela me olhava através da vidraça, insis­tindo em me


olhar. Eu via seus olhos azuis se fixarem constantemente em mim. Foi
então que tive medo.

Esta oposição se revela também nos jogos, a propósito dós quais algumas crianças declaram:

Eu brinco de escolinha. Sou o professor. Bato muito nas crianças que


não sabem nada. "Sim, quando brinco de escola, bato com um bastão".

Pedrina S... nos confia que põe vários apelidos em sua professora:· "Tarzan", por causa de sua
força, ou "a velha". Ela nos comunica algumas reflexões indelicadas sobre sua professora, que
quer se embelezar. Acrescenta que não ousaria dizer nada aberta­mente à sua professora,
nem induzir suas colegas a. zombarem dela. Sua oposição permanece quase sempre verbal e
secreta.

Uma outra aluna, Zohra B... não esconde o medo que sente diante de sua professora:

Quando a vejo na rua, tenho medo, escondo-me para não a encontrar.

Na classe, ela não se sente à vontade e fica como que paralisada:

Às vezes, tenho tanto medo da professora que esqueço frases inteiras


das minhas lições, que, no entanto, eu havia exposto muito bem à
minha mãe.

Consideremos algumas das alunas da· sra. B... para examinar suas reações diante do seu
despotismo. Maria. Rosa P ... se d1verte em sua casa, brincando de escolinha 'com sua boneca,
seu gato, seu cão. Ela procura fazer o contrário do que faria a mestra com alunos de verdade:
bate no gato que age bem, dá açúcar para o cão que se comporta mal. Onde a professora
aplicaria uma sanção, ela dá uma recompensa, e vice-versa. Às vezes, reúne crianças menores
e lhes dá uma aula. Quanto mais elas erram, melhores notas recebem.

Aline R... não é a preferida de sua professora, bem longe disso! Ela não pode fazer uma
pergunta sem ser repreendida. No entanto, ela acha que teria muitas coisas a dizer, graças a
um espírito crítico já desenvolvido. Mas, a professora não lhe dá nenhum crédito: "É uma
ladra, e o que é pior, uma ladra estúpida"' diz.

De fato, Aline já lhe roubou da gaveta da escrivaninha, uma nota de cem francos, um batom e
alguns números de rifa. Uma investi­gação convenceu-a rapidamente da culpabilidade de Aline
que, aliás, confessou tudo sem reticências. O que choca sua professora, é que ela rouba sem
motivo aparente. Não é movida de maneira alguma pelo interesse, já que declarou ter jogado
o batom no vaso sanitário, rasgado os bilhetes de rifa para jogar os pedaços no riacho, e
distribuído o dinheiro aos pequenos do curso preparatório para que comprassem balas. Não se
poderia ser mais estupida. Foi-lhe aplicado um primeiro castigo (suspensão de três dias) para
reconduzi-la ao caminho do bom senso e da honestidade. Seus pais, envergonhados como se
eles próprios tivessem cometido o roubo de que sua menina se tornara culpada, espancaram-
na para dissuadi-la de recomeçar. E Aline voltou à escola. De braços cruzados e os olhos
brilhantes de malícia, ela segue as explicações da professora, já que, se levanta a mão, será
para ouvir dizer: "Abaixe a mão. Você não tem nada para dizer". Novo roubo, nova
investigação, novo castigo. A criança é expulsa da escola e transferida para uma escola vizinha.

O caso de cleptomania apresentado por Aline R... não é, sem dúvida, isento de certos aspectos
psicopatológicos manifestados pelos oprimidos e contrariados. Mas, pode-se perguntar se ela
não oferece a imagem normal de um pequeno ser espontâneo e sadio que, querendo se
afirmar face ao conformismo escolar e a uma professora tirânica e injusta, dá livre curso a
instintos selvagens e livres, que poderíamos considerar como indicadores de possibilidades
suscetíveis de serem exploradas por uma professora inteligente. Talvez haja em Aline a
promessa de uma mulher forte, de caráter bem vigoroso; Erra-se· ao expulsar da classe os
pequenos ladrões. Talvez se devesse conceder-lhes uma atenção mais compreensiva, a
exemplo de André Gide, que segue com uma curiosidade divertida os gestos de Moktir, que
rouba a tesoura de Marcelino, (1) ou os de Ber­nardo, que furta a valise de Eduardo. (2) Diante
deste caso de rebelião incoercível, contrariada no exercício de uma autoridade que quer ser
dominante, a sra. B... torna-se branda para reduzir, com boas palavras, a criança à obediência;
depois, furiosa, fixando-a com seu olhar imperioso, acentua a gravidade dos castigos.

Notemos, enfim, para terminar, as reações suscitadas pelo comportamento da sra. B ... em
meninos de 12 anos de uma classe de que ela se encarregara no ano anterior. Com exceção de
três alunos que se opuseram vigorosamente à sua autoridade, e que foi preciso trocar de
classe, os demais aceitaram de uma forma menos afetiva o comportamento de sua professora.
Não sentiram em relação a ela nada além de um vago respeito convencional, mesclado com
uma certa indiferença que os levou a um desgosto quanto à -instrução em geral, com reações
mais intelectuais que sentimentais.

b) Examinamos os alunos do sr. O ..., encarregado do 2.0 ano, curso médio (idade média de 12
anos) numa escola de me­ninos, e que se parece muito com a sra. B... Notamos, em primeiro
lugar, os alunos que, aniquilados em sua vontade e em sua liberdade, não pareciam capazes de
nenhuma reação diante de seu mestre que, mais ou menos, os aterrorizava.
André B... é inteligente quando está em casa. É o orgulho de sua família por sua vivacidade.
Compreende sempre as lições de seu irmão mais velho, é hábil no cálculo, faz as contas de sua
mãe com uma rapidez incomum. Na escola, na classe, seus olhos apagados e estúpidos não
veem mais nada, não consegue fazer as operações aritméticas mais simples. Quanto mais alto
grita o professor, menos ele compreende.

Luís A... nunca olha para o professor, mas sente que seu olhar está fixo nele quando escreve ..
Então ele começa a se mexer em seu banco, a fazer rasuras. É sempre nessa hora, que um
grande borrão em seu caderno atrai a atenção dos vizinhos e que o mestre lhe inflige uma
punição. Para ele, é bem a prova de que o mestre estava a espreitá-lo.

João A... parece-se com ele, e como ele, sabe que o mestre o olha. Manifesta-o por sinais de
inquietação, batimento de pálpebras, crispação da boca, mas, contrariamente a Luís B ..., que
nunca levanta os olhos de seu caderno, sente desaparecer sua vontade própria e acaba por
levantar a cabeça. Não há então, em seu pequeno corpo dobrado, mais que a submissão ao
professor, que pode fazê-lo dizer ou executar tudo o que espera dele.

Descobrimos a seguir, um grupo de crianças que se opõem indiretamente ao sr. O ...,


vingando-se dele em si mesmas, ou em seus pais, ou em algum animal. Finalmente, outras
procuram atacar de uma forma mais direta, em vez dó professor, sua imagem. Um último
aluno encontra sua libertação na fuga.

Pedro Y... rói as unhas e chupa a caneta com um tique que consiste em mostrar os dentes
piscando o olho. Ele confessa quando interrogado: "O professor me dá medo ..." Para ele, a
hostilidade ao professor não pode ser completamente exteriorizada: não se atreve a provocá-
lo abertamente em classe. Mas, não tem coragem bastante para se opor, por compensação, ao
seu círculo imediato. Sua oposição acaba por ser orientada para a sua própria pessoa, por
meio de reações que o levam a se mutilar fisicamente. Pregui­çoso, ele erra habitualmente
seus problemas de aritmética, não fazendo o menor esforço para resolvê-los. Muito
frequentemente, faz mesmo questão de passar por um aluno estúpido e finge ignorar
conhecimentos que possui perfeitamente. Tem-se a impressão que se mutila intelectualmente,
da mesma forma que faz com seu corpo, por simples reação contra o professor, cuja presença
constante e atormentadora procura afastar.

João T... faz sempre o contrário do que lhe dizem em casa. "É preciso trabalhar... vá se lavar...
não suba nas árvores", diz-lhe a mãe, enquanto ele se empenha em não fazer nada disso. O
que espanta, é que na escola é o mais obediente dos alunos. Um pouco constrangido, sem
dúvida, mas sempre solícito, ele se inclina aos menores desejos de seu mestre. Mas, não gosta
dele, e o acha muito autoritário. É para a mãe que dirá, tão energicamente quanto possível, o
"não" que não ousa dizer ao professor, e ela não com­preende porque seu filho, tão obediente
em classe, é tão insuportável em casa.

Renato C... é o líder de uma gang de assassinos de animais na periferia de uma grande cidade.
Dirige um pequeno bando orga­nizado, cujas ações consistem em furar os olhos de pacíficos
gatos e dependurá-los em ganchos que aparecem nas paredes das cons­truções. Às vezes,
variando o prazer, os apedrejam até a morte. Cãezinhos indefesos, muito confiantes, reunidos
em bandos, são esborrifados com álcool, incendiados e jogados num buraco cuja abertura é, a
seguir, hermeticamente fechada. Muitas vezes o bando, não conseguindo matar todos os
animais ao mesmo tempo, os enterra vivos. O líder, interrogado, vive na classe o terror de um
professor que o submete a uma disciplina férrea. Declara de forma evasiva, que "tem muitos
(problemas?) Por estar debaixo de outros". Parece que se rebela contra a autoridade que pesa
sobre ele, procurando afirmar a sua sobre os mais fracos. Os fatos que acabamos de relatar
provocaram, após a campanha de um jornal local, uma investigação, cujo resultado mais
evidente foi submeter a infeliz criança a uma tirania ainda maior.

Rogério M . . . faz sempre caricaturas de seu professor. Quando termina os desenhos, gosta de
rasgá-los e jogar os pedaços no fogo, apesar das reiteradas recomendações de sua mãe. Pedro
L... acha-se esmagado sob o peso de uma reputação tão má quanto a de Aline. Seu professor,
que o maneja com firmeza e o submete a uma vigi­lância cerrada, diz que ele é uma "criança
perversa, sempre pronta a enforcar a aula". Pedro acompanha a realização dos exercícios de
uma maneira apática, sempre no mesmo ritmo, sem imprevistos, sob o olhar implacável dp
professor. Ouve o chamado de uma vida ampla e livre enquanto contempla uma nesga do céu
azul. Na semana passada, faltou dois dias à escola, sem motivo, para "rodar" por aí, sob a
chuva, longe de casa. É tão embrutecido quanto Aline. E, no entanto, como gostaria da escola,
se o professor quisesse escutá-lo:

Como a criança que rouba, a fujona não deve ser necessariamente expulsa da classe. Não
coloquemos no pelourinho os alunos que o professor qualifica tão facilmente de "cabeça dura"
porque um dia desrespeitaram uma ordem. O sr. O ... poderia explorar os desdobramentos de
seu gesto, pensando que as crianças más (fujonas ou ladras) trazem, muitas vezes, a esperança
e a possibilidade de uma humanidade renovada.

Posto a par dessas atitudes, o sr. O... esboçou uma mudança de comportamento, mostrando
um certo liberalismo. Foram organi­zadas excursões educativas, durante as quais as crianças
feriam a liberdade de recolher amostras de materiais diversos. Mas, ele permaneceu o
déspota de antes, guardando-se de pedir uma opinião qualquer aos alunos. Ele próprio fixava
as partidas, para as quais as crianças se tinham cotizado, escolhia o lugar e a data, deixando de
lado alguns alunos, e reservava-se o direito de punir os refratários. Todos os poderes de
decisão e de execução permaneciam concentrados nele, que comandava a alegria, os sorrisos
e os cantos no decorrer do passeio, durante o qual era o único a não sentir o constrangimento
que pesava sobre o grupo.

c) A sra. C ..., professora em um curso complementar de meninas (classe de 3º), lembra os


professores precedentes pelo seu comportamento; às vezes, fica contrariada com a resistência
de algumas alunas. Note-se que as reações das mocinhas interrogadas são, principalmente, de
ordem sentimental Solange R ... nos diz:

Ela tem inveja de minha juventude. Não gosta que eu pratique


esportes e se compraz em interrogar-me no dia seguinte ao de um jogo
do qual tenha participado, só para me dar uma nota baixa. Tenho
também a impressão de que uma aparência muito moderna, com
maquiagem, a faz ficar com raiva, por isso evito essas coisas. E
verda­deiramente má, e gosta de fazer a classe rir às minhas custas.
"Srta. R ..., a senhora fez grandes progressos; tirou 2 pontos sobre 20",
disse-me ela, ao entregar minha última versão. Ela me humilha. Eu
rasgaria com prazer seu retrato se o tivesse em minhas mãos. Meu
desejo é deixar a escola para não vê-la mais. Sei de ·onde vem sua
maldade. É que um dia me permiti dizer a respeito de um texto sobre
as escolas inglesas, que os alunos de um colégio tinham a sorte de
viver num clima de liberdade. Foi assim que ela embirrou comigo, e se
tornou má, zom­beteira e vingativa, enquanto que com o resto de
minhas colegas ela é simplesmente tirânica; ou até amável com uma
aluna que a obedece cegamente e lhe conta tudo o que digo a seu
respeito: É a sua preferida.

d) O sr. B. . . é professor de uma escola de rapazes (classe de 2º) e pouco se incomoda com o
amor ou o ódio de seus alunos.

