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ARTIGOS

INTRODUÇÃO, ACEITAÇÃO E REJEIÇÃO DE NOVAS


CELEBRAÇÕES NO METODISMO BRASILEIRO:
A HISTÓRIA DA “CELEBRAÇÃO DO CORAÇÃO AQUECIDO”
E DA “FESTA DE DONA SUSANA”

INTRODUCTION, ACCEPTANCE AND REJECTION OF


NEW CELEBRATIONS IN BRAZILIAN METHODISM:
THE HISTORY OF THE “CELEBRATION OF THE WARMED HEART”
AND THE “FEAST OF DONA SUSANA”

INTRODUCCIÓN, ACEPTACIÓN Y RECHAZO DE LAS NUEVAS


CELEBRACIONES EN EL METODISMO BRASILEÑO:
E L HISTORIA DE LA “CELEBRACIÓN DEL CORAZÓN CALIENTE”
Y DE LA “FIESTA DE DOÑA SUSANA”
 
(*)
HELMUT RENDERS

RESUMO
Este artigo discute a introdução de duas celebrações anuais, criadas na Igreja Metodista no
Brasil em 1985 e 1999: a aceitação de uma (Celebração do coração aquecido, desde 1982) e a
rejeição de outra (Festa de Dona Susana, desde 1999). Explicam-se a introdução, a rejeição e a
aceitação a partir das contribuições da antropologia social de ChristophWulf (papel dos ritos),
da sociologia da religião de José Bittencourt Filho (matriz religiosa) e da cultura visual de David
Freedberg (poder de imagens), além de Anton Houtepen (função “dêitica” de imagens) e David
Morgan (relação simpática / empática com imagens), a partir da sua proximidade com a cultura
dominante, em combinação com um discurso que critica ou esconde essa relação.
Palavras-chave:Imaginação. Ritual. Festa da Dona Suzana. Celebração do Coração Aquecido.
Matriz religiosa brasileira.

ABSTRACT
This article discusses the introduction of two annual events created in the Methodist Church in
Brazil, in 1985 and 1999: the acceptance of one (Celebration of the warm heart, since 1985),
and the rejection of the other (Feast of Dona Susana, 1999). Introduction, rejection and
acceptance are explained by means of the contributions of the cultural anthropology of
Christoph Wulf, the sociology of religion of Jose Bittencourt Filho, and the visual culture of
David Freedberg, Anton Houtepen, and David Morgan, focusing on their proximity with the
dominant culture in combination with a speech that criticizes or hides this relation.
Keywords:Imagination. Ritual. Feast of Dona Susana. Celebration of the warmed heart.
Brazilian religious matrix.

RESUMEN

                                                             
(*)Professordo Curso de Pós Graduação em Ciências da Religião da Faculdade Humanidades e Direito e do
Curso de Bacharel em Teologia da Faculdade de Teologia da Universidade Metodista de São Paulo
(Umesp). Doutor em Ciências da Religião pela Umespe. Estágio de Pós-Doutoramento em Ciência da
Religião pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
 
       
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Este artículo aborda la introducción de dos eventos anuales, creado en la Iglesia Metodista de
Brasil, en 1985 y 1999, la aceptación de un (Celebración del corazón caliente, desde 1985), y el
rechazo de la otra (Fiesta de doña Susana, 1999). Introducation, rechazo y aceptación, se
explican en base a los aportes de la antropología cultural de ChristophWulf, la sociología de la
religión de José Bittencourt Filho, y la cultura visual de David Freedberg, Anton Houtepen y
David Morgan, centrándose en su proximidad con la cultura dominante en combinación con
un discurso que critizises u oculta esta relación.
Palabras clave: Imaginación. Rituales. Fiesta de doña Susana. Celebración del corazón
calentada. Matriz religiosa brasileña.

INTRODUÇÃO

O campo religioso cristão brasileiro é muito dinâmico. Este dinamismo


transparece tanto através do surgimento de novos movimentos religiosos, novas
comunidades e igrejas como do trânsito religioso. Parte desse dinamismo é a
criação de duas celebrações na Igreja Metodista que envolveu rituais, imagens
ou logos antes desconhecidos nesta tradição, porém habituais no catolicismo
brasileiro. A hipótese desse trabalho é que a introdução, aceitação e rejeição
desses ritos explicam-se melhor pela sua proximidade da cultura religiosa
dominante católica junto ao encobrimento justamente dessa proximidade.

As celebrações a serem estudadas são: a Celebração do Coração


Aquecido1, criada por volta de 1985, e a Festa da Dona Susana2, proposta a
partir de 19993. Ambas foram instituídas para articular e reforçar aspectos
distintos da identidade denominacional metodista no Brasil.

Como método, estudaremos as iconografias centrais das duas celebrações


ou da sua divulgação, sua aceitação ou rejeição e relacionamos estas dinâmicas
com a cultura visual religiosa brasileira.

Como referencial teórico, partimos de Christoph Wulf (2013), que


considera os rituais insubstituíveis para sedimentar ou modificar uma
identidade coletiva. Quanto ao impacto e à relevância de imagens, ícones e logos
nestes processos de apropriação ritualista, seguimos os estudos a respeito do
poder de imagens de David Freedberg (1991), da sua “`deictic´ function”

                                                             
1A celebração se refere a uma experiência religiosa de John Wesley (1703-1791), spiritusrector do
movimento metodista na Inglaterra.
2 Susanna Wesley (1669-1742) era a mãe de John (1703-1791) e Charles Wesley (1707-1788) e é
considerada uma das conselheiras principais de John Wesley até a sua morte em 1742.
3 Pelo lado católico poderíamos discutir como exemplo dois casos recentes de rejeição. Eventualmente, seu

caráter mais protestante contribui para a rejeição da teologia da libertação pelo catolicismo e explica-se a
rejeição da renovação carismática dentro do catolicismo por ser considerada demasiadamente pentecostal.
No caso seriam as proximidades com o outro diferente que falariam mais alto do que as próprias tradições
mais semelhantes às propostas.

