A FENOMENOLOGIA DO ÉTHOS: INTUIÇÕES ÉTICAS A PARTIR DA OBRA DE LIMA VAZ - Ricardo Perin

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO OESTE DO PARANÁ

UNIOESTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

RICARDO JOSÉ PERIN

A FENOMENOLOGIA DO ÉTHOS:
INTUIÇÕES ÉTICAS A PARTIR DA OBRA DE LIMA VAZ

TOLEDO, PR

2022
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RICARDO JOSÉ PERIN

A FENOMENOLOGIA DO ÉTHOS:
INTUIÇÕES ÉTICAS A PARTIR DA OBRA DE LIMA VAZ

Defesa final relativa à Dissertação


apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Filosofia do Centro
de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Estadual do Oeste do
Paraná para a obtenção do título de
Mestre em Filosofia.

Área de concentração: Filosofia


Moderna e Contemporânea.

Linha de pesquisa: Metafísica e


Conhecimento

Orientador: Prof. Dr. Claudinei


Aparecido de Freitas da Silva

TOLEDO, PR

2022

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Ficha de identificação da obra elaborada através do Formulário de Geração Automática do
Sistema de Bibliotecas daUnioeste.

Perin, Ricardo José


A fenomenologia do éthos: intuições éticas a partir da
obra de Lima Vaz / Ricardo José Perin; orientador Claudinei
Aparecido de Freitas da Silva; coorientador Libanio Cardoso
Neto. -- Toledo, 2022.
134 p.

Dissertação (Mestrado Acadêmico Campus de Toledo) --


Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Centro de Ciências
Humanas e Sociais, Programa de Pós-Graduação em Filosofia,
2022.

1. Lima Vaz. 2. Fenomenologia. 3. Éthos. 4. Psicanálise.


I. Silva, Claudinei Aparecido de Freitas da, orient. II.
Neto, Libanio Cardoso , coorient. III. Título.

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TERMO DE APROVAÇÃO

RICARDO JOSÉ PERIN

A fenomenologia do éthos: intuições éticas a partir da obra de Lima Vaz

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia em cumprimento total aos
requisitos para obtenção do título de Mestre em
Filosofia, área de concentração Filosofia Moderna e
Contemporânea, linha de pesquisa Metafísica e
Conhecimento, APROVADO(A) pela seguinte banca
examinadora:

Claudinei Aparecido de Freitas da Silva (Orientador)


Universidade Estadual do Oeste do Paraná -
Campus de Toledo (UNIOESTE)

Marcelo Fabri
Universidade Federal de Santa Maria (UFMS)

Tarcílio Ciotta
GT. Hegel / ANPOF

Toledo, PR, 20 de outubro de 2022

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DECLARAÇÃO DE AUTORIA TEXTUAL E DE INEXISTÊNCIA DE PLÁGIO

Eu, RICARDO JOSÉ PERIN, pós-graduando do PPGFil da Unioeste, Campus


de Toledo, declaro que este texto/trabalho final de dissertação é de minha
autoria e não contém plágio, estando claramente indicadas e referenciadas
todas as citações diretas e indiretas nele contidas. Estou ciente de que o
envio de texto/trabalho elaborado por outrem e também o uso de paráfrase e
a reprodução conceitual constituem prática ilegal de apropriação intelectual e,
como tal, estão sujeitos às penalidades previstas na Universidade e às
demais sanções da legislação em vigor.

Toledo, PR, 20 de outubro de 2022

_____________________________________
Assinatura

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Trabalho dedicado à memória do
mestre Henrique Cláudio de Lima
Vaz e à de Iolanda Anna Pagot
Perin, minha mãe.

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AGRADECIMENTOS

Entre os agradecimentos, merece digna de atenção a presença inicial


em minha formação filosófica do convívio intelectual com Henrique Cláudio de
Lima Vaz.

Gratidão também pela partilha intelectual e orientação ao Claudinei


Aparecido de Freitas da Silva e Libanio Cardoso Neto.

Da mesma forma, estendo o gesto de gratidão aos colegas membros da


banca que me deram a honra de serem meus primeiros leitores, professores
doutores Marcelo Fabri e Tarcilio Ciotta.

E, por fim, à minha família, à Tania Amélia Mello Perin, minha esposa,
aos meus filhos Lucas, Fernando e Ana que não mediram maiores esforços
para acompanhar os longos anos de reflexão e estudos, inclusive, na Europa.

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Toda cultura, sendo histórica, é
essencialmente ética e é no éthos
que ela encontra a unidade mais alta
das suas manifestações e as razões
mais decisivas para resistir à usura
do tempo. O éthos, em suma, é a
alma de uma cultura viva.

Henrique Cláudio de Lima Vaz,


Ética e civilização, p. 9

Comecemos notando isso que


torna, em suma, esse assunto
eminentemente acessível, e até
mesmo tentador – não há ninguém
na psicanálise, creio eu, que não
tenha sido tentado a tratar do
assunto de uma ética, e não fui eu
quem criou o termo. É igualmente
impossível desconhecer que
estamos mergulhados nos
problemas morais propriamente
ditos

Lacan, in A ética da psicanálise

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RESUMO

PERIN, Ricardo José. A fenomenologia do éthos: intuições éticas a partir da


obra de Lima Vaz. 2022, 134p. Dissertação (Mestrado em Filosofia) –
Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo, PR, 2022.

RESUMO

A pesquisa circunscreve, à luz da obra de Henrique Cláudio de Lima Vaz (1921-


2002), influente pensador jesuíta, o tema da fenomenologia do éthos. Para tanto, o
estudo se ocupa, prioritariamente, em reconstituir algumas importantes etapas
reflexivas desse eixo temático sobre uma perspectiva multidisciplinar, em especial,
para com a Psicanálise. A primeira etapa consiste em precisar o que, em termos
vazianos, se entende por fenomenologia a fim de melhor situar a dimensão do éthos
como transcrição a partir da noção grega de physis na antiguidade clássica. A
segunda objetiva reconstituir, desde essa transcrição, a tríplice figuração mútua entre
o indivíduo, o conflito e a cultura. A terceira é a compreensão antropológica, no curso
desse evento na modernidade e, com ela, um diagnóstico da consciência moral em
estado de crise. O último grande momento propõe estabelecer o vínculo entre Éthos
e Psicanálise por meio de três intuições éticas fundamentais que se espelham nesse
quadro mais amplo: i) a inscrição capilar do psíquico como esfera primordial; ii) a
articulação entre Ética e Psicanálise no seio da experiência clínica e iii) o retorno ao
éthos infantil como dimensão arqueológica em meio às novas configurações da
formação da personalidade na virada do novo século. Esse ponto culminante da
investigação aqui conduzida se volta, sobremaneira, para todo um trabalho
psicanalítico-hermenêutico, de preocupação evidentemente ética, no sentido de
melhor demarcar as origens do sujeito psíquico. A pesquisa, por fim, advoga a tese
de que a obra vaziana instaura um movimento dialético, fenomenológico por
definição, capaz não só de dialogar com a Psicanálise, mas de realocar a gênese do
éthos como pano de fundo sem o qual não há uma ética do vivido capaz de
responder às demandas contemporâneas, isto é, aos desafios impostos por uma
sociedade cada vez mais plural e desigual.

PALAVRAS-CHAVE: Lima Vaz. Fenomenologia. Éthos. Psicanálise. Éthos infantil.

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ABSTRACT

PERIN, Ricardo José. The phenomenology of the ethos: ethicals intuitions from the
Lima Vaz work. 2022, 134p. Dissertation (Masters in Philosophy) – State University of
Western Paraná, Toledo, PR, 2022.

The research circumscribes, in the light of the work of Henrique Cláudio de Lima Vaz
(1921-2002), an influential Jesuit thinker, the theme of the phenomenology of ethos.
To this end, the study is primarily concerned with reconstituting some important
reflective steps of this thematic axis from a multidisciplinary perspective, especially
towards Psychoanalysis. The first step consists in specifying what, in Lima Vaz's
terms, is understood by phenomenology in order to better situate the dimension of
ethos as a transcription from the Greek notion of physis in classical antiquity. The
second aims to reconstitute, from this transcription, the triple mutual figuration
between the individual, the conflict and the culture. The third is the anthropological
understanding, in the course of this event in modernity and, with it, a diagnosis of
moral conscience in a state of crisis. The last great moment proposes to establish the
link between Éthos and Psychoanalysis through three fundamental ethical intuitions
that are mirrored in this broader picture: i) the capillary inscription of the psychic as a
primordial sphere; ii) the articulation between Ethics and Psychoanalysis within the
clinical experience and iii) the return to the infantile ethos as an archaeological
dimension in the midst of the new configurations of personality formation at the turn of
the new century. This culmination of the investigation carried out here turns, above
all, to a whole psychoanalytic-hermeneutic work, of evidently ethical concern, in the
sense of better demarcating the origins of the psychic subject. Finally, the research
advocates the thesis that the work of Lima Vaz establishes a dialectical movement,
phenomenological by definition, capable not only of dialoguing with Psychoanalysis,
but also of relocating the genesis of ethos as a background without which there is no
an ethics of living capable of responding to contemporary demands, that is, to the
challenges imposed by an increasingly plural and unequal society.

KEYWORDS: Lima Vaz. Phenomenology. Ethos. Psychoanalysis. Infantile ethos.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

1. FENOMENOLOGIA DO ÉTHOS (I)

1.1. O sentido da fenomenologia

1.2. Physis e éthos (ἔθος)

1.3. Indivíduo, conflito e cultura

2. FENOMENOLOGIA DO ÉTHOS (II)

2.1. Ética e Antropologia

2.2. Ética e razão moderna

2.3. Consciência moral e crise

3. ÉTHOS E PSICANÁLISE

3.1. Intuições éticas (I): A esfera do psíquico

3.2. Intuições éticas (II): Ética e Psicanálise

3.3. Intuições éticas (III): Na trilha do éthos infantil

CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS

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INTRODUÇÃO

Trajetória

Ao compor a Introdução aqui em duas partes correlatas, pretendo, nesse


primeiro momento, reconstituir uma biografia e, portanto, falar na primeira
pessoa o que, sem dúvida, me permite evocar a história de um percurso de
formação. Trata-se de esboçar uma trajetória, uma espécie de itinerário
biográfico sobre a origem do interesse despertado por um tema em curso há
um bom tempo e que, em parte, se materializa agora nessa pesquisa que alia
a Filosofia com a Psicologia. À luz, portanto, dessa articulação, o foco
temático é pensar o sentido originário do éthos, em sua ressonância
heidegeriana, sob a perspectiva ética de Lima Vaz de um éthos vivido. Para
tanto, como, enfim, se estabelece esse percurso?
Partirei da minha posição de psicólogo e de professor numa direção
regressiva para, em uma perspectiva temporal, expor melhor um
entrelaçamento entre passado, presente e futuro. Por meio desse percurso
almejo traçar minimamente o delineamento da constituição da força
motivadora, sempre presente na busca de cada ser humano, a partir das
situações concretas e que definem, pois, a estrutura de uma formação. Ora,
essa estruturação formativa nem sempre ocorre seguindo um plano linear,
retilíneo ou propriamente consciente, uma vez que nos constituímos como
seres perpassados pelo desejo. É, pois, levando em conta uma ocasião como
essa que acredito ser possível adentrar ligeiramente no desafio hermenêutico,
pois, se cada um de nós é portador de sua mensagem, o gesto de debruçar-
se sobre o passado no intuito de interpretar os fatos históricos que nos

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impelem a realizar tal desafio, permite-nos, inclusive, uma maior
compreensão do momento presente.
A minha primeira experiência laboral ocorreu por volta dos treze anos,
quando me tornei aprendiz de relojoeiro. Aos quinze, já consertava relógios.
Esse período marca, portanto, o início mesmo do debruçar-se sobre a
importância do movimento do tempo, seja esse sob o ponto de vista objetivo,
seja sob a perspectiva da constituição da subjetividade. O contato com a
dinâmica de funcionamento do mecanismo instrumental que registra o tempo
possibilitou-me a primeira experiência com a dimensão da precisão. A palavra
precisão, aqui, possui um sentido duplo. Inicialmente, o de exatidão,
pontualidade. Há, em função disso, um jogo de palavras que sempre me
acompanhou, mas que só tomei conhecimento, de fato, por ser relojoeiro de
tal maneira que só hoje consigo atinar a sabedoria nas suas entranhas:
“relógio que atrasa não adianta”. O segundo sentido de precisão é o de coisa
útil, no sentido de necessidade mesma ao homem. No caso, trata-se da
utilidade desse instrumento no intuito de marcar a hora certa, o tempo correto,
pois, do contrário, não tem serventia alguma para a orientação prática
humana. Atualmente sei, como psicólogo, sobre o quanto a existência é um
movimento no tempo e do tempo e que, a forma de cada um situar-se e
orientar-se por ele, pode vir engendrar uma personalidade cujos conflitos
podem determinar as mais diferentes psicopatologias.
Retornando às experiências com a máquina do tempo, devo dizer que,
conjuntamente com a incipiente prática profissional, tomei contato com a
teoria do funcionamento da mecânica, através da própria doutrina mecânica
de Newton, nas aulas de Física do primeiro ano do ensino médio. Por esse
meio tive, então, a preciosa oportunidade de vislumbrar a articulação entre a
teoria e a prática. Ou seja: o conhecimento científico me permitiu entender
melhor, na prática objetiva, que o segredo que habitava aquela sequência de
engrenagens que produzia um coração oscilatório e capaz de precisão, era, a
bem da verdade, fruto de um cálculo preciso. Tal vislumbre ou, se quiser, tal
ver mecânico-fenomenológico que se articulara teórico e praticamente me
permitiu perceber o quanto isso era fundamental no processo da

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aprendizagem, sendo, pois, entre tantas, uma das mais caras contribuições
que passaram a orientar a minha prática futura de professor. Não deixa
igualmente de ser relevante enfatizar que, para aprender a profissão de
relojoeiro, se tornou imprescindível uma observação mais acurada da ação de
outra pessoa que possuía experiência e conhecimento acerca da matéria.
Esse fator só vem corroborar a importância da dimensão intersubjetiva
inalienável presente no processo de aprendizagem como fonte de imitação.
Assim, essa dupla via de interesses conjugados (como relojoeiro e aluno
motivado pelas aulas de Física) fez com que o meu professor de Física, José
Zanchettin, viesse me convidar para substituí-lo nas aulas do primeiro
científico noturno. Desse modo, em 01 de setembro de 1973, comecei minha
atividade de professor na área, tendo apenas concluído o ensino médio. Essa
incipiente, mas rica experiência de professor de Física, formou o amálgama
propício para a escolha do curso de Engenharia Civil. Em 1974, ingressei no
curso de Engenharia Civil da UEM e, com isso, pude adentrar, mais
profundamente, no universo científico-cultural da objetividade, da precisão e
do cálculo.
Em Maringá, Paraná, tive, então, a oportunidade de prosseguir no
magistério em uma escola de confissão católica enquanto cursava a
Engenharia. Nesse ambiente, um novo horizonte se abre, dessa vez, por meio
da religião num movimento que transcende, é claro, a dimensão da
objetividade. É o momento de uma profunda conversão em que se redefine a
subjetividade pelo viés da religiosidade o que provavelmente tenha sido o
momento de ressurgimento de valores motivados por uma forte educação
familiar religiosa. Nesse sentido vale arriscar afirmar que algumas pessoas
realizam a experiência da religião já nos primeiros meses de vida: isso leva a
crer, por exemplo, que no próprio leite materno vai se incorporando a semente
de toda experiência do sagrado. Ora, justo essa ideia, ao que me parece,
exprime a importância do vínculo materno na constituição das aspirações
(boulesis) futuras da criança, já que a mãe é a figura nuclear no sentido de
introduzir o ser humano na vivência amorosa que nos compromete com a

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alteridade. Para empregar aqui uma terminologia psicanalítica, trata-se do
processo de constituição do desejo.
Pois bem: é no curso deste movimento, por uma espécie de dialética
existencial objetiva-subjetiva em que se engendrara a perspectiva vocacional
religiosa, que eu decidi abandonar o curso de Engenharia Civil e optar pelo
ingresso na Companhia de Jesus, congregação dos jesuítas. Foi por meio
desse itinerário que se abriram as portas para o encontro com a Filosofia,
uma vez que ela é inerente à própria formação sacerdotal jesuítica. Foi, pois,
em meio a esse processo conversivo que a transição de uma perspectiva de
mundo centrada na objetividade para uma perspectiva em que o fluir da vida
se torna o verdadeiro objeto de observação (physis) se alicerça radicalmente.
Dizendo de outro modo, as certezas transmutam em possibilidades tais que
albergam o mais próprio do viver humano de cada sujeito, como diria Gilvan
Fogel lembrando Kierkegaard. Pois, como já disse o poeta: navegar é preciso;
ora, viver não é preciso.
Ao chegar a esse estágio, fui percebendo, aos poucos, que a
perspectiva cristã do mundo tem em si uma forma própria de viver a dimensão
da temporalidade. Trata-se, ali, de um tempo em que o presente nos
compromete com um modo de ser, remetendo-nos, pelo vínculo do amor, a
uma forma de relação com a alteridade, para, enfim, se engajar na construção
de um mundo comum só plenamente realizável num além. É o horizonte, por
assim dizer, escatológico. Dessa maneira, a perspectiva do fluir da vida cristã
engendra a realização de si, perpassada pela realização do outro e com o
outro, num compromisso mútuo de amor, cujo modelo está na relação
trinitária. Eis porque tal ótica abre a possibilidade de constituição de várias
formas de vínculos humanos. A vida religiosa vocacional se coloca de tal
forma, que a relação com a alteridade abre o horizonte último de uma vivência
amorosa muito peculiar, exigindo, aliás, um amor exclusivo, o celibato. Nessa
exclusividade, a possibilidade de vínculo amoroso com uma única pessoa é
transmutada para o vínculo com a humanidade, exigindo, de quem opta pela
vocação religiosa, uma dimensão sublimada da própria afetividade. Ora, pois,
a renúncia dessa possibilidade de realização humana exige, do vocacionado,

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um desafio bem característico, qual seja, que ele remeta para o fim dos
tempos uma certa completude de realização de sua existência.
De todo modo, o que me parece relevante registrar, sobretudo do ponto
de vista filosófico, é que essa minha trajetória, marcada pela formação
seminarística, toma corpo justo num momento realmente privilegiado. Quer
dizer, é a ocasião em que tive mais diretamente contato não só com a obra de
Henrique Cláudio de Lima Vaz, mas com ele próprio que fora, aliás, o meu
professor. Algumas memórias me vêm a partir dessa relação, ou melhor,
pode-se dizer, filiação intelectual a ponto de reconfigurar o meu percurso e
que, em larga medida, inflete nesse trabalho ora em curso.
Para tanto, eu gostaria de retomar alguns momentos de uma Entrevista
(PERIN, 2019) concedida recentemente onde justamente busco reconstituir,
em linhas gerais, essa impactante trajetória. A minha vida no seminário iniciou
em 1979, com os jesuítas, em Porto Alegre. Em 1982, fui para Belo Horizonte
para iniciar o curso de Filosofia junto ao Instituto Santo Inácio, instituição essa
em que se concentrou toda a formação acadêmica jesuítica no país. Como
requisito para fins de ingresso na Filosofia, havia um vestibular que constava
de uma avaliação escrita e de uma avaliação oral. Ora, o avaliador oral era
Lima Vaz. Foi este o motivo de meu primeiro encontro com ele. A Lima Vaz
coube a função de fazer a avaliação de todos os candidatos em
conhecimentos gerais. Começamos, enfim, a avaliação de um modo informal,
por meio de uma breve história de minha vida antes mesmo do ingresso nos
jesuítas. A partir disso, Lima Vaz decidiu que a avaliação versaria sobre
conteúdos referentes aos estudos em que eu já havia feito. Ele não fez
nenhuma pergunta; apenas conversamos sobre temas ligados à Física e ao
cálculo. Na medida em que a conversa fluía, fui percebendo a grandeza da
sabedoria daquela figura humana, aparentemente frágil em seu aspecto. Ele
falava de Galileu, de Newton, de Leibniz de Fourrie com tal propriedade que,
em alguns momentos, me produzia a sensação de ser um principiante. Foi
nesse momento que entendi o verdadeiro sentido do que significa ser filósofo.
Assim, uma vez ingresso no curso de Filosofia, tive, de fato, o privilégio
de ter Lima Vaz como professor de história da filosofia. Eis que as suas aulas

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permitiam fazer certa experiência de viagem no tempo. Ao falar sobre as
origens do pensamento grego como, por exemplo, o eidos platônico, o
professor produzia no ouvinte uma sensação de regressão, a ponto de fazer o
aluno imaginar-se um espectador dos jogos olímpicos gregos, para, enfim,
compreender melhor que sentido haveria ali proceder a tal retorno. Outro
traço marcante dessa convivência intelectual diz respeito a uma conversa
com Lima Vaz na condição de orientador de estudos. Ele dissera, em alto e
bom som, que para estudar Filosofia seria necessário saber grego.
Acompanhando, então, o seu dito, ele me estendeu uma cópia de uma
gramática grega, juntamente com um evangelho de Marcos no original.
Guardo com carinho o evangelho em grego, pois é uma lembrança viva do
Pe. Vaz. A ele, devo o pouco de experiencia de leitura com o grego que
adquiri.
Há, ainda, outro experimento intelectual que me parece digno de nota.
No seminário, tive a oportunidade de ler Erich Fromm, psicanalista vinculado
à Escola de Frankfurt. Da leitura de Fromm, fui remetido ao pensamento de
Herbert Marcuse, com quem Fromm rivalizava. A questão é que o
pensamento frankfurtiano abriu as portas para vislumbrar a articulação entre
Filosofia e Psicanálise, através da aliança entre a obra de Marx com o
pensamento freudiano. Essa ocasião também me propiciou a possibilidade de
ler o clássico de Martin Jay, La Imaginación Dialéctica. Isso, sem dúvida, me
permitiu vislumbrar uma primeira perspectiva da psicologia, uma ciência
capaz de ajudar a pensar os conflitos sociais.
Para não se alongar aqui, em demasia, em resumo, são essas as
memórias que guardo do breve, mas prazeroso convívio jesuítico e, em
particular, com Lima Vaz, já que saí do seminário em final de maio de 1982.
Ocorre que, após quase três anos e meio de vida religiosa percebi que não
daria conta de suportar o desafio posto quando ingressei no seminário. É o
momento de uma desconversão, mas, ao mesmo tempo, de uma nova
conversão. Desta experiência de compromisso com a alteridade,
proporcionada pela vida religiosa, brotou uma nova possibilidade de envio ao
acolhimento do outro, a Psicologia.

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Assim, em agosto de 1982, iniciei o curso de psicologia na UEM.
Retomei minha atividade de professor, no mesmo colégio católico em que
havia lecionado, mas, dessa feita, a partir de um horizonte voltado às ciências
humanas. Assim, juntamente com a equipe pedagógica, em 1984, decidimos
implantar as disciplinas de Sociologia e Filosofia, das quais atuei como
professor, provavelmente, sendo uma experiência pioneira à época.
Concluído, em 1988, o curso de Psicologia, me transladei para Toledo, minha
terra natal, iniciando a atividade docente na antiga Facitol, hoje, atual campus
da UNIOESTE.
Foi, nesse ano, já atuando na docência superior, que um novo e último
contato se estabeleceu com antigo mestre jesuíta. Cabe reportar que o meu
contato inicial com a obra de Lima Vaz se deu mediante a escuta e de alguns
textos. De todo modo, a presença mais significativa de seu pensamento
ocorreu através do livro Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura de que,
inclusive, abordarei bastante aqui no trabalho e discorrerei na ocasião mais
oportuna. Pois bem: em 1988, quando estive em Belo Horizonte para
participar de um congresso ocorreu o último encontro com o Pe. Vaz. À
época, então, fui agraciado, por ele, com o referido livro, que acabava de ser
publicado, acompanhado de uma carinhosa dedicatória.
A questão que me toca e, é claro, me é, especialmente, cara, é que,
anos depois, a presença da obra e pensamento de Lima Vaz ainda se fez
sentir não só em minha atividade de docência na universidade,
particularmente, no curso de Filosofia, mas em meu trabalho propriamente
clínico. É assim que, entre 1994 e 1996, realizei uma pós-graduação, na
UFPR, em Psicologia Clínica e Psicanálise. Para elaborar o trabalho de
conclusão escolhi o tema da Ética e Psicanálise. O conhecimento da obra de
Lima Vaz foi fundamental, pois me permitiu fazer justo essa articulação
multidisciplinar. Ou seja: foi a partir da leitura da fenomenologia do éthos,
desenvolvida por Lima Vaz, que a articulação com a psicanálise se efetivou
mais concretamente. A perspectiva do éthos designando a morada, a casa do
homem, permitiu fazer a aproximação com a psicanálise por intermédio do
dito de Freud, extraído do Uma dificuldade da Psicanalise, de que o ego não é

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dono nem da própria casa. Ora, pela ótica tal qual se vislumbra na
fenomenologia do éthos, o homem, através do seu agir, é desafiado a
dominar a physis para poder construir seu espaço próprio, a sua morada.
Assim, pois, o éthos brota desse agir constante, manifestando-se nos
costumes e nos hábitos. Isso diz respeito ao comportamento que resulta de
uma repetição constante dos mesmos atos, exigindo do homem um apropriar-
se de um modo de ser que o vincula com a alteridade e, portanto, o vincula ao
coletivo. Há, pois, uma circularidade dialética presente na relação entre o
coletivo e o individual, exigindo de cada indivíduo um movimento de
integração no coletivo para, enfim, constituir-se como personalidade ética.
Como é sabido, Freud apresenta duas formas de a conflitiva existência
humana estruturar o psiquismo. Isso significa que ambas as formas ocorrem
na dinâmica temporal de convívio com a alteridade. Freud faz isso
inicialmente já, em 1900, através da estrutura de inconsciente-pré-consciente-
consciente. A segunda, por volta de 1920, conhecida pela trilogia Id – Ego –
Superego. Por meio dessa estrutura, a dimensão conflitiva pulsional ocorre de
maneira intersubjetiva e intrapsíquica. Ou seja, a estruturação da
personalidade se constitui pela história dos conflitos na convivência com o
outro (intersubjetiva), bem como em um conflito no interior de si mesmo
(intrapsíquico), na medida em que, a partir do Id, vão se constituindo as
instâncias do ego e do superego, em um processo de desenvolvimento.
É no interior desse horizonte constitutivo que Freud faz emergir a
expressão de que o ego não é dono nem da sua própria casa. Podemos
considerar, de maneira abreviada, com o risco de comprometer a
profundidade da questão, que o processo de constituição de um indivíduo
ocorre no interior de uma coletividade, a família. É essa é o espaço primordial
desde onde emerge o indivíduo, ao mesmo tempo em que ele é lançado no
mundo circundante (Umwelt), cultural, permeado de costumes (ethos). O nó
da questão é que, para viver, em seu sentido mais pleno, o coexemplo, o
mamar, a total dependência do outro cria um vínculo propício para,
juntamente com a incorporação do alimento, incorporar valores; portanto,
costumes. Assim, por exemplo, para eliminar o alimento, aprendemos a

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maneira correta, a maneira costumeira, de usar o penico. Daí emerge a
expressão que transpõe o aprendizado do comportamento repetitivo, de
origem biológica, para o aprendizado do comportamento fundamentado nos
próprios costumes: “não vá mijar fora do penico”. O que significa dizer que
nosso agir (práxis) deve adequar-se ao convívio em comum, ou seja, integrar-
se aos costumes (éthos) através da incorporação de hábitos (éthos-hexis).
Trata-se de uma adequação ao mundo familiar, no qual fazemos a
emergência; emergência essa enquanto brotar, vir à tona, mas, também,
como contingência. Isso desdobra-se em uma dupla dimensão, ou seja, uma
de caráter consciente e outra inconsciente.
A dimensão consciente constitui a personalidade ética, o sujeito da
razão, pois por meio da deliberação e da escolha o indivíduo apropria-se
(hexis) de um hábito, integrando-o aos costumes e, possibilitando, dessa
forma, a manutenção da tradição. A dimensão inconsciente constitui o sujeito
psíquico, cindido pelo conflito existencial com a alteridade. Sabemos que
Freud apresentou a origem do inconsciente como fruto de um processo de
recalque, a partir de experiências dolorosas e desprazerosas, vividas em uma
situação de abuso. A vivência do abuso, aqui, deve ser compreendida como a
intromissão de um mundo adulto, já carregado de significados, do qual a
criança não tem capacidade de metabolizar. Ora, essa incapacidade de
metabolização dos significantes nos introduz na experiência de um estranho
que nos invade, abrindo a emergência do estranhamento e do inquietante. É o
angustiante nos invadindo, o Das Unheimlich freudiano. Esse, contudo,
corresponde ao mundo concreto e familiar que habita em cada um de nós
(éthos). Foi propriamente isso que levou Freud dizer que o ego não é dono
nem de sua própria casa. Quer dizer, essa é a experiência ética do sujeito
psíquico, introduzindo-o em uma cisão irrecuperável, ocasionada pelo
encontro com o desejo do outro e que nos introduz no desejo que nos habita,
incorporando um outro, transformado em um eu, ou melhor, em um superego
ou ideal de ego. Isso, enfim, nos transforma em um sujeito errante, tal qual
Édipo, tendo que ir ao encontro do seu destino.

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Ao trazer esse breve percurso teórico do tema que me ocupa procurei
explicitar minimamente de que maneira Lima Vaz, explícito ou implicitamente,
se faz ainda presente. É assim que, após a pós-graduação realizada na
UFPR, ainda me vejo diante do desafio de aprofundar tal temática, o que, logo
depois, de imediato, pude, a contento, prosseguir com os estudos, em Madri.
Lá realizei o curso de Fundamentos y Desarrollos Psicoanalíticos que me
permitiu a obtenção do título de Diploma de Estudios Avanzados, título esse
equivalente ao mestrado, que me concedeu a formação de pesquisador na
área de conhecimento de Personalidad, Evaluación y Tratamiento
Psicológico.