Tudo que exige deles é uma obediência absoluta. Seu desejo de dominação encontra um
campo privilegiado no exercício de suas funções docentes. Busca tais satisfações com tanto
mais empenho quanto mais sua necessidade de autoridade se acha contrariada fora da classe,
seja em sua própria casa, onde se curva às exigências de uma mulher autoritária, seja nos
grupos sociais aos quais pertence, de modo que não deseja outra coisa senão impor, na classe,
a disciplina e a vontade que não pode fazer prevalecer em outros lugares. Não dá nenhuma
liberdade ao aluno. Se este manifesta uma certa independência, ou esquece uma
recomendação que lhe fora feita, por exemplo, sobre a disposição material de um dever, ou a
colocação de uma figura na solução de um problema de física, receberá uma· nota
exageradamente baixa.

No conjunto, os alunos reagem mais ou menos vigorosamente. Miguel R ... diz:

Ele dá zeros a torto e a direito. Acabo de receber um, por um problema


cuja solução estava redigida em mau francês, embora meus resultados
estivessem exatos. Fiz-lhe uma observação a respeito. Imediatamente
fui castigado. O sr. B... não admite nenhuma crítica, nenhum pedido de
esclarecimento. Eu o detesto e o acho mau, caprichoso, mesquinho.

A reação de Miguel R. é sobretudo verbal. Roberto S. está disposto a se revoltar contra o


professor, mas não o faz aberta­mente, preferindo tomar ao contrário os valores que ele
ensina:

Vocês querem que eu melhore para não merecer mais suas censuras?
Nunca! Sim, ele me humilhou, -não por caridade, mas por maldade.

João P ... gosta de "perturbar" e só pensa em fazer desordens na aula:

Gostaria de fazer besteiras durante a aula do sr. B ..., mas, não é fácil.
Ele me faria expulsar da escola. Com­penso tanto quanto posso na aula
de outro professor mais permissivo. Um dia, este último percebeu um
aluno que fazia desordem. Olhou-o fixamente, depois tirou seu casaco,
enquanto meu colega retirava o relógio de seu pulso. Então o
professor golpeou o meu colega que se debatia. Batamos sobre as
mesas, disse eu a meus colegas. Nossas risadas· se misturavam ao
ruído de nossas mãos que batiam nas mesas.

Roberto P ..., em lugar de se opor ao sr. B ... de uma forma indireta, dando livre curso à sua
necessidade de "bagunçar" a aula de um outro professor, tenta timidamente fazê-lo na
presença do sr. B... Não chega a provocar uma desordem em regra, mas se contenta em levar
o professor a repetir: "Sempre o mesmo, hein!"
Outro dia, nos conta, convenci vários colegas a colocarem a gravata
torta como a do professor.

E acrescenta:

Quando faz uma brincadeira, não rio, mesmo que seja boa, só para ver
sua reação. Às vezes, depois de ter recebido um castigo, faço um gesto
obsceno, com o ante­braço erguido para o ombro, em sinal de
zombaria ou desprezo, (3) à moda argelina, sem que ele me veja.

O sr. B ... não ignora sempre tais manifestações. Sua repressão é então, impiedosa.
Contrariado na sua exigência de autoridade, não hesita em provar sua maldade. Sobrecarrega
o aluno de trabalho e desenvolve os programas com todo o rigor. Empenha-se no uso hábil de
ciladas e trapaças que enganam até os melhores alunos, esconde grandes dificuldades em
exercícios aparentemente fáceis. O embaraço do aluno lhe proporciona uma alegria que
manifesta abertamente, como que para se vingar da agitação e da independência que alguns
deles manifestam. Ele adora ridicularizá-los, fazer-lhes certas per­guntas cujas respostas
encerrem uma contradição que evidencie a pretensa inépcia do aluno. Opõe-se a um, muito
independente, fazendo recair sobre ele julgamentos desdenhosos que o levam a novas faltas,
com a expectativa de punições mais graves. De modo astuto e às vezes perverso, impele-o
para um outro delito qualquer, que castigará com uma condenação impiedosa. Acaba por
desconfiar de todas as crianças e converter-se em vítima imaginária. Para ele, as crianças são
provocadores em potencial, quaisquer que sejam as suas intenções, quaisquer que sejam seus
atos ou sua aparente submissão. Não vê nelas senão antagonistas, aos quais não hesita em
declarar guerra desde o primeiro dia de aula, com o risco de criar um clima de
desentendimento e de desconfiança, desde o primeiro contato. É assim que as reações de
independência dos alunos o tornam cruel, pessimista, desiludido.

B) Aspectos gerais dos casos de tensão dos "pares educativos" influenciados pelo
imperialismo do educador

O exame de todos os casos particulares oferecidos à nossa observação pode permitir-nos


evidenciar alguns aspectos gerais do "par educativo" colocado sob a influência do imperialismo
do professor.

1 ) O comportamento do professor

Nos numerosos casos em que deseja reduzir a criança à sua exigente pessoa, o professor
parece animado por sentimentos que; vistos de fora e rapidamente, se apresentam .como
muito louváveis, mas que revelam, mais frequentemente, uma natureza imperiosa e
constrangedora. É o que podemos verificar quando o professor se deixa levar pelo desejo· de
ser amado ou admirado.

a) No primeiro caso, teremos o professor demagogo, que permite tudo, que deixa fazer tudo,
desde que os alunos digam a seu respeito: "É um cara legal". Ele procurará o ensino fácil,
multi­plicará as boas notas, não se empenhará em exigir o esforço e a atividade intelectual dos
alunos. Estará quase sempre do lado dos alunos em face dos pais ou superiores. Notemos que
a afeição ou o reconhecimento que procura obter da criança podem ser, em grande parte, o
resultado de uma derivação ou de uma compensação de sentimentos contrariados fora da
classe. Este ou aquele professor que somente tenha tido decepções sentimentais ou que quase
não atraia as pessoas adultas, pode ceder à tentação de criar entre ele e seus alunos uma
atmosfera sentimental que não consegue na con­vivência com os adultos.

b) Podemos dizer o mesmo daqueles que quase não brilham em sociedade, que têm
dificuldade em agradar a um público frequentemente difícil, e que encontram na sua classe um
auditório bem mais dócil, sempre pronto a rir alto de "tiradas" que muitas vezes são apenas
aparentemente espirituosas.

O mestre não resistirá, então, em multiplicar as palavras agra­dáveis, os trocadilhos, as alusões


engraçadas, as comparações ines­peradas. Aliás, tem também à sua disposição, outros meios
muito fáceis de se fazer admirar. Trata-se, por exemplo, da demonstração muito ostensiva de
uma cultura que se quer fazer parecer como extraordinariamente ampla. O professor deseja
mostrar uma memória espantosa, uma erudição pouco comum. Onisciente e infalível, quer
aparecer como um poço de ciência, detentor de todas as verdades.

Orgulhoso e vaidoso de si, seguro de sua superioridade em relação à criança, tem a tendência
de dar às suas aulas um conteúdo pessoal, às vezes paradoxal, opondo-se às ideias
frequentemente admitidas pelos professores anteriores, sustentando o contrário de tudo o
que foi feito antes dele. Busca conhecimentos raros e preciosos, que quer ser o único a poder
explorar convenientemente. A forma de seu ensino é comumente brilhante, original, atraente,
com lições dramatizadas, nas quais quer mostrar sua destreza pedagógica, mas onde a
participação da criança é forçosamente reduzida.

C) Entre o desejo de se fazer admirar e o projeto de tudo governar na classe e de fazer


prevalecer sua exclusiva autoridade, não há mais que um passo, rapidamente franqueado
pelos mestres mais "imperialistas". Constatamos que os professores que sucumbem a esta
tirania ó fazem, muitas vezes, e do mesmo modo que entre aqueles que desejam a afeição dos
alunos, para compensar seu fracasso na busca de uma autoridade que não podem afirmar
fora, no mundo dos adultos. Numerosas possibilidades são oferecidas ao educador para
satisfazer sua necessidade de autoridade, desde a ternura até o uso da força bruta. Em
primeiro lugar, pela doçura e pelo reconhecimento aos quais se obriga o aluno, pode-se
exercer sobre este o que poderíamos chamar de "tirania da ternura". Por meio de palavras
afetuosas, de uma falsa imagem de si mesmo que é apresentada, leva-se a criança a reações
de docilidade. "Já que você é tão gentil, fará isso, não é, meu pequeno", "já que você não quer
me aborrecer, não irá a tal lugar ..., etc.", são algumas das expressões que estão sempre nos
lábios do doce tirano, que obtém, assim, ao mesmo tempo, a satisfação do desejo de ser
amado e da necessidade de dominar.

Uma forma bastante aproximada, feita de falso afeto e de crueldade, consiste em, sob o
pretexto de corrigir uma criança e de retificar sua conduta, fazê-la confessar seus erros,
penetrando indis­cretamente na intimidade de sua consciência. Não há pior maneira de
possuir outra pessoa do que a de submetê-la a um controle per­manente e inquisidor, como se
se quisesse que ela não escapasse em momento algum, nem materialmente, nem
espiritualmente, do domínio do educador. Desse pequeno ser palpitante e misterioso se quer
fazer uma coisa própria para ser observada com uma curiosidade doentia.

Mais franco, porém mais brutal que o inquisidor, o professor autoritário não hesitará em
colocar, pela força se necessário, todo seu mundo sob sua palmatória. Nada lhe deve resistir. A
menor desobediência é punida impiedosamente, com castigos corporais se achar necessário.
A estes educadores dominadores poderiam ser aplicadas as observações feitas por Lagache a
respeito dos condutores, podendo servir o estudo das relações do par condutor-conduzido, ao
do par educador dominador-aluno dominado. O exame de alguns tipos de condutores levou
Lagache a identificar três atributos do papel de condutor: iniciativa nos contatos sociais,
aptidão para organizar e conformidade com o grupo. (4) O professor que quer dirigir tudo na
sua classe, tomará a iniciativa de todos os exercícios, pesquisas e excursões pedagógicas, não
deixando aos alunos nenhuma possibili­dade de escolher livremente suas atividades escolares.
Responde, assim, ao primeiro traço apontado por Lagache em seu estudo de psicologia social
aplicada. Acontece o mesmo em relação ao segundo ponto. A autoridade do professor é
função da ordem que estabelece na classe, de seu método de trabalho, do planejamento das
atividades, isto é, de sua aptidão para organizar o trabalho, escolar. O terceiro traço nos
permitirá diferenciar os educadores dominadores. São aqueles que não podem reclamar do
que contraria as exigências escolares e as expectativas dos alunos. Sua· posição seria
ameaçada se quisessem esboçar uma ação contrária ao pequeno grupo social que têm diante
de si. Existe, assim, uma interação entre o dominador e a classe.

André Lévy, retomando a terminologia de Winkler-Hermaden e a de Charlotte Bühler, classifica


o condutor no tipo "soberano", que opõe ao "déspota". O educador "soberano" será o
dominador que, conformando-se ao· espírito do grupo, realiza diante deste um trabalho de
assimilação e acomodação. O "déspota", pelo contrário, é o tirano que saberá tomar a
iniciativa e organizar o trabalho, como o "soberano", mas sem se preocupar nem um pouco
com o que convém ao grupo. Por exemplo, o "déspota" exigirá da criança que copie trinta
vezes a lição de História, enquanto que o "soberano" rejeitará tais punições, contrárias à
psicologia da criança e ao inte­resse da classe. Note-se que o tipo "soberano" é aceito pelas
crianças, que o admiram pela sua personalidade atraente e forte, se bem que algumas não o
suportem. O "soberano" é mais flexível que o "dés­pota", pois dirige a classe levando em
consideração suas aspirações. No fundo, tem apenas a aparência do verdadeiro imperialismo.
Ve­remos logo que ele tem seu lugar em um outro "par educativo", que examinaremos sob a
característica da troca proveitosa entre professores e alunos. Para certos "déspotas", a
maneira mais eficaz de exercer seu domínio sobre um aluno reside antes na ação que se pode
empreender sobre sua inteligência, que naquela que procura submeter seus sentimentos ou
sua vontade. Trata-se de dominar as crianças por intermédio de uma posição filosófica, política
ou outra. São os imperialistas do pensamento, os pros elitistas, os guias, os chefes. Entenda-se,
não se trata de mestres que, orientados para um grande ideal, tentam atrair para ele seus
alunos, mas daqueles que atraem as crianças para si, pela via de doutrinas ou princípios
filosóficos, para melhor submetê-las à sua autoridade. Pelo colorido dado a certos
acontecimentos históricos, pela piedade que se suscita perante certas situações chocantes,
pode-se ser libertário ou humanitário, de direita ou de esquerda, belicista ou pacifista, a favor
ou contra um Estado forte, a favor ou contra certos personagens históricos. O livre-pensador,
o racionalista, o materialista, o idealista, transparecem através da atitude geral ou das
explicações dadas em classe. Se o professor gosta de música, de desenho ou de botânica,
poderá pro­curar desenvolver seus gostos na criança que, desse modo, não será mais do que a
sua réplica fiel.

2) O comportamento dos alunos

Como reagem os alunos diante de tais manifestações de impe­rialismo? Cada um o fará a seu
modo, seja aceitando submeter-se ao mestre, seja opondo-se a ele. Dois casos devem, pois,
ser considera­dos, segundo o mestre encontre ou não um campo favorável de ação.
a) No caso de uma aceitação do professor pelo aluno, o apelo do mestre que deseja ser amado
encontra eco no coração de crianças sempre prontas a se apegar a quem lhes fale
afetuosamente e lhes mostre um caminho agradável, sem exigir o difícil esforço pessoal. Não
cessam de prodigalizar sorrisos e "gentilezas" a seu professor e não têm outro objetivo senão
agradá-lo: estão tão "impregnadas" dele que imitam seu modo de andar, seus gestos, sua voz
e defen­dem-no quando seus colegas não cumprem suas ordens.