       
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segundo Anton Houtepen (2007, p. 66) e das formas “simpáticas” ou “empáticas” da sua
recepção através de uma “piedade de olhar” segundo David Morgan(1999, p. 59-96).

CELEBRAÇÕES, IDENTIDADE COLETIVA RELIGIOSA E A FORÇA PERFORMATIVA DE


IMAGENS

Neste subcapítulo, apresentamos uma explicação sobre a criação de


celebrações e festas no metodismo recente e, em termos históricos, o uso
incomum de imagens em seu meio como elementos essenciais para a
manutenção, dinamização ou modificação de sua identidade coletiva religiosa.

O PAPEL CHAVE DE RITUAIS NA CRIAÇÃO DE UMA IDENTIDADE COLETIVA

Primeiramente, recorreremos à pesquisa de Christoph Wulf. O autor foca


no significado de “imaginação, ritual e aprendizado mimético” para o
desenvolvimento humano, inclusive do redescobrimento do corpo e de sensos
como da “história da alma” referindo-se à “inescrutabilidade do sagrado”
(WULF, 2002). Segundo o autor, rituais constroem a coerência de grupos sociais
sem reduzi-los aos seus aspectos funcionais por envolverem também aspectos
estéticos, lúdicos e performativos. Rituais ordenam a realidade e possibilitam
identificações. Eles respondem à capacidade humana de imaginação como
representação de uma ausência que possibilita o aparecimento do novo, tanto
em forma da lembrança do passado como em forma da projeção do futuro.
Rituais são processos “[...] de incorporação e atribuição de sentido de produtos
culturais” (p. 53). Isso cria uma circularidade entre os mundos interior e
exterior do ser humano, os quais “assumem similaridades e começam a se
corresponder entre si” que, por sua vez, criam “vínculos com [...] o ambiente
social” e “atribuem sentido ao mundo” (p. 59). Ritos são “as formas mais
efetivas de comunicação e interação humana” e, “por meio dos rituais,
comunidades são criadas e as transições dentro e entre elas são organizadas” (p.
89). Entende-se como rituais “Liturgias, cerimônias, celebrações, ritualizações e
convenções, os rituais religiosos, ritos transitórios de passagem em ocasiões
como o casamento, nascimento e morte até os rituais cotidianos de interação”
(p. 89). O autor rejeita a ideia segundo a qual, nas sociedades modernas com
suas tendências de pressionar em direção da individualização e da autonomia,
ritos se tornariam supérfluos. Em vez disso, afirma: “Cada mudança ou reforma
de instituições e organizações também requer a transformação de rituais” (p.
90), que são nada menos do que “performances [...] do corpo” (p. 95). Dessa
forma, criam rituais, comunidades e novas realidades sociais por envolver

       
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implicitamente os corpos dos participantes; encenam hierarquias sociais e


estruturas de poder, transcendem o tempo comum e articulam sentidos como
sagrados (p. 102-113). Eles

[...] criam continuidade entre as tradições, as necessidades atuais e os desafios


futuros. Mudando a sua encenação e significado, criam um equilíbrio entre
tradições, ações presentes e necessidades futuras. [...]

A realização de rituais não é uma simples atividade repetitiva, mas, um ato


criativo e social que unifica distintos grupos sociais e que produz ordem social,
coerência cultural e que é capaz de dominar o potencial da violência social (p.
160). (WULF, 2013, p.160).

Muitas vezes, representações da cultura material também integram os


rituais: primeiro, pela sua relação com espaços específicos e pelos usos
específicos desses espaços; segundo, além da Inszenierung4 ritualista, por
materializar aspectos essenciais por artefatos, figuras e imagens.

O PAPEL-CHAVE DO PODER PERFORMATIVO DE IMAGENS E REAÇÕES ICONÓLATRAS,


ICONÓFILAS E ICONOCLASTAS

Após termos enfatizado, em primeiro lugar, a importância de rituais


especialmente no mundo contemporâneo em permanente modificação, isto é,
em contínua e ampla necessidade de construir coerência social e cultural,
precisamos articular um segundo aspecto: este “ato criativo” não é somente
“capaz de dominar o potencial da violência social”, mas também de desconstruir
e reconstruir culturas, sociedades e suas instituições. Rituais e representações
imagéticas funcionam, como o conceito da “desconstrução” já implica,
potencialmente, em forma iconoclasta. Além disso, acrescenta-se a perspectiva
religiosa ao aspecto temporal da imagem como representação (uma ausência
que dá espaço à memória e ao pensamento utópico) do aspecto transcendental
ou metafísico. Em outras palavras, rituais e imagens enquanto religiosos
correspondem ao anseio humano de “ver Deus”, porque “a mente [humana] só
pode agarrar o invisível por meio do visível ou com referência ao visível”
(FREEDBERG, 1991, p. 188). Para nosso argumento basta anotar a importância
das imagens no mundo religioso e o conflito em potencial que elas representam.
Em conseqüência disso, responde-se aos rituais e imagens de formas:

                                                             
4 Inszenieren, literalmente, significa “transformar em uma cena” e é traduzido para a língua portuguesa

como “produzir” no sentido de promover e empoderar.

       
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• iconófila– por uma participação existencial na representação e pela


identificação com o representado;
• iconoclasta– por uma rejeição radical da imagem e do ritual, daquilo
que ela ou ele representa ou de seu representante;
• ou iconólatra – pela confusão da imagem ou do ritual com aquilo que
ela ou ele representa.