II

Estrutura do trabalho

Isso posto, a partir do até então percurso biográfico-intelectual recortado,


chega o momento de traçar, em linhas gerais, o espírito aqui do trabalho ou
mais propriamente a sua estrutura.
Sob esse prisma, alinhavarei um dos contributos mais marcantes da
obra de Henrique Cláudio de Lima Vaz como figura seminal na cena filosófica
nacional. Trata-se de refletir, mais profundamente, sobre aquilo que o próprio
autor caracteriza terminologicamente como fenomenologia do éthos.
Para tanto, no primeiro capítulo, inventariar-se-á essa questão condutora
buscando precisar conceitualmente o sentido do termo fenomenologia como
marca indelével desse empreendimento. O estudo aqui, em curso, advoga a
tese de que a acepção mais plena do éthos está condicionada à
compreensão daquele termo que passa, obviamente, por uma inspiração de
fundo hegeliana que o filósofo jesuíta espiritualmente se filia sem deixar, é
claro, de reconhecer outros referenciais significativos como o socrático-

21
platônico, Aristóteles e Sto. Tomás. Na sequência, tratar-se-á, pois, de
estabelecer qual a natureza ou essência última do éthos, ou seja, cumpre, em
termos hermenêuticos, melhor descrever a íntima relação entre physis e éthos
num diálogo intercalado com Aristóteles e Heidegger. Esse primeiro grande
tópico temático conclui ao avaliar, em tal percurso histórico, o registro de três
problemas intrinsecamente ligados: indivíduo, conflito e cultura.
Isso posto, o trabalho, num segundo momento, objetiva traçar uma linha
discursiva mais crítica, no interior desse programa fenomenológico próprio,
sem deixar, ao mesmo tempo, de ser propositiva. Inicialmente, se
reconstituirá alguns recortes em torno de uma questão particularmente cara a
Lima Vaz: o homem. Pretende-se, dentro desse escopo temático, interrogar o
homem como guardião do éthos, isto é, como aquele que faz a sua própria
morada. Trata-se da dimensão antropológica que sem a qual, reconhece Vaz,
não advém a Ética. Essa problemática anuncia outra questão fundamental no
interior da obra vaziana, qual seja, a inscrição da ética no contexto da razão
moderna tomada aqui num sentido mais amplo a ponto de suscitar o nosso
tempo a partir de várias perspectivas ou modelos éticos. O capítulo encerra
com um agudo diagnóstico ético: a crise da consciência moral. Lima Vaz
ambienta essa análise tecendo o que, no mundo moderno, acabou por
aprofundar uma crise moral sem precedentes na história. O que se assiste, na
modernidade, é uma exacerbação da atitude individualista concernente aos
critérios subjetivos do comportamento, mas que, simultaneamente, se sujeita
a exigências que lhe são objetivamente impostas.
O terceiro momento do trabalho se configura sob o horizonte do vínculo
estreito entre éthos e psicanálise. Esse panorama projeta importantes
intuições éticas sendo a primeira a trilha aberta por Lima Vaz orientada para
uma hermenêutica quanto à natureza última do psíquico em diferentes
correntes da Psicologia contemporânea e, em particular, da Psicanálise. Essa
última enseja uma percepção intuitiva fundamental que visa uma articulação
com a própria Ética perpassada pela experiência ou prática clínica. Tal
domínio da práxis se torna substancial na medida em que traz para a
discussão certa herança psicanalítica no que compete, do ponto de vista

22
ético, ao próprio ofício do analista. Nessa direção, uma nova senda também
se abre de maneira tematicamente propositiva: o éthos infantil. A atenção,
nesse último momento, se concentra em situar, ao menos, o vínculo
psicanalítico-fenomenológico entre essa forma primordial de éthos e o mundo
vivido. Trata-se de trazer à cena a figura da criança como agente no processo
de constituição ética ou, se quiser, de restituir a gênese mesma desse modus
operandi constitutivo do sujeito psíquico como dialeticamente éthos ou
morada frente aos desafios da contemporaneidade.
Por fim, a dissertação, dentro de limites aqui propostos, visa tão
somente perspectivar um pano de fundo que me tem levado, nos últimos
anos, a transitar entre diferentes abordagens, buscando justo encontrar um
elo que as convirjam sob certos aspectos sem comprometer, é claro, a
peculiaridade de cada uma delas. Isso explica a razão pela qual a pesquisa
pretende apenas ser um ensaio, ainda preliminar, um esboço provisório de
uma questão que se tornou especialmente cara a mim, fruto da experiência
clínica como psicólogo e da minha formação, durante certo período com a
Filosofia por meio da qual, inclusive, tive a honra e privilégio de ter Lima Vaz
como um dos primeiros mestres.

23
1. FENOMENOLOGIA DO ÉTHOS (I)

1.1. O sentido da fenomenologia

Antes de iniciar o presente estudo que tem como escopo nuclear a tese
de uma fenomenologia do éthos, convém explicitar, em linhas gerais, o que
Lima Vaz entende pelo termo fenomenologia. Parece-me instrutivo reportar,
ainda que sumariamente, que tal termo fixa, de maneira explícita, o seu lugar
no vocabulário filosófico com Hegel. É a Fenomenologia do Espírito1, de 1807,
que, pela primeira vez reivindica a tarefa de uma descrição do movimento
geral do Espírito Absoluto como presença viva na História. Ora, Lima Vaz se
coloca, em larga medida, como um herdeiro desse momento singular: ele
constrói o seu pensamento próprio embebido em fontes gregas, mas também
hegelianas. Ele incorpora, em seus escritos, não só o espírito, mas a letra
dessa inspiração emblematicamente filosófica. É evidente, como o leitor
poderá oportunamente aqui se certificar, que se Lima Vaz retorna ao
pensamento grego, no sentido ali de restituir um sentido do éthos, colocando-
se ainda como um leitor fervoroso dos clássicos até à tradição
fenomenológica que se institui a partir de Husserl, ele assim o faz tendo como
pano de fundo a obra de Hegel. Quer dizer: a sua interlocução com os
antigos, com os medievais e com os modernos que é travada, numa rara
erudição, contemporizada com autores como Husserl, Scheler, Heidegger,
Merleau-Ponty (para ficarmos no circuito fenomenológico) é mediada, sempre
que necessário, com Hegel. Então realmente parece razoável, ao se cunhar o
termo fenomenologia e toda a configuração polissêmica que esse estabelece
em outros momentos da história da filosofia, não perder de vista essa
1
Como ver-se-á, mais adiante, Lima Vaz redige, especialmente, uma “Apresentação”
da obra publicada, no Brasil, já em sua quarta edição, de 2007, pelas mãos, em
particular, de Paulo Meneses. Esse importante extrato será significativo no tocante
a esse momento inicial aqui do capítulo na medida em que ele joga luz própria ao
conceito norteador que se matura cada vez mais ao longo de toda a pesquisa: a
cara noção de fenomenologia.
24
linhagem espiritual que, aqui e acolá, ao longo do texto, inspira, instiga,
convoca.
Dito isso, ao falar de éthos parece igualmente instrutivo considerar que o
pensador brasileiro tem em conta uma tarefa, um problema a ser posto,
melhor refletido e que ocupara, recorrentemente, o centro de suas atenções
mais imediatas. Não se trata, pois, de um estado de interrogação menor,
periférico ou meramente cosmético. Ele imprime um movimento, um estilo
peculiar, dá viva voz, uma voz, por vezes, inquietante, mas precisa o
suficiente no sentido de formular, sem deixar de revisitar a tradição, uma
posição teórica própria. Ele pretende elaborar uma fenomenologia do éthos. E
é essa fenomenologia o lugar privilegiado de fala que terá muitos ecos,
ressonâncias ou intuições, por assim dizer.
Tal como o seu mestre Hegel, Lima Vaz é um pensador sistemático.
Esse é outro aspecto que não passa despercebido em seus escritos. Nosso
filósofo, aqui em estudo, também pensa os seus problemas no interior de um
sistema. Trata-se de uma preocupação não só metodológica, mas teórica.
Isso tudo sem deixar de acenar ao leitor a direção de uma práxis; práxis essa
meditada sem dúvida, mas intimamente aliada à reflexão.
É com essa perspectiva de leitura mais ampla, complexa por sinal e, não
raras vezes, restrita, que o trabalho aqui se detém na tentativa de um esforço
mínimo que busca ser o mais fiel possível à intenção de um mestre que, a
todo tempo, guia, ensina, indica.
Esse reconhecimento nos devolve à questão de início: o sentido da
fenomenologia. Afinal, essa unidade entre estilo e método é o que caracteriza
mais propriamente a fenomenologia no sentido hegelianamente importado por
Lima Vaz. Não há como falar em éthos sem, antes, compreender bem o
estatuto fenomenológico a partir do qual o éthos, em sentido próprio, é
radicalmente interrogado. Essa clareza primeira se traduz, aqui, como o
grande pórtico de entrada no tema. A fenomenologia é o caminho, um
movimento que nos leva ao éthos, nos conduz a ele. Mais que um simples
instrumento metódico, no sentido moderno utilitarista da palavra, a
fenomenologia se torna o processo incessante, o devir mesmo do éthos em

25
sua significação mais primordial. Essa lição de fundo, Lima Vaz recolhe de
Hegel, ao comentar o sentido e alcance da Fenomenologia do Espírito como
sendo, sobretudo,

[...] a descrição de um caminho que pode ser levado a cabo


por quem chegou ao seu termo e é capaz de rememorar os
passos percorridos [...]. Esse caminho é um caminho de
experiências e o fio que as une é o próprio discurso dialético
que mostra a necessidade de se passar de uma estação a
outra, até que o fim se alcance no desvelamento total do
sentido do caminho ou na recuperação dos seus passos na
articulação de um saber que o funda e justifica (LIMA VAZ,
2007, p. 13).

Lima Vaz descreve a Fenomenologia como expressão de um caminho;


caminho esse de experiências que são tecidas pelo fio da dialética. Assim, o
desvelamento total do acontecimento, o aparecer pleno do sentido perseguido
ao longo desse caminho é imanente a esse mesmo caminho. Ora, parece que
a melhor apresentação do que é a fenomenologia no sentido em que aqui
busca se reconstituir, na obra mesma de Lima Vaz, preserva muito dessa
exposição que o próprio autor acima do extrato faz do livro de Hegel. Para
qualquer leitor interessado nos escritos do pensador jesuíta, não há como
reconstituí-la sem esse pano de fundo que, por vezes, explícita ou
implicitamente, se torna um vetor decisivo do ponto de vista hermenêutico.
Para tanto, voltemos a esse luminoso extrato textual. Escreve Lima Vaz
(2007, p. 14):

Com a Fenomenologia do Espírito Hegel pretende situar-se


para além dos termos da aporia kantiana, designando-a como
momento abstrato de um processo histórico-dialético
desencadeado pela própria situação de um sujeito que é
fenômeno para si mesmo ou portador de uma ciência que
aparece a si mesma no próprio ato em que faz face ao
aparecimento de um objeto no horizonte do seu saber. Em
outras palavras, Hegel intenta mostrar que a fundamentação
absoluta do saber é resultado de uma gênese ou de uma
26
história cujas vicissitudes são assinaladas, no plano da
aparição ou do fenômeno ao qual tem acesso o olhar do
Filósofo (o para-nós na terminologia hegeliana) pelas
oposições sucessivas e dialeticamente articuladas entre a
certeza do sujeito e a verdade do objeto.

Lima Vaz reposiciona Hegel, agora, contra Kant. A Fenomenologia nada


mais é que a manifestação de um processo histórico-dialético que, aliás, é o
que funda o momento abstrato ou analítico da Crítica da Razão Pura. Por
isso, o sujeito, em termos hegelianos, é “fenômeno para si mesmo” à medida
que aparece no próprio ato face ao aparecimento do objeto. Nessa direção,
volta a observar, com acuidade, o mestre jesuíta:

A partir daí, o movimento dialético da Fenomenologia


prossegue como aprofundamento dessa situação histórico-
dialética de um sujeito que é fenómeno para si mesmo no
próprio ato em que constrói o saber de um objeto que aparece
no horizonte das suas experiências. Assim, Hegel transfere
para o próprio coração do sujeito – para o seu saber – a
condição de fenômeno que Kant cingira à esfera do objeto.
Essa é a originalidade da Fenomenologia e é nessa
perspectiva que ela pode ser apresentada como processo de
"formação" (cultura ou Bildung) do sujeito para a ciência. E
entende-se que a descrição desse processo deva referir-se
necessariamente às experiências significativas daquela
cultura que, segundo Hegel, fez da ciência ou da filosofia a
forma rectrix ou a enteléquia da sua história: a cultura do
Ocidente (LIMA VAZ, 2007, p. 15).

Acima, Lima Vaz, novamente, explicita o sentido e alcance da


Fenomenologia de Hegel. Não há como compreender o movimento
fenomenológico sem o concurso da situação de fato, da história como
processo de formação cultural. Nisso, como se vê, há um passo à frente dado
por Hegel em relação a Kant. Hegel reconfigura inteiramente a noção de
fenômeno repondo-a num sujeito imerso na história, embebido na cultura.
Como Lima Vaz (2007, p. 19) sintetiza, com primor, noutra passagem: “Hegel,
em suma, traduz em necessidade dialética a necessidade analítica com que

27
Kant unifica as categorias do Entendimento na unidade transcendental da
apercepção no Eu penso”. E complementa, a respeito da obra hegeliana:

Essa é a estrutura dialética fundamental que irá desdobrar-se


em formas cada vez mais amplas e complexas ao longo da
Fenomenologia, à medida em que a exposição que o sujeito
faz a si mesmo do seu caminho para a ciência incorpora – na
rememoração histórica e na necessidade dialética – novas
experiências (LIMA VAZ, 2007, p. 17).

Esse realce todo, nessa reconfiguração ou alargamento da noção de


fenômeno num movimento pós-kantiano, repõe o sujeito noutro discurso, pois,

O ponto de partida da Fenomenologia é dado pela forma mais


elementar que pode assumir o problema da inadequação da
certeza do sujeito cognoscente e da verdade do objeto
conhecido. Esse problema surge da própria situação do
sujeito cognoscente enquanto sujeito consciente. Ou seja,
surge do fato de que a certeza do sujeito de possuir a
verdade do objeto é, por sua vez, objeto de uma experiência
na qual o sujeito aparece a si mesmo como instaurador e
portador da verdade do objeto. O lugar da verdade do objeto
passa a ser o discurso do sujeito que é também o lugar do
automanifestar-se ou do auto-reconhecer-se – da experiência,
em suma – do próprio sujeito (LIMA VAZ, 2007, p. 16-17).

Isso anuncia outra figura, digna de atenção, no cenário fenomenológico


hegeliano e que terá fortes ressonâncias na obra de Lima Vaz: a problemática
do reconhecimento ou, se quiser, da intersubjetividade cuja narrativa é
cunhada pelo próprio Vaz sob a forma de uma parábola exemplar. Trata-se,
justo da dialética entre o senhor e o servo como uma das passagens mais
emblemáticas do livro de Hegel que, aliás, merecera, da parte do pensador
brasileiro, um estudo, à parte2. Como esse último anota:

Com a passagem da dialética do desejo para a dialética do


reconhecimento o movimento da Fenomenologia encontra

2
Trata-se do seguinte texto: VAZ, H. C.L. “Senhor e escravo: uma parábola da
filosofia ocidental”. In: Síntese-Nova Fase, n° 21, jan./abr. 1981, p. 7-29.

28
definitivamente a direção do roteiro que Hegel traçará para
essa sucessão de experiências que devem assinalar os
passos do homem ocidental no seu caminho histórico e
dialético para cumprir a injunção de pensar o seu tempo na
hora pós-revolucionária, ou para justificar o destino da sua
civilização como civilização da Razão. Com efeito, o que
aparece agora no horizonte do caminho para a ciência são as
estruturas da intersubjetividade ou é o próprio mundo humano
como lugar privilegiado das experiências mais significativas
que assinalam o itinerário da Fenomenologia (2007, p. 22).

Ao trazer para o debate a questão do reconhecimento, Lima Vaz situa a


Fenomenologia de Hegel como um ponto de inflexão radical no pensamento
moderno à medida que a obra traz à baila um tema absolutamente caro e que
terá, conforme dito, ressonâncias éticas decisivas na própria proposição
vaziana de uma fenomenologia do éthos. Como subscreve o autor brasileiro:
“o implícito hegeliano sobre o qual se apoia a dialética do Senhorio e da
Servidão deixa-se entrever, assim como sendo o problema da racionalidade
do éthos” (2007, p. 24).
Isso posto, em que pese a longa data que o conceito de fenomenologia
se imanta filosoficamente, em contextos e conotações diferentes, o que Lima
Vaz vai se apropriar de Hegel é justo a atitude reflexiva ou o clima de
pensamento, a atmosfera mesma que marca essa noção de uma maneira
única e distintiva. É bem verdade que todas essas linhas textuais compiladas
até então não tem a pretensão de situar Lima Vaz apenas a título de
intérprete de Hegel. O que é preciso ver – em que pese o rigor e a exegese
requerida bem circunspecta acerca do filósofo alemão – é a intuição de base
que o pensador brasileiro imprimirá ao longo de seus escritos. Lima Vaz, ao
interpretar Hegel, pensa indubitavelmente com esse, mas para além desse. E
isso seja tanto por conta do contexto histórico peculiar diverso daquele,
quanto em função de um movimento próprio de análise que, em certa medida,
corrige, complementa àquele.
É com esse desígnio que se pode melhor circunscrever o título desse
primeiro tópico: do sentido da fenomenologia para a fenomenologia do
sentido. Ou seja: trata-se aqui de precisar, com o devido cuidado, fiel tanto à
29
letra quanto ao espírito vaziano, o sentido da fenomenologia aqui em curso
para então, num movimento seguinte, estabelecer a fenomenologia mesma
do sentido, o sentido de éthos que será doravante o desdobramento aqui da
investigação. Trata-se, enfim, de compreender como o éthos se instala
fenomenologicamente no seio de nossa civilização no Ocidente. O tratamento
dessa norteadora questão se torna fulcral quando se ocupa (e Lima Vaz
também faz isso, conforme veremos) com as questões éticas e seus
desdobramentos no horizonte de crise diagnosticado na cultura
contemporânea. Esses questionamentos só podem ser mobilizados tendo
como pano de fundo o sentido de éthos fenomenologicamente enunciado na
tradição. E, por isso, a alusão a autores como Aristóteles e Heidegger,
também interlocutores de Lima Vaz, se torna, particularmente, instrutiva
nesse ensaio aqui empreendido.
É o que se passa a trabalhar agora, na sequência.

1.2. Physis e éthos (ἔθος)

Ao definirmos o conceito vaziano de fenomenologia, em sua inspiração


espiritualmente hegeliana, preparamos o momento devido agora no sentido
de adentrar na natureza mesma do éthos (ἔθος) em sua figuração primordial.
No interior desse movimento discursivo, fenomenológico por excelência, é
preciso levar em conta aquilo que Lima Vaz insistentemente tem reportado
em sua obra, ou seja, a ideia de que o éthos se compreende pela via da
physis ou, mais propriamente, o ideal de uma transcrição da physis em éthos.
Essa é uma essencial inscrição desse primeiro movimento fenomenológico
cujo propósito tornará mais tarde possível a caracterização sistemática de
uma Ética que é um dos objetivos do autor em tela. A fenomenologia do éthos
é essa figuração de base ou se quiser, a expressão de um prolegômenos que
permite, enfim, inventariar uma nova Ética filosófica mais consistente e
propositiva.

30
Para que se consiga melhor acompanhar esse movimento de transcrição
fenomenológica em sua intenção última é preciso traçar, mesmo que
sumariamente, a noção grega de physis. O pesquisador brasileiro Murachco,
reconhecido helenista, abre uma pista interessante nesse sentido. Ele parte
da premissa de que “physis significa brotação, isto é, o ato dinâmico de
NASCER, de BROTAR” (MURACHCO, 1996, p. 14)3. Noutra linha não muito
diversa, o helenista alemão Werner Jaeger (2013, p. 8-9) já observara, por
exemplo, que

[...] os gregos tiveram o senso inato do que significa


‘natureza’. O conceito de natureza, elaborado por eles em
primeira mão, tem indubitável origem na sua constituição
espiritual. Muito antes de o espírito grego ter delineado essa
ideia, eles já consideravam as coisas do mundo numa
perspectiva tal que nenhuma delas lhes aparecia como parte
isolada do resto, mas sempre como um todo ordenado em
conexão viva, na e pela qual tudo ganhava posição e sentido.
Chamamos orgânica a essa concepção, porque nela todas as
partes são consideradas membros de um todo. A tendência
do espírito grego para a clara apreensão das leis do real,
tendência patente em todas as esferas da vida – pensamento,
linguagem, ação e todas as formas de arte –, radica-se nessa
concepção do ser como estrutura natural, amadurecida,
originária e orgânica.

Jaeger compreende, em suas linhas gerais, o espírito grego e sua


concepção de ύσις como um todo unitário, orgânico e originário. Ou, nas
palavras de Lima Vaz (1993, p. 211), a “cosmogonia pré-socrática explica a
physis a partir do desenvolvimento de uma arché primordial”. Essa arché se
torna, portanto, um traço característico no interior dessa cosmovisão
constituindo, por assim dizer, na pedra de toque a partir da qual o sentido
último do homem se compreende em seu agir também ético, como veremos
adiante. Pois bem: é, sem dúvida, Heidegger que leva às últimas
consequências essa posição originária do conceito ao considerar que “ύσις é
ἀλήθεια, desocultação” (2008, p. 314). O que isso significa propriamente?

3
Para uma melhor explicitação quanto à evolução do conceito grego de physis o
leitor é convidado a conferir dois importantes trabalhos de NADDAF (1992; 2006).
31
Heidegger tem em vista que com o advento da modernidade, sobretudo,
com a era da técnica, esse caráter originário da ύσις se perde
irremediavelmente. A ύσις passa a ser transcrita como natureza, isto é,
como objeto, artefato. É o ele subscreve em sua crítica:

Seja qual for a força de sustentação que se atribui à palavra


“natureza” nas diversas épocas da história do Ocidente, ela
sempre contém uma interpretação do ente no seu todo,
mesmo ali onde aparenta vir referida apenas como contra-
conceito. Em todas estas distinções (Natureza-
Sobrenatureza, Natureza-Arte, Natureza-História, Natureza-
Espírito), a natureza não é só um lado oposto, mas é
essencialmente à vista, na medida em que é sempre e
primeiramente contra ela que algo se distingue e na medida
em que, assim, o que é distinto se determina a partir dela.
(HEIDEGGER, 2008, p. 252-253).

Ora, essa determinação por assim dizer “ôntica” da ύσις, na era


moderna, perde justo a sua dimensão ontológica, isto é, essencial. Isso exige
um trabalho fenomenológico-hermenêutico a ser feito no intuito de restituir a
essência mesma da “ύσις como aquilo a que se deve um modo específico de
estar-em-si-mesmo do constante” (HEIDEGGER, 2008, p. 258). É nessa
esteira que se encaminha o comentário de Jose Lorite Mena (1983), de que,
em sua análise sobre a physis da Aristóteles (1999), por exemplo, Heidegger
não parte de um texto, mas de um modo de “construir”, na palavra, uma
“relação do Ser com o homem”, que viola o texto” (MENA, 1983, p. 5). A
questão é que Heidegger quer pensar o estatuto originário da ύσις no
sentido, reiteremos, de que essa seja “ἀλήθεια, desocultação”. Trata-se, aqui,
de se acercar de um modo sui generis da verdade compreendida não mais,
em acepção clássica, como adequação ou correspondência, mas abertura,
clareira. Heidegger, sob esse aspecto, além de incisivo, se mostra muito
sensível ao sentido pré-socrático da ύσις, em especial, em sua enunciação
heraclitiana. O princípio, para Heráclito, de que a ύσις gosta de se esconder
é vital, pois o que se reconhece aí é um movimento dialético mais harmônico
entre polos opostos. A ύσις se compreende, fenomenologicamente, como
um movimento duplo de ocultação e revelação.
32
O fator aqui determinante é de que o assentimento pré-lógico, entrevisto
pelos primeiros pensadores gregos, e, em particular Heráclito, indica,
sobremaneira, o processo de devir no qual quaisquer oposições se
esfumaçam ontologicamente. Se o mel é doce e amargo é porque ser e não
ser se ligam ao mesmo. No fundo, “os opostos são características do
mesmo”, como costuma interpretar Hegel (in HERÁCLITO, 1978, p. 93).
“Tudo tem, em todo tempo, o oposto em si”, inscreve Nietzsche (in
HERÁCLITO, 1978, p. 103). A tarefa, agora, consiste em reestabelecer esse
elo perdido, em linguagem heideggeriana, como “esquecimento das origens”
na tradição metafísica, ou seja, acercar de cada oposto como a contrapartida
secreta do outro. É preciso, para além de toda oposição lógica, acercar-se de
toda pré-disposição ontológica.

Sobre a ύσις se poderia ainda ir longe nas análises dada a riqueza, em


particular, do trabalho interpretativo de Heidegger4, mas, por ora, para os
propósitos da linha argumentativa aqui perseguida, esse breve acento parece
suficiente, ao menos no sentido de indicar a marca desse conceito primordial
que anuncia o fenômeno do éthos no âmbito da apropriação que, sobretudo,
Lima Vaz fará dele. Sendo assim, o que, afinal, permite associar, aqui, a
ύσις com o ἔθος?

Ora, o mesmo gênero de trabalho fenomenológico-hermenêutico até


então consagrado ao conceito de ύσις será também estendido, embora com
mais profundidade, ao de éthos. Quanto a isso, é o que o pensador espanhol
José Luis L. Aranguren atesta ao considerar que o princípio etimológico é
uma das vias para fundamentar a ética: “a etimologia nos devolve a força
elementar, gasta com o uso prolongado das palavras originais às quais é
necessário retornar para recuperar seu sentido autêntico, a arkhé”
(ARANGUREN, 1968, p. 22). Assim, o étimo éthos nos permite pensar a ética
em suas origens, em seu estatuto originariamente fundante. Como proposição
inicial, define Vázquez (1980, p. 14):

4
Ver, por exemplo, Heidegger (1979a; 1979b; 2007).
33
Ética vem do grego éthos, que significa analogamente "modo
de ser" ou "caráter" enquanto forma de vida também adquirida
ou conquistada pelo homem. Assim, portanto,
originariamente, éthos e mos, "caráter" e "costume",
assentam-se num modo de comportamento que não
corresponde a uma disposição natural, mas que é adquirido
ou conquistado por hábito. É precisamente esse caráter não
natural da maneira de ser do homem que, na Antiguidade, lhe
confere sua dimensão moral.

Ao retomar essa distinção já consagrada, pela tradição filosófica,


Vásquez não poderia ser mais que humiano5: é a força do hábito que orienta
esse sentido originário não só do éthos, mas do costume. Por outra parte, não
está ainda satisfatoriamente claro o que, em sentido originário, esse caráter
como éthos exprime ou desvela.

Trata-se, enfim, de melhor apreender, como escreve Jaeger (2013, p.


129), “a formação do éthos humano na sua totalidade” a ponto de reconhecer
que:

O lógos (λόγος) de Heráclito não é o pensamento


conceitual de Parmênides (νοεῖιν νόηµα), cuja lógica
puramente analítica exclui a representação figurada de
uma intimidade espiritual sem limites. O lógos de
Heráclito é um conhecimento de onde nascem, ao
mesmo tempo, “a palavra e a ação”. Se quisermos um
exemplo desse tipo particular de conhecimento, não
será no pensamento para o qual o Ser nunca pode não
ser que deveremos procurá-lo, mas antes na visão
profunda que se revela numa proposição como esta: O
éthos é o daímon do Homem (JAEGER, 2013, p. 225).

Pois bem, que “visão profunda” é essa? Em que sentido “o éthos é o


daímon do Homem”? Jaeger está comentando Heráclito e o sentido último do
logos (λόγος) como palavra e ação. Essa acepção não é apofântica,

5
O “hábito”, descreve Hume (1999, p. 67), “é, assim, o grande guia da vida humana
... Sem a influência do hábito seríamos inteiramente ignorantes de toda questão de
fato que extrapole o que está imediatamente presente à memória e aos sentidos”.
34
parmenídico, por princípio, mas originária. Tudo se passa como se esse
sentido não estritamente lógico do logos pousasse ou habitasse o éthos como
daímon (δαίμων). “Daímon é o deus na sua ação e significado voltados para o
Homem. Na Grécia, “o que importa, portanto”, volta a retratar Jaeger (2013, p.
1174), “é infundir à pólis um éthos bom e não a dotar de um amontoado cada
vez maior de leis especiais para cada setor da existência”.

Essa fina análise de Jaeger será perseguida, pois, por Heidegger em


seu comentário de Heráclito. Heidegger, por seu turno, retoma o espírito pré-
socrático de éthos em contraposição justo ao interesse imediato de erigir uma
Ética formulada, em sentido clássico, como conjunto de normas ou preceitos.
Como escreve o filósofo alemão:

ἔθος visa à atitude do homem, ao homem em sua atitude, em


seu portar-se como um ente diverso da natureza em sentido
estrito, da ύσις. Com isto, temos duas regiões fundamentais
que se mostram como temas centrais para a nossa
consideração. Uma vez que ύσις e ἔθος são tratados na
filosofia, eles são expressamente manifestos e discutidos no
λόγος. Como o λόγος, o falar sobre as coisas, é o que há de
mais primordial para tudo o que possui o caráter doutrinário, a
consideração do λόγος volta ao primeiro plano (HEIDEGGER,
2006, p. 43).

Heidegger reconhece que é no λόγος que a transcrição entrevista por


Lima Vaz se realiza profundamente. Heidegger, então, na mesma trilha que
Jaeger, se debruça sobre o caráter daimônico do ἔθος, ao observar que:

Em geral, costuma-se traduzir essa sentença da seguinte


forma: “Para o homem, o seu modo próprio de ser é seu
demônio”. Essa tradução pensa de modo moderno, mas não
grego, ἔθος significa morada, lugar onde morar. A palavra
nomeia o âmbito aberto, no qual mora o homem. O aberto de
sua morada permite a manifestação do que advém à essência
do homem, ou seja, o que, advindo, se estabelece em sua
proximidade. A morada do homem contém e guarda o
advento daquilo ao que pertence o homem em sua essência.

35
Segundo as palavras de Heráclito, isto é, o daímon (δαίμων),
o deus. A sentença diz: o homem, enquanto é homem, mora
nas cercanias de deus (HEIDEGGER, 2008, p. 367).

Ora, conforme vemos, Heidegger toma o daímon como o caráter divino,


extraordinário, ou seja, como aquilo que é preservado na dimensão mesma
do ἔθος como estranho, inaudito. Assim, a sentença sugere, pois, segundo
afirma o próprio Heráclito, que “a morada (ordinária) é para o homem o aberto
para a presentificação do deus (do ex-traordinário ou não-familiar)”
(HEIDEGGER, 2008, p. 369). Heidegger parece, a todo custo, mostrar que é
precisamente esse sentido originário que a tradição esquece em sua escalada
da razão no Ocidente à medida que, desde a tradição grega consumada em
Platão e Aristóteles, physis e éthos passaram a ser disciplinarmente
regionalizados. Essa regionalização fora sobrepesada por uma concepção de
λόγος em sentido apofântico, categorial. Por isso, a busca pelo originário, ou,
se quiser, pelo pré-categorial como instância decisiva desde onde parte toda
interpelação ou apelo. “Antes de falar” – avista Heidegger (2008, p. 332) – “o
homem precisa novamente deixar-se interpelar, correndo o risco de que, sob
esse apelo, ele pouco ou raramente tenha algo a dizer”. É no seio do
originário que podemos falar de physis e éthos sem a marca (como vício
lógico) de uma distinção que hierarquize ou sobreponha cada um deles. Toda
e qualquer diferença, ou se quiser, distinção, é dissolvida no âmbito do
aberto, no horizonte último da verdade do ser. Essa busca do originário deve
ser dada numa instância da qual toda oposição deve ser pensada não sob
uma afiada navalha de Ockam, de maneira disjuntiva ou polarizada.

Pois bem: Lima Vaz estenderá essa análise de que physis e éthos
constituem, em rigor, duas ordens de experiência correlatas. Ele também
compreende o que há de propositivo no contexto pré-socrático em pensar
physis e éthos numa aliança indissolúvel. O éthos como morada é tão
originário quanto a physis como elemento. Torna-se impossível pensar um
sem o outro uma vez que são co-partícipes desse protagonismo que enseja,
na primeira cultura do Ocidente, um só e mesmo processo ou movimento.

36
Fato é, por uma parte, como bem nota o pensador brasileiro, que a ideia de
physis como princípio de movimento é fundamental para pensar o processo
engendrador do éthos pela via da práxis. Isso revela sobre o quanto o homem
é perpassado por essa necessidade de construir o seu lugar próprio no
mundo dando origem à cultura. O que pressupõe, no domínio da práxis, uma
relação prioritária com o outro mediada pela linguagem (logos).