Esta submissão afetiva pode converter-se em intelectual nas crianças que, com conhecimentos
limitados e um espírito crítico pouco desenvolvido, estão naturalmente inclinadas a admirar
como um todo o mestre que lhes exibe os tesouros de seu espírito ou de sua cultura. Os
alunos que se deixam levar por esta ilusão tornam-se rapidamente pessoas dóceis, obedientes,
maleáveis e permeáveis a todas as suas sugestões. Admitem, em definitivo, que o professor
sempre tem razão e lhe devotam uma admiração passiva que não lhes deixa nenhuma
possibilidade de criação ou de expansão.

Quando pois, o professor tem desejo de dominação, encontrará crianças que se conformem
com isso, em todas aquelas que aceitam ser submissas e obedientes. De um modo geral, as
respostas ao espírito de dominação do mestre poderão ser o conformismo, o espírito de
imitação ou uma obediência cega. Assim como a admira­ção, a obediência terá apenas um
aspecto passivo. Veremos, mais adiante, que pode existir um outro tipo de admiração e uma
obediên­cia mais educativa, quando uma e outra se referirem, não ao professor, mas aos
valores que ele encarna.

b) Outras crianças manifestam reações de oposição em todos os domínios em que o


imperialismo do mestre pretende se exercer. Animadas por tendências de autoafirmação e de
resistência ao outro, recusam-se a aceitar o mestre, revoltam-se contra ele e se recusam,
obstinadamente, a ser consideradas como sujeitos obedientes ou coisas que se pode utilizar
indiscriminadamente. Reagirão diferentemente segundo sua coragem e. a consciência que
tiverem da situação na qual se encontrem. As reações serão apenas conscientes nos casos de
crianças vagamente inquietas, cujo sono esteja perturbado por pesadelos. Manifestar-se-ão
como uma resistência indireta nos casos em que os alunos não tiverem coragem de enfrentar
abertamente o professor. Vimos que uma das primeiras formas de oposição ao mestre leva a
criança a se vingar dele em si própria, seja em seu corpo, seja em sua inteligência (as crianças
perversas). As crianças que têm mania de fazer caretas, com tiques mais ou menos
acentua­dos, os falsos "bobos", revelam geralmente está tentativa de reação contra o
professor. Outras se apegam às coisas, gostam de tocar em tudo, de riscar os carros que estão
ao seu alcance, de escrever nas paredes, de arrancar as flores, de rasgar livros e cadernos. Têm
a necessidade de destruir e de depredar, como outros têm de obede­cer (as crianças
estouvadas). As crianças chegarão, mesmo, à ex­pressão da maior crueldade para com os
animais, como já vimos, em alguns casos mórbidos (crianças cruéis). Enfim, no plano social, a
criança se oporá ainda indiretamente ao mestre, seguindo uma linha de menor · resistência,
provocando seus colegas (crianças briguentas), seus pais (crianças insuportáveis em casa), um
outro professor menos severo. (Crianças desordeiras). Em todos esses casos, a oposição direta
ao professor lhe parece muito arriscada.

Uma resistência aberta poderá se manifestar mais claramente nas crianças mais corajosas,
pela recusa do trabalho escolar (crianças preguiçosas, que não fazem nada), pela recusa em
executar as ordens dadas · (crianças desobedientes), pelo emprego de insultos e:xpressões
grosseiras diante do professor (crianças malcriadas e insolentes), pela zombaria maldosa
(crianças que provocam desordens), ou enfim, pela revolta, pela insubmissão e pela recusa aos
valores ensinados (crianças que roubam, que fogem ou são viciadas).

3) Variações e interações dos comportamentos do professor e dos alunos

Os comportamentos das crianças diante de seu professor não se parecem. Da mesma forma,
os do professor em relação a cada um de seus alunos apresentam a mesma variedade, cuja
origem pode ser encontrada na influência de três fatores: ação diversa das crianças de uma
mesma classe sobre seu professor; ação variável no tempo, da mesma criança sobre o
professor; ação recíproca dos "pares" formados.

a) O professor que procura o afeto de um determinado aluno, poderá tentar fazer-se admirar
por um seu colega, ou tentar dominar um outro que lhe pareça ter uma atitude mais ou menos
independente. Pode, assim, formar "pares" tão numerosos quanto os alunos de sua classe e
estabelecer, no interior de cada um deles, uma atitude mais ou menos original, sendo a
tonalidade de conjunto de seu comportamento dada pela tendência de querer reduzir a
criança a si própria. Esta diversidade de comportamento se explica pela diversidade das
crianças, cada uma das quais provoca uma reação particular do professor.

b) Por outro lado, a vida de cada um dos "pares" formados pelo mestre com cada um de seus
alunos é instável, pelo fato de que no interior de cada "par" as reações de um de seus
membros se acham influenciadas pelas do outro e vice-versa. Por exempla; no caso em que o
desejo do educador de reduzir a criança a si próprio seja contrariado pela oposição desta
última, o mestre pode ostentar sentimentos pessimistas que o farão achar a criança
desa­gradável e o tornarão predisposto a se lamentar de uma profissão que lhe traz apenas
desgostos. Como não se atreve a confessar seu fracasso e suas deficiências, atribui todos os
defeitos à criança e acredita que o trabalho educativo está condenado à impotência à medida
que, a seus olhos, o confronto entre mestre e aluno contém gérmens de hostilidade e
destruição.

Tomemos um outro exemplo. Quando um aluno não aceita a superioridade do professor, e o


manifesta com sorrisos irônicos ou tentativas de fazer desordem destinadas a ridicularizá-lo, o
mestre pode dirigir-lhe seus sarcasmos e suas réplicas feririas. Aumenta os castigos, enquanto
o aluno transforma em ódio o que, a princípio, era apenas um simples desejo de zombaria. Ou
então o mestre, envergonhado por ter sido objeto de "gozação", torna-se tímido. O medo de
passar aos olhos dos alunos por uma pessoa ridícula e incompetente o leva a desempenhar um
papel muito obscuro, a dar aulas sem valor, a assumir uma expressão fácil tão neutra quanto
possível, cortando, desde o início, todos os laços afetivos com os alunos. Nestas circunstâncias,
não é mais do que um livro aberto, ou uma coisa que fala.

No caso de que o professor não consiga comunicar ao aluno suas ideias artísticas, políticas ou
filosóficas, este não passará a seus olhos, de um "bronco", ou um retardado incapaz de
compreender qualquer coisa. Só poderá se opor a ele pelo descrédito, pelo desdém, pela
"gozação", pela zombaria maldosa e mesmo pelo insulto. Assim, aquele que acreditava poder
impor sua lei e dominar o outro, se vê obrigado a se defender de uma criança que o julga e lhe
resiste. Resulta daí uma situação de instabilidade da qual às vezes, procura sair, infligindo à
criança mil dificuldades ou castigos, cujo único objetivo é reduzi-la ao estado de coisa,
essencialmente incapaz de qualquer julgamento a seu respeito. Ê verdade que o professor
poderá reencontrar seu equilíbrio junto de uma criança que se submeta, mesmo com o risco
de exacerbar os sentimentos de oposição de seus colegas. Cada um deles tem sua maneira
particular de se rebelar contra a autoridade do mestre e que representa uma atitude única que
suscita no professor uma resposta adequada. O mestre sofre, pois, modificações intelectuais
em suas ideias sobre a educação e modificações afetivas, enquanto que o aluno, respondendo
à sua maneira a esta evolução, está também em constante transformação.

Um complexo jogo de interações nos impede de fixar o educador ou o aluno neste ou naquele
tipo. A complexidade do problema reside, com efeito, na impossibilidade em que se acha o
observador de descrever o educador ou o aluno como se um ou outro se achasse sozinho
diante de seu olhar. Cada vez que ele crê ter apreendido um dos elementos do
comportamento de um dos membros do "par", este elemento se modifica imediatamente pela
reação do outro membro, que lhe imprime uma nova forma.

c) Cada um dos "pares" formados pelo mestre e seus alunos se conduz como se fosse, ele
próprio, um único indivíduo. Tem unidade suficiente para manifestar uma vida que lhe é
particular e para atuar, por sua vez, sobre cada um dos outros "pares". Uns agem sobre os
outros para fazê-los mudar de orientação ou para modificar as relações afetivas que se
pensara ter adivinhado neles. Desse modo, um professor que tenta se fazer amar por um
aluno e procura convertê-lo em "favorito" pode, sem querer, modificar a reação de um outro
aluno que ele quer reduzir à obediência, e que pode adotar uma atitude de revolta contra o
professor, que lhe parece injusto, em seu apego a um único aluno.

Mas, também, o aluno pode redobrar seus favores em relação ao professor, para suplantar seu
rival ou, enfim, se opor diretamente ao "preferido", por ciúmes. Neste último caso, o aluno
rebelde poderá chegar até a bater no protegido do professor e fazê-lo ficar no "gelo", após tê-
lo coberto de apelidos ridículos. Ele será, frequentemente, o instigador de desordens dirigidas
simultaneamente contra o professor e o "favorito", sobre o qual tentará fazer recair a
res­ponsabilidade, com o intuito de fazê-lo ser castigado. Ê um motivo a mais para mostrar
como os "pares" formados pelo mestre e seus alunos são dificilmente apreendidos.

Enfim, há uma multiplicidade de "pares" que podem ser for­mados, cada qual com sua
natureza, suas interações internas, sua evolução, sua maneira de influenciar o "par" vizinho e
ser influenciado por ele. Esta vida mutável supõe, pois, entre o mestre e o aluno, uma troca,
que nos casos enfocados acima não é desejada pelo mestre. Podemos nos perguntar, então, o
que pode acontecer quando este último orienta a vida do "par" para uma troca obtida de uma
forma consciente e deliberada.

BIBLIOGRAFIA

1.L'immoraliste, André Gide, 1902, Paris.

2. Les faux-monnayeurs, André Gide, 1926, Paris.

3.Trata-se do "Bras d'honneur", gesto vulgar que, no Brasil, corresponderia ao "dar banana".
(N.T.)

4. Bulletin de psychologie, p. 605. Groupe d'études de Psychologie de l'Uni- versité de Paris, t.


VI, 1953.

CAPlTULO SEXTO

Os casos de harmonia: "Pares educativos" caracterizados pela troca e pela renúncia


A) Comportamento de alguns mestres observados em correlação com as reações de seus
alunos

Podemos dizer que dois seres colocados um frente ao outro estão em "situação de troca"
quando um, oferecendo uma parte de si mesmo ao outro, recebe deste uma outra, e vice-
versa. As formas conscientes e voluntárias desta troca no mestre, em presença do aluno,
levarão a um enriquecimento mútuo. Buscando conhecer melhor a criança para melhor guiá-la
em seu desenvolvimento, trans­mite-lhe os meios mais adequados para atingir este fim e se
sente recompensado pela alegria de ter feito um trabalho educativo criador de vida
verdadeira, que lhe dá a impressão .de ter prolongado sua própria existência. Esta troca
variará segundo a importância e a natureza do que o mestre possa dar e receber. Levada ao
extremo, representará, para o mestre, a doação total de si mesmo, o enri­quecimento
completo de sua pessoa e a mais pura renúncia. Esta diversidade foi encontrada nos seguintes
casos que observamos.

1 ) Os casos de camaradagem

O sr. P ..., professor de francês, é o companheiro de seus alunos. Ele os trata, de bom grado,
por você, permite-lhes familia­ridades, participa de seus jogos de futebol. Não os pune nem
procura se sobressair junto deles; compadece-se de suas pequenas desgraças; numa palavra,
coloca-se em seu nível e lhes dá a impressão de partilhar-lhes a vida. Contrariamente ao que
se poderia pensar, as reações dos alunos nem sempre revelam uma harmonia profunda. Pedro
S... se sente constrangido diante deste professor já adulto que quer se fazer de jovem e busca
uma camaradagem que lhe parece artificial:

Sinto-me envergonhado diante dele. Não é um "camarada". Sinto-o


mais velho do que eu e não posso esquecer que é o professor. Por mais
que faça não poderá se colocar no "pé de igualdade" que exige a
camaradagem.

Encontra-se a mesma reação de Pedro S... em todos os alunos que continuam a respeitar o
mestre por conformismo escolar e que veem, no seu desejo 9e' camaradagem, uma falta de
pudor outros, ao contrário, mais livres, mais brincalhões, não hesitarão em trocar este respeito
tradicional por irreverência, que os orientará principal­mente para a farsa e a travessura.·
Roberto P ... não poupa o sr. P ... Seu espírito zombeteiro, que de certa forma é a expressão
vigorosa de um espírito crítico já desenvolvido, encontra, no clima de liberdade e de igualdade
que supõe a camaradagem, grandes possibilidades de se exercitar:

Há algum tempo, nos diz, o professor me pediu para acompanhá-lo em


um passeio. Como podemos falar-lhe livremente, respondi-lhe que
aceitaria com muito prazer se ele fosse uma garota.

É tal a necessidade que Roberto P . . . tem de respeitar e admirar um professor que se coloque
acima dele, que considera o sr. P . . . pouco competente.