Isso ocorre pelo seu poder performativo que se comprova, positivamente,


pela sua capacidade de “unificar [...] distintos grupos sociais, [...] produz [ir]
ordem social [e] coerência cultural”; e negativamente, pelas rejeições que rituais
e imagens podem encontrar [e sempre encontram]. Concordamos com David
Morgan (2014, p. 297) que as “[...] imagens são mais do que símbolos de
crenças. [...] Para muitos fiéis, mesmo para muitos protestantes, judeus e
muçulmanos, imagens e objetos operam de uma forma muito mais íntima a
encarnação (não somente significação) de relações divino-humanas”. Para uma
direção semelhante, aponta Houtepen (2007, p. 66-67):

Não é o nosso olhar estético que a liturgia e os ícones querem evocar, nem o
prazer emocional artístico ou a satisfação pessoal, mas uma ‘mudança real do
coração’, uma conversão ou metanóia [sic]... O ícone direciona nosso olhar para
além da imagem, o iconostasis traz a nossa mente por trás das telas, atrai-nos
para o santo dos santos, para a esfera celestial do divino. É um símbolo
performativo permanente, que transforma e transfigura, ou que é que exatamente
função “dêitica” [‘deictic’ function] significa”.

Entretanto, esse impulso performativo e transformador pode ser não


somente abraçado pelo ser humano (reação iconófila) ou rejeitado (reação
iconoclasta), mas transformado no sentido de instrumentalizado (reação
iconólatra). Para descrever tal aspecto, Morgan (1991, p. 59-96) introduziu a
distinção entre uma forma “empática” e “simpática” do olhar piedoso: a
aproximação empática quer construir uma semelhança para a negociação entre
o adepto religioso e seu Deus, mediante sua representação; a aproximação
simpática constrói uma analogia entre os atributos de seu Deus e seus deveres
de transformá-la em impulso para a atuação.

CONSIDERAÇÕES INTERMEDIÁRIAS

Levamos para o próximo capítulo, primeiramente, a importância de rituais


para a criação de coesão cultural, inclusive religiosa, e a observação da
necessária correlação entre mudanças institucionais e a introdução;
eventualmente, a transformação de rituais já estabelecidos. Segundo,
destacamos o papel da imaginação, que possibilita o aparecimento do novo, seja
       
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ela apresentada como forma da lembrança do passado ou da projeção do futuro,


e o papel de imagens como uma forma da sua representação e como formas
distintas de suas recepções/reações iconófilas, iconoclastas, iconólatras,
simpáticas e empáticas.

A CRIAÇÃO DA CELEBRAÇÃO DO CORAÇÃO AQUECIDO E DA FESTA DA DONA SUSANA NA


IGREJA METODISTA COMO EXEMPLOS PROTESTANTES

Se o que foi dito até agora estiver correto, a Igreja Metodista como Igreja
Nova deveria ter criado ritos e símbolos para marcar as etapas da sua história.
Isso, de fato, é parcialmente o caso, considerando que, até o século 20, ritos
eram mais importantes do que imagens. No metodismo primitivo inglês, por
exemplo, deveríamos pensar em primeiro lugar na chamada “festa do amor "
(RENDERS, 2001), mas, também em vigílias ou em pregações ao ar livre; no
metodismo estadunidense, nos eventos chamados Camp Meetings (BRUCE,
1974; FROST, 1998, p. 387-524; LESTER, 2000; HEMPTON, 2005). Em suas
respectivas épocas, a “Festa do Amor” e o “Camp meeting” eram rituais novos e
únicos. Ambos, porém, não foram introduzidos no metodismo brasileiro, cujos
rituais clássicos – os cultos, a Escola Dominical e, provavelmente, os retiros de
carnaval – a igreja compartilhava com outras denominações.

Assim sendo, careceu o metodismo brasileiro, especialmente após sua


autonomia em 1930, de rituais significantes em nível nacional, algo percebido
como sensação de falta de identidade. Esta lacuna parece ter sido vista na
década dos anos 1970, quando se começou a experimentar no Brasil retiros tipo
Ashram, do missionário metodista Stanley Jones. Estes encontros teriam,
eventualmente, a capacidade de transformar-se em ritos em nível nacional da
igreja para formar uma identidade única. Todavia, isso não ocorreu. Eram
encontros de um setor da igreja, não de toda a igreja.

Assim tinha no final do século espaço para outras propostas e criaram-se


dois5 rituais: a Celebração do Coração Aquecido e a Festa da Dona Susana.

A CELEBRAÇÃO DO CORAÇÃO AQUECIDO

A criação da Celebração do Coração Aquecido, no sentido mais restrito, é


o resultado de uma caminhada de aproximadamente 30 anos. Entretanto, a
                                                             
5Mais recentemente, surgiram ainda os “Encontros com Deus”. Sua complexa encenação é acompanhada
por votos dos participantes de não falarem sobre os detalhes do encontro e de obedecer durante o rito. Isso
aproxima este complexo rito de duração de um fim de semana dos cultos dos mistérios, de encontros de
maçonaria e de retiros jesuítas – algo certamente não intuído pelos seus[suas] idealizadores[as].

       
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ideia principal da festa, o resgate da memória da experiência religiosa de John


Wesley, fundador do metodismo na Rua de Aldersgate no ano de 1738, já fora
lançada em 1957 mundialmente e trazida para o Brasil pelo então missionário
Alexander Duncan Reily. Era um momento de crise de identidade do
protestantismo histórico brasileiro como um todo, que sentia a necessidade de
responder às missões de tenda de igrejas pentecostais. Conforme já
documentamos de forma detalhada em outro lugar (RENDERS, 2009, p. 89-113;
2011a, p. 181-198; 2011b; 2012a, p. 77-105; 2012b, p. 65-78; 2014, p. 21-51),
seguimos aqui somente com um breve resumo.