O que interessa particularmente aqui por compreender, em que pese a


consagrada tradição interpretativa helenista cortejada por Heidegger acerca
de physis e éthos, é o acento vaziano. Lima Vaz reconhece igualmente o
alcance dessas leituras todas; no entanto, ele não deixa de precisar uma
posição muito própria no contexto de sua fenomenologia. E não devemos
esquecer que essa fenomenologia se arvora desde outro contexto que é
eminentemente greco-hegeliano. O trabalho a partir de então se encaminha
no sentido de precisar que mesmo que a physis seja mistério e
deslumbramento originário (thauma), o éthos é esse âmbito existencial
primordial em que o homem se situa como morada, como o lugar desde onde
habita o mistério no qual o indivíduo, o conflito e a cultura se entrelaçam
inextrincavelmente.

1.3. Indivíduo, conflito e cultura

Eis porque, fechando aqui o capítulo inicial como uma espécie de


terraplanagem das incursões até então realizadas – uma espécie, portanto,
de trabalho arqueológico conceitual em torno da physis e do éthos – julgamos
também a importância que a obra viva de Lima Vaz parece projetar nesse
debate de fundo. Isso se torna mais claro em seu livro Escritos de Filosofia II,
Ética e Cultura.

Já no primeiro capítulo, o filósofo elabora, de uma maneira muito


peculiar, a noção de uma fenomenologia do éthos justamente no intuito de
acentuar o sentido e alcance do éthos sob essa circunscrição na aurora
37
grega. Para tanto, ele inicia o seu trabalho tecendo as seguintes
considerações:

Para Aristóteles seria insensato e mesmo ridículo (geloion)


querer demonstrar a existência do éthos, assim como é
ridículo querer demonstrar a existência da physis. Physis e
éthos são duas formas primeiras de manifestação do ser, ou
da sua presença, não sendo o éthos senão a transcrição da
physis na peculiaridade da praxis ou da ação humana e das
estruturas histórico-sociais que dela resultam. No éthos está
presente a razão profunda da physis que se manifesta no
finalismo do bem e, por outro lado, ele rompe a sucessão do
mesmo que caracteriza a physis como domínio da
necessidade, com o advento do diferente no espaço da
liberdade aberto pela praxis. Embora enquanto
autodeterminação da praxis o éthos se eleve sobre a physis,
ele reinstaura, de alguma maneira, a necessidade da
natureza ao fixar-se na constância do hábito (hexis) (LIMA
VAZ, 2000a, p. 11)6.

Como visto, Lima Vaz localiza a vertente desse debate, isto é, a matriz
conceptual primeira e o espaço teórico dos seus problemas fundamentais.
Pretender demonstrar physis e éthos, reconhecera o próprio Aristóteles, nada
mais soa do que uma profunda ignorância quanto aos procedimentos
analíticos. Por que, afinal? Porquê, por exemplo, a physis é o próprio
princípio, a arqué mesma da demonstração. O pensador brasileiro ainda
expõe a razão mais profunda pela qual physis e éthos são duas formas
primeiras de manifestação do ser: o éthos figura como transcrição da physis
por meio da práxis sócio-histórica. Isso, aliás, será muito relevante para o
nosso argumento ao longo aqui da pesquisa cujos capítulos posteriores
pretendemos explicitar melhor. Por ora, ainda devemos esclarecer um pouco
mais em que sentido se opera essa fenomenologia do éthos.

Para tanto, Lima Vaz aponta, via também um trabalho todo filológico-
hermenêutico, a raiz etimológica de éthos. Bem nota ele:

6
Outra análise digna de apreço é o livro de Vergbières (1998).
38
A primeira acepção de éthos (com eta inicial) designa a
morada do homem (e do animal em geral). O éthos é a casa
do homem. O homem habita a terra acolhendo-se ao recesso
seguro do éthos. Este sentido de um lugar de estada
permanente e habitual, de um abrigo protetor, constitui a raiz
semântica que dá origem à significação do éthos como
costume, esquema praxeológico durável, estilo de vida e
ação. A metáfora da morada e do abrigo indica justamente
que, a partir do éthos, o espaço do mundo torna-se habitável
para o homem. O domínio da physis ou o reino da
necessidade é rompido pela abertura do espaço humano do
éthos no qual irão inscrever-se os costumes, os hábitos, as
normas e os interditos, os valores e as ações. Por
conseguinte, o espaço do éthos enquanto espaço humano,
não é dado ao homem, mas por ele construído ou
incessantemente reconstruído. Nunca a casa do éthos está
pronta e acabada para o homem, e esse seu essencial
inacabamento é o signo de uma presença a um tempo
próxima e infinitamente distante, e que Platão designou como
a presença exigente do Bem, que está além de todo ser
(ousía) ou para além do que se mostra acabado e completo.
(LIMA VAZ, 2000a, p. 12-13).

Lima Vaz reconstitui, nessa passagem, uma primeira figura do éthos.


Nessa incursão, compreende-se melhor a íntima conexão entre éthos e
physis anteriormente entrevista nos subcapítulos atrás. Esse sentido do éthos
como abrigo, morada é a “transcrição” mesma da physis, como vimos. Mais:
essa estada humana como espaço originário não é algo dado, acabado, mas
por se fazer; por se construir, edificar. Isso nos remete inevitavelmente para
uma segunda acepção de éthos.

A segunda acepção de éthos (com épsilon inicial) diz respeito ao


comportamento resultante por força do hábito, do costume, de uma repetição
dos mesmos atos. Trata-se aí também da própria constituição da
personalidade ética do indivíduo como caráter e como hábito num contexto
histórico. Lima Vaz interpreta esse processo, em termos hegelianos:

A práxis, por sua vez, é mediadora entre os momentos


constitutivos do éthos como costume e hábito, num ir e vir que
39
se descreve exatamente como círculo dialético: a
universalidade abstrata do éthos como costume inscreve-se
na particularidade da práxis como vontade subjetiva, e é
universalidade concreta ou singularidade do sujeito ético no
éthos como hábito ou virtude. (LIMA VAZ, 2000a, p. 15; cf.
também nota 19).

Pedro Costa Rego sintetiza um interessante balanço de toda essa rede


teórico-conceitual até aqui em curso apoiando-se tanto em Heidegger quanto
em Lima Vaz. Esse último, em especial, se torna um interlocutor constante,
explícita ou implicitamente. Examina, com acuidade, Rego:

O primeiro éthos com que nos deparamos traz um eta inicial


(éthos) e significa, originalmente, casa, morada, lugar de
abrigo. Poetas, fisiólogos e historiadores gregos se serviram
abundantemente deste termo, para designar tanto a habitação
do homem quanto a do animal. Mas, enquanto habita, o
homem precisa cumprir sistemática e repetidamente certos
procedimentos. E, sobretudo, essa repetição ordenada e
metódica, e não apenas a construção de um teto, que torna
uma casa casa e o espaço do mundo efetivamente habitável.
Porque é, na verdade, na regularidade prática da repetição
que a espacialidade própria da morada se investe de seu
traço característico e distintivo: a familiaridade. A própria
construção – de casas, de locais de trabalho, de produtos ou
de ideias – depende, na verdade, de um habitar prévio do
homem e obedece às condições de determinadas
modalidades de repetição. Não é por outra razão, senão pelo
fato de que o homem habita repetindo, ou seja, familiariza-se,
acostuma-se a certas vias razoavelmente homogêneas, entre
si, de interpretação e de atuação concreta no campo dos
fenômenos reais [...]. Éthos, portanto, e mesmo desde
Hesíodo, é empregado também na acepção de "costume",
"modos" de um povo ou de um indivíduo, e não somente na
acepção de casa. (REGO, 1995, p. 181).

Costa Rego chama a atenção para a expansão semântica do vocábulo


éthos. Ele nota, por exemplo, que todo costume é regularidade praxiológica,
mas nem todo é repetição mecânica.

40
Éthos (épsilon) é mais do que o costume de acordar cedo,
tomar uma média e ler o jornal. É o costume de ser e de
pensar. É o modo acostumado de ler, avaliar e decidir
diariamente, sobre a verdade de todas as coisas. Fazer por
costume é sempre um já ter feito, um fazer por fazer
indiferente a si mesmo, que, quando se percebe, deixa pra lá,
porque não se reconhece. É o modo de atuar e a perspectiva
interpretativa de toda ação, que se recebe e se transmite sem
digestão. Por isso o costume se estrutura sempre, de início,
como herança, e se instala, segundo uma metáfora de
Kierkegaard, como um óculo encavalado sobre o nariz e
simplesmente esquecido. Mas porque, para o grego, nem
toda regularidade praxiológica é herança indigesta, nós
devemos acrescentar, aos dois éthos já vistos, como sugere o
Pe. Vaz e a título de uma caracterização mais completa da
eticidade como o modo de ser aberto do agir humano, um
outro vocábulo, que não tem a mesma raiz, mas fala do
mesmo espaço. Trata-se do nome héxis, que vem explicar,
sobre a eticidade, algo que faltava, a saber, o modo mais
sólido de vigência e perpetuação do éthos (épsilon), em que a
coesão de um conjunto de valores, seja no indivíduo, seja na
comunidade, não se sustenta na indiferença de um agir
meramente herdado, de um fazer por fazer, mas na
necessidade consciente e livremente instituída de fazer o
bem, segundo a imperiosidade de um dever-ser (REGO,
1995, p. 182-183).

Pedro Rego, nos lembra, na esteira da leitura vaziana o sentido último


da eticidade. Trata-se de uma significação que amplia a abertura da práxis
humana chamando a atenção da héxis como modo fundamental de
apropriação. Noutras palavras:

Hexis diz ação de possuir, ou a posse mesma. O radical é o


mesmo que o do verbo echo, que significa ter, possuir; mas é
também desse vocábulo que se serve o grego, a fim de
designar o hábito do corpo ou do espírito e, por extensão,
maneira de ser, estado, e ainda, temperamento, caráter. Mas
hexis não é um mero sinônimo de éthos; é o modo de agir e
conduzir-se. É um costume, mas do qual o homem se
apropria e se assenhora, a ponto de não mais reproduzi-lo
indiferentemente, mas sobre ele modelar seu caráter por
conquista e decisão próprias. Na hexis, a constância da práxis
é mais sólida porque encontra uma razão de ser. O Pe. Vaz
traduz o termo por hábito, e dele afirma; "héxis significa o
hábito como princípio de uma ação posta sob o senhorio do
41
agente, em que exprime a sua autarkeia, o seu domínio de si
mesmo, o seu bem"''. Aceitemos, portanto, essa tradução e
procuremos guardar a diferença fundamental entre este termo
e éthos (épsilon), entre o agir por mero costume e imitação da
tradição e o agir por necessidade conquistada (echein),
consciente e como imperativo de liberdade prática (REGO,
1995, p. 183).

Rego nos traz aqui o ponto chave. Ele acentua uma distinção capilar
entre héxis e éthos. Para tanto, ele volta a argumentar:

A Ética – se entendida como ciência não só teórica, mas


educadora e prescritiva – não pode inventar hábitos; pode
simplesmente justificar ou condenar costumes, porque estes
são, por constituição, anteriores àqueles. Justificar costumes
é sempre um esforço por "habitualizá-los". Nós podemos
dizer, neste sentido, que permanece o móbil e o objetivo
último da ciência do éthos, desde sua estruturação primeira
na Grécia aristotélica, uma habitualização do costume. Isso
significa: educadora ou coercitivamente, a Ética é uma
tentativa de justificar solidamente um complexo axiológico, os
modos e necessidades práticas vigentes, de modo que a
adoção universal de uma modalidade de práxis fique
autorizada e preservada, como lei de conduta (1995, p. 184).

O que é preciso levar em conta é o fato de que a Paidéia compreendida


aqui como processo formativo, educativo da conduta justa e virtuosa, assume
uma centralidade ímpar no pensamento político-filosófico da Grécia Clássica,
ainda mais quando se assiste uma instabilidade institucional no seio próprio
dessa cultura. Assim, quando o costume, digamos, não se “habitualiza”, "se
inicia”, como subscreve Rego, “o seu processo de desintegração, na falta da
argamassa, da força de coesão disso que o grego chama hexis" (1995, p.
184). É isso que assegura o “baluarte cultural e o patrimônio axiológico de
todo um povo” (1995, p. 185). A bem da verdade:

42
Não se trata, na paideia, de receitar um modo de fazer, mas
de ensinar a necessidade moral do bem [...]. Sabendo por que
repete – simplesmente porque é bom – o homem educado
escapa à pura mecanicidade do costume, ao mesmo tempo
em que dispensa todo tipo de coerção. Além disso, não exige
uma recompensa por sua ação, pois já encontrou nela o móbil
e o fim de todo empreendimento; a liberdade de agir segundo
o bem (REGO, 1995, p. 186)7.

Rego frisa que a paideia grega é bem mais que um método pedagógico
puramente instrumental costumeiro, mas uma orientação habitual para o agir
voltado à constituição da consciência moral. Nesse sentido,

[...] a conquista da liberdade tem mais a ver com a


"habitualização" ética (hexis) da práxis acostumada (isto é, a
transformação de éthos e hexis) do que com a invenção de
novas atividades. O novo não é o livre garantido. Ele só é livre
justamente quando guarda alguma coisa do velho, a saber, a
força de vigência habitual (e não costumeira) com que o
antepassado fez sua a práxis que herdou, e que agora
transmite como tarefa para seu descendente [...]. Por isso, a
conquista de hexis, a habitualização libertadora do costume,
deve ser entendida a partir da noção de renovação (REGO,
1995, p. 188).

Pois bem: "o que se renova, aqui, é mais a força de hexis do que o
conteúdo definido do costume [...] a renovação não supõe mudança, mas, ao
contrário, depende do contato intensivo e repetitivo com a tradição" (1995, p.
189). Vale reportar que, na Ética a Nicômaco (1996), Aristóteles já definia,
precisamente, a virtude de caráter como “uma disposição (hexis) envolvendo
escolha, consistente em um meio termo (que é relativo a nós), sendo este
determinado por um princípio racional, e por um princípio racional que o
homem de sabedoria prática determinaria (1996, II.6 1106b36-37).” Aqui,

7
“É a educação, portanto, que levanta a primeira voz contra o projeto anti-ético que
embalsama modos, costumes e interpretações fenomênicas que já não respiram
por si sós, e acaba impondo aos homens a vigência de leis morais mortas. Apontar
para a conquista de hexis e ensinar sua universalidade incondicional é uma tarefa
da educação” (REGO, 1995, p. 190).
43
como vemos, a virtude se define como uma hexis e uma hexis é uma
qualidade que diz respeito ao modo (bom ou mau) pelo qual agimos quando
somos afetados pelas pathés (1996, II.5 1105b25-26). A hexis se
compreende, portanto, como um traço disposicional estável, uma qualidade
duradoura e enraizada, em contraste com uma qualidade provisória e
maleável (ARISTÓTELES, 1985, 8b25-10a16). Agora, compreender ainda de
que maneira essa qualidade estável se engendra em nós, Aristóteles
considera que “a virtude de caráter surge como resultado do hábito (éthos)”
(1996, II.1 1103a16), no interior, é claro, dessa perspectiva héxica.

Pois bem: Lima Vaz (1993, p. 210) nos diz que a

Ética nascente assinala, desde este ponto de vista, o evento


decisivo na luta do homem grego com o Destino ou, o que é o
mesmo, na luta pelo reconhecimento de um espaço na
realidade onde possa exercer-se, para o bem e para o mal, a
soberania da sua liberdade ou da livre disposição de si
mesmo (ekoúsion).

Ele ainda escreve:

Trata-se de um estilo de educação pelo logos que, ao mesmo


tempo, recolhe e transforma profundamente a tradição da
paideía grega. Seu fundamento é, exatamente, o postulado
da estrutura racional do comportamento virtuoso e a
possibilidade de se transpor essa estrutura num discurso
demonstrativo-didático que receberá, finalmente, a
designação de “ciência ética” (ethiké episthéme), que, em
Sócrates, terá a forma dialógica, em Platão e Aristóteles, a
forma expositiva. O tema sofístico-socrático da ensinabilidade
da virtude (ei areté didaktón) que percorre e unifica a trama
dos primeiros Diálogos pode ser designado como o lugar de
nascimento da Ética. Mas a Ética só pode nascer se a areté
se demonstrar ensinável e se a posse da areté depender do
indivíduo (LIMA VAZ, 1993, p. 214).

44
Segundo Lima Vaz, Heidegger, na mesma linhagem que Nietzsche, se
insere numa só crítica a certo “moralismo” vigente que anuncia o advento da
Razão no domínio da práxis e que tem na figura de Sócrates, um de seus
ícones. Como o pensador jesuíta nota: “A crítica heideggeriana da Ética de
inspiração socrática e sua proposição de uma ‘Ética originária’ inserem-se
nessa corrente de pensamento que coloca sob suspeita a transposição
racional da práxis”8 (LIMA VAZ, 1993, p. 214). Embora Lima Vaz não se
indisponha ferrenhamente com Nietzsche e com Heidegger nesse quesito, e,
embora ainda considere a críticas desses autores como “instrutivas”, a sua
posição é, obviamente, fundacionista. O pensador brasileiro almeja fundar
uma Ética; ele quer pensar uma ciência da ética e, isso, sem deixar de
reconhecer a posição socrática como paradigmática na história da filosofia no
ocidente. Isso fica explícito, por exemplo, nessas linhas quando escreve:

A tradição espiritual fundada sobre a ideia de "homem


interior" no sentido socrático [...] começa, pois, a formar-se
quando se entrecruzam e se fundem a antiga tradição do
éthos grego e o novo ideal de cultura representado pelo logos
epistêmico. Tal entrecruzamento e fusão tem lugar no
ensinamento de Sócrates. Ele inaugura a ciência do éthos. A
violência da crítica de Nietzsche a essa aparição da Ética na
aurora da Geistesgeschichte do Ocidente atesta o infinito
alcance desse evento único. A partir de então, no itinerário
que conduz de Platão a Hegel, construir uma ciência do éthos
se apresenta como a mais alta aspiração da filosofia (LIMA
VAZ, 2000a, p. 60-61).

Lima Vaz admite que o homem interior socrático é um sujeito de uma


práxis ética guiada pela luz do logos. Nosso filósofo não abre mão do caráter
fundacional, logocêntrico desse gesto primordial tendo em vista sempre “a
práxis humana como matriz autônoma da inteligibilidade” (LIMA VAZ, 1993, p.
211). Isso é inegociável no contexto de sua reflexão ética.

8
Ver, p. ex., LIMA VAZ, 2000a, p. 61 e p. 108.
45
É sobre esse contexto ainda que é preciso ver que a circularidade
dialética do éthos traz à tona a diferença entre o costume (éthos) e a lei
(nómos) como posição dupla do universal ético como conteúdo próprio da
liberdade. Ora, é sob esse ângulo que Lima Vaz introduz no debate a noção
de indivíduo. Ela entra em cena justo no momento em que se trata de
compreender a intrínseca relação entre éthos e indivíduo. Vaz vai buscar nas
fontes do individualismo moderno a sua expressão máxima. Pois bem: se a
sociedade é um conjunto, os indivíduos se revelam em seu pertencimento a
ela não como fatos singulares somente, mas como, valores, em sentido
axiológico: "Vale dizer que a pertença de uma determinada esfera de agentes
e relações ao todo social se define primeiramente ao nível da sua legitimação
ética, da sua participação ao éthos fundamental que constitui o primeiro dos
bens simbólicos da sociedade" (LIMA VAZ, 2000a, p. 22). É a partir desse
éthos fundamental como primeira camada que tem origem os diversos
aspectos que assume a socialização e educação do próprio indivíduo. Dentre
os aspectos, um, ao menos, aparece ao indivíduo em sentido teleológico, ou
seja, como um fim, “como o lugar da sua auto-realização, o campo onde se
experimenta e se comprova a sua independência, a sua posse de si mesmo
(autárqueia)” (LIMA VAZ, 2000a, p. 22). Assim,

Na perspectiva desse fim, a vida social se ordena segundo


uma estrutura axiológica e normativa fundamental que é,
exatamente, o seu éthos. Por sua vez, a teleologia imanente
ao éthos faz com que a realidade não seja experimentada
pelo indivíduo como uma vis a tergo, uma força exterior ou um
destino cego e oprimente (LIMA VAZ, 2000a, p. 22).

Ao mesmo tempo, Lima Vaz aponta uma crítica a certo ideal molecular,
uma caricatura atomizada do indivíduo no contexto desse éthos societário.
Argumenta ele:

46
Como é notório, do ponto de vista da estrutura social, o
indivíduo não se apresenta como molécula livre, movendo-se
desordenadamente num espaço sem direções privilegiadas e
regido apenas pela lei da probabilidade do choque com outras
moléculas – os outros indivíduos. Uma cadeia complexa de
mediações ordena os movimentos do indivíduo no todo social
e, entre elas, desenrolam-se as mediações que integram o
indivíduo ao éthos: os hábitos no próprio indivíduo e, na
sociedade, os costumes e normas das esferas particulares
nas quais se exercerá sua práxis, ou seja, trabalho, cultura,
política e convivência social. (LIMA VAZ, 2000a, p. 23).

Fica patente, nessa análise vaziana, o eco de matriz hegeliano-marxista.


O processo do éthos e a constituição do indivíduo só se perfazem
dialeticamente9. Não se trata mais, conforme os auspícios do individualismo
de base positivista, utilitarista, de um processo mecânico, atômico, por
definição. Há todo um princípio de mediações que regem, no plano
sociocultural, econômico, etc., a vida ética. O éthos se mostra aqui em toda a
sua amplitude mediadora como práxis dialética.

Vaz não abandona o princípio aristotélico do éthos como essencialmente


teleológico. Também não parece abrir mão da estrutura mediadora do éthos
como dialética. O que recusa é justo um fenômeno cada vez mais crescente
nos modos de produção com o advento de certo niilismo do ponto de vista
ético: é o momento, pois, em que a transcrição ideológica e, como tal,
ocultante dos interesses econômicos dominantes na sociedade em nome de
uma racionalidade instrumental, para usar aqui uma expressão fortemente
frankfurtiana. Essa ideologia conduz a um certo "reducionismo economicista,
ou o que se poderia denominar a ‘redução ideológica’ do éthos, implica
necessariamente um niilismo ético (ou uma negação radical do éthos) que
está presente no cerne mais íntimo dessa sociedade da produção e do
consumo que acabou se constituindo em versão planetária da "economia-
mundo". (LIMA VAZ, 2000a, p. 25).

9
Ao leitor que se interessar em aprofundar melhor este tema, ver CIOTTA (2014).
47
É assim que Lima Vaz reafirma o movimento dialético como princípio no
qual se retorna do particular ao universal, "fazendo do indivíduo empírico um
universal concreto, que repõe o problema na forma da relação entre a
liberdade do indivíduo como livre-arbítrio e a universalidade normativa do
éthos" (LIMA VAZ, 2000a, p. 26). Isso ele faz sem deixar de enunciar
Nietzsche. Este é lembrado na medida em que via na função educadora do
éthos a evocação da história terrível das crueldades sociais impostas
subjugando o homem a uma condição animalesca. Com isso, se institui uma
moral, a moral de rebanho. Pois bem, em que pese essa crítica, a explicação
nietzschiana não é suficiente aos olhos de Lima Vaz (2000a, p. 28):

A ideia de uma prioridade dialética do éthos sobre o indivíduo


empírico ou do conteúdo intrínseco do valor sobre a
satisfação do indivíduo oferece uma resposta infinitamente
mais aceitável à interrogação fundamental em torno da
presença constitutiva do éthos na estrutura da socialidade
humana.

É agora que Lima Vaz introduz outro elemento chave nessa discussão: a
ideia de conflito. Essa noção é preparada no sentido de nos apercebermos de
algo fundamental: a universalidade e normatividade do éthos não se mostra
ao indivíduo nem cronologicamente (como se o indivíduo fosse
predeterminado ou precedido); nem exteriormente (como se o indivíduo fosse
extrinsecamente condicionado) e nem logicamente (como se o indivíduo fosse
eticamente produzido por causalidade). O que convém observar é que não há
determinismo: o primado do éthos tem um acento arquétipo, originário ou se,
quiser, dialético de reconhecimento. Eis porque a liberdade jamais é exterior
ao éthos; ela "introduz no movimento dialético constitutivo do éthos o
momento do poder-ser, o espaço de possibilidade que se abre entre a
particularidade da práxis como ato do indivíduo no aqui e agora da sua
existência empírica e a singularidade da mesma práxis que se efetiva
concretamente como realização da universalidade do éthos no agir virtuoso"
(LIMA VAZ, 2000a, p. 29).
48
Se não há determinismo, o conflito ético também não se confunde, pois,
com o niilismo ético. Então, qual a natureza desse conflito? De onde ele
provém? Como situá-lo em seu devido lugar? Lima Vaz circunscreve tal
conflito num parágrafo elucidativo:

O conflito ético se desenha, pois, como fenômeno constitutivo


do éthos que abriga em si a indeterminação característica da
liberdade. No risco do conflito ético, manifesta-se a fluidez e a
labilidade da socialidade humana, essencialmente distinta das
rígidas formas associativas do reino animal. O conflito ético
atesta igualmente a peculiaridade da natureza histórica do
éthos, em permanente interação como novas situações e
novos desafios que se configuram e se levantam ao longo do
caminho da sociedade no tempo. Nesse sentido, o conflito
ético não é uma eventualidade acidental, mas um
componente estrutural da historicidade do éthos. Ele se dá
propriamente no campo dos valores e seu portador não é o
indivíduo empírico, mas o indivíduo ético que se faz intérprete
de novas e mais profundas exigências do éthos. Somente
uma personalidade ética excepcional é capaz de viver o
conflito ético nas suas implicações mais radicais e tornar-se
anunciadora de novos paradigmas éticos, como foi o caso na
vida e no ensinamento de Buda, de Sócrates e de Jesus
(LIMA VAZ, 2000a, p. 30-31).

A passagem acima fala por si só. Pretender aproximar o conflito ético de


qualquer atitude de revolta ou tentar resolvê-lo em nome de algum
pessimismo ou hedonismo ao estilo moderno do carpe diem, como diria
Gabriel Marcel (1991) em relação, por exemplo, à literatura de Gide, não nos
auxilia muito. É preciso reconhecer tal conflito10, concreto e dialeticamente,
como um fenômeno inalienável da própria historicidade do éthos.

Falar, portanto, em conflito, é voltar a falar de Heráclito e a sua doutrina


da harmonia dos opostos. O fragmento 6 de Sobre a Natureza é enfático: “o
contrário é convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo
segundo a discórdia” (HERÁCLITO, 1978, §6, p. 80). Mais à frente o pensador

10
Sobre, p. ex., a leitura heideggeriana dessa noção em Platão, ver: GEVEHR
(2016).
49
trabalha com uma noção cara, a ideia de pólemos (πόλεμος): “O combate é
de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros,
homens; de uns fez escravos, de outros livres” (HERÁCLITO, 1978, p. 84).
Heráclito alude aí a uma dimensão de pólemos que não afasta
arbitrariamente, mas aproxima. Ora, a mais bela harmonia parte
essencialmente desse princípio arquétipo que tudo rege, tudo ordena.

Lima Vaz parece, em sentido heraclitiano, avocar esse princípio sem


perder, é claro, do horizonte, Hegel no contexto de uma filosofia da história. O
filósofo jesuíta não tem dúvida de que o conflito ético é, antes de tudo, um
conflito de valores. Este tem um base axiogênica irrevogável. E isso se pode
facilmente identificar ao longo da história, desde a crise do mundo grego, em
particular, da democracia ateniense no século V. a.C.

Ao mesmo tempo, há uma ideia que melhor poderá nos conduzir à


essência mais íntima do conflito ético perfazendo, portanto, uma
fenomenologia do éthos. Essa ideia é exposta nos seguintes termos por Lima
Vaz (2000a, p. 33):

É talvez a ideia de transgressão que nos poderá conduzir


mais diretamente à essência mais íntima do conflito ético, e
completar com um último traço a fenomenologia do éthos.
Originário da Etnologia e da Psicanálise, o conceito de
transgressão acabou acolhido no pensamento ético
contemporâneo, mas num sentido predominantemente
negativo. A transgressão é pensada imediatamente em
oposição ao tabu, ao interdito e à lei. Nesse sentido
excludente, a transgressão se define como a ruptura dos
limites impostos ao indivíduo com a sua identidade verdadeira
e com a sua liberdade, rompidas as cadeias do éthos. Mas,
semelhante conceito de transgressão não vai além do nível
do indivíduo empírico que se recusa a obedecer ao
movimento de universalização do éthos. Ela não é, nesse
caso, senão uma sublimação da falta. (LIMA VAZ, 2000a, p.
33-34).

Lima Vaz traz pra mesa aqui o debate em torno a essência do conflito
ético: a ideia de transgressão. O que subjaz nesse conflito é certa concepção
de transgressão que nada tem a ver com o seu uso semântico convencional
50
no sentido, por exemplo, niilista de revolta ou de falta, de contravenção
ideológica pura e simples. Talvez seja preciso reencontrar a sua acepção
etimológica originária da Etnologia e da Psicanálise num sentido mais
positivo, afirmativo; sentido esse que perfaz como um traço marcante da
fenomenologia do éthos como movimento de universalização. Qual seria esse
traço?

Primeiramente, a consciência dos limites de uma liberdade situada;


liberdade essa que se dispõe, inclusive, em atender um apelo ao sacrifício. É
o caso, p. ex., de Francisco de Assis: "a pendência entre Francisco e seu pai
na praça em Assis em torno da pobreza constitui, na história do cristianismo,
um dos episódios mais sublimes de 'transgressão'" no sentido evangélico"
(LIMA VAZ, 2000a, p. 34). Transgredir aí, como energéia, força conflituosa do
éthos, é o movimento ou transbordamento da liberdade em sua plenitude
cujos limites do éthos socialmente estabelecido já não conseguem mais
conter. A transgressão se torna, pois, um ato criador. “É nessa face positiva
da transgressão que a força criadora do conflito ético se apresenta nítida e
irresistível, descobrindo no seu fundo a própria natureza do éthos. O éthos,
afinal, não é senão o corpo histórico da liberdade, e o traço do seu dinamismo
infinito inscrito na finitude das épocas e das culturas” (LIMA VAZ, 2000a, p.
35). Isso explica, mais uma vez, em termos vazianos, em que medida o
conflito ético aparece como um “fenômeno constitutivo do éthos”. Ele então
mostra que

O fato de ser o éthos um fenômeno histórico-social inerente à


própria estrutura do grupo humano, impõe-lhe essa condição
própria de toda realidade histórica que é estar submetida à
ação corrosiva do tempo. No caso do éthos essa ação se faz
sentir sobretudo na perda ou enfraquecimento da
credibilidade e da eficácia da sua função normativa. Daqui a
crise do éthos e o aparecimento do conflito ético, que não é
um problema dos indivíduos tomados isoladamente, mas um
estado espiritual da sociedade (2000c, p. 40).