Este último reage contra uns e outros. Aos que parecem furtar-se às suas solicitações, pede
que não sejam velhos antes da hora. Com essa atitude, consegue apenas aumentar a distância
que o separa dos alunos, tomando a atitude equívoca do adulto que julga e do colega que
estende a mão. Ele se consola deste fracasso com uma ou duas crianças que parecem
corresponder mais facilmente às suas expectativas e reforça, em relação a elas, os· laços de
uma camaradagem que acaba por se tornar exclusiva e mais ou menos imperiosa. Quando, no
decorrer de uma brincadeira, tentam ridi­cularizá-lo, é o primeiro a rir; fingirá, em seguida,
como bom jogador, não perceber que alguns alunos zombam dele, mas depois· acabará por se
zangar e corrigir os "miseráveis" que considera indignos da afeição que lhes oferece. O
companheiro se transforma, então, em um intratável magister, disposto a impor sua
autoridade.

A verdadeira camaradagem não pode existir se não estiver acompanhada, no aluno, de um


certo respeito. Tivemos uma confirmação disso perguntando aos alunos do sr. P . . . como
imaginavam o relacionamento professor-aluno. Responderam no sentido de uma amizade
confiante e respeitosa, mais que no de uma verdadeira camaradagem:

Pouco importa o aspecto físico de um professor. O que eu desejaria


nele é, principalmente, um esforço de aproximação com os alunos. Um
professor que exponha suas opiniões, mas, que não deixe de examinar
as dos outros. Que se coloque ao nível dos alunos nas suas explicações.
Rigoroso, se for preciso, quanto à disciplina. Em uma palavra, um
professor que não tenha nada de superior e que conceda um
lugarzinho às atividades extraescolares.

Um outro declara:

Desejaria um professor que fosse, antes de tudo, simpático, e que não


se importasse quando um aluno não pudesse responder a uma de suas
perguntas; um professor que soubesse conquistar a estima e a afeição
divertindo-se, moderadamente, aliás, com os alunos, que tentasse se
colocar no lugar deles, que não exibisse seus conhecimen­tos. Em
suma, um verdadeiro colega a quem deveríamos muito respeito.

Estas respostas traduzem um desejo de aproximação que se realizaria com moderação e


compreensão e onde cada um conser­varia sua posição. A camaradagem muito forçada leva,
pelo contrário, a um fracasso mais ou menos doloroso. Esta é a conclusão à qual chega um
professor que nos confiou sua amarga experiência. Depois de ter permanecido prisioneiro na
Alemanha durante 5 anos e ter passado por penosas provações, experimentou, sob o peso da
nostalgia de uma juventude perdida, a necessidade de colocar seu relacionamento com os
alunos sob o signo da amizade, da indulgência e da camaradagem. Muitas vezes foi-lhe
necessário uma grande coragem para levar sua experiência até o fim e suportar numerosas
provações na classe, onde a "camaradagem" dos alunos se mesclava com uma certa maldade.
Em relações deste tipo é sempre o professor que faz os indispensáveis sacrifícios, como bem
mostra a seguinte cena que ele nos contou:

Um dia, pelo mês de fevereiro, os alunos estavam justa­mente na


metade do tempo que deveriam passar na escola. Tradicionalmente
esse dia é chamado "o dia às avessas". A alegria reinava por toda parte
e, segundo o costume, tudo deveria ser feito de maneira inusitada,
contrária às atividades escolares correntes. Na classe, os papéis se
inverteram: um aluno seria o professor e o professor tor­nara-se o
aluno que se podia interrogar e que se sentava num banco. Os alunos
não tinham medo; sabiam bem que o professor queria apenas entrar
na brincadeira. A aula começou. O professor-aluno chegou e o
verdadeiro mestre com um aperto no coração o viu entrar. Seu colega
por um dia tinha tentado assumir sua aparência, vestindo-se com
roupas velhas, de dez anos atrás, acentuando fortemente seu aspecto
fora de moda, calças muito largas, paletó muito curto e muito
cinturado, como se usava em 1938. Eram as roupas que ele usava, e
que tinham sido as únicas que achara em casa após tantos anos de
ausência. Todos os alunos riam alto e batiam os pés diante desta
caricatura; o professor era o único a pensar com amargura na guerra e
nas inúmeras privações sofridas. Era preciso rir. Respondeu de bom
grado a todas as perguntas feitas, mas os alunos não desconfiavam
quanto o feriam falando com leviandade de um passado recente do
qual ainda trazia as marcas na carne.

Os professores, às vezes, têm mérito por rirem com seus alunos. É evidente que os
adolescentes quase não podem deixar o mestre entrar facilmente, como um igual, na pequena
sociedade que formam. Amar o adolescente tal qual é, a ponto de se identificar com ele e
adotar seu comportamento não pode ser uma solução para o professor. É preciso buscar outra
forma de aproximação que não exclua o respeito e aceitar as inevitáveis diferenças que
existem entre alunos e professores.

2) Os casos de amizade

É em parte o que procura fazer a sra. C ..., professora de História, que quer ser amiga de suas
alunas (classe de 3.0), propi­ciando discretamente uma atmosfera de afeto suscetível de criar,
no aluno, uma espécie de simpatia respeitosa. Esforça-se para estabelecer entre ela e seus
alunos uma corrente ao mesmo tempo afetiva e intelectual. Trata-se, para ela, de levar a
criança a completar seu desenvolvimento moral e intelectual partindo dele mesmo, e não de
uma solicitação exterior qualquer. Não é para dar prazer ao professor, nem para provar-lhe
seu reconhecimento, nem para imitá-lo, que a criança deve procurar se desenvolver. É para si
mesma, e não para outrem que ela deve se esforçar para melhorar.

Nesta perspectiva, a sra. C... fica no limite das relações intelectuais, mas lhes acrescenta um
matiz afetivo, feito de bom humor e simplicidade, suficientemente discreto para não os incitar
a se prenderem demasiado a ela. Sabe que o preço da modéstia é uma camaradagem
desembaraçada de seu excesso de familiaridade. Voltando as costas para toda espécie· de
imperialismo, ela toma diante dos alunos uma atitude que, sempre humana e compreensiva,
não oculta nenhuma intenção ofensiva, invasora ou dogmática. A sra. C... colabora sempre,
como amiga esclarecida, com as crianças na sua educação e na busca da verdade. A maioria
delas responde com toda a confiança ao seu apelo por um desejo de expansão pessoal, e pelo
sentimento de sua própria liberdade, mas, algumas não reagem tão favoravelmente à atitude
da sra. C ...

Simone R... não aprecia a modéstia de sua mestra; que coloca abaixo dos professores. Para ela,
a sra. C... é pouco capaz, ·pouco segura de si mesma e obscura no seu ensino. Simone está
disposta a admirar apenas um outro professor, que adula seu gosto pelo arti­ficial e pelo
"brilho" mediante uma ostentação de conhecimentos notáveis. Simone mostra-se desdenhosa,
depreciativa e irreverente em relação à sra. e... que não se ofende com isso e não procura
rea­gir com castigos, notas baixas ou mesmo uma amizade redobrada. Ela se propõe apenas
orientar Simone para uma ideia mais justa de si mesma e dos outros, utilizando esta arma
privilegiada que é o senso de humor. Através de uma ironia benevolente parece dizer-lhe:
Não se deixe seduzir pelos falsos brilhantes. Olhe em você mesma,
como tento olhar em mim e em vocês. É para seu bem que finjo ser
zombeteira, a fim de que · tome consciência de certos ridículos.

Desse modo, estabelece-se entre ela e a aluna um combate amis­toso, cujo prêmio é o livre
desenvolvimento de Simone. Mas, esta é verdadeiramente rebelde a toda transformação
interior. É muito sensível e se insurge contra certas observações que considera muito rudes. A
sra. C ..., um pouco desencorajada, acaba por responder à nascente hostilidade da aluna com a
paciência e a tranquila indife­rença dos que esperam que um dia se produza, na recalcitrante
moci­nha, a centelha que desencadeie um relacionamento fecundo com sua professora.

3) Os casos de abnegação e renúncia

O sr. J ..., diretor de uma escola primária, leva a troca com seus alunos ao limite extremo das
possibilidades do educador. Põe-se diante deles como um exemplo vivo, não abstrato e
impessoal, mas concreto e particular para cada um. É .um exemplo de heroísmo e de coragem
para a criança que sabe que é medrosa e hesitante; um exemplo de modéstia para aquele que
se mostra muito orgulhoso; um exemplo de amor desinteressado para aquele no qual adivinha
a cupidez. É ao mesmo tempo todos os exemplos e um único e insubs­tituível exemplo no
interior do "par" que o coloca frente a frente com uma única criança. Ele pode adotar esta
atitude porque nutre por seus alunos o amor mais completo, feito de abnegação e de
esque­cimento de si mesmo. Renunciando a toda satisfação material, dando seu tempo a seus
alunos; mesmo depois das horas de aula, dedicando seus dias de descanso a acompanhá-los
para conhecê-los melhor nas suas brincadeiras, na prática de esportes, nas excursões que
procura tornar tão educativas quanto possível, renunciando a desempenhar um papel muito
marcante na vida pública para não influenciar o pensa­mento das· crianças, combatendo toda
ambição pessoal que p0deria levá-lo a desejar reviver espiritualmente nelas, não tem outro
objetivo na vida senão dar-se inteiramente a elas. Neste estágio de generosidade e de amor
autêntico, encontramos o verdadeiro apóstolo, o desper­tador de almas, inteiramente oposto
ao mestre imperialista.

As reações de seus alunos exprimem, de uma forma mais ou menos matizada conforme os
casos particulares, o respeito, a · obe­diência voluntária, o constrangimento livremente aceito.
Nenhuma rebeldia se manifesta contra este mestre, quando lhe acontece, às vezes, de
prolongar um exercício além do horário prescrito, ou de pedir às crianças que venham à aula
em um dia de descanso. Sabem que é exigente no trabalho, mas não ignoram que aquilo que
ele lhes pede é ditado pelo mais puro devotamento.

O jovem Ahmed S... experimenta por seu professor uma viva afeição e sentimentos de
reconhecimento que exterioriza mais clara­mente ainda, oferecendo-lhe flores quase que
diariamente. Mas o sr. J... sente que Ahmed age por simples reconhecimento e que segue seu
exemplo tomando-o como causa e fim de seu esforço, em vez de apoiar-se em alguma parte
do seu próprio interior. O sr. J ... reage contra esta tendência do aluno e ensina-lhe a se
libertar dele. Vai mais longe ainda no caminho dá renúncia, atenuando os liames de
reconhecimento e de ternura que prendem a criança a ele. Com atitudes ríspidas e rudes,
quase indiferentes, mas, não maldosas, ele se resigna a dar a Ahmed uma ideia falsa de sua
pessoa, para que a criança não seja prejudicada no seu desenvolvimento intelectual pela
afeição muito grande que lhe devota. O menino, a princípio um pouco surpreso com esta frieza
do mestre, reencontra rapidamente seu equilíbrio e se direciona ativamente para o seu
próprio interior.
Renato R ... nos diz:

Admiro-o e quero me comportar como ele. Quando faço uma má ação,


sei que não me dirá nada, mas, sinto ver­gonha por mim e por ele.
Quando alguém não age bem com ele, também tenho vergonha, como
se estivesse em seu lugar ...

Basta isto para mostrar como são importantes a admiração e a simpatia que esta criança
experimenta por seu mestre. O amor do professor converteu-se em amor aos valores.

B) A troca entre professor e aluno e a doação de si em seus aspectos gerais

1 ) As diversas possibilidades de troca

Há, pois, mestres que são naturalmente contrários a toda pedagogia da assimilação, que
pretende reduzir a criança ao adulto que recebeu a missão de dirigi-la. Não conhecem, assim,
nenhuma das atitudes egocêntricas ou das manifestações imperialistas que examina­mos.
Interessando-se pela criança com solicitude e curiosidade inteligente, inclinam-se de bom
grado para uma adaptação recíproca, para uma acomodação em uma dupla corrente de trocas
acompanhada de interações que, sem cessar, modificam a ambos, sem que a criança se
conforme a um modelo proposto pelo mestre. Para este, há duas maneiras de praticar esta
troca: ele a realiza na sua forma intelectual e moral, que leva a educar na neutralidade afetiva,
ou, na sua forma afetiva, que partindo da amizade culmina na doação de si, que é a mais bela
forma de amor.

2) Posição do educador em uma troca de cima para baixo

Aqui os mestres dão prova de inteligência compreensiva e de autoridade benevolente que,


quando é preciso, não excluem a firmeza. Não renunciam a seu poder de direção, mas, as
ordens que dão não provêm de seu desejo de dominar, de sua fantasia ou de um despotismo
arbitrário e sim, de uma conformidade com as aspira­ções da criança. Não são déspotas, mas,
para retomar uma termi­nologia já empregada, soberanos esclarecidos que só têm um
cuidado, o de ensinar a seus alunos a serem soberanos de si próprios. Assim como sua
autoridade não é despotismo, sua indulgência não se parece em nada com a demagogia
descrita nas manifestações imperialistas. As. relações professor-aluno são do tipo das que se
estabelecem entre um soberano esclarecido e generoso e um subordinado a liberar; cria-se,
assim, um problema delicado em relação à camaradagem, pois, ela leva o professor a se
colocar em um nível afetivo e intelectual diferente. Essa atitude implica, para o professor, uma
dupla consequência.