Em termos gerais, interpretamos a década de 1950 como o início de uma


fase de inculturação do protestantismo brasileiro, isto é, de sua adaptação à
matriz religiosa brasileira. Esta matriz era marcada por um misticismo6 que
serviu, durante o Brasil Colônia, à conquista e integrou, ao longo do tempo,
elementos da mística afro-indígena e, mais tarde, espírita. Com as palavras de
Bittencourt Filho: “A Matriz Religiosa Brasileira enseja, e a Religiosidade
Matricial ratifica, o êxtase religioso como uma espécie de ápice da experiência
direta com o sagrado” (BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 72). O autor entende esta
matriz como “[...] substrato da religiosidade do senso comum brasileiro [...] que
[...] favorece formas religiosas e induz condutas devocionais” (BITTENCOURT
FILHO, 2003, p. 77). Tanto o catolicismo como o [neo]pentecostalismo, em busca
da hegemonia religiosa, “[...] buscariam os conteúdos simbólicos [...] no legado
comum, profundamente enraizados nos corações e nas mentes da população –
na Matriz Religiosa Brasileira” (BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 79). Concordamos
com Bittencourt Filho, para quem o protestantismo clássico rejeitou esta matriz
de tal modo que não percebeu sua contínua, mas subterrânea presença, que
aflorou a partir da década de 1950:

No Brasil, as denominações do Protestantismo Histórico consagraram a prática


de identificar os valores religiosos nativos com o mal [...] Assim sendo, as missões
protestantes desde logo rechaçaram quaisquer expressões religiosas oriundas da
Matriz Religiosa Brasileira e, dessa maneira, contribuíram para recalcá-la ainda
mais no plano inconsciente. [...] A catequese do Protestantismo Missionário não
foi capaz de desarraigar entre os seus adeptos os conteúdos advindos dessa
religiosidade. Como já adiantamos, esses conteúdos advindos dessa religiosidade
permaneceram no plano do inconsciente. [...] A Matriz Religiosa Brasileira, ao
modo de uma corrente subterrânea [...] lenta e gradualmente eclodiu nas diversas
modalidades de carismatismo e, a partir dos anos de 1960, provocaram profundas
cisões... (BITTENCOURT FILHO, 2003, p. 44).
                                                             
6 Nós distinguimos entre mística e misticismo como, por exemplo, Dreher (2004, p. 205). Basicamente,

identificamos misticismo como espiritualidade que anula e nega a importância da colaboração do sujeito
humano nos e para os processos religiosos que o envolvem.

       
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Exemplos do meio do metodismo brasileiro são a fundação da Igreja do


Avivamento Bíblico em 1946 por alguns seminaristas da Faculdade de Teologia
e a fundação da Igreja Metodista Wesleyana em 1967 por pastores e leigos
metodistas. Enquanto a primeira mantém em seu logo uma tocha acesa,
encontramos hoje no logo da segunda, um coração abrasado.

Figura 1: Logo da Igreja do Avivamento Figura 2: Logo da Igreja Metodista


Bíblico em 1946. Wesleyana de 2005.

As duas igrejas oriundas da Igreja Metodista foram criadas ao redor da


busca e da pregação da experiência do batismo no Espírito Santo como
elemento essencial da experiência religiosa, ou seja, trata-se de uma marca
clássica de pentecostalismo.

As razões que deram origem à Igreja basearam-se na doutrina do batismo com o


Espírito Santo como sendo uma segunda benção para o crente [...] [e] na
aceitação dos dons espirituais. [...] Quando usamos a terminologia “Wesleyana”,
queremos lembrar ao povo a experiência do coração abrasado pelo poder de Deus
(IMW, 2009a).

Mesmo que, por um lado, a experiência do coração abrasado não se iguale


à experiência do batismo no espírito de forma literal, a expressão “experiência
do coração abrasado pelo poder de Deus”, por outro lado, também não é
claramente distinta. De fato, esta identificação mantém-se bastante popular
nesta igreja. Assim, por exemplo, na página na internet da Igreja Metodista
Wesleyana de Itaúna, SP: “No dia 24 de maio de 1738, numa pequena reunião,
ouvindo a leitura de um antigo comentário escrito por Martinho Lutero, pai da
Reforma Protestante, sobre a carta aos Romanos, John sente seu coração se
aquecer”. O texto é acompanhado pelo seguinte emblema do coração abrasado
(Figura 3):

       
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Figura 3: A Experiência do Coração


Aquecido (abrasado), IMW, Itaúna, SP, 20117.

Na IMW, a experiência de Aldersgate de John Wesley é então vista como


segunda bênção ou batismo no Espírito Santo8. Já nos anos 1980 e 1990, criou-
se um movimento de avivamento que também focou na experiência de
Aldersgate, avivalista, porém, mais pentecostal; a partir da década de 1990, em
alguns casos, até neopentecostal. Para evidenciar a relação entre a celebração do
coração aquecido e um empoderamento tipo batismo do Espírito Santo,
citamos, primeiramente, o pastor metodista J. Cabral e, depois, o bispo
metodista Richard dos Santos Canfield.

Cabral, ordenado pastor pela Igreja Metodista, foi também, em 1967, um


dos membros fundadores da Igreja Metodista Wesleyana. Porém, retornou à
Igreja Metodista na década de 1980, quando declarou a experiência religiosa
essencial de John Wesley e de cada metodista como experiência do “coração
aquecido”. Em um de seus artigos no jornal da igreja, “Aldersgate:
                                                             
7 Compare com a figura 181. O coração é o mesmo.
8 Vale a pena ainda uma comparação com um movimento norte-americano parecido, os Aldersgate
Renewal Ministries. Eles foram fundados na Igreja Metodista Unida, em 1977, como sucessor do United
Methodist Renewal Services Fellowship, com uma relação fraternal com o movimento Good News (1967),
fortemente vinculado com o Asbury Seminary. Este movimento dos EUA refere-se “à experiência de
Aldersgate”, enquanto o movimento brasileiro prefere a metáfora do coração aquecido e suas
representações imagéticas.

       
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principalmente um coração aquecido” (CABRAL, 2ª quinzena 05/1985, p. 1), ele


se refere, inicialmente, a John Wesley como uma pessoa que teria tido um
“coração [...] constantemente aquecido pelo Espírito Santo” e que poderia ser
chamado assim um “místico prático”, oposto à “frieza espiritual dos crentes”
declarado pelo autor uma “obra de Satanás”. Evidencia-se uma cosmovisão mais
dicotômica. Wesley, o “homem sensível à ação do Espírito Santo”, serve,
segundo Cabral, como modelo de conquistador:

Foi o coração aquecido pela ideia do domínio que levou o jovem Alexandre [...] a
construir um dos maiores impérios. [...] Foi o coração aquecido pela ideia da
supremacia que levou Hitler a provocar uma guerra mundial. É tal experiência
interior que leva os homens a conquistas e realizações de grandes coisas, boas e
más. (CABRAL, 2ª quinzena 05/1985, p. 13).

