KRENAK, Ailton. Antes o Mundo Não Existia

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ANTES) O MUNDO NÃO EXISTIA

A ilton K renak *

Üs intelectuais da cultura ocidental escrevem livros, fazem filmes, dão con-


ferências, dão aulas nas universidades. Um intelectual, na tradição indígena, não
tem tantas responsabilidades institucionais, assim tão diversas, mas ele tem uma
responsabilidade permanente que é estar no meio do seu povo, narrando a sua
história, com seu grupo, suas famílias, os clãs, o sentido permanente dessa he-
rança cultural.
Aqui nesta região do mundo, que a memória mais recente instituiu que se
chama América, aqui nesta parte mais restrita, que nós chamamos de Brasil, mui-
to antes de ser ~rica" e muito antes de ter um carimbo de fronteiras-- que
separa os países vizinhos e distantes, nossas famílias grandes já viviam aqui. Es-
sas nossas famílias grandes, que já viviam aqui, são essa gente que hoje é reco-
nhecida como tribos. As nossas tribos. Muito mais do que somos hoje, porque
nós tínhamos muitas etnias, muitos grupos com culturas diversas, com territó-
rios distintos. Esses territórios se confrontavam, ou às vezes tinham vastas ex-
tensões onde nenhuma tribo estava localizada, e aquilo se constituía em grandes
áreas livres, sem domínio cultural ou político. Nos lugares onde cada povo tinha
sua marca cultural, seus domínios, nesses lugares, na tradição da maioria das nossas
tribos, de cada um de nossos povos, é que está fundado um registro, uma me-
mória da criação do mundo. Nessa antiguidade desses lugares a nossa narrativa
brota, e recupera os feitos dos nossos heróis fundadores. Ali onde estão os rios,
as montanhas, está a formação das paisagens, com nomes, com humor, com sig-
nificado direto, ligado com a nossa vida, e com todos os relatos da antiguidade
que marcam a criação de cada um desses seres que suportam nossa passagem
no mundo. Nesse lugar, que hoje o cientista, talvez o ecologista, chama de hábi-
tat, não está um sítio, não está uma cidade nem um país. É um lugar onde a alma
de cada povo, o espírito de um povo, encontra a sua resposta, resposta verda-
deira. De onde sai e volta, atualizando tudo, o sentido da tradição, o suporte da
vida mesma. O sentido da vida corporal, da indumentária, da coreografia das dan-
ças, dos cantos. A fonte que alimenta os sonhos, os sonhos grandes, o sonho

(*) Texto elaborado a partir de exposição oral. (N. E.)

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que não é somente a experiência de estar tendo impressões enquanto você dor-
me, mas o sonho como casa da sabedoria.
Vocês têm uma instituição que se chama universidade, escola, e têm a insti-
tuição também que se chama educação. Todas estas instituições: educação, es-
cola, universidade, elas estão no sonho, na casa do conhecimento. Esse sonho,
tem um aprendizado para o sonho. E, quando nós sonhamos, nós estamos en-
trando num outro plano de conhecimento, onde nós trocamos impressões com
os nossos ancestrais, não só no sentido de nosso~ antigos, meus avós, meu bisa-
vô, gerações anteriores, mas com os fundadores do mundo. Tomara que a pala-
vra habitat tenha esse sentido que estou pensando, que ela não seja só um sítio,
uma cidade, ou lugar só na geografia, que ela tenha também espírito, porque,
se ela tiver espírito, então eu consigo expressar uma idéia que aproxima, para
você, o lugar de onde estou tentando contar um pouco da memória que nós te-
mos de criação do mundo, quando o tempo não existia.
Quando eu vejo as narrativas, mesmo as narrativas chamadas antigas, do Oci-
dente, as mais antigas, elas sempre são datadas. Nas narrativas tradicionais do
nosso povo, das nossas tribos, não tem data, é quando foi criado o fogo, é quan-
do foi criada a Lua, quando nasceram as estrelas, quando nasceram as monta-
nhas, quando nasceram os rios. Antes, antes, já existe uma memória puxando
o sentido das coisas, relacionando o sentido dessa fundação do mundo com a
vida, com o comportamento nosso, com aquilo que pode ser entendido como
o_ieito de viver. Esse jeito de vi~e~ que inforn(a a nossa arquitetura, nossa medi-
cma, a nossa arte, as nossas musicas, nossos 'àintos.
Nós não temos uma moda, porque nós não podemos inventar modas. Nós
temos tradição, e ela está fincada em uma memória da antiguidade do mundo,
quando nós nos fazemos parentes, irmãos, primos, cunhados, da montanha que
forma o vale onde estão nossas moradias, nossas vidas, nosso território. Aí, on-
de os igarapés, as cachoeiras, são nossos parentes, ele está ligado a um clã, está
ligado a outro, ele está relacionado com seres que são aquilo que chamaria de
fauna, está ligado com os seres da água, do vento, do ar, do céu, que liga cada
um dos nossos clãs, e de cada um das nossas grandes famílias no sentido univer-
sal da criação.
Algumas danças nossas, que algumas pessoas não entendem, talvez achem
que a gente esteja pulando, somente reagindo a um ritmo da música, porque não
sabem que todos esses gestos estão fundados num sentido imemorial, sagrado.
Alguns desses movimentos, coreografias, se você prestar atenção, ele é o movi-
mento que o peixe faz na piracema, ele é o movimento que um bando de araras
faz, organizando o vôo, o movimento que o vento faz no espelho da água, giran-
do e espalhando, ele é o movimento que o sol faz no céu, marcando sua jornada
no firmamento e é também o caminho das estrelas, em cada uma das suas esta-
ções. Por isso que eu falei a você de um lugar que a nossa memória busca a fim-
dação do mundo, informa nossa arte, a nossa arquitetura, o nosso conhecimen-
to universal.
Alguns anos atrás, quando eu vi o quanto que a ciência dos brancos estava
desenvolvida, com seus aviões, máquinas, computadores, mísseis, eu fiquei um