Do ponto de vista pedagógico, ele se integra pura e simples­mente à equipe escolar e o ensino
perde com a inevitável direção que exige, seu rigor e sua firmeza. Do ponto de vista afetivo, o
professor renuncia a ostentar a superioridade que reclama o respeito mútuo entre mestre e
alunos. Arrisca-se, mesmo, a não mais respeitar o aluno. É o que pode acontecer nas formas
mórbidas e criminosas de uma camaradagem levada ao extremo e que, sob sua forma
intelectual, sentimental e sensual, se converte na camaradagem amo­rosa do "par
pederástico", indesculpável mesmo que a iniciação sexual se disfarce de iniciação moral à
maneira do par socrático, no qual o mais velho se torna o guia do mais novo. Desse modo, a
camara­dagem, pela ideia que pode dar de uma pretensa igualdade de alunos e mestres não
está isenta de perigos nem de graves perversões.
Certamente, não se trata de uma superioridade artificial. Chegará um dia em que não ocorrerá
ao espírito do educador mostrar que ele é superior aos alunos. Trabalhará no meio do grupo,
como um aluno mais velho' e. mais experiente que os outros. É tudo. Nada de educador no seu
pedestal. Nada de estrados. O herdeiro do velho magister guindado às alturas e onisciente de
outrora dará lugar ao chefe de equipe.

Quando olhamos a antiga estampa que nos apresenta um pro­fessor tendo atrás de sua
escrivaninha um canapé bem estofado, não podemos deixar de rir. Hoje as coisas evoluíram,
mas não devem parar na imagem atual do educador, que também causará risos daqui a
cinquenta anos, quando o visualizarmos sentado à sua mesa, dominando os alunos do alto de
sua cátedra. Suprimiu-se o canapé. Muito bem. Mas, falta ainda suprimir muitas coisas para
que o professor viva entre os alunos, a fim de conhecê-los melhor e se fazer conhecer melhor,
tendo em vista um relacionamento harmonioso e fecundo no plano afetivo. Trata-se, em
definitivo, da superioridade própria do chefe de equipe, daquele que detém certos valores e
tem experiência deles. Nestas condições é que se estabelece uma troca de cima para baixo, do
homem para a criança, para levá-lo ao estado de homem e erguê-lo ao nível do educador, que
poderá ser seu companheiro quando seu desenvolvimento estiver terminado. O
com­panheirismo do professor não pode ser, pois, mais que uma promessa de camaradagem
ou uma camaradagem diferenciada.

3) A posição do aluno e sua ascensão para o professor

a) As reações de obediência

Ao aluno não se pede a obediência rígida e passiva à qual o constrange o desejo de dominação
de um mestre tirânico, mas, a vontade de se submeter a uma ordem que ultrapassa, ao
mesmo tempo, o mestre e o aluno. No primeiro caso, a obediência é uma atitude imposta que
oculta um desejo de revolta, que terá livre curso na primeira ocasião favorável sob a forma de
"baderna", de distração no trabalho, de recusa dos valores ensinados quando se tornar
neces­sário colocá-los em prática fora da classe. No segundo caso, é uma reação profunda que
se apresenta como a obediência a si mesmo.

b) As reações do respeito e admiração

A criança é, então, capaz de se autodisciplinar e de olhar o exemplo vivo que o mestre lhe
propõe para experimentar por ele um profundo respeito e uma real admiração. Não é a
admiração artificial que suscitam os mestres imperialistas, desejosos de se fazer admirar, mas,
uma admiração mais fecunda. A primeira deixa a pessoa passiva diante de algo que a
deslumbra e a seduz; a segunda a convida a sair de si mesmo para descobrir a seu redor uma
nova fonte de admiração e respeito. Assim como a obediência ao professor transforma-se em
obediência a si mesmo, o respeito e a admiração pelo mestre se desdobram em respeito e
admiração por si mesmo. O apelo que o mestre dirige ao aluno é semelhante àquele do santo
e do herói de que nos fala Bergson. Não se trata de reduzir a criança a si por intermédio de
uma posição filosófica, como vimos nos casos de imperialismo, mas, de fazer uma criança
partir de seu estado atual para um "cume" que será o seu e não o do professor.

A criança pode não estar sempre animada pelo mesmo respeito admirativo e pelo mesmo
entusiasmo pelo professor, que poderá constatar algumas reações de indiferença, de
desrespeito ou de zom­baria em alguns refratários ao exemplo dado. O professor deve levar
isso em conta, para imprimir à relação educativa uma nova orienta­ção a partir de um exemplo
que deve ser retificado e melhor adequado às condições particulares da criança. Neste
domínio, o verdadeiro condutor do jogo é sempre o professor.

c) As reações de simpatia

Por outro lado, quando a admiração não basta para orientar as reações da criança numa
direção favorável, pode-se recorrer a esta outra fonte de desenvolvimento na vida do "par
educativo" que é a simpatia. Mas, há duas espécies de simpatia, como há dois tipos de
admiração. Há a simpatia por um professor que se mostra amável, atraente, um pouco
demagogo e que desperta no aluno simples atitudes de imitação. Há uma outra simpatia, mais
profunda, por um professor que vive verdadeiramente os valores que ensina e que leva o
aluno a se erguer acima de si mesmo. A virtude da simpatia o leva a aceitar os valores que o
mestre personifica a seus olhos. Um professor primário nos escreveu:

A simpatia por um professor representou um grande papel na minha


vida. Trata-se de meu professor de filosofia, um homem de seus
quarenta anos, que acabava de perder sua mulher. Creio que o
espetáculo desta dor foi, para mim, um verdadeiro choque. Este
homem só se apoiava em seus valores. Estou certo de que ele tinha
pressa, pela manhã, de encontrar seus alunos para poder falar, para se
abrir; não que nos falasse de sua mulher, mas, tudo o que dizia sobre
moral e psicologia transpirava essa ausência brutal e inaceitada.
Parecia dizer tudo em função dela. Quando estudamos a família, ele
quase gaguejava e o mal-estar por se sentir "compreendido" por
alguns alunos o fez deixar a sala. Ao voltar, no fim de alguns instantes,
ele s� des­culpou. Lembro-me de ter me levantado e ter dito
espon­taneamente: "Mas não, por quê? ... " e de ter me sentado de
novo, sem ter achado mais nada para dizer. E lembro-me do olhar que
ele me dirigiu, um olhar embaraçado, mas, reconhecido. Creio que esta
cena me marcou profundamente. Se trabalhei bem na aula de filosofia,
foi por causa disso. Creio que esta imagem é minha raiz moral. Nascido
de uma "simpatia", deveria dizer de uma "intuição", meu ideal se
ampliou sem cessar.

Reconhecemos, no entanto, que as reações do aluno não são sempre tão favoráveis e que
alguns alunos, diante de uma atitude inesperada, perdem pé e experimentam perante o
professor uma surda hostilidade. Alguns deles não manterão sempre sua animosidade contra o
professor; mais tarde uma transformação afetiva poderá nascer neles, no sentido de uma
simpatia tardia. É esta mudança de atitude afetiva que os professores podem constatar
quando seus alunos, já saídos da escola, prodigalizam-lhe demonstrações de afeição e
confiança. Muitos poderiam fazer suas as palavras de um professor que nos disse:

Tendo trabalhado durante doze anos em todos os cursos de uma


escola mista, recebo todo ano, a primeiro de janeiro, provas de afeição
e de confiança que me são infinitamente preciosas, principalmente
quando vêm de alunos que eu acreditara hostis ou indiferentes e cuja
escolaridade tinha sido apenas uma sequência de sanções sempre
justificadas.

Estes adultos, antes constrangidos e reticentes, fazem agora outra ideia de seu mestre, que os
punia muito frequentemente e que lhes parecia tão exigente, e têm uma impressão favorável
quando compreendem que ele agia assim só para seu bem. Alguns adultos experimentam
bruscamente o choque desta transformação ao rever o velho mestre cuja voz reflete, apesar
dos acentos hesitantes da velhice, a mesma coragem indômita, o mesmo espírito crítico, a
mesma fé no homem. Este alento de amor que toca o antigo aluno lhe dá força para retomar o
mesmo combate consigo mesmo e para vencer em si tudo o que não é humano. Afinal, chegou
o dia em que nasce esta verdadeira "simpatia" criadora que não havia podido surgir durante a
vida escolar.

Deve-se, no entanto, considerar que, em certos casos, a simpatia e a admiração que nascem
em alguns alunos durante ou após a escolaridade, estão ausentes em outros, em relação ao
mesmo mestre, talvez porque este não tivesse sabido tomar, perante eles, a atitude que teria
podido desencadear reações favoráveis. Por isso, torna-se necessário considerar as
possibilidades de uma formação mais decisiva · do mestre em vista do que poderíamos chamar
o "par educativo" ideal.

CAPÍTULO SÉTIMO

Para uma higiene afetiva do educador: o "Par educativo" ideal

É sobretudo o mestre que pode, mudando de atitude, provocar um aperfeiçoamento da


relação afetiva. Toda pedagogia desta relação leva, pois, em última análise, a uma formação do
mestre que se preocupe, principalmente, com o aspecto afetivo. É preciso primeiro, pedir ao
mestre que lute contra a tendência de considerar os alunos como abstrações ou nomes
inscritos no livro de matrículas. É preciso, também, resistir à mania de classificá-los, em
definitivo, neste ou naquele grupo, negando-lhes suas possibilidades de mudança.

Esta atitude, embora prejudicial, pode, no entanto, ser com­preendida. Para poder atuar sobre
o aluno, é-se levado a transfor­má-lo para si (pour soi, na expressão de Sartre) em não-
existente, em objeto para o qual podemos prever um nome, um rótulo, que nos permitirá
classificá-lo em uma série possível, a fim de escolher em toda uma gama de reações
adequadas e previsíveis, a mais· con­veniente. Ter-se-á assim, diante de si, "Pedro, o malvado",
"João, o preguiçoso", "André, o bom aluno", "Jaime, o débil mental". Para cada um destes
casos, a experiência que se adquiriu com alunos colo­cados em situações que parecem
análogas, indica o que é preciso fazer. Age-se como se se propusesse fixar o desenvolvimento
do aluno, ao qual se nega toda liberdade, no momento mesmo em que se procede a esta
classificação. Estabelece�se a essência, para facilitar a ação, quando, na realidade, esta
essência não pode se revelar senão ao término da existência escolar do aluno. Da mesma
forma, o aluno, para adaptar sua atitude às possibilidades de reação do mestre, tem
necessidade de vê-lo através desta ou daquela imagem geral, deter­minando seu
comportamento escolar em função das classificações de "mestre severo", "mau" ou
"indulgente".

Produz-se assim, numa classe, entre mestre e alunos, uma verdadeira "rotulação", onde cada
um tenta transformar o outro em objeto. Mas, ao mesmo tempo, cada um, tanto o professor
quanto o aluno, fará tudo o que puder para escapar às classificações repressoras nas quais o
outro pretenda encerrá-lo. Aquele que é chamado de "moleirão" reagirá para mostrar ao
mestre que está errado, seja se comportando de modo ainda mais estúpido e mais preguiçoso,
a fim de provar-lhe que se enganou de nível ao avaliá-lo, seja pondo-se a trabalhar como um
aluno aplicado. O mestre que passa por "mau" aos olhos das crianças e que sabe o que elas
pensam dele, será ainda mais "mau", redobrando sua severidade, ou se empenhará em dar
provas de uma indulgência excessiva, ou ainda, explicará aos alunos as razões que o levam a
ser severo no interesse deles, isto é, no fundo, a ser bom. Tudo se passa como se cada um se
opusesse ao rótulo que lhe dão e que lhes parece uma limitação da liberdade que sente em si.
O professor pensará ou dirá: "Não, no fundo não sou o que vocês pensam. Não sou mau",
assim como o "moleirão" que não fará mais que repetir, olhando o professor nos olhos: "Não,
não sou um 'moleirão'. Sei disso". Assim, a presença de uma provoca no outro uma atitude de
oposição ou de negação. Transpondo a fórmula de Sartre, pode-se dizer que a consciência
surge na classe como um "não", e é como um "não" que o aluno apreende primeiro o
professor, e vice-versa, do mesmo modo como o prisioneiro que· quer fugir apreende o guarda
que o vigia. Recusando-se a se deixar rotular pelo outro como uma coisa, cada um, mestre e
aluno, no interior do "par educativo", tenta se livrar da dominação recíproca. Assim, um
conflito permanente, onde as liberdades pessoais se defrontam para se destruir, acompanha
as operações de "rotulação" que cada um faz no âmbito de sua ação escolar. Essa nos parece
ser a oposição inicial.

Dado este ponto de partida, todas as direções se tornam possíveis. Não nos cabe senão
escolher a melhor.

Uma delas aponta para o caso limite de um fracasso educativo que se traduz pela supressão
completa da liberdade do aluno. Tentar-se-á, por exemplo, em virtude de um "amor capcioso"
fixar o outro no julgamento que se fez dele, obrigando o aluno, do qual se exige provas de
reconhecimento e ternura, a permanecer fiel à imagem segundo a qual se decidiu representá-
lo. Este amor do mestre, nesta perspectiva, é necessariamente uma luta contra a
transformação do aluno. Marie Pascal, no romance de Jeanne Galzy, não fazia outra coisa. O
pastor da La Symphonie Pastorale que queria manter Gertrudes como· a jovem que desejava
que fosse, agia da mesma forma.