51
O terceiro nível da fenomenologia do éthos é a cultura. Lima Vaz chama
a atenção de que a cultura é o fenômeno de passagem entre o éthos e a
ética, em sentido próprio: "afirmar que o éthos é coextensivo à cultura
significa afirmar a natureza essencialmente axiogência da ação humana, seja
como agir propriamente dito (práxis), seja como fazer (poiesis)" (LIMA VAZ,
2000a, p. 36). Esse movimento, vale insistir sempre, é dialético. Tal processo
jamais é obra de uma funcionalidade mecânica, puramente rígida ou natural,
mas é fruto de uma consciência histórica que se efetiva por mediações.
Nosso filósofo observa que esse processo nada mais implica ainda do que um
fenômeno de transcendência; ele reflete uma espécie de excesso do símbolo
sobre o real sem deixar, ao mesmo tempo, de motivar uma tensão
característica: "A estrutura da ação se constitui em permanente tensão com o
seu objeto, e é essa tensão que alimenta o Maurice Blondel denominou o
'crescimento orgânico' da ação, o percurso do caminho entre o que o agente é
e o que o agente tende a ser" (LIMA VAZ, 2000a, p. 37). Assim, "enquanto
produtora de símbolos ou enquanto portadora da significação do seu objeto, a
ação manifesta desta sorte uma propriedade constitutiva da sua natureza: ela
é medida (métron) das coisas e, enquanto tal, eleva-se sobre o determinismo
das coisas e penetra o espaço da liberdade" (LIMA VAZ, 2000a, p. 37).

Se é verdade, pois, que "a coextensividade entre éthos e cultura se


estabelece justamente a partir do caráter mensurante da ação como respeito
à realidade" (2000a, p. 37); há de se considerar que "o homem habita o
símbolo e é exatamente como métron, como medida ou norma que o símbolo
é éthos, é morada do homem" (2000a, p. 38). Lima Vaz (2000a, p. 38)
entende que "esse nó originário onde se entrelaçam cultura e éthos é também
o lugar onde a experiência da ação exigirá a explicitação do seu caráter
normativo na forma de um éthos no sentido estrito que acabará mostrando-se
como métron ou instância normativa transcendente à própria ação. É como tal
que ele penetrará o sistema inteiro das formas simbólicas ou todo o corpo da
cultura". E complementa:

52
Na verdade, a relação mensura-mensurado que se
estabelece entre o símbolo e a realidade tende a inverter-se à
proporção em que a realidade, enquanto conteúdo do
símbolo, se apresenta como a realidade verdadeira ou
significada como tal. A transcendência do sujeito sobre o
objeto ou da práxis sobre o prãgma, atestada na prolação do
símbolo tende a ser suprassumida na transcendência do
objeto significado ou do conteúdo do símbolo [...]. Do métron
de Protágoras ao métron de Platão, o caminho percorrido
indica o sentido da transcendência da medida em torno da
qual se desenvolverá fundamentalmente a reflexão ética
(LIMA VAZ, 2000a, p. 38-39).

O que não se pode perder de vista aqui, no interior de uma


fenomenologia do éthos11 é que a "cultura tem, portanto, uma dimensão
axiológica que é constitutiva da sua natureza e em virtude da qual ela define
para o homem não somente um 'espaço de vida' (Lebensraum), mas
outrossim, segundo a expressão de E. Rothacker, um 'estilo de vida'
(Lebensstil) (2000a, p. 39-40).

Por fim, ao mostrar que toda cultura é constitutivamente ética, Lima Vaz
reconhece também a função do sagrado como uma expressão mais antiga e
universal. Ou seja: a religião é a forma de linguagem mais antiga da
consciência moral como um fato universal da cultura. Eis porque, em rigor, se
torna impossível “separar, na história das grandes civilizações, tradição ética
e tradição religiosa" (2000a, p. 41). Afora, o elemento religioso que se
permeia por raízes ético-culturais, também não se pode desconsiderar o
saber como expressão da cultura na sua relação com o éthos. No contexto do
saber figuram o mito como função didática, pedagógica e prescritiva sob a
perspectiva ética. Ao mesmo tempo, temos também a sabedoria da vida,
estilizada em legendas, fábulas, parábolas, máximas e provérbios que
aparece como o lugar privilegiado da formação da linguagem e do éthos.

Pois bem: é esse traço fundamental do éthos que conduz Lima Vaz, um
pouco mais além da antiguidade clássica, refletir melhor sobre o estatuto

11
Aqui, merece atenção o debate interpretativo posto por Souza (2011); Tedesco e
Strieder (2016) e a obra coletiva de homenagem organizada por Oliveira (2020).
53
mesmo da Antropologia como porta de entrada para Ética dentro ainda do
horizonte de uma fenomenologia do éthos.

54
2. FENOMENOLOGIA DO ÉTHOS (II)

2.1. Ética e Antropologia

Lima Vaz confessa em uma de suas últimas Entrevistas: "A Metafísica e


a Antropologia filosófica abriram-me o caminho para a Ética" (2000c, p. 36).
Essa confissão é um depoimento intelectual considerável se levarmos em
conta que não há como pensarmos a dimensão fulgurante do éthos
negligenciando, aqui, o estatuto ontológico12 de sua obra – como já pudemos
acompanhar, em linhas gerais, em todo o debate recorrente acerca da physis
–, mas também, agora, acerca do ser do homem e da psyché como uma de
suas estruturas conforme trataremos no próximo capítulo. A questão é que a
reflexão sobre o homem ocupa um lugar honorário, por excelência, no
conjunto da obra de Lima Vaz, o que não é desproposital o fato de que o
autor brasileiro tenha se dedicado, por tanto tempo, em elaborar uma
Antropologia filosófica. É nesse sentido que, talvez, valha a pena, mesmo que
sumariamente, delinear, em seus aspectos bem gerais, essa vertente do
pensamento limavaziano, materializada em alguns de seus escritos
consagrados ao tema.

O escrito maior deles, extremamente denso, é, sem dúvida, a


Antropologia Filosófica I. Nos apoiaremos, mais detidamente, nesse texto
porque ele pode ser considerado, em sua estrutura mesma, um guia, um
roteiro instrutivo para, ao menos, situar a questão de fundo. O livro é
composto de duas partes: a primeira é a “histórica” e a segunda, a
“sistemática”. Na parte histórica, o autor faz justamente um recenseamento
histórico das concepções do homem na filosofia ocidental, abrangendo desde
a visão clássica grega, perpassando pela posição cristã-medieval, concepção
moderna e, por fim, contemporânea. Esse inventário histórico, por mais
relevante que seja, já excederia enormemente os limites do trabalho que aqui

12
Veja, p. ex., Lima Vaz (2001).
55
se propõe. A intenção apenas consiste em tomar esse registro que constitui
um primeiro marco do livro, pois é a segunda parte, a parte “sistemática” que
mais vai nos interessar. Ela se estrutura a partir de três grandes categorias
que serão tomadas por Lima Vaz: corpo próprio, psiquismo e espírito. Para o
nosso intento, nos valeremos de duas delas, corpo próprio e psiquismo. Sobre
o psiquismo, consagraremos o subcapítulo inicial do terceiro capítulo aqui do
trabalho dissertativo.

Antes, porém, de tratar da categoria acerca do corpo, parece-nos


instrutivo tecer algumas considerações de cunho introdutório no contexto
dessa preocupação antropológica mais ampla do autor. Como o filósofo
observa: "a reflexão sobre o homem, aguilhoada pela interrogação
fundamental “o que é o homem?”, permanece no centro das mais variadas
expressões da cultura: mito, literatura, ciência, filosofia, éthos e política"
(LIMA VAZ, 1991, p. 9). De todo modo, a concepção de homem em nossa
cultura põe três tarefas essenciais para uma Antropologia filosófica:

— a elaboração de uma ideia do homem que leve em conta,


de um lado, os problemas e temas presentes ao longo da
tradição filosófica e, de outro, as contribuições e perspectivas
abertas pelas recentes ciências do homem; — uma
justificação crítica dessa ideia, de modo que possa
apresentar-se como fundamento da unidade dos múltiplos
aspectos do fenômeno humano implicados na variedade das
experiências com que o homem se exprime a si mesmo, e
investigados pelas ciências do homem; — uma
sistematização filosófica dessa ideia do homem tendo em
vista a constituição de uma ontologia do ser humano capaz de
responder ao problema clássico da essência: “O que é o
homem?”(LIMA VAZ, 1991, p. 10-11).

Lima Vaz explicita melhor qual é o seu intento. Ele compreende que:

A Antropologia filosófica se propõe encontrar o centro


conceptual que unifique as múltiplas linhas de explicação do
fenômeno humano e no qual se inscrevam as categorias
56
fundamentais que venham a constituir o discurso filosófico
sobre o ser do homem ou constituam a Antropologia como
ontologia (LIMA VAZ, 1991, p. 12).

Para tanto, tal Antropologia deve levar em conta três polos


epistemológicos fundamentais: "a) polo das formas simbólicas: situado no
horizonte das ciências da cultura; b) polo do sujeito: situado no horizonte das
ciências do indivíduo e do seu agir individual, social e histórico; c) polo da
natureza: situado no horizonte das ciências naturais do homem" (LIMA VAZ,
1991, p. 12). A isso, o autor sintetiza o espírito maior desse empreendimento:

Uma Antropologia integral deve tentar uma articulação entre


esses três polos que não ceda ao reducionismo e não se
contente com simples justaposição, mas proceda
dialeticamente, integrando os três polos da natureza, do
sujeito e da forma na unidade das categorias fundamentais do
discurso filosófico sobre o homem (LIMA VAZ, 1991, p. 13).

O que, aos olhos de Lima Vaz, cabe ser destacado é toda essa empresa
se insere no campo das ciências hermenêuticas, ou, se quiser, das ciências
humanas em geral. Nesse sentido, ele enumera alguns dos problemas
capitais que se circunscrevem no âmbito dessa Antropologia: cultura (tratada
no primeiro capítulo), sociedade, psiquismo (que ainda trataremos), história,
religião e, em suma, o éthos (via régia aqui da dissertação). Sobre esse último
problema, o que nos diz Lima Vaz?

[...] na verdade esse problema (do éthos) envolve, de alguma


maneira, todos os outros, desde que se entenda por éthos a
dimensão do agir humano social e individual na qual se faz
presente uma normatividade ou um dever-ser, ou que se
supõe provir da natureza ou que é estatuído pela sociedade.
Enquanto social o éthos é costume, enquanto individual é
hábito. Sendo coextensivo à cultura, o éthos é objeto, desde
os inícios da história da filosofia ocidental, de saberes

57
específicos, a Ética tendo por objeto o agir individual e o
Direito, e a Política, o agir social (LIMA VAZ, 1991, p. 17).

Lima Vaz evidentemente têm uma visão mais ampla do éthos como uma
espécie de órbita ao redor da qual gravitam muitos outros problemas. O que,
de fato, o éthos constitui, no âmbito dessa Antropologia,

[...] é a dimensão conscientemente teleológica e axiológica do


agir humano, à qual corresponde o paradoxo da livre
necessidade da aceitação de um universo de normas
reguladoras desse agir. Trata-se, em suma, de repensar
filosoficamente, em face das ciências do éthos como forma de
cultura, o problema já reconhecido por Hegel quando definiu o
Direito (entendido em sentido amplo cobrindo toda a esfera do
éthos) como “realização concreta da liberdade” (LIMA VAZ,
1991, p. 17).

Isso posto, podemos então, agora, numa perspectiva sistemática, no


interior desse programa antropológico, trabalhar aquela que a primeira
categoria chave: o corpo próprio.

Lima Vaz já destaca, em seu estudo, de que o problema primordial é o


de que “o homem está presente ao mundo por seu corpo; ora, não se trata do
corpo enquanto entidade físico-biológica, mas do corpo enquanto dimensão
constitutiva e expressiva do ser do homem” (LIMA VAZ, 1991, p. 175). A fim,
pois, de melhor enunciar o sentido último dessa categoria, o filósofo
aprofunda essa distinção em que o corpo ora é tomado como substância
material (física) ou como organismo (biológico), ora como corpo próprio, isto
é, totalidade intencional. Ilustra ele:

Como corpo próprio ou como totalidade intencional, o corpo-


pode ser assumido na autoexpressão do sujeito, e podemos
falar de um Eu corporal, o que não é o caso para o corpo
físico ou o corpo biológico. Para usar uma distinção da língua
alemã, nos dois primeiros casos o corpo é Körper, no
58
segundo caso é Leib. Nas duas primeiras ocorrências, o
homem é simplesmente seu corpo, é seu corpo físico e seu
corpo biológico, como o animal. Na terceira ocorrência, o
homem é também seu corpo próprio, mas não o é pura e
simplesmente por identidade, mas tem seu corpo próprio,
sendo capaz de dar-lhe uma intencionalidade que transcende
o nível do físico e do biológico. É no sentido dessa distinção
entre o ser e o ter o corpo que o corpo é, para o homem, um
‘corpo vivido’ (corps vécu), não no sentido da vida biológica,
mas da vida intencional (LIMA VAZ, 1991, p. 176).

Como vemos, Lima Vaz retoma exatamente a perspectiva


fenomenológica contemporânea que se inicia com Husserl, Gabriel Marcel,
Sartre, Merleau-Ponty, Levinas, entre outros. O caráter intencional do corpo
próprio é aí, no seio da tradição fenomenológico-existencial, a expressão mais
emblemática dessa experiência ou ordem de vivência primordial do corpo. O
autor brasileiro descreve mais:

Pelo corpo o homem está presente no mundo. Mas, segundo


se entenda o corpo como totalidade físico-orgânica e o corpo
como totalidade intencional, é oportuno distinguir uma
presença natural (presença impropriamente dita ou simples
estar-aí e uma presença intencional (presença no sentido
próprio ou ser-aí). Pela primeira, o homem está no mundo ou
na natureza em situação fundamentalmente passiva. Pela
segunda, o homem está no mundo em situação
fundamentalmente ativa, ou é ser-no-mundo (LIMA VAZ,
1991, p. 176).

Ao ratificar essa posição fenomenológica, Lima Vaz apenas acentua a


sua função hermenêutica no contexto de sua Antropologia.

Como o estar-no-mundo é um estar no aqui e agora espaço-


temporal, a dupla presença, natural e intencional, do homem
no mundo por meio de seu corpo refere-se a modalidades
diversas de sua situação no espaço-tempo. Pela presença
natural, o homem está presente no espaço-tempo físico e no
espaço-tempo biológico de seu corpo que o situa no espaço-

59
tempo do mundo. Pela presença intencional começa a
estruturar-se o espaço-tempo propriamente humano, que tem
no corpo próprio como corpo vivido o polo imediato de sua
estruturação para-o-sujeito, ou o lugar em que primeiramente
se articulam o espaço-tempo do mundo e o espaço-tempo do
sujeito: psicológico, social e cultural. O corpo próprio pode ser
chamado, assim, o lugar fundamental do espaço
propriamente humano, e o evento fundamental do tempo
propriamente humano (LIMA VAZ, 1991, p. 177).

Lima Vaz, para além dessa abordagem estritamente fenomenológica,


introduz outro componente: o de pensar o corpo do ponto de vista filosófico ou
transcendental. Com isso, ele quer dizer que a categoria da corporeidade se
define como termo de um movimento dialético no qual o corpo (tanto físico-
biológico quanto intencional) "é suprassumido pelo sujeito no movimento
dialético de constituição da essência do sujeito ou da resposta à questão
sobre o seu ser" (LIMA VAZ, 1991, p. 181). Ele se explica mais a respeito.
Vejamos:

[...] o corpo é o sujeito dando a essas formas expressivas a


natureza do sinal na relação intersubjetiva com o Outro, e a
natureza de suporte das significações na relação objetiva com
o mundo. A categoria da corporalidade passa a ser, assim, o
primeiro momento do movimento dialético que leva adiante o
discurso da Antropologia filosófica. Nele a realidade do corpo
enquanto humano é afirmada como constitutiva da essência
do homem, isto é, como afirmável do seu ser, de modo que se
possa estabelecer uma correspondência conceptual entre ser-
homem e ser-corpo. No entanto, essa correspondência,
sendo estabelecida dialeticamente, exprime uma identidade
na diferença [...]. Ao negar dialeticamente o corpo-objeto ou
ao suprassumi-lo no corpo próprio que é o corpo
propriamente humano, a mediação do sujeito mostra que o
ponto de partida desse movimento é justamente a oposição
dialética entre o sujeito e o corpo-objeto — a sua diferença —,
o que demonstra a impossibilidade da identidade pura e
simples, ou da identidade simplesmente lógica entre ser-
homem e ser-corpo (LIMA VAZ, 1991, p. 182).

60
Lima Vaz toma esse discurso dialético como o discurso sistemático de
sua Antropologia filosófica. Ele pretende conferir ao corpo um estatuto
ontológico. Ele pensa o corpo como exprimindo a essência do humano ou
ainda como a afirmação do ser do homem. Tudo se passa como se o
pensador jesuíta estivesse perguntando acerca de quem é esse guardião ou
pastor do éthos, para parodiar, aqui, a emblemática expressão heideggeriana.
Nosso filósofo entende que a razão não pode deixar de descer às raízes de
onde emergem as questões postas por Platão e Aristóteles (1982), na atitude
do thaumázein, onde se entrelaçam as razões primeiras de ser e de agir.
Como aponta Herrero: "É por isso que a tarefa iniciada na Antropologia
filosófica de tematizar o ser do homem tinha que continuar numa ontologia do
agir humano" (2012, p. 394).

Por outra parte, esse programa ainda não está completo precisamente
porque a categoria de corpo, por si só, exige ser transcendida para outros
níveis ou domínios antropológicos, quer dizer, para além de suas fronteiras ou
limites da presença imediata do homem no mundo por meio do corpo. Eis
porque, o autor, dará vazão a outras duas categorias, a de “psiquismo” (que
trataremos mais tarde) e a de “espírito” que não será aqui abordada mais
detidamente por duas razões de fundo teórico-metodológico: a primeira é que
o tema envolve toda uma discussão de caráter místico-transcendente à luz da
filosofia cristã do autor que remonta necessariamente à tradição judaico-
cristã. A segunda é que tal enfoque faz o trabalho perder de vista um de seus
propósitos que será desenvolvido no terceiro e último capítulo aqui que visa
justamente a uma articulação nuclear entre o sentido último do éthos com a
psicanálise por meio da categoria vaziana de psiquismo como um dos
estratos fundamentais dessa Antropologia.

Dito isso, o que esse breve recorte da obra antropológica vaziana nos
permite vislumbrar é certa retomada do horizonte da ética na modernidade e,
com isso, fechando depois, aqui, o capítulo, fazer um balanço, um diagnóstico
mais preciso da crise ética que atravessamos, nos tempos modernos.

61
2.2. Ética e razão moderna

No contexto, ainda, de uma fenomenologia do éthos aliada a esse


programa antropológico brevemente recortado, a Ética toma audiência na
história da filosofia, conforme o período, em momentos bem definidos. Em
sua reconstrução sistemática do tema, Lima Vaz imprime outro relevante
debate ao situar a própria ética à luz da modernidade. É o que o filósofo
brasileiro encerra num texto de 1995 que tem justo como título Ética e Razão
Moderna. Vamos aos argumentos.

Lima Vaz, nesse texto, entende por "razão moderna" não só a filosofia
moderna clássica, mas a racionalidade em geral que recobre o século XX.
Para tanto, ele faz um balanço da situação da Ética na cultura
contemporânea. A primeira parte do texto acompanha a evolução da
chamada razão moderna desde o século XVII, confrontando-a com a razão
clássica. A segunda parte mostra a formação das racionalidades éticas
modernas na sua correspondência com as racionalidades científico-
filosóficas. Por fim, o autor enumera vários problemas da Ética
contemporânea vindo a sugerir alguma solução via um retomo aos princípios
da ética clássica.

Lima Vaz avalia que, para além dos destroços causados entre a Primeira
Grande Guerra (1914-1918) e a Segunda (1939-1945), assistimos na década
de 80 e no começo dos anos 90 o surgimento de um novo perfil de crise bem
diverso daquela que abalou as primeiras décadas do século. Essa crise, bem
entendido, não concerne à base material das sociedades ditas avançadas,
uma vez que essa base parece solidamente assentada. Noutros termos:

62
Não é, pois, no terreno da produção dos bens materiais e da
satisfação das necessidades vitais que a crise profunda se
delineia. É no terreno das razões de viver e dos fins capazes
de dar sentido à aventura humana sobre a terra. Em suma, a
crise da civilização num futuro que já se anuncia no nosso
presente, não será uma crise do ter, mas uma crise do ser.
Será um conflito dramático não apenas nas consciências
individuais, mas igualmente na consciência social entre
sentido e não-sentido. É na perspectiva desse tipo de crise
que podemos situar a extraordinária atualidade que os temas
éticos alcançaram na linguagem e nas preocupações das
sociedades ocidentais nos últimos anos (LIMA VAZ, 1995, p.
55).

Isso se explica, segundo Lima Vaz, pelo fato de que nos anos que se
seguiram à Segunda Guerra, a reconstrução da Europa, a reorganização do
mapa mundial na esteira da "descolonização" e o extraordinário ritmo de
crescimento econômico dos "trinta anos gloriosos" deram origem à ideia e à
linguagem do desenvolvimento. Passada essa mudança em relação ao
período entreguerras, surge outra reconfiguração na sociedade geral moderna
anunciando uma nova idade, a “idade da ética”. Escreve o autor:

Finalmente, pelos meados da década de 80 anuncia-se a


idade da "ética". Na linguagem religiosa, na filosofia, na
política, nas ciências humanas em geral os temas éticos
passam a ser privilegiados e a exigência ética, intuída,
sentida e discutida, impõe uma nova sensibilidade e,
aparentemente, um novo padrão de conduta a indivíduos e
grupos nas nossas sociedades (LIMA VAZ, 1995, p. 55).

Assim, nesse estágio estabelecido pelo mundo ocidental no último meio


século, o que temos é uma lógica interna que conduz o percurso histórico do
Ocidente. Ora, que lógica interna seria essa? É o próprio movimento dialético
da história. Lima Vaz traduz isso em linguagem hegeliana. Retrata ele numa
longa passagem que vale a pena aqui reproduzir:

63
O imediato pós-guerra teve como tarefa precípua a
reconstrução da base material das nações diretamente
envolvidas no conflito. Essa tarefa estava praticamente
terminada por volta de 1950, quando teve início o
extraordinário surto de expansão econômica que fez do
conceito e do termo de desenvolvimento o emblema de uma
época. No entanto, o ritmo acelerado da produção dos bens,
sua acumulação e os problemas da sua distribuição, bem
como a enorme multiplicação e entrelaçamento dos fios da
"economia-mundo", para falar como F. Braudel, deram origem
a uma perigosa assimetria entre a esfera material e a esfera
simbólica da vida. Nesse momento, a lógica que rege o
equilíbrio do todo social deslocou para a esfera simbólica, ou
seja, para a cultura, o campo principal dos grandes problemas
que desafiam a sociedade. Desta sorte, as sociedades
ocidentais conheceram, ao longo da década de 70, um
enorme crescimento de interesse em torno dos lemas
culturais, como a originalidade das culturas, o pluralismo
cultural, a inculturação e outros. Ora, Cultura e Ética
mutuamente se implicam, sendo os dois conceitos
logicamente coextensivos. Com efeito, o conceito de cultura
abre o horizonte das necessidades vitais do homem ao
mundo das formas simbólicas e do sentido. Em face desse
mundo, manifesta-se a necessidade mais profundamente e
mais autenticamente humana, qual seja de confrontar-se com
a realidade não apenas como objeto a ser utilizado e
consumido, ou como dado a ser conhecido, interpretado e
transformado, mas ainda como fonte de normas que devem
orientar o seu agir segundo o finalismo do bem e do melhor.
No momento em que as sociedades ocidentais atingiram um
alto nível de satisfação das necessidades materiais e um
domínio até então desconhecido pela humanidade, da
racionalidade científico-técnica a serviço dessa satisfação, o
problema do sentido passa a ser o desafio maior dessas
sociedades e a reflexão sobre a cultura e, consequentemente,
sobre a ética, impõe-se como a sua mais importante tarefa
intelectual. As duas últimas décadas do nosso século
assistem ao espraiar-se dessa espécie de onda ético-cultural
que, após o esto da onda do desenvolvimento, cobre as
antigas nações cristãs do Ocidente (LIMA VAZ, 1995, p. 56).

Esse processo todo longamente acima descrito exprime, segundo Lima


Vaz, algo similar com o que ocorrera na Grécia Antiga:

Nas origens da nossa civilização, o nascimento da Ética teve


lugar na sequência de uma evolução do espírito grego

64
análoga à que se verifica em nosso tempo. Ela acompanhou a
transformação da sociedade arcaica nas cidades industriosas
e democráticas da Jônia e da Ática, tendo Atenas à sua
frente. No fio dessa evolução apresenta-se, em primeiro lugar,
o problema do trabalho e da riqueza, depois o problema da
cultura e, finalmente, o problema do "bem agir" e do "bem
viver" ou da Ética. Os primeiros filósofos e legisladores, os
Sofistas e Sócrates assinalam esses três momentos que
antecipam, de maneira exemplar, outros ciclos que se
repetirão na história da civilização ocidental. Essa evocação
das origens da Ética contêm uma lição importante para nós,
pois mostra-nos que a legitimação social da Razão
demonstrativa e o lugar privilegiado que passa a ocupar na
esfera simbólica da sociedade, ao mesmo tempo em que
provocam a perda da força de coesão do éthos tradicional,
despertam a necessidade imperativa de explicitar, organizar e
justificar criticamente a racionalidade implícita desse éthos,
tarefa que cabe exatamente à Ética. Ela se constitui como
ciência dos costumes transmitidos na sociedade, dos estilos
permanentes do agir dos indivíduos (hábitos), bem como da
comprovação crítica dos novos valores que a evolução da
sociedade faz surgir (LIMA VAZ, 1995, p. 56-57).

Lima Vaz vê, sem dúvida, nesse processo, um movimento dialético sui
generis que, de tempos em tempos, segue, ao menos, uma lógica realmente
similar do ponto de vista histórico, ou seja, ele não hesita em dizer que todo
esse movimento "obedece à lei dialética da suprassunção dos seus
momentos" (LIMA VAZ, 1995, p. 57).

Em tal retrospectiva:

Há, por conseguinte, uma dialética imanente ao


desdobramento das racionalidades dominantes na evolução
das sociedades que acolhem a Razão como eixo ordenador
do seu universo simbólico. Ao desenvolvimento das
racionalidades científico-técnicas, que impõem uma leitura
instrumental e operacional da realidade, segue-se a
emergência das racionalidades hermenêuticas que trazem
para o primeiro plano o problema do sentido e a necessidade
de uma leitura explicitamente antropológica do homem e do
seu mundo, para finalmente dar lugar às racionalidades
éticas, voltadas para a questão decisiva do dever-ser e para
um tipo de leitura normativa e teleológica do universo humano
do sentido (LIMA VAZ, 1995, p. 57).
65
Lima Vaz figura aí uma "fenomenologia da modernidade" (2002): "o
novo como negação dialética do antigo que lhe dá origem" (LIMA VAZ, 2002,
p. 18). Eis porque a lógica dialética produz perfis, tendências que se
pluralizam a partir de diferentes paradigmas, modelos de racionalidade:

O pensamento ético contemporâneo apresenta-nos, pois,


uma pluralidade de perfis e tendências que correspondem aos
tipos de racionalidade atualmente vigentes na nossa
sociedade. Se nos lembrarmos de que a Ética é obra da
Razão demonstrativa, tendo por objeto as práticas individuais
e sociais e visando à sua legitimação racional em termos de
princípios, valores e fins, veremos que a pluralidade atual de
modelos éticos corresponde à pluralidade dos tipos de
racionalidade que se apresentam como os mais aptos para
pensar o clímax complexo do nosso tempo (LIMA VAZ, 1995,
p. 58).

A questão de fundo é a de que, no itinerário da modernidade, são


múltiplas as formas ou figuras da racionalidade. Assistimos, no Ocidente,
desde as racionalidades formais da lógica e do cálculo até às racionalidades
operativas da técnica. O que temos, ao longo disso, é a imagem mais fiel da
nossa civilização historicamente constituída. Assim em função da ruptura, nos
tempos modernos, com a estrutura analógica da Razão, vários modelos de
racionalidade emergem (como os de tipo físico-matemático, dialético, lógico-
linguístico, fenomenológico, hermenêutico) reivindicando a sucessão da
antiga razão metafísica.

No entanto, como observa Lima Vaz, tais modelos não conseguem


unificar o campo da Razão. É aqui que nos encontramos com o nó do
problema. Essa falta de unificação passa a assumir um déficit incalculável
quanto à proposição de uma teoria ética que dê conta dos desafios
contemporâneos. Vale lembrar que a razão moderna se define como um
conhecimento que procede por hipóteses e deduções e por verificação
experimental. A sua expressão mais emblemática encontramos na própria
66
ciência de tipo empírico-formal. Sendo assim, a concepção de método aí
presente é bem diversa da antiguidade grega: é o conceito de método, p. ex.,
tomado em acepção cartesiano-galileana que rege o espírito moderno; é o
método analítico de regras que buscam matematicamente explicar os
fenômenos naturais via a descoberta das leis do seu funcionamento. É assim
que o espaço da razão moderna vai abrigando outros discursos seja para
referendar essa perspectiva do ideal de um sujeito como princípio fundante,
seja ainda para dissolvê-lo como veremos, após Hegel. Lima Vaz caricatura
esse fenômeno de autodiferenciação da razão. A razão se diferencia em si
mesma em múltiplas abordagens e discursos de modo que a partir da
transição entre o século XVIII e XIX o que assistimos é advento das ciências
humanas. Mesmo com esse advento todo, mesmo com a dissolução do ideal
moderno de subjetividade (e com os ganhos por ele trazido), ainda estamos
sem norte, à deriva de um processo permanente de crise instalada. Resumo
da ópera: o pensador brasileiro identifica nesse movimento uma ambiguidade
que cada vez mais se inscreve na racionalidade filosófica em face do
tecnicismo da razão e do domínio cultural e social da tecnociência: ora ela se
propõe como uma meta-teoria da ciência, reduzindo-se à Filosofia das
Ciências, ora pretende ser uma racionalidade alternativa de tipo
fenomenológico, existencial, hermenêutico ou crítico.

A questão chave é a de que a Ética, em suma, não é mais do que a


“transcrição num discurso racionalmente ordenado das razões normativas,
axiológicas e teleológicas presentes no ‘mundo da vida’ e cuja força
espontânea de persuasão se enfraquece num momento de crise histórica”
(LIMA VAZ, 1995, p. 70). Com a razão moderna, a Ética ocidental também
recebe uma nova face. Se, na antiguidade grega, metafísica e ética
caminham juntas, a partir da modernidade haverá um acento maior no
aspecto lógico do que ontológico.

A Ética moderna é, assim, uma Ética constitutivamente


autonômica ao fazer do sujeito, em última instância, o

67
legislador moral, em contraste com a Ética clássica,
essencialmente ontonômica, pois nela o ser objetivo,
mediatizado pela "reta razão" (orthòs logos), é a fonte da
moralidade. Ora, a autonomia moral principial do sujeito,
qualquer que seja a forma com que é proposta, encontra-se,
por outro lado, em face do problema fundamental da
constituição da comunidade ética, ou da passagem do eu ao
nós no exercício da vida ética (LIMA VAZ, 1995, p. 70).

Lima Vaz volta a identificar, nesse empreendimento ético da


modernidade, a falta de dois temas incontornáveis: o problema da virtude e o
problema da teleologia. Em sua avaliação, pode-se considerar que o declínio
e quase desaparecimento da noção de virtude do sujeito ético é consequência
direta da crise da ideia da comunidade ética. É que na Ética antiga, a virtude
se define como uma realização exemplar no indivíduo dos ideais éticos
comunitários. Ao mesmo tempo, se assiste naquela empresa, uma cisão
teleológica dando origem a um constante conflito entre as chamadas "moral
de intenção" e "moral do objeto". O problema nisso, p. ex., é que a teleologia
passa a ser pensada segundo o esquema da racionalidade técnica. De toda
maneira, sai do espectro da razão moderna o princípio teleológico como mola
propulsora:

É que, sendo essencialmente teleológica, a práxis humana


tende inevitavelmente a dar razão dos seus próprios fins, e
são justamente essas razões, mais vividas do que pensadas,
que se consubstanciam historicamente nos costumes que
formam o éthos das diversas culturas (LIMA VAZ, 1996, p.
439).