Nota-se certa noção de ambiguidade quanto ao efeito de um coração


aquecido. Cabral identifica a ação do Espírito com a “ideia do domínio”, da
construção de grandes impérios e “da realização de grandes coisas”, mas
distingue a ação do Espírito da “ideia da supremacia”. Um “místico de ação”
seria, para Cabral, então, um líder visionário que se destaca pela grandeza de
sua visão [da conquista]9. Mas o que exatamente transforma um “homem
sensível à ação do Espírito Santo” em um “místico prático” e, aparentemente,
conquistador de terrenos que não pertencem a ele? Supomos que seja a
experiência religiosa que Cabral levou a ser cofundador da Igreja Metodista
Wesleyana: a experiência do batismo pelo Espírito Santo. Cabral, assim
entendemos, não defende simplesmente o resgate da memória da experiência
religiosa de John Wesley dentro de seu padrão anglicano-pietista-puritano, mas
identifica o coração aquecido com o batismo no Espírito Santo. Assim,
transforma John Wesley em um pentecostal anônimo. O fato de que Cabral, em
meados da década de 1980, se tornou ghostwriter do bispo Macedo da IURD e o
editor-chefe da Folha Universal, mostra que sua visão de grandeza ganhou agora
um formato neopentecostal, que nós classificaríamos não mais como “mística da
ação”, mas um misticismo dicotômico radical10, no sentido da distinção entre
Mystik e Mystizismus segundo o modelo de Dreher (2004, p. 205):

                                                             
9 Apesar de que ele certamente se entendeu como um “homem sensível à ação do Espírito Santo”, não
percebeu como o uso do conceito “conquista” e os exemplos de Alexandre e Hitler – e não transparece no
seu texto até uma admiração latente para o Hitler? – mostram uma total insensibilidade para com a
história e a vida real.
10A interpretação do próprio misticismo como “emigração daqueles sem poder” (ALVES, 1975, 165ss) e,
diante do cientificismo moderno, como “reconquista da abertura em nossa percepção da realidade”
(BERGER apud (ALVES, 1975, 165ss) parecem-me não aplicável a Cabral.

       
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[...] reservando, para a primeira palavra, a possibilidade de síntese de jure com a


religião e teologia cristãs, e identificando a segunda, nível metafísico, com o
panteísmo acósmico, para o qual, a rigor, o mundo e o eu nada são, postulando-se
uma síntese ou “confusão de substâncias” onde o divino devora o mundo e o eu
humano.

O vínculo da criação da celebração anual do coração aquecido com uma


experiência religiosa mais pentecostal transparece também nas memórias do
Bispo Adriel Maia (2008, pp. 67-70) sobre as atividades do bispo Richard dos
Santos Clanfield:

No final da década 80 havia na igreja três grupos: o grupo conservador (chamado


tradicional); o grupo ligado à Teologia da Libertação, que se identificava com o
documento Plano para a Vida e a Missão [...] e o outro grupo, denominado
“Coração Aquecido”. Este último proclamava a necessidade de uma experiência
de avivamento e santificação. [...] Com a divulgação do Primeiro Encontro de
Avivamento e Santificação houve um mal-estar... [...] O evento, realizado em
outubro de 1987, foi muito esperado e tivemos bispo Richard como preletor e
apoio de sua equipe da Sexta Região. Em suas ministrações, o bispo apontou o
significado do batismo no Espírito Santo e declarou: ‘nosso grande desafio é o
desafio do amor... [...] o batismo de Espírito Santo é o batismo do amor... há um
grande perigo... o perigo de se perderem nas considerações de terminologias....
prefiro fundamentar a minha mensagem no seguinte tema: Experiência do
Espírito Santo [...] A plenitude do Espírito Santo cristaliza-se em diversos
caminhos na vida pessoal [...], em seus novos níveis de comunhão com Deus e
com o outro, eleição de novos padrões de vida relacional de unidade e alijamento
do individualismo, do isolamento e do espiritualismo’.

Percebe-se como nesta memória a promoção do batismo no Espírito Santo


é claramente vinculado ao “grupo denominado “Coração Aquecido”. O segundo
aspecto é, porém, a tentativa de reler esta experiência como “batismo no amor”,
capaz de resistir ao “individualismo, isolamento e espiritualismo”. Ao
“espiritualismo” – uma expressão pouco usada – parece-nos corresponder ao
“misticismo” acima já mencionado. Segundo o bispo Richard, o avivamento
promove “vida relacional de unidade e alijamento do individualismo” ou
conforme o bispo Adriel (2008, p. 69) afirma no mesmo texto: “O movimento
de avivamento [...] deve gerar um compromisso com a vida em Cristo Jesus.
Encher-se da graça ou do Espírito Santo tem um preço: servir como servo”. Em
tudo, trata-se agora não mais do anúncio de uma experiência específica, mas de
interpretar experiências dentro de uma perspectiva metodista mais tradicional,
não focada no fenômeno da experiência em si, mas no seu resultado.

Podemos agora observar que a celebração do coração aquecido com data


ad quem não antes de 1985, foi interpretada de forma controversa. Por um lado,
observe-se uma tendência de celebrações do coração aquecido que envolvem a

       
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Igreja Metodista, a Igreja Metodista Wesleyana e a Igreja Metodista Livre em


conjunto (Figura 4):

Figura 4: Encontro da Celebração do Coração aquecido de 2005 em São


Paulo, com a participação de três
igrejas metodistas.