Notemos que esta imagem pode ser construída para que o educador veja nela o reflexo de si
próprio. Esse mestre, ao se projetar sobre o aluno, procura aí se ver como em um espelho, o
que é para ela uma ocasião de se conhecer, afinal, objetivamente. Sabemos que não pode
fazê-lo no interior de si mesmo, que esta operação só se completa com a produção de um
duplo, que se separa do ser e se desvanece sob o olhar da consciência. Mas, se este duplo de si
é projetado sobre o aluno, consegue fixá-lo e perder o sentimento desesperador da fuga de
seu ser quando aparece a luz dissolvente da consciência.

É assim que o educador vai projetar sobre um ou vários de seus alunos certos traços de sua
inteligência; a seus olhos, as crianças aparecerão com urna inteligência diferente das que têm.
Evidente­mente, esta projeção não estabelece nenhuma comunicação entre o aluno e o
educador; ela impede a compreensão e não passa de uma justificativa do educador diante de
si mesmo. Nossas observações nos revelaram alguns destes mestres, cujo ideal, em matéria de
edu­cação, se reduz a debuxar o aluno sobre o modelo que trazem em si, para que esta
criança, réplica deles mesmos, experimente os mesmos sentimentos e partilhe as mesmas
ideias. Em caso de fra­casso, o mestre fará sobre o aluno a projeção contrária, que consis­tirá
em aplicar-lhe suas aversões e contradições, de modo a vê-lo como um retardado ou um
degenerado.
Pode ser que o educador não consiga absorver o aluno, qualquer que seja o meio empregado,
"amor capcioso" ou desejo de substituir, na criança, a imagem-reflexo de sua personalidade.
Neste caso, ele tenta superar este fracasso de duas maneiras: primeiro, suprimindo sua
própria liberdade, fazendo-se objeto diante do aluno e aceitando as humilhações que poderão
vir dele, como se aceitasse deixar-se suprimir pelos alunos. O velho professor que, cansado da
"baderna" e da rebelião constante de seus alunos, aceita ficar de guarda para ocultar à
vigilância do diretor os alunos que jogam baralho na sala de aula, chegou a este' ponto, como
aquele outro que, impotente para modificar o julgamento dos alunos que o transformaram, de
uma vez por todas, em "professor que deixa fazer bagunça", acaba caindo na indiferença. Não
pedem outra coisa que estabilizar-se na classifi­cação em que são mantidos pelos alunos.
Podemos ver esses profes­sores, oferecendo-se, eles próprios, aos sarcasmos de seus alunos.
Fiéis ao que os alunos esperam deles todo dia, serão os primeiros a desencadear a desordem
que esperam em segredo. Observou-se certo mestre, frequentemente "bagunçável",
maravilhar-se com o incomum silêncio de uma classe e dizer: "O que mudou hoje? Como é que
estão tão calmos? O que é que vocês estão aprontando?" O sinal de desordem está
inconscientemente dado pela própria vítima e a efervescência se torna geral.

A outra forma de disfarçar o fracasso da redução do aluno a si pelo amor, leva a uma
abdicação ainda mais grave. Consiste em transformar o aluno em objeto por meio de
humilhações forçadas, de vexames mais ou menos injustos, de violência. Tais são as
dife­rentes etapas do caminho percorrido pelo educador que, a partir do conflito inicial de dois
seres em situação, tomou a direção errada.

Voltemos ao ponto de partida para tentar percorrer uma outra direção. Procuremos · encarar
a inevitável luta existencial sob seu, aspecto mais favorável, quer dizer, mais apropriado para
facilitar o desenvolvimento do aluno.

A paz mais fecunda e verdadeiramente educativa não é a que se estabelece após este primeiro
embate, mas a que se segue a uma luta prolongada, tão viril quanto possível, com a condição -
de que seja honesta.

Se o professor resolve de uma forma satisfatória o difícil pro­blema da educação, que se acha
sempre mais ou menos envolvido pelo imperialismo que todo indivíduo, mesmo o educador,
traz consigo, pode chegar a uma troca harmoniosa com o aluno. Para isso, deve desembaraçar-
se do egocentrismo que se oculta muitas vezes debaixo das melhores intenções; impedir-se de
buscar a afirmação, a dominação ou de satisfazer os complexos que poderiam encontrar na
criança possibilidades de compensação; evitar de envolver o aluno em uma calorosa atmosfera
afetiva. Não esqueçamos que o aluno superprotegido torna-se débil e incapaz de fazer um
esforço sobre si mesmo, e de se adaptar a situações rudes; além disso, em virtude de um
egocentrismo que se tornou imperioso, está sempre pronto a manifestar exigências
reivindicatórias das mais variadas e a se revoltar quando elas não são satisfeitas. Não
adotemos também uma· atitude muito severa, pois o aluno, sob o efeito do ressentimento
pode ma­nifestar reações de hostilidade tão reivindicatórias quanto as que apresenta o aluno
mimado.

:e com uma atitude intermediária entre a afeição e a severidade que o educador, no seu
envolvimento afetivo com a criança, pode chegar a uma paz harmoniosa. Para tanto, é preciso
que dê a impressão de sair de si mesmo graças à sua aptidão para se abrir ao aluno.

Para· retomar uma imagem muito utilizada, podemos representar a "abertura à criança" por
uma mão que se abre, enquanto que o desejo de apropriar-se dela, ou de reduzi-la a si será
concretizado por uma mão fechada, numa expressão de avareza. Esta "abertura ao aluno", à
medida que o deixe verdadeiramente intacto, permite-lhe sair de si no momento de afrontar
seu mestre, para poder voltar-se para si, para um desenvolvimento interior, no momento em
que o "par" educador-aluno conheça, enfim, a harmonia que deixa cada um em completa
liberdade ...

Da luta ao acordo final, a criança pode passar pela fase da admiração e da adesão plena,
quando se trata de um educador que se apresenta como um herói e um santo e que o faz ouvir
o chamado das alturas. Também neste caso, não se tratará de uma questão de alienação da
liberdade. Diante do herói, como diante de todo educa­dor, a criança tem um tempo de
hesitação, depois adere ao exemplo heróico que lhe é proposto, não para se renunciar no
herói, pois não se trata de segui-lo servilmente, mas para se afirmar e se superar num
heroísmo que será verdadeiramente seu. Este é o sentido que Bergson dá às relações
concretas entre o herói e a criança. Esta não dá sua adesão ao heroísmo proposto, para
responder a um apelo exterior. Este apelo surge do mais profundo de si mesma. O herói não é
mais que o pretexto. De qualquer modo, o chamado não ocorre sem o prelúdio, mais ou
menos doloroso, de um conflito do ser consigo mesmo e do ser com o herói que mostra um
caminho difícil, diante do qual a hesitação inicial é, afinal, natural. Pode-se dizer que mesmo
no caso em que o educador é um herói exemplar, a vida do "par" excepcional que ele
engendra não exclui todo conflito.

De modo geral, poderíamos dizer que esta luta existe também no interior de todas as relações
humanas. Montherlant não afirmou que o amor na relação homem-mulher, não é no fundo,
mais que uma forma de guerra em ·torno da redução do outro a si, ou de uma adaptação
recíproca? Não tentou transpor a vida deste "par" de uma forma concreta no interior da arena
tauromáquica? (1) Ele não é o único romancista a afirmar que a coexistência de dois seres
supõe inevitavelmente um conflito; podemos, neste aspecto, citar Roger Martin du Gard,
Marcel Arland, Malraux e tantos outros.

Mas, para os escritores que estudam o "par" homem-mulher em suas relações concretas, as
coisas não se passam dá mesma forma que no "par" educador-aluno. De modo geral veem
naquele três momentos: de início uma profunda atração, com um violento desejo de
aproximação; depois, uma tentativa de adaptação, com todos os conflitos que ela comporta; e
enfim, uma ruptura definitiva. É verdade que na vida comum a conclusão da fase de adaptação
é menos patética e leva, frequentemente, a um amor pacífico, compreensivo e benevolente,
onde cada um dos parceiros consente em se aceitar.

Quanto ao "par" educador-aluno, tentamos mostrar que a evo­lução de suas relações é


diferente. Relembremos os dois processos. Começa-se por um momento de oposição. Daí o
educador pode chegar a uma apropriação do aluno, que consente em alienar sua liberdade, ou
que se revolta, à medida que aceita ou não dobrar-se à pretensão do educador. Ou · então, se
este dá prova de benevolência e de compreensão, o "par" pode passar da luta inicial e um
acordo harmonioso no qual a criança reencontra uma liberdade fecunda. Deve-se notar que a
evolução das relações existenciais do "par educativo" que, retomando a expressão cara a E.
Mounier, poderíamos agrupar sob o nome de dramática da educação, deixa uma certa
liberdade ao educador que pode orientá-las em um sentido ou outro, e o campo livre para
uma formação afetiva do educador.

O problema sentimental que se coloca para cada educador, é de encontrar em si mesmo as


condições de um amor autêntico.
Como nos convida Hubert, é necessário encontrar um equilíbrio entre o amor concreto para a
criança tal qual é e o amor abstrato para o ser realizado que será, entre uma ternura muito
indulgente e uma afeição atormentada que pune a menor falta. É preciso que a criança
compreenda que o mestre a ama, sem dúvida, mas com a vontade de fazê-la sair de si, como
se lhe dissesse: "Eu amo você e vim até você para libertá-lo e não para prendê-lo à sua
infância".

Na busca de uma expressão de amor feita de equilíbrio e compreensão, a meio caminho entre
a severidade e a indulgência, o educador deve cuidar para que seu comportamento responda
às seguintes condições: deve dar provas de senso de humor, deve manifestar um amor ao
mesmo tempo pessoal e impessoal, deve ser a própria imagem da renúncia e deve adaptar-se
à idade, à psicologia e à evolução de cada aluno.

Vejamos primeiro o senso de humor, cujo elogio, no plano escolar, é desnecessário fazer desde
o estudo de Wendler e Kerschens­teiner, em Die Erziehung in Lichte des Humors. (2) O
professor poderá se manter ao nível de uma ironia afetuosa ou amistosa, dando prova de uma
espirituosidade bem compreendida, capaz de levar o corretivo necessário a uma presença que
poderia provocar uma sujeição da criança. Esta ironia, à medida que não é maldosa, cria uma
atmosfera alegre na classe. Mostra à criança que o professor sabe ficar no seu lugar para julgar
e apreciar os atos de cada um. Ironizar alguém, sem maldade, é um traço de independência
afetiva que não exclui, absolutamente, uma amizade franca, mesmo que seja um pouco
ríspida. Por outro lado, a ironia age sobre o aluno como um repulsivo, convidando-o a dar
provas de espírito crítico perante si mesmo, com vista ao desenvolvimento de sua
personalidade. O senso de humor se acha, assim, colocado entre um amor muito exteriorizado
e uma severidade brutal. Não fixa a criança em uma ternura reco­nhecida ou em um medo
paralisante. Ao contrário, obriga-a a fazer um esforço sobre si mesma.

Encontramos um velho professor que empregava métodos antiquados, oferecendo um ensino


às vezes livresco. Falava de um modo um pouco ríspido, dando familiarmente aos alunos
nomes inesperados. Não os chamava diretamente por seu sobrenome ... era para ele muito
impessoal. Não ousava pronunciar seu prenome: isto seria carinhoso demais. Certamente a
escola não era para ele uma escola de ternura nem de aprendizagem de galanteios. Era um
homem rude, que chamava as crianças ora por "cidadão tal", ora por "professor tal", palavras
que tinham para elas mil nuances de ironia, de espirituosidade, de zombaria familiar e que as
obrigava a sair de seu torpor. Treinava os alunos na realização de duras tarefas, exigindo-lhes,
impiedosamente, esforços repetidos que tinha o direito de solicitar, pois, lhes dava o exemplo
de um trabalho tenaz e consagrava toda sua vida à escola. Ensinava mal, certamente, mas era
um despertador de energias, um estimulador intelectual, com sua forma vigorosa de ensinar
seus alunos, zombando um pouco deles. Ao contrário, a professora sempre pronta a empregar
palavras muito ternas, não fazia, pelo amor muito direto que exprimia, senão atrair uma
criança a ponto de fazê-la perder toda a liberdade e toda a iniciativa.

Notemos que este senso de humor deve ser dosado conforme a idade e o sexo do aluno. É
uma forma de ironia que não atingiria sua finalidade com meninas que, de natureza mais
sensível, correm , o risco de não ter força de caráter suficiente para aceitar uma linguagem um
tanto escarnecedora. Mais amorosas que os meninos, "gostam de amar" e querem apenas
responder ao amor de sua professora com um amor correspondente. Esta tem,
evidentemente, o dever de levar em consideração esta sensibilidade.
No que concerne à idade dos alunos, convém também ser prudente com as crianças de 6 a 8
anos, ainda próximas das ternuras maternais e para as quais é necessário um esforço de
adaptação progressiva. Não seria uma boa medida começar, de repente, a arreliá-las com
ironias, mesmo bem entendidas, para convidá-las ao trabalho.