Mesmo Hegel, apesar do incontestável avanço de sua obra, é inscrito


por Lima Vaz nesse ideal moderno:

A subjetividade moderna adquire em Hegel uma dimensão


histórica que se desenrola nos domínios da sociedade civil e
do Estado, mas essa subjetividade é, em Hegel, inteiramente
68
submetida à regência do lógico, através da homologia entre o
"conceito" (Begriff), no sentido hegeliano, e a liberdade (LIMA
VAZ, 1995, p. 70).

Em Hegel persiste ainda o princípio inabdicável da autonomia do sujeito.


Sendo assim, e após ele? No que exatamente as racionalidades éticas
contemporâneas também se tornam programaticamente insuficientes? Ora,
há um traço comum entre os diversos modelos éticos contemporâneos. Eles
repousam sobre uma estrutura de pensamento que tem, por um lado, como
eixos de sustentação, também a autonomia do sujeito e, de outro, a
universalidade da razão. Há, portanto, em tais racionalidades a adoção de
modelos lógicos com pretensão de validez. Quer dizer: “busca-se, pois, uma
estrutura lógica adequada que assegure à racionalidade ética sua função de
fundamentar e explicar a um tempo o agir ético do indivíduo e a estrutura
ética da comunidade” (LIMA VAZ, 1995, p. 74). Lima Vaz não cita
nominalmente os defensores desse modelo, mas, a título ilustrativo, não há
como não pensar aqui no utilitarismo ou ainda na Ética do Discurso
representada, sobretudo, por Habermas e Karl-Otto Apel. Ora, nosso
pensador brasileiro é incisivo contra tais referenciais, pois esses abdicam do
caráter original do éthos em sua acepção grega. Trata-se de um paradigma
que quer pensar em termos absolutamente lógicos. Esse é, pois, um limite da
razão discursiva ou calculadora. Como nota o filósofo jesuíta:

As éticas que se exprimem através de uma lógica que se


pretende demonstrativa, como obra da razão teórica, acabam
por fazer do sujeito ético concreto apenas o suporte de um
consenso ou de um cálculo das consequências de um agir
erigido em princípio puramente lógico. Elas falham assim o
alvo da ciência do éthos na sua acepção original, a saber, a
explicitação e organização conceptual das razões imanentes
ao éthos o que manifestam a essência ética do homem (LIMA
VAZ, 1995, p. 75).

Daí a insistência de Lima Vaz com o tema:

69
Que a história, desde o momento em que caminha para
tornar-se efetivamente universal, seja atravessada pelo apelo
irresistível à constituição desse éthos, atestam-no as grandes
revoluções intelectuais e político-sociais que marcam o
avançar dos tempos modernos. Todas elas, a começar pela
revolução cartesiana da Razão, inscrevem nas suas
bandeiras o programa de um Ética do viver histórico no qual
estejam finalmente reconciliados o indivíduo e o universal.
Ora, a Ética não é senão a codificação racional de um éthos
que se supõe vivido pela comunidade histórica ou que esta se
propõe viver. Assim, a primeira tarefa das revoluções
modernas e que é provavelmente o traço mais marcante da
sua originalidade, consiste em desenraizar o indivíduo da
particularidade dos seus ethoi históricos tradicionais e em
plasmá-lo segundo a forma daquele que se propõe como
indivíduo universal: o filósofo da Ilustração, o citoyen
revolucionário, o burguês progressista, o homem comunista.
(LIMA VAZ, 1990, p. 7).

Lima Vaz compreende que o sentido último do éthos vivido ou, se quiser,
de uma fenomenologia do éthos; fenomenologia essa radicada historicamente
em revoluções, mas que, mesmo assim, perde a sua substância em modelos
éticos reflexivos na modernidade:

[...] nenhum êxito decisivo parece ter coroado até agora a


iniciativa histórica de tantas revoluções e o desígnio teórico
de tantos sistemas no sentido da criação de um éthos do
homem universal e, consequentemente, da formulação de
uma Ética que exponha e codifique as razões desse éthos.
Aquela que se pretende a primeira civilização mundial
encontra-se aqui no âmago da sua própria crise: uma
civilização sem éthos e, assim, impotente para formular a
Ética correspondente às suas práticas culturais e políticas e
aos fins universais por ela proclamados (LIMA VAZ, 1990, p.
8).

Fica, pois, evidente pela argumentação acima vaziana que a crise da


modernidade tem o seu assentamento mais emblemático nessa espécie de
esquecimento do éthos originário. Sendo assim:

[...] a cultura enquanto é, na sua face objetiva, obra ou


pragma do homem e, na sua face subjetiva, ação ou práxis
humana, obedece ao movimento dialético que manifesta na
70
práxis uma natureza essencialmente axiogênica ou geratriz
de valor e, no pragma, uma natureza essencialmente
axiológica ou significativa de valor. Vale dizer, em outras
palavras, que a cultura é coextensiva ao éthos: ao produzir o
mundo da cultura como o mundo propriamente humano da
sua prática e das suas obras, o homem se empenha
necessariamente na luta pelo sentido a ser dado à sua
existência. A cultura, como éthos, torna-se para ele a morada
a partir da qual a realidade se descobre como dotada de
significação e valor (LIMA VAZ, 1990, p. 8).

Lima Vaz diagnostica a crise como um sintoma inevitável traduzindo-a


como momento de um processo dialético imanente à história. Nessa
perspectiva, visa ele:

Essa crise parece ser o pórtico obrigatório que a humanidade


deverá atravessar para penetrar no terceiro milênio. A
questão consiste em saber se ela o atravessará às cegas, em
direção ao desconhecido ou se, atravessando-o consciente e
lucidamente saberá, a partir dele, traçar os caminhos que
conduzam às almejadas terras de uma história
verdadeiramente una e universal, de uma civilização de todos
os homens. A consciência e a lucidez que devem
acompanhar essa passagem decisiva se alcançam, em
primeiro lugar, pela acertada diagnose da crise, pela correta
descrição dos seus traços essenciais, o que significa retomar
a análise do processo de universalização da história nos
tempos modernos a partir do núcleo irradiador do Ocidente, e
nele descobrir os pontos críticos em torno dos quais se
adensam os problemas hoje vividos pela humanidade na sua
primeira experiência efetiva de tornar-se sujeito de uma
história universal (LIMA VAZ, 1990, p. 8).

O déficit das éticas contemporâneas reside precisamente nisso: "fica


paradoxalmente relegado a um lugar secundário e quase evanescente o
fenômeno verdadeiramente originário da nossa vida ética que é a consciência
moral" (LIMA VAZ, 1995, p. 76). Sob esse prisma, volta a observar o
pensador em pauta:

A consciência moral acaba sendo objeto de intensas


discussões, e é submetida a procedimentos reducionistas
inspirados nas neurociências, na psicanálise, na sociologia do

71
conhecimento, na crítica das tradições culturais, na psicologia
religiosa (LIMA VAZ, 1995, p. 76).

Há, em meio a esse cenário todo um sentimento de assombro, ao


mesmo tempo um gesto de resistência como desafio frente à crise, crise, aliás
que já teria sido anunciada por Husserl (2008)13 e que cabe agora aqui,
melhor ser retratada no contexto mesmo da ética à luz da categoria de
consciência moral.

2.3. Consciência moral e crise

Não há como falar, em Lima Vaz, sobre o sentido último do éthos sem
se reportar ao sintoma da crise. A sua obra abre um diagnóstico preciso, isto
é, reconstitutivo no intuito de demarcar as origens da crise ética de nossos
tempos. Para levar adiante tal tarefa, o filósofo busca reconstituir a gênese da
consciência moral. Ele opera uma breve resenha histórica do problema.
Senão vejamos.

Lima Vaz parte de uma situação paradoxal como face oposta à


invocação permanente da consciência:

[...] observa-se, de um lado, uma exacerbação da atitude


individualista no estabelecimento dos critérios subjetivos do
comportamento, e de outro, no momento em que o indivíduo
julga dever ceder a fatores sociais ou psíquicos
poderosamente condicionantes do seu modo de agir, como o
poder, a moda, a opinião, a competição, o inconsciente e
outros, torna-se notória sua submissão a exigências que lhe
são objetivamente impostas (LIMA VAZ, 1998, p. 461-462).

13
Ver FABRI (2019).
72
O que dizer desse curioso paradoxo? A bem da verdade, ele envolve,
em nossos tempos, a linguagem comum como expressão de uma das
categorias fundamentais do pensamento ético. Tal paradoxo exprime,
flagrantemente,

[...] um indício indiscutível da crise dessa categoria ou, mais


profundamente, do próprio éthos no universo simbólico da
nossa civilização. Por conseguinte, a crise da ideia de
consciência moral e da sua presença eficazmente normativa
no agir dos indivíduos deve ser interpretada, tanto por razões
históricas quanto por razões teóricas (LIMA VAZ, 1998, p.
462).

Verdade seja dita de que éthos vivido ou propriamente a vida ética


emana historicamente dessa ideia de consciência moral que desemboca,
como vimos, nessa espécie de paradoxo incontornável:

Com efeito, a história da noção de consciência moral, lida


através das expressões teóricas que recebeu nos grandes
sistemas éticos, mostra-a como um dos polos estruturadores
da vida ética ou do que poderíamos denominar o éthos vivido,
o outro sendo o próprio éthos representado e socialmente
transmitido (LIMA VAZ, 1998, p. 462)14.

Assim, o efeito mais esperado não poderia ser outro: perde-se


completamente o conteúdo substancial da vida ética à medida em que se
desfigura a própria consciência moral. É que a tradição ética ao se constituir
um dos componentes essenciais do éthos, se descontrói inteiramente. A sua
“desconstrução” acaba por trazer consigo “a abolição do horizonte objetivo do
agir ético e, por conseguinte, a perda do conteúdo – ou a “desconstrução”
correspondente – da norma subjetiva última desse agir que é justamente a
consciência moral (LIMA VAZ, 1998, p. 463).

14
Ver Cardoso (2008).
73
Sendo assim, de onde mesmo exatamente emana a ideia de consciência
moral? O seu sentido ideal que acabou prevalecendo na tradição ética do
Ocidente reconhece sua gênese histórica em duas fontes, fontes das quais
“procedem as grandes categorias do nosso sistema de normas e valores: a
fonte greco-romana e a fonte bíblico-cristã (LIMA VAZ, 1998, p. 464). Ora,
curiosamente, uma vez recebido na Ética ocidental, o seu conceito conhece,
em nossos dias, a sua hora de crise. Assim, se é verdade que o princípio
socrático do conhece-te a ti mesmo, cujo conteúdo ético é notório, se tornara,
portanto, o “primeiro passo no caminho da noção de consciência moral na
filosofia antiga" (LIMA VAZ, 1998, p. 464), também é verdade que essa
premissa parece estar com os seus dias contados. Ela não parece ser
fundante mais. Se desconstruiu, se esfacelou. Não resiste à força do
paradoxo acima entrevisto. Ora, talvez tenhamos que recuperar algo aí, isto é,
voltar às origens dessa primeira enunciação no sentido de captar a sua
essência. Para tanto, Lima Vaz faz um balanço entrecruzando esse registro
inicial com a noção medieval, de cariz cristã, da consciência moral. Observa
ele;

O traço distintivo da concepção grega de consciência moral é


a tendência intelectualista que dá primazia à função judicativa
no conhecimento de si mesmo e é sob esse aspecto que é
assumida na antropologia plotiniana. A ideia de consciência
moral na tradição bíblica obedece na sua gênese a uma
motivação diferente. Nela não está prioritariamente em
questão o julgamento interior do indivíduo sobre seus atos,
mas a situação existencial do fiel diante da Palavra de Deus e
da sua Lei. A experiência dessa situação traduz-se
primeiramente num sentimento que mana do recesso mais
íntimo do ser humano, designado como o coração (p. ex., Jr
31,33; Ez 19,20-21; ver Pr 3,1) e que move a vontade,
inclinando-a ou não à obediência à Lei. Significação análoga
se encontra no Novo Testamento, a Lei aqui cedendo lugar à
Fé (p. ex., Mt 15,18-20 ou Mc 7,21 ou ainda At 15,9 a
referência à Fé como purificadora do coração). A consciência
moral mostra-se, segundo esse pressuposto antropológico,
com uma feição afetivo-voluntarística, e é como tal que
deverá encontrar-se com a concepção intelectualista grega na
evolução que terá lugar a partir sobretudo de Santo
Agostinho. Em Agostinho a experiência pessoal e a tradição
74
antigo-cristã se unem para colocar a noção de consciência no
centro da vida moral: um centro abissal e insondável (LIMA
VAZ, 1998, p. 465).

Mesmo como motivações diferentes, a noção de consciência moral é,


pois, definida como

[...] um ato que reflete sobre o agir moral para testificar, julgar
e acusar ou escusar, reunindo, pois, em síntese vital, além do
momento cognitivo expresso no juízo, o momento volitivo
presente na responsabilidade diante de si mesmo livremente
assumida. Em Tomás de Aquino harmonizam-se, portanto,
equilibradamente a tendência intelectualista da tradição grega
e a tendência voluntarista da tradição cristã. Esse equilíbrio,
no entanto, desfaz-se ante o voluntarismo radical dominante
na Ética tardo-medieval e uma nova figura da noção de
consciência moral começa a delinear-se com o advento da
Ética moderna. (LIMA VAZ, 1998, p. 465-466).

Esse primeiro breve balanço sistematicamente feito aqui pelo autor visa
esclarecer um aspecto da noção de consciência moral em seu caráter
judicativo e volitivo-afetivo. Ocorre que a partir do Renascimento e, sobretudo,
do século XVII, assistimos uma reviravolta, sem precedentes, quanto ao
estatuto mesmo do conceito de consciência moral. Lima Vaz caricatura esse
novo momento de “revolução cartesiana” que se estabelece, pois, num
registro metafísico ao inverter a prioridade entre o “ser” e o “pensamento”.
Tudo se passa como se na fundamentação do conhecimento é sujeito
realmente se tornasse o ponto arquimediano do real. Mais que isso: esse
sujeito se define antropologicamente como substância pensante, e,
noeticamente como “a primazia da razão metódica sobre a razão teorética ou
contemplativa na estruturação simbólica do mundo humano” (LIMA VAZ,
1998, p. 466). O que se tem aí é um paradigma tríplice – metafísico,
antropológico e noético –, paradigma esse que permite com que se
compreenda melhor o destino da consciência moral nos tempos pós-
cartesianos que ainda são os nossos. Lima Vaz lembra que essa inovação no
75
estatuto filosófico do cogito cartesiano imprimirá uma força semântica nessa
destinação. O termo conscientia, na razão moderna, dará a tônica de todo um
debate que marcará o desenvolvimento, mais tarde, das ciências humanas.
Ora,

Como é sabido, até os tempos cartesianos o termo


conscientia era usado apenas no campo da Ética para
designar justamente a consciência moral. A sua transposição,
por Descartes, aos planos metafísico, antropológico e noético
resultará na figura da consciência transcendental, consagrada
por Kant e que dominará, num sentido ou noutro, toda a
filosofia moderna (LIMA VAZ, 1998, p. 467).

O autor acima entende que tal transposição não é puramente retórica,


terminológica. Fato é que

O termo conscientia trazia, da sua história anterior, um teor


semântico único, na medida em que significava um ato
absolutamente autônomo de livre julgamento do sujeito moral
sobre si mesmo e, nesse sentido, era posto como instituidor
do ser moral na ordem subjetiva, tendo, no entanto, como
critério objetivo dessa moralidade a norma da razão reta
medida pelo Bem. É permitido pensar que alguma coisa
desse singular teor semântico do termo conscientia tenha
passado para o uso que dele será feito a partir de Descartes
no contexto de uma nova ideia da Filosofia. O que era ato da
consciência moral, em termos de instituição do sujeito ético, é
agora criação da consciência transcendental na produção de
todo o campo da inteligibilidade do ser, sendo, portanto,
norma imanente dessa inteligibilidade (LIMA VAZ, 1998, p.
467).

Ao fazer esse recorte, Lima Vaz reconstitui, em linhas gerais, a gênese e


a evolução semântica da noção de consciência que, com Kant, assume uma
função transcendental. A “consciência moral fica também sujeita, na estrutura
interna do sujeito, a uma instância superior de consciência que rege o ser, o
conhecer e o agir” (LIMA VAZ, 1998, p. 467). Ora, essa consciência superior é
76
a consciência transcendental. Isso posto, a Ética kantiana se vê diante de um
incontornável desafio: a sujeição da consciência moral à consciência
transcendental. Com isso, há dois traços caraterísticos da Ética moderna: o
primeiro é a “progressiva perda da centralidade da consciência moral como
fulcro da estrutura espiritual do ato ético, deixando-o assim desarticulado”
(LIMA VAZ, 1998, p. 467). Com essa limitação, o termo “consciência” é, por
sua vez, “submetido a uma incrível dispersão semântica na linguagem moral
contemporânea, abrangendo desde traços do conceito clássico até às mais
extremas tentativas de negação da sua especificidade ética” (LIMA VAZ,
1998, p. 468). O que há de intrigante nisso, segundo nosso filósofo, é que

[...] em face dessa polissemia interminável, vulgarizada muitas


vezes com o rótulo de “científica” pela mídia, e que é talvez o
sinal mais inequívoco da crise da consciência moral no sistema
de valores do homem contemporâneo, uma tarefa indeclinável
se impõe à reflexão ética, qual seja, a da recuperação do
conceito de consciência moral no seu perfil teórico de norma
subjetiva última e irredutível do agir moral, mediadora entre o
sujeito e o mundo ético (LIMA VAZ, 1998, p. 469).

O pensador brasileiro está cônscio que só há um caminho possível no


sentido de reabilitar o conceito de consciência moral: esse caminho terá como
ponto de partida uma “análise fenomenológica elementar da experiência da
consciência moral que admitimos ser, sob diversas expressões culturais, uma
experiência universal (LIMA VAZ, 1998, p. 469). Dizendo em outras palavras,
se faz necessário caracterizar a consciência moral, ainda no “nível puramente
fenomenológico como um ato original de re-conhecimento do próprio ato,
sendo evidente que um juízo sobre o próprio agir supõe alguma forma de
conhecimento desse agir na sua intenção, na sua efetivação e nas
circunstâncias que o acompanham” (LIMA VAZ, 1998, p. 470).

Ora, o que o delineamento fenomenológico do éthos consubstanciado


numa renovação do conceito de consciência traça é, a bem da verdade, outro

77
perfil da sua figura eidética: “a consciência moral é essencialmente livre”
(LIMA VAZ, 1998, p. 470). Quer dizer:

Essa liberdade é já inerente à própria iniciativa de avaliação


do seu ato pelo sujeito, e se estende, portanto, à norma dessa
avaliação. Estamos aqui diante da primeira manifestação da
consciência moral, dos componentes elementares e
irredutíveis com que se apresenta à descrição
fenomenológica. Eles subjazem às diversas formas culturais
que exprimem a experiência desse fenômeno nas mais
variadas tradições éticas (LIMA VAZ, 1998, p. 470).

Há aí, indubitavelmente, uma inspiração de fundo hegeliana. Lima Vaz


parece realmente reposicionar Hegel contra Kant que hipostasiara, em nome
de um Eu transcendental, a própria ideia de consciência moral. Eis porque

Isolando-se, a consciência moral refugia-se no mundo da


ficção sob a figura da bela alma, analisada magistralmente
por Hegel. Mergulhando raízes no obscuro mundo interior,
nas camadas elementares do inconsciente e da afetividade e
no seu revolvimento pela educação, pela cultura e por todas
as vicissitudes do nosso itinerário existencial e, por outro lado,
permanentemente confrontada com a realidade enigmática e
fugidia do mundo humano, a consciência moral não é, para
nós, um porto seguro ou um santuário de certezas. É o
desafio sempre renovado para confrontarmos nossas ações
com o imperativo primeiro do nosso ser moral, qual seja a
fidelidade em consentirmos ao apelo do Bem que se
apresenta a nós sob a face majestosa e incorruptível do dever
ou da obrigação (LIMA VAZ, 1998, p. 471).

Lima Vaz também está cônscio de que a consciência moral, uma vez
renovada, está longe de ser um “porto seguro”, o santuário da evidência. Tal
consciência se revela fenomenologicamente como desafiadora à medida que
sempre se confronta com o enigma do mundo, da existência em suas
vicissitudes inalienáveis. Assim,

78
Esse desafio – sem dúvida o mais grave entre os que se
levantam na nossa existência de seres racionais e livres –
impõe à Ética filosófica como ciência prática do nosso agir
segundo o éthos ou, fundamentalmente, segundo o Bem, a
tarefa de traduzi-lo no nível conceptual do discurso filosófico.
A experiência da consciência moral mostra-a com evidência
como elemento constitutivo do nosso agir moral. Ela é a
expressão da sua estrutura reflexiva, na medida em que agir
moralmente implica sempre como momento final da sua
efetivação em ato o juízo e avaliação imanentes do teor moral
do próprio ato. Nesse sentido, a consciência moral pode ser
considerada, em primeira aproximação, como sendo a
componente reflexiva da posição final do agir na sua estrutura
subjetiva, sendo o seu termo objetivo o fim por ele
intencionado. Ela se delineia, pois, como a face reflexiva da
síntese dos elementos e dos momentos que integram o
exercício efetivo do agir ético. Exprimir conceptualmente essa
reflexividade e definir suas funções no organismo da vida
moral, eis o alvo pretendido por uma investigação sobre a
consciência moral no quadro sistemático de uma Ética
filosófica (LIMA VAZ, 1998, p. 471).

Ao reelaborar uma teoria da consciência moral, objetivo último de Lima


Vaz, “reconheceríamos a expressão do fundo abissal do nosso ser, o ponto
candente de encontro da nossa liberdade e do nosso destino” (LIMA VAZ,
1998, p. 472). O filósofo quer dar corpo e alma a uma nova Ética filosófica
capaz de repor a reflexividade da consciência moral em seu sentido
teleológico como práxis. Nessa direção, Lima Vaz não é discreto em sua
simpatia para com aquele primeiro modelo ético que instaurara o sentido mais
originário da consciência moral: “é a experiência socrática da consciência
moral que está no ponto de partida de toda a história da Ética” (LIMA VAZ,
1995, p. 76). O éthos, em acepção grega, e, sobretudo, e sua raiz socrático-
platônica, mas também aristotélica, se torna o Bem a ser perseguido e, nessa
perspectiva, a fenomenologia do ato moral mostra-o, portanto, como
resultante da sinergia de três componentes essenciais: conhecimento,
liberdade e afetividade. Eis porque Lima Vaz se inclina ou se filia mais ao
paradigma platônico-aristotélico quando se trata de retornar às origens da
Ética:
79
Nessa linha inscrevemos nossa Introdução à Ética filosófica.
[...] Partimos da pressuposição que tornou possível em suas
origens a Ética, [...] a pressuposição de uma relação
constitutiva do ser humano a uma instância racional, em si
mesma trans-histórica, mas normativa de todo agir histórico: a
instância de um Bem transcendente. Essa instância
permanece como um invariante conceptual na variação dos
tempos e lugares. Vivida e pensada em diferentes formas
históricas, ela assegura a identidade da vida ética como
constitutiva da vida propriamente humana onde quer que se
manifeste, e deve ser considerada a razão última de
possibilidade da formação do éthos das comunidades
históricas particulares e da ideia do éthos de uma
comunidade política universal, se essa um dia vier a realizar-
se (LIMA VAZ, 2002, p. 241).

Esse paradigma acima como expressão do gesto inaugural da fundação


da Ética é sumamente caro a Lima Vaz. Lima tem claramente o interesse de
refundar uma ética universal sem perder o movimento dialético da história.
Escreve o filósofo jesuíta:

O agir ético, tanto da comunidade como do indivíduo,


compreendendo os costumes e hábitos, exprime a nossa
situação fundamental como seres que habitam a morada do
éthos. Ora, o agir se cumpre sempre em vista de fins, o que
significa que é sempre movido por razões. Mas o fim,
segundo a lição de Aristóteles", é sempre o bem, aparente ou
real, ou seja, se apresenta sempre sob a razão do melhor
(LIMA VAZ, 1996, p. 445).

Ora, são justamente tais elementos que a consciência moral irá reunir
numa síntese original e única. Como bem volta observar o autor:

A primeira determinação da estrutura conceptual dessa


síntese deve distinguir a modalidade causal com que cada um
dos seus elementos opera no exercício concreto do ato. Ora,
o ato moral manifesta-se na sua experiência pelo sujeito e no
seu reconhecimento pela comunidade ética como sendo, em
vital intercausalidade, um ato de conhecimento e de
80
liberdade, um ato necessariamente orientado para o seu
objeto como fim e posto pela livre escolha desse fim. Esse é o
fundamento da atribuição do ato ao sujeito segundo uma
relação singular e única de causa e efeito (LIMA VAZ, 1998,
p. 472).

Como vemos, Lima Vaz pensa em termos causais esse caráter sintético
triplamente elementar da consciência moral. A sua posição, sob essa ótica, é
profundamente aristotélica. Há um télos muito presente como ideal a ser
alcançado nessa recomposição teórica da ética vaziana. É uma ética que se
orienta para um fim último inabdicável. Esse fim é o éthos; éthos esse só
atingível via a práxis, isto é, o exercício do agir moral, reflexivamente
constituído. Por isso, ainda explicita o filósofo:

Admitida essa estrutura causal do agir, enquanto racional e


livre, no domínio ético, fica claro que a afetividade e a
situação, conquanto possam intervir profundamente no
exercício do ato e mesmo afetar a sua especificidade moral
(como no caso clássico da chamada “pulsão irresistível”; note-
se, porém, que aqui não são levados em conta
comportamentos patológicos que se situam, por definição,
fora do domínio da Moral) permanecem no nível de condições
e como tais são assumidas, segundo formas diversas, na
síntese operada pelo ato moral e, reflexivamente, pela
consciência moral (LIMA VAZ, 1998, p. 472).

Trazer esse argumento aqui é vital do ponto de vista vaziano. É que no


âmbito próprio dessa fenomenologia do éthos, “a mediação das condições
torna possível à universalidade abstrata do primeiro momento concretizar-se
na singularidade do ato na qual os momentos anteriores são suprassumidos
dialeticamente na forma de uma síntese original e única” (LIMA VAZ, 1998, p.
474). Como acompanhamos novamente, nada mais hegeliano que isso! Lima
Vaz jamais é discreto quanto a sua filiação a Hegel e, com este, o acento
dialético que perfaz todo esse movimento de mediação nas mais diversas

81
formas e condições num momento sintético efetivado pelo ato moral e como
ele inscreve, reflexivamente pela consciência moral.

Lima Vaz insiste no fato fundamental de que

O ato moral, como sinergia de razão e vontade ou liberdade,


participa necessariamente do predicado da reflexividade
próprio dos atos da razão. Sendo, porém, um ato livre, a
reflexão envolve não apenas a intencionalidade do conhecer,
mas igualmente a intencionalidade do querer, ou seja, o vetor
axiológico do ato, sua relação final com o Bem. A reflexão é,
pois, aqui, consciência moral. Ela é um auto-julgamento
imanente ao próprio ato e, sendo racional, obedece a uma
norma objetiva que não é senão o próprio Bem presente ao
sujeito sob a forma da razão reta (LIMA VAZ, 1998, p. 474).

Mais uma vez o caráter aristotélico não é perdido de vista sem, no


entanto, abdicar da formulação hegeliana quanto ao movimento intencional do
agir moral. Lima Vaz se mostra mais incisivo ainda quando diz que a
consciência moral é, em sentido próprio, reflexividade. Ela é uma
intencionalidade ao mesmo tempo que também liberdade.

Por outra parte, o autor retira da consciência moral o peso de ser uma
superestrutura ou, o que seria pior, uma instância adventícia que a ele venha
agregar-se. Bem ao contrário: a reflexividade que agora descobrimos no ato
moral opera “no cerne mais íntimo da pessoa, no indevassável recesso onde
cada um é posto diante do imperativo de julgar-se a si mesmo” (LIMA VAZ,
1998, p. 474). O que Lima Vaz sustenta é a tese de que

Justamente enquanto age no mais íntimo do ser moral, a


consciência cumpre as funções, designadas por uma
transposição metafórica da prática judiciária, que lhe são
atribuídas na tradição da Ética ocidental: testemunhar, acusar
ou escusar, finalmente julgar – julgamento incorruptível e
irrecorrível – a responsabilidade moral da ação. Essas
funções, corretamente entendidas, fundam-se, pois, na
interioridade da consciência e se exercem igualmente como
82
funções de auto-advertência dirigida ao agente moral
(conscientia monens), de arguição da desobediência à norma
moral (conscientia vindex), sendo que a essa função estão
vinculados alguns dos fenômenos psicológicos caraterísticos,
na sua manifestação normal, da vida moral, como o remorso,
o arrependimento, a regeneração interior, e que foram objeto
de penetrantes análises fenomenológicas por Max Scheler;
enfim, a consciência moral como luz interior (conscientia
illuminans), cujo obscurecimento atesta a perda do senso
moral e a entrada na noite do vício (LIMA VAZ, 1998, p. 475).

Lima Vaz não deixa de ter em vista as preciosas análises de Max


Scheler, importante fenomenólogo alemão herdeiro de Husserl, que retomara
a crítica nietzschiana à moral do ressentimento. O pensador brasileiro quer
resguardar a consciência e aquilo que ela pode conter de mais íntima
eticamente que é a reflexividade. Se não se quiser perder o “senso moral” sob
pena de entrar na “noite do vício” – expressão da crise da consciência moral
culturalmente instalada – será preciso resguardar, de fato e de direito, esse
imperativo reflexivo. Esse é o único capaz de efetivamente reabilitar a
consciência moral como expressão da liberdade para além de certos
condicionamentos sociais impostos ideológico ou coercitivamente. É o que o
filósofo atesta em mais uma de suas finas observações:

A consciência moral não é em nós um hábito inato nem a nós


imposto por pressões psico-afetivas, sociais ou culturais, de
sorte a constituir-se num automatismo cujos efeitos no nosso
agir sejam proporcionalmente inversos ao exercício da
liberdade. A consciência moral é, ao invés, o próprio agir
moral considerado na sua estrutura essencialmente reflexiva.
É, pois, um ato, e a sua gênese, bem como a sua atualização
permanente no curso da vida moral, confundem-se com o
desenvolvimento da personalidade e com a formação
progressiva da identidade ética através do crescimento e
fortalecimento do organismo das virtudes (LIMA VAZ, 1998, p.
475).

Lima Vaz parece, a todo custo, liberar a consciência de toda e qualquer


amarra. Ele quer assegurar naquela o seu mais pleno exercício: a reflexão.
83
Uma verdadeira consciência moral não abre mão disso, pois o que está em
jogo é a superação mesma de uma crise que cada vez mais tem se
aprofundado em nossos dias.