A imagem, um coração banhado em chamas, é parecida à imagem usada


pela IMW. O efeito da participação de uma igreja pentecostal e duas igrejas da
missão com tendências carismáticas, até pentecostais, em termos da
significação do próprio evento é algo que não pode ser verificado de forma
conclusiva. O processo está em andamento. Porém, dificilmente deve se esperar
uma espiritualidade protestante clássica.

Outro exemplo é um cartaz de uma Celebração do Coração Aquecido de


Petrópolis, RJ (Figura 5). Sendo uma celebração que juntava a membresia da
IM e da IMW, o artista uniu os logotipos das duas igrejas.

       
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Figura 5: Celebração do Coração Figura 6: Cartaz da celebração do


Aquecido, Petrópolis, RJ. Coração Aquecido, SP, 2014.

Já uma interpretação distinta transparece em um cartaz da celebração de


2014. A frase do cartaz – “O coração e a mão: porque um coração aquecido serve
no mundo” – articula a ênfase dada uma “mística prática” de serviço, o que se
aproxima da leitura metodista da “imitatio [Christi]”, articulada pelo lema da
década de 1980 “Igreja Metodista, comunidade missionária a serviço do povo”.
A Figura 6, em outras palavras, reintegra a celebração do Coração Aquecido no
discurso eclesiástico antes de 1987. Por outro lado, avançou o novo lema “O
povo do coração aquecido” também já em direção de uma representação
imagética: “Somos o povo do coração aquecido! Lendária autodefinição
Metodista, fruto do testemunho da experiência que John Wesley teve com Deus”
(IGREJA METODISTA DE SARANDI, 2008). A palavra “lendária” chama a
atenção, por mostrar como o “coração aquecido” agora é literalmente entendido
como parte de um tipo de “mito de origem”. Isso, por sua vez, já ganhou a
própria representação imagética (Figura 7).

       
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Figura 7: Povo do coração aquecido


- IM Palmas, TO, 2011.

Podemos, pois, observar que, no início da década de 1980, criou-se um


discurso ao redor de uma metáfora anteriormente não empregada – Coração
Aquecido – com uma dupla intenção e capacidade:

• Articular uma relação com uma “narrativa das origens” do movimento


– identificado com a experiência religiosa de John Wesley na Rua de
Aldersgate em 24 de maio de 1738.
• Acordar ou uma experiência religiosa “contemporânea” – o batismo no
Espírito Santo – ou a ideia de uma segunda bênção na tradição das
Igrejas da santidade.

No momento em que a celebração do coração aquecido foi transformada


em celebrações anuais, primeiro de um movimento dentro da igreja, depois
como celebração central de toda amembresia de uma região geográfica, acabou-
se criando um novo ritual para articular uma identidade religiosa considerada
essencial – no sentido de uma marca confessional – para todos.

A FESTA DA DONA SUSANA

A Festa da Dona Susana era uma proposta de celebração anual criada em


1999 (IGREJA METODISTA, 1999). Ela foi promovida por dois setores da
igreja: a federação das mulheres e a ação social. Basicamente, consistia em criar
uma festa ou um evento educativo-filantrópico, para:

       
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• Arrecadar recursos para a ação social da igreja nacional em regiões


missionárias e para as igrejas locais que promoveram a festa. A
proposta envolveu os aspectos discursivo e imagético.
• Lembrar o papel de Susana Wesley na educação e no aconselhamento
de seus filhos e filhas, inclusive, John e Charles Wesley, e destacar a
importante contribuição das mulheres metodistas para a igreja e a sua
missão.

O que deveria ter dado certo deu muito errado: o projeto foi logo
amplamente hostilizado por indivíduos e setores da igreja que estavam vendo a
introdução de uma santa metodista, o que representaria nada menos do que
uma “prática católica”. Isso, por sua vez, causou por parte das[os]
idealizadoras[es] do projeto reações entre perplexidade e profunda irritação. O
que tinha ocorrido? Para responder esta pergunta comparamos, primeiro, os
bótons das campanhas de 1999 (Figura 8), 2000(Figura 9), 2003(Figura 10) e
2005 (Figura 11)11. Depois, as capas das campanhas de 1999 e de 2003 a 2005 e,
finalmente, passagens das editorias desses cadernos.

Figura 8: Festa da Dona Susana, 1999 Figura 9: Festa da Dona Susana, 2000
[Logo da campanha]. [Logo da campanha].

Figura 10: Festa da família metodista, Figura 11: Festa da família metodista,
2003 [Logo da campanha]. 2004 e 2005 [Logo da campanha].

                                                             
11 Os bótons de 2004 e 2005 são idênticos.
       
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Iniciamos com os bótons, que se distinguem da seguinte maneira:

• Modifica-se a iconografia: desaparecem John Wesley como


criança e Susana Wesley como educadora (1999, 2000) e aparece uma
mão com três figuras acima dela que, supostamente, compõem uma
família (2003, 2004, 2005);
• Modifica-se o texto: desaparece Mãe do metodismo (1999),
“Orando e promovendo a missão” (2000), e surgem, primeiro “uma
festa da família metodista” (2003) e, depois, “A festa da família
metodista” (2004, 2005);
• Mantém-se o nome “Susana Wesley”, porém de forma
deslocada: acima (1999), abaixo (2000), à esquerda acima (2003) e à
direita abaixo e invertida (2004 e 2005).

Resumindo, primeiro, apaga-se a ideia da “Mãe do Metodismo”, depois da


mãe de John Wesley e, finalmente, sobrepõe-se “A festa da família Metodista”, a
“Susana Wesley”. Contudo, também, “uma festa da família metodista”. Aparece
a palavra “festa”, porém, desvinculada de Susana Wesley e relacionada com a
família metodista e, de forma ainda mais intensa, depois de 2003. O boton
aparece mais uma vez em 2010, na Revista da Ação Social (Figura 12). Agora, o
logo é plenamente subordinado à questão da Ação Social e integrado no título
da revista.

Figura 12: Título da Revista da Ação Social, 2010, capa.