Talvez seja preciso adotar uma atitude sentimental variável segundo um processo que consiste
em mostrar, após a atitude reser­vada do primeiro contato, um amor afetuoso, para passar em
seguida, progressivamente, para um amor oculto sob a forma de uma neutralidade
benevolente. De início, o primeiro contato do mestre com seu jovem aluno se situa em uma
atmosfera de indiferença, onde cada um se fecha em si mesmo. O jovem que chega à escola
não está especialmente inclinado a amar seu mestre que, para ele, é o representante de um
meio que não lhe é natural. O professor, com sua reserva, tende a mostrar que, de fato, este
meio é diferente do meio familiar, e que a sala de aula é o templo do trabalho, do esforço, da
vontade. Neste primeiro encontro são, portanto, dois blocos de indiferença que estão frente a
frente, mas, enquanto a indiferença é consciente e desejada no primeiro, é apenas sentida no
segundo. A atitude de retraimento não tem o mesmo significado, nem a mesma direção; no
mestre ela é dinâmica e tende para a ação a ser empreendida no plano afetivo do aluno. Na
criança, ao contrário, é geradora de uma ação em sentido inverso, para atitudes de fuga e
retraimento ainda mais acentuadas. O mestre, então, saindo da reserva que se impôs, lança a
seu aluno um apelo afetuoso, · c4eio de confiança e de amor, semelhante ao apelo paternal:

Vem comigo, meu filho. Eu te amo, meu aluno. Ama-me como eu te


amo. Vieste aqui para uma tarefa penosa, mas, te ajudarei. Perdoo-te
antecipadamente todas as faltas e te ensinarei a superá-las. Tu te
afastarás, às vezes, do caminho comum, e irei buscar-te sempre com
doçura ...

Esta exteriorização do mestre provoca, na criança, um primeiro choque afetivo, uma surpresa
inquietante. "Por que este homem fala como minha mãe? Porque me ama tanto?", se
pergunta. O apelo, contínuo em seus acentos insinuantes e tangíveis de afeição, acaba por
forçar as portas do pequeno coração indiferente, quase rebelde. As duas afeições se
encontram partilhadas numa colaboração leal e ativa da criança que ama sua tarefa. É a época
do curso preparatório, e do curso elementar (6 a 9 anos), quando o menino experimenta por
seu mestre ou sua mestra uma verdadeira paixão. Em casa, só fala dele, não se ouve outra
coisa além de: "Meu professor falou isso . . . Meu professor fez isso", a tal ponto que os
próprios pais desaparecem diante da imagem do mestre ... Mas, este, prosseguindo neste
diálogo sentimental, arrisca, já o vimos, entravar o desenvolvi­mento da criança. Deve, pois,
após ter saído de si·, interromper esta exteriorização para voltar a si, na sua reserva de
educador neutro. Neste momento será preciso ocultar este amor sob uma linguagem ao
mesmo tempo familiar e firme, algumas vezes distante, ou sob a espirituosidade da qual
falamos. Começará o mestre por atenuar a afeição particular que havia mostrado à criança,
englobando-a na afeição geral que tem por toda a classe e mostrando que não se faz nenhuma
diferença entre os alunos. É, em suma, o caminho inverso de L' I nitiatrice aux mains vides, (3)
que, tendo partido de um amor por toda a classe, chegou ao amor por uma única menina.
Consta­tando que os laços que a unem ao mestre já não têm o mesmo caráter de intimidade, a
criança sofre um novo choque afetivo que gera perturbação e incerteza, das quais sai bem
depressa.

É neste momento das relações afetivas do "par" educador-aluno, quando este último atinge o
curso médio, aos 9 anos aproximada­mente, que devemos chegar a um amor realmente
impessoal. Diante de cada aluno, o professor adotará uma atitude que engendrará nela o
sentimento obscuro de não ser escolhido de uma forma exclusiva, mas de ser amado ao
mesmo tempo que seus colegas. Quando for preciso, o mestre adotará até mesmo uma
aparente indiferença para melhor desprender de si certas crianças afetuosas. Não o fará
sempre com alegria. Para ele · também, estas "retiradas" do coração são dolorosas, mas sabe
que deve fazê-lo. Apenas perceba que seu coração de educador se abala com um tom
falsamente rude, com zombarias sem maldade que destaquem certas esquisitices, fará o
esforço correspondente para recobrar-se. A criança acaba por adivinhar as intenções do
mestre e ouve a voz amiga que lhe diz no fundo de seu coração:

Meu aluno, laços afetuosos nos uniam. É preciso cortá-los. É preciso


fazê-lo pela tua liberdade. Chegou a hora em que não devemos mais
ficar juntos. Deixa-me. Agora estás bem forte para caminhar sozinho e
buscar por si mesmo teu verdadeiro caminho. Se tomares um caminho
para me agradar e me provar teu amor reconhecido, vais te perder. Se
tomares um caminho semelhante ao que me é familiar, porque
acreditas que nunca me engano, também te perde­rás. Se tomares um
outro oposto ao meu, porque esta ruptura te causa despeito, enganar-
te-ás definitivamente. Não, compreende-me: é preciso que vás sozinho
no teu caminho, um caminho verdadeiramente teu. Quanto a mim,
deixa-me voltar ao início de meu caminho, lançar o mesmo apelo de
amor àqueles que um dia deverão se libertar de mim.

O aluno compreende, então, que o chamado afetuoso do mestre que o tocara no início de sua
vida escolar, deve se tornar, agora, interior. O amor pelo mestre deve se transformar em um
amor deri­vado para si mesmo, para o que poderia ser. A criança terá a vontade tenaz de
chegar a esta fase que exige coragem e autodomínio.

Esta forma de amor para com o aluno torna-se, então, a própria imagem da renúncia. O futuro
mestre deve compenetrar-se desta ideia. Não poderá mostrar aos alunos o caminho do
esforço a não ser que consinta em segui-los por toda parte, até o ponto de encarregar-se da
organização de seus lazeres, a fim de subtraí-los a todas as causas de perversão que poderiam
destruir o que seu amor generoso construiu dia após dia. Se calcular o tempo durante o qual,
no decorrer de um ano escolar, a criança fica regularmente sob sua vigilância, comprovará que
são apenas seis horas ou seja, um quarto do dia. Descontando os numerosos dias de descanso,
verifica que a criança fica com seu mestre apenas durante um tempo que repre­senta a décima
parte de sua vida anual. O resto do tempo a criança recebe o apelo da rua, e que apelo!
Depois, o do cinema ou das revistas, onde é destruído a cada página. O dever do mestre é ir
procurá-la fora das horas de aula, para se ocupar dela. Assim, o educador estará no caminho
que o fará sacrificar toda sua vida às obras de infância. Não terá mais tempo para se ocupar de
seus próprios negócios e renunciará a certas ambições políticas, literárias ou outras. Ficará
confinado nesta tarefa obscura da educação, desco­nhecido e vítima das ingratidões de uns e
outros. Não tem -impor­tância! Não trabalha para ser recompensado pela criança ou pelos
seus pais. Os educadores que vão até ao fim de sua renúncia são mais numerosos do que se
pode imaginar. Conhecemos alguns que con­tinuam, infatigavelmente, sua obra de amor
perfeitamente desinte­ressada, que se devotam nas distantes cidadezinhas da União Francesa,
velando pela boa harmonia de homens, raças e religiões diferentes, preocupando-se com a
prosperidade de sua escola, transformando-se, às vezes, em jardineiro, no jardim escolar, em
artesão, na escola­-oficina, em médico, para tratar os tracomas e instilar, todas as manhãs,
algumas gotas nos olhos doentes. São verdadeiros santos leigos. Deram todo seu amor,
sabendo bem que deviam renunciar a solicitar o de seus alunos, como aqueles que ficaram
sem lar, para melhor se dedicarem a eles, que não trabalharam nem para serem amados por
eles, nem para seu reconhecimento. Devem se achar muito sozinhos no final de sua carreira, e
na solidão de sua velhice, as mãos vazias e o coração despojado de sua substância, podem
dizer como o poeta: "O único bem que me fica é ter doado tudo".

Tal é o amor feito de renúncia que seria preciso ensinar aos alunos-mestres. Esta
aprendizagem não pode ser feita senão no contato com as crianças, com as quais nossos
futuros mestres deveriam viver mais envolvidos, para poder fazer a experiência de uma
"inte­ligente generosidade". Dessa forma, a tarefa mais urgente da higiene afetiva do
educador é preservar o contato com a criança. Ao sair da Escola Normal, jovem ele também, o
professor se sentia próximo das crianças. Ele as compreendia; agora, já maduro, as crianças o
molestam. Prefere conhecê-Ias de fora, sem se misturar nem viver com elas. Há alguns anos,
um velho professor, nas vésperas de sua aposentadoria, nos confiava tristemente:

Tive confiança nos jovens. Agora acabou. É preciso cons­tatar o


fracasso de nossa educação. Os jovens não têm mais entusiasmo e
pensam apenas no vício. Leiam os jornais. Vejam todos estes
romances, que nos apresentam jovens desequilibrados, obscuros e
prontos a tudo, sobre os quais tudo resvala e para os quais nada tem
importância. Todos estes personagens nos confessam, aliás, com uma
sincerida­de perturbadora, que têm o sentimento da inutilidade de sua
vida, que experimentam como que uma espécie de vocação para a
infelicidade, que estão enfastiados de tudo e que experimentam a
necessidade de destruir algo. Aspiram ao sórdido como por uma
libertação e ouvem o apelo das trevas e do suicídio moral. Obermann
era apenas um melancólico. O herói de La saison en enf er não estava
tão longe de responder ao apelo da pureza. Os jovens de hoje, mesmo
que tenham a qualidade de Meursault no L'etranger, nos espantam
mais que as criações de Senancour e de Rimbaud que, examinando-se
bem, parecem ainda seres sobre os quais a educação pode agir.

E o velho mestre terminava melancolicamente:

Como os tempos mudaram... No meu tempo, compor­tava-se melhor.

Pode-se dizer que este professor não fez nenhum esforço de higiene afetiva. Se quiséssemos
apontar, com a ajuda de seu depoi­mento, todos os seus desvios, poderíamos destacar
primeiro, que ele julga os jovens conforme a imagem que tinha de si mesmo quando estava na
Escola Normal. Não soube evoluir com seu tempo para se colocar no lugar do jovem que hoje
tem diante de si. Se despreza os jovens, é porque tem saudades de sua própria juventude. Daí
para a acusação de inveja, não há senão um passo. É-lhe necessário depreciar, por despeito,
nos outros, esta juventude que não reencon­trará jamais. Além disso, por falta de coragem,
por medo do ridículo, por preguiça de espírito e de coração, ele se recusa a frequentar os
jovens, a viver sua vida. É por isso que os conhece de fora, ficando tranquilamente na sua
biblioteca, bem acomodado numa pol­trona, a adivinhá-los através de jornais e de livros.

Podemos assim verificar que, quanto mais o educador envelhece na carreira, mais ele está
ameaçado de uma esclerose sentimental que o impede de se renovar. Incapaz de se adaptar à
realidade viva e instável, corre o risco de dar provas, perante os jovens, de uma falta de
compreensão, de uma injustiça que o impelem a se tornar solidário com os adultos e a tomar o
partido da sociedade contra a juventude, que a seus olhos, representa um elemento de
perturba­ção. Está todo impregnado de um sentimento de superioridade que só tende a
aumentar com a idade. As relações entre o educador e o adolescente se orientam, então, para
a hostilidade e para uma agres­sividade cada vez mais acentuada. Quanto mais o adulto
despreza o jovem, mais este último reage com vigor, distinguindo-se por sua atitude de
negação. Frente ao adulto que não o compreende, o adolescente diz "não" à sua moral, "não"
à sua experiência. Exagerando mesmo sua atitude de oposição, busca o escândalo, acusando o
adulto, mais ou menos injustamente, de traição e comprometi­mento. Seus propósitos
desabusados e sua atitude agressiva não são senão uma espécie de movimento de defesa
contra os costumes que o chocam. Por reação, chega até a estragar sua vida, de propósito,
para "aborrecer" os que pretendem moralizá-lo.

Ao contrário, esta oposição desaparecerá se o adulto consentir em descer de seu pedestal e


abandonar seu conforto para caminhar um pouco com os jovens. Reconhecemos que esta
experiência não é fácil. Não abordamos os jovens como se representássemos a perfeição
moral e intelectual. Eles se sentem, pelo contrário, bem mais próximos quando descobrem, em
nós, esta espécie de inquietação dos seres que não se julgam perfeitos e que buscam seu
caminho com lucidez e simplicidade. O grande erro é se aproximar dos jovens para viver com
eles, mostrando-lhes uma atitude predicante e moralista que, incansavelmente nos leva a
repetir: "É preciso fazer isso, é preciso fazer aquilo; olhe para mim, faça como eu", tudo isso
acom­panhado de mil preceitos morais. Eles, então, perdem imediatamente a confiança.
Rapidamente nos desmascaram com sua intuição, sua sutileza extraordinária, sua acuidade
psicológica que põem a descoberto nossa hipocrisia. Bem depressa passam a ver seu·
professor de moral como um homem como os outros, um homem entre tantos outros. Sabem,
muito bem, que há uma distância muito grande entre os discursos e os atos, que os
professores de moral não estão sempre ao nível de suas palavras. Pede-se-lhes que vivam em
função do ideal que imaginam, mas sabem muito bem que aqueles que lhe pedem acabam, no
fundo de sua consciência, pensando como vivem. Vamos viver com eles nos acampamentos,
partilhando sua vida co­tidiana, suas discussões, seus jogos, seus prazeres, para ter a
possi­bilidade de conhecê-los melhor.

Este conhecimento jamais será definitivo e acabado e necessita de uma renovação constante
em cada uma das etapas da vida edu­cativa. Deve ser revisto frequentemente, à medida que o
educador envelhece e que as crianças deixam seus lugares para outras. É aqui, precisamente,
que reside, a maior dificuldade de uma educação de base existencial, que procura levar em
conta as relações concretas do educador e do aluno.