Nesse sentido, fortalecer o vigor da consciência moral e sua


presença mediadora entre o indivíduo e a realidade,
oferecem-se como tarefa primordial da educação ética do
próprio indivíduo, e implicam necessariamente uma
incontornável responsabilidade dos atores sociais influentes
na formação de um éthos socialmente partilhado. A crise da
consciência moral deve ser considerada, portanto, como
manifestação da crise mais profunda da própria vida ética na
sociedade contemporânea, provocada pela desorientação do
agir ético errante em meio à chamada “anarquia dos valores”,
ou pela anomia que reina no ilimitado campo opcional que se
apresenta ao livre arbítrio do indivíduo ou às tendências da
sociedade. A verdade da consciência moral é, pois, a verdade
do próprio ato moral, e é aí que irá decidir-se o desenlace
histórico da sua crise (LIMA VAZ, 1998, p. 475-476).

Há uma verdade aí em jogo: essa verdade é o que ressignifica o próprio


agir moral como uma das tarefas da fenomenologia do éthos. É preciso situar
tal verdade em meio àquilo que muitos pensadores têm insistentemente
diagnosticado sintomaticamente como uma crise dos valores. Como Lima Vaz
retrata em sua Entrevista:

Como é notório, as sociedades ocidentais vivem, nesse fim de


século, uma generalizada crise ética que se traduz em formas
anômicas de comportamento, num permissivismo sem limites
de atitudes e condutas, denotando uma grave perda de
referências éticas nos indivíduos e na sociedade como um
todo. Esse tipo de crise reclama o exercício de uma reflexão
centrada sobre o problema dos valores e sobre a ideia de
uma práxis correspondente a uma escala de valores
racionalmente estabelecida. (LIMA VAZ, 2000c, p. 35).

Na mesma Entrevista, o filósofo ainda vai mais longe no que tange a


esse acurado diagnóstico.

84
Segundo uma análise que me parece fundamentalmente
correta, na raiz da situação acima descrita está o fenômeno,
já entrevisto por Bergson, de um desequilíbrio ou
descompasso entre o que chamamos a produção material da
sociedade e seu universo simbólico. Temos de um lado o
crescimento vertiginoso da tecnociência, e, na sua esteira, a
produção incessante e exponencialmente crescente de
objetos que passam a ocupar quase totalmente o mundo
humano, tornando-o cada vez mais um mundo de artefatos. A
essa invasão do artificial corresponde, nos indivíduos e na
sociedade, o aparecimento de mecanismos sempre mais
aperfeiçoados de utilização. O útil erige-se em categoria
primeira e quase exclusiva da prática social. Ora, o útil não
pode, por definição, sendo condicionado pelo objeto por ele
visado, desejado ou possuído, presidir ao universo simbólico
do ser humano onde estão presentes fins, normas e valores
irredutíveis ao critério da simples utilidade. Negá-lo seria fazer
do ser humano apenas o sujeito inquieto de desejos sem fim,
aprisionado à lógica do consumo e da satisfação e sem outra
finalidade superior na sua existência. Regido pela categoria
do útil, o universo simbólico no qual se exprimem nossas
razões de viver seria apenas a versão ideológica do universo
material dos objetos oferecidos ao consumo. É essa a face
mais visível do nosso mundo “globalizado" e é para ela que
se voltam as reflexões de filósofos, moralistas e de todas as
pessoas lúcidas que se preocupam com o futuro da
civilização. Essas reflexões são necessariamente de natureza
ética e daí a atualidade onipresente da Ética (2000c, p. 37).

O cientificismo e com ele o tecnicismo insuflado numa sociedade cada


vez mais entregue a toda sorte de artificialismo, só pode promover o
egocentrismo como “virtude cívica”. Ora, a perspectiva apresentada por Lima
Vaz e, sobretudo, a resposta à sua pergunta vai de encontro à reflexão que
Edmund Husserl já apresentara na década de 30, do século passado, em
Europa: Crise e Renovação. Na introdução ao texto, Pedro M. S. Alves nos
traduz, de maneira brilhante e sintética, o pensamento husserliano. Escreve o
tradutor e intérprete lusitano:

Não se trata, pois, com o tema da crise, da verificação de um


fracasso da cultura da Razão. Pelo contrário, trata-se de
renovação, não de inovação. E a renovação não é a resposta
85
à falência de um projeto. Ela consiste, antes, no regresso ao
sentido original da cultura europeia e no cumprimento da
exigência de constante renovação que lhe é ínsita, ou seja, de
constante reatualização do seu ideal de vida. Em suma, a
crise detectada não é culminação de uma trajetória da cultura
europeia que se revelaria, por fim, inviável, mas um abandono
de rumo; e a renovação exigida não é, por isso, reinvenção,
mas regresso e repristinação. Husserl aponta com clareza o
ponto em que a crise se originou: trata-se de um transvio da
racionalidade, de uma interpretação sua demasiada estreita,
sob o padrão das ciências matemáticas da Natureza, com as
inevitáveis consequências do naturalismo e do objetivismo na
compreensão da essência da subjetividade (ALVES, in:
HUSSERL, 2014, p. x).

Pois bem, a posição husserliana da crise da razão acima destacada é


algo que Lima Vaz também tem em vista em sua crítica da modernidade.
Pedro Alves comentara muito bem ao reconstruir tal diagnóstico o que leva
evidentemente o pensador brasileiro a reelaborar uma ótica ética que não
recaia, por sua vez, no paradigma em curso na razão moderna. Disso se
segue um incontornável questionamento. Como pensar uma real comunidade
ética em perspectiva puramente utilitarista? Como emancipar o sujeito ético
condicionado pela lógica do consumo? Como restituir o sentido15 último do
éthos como Bem sem uma autêntica consciência moral? Responder a isso
implica refazer, uma vez mais, certo itinerário da Ética. Senão vejamos:

[...] o itinerário de uma Ética viável nas terras da razão


moderna deve recuar aquém das suas fronteiras e
reencontrar a trilha platônico-aristotélica, para tentar prolongá-
la na floresta de racionalidades que cobre a cultura desse fim
de milênio. Não estará aqui uma alternativa possível para o
desconcerto ético do nosso tempo? (LIMA VAZ, 1995, p. 78).

15
Ver também: "Sentido e não-sentido na crise da modernidade". In: Síntese Nova
Fase, Belo Horizonte, v. 21, n. 64 (1994): 5-14.

86
Lima Vaz expressa nessa alternativa outra reconfiguração do éthos. Em
que pese as reservas dele para com a Psicanálise, sobretudo, no tocante à
constituição da consciência moral, ao nosso ver, a tradição psicanalítica, em
seus desdobramentos após os trabalhos de Freud, converge, em certo
aspecto, com algumas intuições éticas importantes a partir da obra de Lima
Vaz que pretendemos trazer, aqui, à baila, sob alguns lampejos ou registros.

87
3. ÉTHOS E PSICANÁLISE

3.1. Intuições éticas (I:) A esfera do psíquico

Um traço marcante das intuições na obra de Lima Vaz e que, raramente,


ou quase nada, tem merecido a devida atenção da crítica, é a sua recepção
da Psicologia que tem importantes ressonâncias, é claro, na própria
Psicanálise. É claro que esse recorte não poderia deixar de nos interessar,
sobretudo, levando em conta a formação e a experiência clínica de nosso
trabalho aliadas à formação filosófica. Esse propósito parece se coadunar
com o pano de fundo mais amplo que consiste basicamente em articular Ética
com Psicanálise em seu estrato mais genuinamente originário, ou se quiser,
para empregar os termos vazianos, de um éthos vivido.

Para tanto, não pretendemos, aqui, dado os limites da dissertação,


ensejar um maior aprofundamento do tema; algo que almejamos realizar,
mais a contento, noutra pesquisa, ainda em andamento, concernente ao
doutorado. O interesse aqui reside tão somente em demarcar, em suas linhas
gerais, esse movimento no curso mesmo da reflexão vaziana, cortejado por
sua própria antropologia de base, e avaliar, sumariamente, até que
ponto/onde o mestre jesuíta, de fato, pode nos oferecer subsídios ou lançar
sementes nessa seara.

Antes de tudo, muito embora Lima Vaz não tenha redigido um tratado
específico sobre a psicanálise, ele, ao menos, oferece algumas indicações
preciosas acerca da Psicologia em geral, bem como a sua difusão, na
passagem do século XIX ao século passado, situando a própria corrente
psicanalítica como um movimento de pensamento no interior dessa grande
área. Esse apontamento realizado pelo pensador brasileiro não se
circunscreve sem levar em conta a maneira pela qual ele retoma e aprofunda
o próprio conceito de psyché em seu trabalho de Antropologia Filosófica I,
88
obra essa que tivemos a ocasião, logo no início do capítulo anterior, de
esboçar muito ligeiramente, em particular, acerca da categoria de corpo.
Senão vejamos.

É no capítulo II intitulado "Categoria do Psiquismo" concernente à 2


parte denominada Sistemática, Seção I, que Lima Vaz aborda mais
diretamente a questão de fundo. O filósofo, já de princípio, chama a atenção
para o real problema do “psíquico” ou do “anímico”, assim como o problema
do “corporal” ou “somático”; problemas tais que remontam às origens da
cultura e percorrem, é claro, toda a história da filosofia ocidental. Trata-se,
como se sabe, de uma perspectiva que se prefigura desde os tempos gregos,
na primeva cultura helênica, cujos desdobramentos adquire um tom
semântico próprio em diferentes discursos até mesmo no interior da obra de
um autor como Platão, tão bem retratado por Rachel Gazolla de Andrade em
seu clássico estudo sobre o tema (1994, p. 12-13):

Mas por que estudar a alma? Porque é exatamente essa


noção que, dada sua dificuldade, tem amparado muitas
leituras platônicas de inspiração medieval e moderna, mesmo
que isso não seja dito expressamente. Porque a alma é uma
noção de tal modo antiga, e de tal modo atual, que refletir
sobre ela é, também, refletir sobre o homem no seu mais
amplo espectro. A alma é “anima”, uma boa tradução latina
para psychê, e constitui-se como fundamento de todo o
conhecimento humano, teórico e prático, de todo o cosmo em
movimento, da vida, enfim. Mas, a psychê não é a ratio e não
é a essentia agostiniana. Para nós, modernos, a psychê como
princípio de vida já se perdeu, e no seu lugar resta um sentido
restrito de alma como razão16.

Andrade dá a tônica do tema de fundo acerca da psyché que se tornou


paradigmática na tradição filosófica. Como bem nota Lima Vaz (1991, p. 198):

16
Esse, aliás, é um tema que consagraremos um tópico especial no próximo projeto
de pesquisa no sentido de melhor articular a circularidade de fundo entre éthos,
psyché e physis. Aqui, tão somente, nos limitamos por indicar, ao menos, a cara
questão. Para tanto, ver Platão (1975; 1979; 1988; 1999).
89
“Os termos psyché, pneûma evocam a metáfora do sopro vital, assim como
os vocábulos latinos anima, animus, spiritus”17. O filósofo observa que

[...] a tradição ocidental conhece, com relação à estrutura


psíquica do homem, dois esquemas fundamentais: o
esquema dual (relação alma corpo) e o esquema trial,
(relação corpo – alma – espírito). O primeiro recebeu uma
interpretação ontológica e foi consagrado na tradição da
teologia e filosofia escolásticas, sobretudo pela de Sto. Tomás
de Aquino. Ao longo da história foram sugeridos diversos
modelos da relação dicotômica alma – corpo, ou como
componentes distintos ou mesmo independentes (dualismo)
do homem. Por outro lado, a relação do psiquismo com as
atividades superiores que se manifestam no homem (razão e
liberdade) apresenta-se igualmente como fonte de problemas
já pressentidos por Platão e Aristóteles e tornados mais
agudos com o advento da Psicanálise e com o
desenvolvimento da neurofisiologia do cérebro (1991, p. 187).

O que o pensador brasileiro retrata acima é um quadro geral do


problema. Esse quadro buscamos, em boa medida, configurá-lo aqui no
primeiro capítulo, mas há um elemento novo agora. Lima Vaz não perde de
vista sobre o quanto a Psicanálise e a neurofisiologia modernas retomam a
herança grega, mais notadamente, de fundo platônico-aristotélica. A
psicologia contemporânea, em suas inúmeras facetas, representa um esforço
próprio, singular, em dar vazão a um questionamento que remonta há pouco
mais de 25 séculos de história da filosofia. E, ao fazer isso, reacende um
papel hermenêutico decisivo, sobretudo, do lado da Psicanálise. A
Interpretação dos Sonhos, por exemplo, é um desses primeiros movimentos,
na obra freudiana, de trazer à tona o princípio de que todo ato ou
comportamento humano tem um ou dois sentidos. Os sonhos se tornam, em
contraponto à certa tradição cartesiana, um campo privilegiado de leitura, de
compreensão caracterizando-se como um domínio de evidência singular. Ora,
Lima Vaz reconhece que a nossa reflexão sobre o psíquico se situa numa

17
Ver, p. ex., Erwin Rohde (2006).
90
posição mediadora entre o corporal e o espiritual. Por isso mesmo ele
entende e traz essa tese para o seu texto de que há uma dimensão de pré-
compreensão do psiquismo. Essa pré-compreensão pressupõe, pois, que no
esforço de compreender-se a si mesmo como ser psíquico, “o homem parte
necessariamente de sua situação fundamental, que é a situação do estar-no-
mundo, ou estar presente no mundo que, como Natureza, o determina ou o
submete a suas leis” (LIMA VAZ, 1991, p. 188). Assim, “a primeira
determinação mundana ou natural dessa presença é a determinação espaço-
temporal, ou seja, é o estar no aqui e agora do mundo” (1991, p. 188). Qual
seria, então, o estatuto dessa presença, para dizer em linguagem
fenomenológica, em carne e osso? Lima Vaz responde:

Observamos, porém, que, na esfera do psíquico, esse estar


no aqui e agora do mundo não denota uma presença
imediata, como sucedia no caso da presença corporal, mas
uma presença mediata, que se dá por meio da percepção e
do desejo. Trata-se, pois, da presença de um Eu percipiente e
apetente. A passagem do estar-no-mundo para o ser-no-
mundo, ou da presença natural para a presença intencional,
dá-se aqui no sentido de uma interiorização do mundo ou da
constituição de um mundo interior (1991, p. 188).

Essa passagem, ad hoc, é extremamente precisa. O autor traz à baila a


verdadeira esfera do psíquico à luz, é claro, do que ele chama de pré-
compreensão. Como ele entende isso? Ele compreende, portanto, que o
campo do psiquismo não pressupõe uma presença imediata, mas mediata.
Fica evidente, ao menos, o movimento dialético que aí se inscreve. Lima Vaz
toma o partido pela dialética ao invés da intuição, pura e simples. Mais: ele
chega até mesmo falar de percepção e desejo. Essa esfera do psiquismo
comporta a presença de um “Eu percipiente e apetente”. Com isso, assistimos
a passagem de um simples “estar-no-mundo” para o “ser-no-mundo”, a
transição mesma de uma “presença natural” a uma “presença intencional”.
Como vemos, o vocabulário fenomenológico aqui salta os olhos. Ele vai num
movimento de Hegel a Heidegger, Gabriel Marcel, Sartre e Merleau-Ponty,
91
sem perder de vista, é óbvio, Husserl. Ao mesmo tempo, nas trilhas desse
vocabulário, outro conceito também parece se impor: a noção de corpo. É o
que Lima Vaz trabalhou no capítulo anterior (cf. 1991, p. 175-186) de seu
texto quando se reporta à categoria de corpo próprio. Ali, ele demarcara bem
a clássica e capital diferenciação fenomênica entre Corpo (Körper) e Corpo
vivo (Leib) a fim de melhor caracterizar, de que corpo, afinal de contas, se
está falando. E, agora, no movimento desse segundo texto, ele, então,
emplaca:

Pelo “corpo próprio” o homem se exterioriza, ou constitui sua


expressão ou figura exterior, e o Eu corporal é como que
absorvido nessa exteriorização. Pelo psiquismo o homem
plasma sua expressão ou figura interior, de modo que se
possa falar com propriedade do Eu psíquico ou psicológico. O
domínio do psíquico é, pois, o domínio onde começa o
homem interior, e onde começa a delinear-se o centro dessa
interioridade, ou seja, a consciência. Desse modo, emerge
aqui nitidamente o polo do Eu, uma vez que só se pode falar
de consciência se se trata da consciência de um Eu,
implicando a reflexividade que permite opor o Eu a seus
objetos (LIMA VAZ, 1991, p. 188).

O autor apresenta, na sequência, o sentido e alcance dessa pré-


compreensão:

A pré-compreensão do psíquico tem lugar nesse campo


definido pela referência da vida consciente ao polo do Eu. Por
outro lado, no entanto, o psíquico é captação do mundo
exterior e é a tradução ou reconstrução desse mundo exterior
num mundo interior que se edifica sobre dois grandes eixos: o
imaginário e o afetivo, ou o eixo da representação e o eixo da
pulsão. Aí a pré-compreensão do psíquico se dá num
entrecruzamento entre o estar-no-mundo e o ser-no-mundo,
entre a presença natural e a presença intencional. Mas o Eu
consciente mergulha também, e profundamente suas raízes no
inconsciente e, assim, o estar-no-mundo pelo psiquismo
assenta numa dimensão que não é alcançada pela unificação
consciente do mundo interior, a dimensão da “alma natural”
(die natürliche Seele) na terminologia de Hegel, e que marca a
92
pré-compreensão do psíquico com a experiência de estados
sobre os quais cessa ou se atenua a unificação consciencial do
Eu, como, por exemplo, o estado onírico e os estados
paranormais (LIMA VAZ, 1991, p. 188-189).

Essa passagem, um tanto longa, fala por si mesma. Lima Vaz não abre
mão de um Eu, do marco de uma consciência, mas não abre mão também do
caráter intencional, pré-compreensivo, fáctico, afetivo, pulsional que o
psiquismo encerra. Tudo é pensado, aqui, a partir do nível da pré-
compreensão do psíquico, ou seja, unidade fundamental assegurada pelo Eu
consciente. Nesse sentido, mostra o autor, “podemos dizer que, na
experiência da vida psíquica, manifesta-se uma reflexividade dos atos
psíquicos que os distingue radicalmente dos processos orgânicos que têm
lugar no domínio da corporalidade” (LIMA VAZ, 1991, p. 189).

O filósofo ainda não deixa de pôr, em evidência, o papel espaço-


temporal nesse processo. Como ele mesmo nota:

Ao tratar da corporalidade, vimos que a passagem do estar-


no-mundo ao ser-no-mundo se dá primeiramente pela
passagem do espaço-tempo físico ao espaço-tempo humano.
[...] Tanto o espaço como o tempo; adquirem uma
configuração e um ritmo próprios no fluxo da vida psíquica.
Não se trata, evidentemente, de uma simples negação do
espaço-tempo físico ou do espaço-tempo do “corpo próprio”,
mas de uma suprassunção dialética: a exterioridade objetiva
do espaço-tempo do corpo é negada em si para ser
conservada em sua interioridade subjetiva ou em sua
referência ao centro unificador do Eu ou da consciência
psicológica (LIMA VAZ, 1991, p. 189).

Lima Vaz, como fica evidente, trata esse tema em linguagem hegeliana.
Essa é a expressão máxima da qual a sua obra jamais perde o ancoradouro.
Aliás, ele é um “fundacionista” confesso. É o que deixa claro em uma de suas
últimas Entrevistas:

93
Ligo-me a uma tradição para a qual a filosofia eleva-se, como
que por um movimento inato à sua natureza, sobre o
transitório e o événementiel e procede à busca de princípios
que são também fundamentos. Em outras palavras, só
entendo a filosofia como “fundacionista”, para usar um termo
hoje em moda (LIMA VAZ, 2000c, p. 36).

O que Lima Vaz quer pensar com isso é que a sua obra se traduz numa
busca por princípios, no sentido clássico mesmo da palavra. Ele encontra em
Hegel a possibilidade de situar a pré-compreensão do psiquismo num nível
fundamental, nível esse “estrutural original no homem que se mostra
irredutível à estrutura somática” (LIMA VAZ, 1991, p. 189). É nesse plano que,
segundo o pensador brasileiro, começa a “delinear-se a identidade do sujeito,
exprimindo-se fundamentalmente no “sentimento-de-si’ (Selbstgefühl), e que
se consumará na unidade espiritual do Eu inteligível” (1991, p. 190).

O segundo momento desse texto de Lima Vaz se dirige agora para o


que ele chama de compreensão explicativa do psiquismo. Observa ele que a
ciência do psiquismo, ou, em sentido mais próprio, Psicologia (o nome
remonta a Goclenius, no século XVI), corresponde a um surgimento recente
que só viria adquirir estatuto no final do século XIX. Tal ciência teve, sem
dúvida, uma evolução rápida e complexa, a ponto de vir ramificar-se em
várias direções propiciando o surgimento de escolas diversas e mesmo
opostas entre si. Ao mesmo tempo, como nota o autor,

[...] embora signifique literalmente “ciência da alma”, sendo a


Psicologia uma ciência experimental, que adota basicamente
o modelo epistemológico das ciências empírico-formais, nela
não pode ter lugar a ideia de “alma”. É, propriamente, a
ciência do psiquismo como estrutura constitutiva do homem,
na medida em que pode ser investigado experimentalmente
(LIMA VAZ, 1991, p. 190).

Ele ainda comenta:

94
A Psicologia é, talvez, a ciência do homem mais próxima da
Filosofia e cujos conceitos se encontram frequentemente
ligados a uma longa tradição filosófica. Por outro lado, a
diversidade de métodos e modelos nos autoriza a falar de
“Psicologias”, dificilmente redutíveis a um quadro conceptual
e metodológico único. A própria caracterização científica dos
ramos da Psicologia conhece variações notáveis, desde a
Neuropsicologia, estreitamente ligada à Neurofisiologia, até à
Psicanálise, cujas pretensões científicas continuam a ser
discutidas (LIMA VAZ, 1991, p. 190).

De um modo geral, duas grandes escolas dão a tônica da Psicologia


contemporânea. Inicialmente, temos a corrente “comportamentalista” ou,
propriamente, behaviorista, que opera, exclusivamente, com o esquema
estímulo-resposta (S – R) a ponto de excluir, metodologicamente, toda
descrição dos estados interiores do sujeito. É a escola de Skinner, Watson e
Pavlov. Em segundo, outra vertente que poderíamos classificá-la de
cognitivista, que emprega a teoria dos modelos que intentam exprimir o
funcionamento da vida psíquica do indivíduo, procedendo, pois, por via
hipotético-dedutiva relativa às predições logicamente fundadas no
comportamento do modelo, comparando-as com o comportamento observável
do indivíduo. Como mostra Lima Vaz,

[...] para a imensa maioria dos psicólogos contemporâneos, a


Psicologia científica é uma ciência das condutas, isto é, dos
comportamentos que exprimem um intercâmbio funcional com
o meio ambiente (não apenas material como nos processos
fisiológicos) tendo em vista a adaptação do indivíduo às
modificações incessantes do meio. Daqui o fato de a
Psicologia começar com o estudo das condutas animais para
passar depois às condutas humanas, nas quais é difícil não
levar em consideração o ponto de vista hermenêutico. A
compreensão explicativa ou a ciência do psiquismo, cuja
estrutura epistemológica apresenta o paradoxo inicial de ser
uma ciência de um objeto que é sujeito, mostra, assim, uma
oscilação de métodos, enfoques e temas abrangendo um
campo muito vasto, desde as condutas normais até às
chamadas condutas “anormais” (1991, p. 191).

95
O que o autor acima discute é que a compreensão explicativa do
psiquismo se concentra, fundamentalmente, na noção de consciência como
um dos polos em torno dos quais se organiza a vida psíquica, sendo que os
outros são o inconsciente e os estados supraconscientes. Sob esse prisma, o
problema da consciência na Psicologia científica, abordado ora sob o ponto
de vista da psicologia cognitivista, ora do ponto de vista de suas bases
neurofisiológicas, permanece uma ordem de questão aberta e não
satisfatoriamente resolvida. Assim,

[...] de qualquer ângulo sob o qual se considere o problema


da constituição de uma ciência do psiquismo, dois dados
fundamentais aparecem claramente: o primeiro é a
impossibilidade de uma total objetivação da vida psíquica, ou
da impossibilidade de eliminação do sujeito na articulação
sujeito-objeto que se apresenta desde o início como “objeto”
da Psicologia científica; o segundo é o caráter abstrato da
mediação com que o sujeito (aqui, o sujeito da compreensão
explicativa ou da ciência psicológica) opera a passagem do
dado (os fenômenos psíquicos observáveis) à forma (os
conceitos e explicações da Psicologia científica). Esse caráter
abstrato da mediação é imposto pelos próprios limites
metodológicos da ciência do psiquismo. Ele deverá ser
suprassumido no nível da compreensão filosófica (LIMA VAZ,
1991, p. 191-192).

A impossibilidade de objetificar a esfera do psiquismo indica, justamente,


sobretudo, no terreno da Psicanálise, um limite metodológico de princípio.
Esse limite não retira o caráter científico dela entre outras formas de
procedimentos psicológicos. Isso aqui, é claro, retoma uma discussão acerca
do estatuto epistemológico da psicologia. Essa posição exige, segundo Lima
Vaz, uma terceira ordem hermenêutica: a compreensão filosófica ou
transcendental do psiquismo.

Como o filósofo assevera, “ao determinar o objeto que a reflexão


filosófica tem em vista quando se volta para o domínio do psíquico, temos
96
diante de nós, em primeiro lugar, a aporética histórica do problema. A
Antropologia cultural de um lado e, particularmente, a História das religiões e
a Fenomenologia religiosa de outro mostram-nos o problema do psíquico
como sendo, fundamentalmente, o problema de uma dualidade estrutural
alma-corpo” (LIMA VAZ, 1991, p. 192).

Nosso filósofo abre uma nova passagem naquilo que chama de


aporética crítica da questão, ou seja, há uma aporia fundamental do
psiquismo:

[...] parece residir, de um lado, na tensão ou oposição entre o


psíquico e o somático e, de outro, há tensão ou oposição
entre o psíquico e o noético. De fato, o psiquismo não define
o domínio de nossa presença imediata no mundo. A presença
psíquica é mediatizada pela presença somática, e essa
mediação permite o estabelecimento de distância entre o
sujeito e o mundo, sendo este não apenas captado, mas
também interpretado pela atividade psíquica. Daqui procede o
caráter egocêntrico do mundo interior do psiquismo, que
deverá ser superado por uma forma superior de objetividade
no plano do noético ou espiritual (LIMA VAZ, 1991, p. 192-
193).

Isso posto, ou seja, o aspecto criticamente aporético, exige-se, portanto,


um novo momento, o momento eidético de nossa compreensão filosófica do
psiquismo. Como sustenta Lima Vaz:

Desde o ponto de vista filosófico, o eidos do psiquismo se


define por esta posição mediadora entre a presença imediata
no mundo pelo “corpo próprio” e a interioridade absoluta (ou a
presença de si a si mesmo) pelo espírito. O psíquico se
organiza segundo um espaço-tempo que não coincide com o
espaço-tempo físico-biológico, ao qual está ligado o corpo,
mas tem suas dimensões e seu ritmo próprios. Ele ordena o
fluxo da vida psíquica em termos de percepção,
representação, memória, emoções, pulsões. Mas, assim
como no somático há como que uma espacialização do
tempo, assim, no psíquico, se dá uma como que
temporalização do espaço. O tempo psíquico não é
97
mensurável com uma medida matemática, sendo estruturado
em ritmos distintos de intensidade vivida que constituem
propriamente uma “duração” (durée), à qual se submete o
mundo interior (1991, p. 193).

Desse modo, “a categoria do psiquismo deve exprimir, no discurso


filosófico que tem por objeto o ser do homem, ou na ontologia do ser-homem,
a suprassunção dialética do que é dado, ou da natureza do psíquico, aqui já
pré-compreendida pela mediação empírica do saber do homem sobre si
mesmo” (LIMA VAZ, 1991, p. 193). O autor brasileiro está cada vez mais
cônscio desse novo momento transcendental do psiquismo que assume,
seguramente, um viés filosófico. Ele assim compreende que essa “mediação
transcendental do psíquico deve, pois, ser considerada como essencial e
constitutiva da própria compreensão filosófica do ser do homem e, portanto,
do discurso ontológico que responde à questão “o que é o homem?" (1991, p.
194). Tal mediação corresponde a um passo decisivo contra toda sorte de
reducionismos como, por exemplo, a redução do psíquico ao somático ou, no
plano puramente intelectualista, a redução do psíquico ao noético.

A fim de melhor caracterizar o estatuto ontológico e, portanto,


transcendental do psiquismo, Lima Vaz edita, num só parágrafo, essa
instrutiva passagem:

Por outro lado, a mediação transcendental implica a posição


do psiquismo (momento tético) como momento mediador
entre a imediatidade do somático no aqui e agora do espaço-
tempo físico-biológico e a universalidade ou abertura à
totalidade do ser que se manifestará no nível do noético. O
psíquico se apresenta, pois, como domínio de uma presença
mediata do homem no mundo e como primeiro momento da
presença do homem a si mesmo, presença essa mediatizada
pelo mundo interior do próprio psiquismo. Podemos dizer,
portanto, que estruturalmente o psiquismo é o sujeito
exprimindo-se na forma de um Eu psicológico, unificador de
vivências, estados e comportamentos. Ao se pôr em sua
unidade ontológica (momento tético), o Eu assume toda a
amplitude do psíquico. Relacionalmente, no nível do
psiquismo constitui-se a linguagem, que é a forma específica

98
de comunicação entre os sujeitos (relação intersubjetiva), e
que investe igualmente a tradução psíquica do mundo
exterior, conferindo uma dimensão psíquica ao acesso às
coisas pela relação objetiva (LIMA VAZ, 1991, p. 194).

O que Lima Vaz insiste é, a bem da verdade, sobre o quanto esse


momento transcendental traduz um movimento dialético de suprassunção.
Aliás, a dialética só se compreende como superação:

Isso porque se o homem, como espírito, deve suprassumir


dialeticamente, como veremos, a exterioridade do corpo e a
interioridade do psíquico na “identidade na diferença” interior-
exterior que irá caracterizar o noético ou espiritual, nessa
suprassunção deverá estar presente nosso existir no tempo e
nosso declinar inelutável para a cessação desse existir, isto é,
para a morte (LIMA VAZ, 1991, p. 195-196).

Lima Vaz parece recortar, aqui, outro tema caro à fenomenologia: a


finitude. A existência, a vida são impensáveis sem o seu lado paradoxal: a
morte. Assim, se é verdade que o “corpo assegura a nossa permanência no
espaço-tempo mundano” (1991, p. 196), há de se levar em conta que uma
vez

Arrastada pelo fluxo do tempo físico, essa permanência se


contrapõe, com efeito, a esse derivar incessante na medida
em que, estruturada segundo um espaço-tempo já
propriamente humano, ela situa o homem num espaço cujos
referenciais são postos pelo próprio homem ao fazer do
mundo a sua morada: a casa, o caminho, a paisagem, o
horizonte familiar. Nesse espaço, o tempo tende a imobilizar-
se na espacialidade em que o mesmo se instala: as mesmas
coisas tomando iguais os dias numa transposição
propriamente humana dos ritmos físicos e biológicos. No
psiquismo, o espaço-tempo se interioriza e o tempo tende a
prevalecer na medida em que o mundo humano, como mundo
interior, se distende entre o que foi e o que será. A
consciência interior do tempo constitui-se entre a retenção e a

99
protensão, segundo a terminologia de E. Husserl em suas
análises clássicas do problema (LIMA VAZ, 1991, p. 196).