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pouco assustado. Eu comecei a duvidar que a tradição do meu povo, que a me-
mória ancestral do meu povo, pudesse subsistir num mundo dominado pela tec-
nologia pesada, concreta. E que talvez a gente fosse um povo como a folha que
cai. E que a nossa cultura, os nossos valores, fossem muito frágeis para subsisti-
rem num mundo preciso, prático: onde os homens organizam seu poder e sub-
mete.ma natureza, derrubam as montanhas. Onde um homem olha uma monta-
nha e calcula quantos milhões de toneladas de cassiterita, bauxita, ouro ali pode
ter. Enquanto meu pai, meu avô, meus primos, olham aquela montanha e vêem
o humor da montanha e vêem se ela está triste, feliz ou ameaçadora, e fazem
cerimônia para a montanha, cantam para ela, cantam para o rio ... mas o cientista
olha o rio e calcula quantos megawatts ele vai produzir construindo uma hidre-
létrica, uma barragem.
Nós acampamos no mato, e ficamos esperando o vento nas folhas das árvo-
res, para ver se ele ensina uma cantiga nova, um canto cerimonial novo, se ele
ensina, e você ouve, você repete muitas vezes esse canto, até você aprender.
E depois você mostra esse canto para os seus parentes, para ver se ele é reconhe-
cido, se ele é verdadeiro. Se ele é verdadeiro ele passa a fazer parte do acervo
dos nossos cantos. Mas um engenheiro florestal olha a floresta e calcula quantos
milhares de metros cúbicos de madeira ele pode ter. Ali não tem música, a mon-
tanh~ não tem humor, e o rio não tem nome. É tudo coisa. Essa mesma cultura,
essa clesma tradição, que transforma a natureza em coisa, ela transforma os even-
ros em datas, tem antes e depois. Data tudo, tem velho e tem novo. Velho geral-
mente é algo que você joga fora, descarta, o novo é algo que você e~plora, usa .
. "ão há reverência, não existe o sentido das coisas sagradas. Eu fiquei com me-
do. Eu fiquei pensando: e agora?
Parecia que eu estava vendo um grande granito parado na minha frente. Eu
não podia olhar. Fiquei muitos dias sem graça até que eu ganhei um sonho. Ga-
nhei um sonho desses que eu falei com vocês que não é só uma impressão de
estar vendo coisas dormindo. Mas para nós o sonho é um sonho de verdade,
um sonho verdadeiro, e tem sonho, sonho de verdade é quando você sente, co-
munica, recupera a memória da criação do mundo onde o fundamento da vida
e o sentido do caminho do homem no mundo é contado para você. Você toma,
aprende como se estivesse dentro de um rio. Este rio, você fica olhando ele, de-
pois você volta, aí você olha. Não é o mesmo rio que você está vendo, mas é
o mesmo. Porque se você fica olhando o rio, a alma dele está correndo, passan-
do. passando ... mas o rio está ali. Então ele é sempre, ele não foi, é sempre. Não
existiu uma criação do mundo e acabou! Todo instante, todo momento, o tem-
po todo é a criação do mundo. Por isso que no sonho a gente entra dentro dele,
:iprende, alimenta o espírito. Esse sonho veio me mostrar que aquela caricatura
de poder que os homens estavam inventando aqui na terra é só uma simulação,
porque eu pude encontrar, andar junto com os meus parentes, meu irmão mais
elho, que na nossa língua original se chama Kiãnkumakiã. Este irmão mais ve-
que estava com a gente sempre, desde a fundação do mundo, só que não
Deus. E nós vimos os meninos, os rapazes andando num campo bonito, vasto.
ma relva baixinha e os rapazes traziam na mão esquerda feixes de varas, daque-