BIBLIOGRAFIA

1. H. de Montherlant, Les bestiaires, Paris, 1926.

2. Jeanne Galzy, L'initiatrice aux mains vides, Paris, 1930.

CONCLUSÃO

Perspectivas de uma educação concreta


Se quiséssemos definir a tarefa da educação, poderíamos dizer que é a confrontação instável
de dois seres face a face e de duas liberdades limitadas pela presença recíproca. O problema
que a educação coloca é encontrar o meio de não suprimir a liberdade do aluno. Tudo
depende das reações que suscitamos nele. Basta isto para mostrar a gravidade com a qual o
educador deve encarar seu primeiro contato com o aluno. Cabe-lhe vigiar sua atitude e criar as
condições mais favoráveis para influir melhor na situação em que vão se encontrar os dois
interlocutores. Não esqueçamos que nossa atitude pode, pelas reações de oposição que
desencadeia, impelir o aluno a fazer exatamente o contrário do que se lhe quer ensinar. Uma
criança educada por uma pessoa tirânica numa atmosfera antimilita­rista ou anticlerical
poderá se voltar para a carreira das armas ou para a vida religiosa. Pode-se dizer o mesmo
quanto ao ensino do bem, que pode ser prejudicado pelo comportamento do mestre.

Sem chegar a dizer que a forma do ensino é mais importante que seu conteúdo, pode-se
afirmar que a transmissão de um ensina­mento, qualquer que ele seja, supõe um
comportamento favorável do professor, e o que é mais difícil ainda, um comportamento
ade­quado a cada aluno em particular. Ele não pode estar presente nos alunos senão à medida
que atribui uma importância particular à existência concreta de cada um deles. Um educador
não é um livro. O mesmo problema lido pela criança no seu manual, ou ouvido quando é
enunciado pelo seu professor, não tem para ela a mesma coloração. No primeiro caso, o aluno
está diante de uma coisa; no. segundo, diante de um ser vivo. A presença deste último,
quando existe, adquire importância tal que tudo se· transfigura em bem ou mal no coração da
criança, de forma que se pode dizer que um professor, quando explica um problema ou faz
uma análise gramatical pode também fazer uma obra educativa. Quando sua presença não
tem nenhuma qualidade numa indiferença glacial e geral, a criança também naufraga na
indiferença moral. Neste caso, diremos que o educador não "atrai" seus alunos, ou· que "não
estabelece contato" com eles. Pelo contrário, se o mestre manifesta reais qualidades na sua
presença, a educação toma um vigor insuspeitável no coração da criança. O mestre presente
não apenas na classe, mas também no coração do· aluno, torna-se um guia seguro que o
conduz para a beleza e para a pureza sem necessidade de palavras.

É esta presença de uns nos outros que os personagens de Gabriel Marcel procuram realizar
numa experiência concreta. Fazem tudo para evitar que a presença, do ser amado se torne um
hábito, se converta em objeto e se estanque em efígie. Se não o conseguem, caem no
ressentimento e no ódio.

O educador arrisca-se a um fracasso semelhante se não fez, a cada dia, o esforço indispensável
de auto renovação, a fim de que sua presença não se torne para a criança um hábito, que faria
dele uma coisa entre outras coisas: Da mesma forma, o aluno jamais deverá ser considerado
um "objeto" catalogado definitivamente, cuja "essência" já estaria estabelecida desde o
primeiro contato, anterior a toda experiência vivida até o seu término. A análise existencial das
relações afetivas do "par educativo" nos oferece essa ideia fecunda de que o aluno se define
por sua existência escolar, e não pode ser enquadrado numa classificação. Se somos obrigados
a fazê-lo, será sempre de uma forma provisória, com a ressalva de frequentes revisões. Não é
no primeiro, mas no último dia de escola, no momento em que deixa as aulas, que o professor
poderá pôr um "rótulo" em seu aluno. A posteridade da essência em relação à existência é
particularmente válida para o aluno. No fundo, trata-se, praticamente, da posição de Bergson,
para quem o futuro ilumina o passado. Em função desta ideia, os últimos atos da vida escolar
de um aluno poderão oferecer um sentido retrospectivo a tudo que ele pode manifestar
durante sua vida escolar e anularão os julgamentos em virtude dos quais se pretendeu
enquadrá-lo neste ou naquele tipo. Todas as classificações, todas as "rotulações" às quais se
proceda devem ser revistas cotidianamente, na presença recíproca e sempre mutável de duas
existências, a do professor e a do aluno, na sequência de uma soma de esforços sem cessar
renovados, de prodígios de intuição e de compreensão para encontrar o caminho secreto do
ser misterioso e único no mundo que se tem diante de si.

Seria um erro dizer que, se tivemos êxito com um aluno, os meios empregados com ele devem
levar ao mesmo resultado com um novo aluno. O trabalho ficaria, assim, facilitado para o
educador, que gosta de trabalhar com elementos estáveis e avançar por caminhos bem
traçados, num mundo racional, abstrato e geral. É tão cômodo e tão seguro! Entretanto, a
dificuldade da educação reside no fato de que as soluções que deram certo com um aluno
precedente não precisam necessariamente dar o mesmo resultado com um novo aluno.
Quando o professor tiver conduzido uma criança até o término de sua escolaridade, ser-lhe-á
preciso retomar um novo aluno que, no eterno recomeço dos anos escolares, virá por sua vez,
habitar o coração do educador, expulsando o anterior. E nesta perspectiva existencial da
educação, com este intruso, surge um novo mistério, um diálogo se estabelece, um par
hesitante se forma nas trevas, um novo problema se oferece, um novo drama vai se
apresentar diante dessas duas existências, para tirar toda sua substância da dificuldade de se
aceitar, sem tolher sua própria liberdade. Cada vez, é preciso fazer tábula rasa da experiência
precedente, antes de abordar toda nova experiência. Na classe, o professor tem tantos
comportamentos e métodos educativos quantos alunos. Sabe que um determinado aluno
pode receber um tapa sem danos psíquico, mas que, ao contrário, um outro ficaria marcado
por toda a vida. Se um bom educador pode ter tantos tipos de caracteres quantos são os
alunos, a educação individualizada parece-nos preferível à educa­ção coletiva, que implica no
comportamento geral de um mestre perante uma classe inteira.

As luzes que poderão nos guiar na hesitante marcha de uma adaptação múltipla, permanente
e incessantemente questionada serão as do auto renúncia total, da autocrítica afetiva
constante e sem com­placência. Não creiamos que esta marcha incerta e tateante dê à criança
uma ideia ruim de nós mesmos. Pelo contrário, ela ficará agradecida por tatearmos e
estarmos, como ela, à procura dos outros. Ela gosta que a gente se engane e que se lhe diga,
ela gosta que lhe deixem sua liberdade e que não a enquadrem, antecipadamente, neste ou
naquele tipo de aluno. Assim se sentirá bem próxima de nós. Para isto, é preciso renunciar à
nossa vaidade, à nossa atitude de magister que sabe de tudo, inclusive do que se passa nos
refolhos secretos do coração da criança. Nossa posição frente ao aluno não é alcançada sem a
impressão de solidão, sem as incertezas dos dias vindouros, dolorosos ou alegres que o
esperam, sem as dúvidas, sem todo este estremecimento interior que nos percorre quando
nos per­guntamos se seremos capazes de fazer deste "pequeno homem" um homem
verdadeiro.

A nobreza e a virilidade de nossa tarefa nascem desta responsa­bilidade penosa que temos,
numa obra que se define e se aprecia na proporção em que se desenvolve. Nisto está a
dificuldade: à medida que não se encontra nunca duas crianças rigorosamente idênticas, uma
obra de educação não pode ser calcada sobre nenhuma outra. Ela é uma criação contínua e
sempre original. Quantos pais e mães fracassam porque aplicam uma educação única, quando
deveriam empreender tantos tipos de educação quantos fossem os seus filhos!

É preciso conhecer cada criança na sua vida psicológica concreta, cujas nuances originais
requerem uma posição particularmente adap­tada ao que elas têm de singular e de único.
Que o educador não acredite que, neste esforço incessante de adaptação, nesta tarefa tão
bela quanto difícil, nesta arte que é a educação e que faz de seu ofício o mais belo e o mais
estimulante de todos, será· ajudado por sua instrução, por métodos técnicos e por uma
preparação profissional profunda. Ele se definirá, não por sua cultura, mas pela personalidade
que lhe confere sua existência no interior do "par". Não terá valor, lembramo-lo, senão pela
qualidade de sua presença, pelo grau de sua "abertura para o. aluno", pela sua capacidade de
aceitá-lo em lugar de recusá-lo, de utilizá-lo ou de reduzi-lo à sua própria pessoa.

A nosso ver, o método mais conveniente para atingir esse objetivo é o que, por tentativas, se
define à medida que se aplica. Toda posição frente a um aluno cria uma situação única que
mergulha o "par" na angustiante incerteza de um contato mais ou menos harmonioso e numa
aventura, totalmente isolada, seín a ajuda de nenhuma peda­gogia a priori. Se queremos
empregar a expressão "pedagogia exis­tencial" é para chamar a atenção sobre esta forma de
educação em que se tem a impressão de um educador lançado no mundo pedagó­gico, de um
educador "em situação", sozinho perante certo aluno. Pode-se pensar que esta concepção não
corresponda à realidade e que numerosos educadores tenham tido pleno êxito sem se perder
em considerações deste gênero. Assim, um "bom professor" dirá, levantando os ombros: "Para
que me atormentar? Tenho a impressão de vencer. Meu aluno é um bom rapaz, muito gentil e
aplicado, que me ama e me compreende." Mas, quem sabe? Há tantas natu­rezas rebeldes
que se escondem atrás da máscara conformista da criança aplicada e gentil. A distância entre o
educador e o aluno é, às vezes, muito grande, ainda que, aparentemente, se tenha alcançado
uma aproximação muito estreita. O educador que se embala com tais ilusões é, às vezes,
surpreendido por uma catástrofe que o desengana e o faz dizer diante dos erros inesperados
dos alunos: "Mas, eu não o eduquei assim". Ele permaneceu como um "estra­nho" na sua
classe. Há esposos que morrem após longos anos de vida comum, permanecendo estranhos
um para o outro; há, também, educadores que chegam à aposentadoria após terem percorrido
longos caminhos pedagógicos onde nunca encontraram as crianças. Como observa Hubert, (1)
seria interessante "investigar as razões da escolha da profissão pedagógica entre os que a
exercem". Muitos permane­ceram no ensino porque viveram muito tempo no meio escolar,
adaptaram-se a ele e não podem deixá-lo, sem, no entanto, se sentirem particularmente ·
atraídos pelas crianças. Outros, saídos de meios pobres, não tiveram outro recurso para se
elevarem socialmente. · Finalmente, e este é o caso mais grave, a vocação pode não ser mais,
que uma forma de recalque, no sentido de que um aluno brilhante que não encontra na
sociedade a autoridade que seus méritos parecem merecer, irá buscá-la no alto da cátedra
magistral. Nestas condições, podemos ficar espantados de que muitos mestres ignorem as
crianças e não tenham podido guardar delas senão imagens convencionais ou retratos
deformados? Tudo se passou, nesse caso, como se o educador e o aluno tivessem se
empenhado em representar cada um o seu papel, em avançar um para o outro
completamente disfarçados.

Ao contrário, desejamos uma educação mais franca, onde o educador, um homem entre
outros, um homem como tantos outros, nem melhor nem pior, apresente-se para seu aluno de
rosto desco­berto. Dessa maneira, a educação poderia deixar de ser esta farsa onde cada um
tem do outro uma imagem mais ou menos falsa e seria facilitada à medida que o educador
soubesse enriquecer sua personalidade. Em última análise; repropomos a cultura interior da
personalidade, o cultivo do eu pelo eu. O educador pode alcançar este resultado por meio de
uma higiene intelectual e de uma disciplina afetiva tais, que se pode chegar a dizer que cuidar
do educador é muitas vezes, a melhor solução do problema da criança difícil. Isso é tanto mais
necessário quanto já vimos que a evolução das relações afetivas não é inevitável a partir de
seu conflito inicial, mas, que, pela variedade das direções que oferece, deixa, apesar de tudo,
uma liberdade bem grande ao educador que, à medida que permanece como condutor do
jogo, tem sempre um papel determinante na evolução do "par" educativo. A ele, mais do que à
criança, se dirige a nossa proposta, com a qual se invertem os dados de um problema que,
muito frequentemente, se propõe retificar exclusivamente, a conduta da criança. A educação
de um aluno tem uma dupla face e supõe paralelamente à sua, a educação do mestre.

Alguém nos dirá que concedemos muito espaço, no educador, à parte subjetiva da educação. É
que, precisamente, tentamos resti­tuir, para além da habilidade e das técnicas pedagógicas de
base científica, toda a dignidade ao sentimento e à paixão que devem animar todo professor,
quando toma consciência de que é um edu­cador diferente dos outros, frente a uma criança
que não se parece com nenhuma outra. Somente com esta condição o educador deixará de se
imobilizar no mundo falso da correção dos deveres, da rotina, da manutenção da disciplina, e
olhar o rosto de seus alunos. Estes, então, não procurarão mais ridicularizar este personagem
que lhes parecia tão distante. Mestres e alunos, libertados desta espécie de jogo ou de farsa
escolar poderão, enfim, quem sabe, se olhar de frente.

BIBLIOGRAFIA

1 . R. Hubert, Traité de pédagogie générale, pp. 623-4.

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