Lima Vaz, no entanto, mostra o quanto a nossa estrutura ontológica se


vê diante desse “embate abissalmente temeroso” no qual “a indeterminação
do horizonte da protensão é, de fato, suprimida pela presença de um
horizonte absoluto, paradoxalmente oculto ou indeterminado em sua própria
presença inelutável, na qual esbarra a consciência interior do tempo: o
horizonte da morte” (LIMA VAZ, 1991, p. 196).

Afinal, o que esse estudo vaziano indica, em suas linhas gerais, acerca
do estatuto da psyché ou, como ele prefere chamar, da esfera psíquica? Ele
apenas descreve que

[...] a inscrição do ser-para-a-morte no ser-no-mundo do


homem atinge em seu âmago a estrutura do espaço-tempo
humano. Ela abala em sua raiz a permanência do corpo em
sua morada mundana, mostrando-o como carne no sentido
bíblico, sua fragilidade e em seu efêmero florescer. Ela
distende ao extremo o tempo interior do psiquismo, suspenso
como momento evanescente entre a memória e a
expectação. Assim, a morte, sendo um evento biológico
inscrito por antecipação na estrutura do ser vivo que é o
homem, mostra-se, na verdade, como um evento ontológico
ou como simples dissolução da oposição dialética entre o
somático e o psíquico que define nosso ser-no-mundo. Essa
oposição que, como veremos, é suprassumida pelo espírito é
igualmente dissolvida pela morte (LIMA VAZ, 1991, p. 196).

É patente aqui sobre o quanto Lima Vaz recorre a um discurso


heideggeriano sem perder de vista, é claro, a sua filiação hegeliana; filiação
essa que fica cada vez mais evidente, como vimos, ao tratar a natureza do
psiquismo. Eis porque, noutra nota, ele corrobora tal posição filial:

O domínio do psíquico apresenta igualmente toda uma face


voltada para a exterioridade objetiva do mundo por meio do
100
‘corpo próprio’ e do corpo como organismo. O psiquismo está
constitutivamente ligado a órgãos e funções corporais, mas
aqui é considerado como primeiro estágio de interiorização do
mundo no sujeito ou de constituição de um mundo interior. A
presença do homem no mundo como situação fundamental
não se fará mais, desde o ponto de vista do psiquismo, pela
imediatidade do corpo, mas pela mediação deste mundo
interior, no qual o corpo é suprassumido dialeticamente (LIMA
VAZ, 1991, p. 198).

Toda essa narrativa construída pelo pensador brasileiro é um traço


seguramente da sua obra, da sua filosofia que tem como marca certo
idealismo, de princípio. Esse “mundo interior” é a ação do espírito, o motor
mesmo que guia e orienta a presença humana no mundo como situação,
facticidade. Ele é o mediador, por excelência. Com isso, Lima Vaz parece
abrir mão do caráter fundante do corpo próprio como “veículo do ser no
mundo”, para usar aqui os termos de Merleau-Ponty, sob um giro
fenomenológico fundamental. É bem verdade, por exemplo, que Merleau-
Ponty retoma e aprofunda a dialética hegeliana, muito embora, numa espécie
de retomada crítica, a partir da noção de uma dialética sem síntese, mais
próxima da dialética heraclitiana18. Só que essa dialética não opera sob a
ação de um Espírito Absoluto. Não há Espírito Absoluto em Merleau-Ponty.

De todo modo, o que nos interessa nessa abordagem que, na obra de


Lima Vaz, assume outros contornos que não traçaremos aqui, é a inspiração
que as suas reflexões repercutem para aquilo que pretendemos demarcar, ou
seja, sobre o quanto a tese de um éthos originário permite uma abertura
possível para se discutir a própria Psicologia e, em particular, a Psicanálise. É
bem verdade que Lima Vaz fala enquanto filósofo. A sua preocupação, como
parece patente, é estritamente filosófica, ontológica. É esse o seu lugar de
fala. No entanto, vale insistir, muitas das suas discussões trazidas até aqui,
restituídas por um debate com o pensamento grego e apoiada na obra de
autores como Hegel e Heidegger, por exemplo, permitem vislumbrar um
interessante horizonte de interlocução no âmbito próprio da Psicanálise. É sob

18
Ver, p. ex., SILVA (2014).
101
esse escopo que defendemos a tese de uma articulação entre ética e
psicanálise; tese essa, aliás, muito bem entrevista, como se sabe, por Lacan,
em seus seminários.

É esse inventário, num retorno a Freud, que veremos, agora, na


sequência.

3.2. Intuições éticas (II): Ética e Psicanálise

Os delineamentos traçados até aqui, a propósito de medir o real alcance


das análises de Lima Vaz não só tocante ao empreendimento da reflexão
ética em sua obra, mas, sobretudo, as intuições que daí se desdobram, em
especial, à Psicanálise, nos permite vislumbrar um novo horizonte de
pesquisa. Para tanto, é chegado o momento em que uma interlocução entre
ética e psicanálise parece-nos particularmente sugestiva no sentido de nos
acercarmos de uma questão de fundo capital: o de analisar o processo de
constituição da ética, partindo da transcrição da physis em éthos para, a
seguir, estabelecer uma analogia com as próprias ideias utilizadas por Freud
no intuito de apresentar a psicanálise como um campo inédito. E, com isso, é
claro, pensarmos um trilhamento pela mensagem freudiana.
Pois bem: é com esse desígnio que retomamos a trilha perseguida por
um texto recém publicado (PERIN, 2022) que, ao nosso ver, pode trazer
alguma luz para o debate. Nesse texto, reportávamos, por exemplo, acerca de
uma edição especial que reunira psicanalistas de diversas partes do mundo
que gravitara em torno de uma temática comum: a de melhor refletir sobre a
mensagem freudiana e sua continuidade. A pergunta fundamental trazida à
baila nesse colóquio fora precisamente a seguinte: – Continuidade a qual
Freud e a qual momento do seu pensamento?
André Green assumira a incumbência de organizar esse número
especial da revista. Na argumentação, para fundamentar tal temática, emerge
então a aguda preocupação

102
[...] com a fragmentação do corpo teórico da disciplina e com
a multiplicidade de tendências representadas por diversos
autores da psicanálise contemporânea. A situação se tornou
tão preocupante, que a comissão de programa do Congresso
da Associação Psicanalítica Internacional, ocorrido, em Nice,
em 2001, sentiu necessidade de submeter à nossa reflexão
um questionamento tão geral quanto possível sobre o que é a
psicanálise. Poderíamos nos surpreender ao nos vermos
obrigados a retomar definições de base que deveriam estar
solidificadas mais de cem anos após o nascimento da
psicanálise (GREEN, 2001, p. 17).

Green, nessa oportuna ocasião, traz aqui o exame mais detido e, ao


mesmo tempo, controverso após o centenário de nascimento da psicanálise.
O ponto fulcral diz respeito à experiência da psicanálise como experiência da
clínica da cura. Há, entretanto, variações no modo de compreender esse
ponto. Para tanto, Green identifica, ao menos, três correntes: a primeira é
uma visão pragmática em que a psicanálise se define como uma terapêutica
que é avaliada a partir de sua eficácia; a segunda situa a experiência
psicanalítica como objeto de estudo em que se discute o seu estatuto
científico e a terceira, enfim, que exige que a psicanálise reflita mais os seus
fundamentos epistemológicos. Ora, são propriamente tais questões que
Freud, em 1926, no texto Análise Profana já prefigura. Acontece que, na
psicanálise, sempre existiu uma união indissolúvel entre curar e pesquisar.
Com isso, a prática clínica acaba servindo como um caminho (método) para
pensar o encontro que torna possível a emergência dos sujeitos psíquicos. A
psicanálise, emerge, nesse contexto como uma práxis sui generis: ela perfaz
uma atitude, um agir próprio, que possibilita a manifestação e a compreensão
dos próprios sujeitos nesse processo. Isso, obviamente, traz importantes
consequências do ponto de vista ético, uma vez que não há como pensar o
horizonte último do éthos sem a práxis.
Assim, no intuito de pensar os fundamentos desta práxis psicanalítica,
ainda mais no interior da universidade que é um dos lugares onde se produz
pesquisa, mas não a cura, torna-se imprescindível explicitar o que nos
autoriza tal empreendimento. Para tanto, na introdução de seu livro Nuevos

103
Fundamentos para el Psicoanálisis, Laplanche apresenta a possibilidade de
refletir tal práxis desde quatro lugares. O primeiro deles é a posição
privilegiada da cura psicanalítica no interior da própria clínica. Nessa o
trabalho é perpassado por um marco fundador cuja essência é a “regra
fundamental” que encaminha um processo em ressonância com um processo
fundador do ser humano. Ademais, o

[...] objeto da psicanálise não é o objeto humano em geral [...],


mas um objeto humano que é capaz de dar forma à sua
experiência, e o faz essencialmente através da linguagem da
cura. Assim, existe aí um movimento de manifestação de toda
a sua vida. Uma epistemologia e uma teoria psicanalítica
deve considerar, nos seus fundamentos, o fato de que o
sujeito humano é um ser que teoriza, que teoriza a si mesmo
(LAPLANCHE, 1987, p. 19-20).

Assim, pois, a ação de teorização de si mesma supõe uma relação dual


de tal modo que o elemento transferencial pressupõe a repetição da história
constitutiva do sujeito humano com seu analista.
O segundo lugar e objeto da experiência psicanalítica é caracterizado
por Laplanche de psicanálise “extramuros”. O emprego desse termo se deve
à substituição do conceito de psicanálise aplicada; acepção que pode produzir
críticas por conta da pretensão de aplicar os conhecimentos da clínica
psicanalítica aos outros campos do saber. Pois bem: é Freud mesmo (1981)
quem demarca o pioneirismo no sentido de praticar a psicanálise
“extramuros”, ao produzir textos como, por exemplo, Totem e Tabu, O Mal-
Estar na Civilização, Moisés e o Monoteísmo. Isso mostra que dispomos de
um movimento da psicanálise que vai ao encontro dos fenômenos culturais;
fenômenos tais discutidos, como vimos, por Lima Vaz. Ou, como nos diz
Renato Mezan, em sua tese doutoral, Freud Pensador da Cultura:

A psicanálise é, em si mesma, uma parte da cultura


contemporânea, tanto no plano científico-filosófico, quanto no
efeito imenso que as posições inspiradas direta ou
indiretamente por Freud tiveram sobre os costumes e as
ideias deste século (MEZAN, 1985, p. 19).

104
Já o terceiro lugar seria a teoria como experiência. Aqui novamente um
retorno a Freud se faz imprescindível. Assim, por exemplo, em Além do
Princípio do Prazer, encontramos uma experiência muito particular
denominada especulação. O termo especulação assume aí um caráter teórico
revestido ao mesmo tempo por uma prática numa perspectiva multidisciplinar
sempre acenando para algo de novo, isto é, de um possível vislumbrar de
algo que se desvela. A este episódio, André Green (2003) se referiu, em seu
livro La Nueva Clínica Psicoanalítica y la Teoria de Freud, como “a virada dos
anos loucos” ou “a virada de 1920”. Tal reviravolta tem como pano de fundo a
experiência da Primeira Guerra Mundial, bem como o efeito dos falecimentos
ocorridos ao redor de Freud nessa época, em especial o falecimento de sua
filha Sophie que o afetou profundamente. Além disso, o aparecimento de
certas dificuldades oriundas da própria práxis clínica e que dificultavam a
evolução do paciente, fazia Freud pensar na presença de uma certa pulsão
destrutiva. Tudo isto o levou a postular a hipótese de uma pulsão de morte, de
tal forma que ele apresenta um novo dualismo pulsional: pulsão de vida e
pulsão de morte. O que chama a atenção aí é que tais termos produzem um
forte impacto entre os psicanalistas, por conta justamente de tais
especulações, introduzindo conflitos, ao confrontá-los com novas escolhas,
com novos caminhos por ainda a ser trilhados. Isso só vem reforçar a
premissa segundo a qual toda teorização é uma experiência que compromete
o pesquisador.
A quarta posição é a história mesma como lugar e objeto da
experiência. Como observa, mais uma vez, Laplanche, “interessa a história de
um pensamento inteiramente movido pelo seu objeto ou, se vocês preferirem,
inteiramente movido pela sua pulsão” (1987, p. 24). Nessa direção, a história
da psicanálise e, particularmente, do pensamento freudiano, mostram
inequivocamente a riqueza da emergência do elemento pulsional inconsciente
como princípio de movimento da produção teórica e objeto da própria
psicanálise. Trata-se, aí, da história como um lugar de experiência conflitiva
que aflora sensivelmente no interior do colóquio editado pela Revista

105
Francesa de Psicanálise, quando põe em questão: a qual Freud, a qual
momento do seu pensamento convém trilhar?
Ora, aí ressurge a questão ética de fundo acerca do comprometimento
do analista na relação terapêutica. Laplanche se volta simplesmente para o
princípio de que a teoria e a história em uma relação dialética onde aflora o
essencial da psicanálise, a dimensão do desejo, o aflorar do inconsciente;
posição essa também examinada por Mezan (1985, p. 10):

[...] o que existe são problemas que, de uma forma ou de


outra, dizem respeito ao investigador, fazem parte de suas
inquietações e proporcionam um certo prazer ao serem
abordados. O desejo de ‘resolver um problema’, ou seja, de
vencer uma dificuldade, de lançar luz sobre um domínio até
então confuso ou inexplorado, está sempre presente, em toda
atividade intelectual. O que se passa é que este desejo não
ousa dizer seu nome [...]. Não é possível aventurar-se pelos
domínios da psicanálise fingindo ignorar que os temas a
serem tratados dizem respeito, também exemplarmente, ao
investigador e às suas motivações.

É, em sentido próprio, esse exame que nos autoriza, no âmbito


acadêmico, em buscar estabelecer uma interlocução com a psicanálise. Pois
bem: a perspectiva que aqui se adota consiste em analisar, mais
precisamente, o próprio processo de constituição da ética. Isso se dá, ao
nosso ver, retomando o princípio argumentativo de Lima Vaz, a partir do
modo de transcrição da physis em éthos, no intuito de estabelecer uma
analogia com as ideias empregadas por Freud para apresentar a psicanálise
como um campo inédito. Uma vez isso considerado, estaremos, então, em
melhores condições de abrirmos um trilhamento pela mensagem freudiana.
Como buscamos delinear, já nos primeiros capítulos aqui da dissertação,
Lima Vaz se torna um guia indispensável nesse percurso ou trilha aberta. Ele
provoca uma intrigante reflexão sobre a ética, à luz do que ele próprio designa
de uma “fenomenologia do éthos”; fenomenologia essa capaz de refletir o
sentido último do éthos, o éthos vivido. Eis porque em seu livro, Escritos de
Filosofia II: Ética e Cultura, o filósofo se detém, como vimos, na questão-
chave que abre a porta do nascedouro da ética na cultura ocidental. Ao seguir

106
essa trilha, ele faz ou refaz um percurso de volta às origens da ética, visando
mostrar toda a riqueza do movimento presente no pensamento grego. Assim,
ao caracterizar o ideal de uma fenomenologia do éthos, Lima Vaz parece abrir
um importante aporte para a psicanálise. Ele reconstitui, desde o pensar
grego, o sentido último daquilo tal qual aparece, ou seja, o fenômeno. Aquilo
que aparece figura originariamente pela via da própria razão como logos; quer
dizer, como discurso que possibilita o ver. Trata-se, ao mesmo tempo, do que
deixa e faz ver, e, portanto, uma forma genuína de estruturação fazendo
recolher o dado em sua originariedade.
Em seu livro Ética, o pensador espanhol José Luis Aranguren, considera
que o filósofo não deve contentar-se em ser tão somente amigo da razão
argumentativa, mas deve, também, ser amigo das palavras. E acrescenta:
“[...] a etimologia nos devolve a força elementar das palavras originárias,
gasta com o longo uso, às quais é imprescindível voltar para recuperar seu
sentido autêntico, a arkhé”. (ARANGUREN, 1968, p. 22). Ora, pois,
reconstituir o sentido originário das palavras é um gesto de busca, de procurar
reconstruir uma peça em seu aspecto (eidos) original o que implica,
obviamente, um trabalho arqueológico, por definição.
O que Lima Vaz já nos chamava a atenção é de que o termo éthos, em
sua acepção originariamente helênica, já nos permite ver a força e o vigor
daquilo que permanece justo na ética. Ou, como se diria em uma expressão
heideggeriana, aquilo que “perdura e demora” na ética. A fenomenologia do
éthos, em Lima Vaz, busca, enfim, dar conta desse movimento arqueológico
ao reconhecer implícito não só no vocábulo grego éthos, mas no de physis, as
duas formas primeiras de manifestação do ser.
Recordemos brevemente que éthos exprime a transcrição da physis que
ocorre através da práxis ou ação humana engendrando as estruturas
histórico-sociais. Éthos possui dois sentidos fundamentais, como salienta
Lima Vaz (2000a, p. 12-13):

A primeira acepção de éthos (eta inicial) designa a morada do


homem (e do animal em geral). O éthos é a casa do homem.
O homem habita sobre a terra acolhendo-se ao recesso
107
seguro do éthos. Este sentido de um lugar de estada
permanente e habitual, de um abrigo protetor, constitui a raiz
semântica que dá origem à significação de éthos como
costume, esquema praxeológico durável, estilo de vida e
ação.

Nosso filósofo ainda complementa:

A segunda acepção do éthos (com épsilon inicial) diz respeito


ao comportamento que resulta de um repetir-se dos mesmos
atos. É, portanto, o que ocorre frequentemente ou quase
sempre (pollakis), mas não sempre (aei), nem em virtude de
uma necessidade natural. Daqui a oposição entre éthei e
phisei, o habitual e o natural (LIMA VAZ, 2000a, p. 14)

Isso posto, não é difícil voltar a perceber que essa dupla função
semântica do éthos designa, ao fim e ao cabo, a formação do hábito, pois
justamente esse se constitui pela repetição, mas, ao mesmo tempo, a
completude ou realização plena do hábito só se dá pela incorporação de um
estado de coisas que passa a fazer parte da constituição do próprio agente.
Vimos, então, que essa concepção de estado ou de constituição tem a sua
origem no termo grego échein, do qual se origina hexis. O vocábulo hexis tem
por significado a posse estável de uma determinada maneira de ser que
ocorre através da escolha e da deliberação do agente, o que determina uma
característica de repetição que nada mais é do que o próprio hábito. Assim, o
hábito é um éthos-hexis, significando, originariamente, a possibilidade de o
sujeito apropriar-se de si mesmo, expressando a sua autonomia e, com isso,
o seu caráter. Sob tal prisma,

[...] o éthos como costume, ou como realidade histórico-social,


é princípio e norma dos atos que irão plasmar o éthos como
hábito (éthos-hexis). Há, pois, uma circularidade entre os três
momentos: costume (éthos), ação (práxis), hábito (éthos-
hexis), na medida em que o costume é fonte das ações tidas
como éticas e a repetição dessas ações acaba por plasmar os
hábitos. A práxis, por sua vez, é mediadora entre os
momentos constitutivos do éthos como costume e hábito, em
um ir e vir que se descreve exatamente como um círculo
dialético: a universalidade abstrata do éthos como costume
108
inscreve-se na particularidade da práxis como vontade
subjetiva, e é universalidade concreta ou singularidade do
sujeito ético no éthos como hábito ou virtude (LIMA VAZ,
2000a, p. 15).

O que Lima Vaz também chama a atenção é para o fato de que esse
processo todo acena para a dimensão da tradição tendo como horizonte a
perspectiva da produção da cultura no Ocidente, a formação mesma da
civilização. Isso, sem dúvida, sugere que o éthos social ou o éthos cultural
constituem o espaço não só possível, mas, de fato e de direito, privilegiado,
para a compreensão e a expressão do ser do homem. Esse é o espaço
hermenêutico, por excelência, no qual, não apenas ontológico, mas
antropologicamente, a physis se radica como physis. Isso, ao nosso ver, é
sumamente significativo.
No fundo, a articulação éthos-cultura realça justo a natureza axiogênica
da ação humana, o que simplesmente significa que é por intermédio dessa
práxis que o homem cria o mundo como um universo de formas simbólicas, já
que a práxis é produtora de significação vindo a construir, dessa forma, a sua
morada. É o que, mais uma vez, reitera Lima Vaz (2000a, p. 38): “É, pois, a
partir da própria origem do universo das formas simbólicas que se desdobra a
dimensão do éthos: o homem habita o símbolo e é exatamente como métron,
como medida ou norma que o símbolo é éthos, é morada do homem”.
O éthos entendido como morada coloca em destaque a necessidade de
o homem ter que construir o seu espaço no mundo, tornando-o habitável e
dando-lhe uma feição humana. Para tal, tem que fazê-lo por meio da sua
ação, da sua práxis sobre a natureza (physis). Pensar a ética como ciência do
éthos requer compreendê-la a partir da tensão dialética apresentada na
fenomenologia do éthos, ou seja, na articulação do éthos como costume ao
éthos como hábito através da práxis. Em outras palavras, pela práxis
incessante de fazer a refazer a sua morada, o homem engendra os costumes,
as normas e a própria ação tendo um lugar seguro onde possa se recolher.
Através dessa ação, o homem descola da physis e cria o seu lugar
propriamente humano, o éthos como costume. Com isso, pois, na

109
peculiaridade da ação, assistimos as primeiras formas de manifestação do
homem, transcrevendo a physis em éthos.

Ao agir desse modo, em sentido aristotélico, o homem o faz norteando


por um telos cuja finalidade consiste em alcançar a realização do bem ou do
melhor. Dispomos aí daquilo que denota as relações humanas como éticas.
Só que para atingir esse telos faz-se necessário repetir constantemente os
mesmos atos, engendrados nos costumes a fim de determinar o habitual.
Essa é a segunda vertente do vocábulo grego éthos como bem antevira Lima
Vaz (2000a, p. 15) no sentido de costume, do éthos como hábito radicado,
pois, via a circularidade entre costume (éthos), ação (práxis) e hábito (éthos-
hexis).

Pois bem: dessa forma, o agir habitual evidencia-se na ação humana


dirigida para o bem do próprio homem, o que supõe a “ação posta sob o
senhorio do agente e que exprime a sua autárkeia” (LIMA VAZ, 2000a, p. 14).
Essa dimensão da ação como possibilidade de o sujeito manifestar a sua
particularidade na práxis, mas articulada à universalidade do costume, aponta
para o fim que é a realização de um existir virtuoso. Ora, a fim de melhor
entender esse existir virtuoso faz-se mister enfocar a questão das virtudes.

Segundo Lima Vaz, encontramos em Aristóteles, na Ética a Nicômaco, a


fonte para a devida compreensão das virtudes a partir da distinção entre as
virtudes intelectuais e as virtudes morais. Observa então o pensador
brasileiro:

Aristóteles diz explicitamente que as virtudes intelectuais se


adquirem e se desenvolvem por obra do ensinamento (ek
didaskalías). Quanto às virtudes morais, assim se denominam
porque procedem do éthos como costume, e é o exercício
constante (ethikè pragmatéia) que lhes dá origem e as
fortalece (2000a, p. 17).

110
Pensadas, dessa forma, as virtudes pontuam a dimensão da tradição e
da razão no interior da ciência do éthos. Para Lima Vaz, a tradição supõe,
desde o início, a possibilidade de transmissão da riqueza simbólica criada
através da práxis na constituição do éthos como transcrição da physis e que
passa de uma geração para outra.

A partir dessa afirmação, podemos tomar as duas vertentes que


desaguam na tradição. A primeira vertente surge da compreensão do éthos
como uma ordenação própria engendrada pela práxis, mas que tem como
modelo o ordenamento próprio da physis. Na natureza há um determinismo,
uma vez que a ordem dos fenômenos está dada enquanto que, no âmbito do
éthos, há um ordenamento efetuado pela “necessidade instituída, e é
justamente a tradição que suporta e garante a permanência dessa instituição
e se torna, assim, a estrutura fundamental do éthos na sua dimensão
histórica” (LIMA VAZ, 2000a, p. 17). Assim, o ordenamento do éthos, efetuado
pela necessidade instituída de o homem ter que repetir constantemente os
comportamentos derivados do costume, é uma superação dialética da physis,
rompendo com o determinismo das coisas pela via da práxis.

Em decorrência dessa posição, surge a segunda vertente a partir do dito


anterior de que, pela sua ação, o homem descola da physis e cria o seu lugar
propriamente humano. O descolamento ocorre pela peculiaridade da ação
não terminar no momento de sua efetivação. O homem tem a possibilidade de
tirar da experiência da ação uma significação. Essa característica de
transcender o momento da realização da ação inscreve o homem na
dimensão simbólica podendo representar-se o ato.

Retomando de outro modo. Na medida em que a ação é produtora de


significação, o homem eleva-se sobre o determinismo das coisas para
penetrar no espaço da liberdade. Ou seja, pela sua ação, o homem rompe
com a physis ordenando uma nova realidade produzida pela dimensão
simbólica da qual passa a fazer parte. Ao mesmo tempo essa nova realidade
apresenta-se a ele como norma, como métron balizadora da sua nova ação.
Lembremos quando escreve Lima Vaz (2000a, p. 38): “É, pois, a partir da
111
própria origem do universo das formas simbólicas que se desdobra a
dimensão do éthos: o homem habita o símbolo e é exatamente como métron,
como medida ou norma que o símbolo é éthos, é morada do homem”.

Afinal, assim como é a tradição que suporta e garante a permanência


daquilo que é instituído, criando a dimensão histórica do éthos, ela também
suporta e assegura a transmissão da riqueza simbólica, na estrutura da
linguagem e se torna, assim, uma dimensão cultural do éthos. Volta a
observar Lima Vaz (2000a, p. 19):

A tradicionalidade ou o poder-ser transmitido é, pois, um


constitutivo essencial do éthos e decorre necessariamente, do
ponto de vista da análise filosófica, da relação dialética que se
estabelece entre o éthos como costume e o éthos como
hábito singularizado na práxis ética.

Finalmente, pela dimensão da razão, a questão das virtudes pontua a


peculiaridade do agir do homem como escolha. No dizer de Garcia-Roza
(1993, p. 58-59): “a atividade que distingue o homem de todos os seres é a
razão [...]. O critério de ação virtuosa será, pois, a escolha (proairesis). É a
proairesis que determina a natureza ética de uma ação.

Refletindo, desse modo, as virtudes supõem um telos lógico estritamente


ligado à escolha (proairesis). É a escolha que permitirá, através da razão, o
discernimento de qual é o bem maior para o homem. Emerge daí a hipótese
de que há necessidade de um saber, uma sabedoria em última instância, para
conduzir a escolha deste bem. Ora, se o desenvolvimento e a aquisição das
virtudes intelectuais ocorrem através do ensinamento, então deve existir
alguém que possua o saber. Esse alguém é o mestre, o portador da
sabedoria. Nesse sentido, abre-se o espaço para o surgimento da academia
como o lugar privilegiado para o mestre ensinar o saber instituído. Assim,
pois, temos a dimensão da tradição e da razão, articulada dialeticamente às
virtudes, no interior da ciência do éthos. Como retrata Lima Vaz (2000a, p.
112
17): “Entre esses dois polos passará a oscilar o destino do éthos na história
das sociedades ocidentais, e a amplitude dessa oscilação irá assinalar
igualmente os momentos de crise e transformação dos padrões éticos dessas
sociedades”.

Vimos também que, afora o trabalho hermenêutico de Lima Vaz no que


tange à dimensão mais própria do éthos, Heidegger se tornou outro
referencial indispensável nesse percurso. É a Carta sobre o Humanismo que
dá o tom desse colóquio. Heidegger se atém acerca do caráter daimônico do
ἔθος ao observar que esse significa, sem dúvida, morada, lugar onde morar,
mas que, ao mesmo tempo, nomeia o âmbito aberto, no qual mora o homem.
Tal âmbito é o que possibilita a manifestação do que advém à essência do
homem ou ainda é aquilo que “contém e guarda o advento daquilo ao que
pertence o homem em sua essência” (HEIDEGGER, 2008, p. 367).
Isso traz importantes desdobramentos sobre a ideia mesma de verdade,
algo que a psicanálise também se debruça como veremos, logo mais. A
questão de fundo posta por Heidegger, levando em conta aqui o elo íntimo
entre physis e éthos, é o sentido último da verdade não como
correspondência, adequação, em sentido tradicional, mas como aletheia. Eis
porque o pensador alemão, ao fim do texto Sobre a Essência da Physis em
Aristóteles, nos diz:

Ser é o desocultar que se oculta: physis em um sentido inicial.


O desvelar-se é um surgir ao desocultamento, isto é,
desocultamento significa a-letheia: a verdade. A verdade,
como nós a traduzimos, não é essencialmente um caráter do
conhecimento humano e de seus enunciados; tampouco é um
valor ou uma “ideia” cuja realização, sem que saibamos muito
bem por quê, o homem deve aspirar, mas a verdade
pertence, enquanto desocultar-se, ao ser mesmo: physis é
aletheia (HEIDEGGER, 2000, p. 248).

Physis é alethea, isto é, abertura, o âmbito mesmo do aberto, a clareira


originária do éthos. Trata-se, portanto, como já se reportara Lima Vaz, de
compreender a transcrição da physis em éthos pela via do logos (linguagem).

113
Pois bem, essas rápidas incursões retomadas e aprofundadas, conforme
o espírito e a letra de Lima Vaz e ponto de inflexão heideggeriano repõe a
questão da fenomenologia do éthos no coração mesmo da Psicanálise.
Pois bem, em seu livro Palavra e Verdade: na filosofia antiga e na
psicanálise, Luiz Alfredo Garcia-Roza comenta:

Aquilo que Freud nos mostrou desde seus primeiros escritos


é que na prática psicanalítica a verdade se insinua não a
partir do caráter formalizado do discurso, mas, precisamente,
quando o discurso falha, quando é atropelado e violentado
por um outro discurso que provoca, no primeiro, lacunas, os
não tão adequadamente denominados atos falhos. (GARCIA-
ROZA, 2005, p. 20).