O termo “festa” é agora mais esvaziado – lemos “Família metodista em


festa” em vez de “A festa da família metodista” ou até “Uma festa da família
metodista. “Susana Wesley” é substituída por “Igreja Metodista”. Em termos
iconográficos, parece uma citação confusa – o que tem uma ação social a ver
com “estar em festa” – explica um comentário à página 5: “A ‘Oferta da ação

       
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social’ surgiu como ‘Festa Susana Wesley’”. Na capa, então, por um lado, cita-se
o antigo logo, por outro lado, elimina-se, por fim, “Susana Wesley”.

A constelação de uma mulher sentada com um livro nas mãos com um


menor em pé na sua frente é iconograficamente um tema conhecido na
iconografia cristã. Trata-se do retrato de Maria, sendo educada pela sua mãe,
Santa Anna (Figura 13). Esta veneração iniciou no século VI e culminou nos
século XV e XVI.

Figura 13: Ensinando a criança Figura 14: Brasão de Calvino, Anuário


[cerca 1875]. da IPI, 2009.

Esta composição de figuras – adulto, criança e livro – tem então também


um pano de fundo confessional, no mínimo, para pessoas que conhecem a
cultura católica. E não totalmente por acaso nós, os protestantes, não
estabelecemos imediatamente esta ligação. Porém, uma orientanda católica
nossa, senhora Claudinéia Cássia Genoveze, “vi” esta relação numa estante,
sendo ela profundamente enraizada na cultura católica. Quando apareceu a cena
de “Santa Ana ensinando Maria”, no século XII, ela representava uma revolução
educacional, o ensino para meninas. Será que isso foi a razão pela citação desse
imaginário? Afinal, Susana Wesley era também considerada uma educadora
nata e, no mínimo, mãe de um grande homem religioso. Porém, nas reações
aparentemente prevaleceu mais a rejeição da relação entre a festa religiosa, uma
Santa – Ana – e a própria Maria, não a memória de um avanço educacional.

       
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A partir de 2003 trocou-se a imagem da mãe ensinando o filho, pela


família acima de uma mão. Esta imagem lembra o brasão de Calvino composto
por uma mão com um coração acima, tema conhecido no Brasil (Figura 14). Na
iconografia cristã, a mão pode representar “a mão de Deus” ou uma mão
humana. Até na iconografia renascentista, a mão de Deus é sempre retratada
saindo de uma nuvem, sendo ela relacionada ao Céu, a morada de Deus. No caso
da Figura 14, isso pode significar o oferecimento humano do coração “com suas
próprias mãos, ou a colocação desse coração na mão de Deus. Esta questão
parece-nos mais óbvia na iconografia do boton de 2003. Aqui, deve-se tratar da
mão de Deus que lança a família metodista para a missão.

Num segundo passo, precisamos investigar as capas das campanhas de


1999 (Figura 15) e de 2003 a 2005(Figuras 16 a 18).12Aqui é importante o texto
adicional, que se junta à mensagem dos bótons.

Figura 15: IM. Caderno de campanha, Figura 16: IM. Caderno de campanha,
capa, 1999. capa, 2003.

Em 1999 (Figura 15), aparece “Festa da Dona Susana – Orando e


promovendo a missão”. Em 2003 (Figura 16), domina “Orando e promovendo a
missão”, porém, mantém-se “Manual da Festa 2003”

                                                             
12 A campanha foi lançada em 1999 e é mantida até hoje. Dos cadernos de 2000 e 2001 temos somente o

logo de 2000. Em 2006, no Concílio Geral da Igreja Metodista, o setor autônomo da ação social foi
eliminado e criada uma única secretaria para as quatro secretarias anteriores

       
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Figura 17: IM. Caderno de campanha, Figura 18: IM. Caderno de campanha,
capa, 2004. capa, 2005.

Em 2004 (Figura 17), surge “Família metodista em festa, promovendo a


vida”, ao lado de “Manual da festa”. Em 2005 (Figura 18), “Festa da Susana
Wesley” ao lado de “Família metodista em festa”. Aparece, então, em todas as
capas, a palavra “festa”; em dois casos (1999 e 2005), diretamente relacionada
com Susana Wesley. Abrindo o caderno de 2003, lemos no editorial: a “[...]
Coordenação Nacional de Ação Social alegra-se de muito com o fato de
promover a 5ª Festa Susana Wesley, uma Festa da Família metodista”
(IGREJA METODISTA, 2003, p. 2). Como isso se repete nos dois anos seguintes
(IGREJA METODISTA, 2004, p. 3; 2005, p. 3), a diferença entre “Uma festa...”
(3x no caderno, 1x no bóton), “A festa de” (2 x nos bótons) e “em festa” (1x na
capa) representa toda ambiguidade do processo. “A festa de” pode ter um
sentido exclusivo (á única festa de ...) ou universal (a festa de todos...), “em
festa” foca mais em um estilo, eventualmente, próximo a uma celebração
religiosa. Porém, a designação “Festa [da] Susana Wesley” acabou sendo,
pontualmente, duradora13.

                                                             
13Ver a página de Internet da Igreja Metodista de Maringá (2014): “História da Campanha – um dos
eixos da Igreja Metodista é a ação social desenvolvida em vários atos concretos, dentre eles, os trabalhos
com crianças, indígenas, presidiários, sem-teto e pessoas em situação de risco. No final da década de 1990
surge a Campanha Nacional da Oferta para Ação Social, ou como era chamada - 'Festa da Dona Susana –
orando e promovendo a missão' ”, mas quem é Dona Susana e por que a festa?´.”

       
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“O que tinha ocorrido?”, isso era a pergunta inicial do segundo capítulo.