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las varas sem gomo, lisas, taboca de fazer flecha, mas na ponta não tinha lâmina,
na ponta tinha pendão assim igual ao trigo florando. Um grupo grande, incontá-
vel de rapazes e um guerreiro mais maduro, que estava de lado, só mostrando
urna parte do rosto, a vista apontando para o leste. Quando olhei assim eu vi
um grande lago, saindo quase da mesma altura da terra firme. Aí aqueles moços
foram andando para lá e, num gesto, eles se transportavam para outro lugar fir-
me, para a outra margem de um lago muito grande, que liga tudo, numa canoa
grande de luz, corno se fosse de luzes assim ... com gesto de vontade, só com
a vontade. Não tem foguete, míssil que faz isso, tecnologia que se inventa. E to-
do esse "futuro" já aconteceu na fundação do mundo. Os meus irmãos mais ve-
lhos já conhecem tudo isso. Então, de sonho é isso. É um caminho que só pode-
mos fazer dentro da tradição e aprender que além do nosso conhecimento res-
trito sobre urna ou outra coisa avançada para urna percepção que é integral, tu-
do está ligado, as coisas que têm existência física, elas foram todas fundadas a
partir da palavra que foi ordenando a criação do mundo, que quando nós narra-
mos as histórias antigas nós criamos o mundo de novo, limpamos o mufido.
Então, antes do mundo, existia não só a história dos espíritos, dos elemen-
tos, mas a história de todos os noss~s povos antigos que conseguiram, ao longo
dos tempos, manter esta memória da criação do mundo.
Existem milhões de toneladas de livros, arquivos, acervos, museus guardando
uma chamada memória da humanidade. E que humanidade é essa que precisa
depositar sua memória nos museus, nos caixotes? Ela não sabe sonhar mais. En-
tão ela precisa guardar depressa as anotações dessa memória. Como estas duas
memórias se juntam, ou não se juntam? É muito importante para nossos povos
tradicionais que ainda guardam esta memória, herdeiros dessa tradição, cada vez
mais restrita no planeta, ilhados em alguns cantinhos do Pacífico, da Ásia, da África,
aqui da América, num mundo cada vez mais mudado pelo homem, onde o dia
e a noite já não têm mais fronteira, porque inventaram artifícios para ele rodar
direto - dia-noite-dia. Quando o homem rompe a separação entre o dia e a noi-
te, como ele vai sonhar? Quando os homens trabalham de dia, de noite, de dia,
de noite, qualquer hora, eles estão se parecendo muito com a criação dos ho-
mens mesmo, que são as máquinas, mas muito pouco parecido com o criador
do homem que é o espírito.
Para estes pequeninos grupos humanos, nossas tribos, que ainda guardam
esta herança de antiguidade, esta maneira de estar no mundo, é muito importan-
te que essa humanidade que está cada vez mais ocidental, civilizada e tecnológi-
ca, lembre, ela também, dessa memória comum que os humanos têm da criação
do mundo, e que consigam dar uma medida para sua história, para sua história
que está guardada, registrada nos livros, nos museus, nas datas, porque, se essa
sociedade se reportar a uma memória, nós podemos ter alguma chance. Senão,
nós vamos assistir à contagem regressiva dessa memória no planeta, até que só
reste a história. E, entre a história e a memória, eu quero ficar com a memória.

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