Em detalhe, os elementos que bótons, capas e texto apresentaram, eram
culturalmente já ocupados:

Católico Metodista
Festa • Celebração da missa • Celebração do culto
• Festa do aniversário da igreja dominical
[quermesse] • Aniversário da igreja
• Festa do divino Espírito Santo
• Festa do sagrado sacramento
Relação festa – • Festas de Santos[as] • Festa da Dona Susana
santo[a] Festa [de] Susana Wesley
• Dia da transverberação do • Celebração do coração
coração de Teresa e Ávila aquecido
[de John Wesley]
Imagem do[a] • Sim, obrigatoriamente. • Geralmente, não; porém,
santo[a] é observe a figura 3.
destacada
Citação de um • A Santa Anna ensinando • Susana Wesley ensinando
padrão imagético Maria Jesus.

A combinação de “festa” com mais um nome (no caso, de Susana Wesley)


em vez de “celebração” sem um nome (no caso, de John Wesley) parece ser um
dos elementos de identificação. E isso, apesar de a Figura 3 mostrar que a
iconografia popular pentecostal já não excluía mais categoricamente imagens de
pessoas – o que pode sinalizar que uma nova iconografia protestante está se
manifestando imperceptivelmente. Então, como lemos o fenômeno da aceitação
e da aceitação do primeiro tipo de celebração – capaz até de reunir ao seu redor
diversas denominações metodistas, sendo elas históricas e pentecostais – e a
rejeição da outra?

Como sugestão de interpretação, propomos um entrelaçamento entre dois


movimentos contraditórios:

• a necessidade de se aproximar da cultura dominante para criar uma


noção do natural, adequado e favorável. Em outras palavras, uma
igreja que atenda às massas e que seja identificada como
culturalmente acolhedora; afinal, uma igreja brasileira;

• e a necessidade de se manter distinto da cultura dominante, para


manter uma noção de algo especial, protestante, novo e

       
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extraordinário, uma igreja que atende, por exemplo, à parte


religiosamente séria da população.

Nesta dupla perspectiva, Celebração do coração aquecido e a Festa [da


Dona] Susana [Wesley] se distinguem de forma diametral:

Proximidade Proximidade para Imaginário


para com a com a matriz “metodista“
matriz religiosa religiosa
Celebração do É atendida Escondida e Representa uma
coração [misticista, despercebida celebração
aquecido religiocordis] confessional
metodista
Festa da Dona É atendida [festa Citada e criticada Parecido como uma
Susana popular] como incompatível celebração
com a própria confessional católica
confessionalidade

O a princípio mesmo fenômeno, a poderosa performatividade do rito e do


símbolo causa então efeitos opostos. Enquanto as[os] idealizadoras[es] da
Celebração do coração aquecido acolhem os benefícios do poder performativo
de um rito e símbolo com raízes culturais profundas, sofrem as[os]
idealizadoras[es] da Festa [da Dona] Susana [Wesley] uma forte reação
iconoclasta, justamente por articular certa proximidade formal com a matriz
religiosa brasileira. A proposta daqueles que acolhem com uma maior
tranquilidade e liberdade o aspecto cultural e popular, a federação das mulheres
metodistas e a secretaria da ação social são rejeitadas. Como resultado, a
proposta original foi desarticulada. Aqueles, porém, que não se identificam com
a matriz religiosa brasileira, seus ritos e símbolos, introduziram uma celebração
com durador impacto na membresia metodista, por ser interpretada como
celebração alternativa aos outros setores, considerados ecumênicos que, neste
caso, quis dizer em primeiro lugar, abertos para o catolicismo.14

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como Wulf afirmou: não se aplica algo novo no campo religioso com
impacto existencial sem recorrer ao formato de festas e celebrações específicas

                                                             
14O argumento principal para justificar a retirada da Igreja Metodista da CONIC era a presença de
representantes da Igreja Católica.

       
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ou de ritos como dinâmicas de incorporação. Experiências existenciais são


também experiências corporais.

Para nosso estudo isso significa que a mera proposta de criar estas duas
celebrações partiu de uma primeira intuição certa: quer-se introduzir, resgatar
ou vitalizar algo no campo religioso para um grupo maior, mais popular e,
especialmente, novo na instituição; procura-se “citar” ou “sincronizar-se com”
aquilo que se chama a matriz religiosa ou a religiosidade mais popular.

Quanto ao protestantismo brasileiro, no caso, o metodismo, porém, há um


elemento contraditório que não pode ser ignorado e que explica a rejeição da
Festa da Dona Suzana e a aceitação da Celebração do coração aquecido: no
momento que esta proximidade fica evidente, é ainda mais abertamente citada e
aplicada à própria denominação; ela é rejeitada por uma parcela significante da
igreja. Para ser aceita, a celebração precisa ser descrita como expressão genuína da
própria denominação e original no sentido de alternativa à matriz religiosa brasileira.

Porém, o mero fato da existência da proposta da Festa Susana Wesley na


forma como ela foi feita, articula também mudanças no protestantismo e
metodismo brasileiro mais favoráveis a uma inculturação aberta e consciente. O
protestantismo e, junto a ele, o metodismo, são mais complexos e diversos do que o
resultado que essa investigação, num primeiro olhar, aparentemente aponta.

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mundo globalizado. São Paulo: Hedra, 2013.

WULF, Christoph; KAMPER, Dietmar. (Org.) Logik und Leidenschaft: Erträge


historischer Anthropologie. Berlin: Reimers, 2002. [Lógica e paixão: Contribuições da
antropologia histórica].

REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS

IGREJA METODISTA DE MARINGA. “22/08/2013 - Campanha Nacional de Oferta


para Ação Social.” In: Noticias. 22 mar. 2013. Disponível em:
<http://ingainformatica.com.br/metodista/www/site/noticia/543>. Acesso em: 21
ago. 2014.

IGREJA METODISTA. Revista da Ação Social. São Paulo: Editora Cedro, 2010.
Disponível em: <http://issuu.com/saf_nacional/docs/revista_de_acao_social#>.
Acesso em: 21 ago. 2014.

Recebido em 15/10/2014
Aprovado em 13/11/2014
 

       
INTERAÇÕES – CULTURA E COMUNIDADE, BELO HORIZONTE, BRASIL, V.9 N.16, P. 350-373, JUL./DEZ.2014 373
ISSN 1983-2478
 

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