Ora, pois, temos, logo, de saída, a questão de que a prática psicanalítica


tem uma preocupação para com a verdade. Assim, portanto, se a prática
psicanalítica tem uma preocupação com a verdade, é necessário colocar, em
questão, a ideia de concordância, no sentido mais heideggeriano, para situá-
la na perspectiva do desvelamento. Ora, é justamente isso o que Freud, de
fato, fez no momento em que passa a refletir profundamente acerca da
origem da neurose não mais motivada por um episódio de abuso sexual
concreto perpetrado pelo pai, a ponto de dizer para seu amigo Fliess, em uma
carta de 21 de setembro de 1897, “[...] não acredito mais em minha neurótica
(teoria das neuroses)” (FREUD apud MASSON, 1986, p. 265). Ele ainda
argumenta sobre assegurando “de que não há indicações de realidade no
inconsciente, de modo que não se pode distinguir entre verdade e a ficção”.
(FREUD apud MASSON, 1986, p. 265-266).
Eis, aqui, sem qualquer sombra de dúvida, um momento marcante na
gênese da psicanálise; momento esse que desloca a dimensão da verdade da
concordância para a verdade como desvelamento, aletheia. Afinal, aquilo que
se insinua, aquilo que se manifesta pela palavra na prática da clínica
psicanalítica acena justo para algo do imaginário e da fantasia. Há uma
manifestação que se deflagra aí nesse processo sui generis: a do
desvelamento do imaginário. Como já discutimos noutro trabalho: “Há um
movimento que faz emergir algo que se desvela e que se nomeia como
114
manifestação do desejo. É a possibilidade do outro discurso, aquele que não
se restringe à verdade da concordância, mas à verdade do apresentar-se de
algo que habita o ser e o revela, ou melhor, o desvela” (PERIN, 2022, p. 106).
A nossa leitura aqui busca justamente sustentar a hipótese de que, enfim,
physis e aletheia fazem sua emergência como éthos, quer dizer, como
precisamente aquilo que habita o sujeito psíquico.
Essas questões todas trazidas aqui à baila nos incitam, por exemplo, a
algo que o próprio Freud, em 1923, busca caracterizar na psicanálise, em
Dois Artigos para a Enciclopédia. A psicanálise é definida ali como um método
(caminho) no sentido de investigar os processos anímicos dificilmente
acessíveis de outra forma. Trata-se, nesse momento, de situar a experiência
psicanalítica como concordância; postulado, aliás, reconhecido pela grande
parte dos psicanalistas que integram a edição especial da Revista Francesa
de Psicanálise: a experiência da cura psicanalítica. Por meio da linguagem da
cura, o paciente é levado a se apropriar-se daquilo que o habita de maneira
inconsciente.
O fato fundamental nisso tudo, como tivemos a ocasião de trazer à tona
por meio da fenomenologia do éthos sistematicamente exposta por Lima Vaz,
é o que é denominado de éthos-hexis é um apropriar-se que ocorre pela via
da decisão e da escolha. Ora, isso é o que também torna possível vislumbrar
o que a psicanálise introduz de inédito, ou seja, no momento em que
circunscreve a razão à dimensão do desejo; manifestação que se opera
genuinamente pelo outro discurso. Uma vez comprometido com o seu desejo,
o sujeito se vê em condições de desvelar-se no processo de pensar a si
mesmo ou, como diz Laplanche, de autoteorizar-se.
Se levarmos em conta essa primeira definição da psicanálise posta por
Freud, não se pode perder de vista, como bem foca Mezan, que esse
processo de teorização também compromete, em sentido ético, é claro, o
pesquisador com o seu desejo e as suas motivações. Essa, como vimo, no
início, fora uma das inquietações apresentadas pelos psicanalistas na Revista
Francesa de Psicanálise, ao se defrontarem com os conflitos do trabalho
analítico. De todo modo, como mostramos

115
Freud apresenta o outro discurso como possibilidade de
desvelamento do velamento, ou seja, aquilo que faz parte da
essência da manifestação do ser, cuja origem está no
movimento do existir que nos coloca em uma relação com o
outro, a ponto de que aquilo que nos é familiar transforma-se
em não familiar (Unheimlich). Quando pensamos a
experiência psicanalítica apenas do ponto de vista da clínica
da cura, ficamos esvaziados para pensar o conflito no interior
do movimento psicanalítico como a emergência do outro
discurso (PERIN, 2022, p. 107).

Isso tudo, em resumo, nos mostra sobre o quanto é fundamental ter


presente o movimento engendrado pelo desejo, cujo trilha nos abre em
direção à constituição do próprio sujeito psíquico; sujeito esse que tem
possibilidade de apropriar-se de si mesmo por meio da experiência
psicanalítica pela auto-teorizacão.

Isso recoloca a questão da articulação entre ética e psicanálise sob um


novo giro de análise. Detenhamo-nos mais um pouco sobre isso.

O que aqui adotamos ou assumimos – sem pretender, é claro, fazer um


enfoque longamente histórico da psicanálise – se restringe, apenas, em
abordar algumas questões importantes no sentido de contextualizá-la
justamente como uma ciência do éthos ou como uma ética.

De início, é fundamental reforçar um aspecto já salientado, qual seja, o


de apresentar a psicanálise como um saber do inconsciente e Freud, é claro,
como o descobridor do inconsciente, como o pai da psicanálise. Como
médico, Freud tinha uma preocupação: dar conta de atender e entender a
histeria. Inicialmente, a sua abordagem teve como como referência o saber
médico, instituído através da academia. Ao inclinar-se sobre o paciente com
esse saber experimental, a clínica freudiana foi invadida pela sensação de
desamparo.

Freud buscou na hipnose a possibilidade de dar conta do fenômeno


histérico (Cf. BOUFLEUR, 2020). Através da hipnose, ele procurou fazer com
que o paciente estabelecesse relações a partir de seu sintoma. Nesse

116
processo, Freud ainda percebeu uma transformação denominada de cura
catártica. Ao mesmo tempo, porém, as associações ocorriam em um estado
de consciência alterado devido à hipnose. O passo além ocorreu quando, ao
fazer indagações investigativas ao paciente, Freud foi solicitado a se calar
para o paciente poder falar de si. O paciente passou a falar de si, a associar,
não mais no estado de hipnose. Ao falar de si, o paciente produziu um saber
sobre a sua própria doença. É o engendramento da técnica psicanalítica: a
associação livre. Para tal, é fundamental a escuta, mas não uma escuta
qualquer, é a escuta analítica, a escuta da atenção flutuante.

Nesse sentido, podemos dizer que foi a histérica quem ensinou Freud.
Ou dizendo de outro modo: ao inclinar-se sobre a histérica, deu-se um
encontro que produziu um novo pensar em Freud. Ao mesmo tempo, a
paciente mudou de posição, pois, ao estabelecer uma relação simbólica,
mediada pela linguagem, ela passou da condição de paciente para se tornar
sujeito. O novo paradigma estabelecido propiciou a Freud verificar que o
sintoma era o substituto de algum pensamento ou impulso suprimido no
momento de uma experiência traumática. Assim, pois, os sintomas tinham um
sentido e relacionavam-se articuladamente a um complexo de pensamentos e
à experiência traumática. Freud percebeu, também, que não era qualquer
ideia, qualquer pensamento que, uma vez suprimido, poderia se manifestar
sintomaticamente. Ele descobriu que, invariavelmente, eram pensamentos
associados à sexualidade.
Temos, portanto, aí, na experiência da histérica com a sua sexualidade,
algo que lhe produziu um pensamento insuportável devido à situação
traumática, e que precisou ser suprimido, recalcado. Esse recalcado, no
entanto, retornou sob a forma de sintoma somático, indicando um sentido que
se desvela na relação simbólica com a linguagem. Esse novo saber aponta
para algo que falta, para algo de não sabido. A isso, Freud conferiu o estatuto
de inconsciente.

Ora, aqui emerge uma primeira aproximação da psicanálise como a


ciência do éthos, a ética. Ao refletir sobre a ética como ciência do éthos, vê-se

117
em sua fenomenologia fundante que éthos nada mais é do que um
ordenamento próprio, construído e transcrito simbolicamente a partir do
ordenamento da physis pela mediação da práxis. Assim, pensando o sintoma
somático, no caso da histeria, pode-se entende-lo como um ordenamento
próprio da physis devido à “escolha” de manifestação corporal. O sintoma,
entretanto, não fica apenas como um modo de ordenamento da natureza,
uma vez que ele acena para um sentido quando se abre à possibilidade de
associá-lo através da linguagem. Com isso, pelo novo paradigma
desenvolvido pela psicanálise evidencia-se a possibilidade de uma
simbolização que transcende a physis criando um novo ordenamento prenhe
de sentido pela práxis inovadora da linguagem cuja transcrição é a morada
simbólica do homem.

Na medida em que a ação é produtora de significação, o ato analítico


possibilita ao homem elevar-se sobre o determinismo das coisas, justamente
pelo seu engendramento como sujeito analítico pela via da fala. Logo, a
psicanálise é uma ética, vai ao encontro da fenomenologia do éthos, mas, ao
mesmo tempo, indica uma nova posição. Assim, é na fenomenologia do éthos
que a escolha que determina o comando do bem ou do melhor na práxis
humana. É sob a égide da intencionalidade que a escolha do agir virtuoso
ocorre.

Ora, na formação do sintoma, enquanto substituto de algum pensamento


ou impulso reprimido na experiência traumática, Freud se deparou com a
dimensão do impulso do desejo. E isto não é da ordem da intencionalidade,
tanto é que fica encoberto pelo deslocamento. E é exatamente isto que indica
a nova posição pontuada pela psicanálise, a saber, a de que, pela postulação
do inconsciente, o homem não é dono de sua própria morada. É em
decorrência disso que Lacan afirma, na apresentação do programa do
seminário sobre a ética da psicanálise, que

[...] o fato é que a análise é a experiência que voltou a


favorecer, no mais alto grau, a função fecunda do desejo
118
como tal. A ponto de se poder dizer que, em suma, na
articulação teórica de Freud, a gênese da dimensão moral
não se enraíza em outro lugar senão no próprio desejo
(LACAN, 2008, p. 13-14).

Ora, quando Lacan propõe o retorno a Freud, o faz procurando retomar


os conceitos básicos da psicanálise. Ao falar do inconsciente, Lacan (1981, p.
135) os postula como “estruturado como uma linguagem”. Segundo Juranville,
ao postular o “inconsciente estruturado como uma linguagem”, Lacan
estabelece uma ponte entre a psicanálise e a filosofia, pois o inconsciente
freudiano apresentava-se problemático em sua comprovação. Para dar mais
precisão a essa articulação, Lacan encontra na linguística saussuriana o
conceito de significante

[...] cujas características correspondem inteiramente às dos


“fenômenos inconscientes” supostos por Freud. Assim, o
significante permite enfim essa demonstração da existência
do inconsciente que é desde logo exigido pela teoria do
inconsciente. E a confrontação dessa teoria com o campo
filosófico pode então adquirir todo o seu sentido
(JURANVILLE, 1984, p. 22-23).

A importância dessa articulação pelo significante reside no fato de que


esse é sempre uma expressão involuntária de um ser falante. Isso, contudo,
não em qualquer situação do falante, mas naquela do ato analítico. Nesse
sentido, enquanto involuntário, o significante na fala do paciente, no momento
da análise, equivale à manifestação do sintoma. É, por exemplo, o que bem
observa Nasio (1993, p. 19):

O aspecto significante do sintoma é o fato de ele ser um


acontecimento involuntário, desprovido de sentido e pronto
para se repetir. Em suma, o sintoma é um significante se o
considerarmos como um acontecimento do qual não domina
nem a causa, nem o sentido, nem a repetição.

119
Como vemos, aqui tem-se uma segunda articulação da psicanálise com
a ciência do éthos. A vertente do éthos, na forma de éthos-hexis, enfoca a
característica do comportamento constantemente repetido, qual seja, o hábito.
O significante, enquanto manifestação sintomática, constantemente repetido,
é involuntário e aponta para algo que habita o homem. Reside exatamente aí
a ponte estabelecida por Lacan entre a psicanálise e a filosofia ao atribuir um
estatuto apodítico ao inconsciente, pela via do significante.

Lacan, no entanto, salienta algo de inovador na psicanálise quando fala


dos ideais analíticos. Ele mesmo diz que “medir discernir, situar, organizar
valores, como se diz num certo registro da reflexão moral, é o que propomos
a nossos pacientes e em torno do que organizamos a estimativa de seu
progresso e a transformação de sua via em um caminho” (LACAN, 2008, p.
19). Depreende-se daí que a experiência analítica aspira a um ideal de
autenticidade, o que remete à questão da virtude. Como volta a se posicionar
Lacan (2008, p. 21): “Pois, na verdade, não se pode dizer que não
intervenhamos nunca no campo de virtude alguma. Desobstruímos vias e
caminhos e lá esperamos que aquilo que se chama virtude virá a florescer”.

Por esse viés de pensamento, desemboca-se na questão das virtudes


articulada à dimensão da tradição e da razão, como viu-se, anteriormente, na
ciência do éthos. Logo, pode-se supor o ideal analítico como uma modalidade
de aquisição e desenvolvimento de virtudes, tal qual a virtude intelectual
aristotélica. A partir disso, o critério de ação virtuosa seria a escolha, pautada
pela orientação da sabedoria do mestre e suportada na tradição instituída
pelo éthos-hexis (hábito). O ato analítico seria, pois, um processo educativo.
Para usar uma expressão de sabor lacaniano: o ato analítico seria uma
ortopedêutica. Ora, é exatamente o que a psicanálise não suporta e, em
função desse fato, é que ela é inovadora, levando Lacan (2008, p. 21) a
afirmar que

120
Contudo é espantoso que tanto pelos meios que empregamos
quanto pelos móveis teóricos que colocamos em primeiro
plano, a ética da análise – pois existe uma – comporte o
apagamento, o obscurecimento, o recuo, até mesmo a
ausência de uma dimensão, cujo termo basta ser dito para se
perceber o que nos separa de toda a dimensão ética anterior
a nós – é o hábito, o bom e o mau hábito.

Finalmente, um aspecto importante a destacar é que, ao buscar a


análise, o analisante supõe que o analista tenha um bem presentificado na
forma de um suposto saber que lhe restituirá a Eudaimonia aristotélica. Com
isso engloba o analista no sintoma de tal modo que ele passa a fazer parte da
cadeia de significantes do paciente. É exatamente aí que reside a
possibilidade de encontrar o saber que procura, só que não no saber do
analista, do mestre, mas no saber do inconsciente. Como atesta Nasio (1993,
p. 21): “Em suma, o inconsciente é um saber, não apenas porque sabe
colocar uma dada palavra num dado instante, mas também porque garante a
característica da repetição. Digamos isso com uma fórmula: o inconsciente é
o saber da repetição”. Por fim, é nesse encontro de saberes, mediado pela
fala do paciente e pelo englobamento do analista no sintoma é que poderá
brotar a verdade do paciente. É nessa perspectiva mais ampla que podemos
reconhecer um dos grandes méritos de Freud, tão bem assinalado, aliás, por
Merleau-Ponty (2003, p. 159):

Mérito de Freud: a verdadeira análise faz do paciente não um


objeto, mas finalmente um novo sujeito, que não é guiado
pela força motriz do prestígio do mestre [...]. O analista e o
analisado [estão] um e outro na verdade não como dogma ou
verdade possuída, mas como αλήθεια, não-dissimulação e
Abertura (Offenheit).

Essa perspectiva de abertura, de desvelamento, nos convida a interpelar


uma demanda importante do ponto de vista ético-psicanalítico. E o movimento
existencial-histórico da dialética relação criança-adulto, permitindo a criança
121
aflorar como lugar de fala pela via da constituição do desejo. Portanto, trata-
se de destacar a importância de se pensar um éthos infantil.

3.3. Intuições éticas (III): Na trilha do éthos infantil

Ao inventariar, como proposição fundamental, a tese aqui advogada de


uma articulação íntima entre ética e psicanálise, é bem verdade que propus
enfocar a práxis psicanalítica como uma vertente ética de um saber histórico
culturalmente determinado. O corte epistemológico adotado consistiu
precisamente em pensar a psicanálise como uma ética no seu sentido
fundante, ou seja, a ética como ciência do éthos. Para tal, tornou-se
necessário retornar à filosofia no intuito de apreender a fenomenologia do
éthos no sentido mais propositivo de Lima Vaz. Fenomenologia significa, aqui,
o movimento constitutivo da essência daquilo que se manifesta no
pensamento questionador tal qual se empreende, desde então, a partir dos
fundamentos da ética em perspectiva vaziana.

Segundo se teve a ocasião de acompanhar, em Lima Vaz, vale reiterar,


éthos é uma transliteração de dois vocábulos gregos. O segundo diz respeito
ao comportamento resultante de um constante repetir os mesmos atos.
Enquanto morada, o éthos aponta para a necessidade de, invariavelmente, o
homem ter que construir o seu espaço. Nesse agir próprio do homem serão
engendrados os costumes, as normas e os hábitos. Na forma de
comportamento constantemente repetido, o éthos acena para a gênese
mesma do hábito, entendido como a disposição habitual para agir de maneira
a alcançar a realização do bem ou do melhor. Assim, pois, se entrevê a
tensão dialética posta da seguinte forma na dupla dimensão do éthos: o
costume é a fonte das ações tidas como éticas e a repetição dessas ações
acaba por plasmar os hábitos.

Decorrência disso é pensarmos a ação como produtora de significado a


partir da intencionalidade operante, no sentido reportado por Merleau-Ponty a

122
partir de Husserl, ou seja, uma intencionalidade que se radica e se propaga
corporalmente, intersubjetivamente. Tudo isso elevando, por meio desse
movimento intencional, sobre o determinismo das coisas para penetrar no
espaço próprio da liberdade. Essa característica da ação humana põe, em
destaque, a dimensão simbólica como já vimos em Lima Vaz.

Nesse ponto, o que tento defender, é a tese propositiva de apresentar a


originalidade da psicanálise; originalidade essa que vai de encontro à
fenomenologia do éthos num movimento capaz de indicar uma nova posição
ou, se quiser, desdobrar em outras questões que, ao longo da prática clínica
do autor aqui do trabalho, nos últimos tempos, têm impactado sensivelmente.

Para começar, na condição de um saber original, a psicanálise inaugura


uma nova relação no éthos cultural ao subverter a práxis médico-paciente à
medida que o paciente tem a possibilidade de fazer o seu próprio exame.
Quer dizer, o analisado deixa de ser paciente para transformar-se em sujeito.
E o faz em uma relação simbólica mediada pela linguagem. Isso significa que
a linguagem passa a ter significado importante, não para falar da realidade,
mas da própria realidade experienciada por ele próprio, quer dizer, esse novo
sujeito. É exatamente nesse nível que o símbolo também é éthos. Dizendo de
outra forma, ao estudar os efeitos da linguagem, a psicanálise se torna uma
ética como ciência do éthos.

Do ponto de vista fenomenológico, mas também ontológico com o qual


aqui o movimento do trabalho persegue, guiados pelas mãos Merleau-Ponty,
mas também de Lima Vaz, somos circunscritos, mais uma vez, pela
experiência do éthos vivido em sua acepção mais originária, fundacional.
Estamos nos primórdios daquilo que talvez pudéssemos chamar de uma
psicanálise originária, mas sem deixar de acompanhar um movimento
dialético. Se desconstrói, por completo, a lógica disjuntiva entre sujeito e
objeto, analista e analisando. Ambos, agora, se situam num terreno comum,
num só meio formador e, portanto, anterior à dicotomia prescrita pela teoria
clássica do conhecimento, entre sujeito e objeto. Se há alguma verdade aí,
ela só pode figurar como αλήθεια, clareira, abertura, no sentido posto por
123
Heidegger. É em meio a essa clareira que a verdadeira experiência
psicanalítica se legitima enquanto tal. Por isso, Merleau-Ponty (1945, p. 519)
pode novamente dizer:

O tratamento psicanalítico não cura provocando uma tomada


de consciência do passado, mas, em primeiro lugar, ligando o
sujeito ao seu médico por novas relações de existência. Não
se trata de dar um assentimento científico à interpretação
psicanalítica e de descobrir um sentido nocional do passado;
trata-se de revivê-lo como significando isto ou aquilo, e o
doente só chega a isso vendo seu passado na perspectiva de
sua coexistência com o médico.

O que entra em questão acima está para além de um processo de cura,


puro e simples, via um movimento de retorno ao passado mediado por uma
consciência tética. Ora, ao contrário, o que Merleau-Ponty mostra é que o
tratamento não se compraz a um referendo cientificista; uma validação
puramente epistêmica. O que está em jogo é uma experiência intersubjetiva,
um processo de coexistência em que se descontrói a atividade e a
passividade na relação terapêutica. Isso só é possível porque há uma espécie
de logos aí operante, vivido intersubjetivamente nessa práxis. Há, pode-se
dizer, um movimento de liberdade entre ambos os atores – analista e
analisando – recompondo o cenário das relações eu-outrem. Essa liberdade
só pode ser uma liberdade engajada, quer dizer, um engajamento com
assentimento ético da ordem do vivido, já que como escreve Merleau-Ponty
(1945, p. 518): “estamos misturados ao mundo e aos outros numa confusão
inextrincável”.

Ao mesmo tempo, o que, em termos psicanalíticos, não se pode perder


de vista é que a nova dimensão aberta pela doutrina de Freud é pela via do
inconsciente. Ao postular a existência do inconsciente, ele oferecera um novo
enfoque do habitar o mundo e de construir a sua própria morada. Ele ainda
mostrou que, na práxis constitutiva de sua morada, o homem não é movido
apenas pela intencionalidade, baseada na constância do agir, no métron
124
simbólico, mas também é movido pelo impulso do desejo. Assim, há, nesse
entremeio, uma nova dimensão simbólica transcendendo a intencionalidade
consciente19, cuja manifestação indica que o homem não é, em sentido
próprio, o dono de sua morada.

Ora, se ele não é dono, isso coloca outra questão de fundo que
perspectiva um aspecto acerca do éthos nem sempre devidamente entrevisto
nos estudos psicanalíticos: a dimensão do éthos infantil. Trata-se, agora, de
ao menos indicar, quem, afinal, é esse sujeito psíquico tomado desde as suas
origens e que faz morada.

Portanto, vamos retornar aos aspectos tratados a partir das pp. 55-61, o
tema da Ética e Antropologia, para fazer uma breve reflexão sobre a questão
do corpo e da dimensão do éthos infantil, enquanto engendrador do desejo.
Ali Lima Vaz nos faz ver que o problema primordial é de que o homem está
presente ao mundo por seu corpo. Porém, não se trata do corpo biológico,
mas do corpo próprio enquanto uma totalidade intencional que constitui e
expressa o ser do homem. Para tal, o autor nos remete à tradição
fenomenológica, iniciada por Schopenhauer, ao propor a distinção entre corpo
como coisa física, equivalente à rex extensa de Descartes (Körper) e corpo

19
Já tivemos a ocasião de assinalar, por alto, o sentido desse movimento intencional
do corpo compreendido a título de intencionalidade operante. Essa é, aliás, uma
sugestão preciosa do último Husserl que Merleau-Ponty retoma e aprofunda ao seu
modo. Mas, essa ideia é algo que também Merleau-Ponty parece destacar em
Freud a propósito desse último, na evolução de sua obra clínica, provocar uma
reviravolta em torno da noção de corpo. Senão vejamos: Merleau-Ponty então dirá
que a psicanálise, por exemplo, realiza a passagem de uma concepção do corpo
que era inicialmente a de Freud, aquela dos médicos do século XIX, pela noção
moderna do corpo vivido (1960, p. 127). O fenomenólogo francês está justamente
chamando a atenção acerca de um movimento de transcendência do corpo
radicado na ideia, do Husserl tardio, de intencionalidade radicada,
ontofenomenologicamente, na experiência do corpo próprio. Quando Merleau-Ponty
pensa esse regime de transcendência, ele quer imprimir um sentido ainda mais
radical num movimento que vai do corpo em direção à carne, ou seja, aquela ideia
de que estamos “misturados numa confusão inextrincável”. Essa ideia de mistura
ou promiscuidade, como ele prefere chamar em seus últimos escritos, é a
expressão da carne mesma. A carne é aquilo que se aproxima do que os gregos
antigos caracterizavam como “elemento”, a coesão de tudo com tudo, a ideia
também pré-socrática de nossa indivisibilidade com o mundo; a textura geral e,
portanto, carnal com a physis.
125
vivido enquanto expressão da vontade através de movimentos pulsionais. O
que, inclusive, levara Heidegger a dizer, nos seminários de Zolikon, que
nossa relação com o corpo é existencial. Meu corpo é minha existência.

Freud se filia a essa tradição, o que levou Merleau-Ponty a afirmar que


em Freud encontramos uma teoria do corpo expressivo que veicula
mensagens. Além da anatomia, do corpo físico, há um lugar de teatro onde
algo fala. Foi a histérica que colocou Freud nessa pista (investigium). O corpo
se revela como um tesouro de significações inconscientes. Entre o somático e
o psíquico existe uma continuidade, quer dizer, uma vida psíquica. A pulsão
corresponderia ao conceito limite entre o psíquico e o somático. Os conflitos
psíquicos se convertem em sintomas somáticos.

O problema fundamental para a psicanalise não consiste em superar o


dualismo metafisico corpo-alma, mas repensar um novo dualismo. Para
Freud, temos dois modos de dizer o corpo, a saber, um corpo como
organismo vivente, regulado pela lei universal do instinto, corpo biológico,
sobre o qual se sobrepõe um segundo corpo que podemos definir como corpo
erógeno, libidinal, pulsional, desejante. Trata-se de uma experiência humana
de dois corpos em um mesmo corpo. O que se manifesta como um
desdobramento.

No entanto, para a ocorrência dessa experiência, há como condição


fundamental a presença da alteridade, isto é, do adulto que se encarrega de
suportar esse desdobramento. Um exemplo importante para aclarar: quando a
criança suga o bico do seio materno ela o faz pelo instinto da fome,
necessidade de vida enquanto organismo vivente (physis). É o corpo
biológico. Ao mesmo tempo se sobrepõe a experiência de ter que se haver
com o prazer oral da sucção. Essa dimensão do gozo aponta para um além
da sobrevivência do corpo. Ela é a vivência da erotização. Assim ocorre a via
de transmutação da necessidade em desejo. Essa é a dimensão fundamental
e originaria própria do éthos infantil na dialética criança-adulto.

126
Porém, há também, aí, nesse engendramento do desejo, a importância
do acolhimento e do reconhecimento desse éthos infantil enquanto
constituição de uma morada, quer dizer, de uma familiaridade, de uma
perspectiva concreta, portanto, ôntica em direção à perspectiva propriamente
ontológica, o mundo do ser.

Merleau-Ponty – em seus célebres cursos ministrados na Sorbonne no


período compreendido entre 1949 a 1952 reunidos sobre o título Psicologia e
Pedagogia da Criança (2001) – dá o tom desse movimento inédito ao colocar
a criança num lugar de que lhe é de direito. O fenomenólogo francês faz um
interessante recorte do tema ao mostrar que a criança expressa um horizonte
que sem o qual a alteridade jamais pode ser pensada em sua radicalidade
última. Além desse rico e instrutivo material deixado por Merleau-Ponty,
chega ao público leitor afeto da tradição fenomenológica, outro importante
texto de Husserl (2017; 2019) consagrado ao mesmo tema em que se discute
a vivência empática da criança, opúsculo esse em que terei a ocasião, num
próximo trabalho, de cotejar com mais atenção.

Por ora, o que interessa – levando em conta o espírito e a letra de uma


fenomenologia do éthos fundada por Lima Vaz articulada a uma abordagem
psicanalítica – consiste em situar, ao menos, sumariamente, o sentido e
alcance de se pensar a criança e o seu éthos. Trata-se, enfim, de interrogar,
de maneira programática, a legitimidade quanto ao estatuto de um éthos
infantil. Esse estudo, ao que parece, ainda constitui um desafio teórico-clínico
sem precedentes e que pode avivar interessantes discussões se se levar
também em conta o contexto da era cibernética em que nos encontramos e,
junto com isso, as novas pesquisas no campo da neurologia, no que diz
respeito ao processo de desenvolvimento e aprendizagem infantil. Ora, a ética
e a psicanálise são também convocadas a se posicionar frente a isso. Não
podem ficar completamente alheias, sobretudo, nessa virada de século, a tais
demandas.

127
Um conjunto mínimo de questões que gravitam em torno do éthos infantil
como o seu centro de gravidade, e que, de certo modo, tem me levado a
algumas inquietações de fundo pode se estabelecer sobre tais preocupações.

A primeira delas diz respeito às novas configurações familiares em que a


formação da criança desconstrói certos estereótipos a partir do modelo
familiar tradicional. Um novo éthos aí é configurado em que o ser criança
compreende outra gênese fora dos padrões convencionais. Isso reconfigura a
questão do infanticídio noutros patamares em meio a uma sociedade em
crise. Esse fenômeno complexo interroga a própria psicanálise como discurso
e prática clínica.

A segunda preocupação remete ao problema sobre como pensar a


formação do éthos próprio da criança à luz da era digital. Quer dizer, num
mundo em que cada vez os smartphones substituem os brinquedos
tradicionais, um novo universo lúdico e simbólico aí se gesta. Nesse sentido,
quais as motivações éticas e suas consequências? Que éthos digital é esse
que inflama a presença como ausência, a proximidade pela distância? Como
se configura, em termos infantis, esse novo olhar ético diante de uma vida
cerceada ciberneticamente?

Outra preocupação é mediada também por um vetor científico,


epistemológico, por definição. Tem a ver com a constituição neurofisiológica.
Há várias pesquisas recentes chamando a atenção sobre o real impacto, do
ponto de vista neuronal, produzido por esse novo éthos. Neurocientistas têm
observado, à luz da crise moral no mundo moderno tão bem diagnosticada
por Lima Vaz, um impacto sem precedentes desse estado de coisas em que a
formação infantil sofre deslocamentos antes nunca vistos.

Por fim, como também educador e formador, a questão pedagógica


também não fica inteiramente alheia nesse processo. Trata-se, agora, de
refletir, mais profundamente, o éthos no interior de uma nova paideia. É
preciso pensar um novo éthos no contexto escolar, refundar um éthos que
emancipe, de fato, a criança recriando o seu Umwelt (mundo circundante)

128
como Lebenswelt (mundo vivido). Nesse novo ambiente, julgo que a
Psicanálise também necessita se reformular e ser mais propositiva.

É partindo dessa análise mais conjuntural e extremamente complexa


que o trabalho clínico também sofre reviravoltas e, com isso, permite
conjecturar algumas hipóteses, testar outras já padronizadas por certo
discurso psicanalítico dado. E é por isso que igualmente não há como
dissociar a ética da psicanálise sob pena de perder, em substância, aquilo
que constitui o seu substrato último: compreender o humano a partir de suas
origens.

129
CONCLUSÃO

Ao ter alinhavado o texto até aqui, parece-me, à guisa de conclusão,


avaliar o saldo, mensurar o alcance e os seus limites, isto é, ensaiar um
balanço mínimo do conjunto da obra. Isso tudo, sem perder de vista, é claro, a
prospecção de outra pesquisa que, conforme anunciada, já se encontra em
curso num trabalho de maior fôlego no doutorado.

Conforme retratado, ainda na Introdução, ao traçar o meu percurso


biográfico e intelectual – ao reportar-me ao período entre maio/junho de 1982
em que saí do seminário – o curso de Psicologia se apresentou como uma
nova conversão de compromisso com a alteridade pautada, àquela época, em
um horizonte científico, com uma possível articulação filosófica, para acolher
o sofrimento humano, no dizer de Aristóteles. Esse concurso entre Filosofia e
Psicologia realmente foi, para mim, substancial na medida em que é ele que
liga os indivíduos entre si na partilha da palavra e dos atos que dizem respeito
ao viver coletivamente. É também a partir daí que transparece, como pano de
fundo, o sentido último e originário do éthos, ou nas palavras mesmas de
Lima Vaz, a imersão de um éthos vivido fenomenologicamente manifesto.

A formação filosófica aliada à prática clínica ensinou-me que a palavra é,


de fato, o verdadeiro instrumento na determinação da construção do
entendimento para os rumos necessários do convívio. O desafio, no entanto,
consiste em suportar a ambiguidade própria da palavra, pois ela não assegura
uma univocidade. Assim, o modo de classificar as coisas necessárias e
fundamentais para esse convívio, que é o mais próprio da palavra categoria,
exige o debate sobre o diferindo para se chegar ao entendimento. Isso porque
o papel da enunciação de uma determinada causa de interesse comum,
sustentada através de argumentos que, segundo Aristóteles, derivariam de
uma retórica, proporcionou esse modo de sabedoria fundamental que
determinou a origem do Ocidente, a partir desse povo agonal, por excelência.
130
É sob esse horizonte mais amplo que, no primeiro capítulo, procurei me
acercar, segundo os termos de Lima Vaz, de uma fenomenologia do éthos.
Essa é uma expressão que vai se maturando a cada capítulo aqui do texto,
mas que, já em seu escopo capitular inicial, toma um assento fundamental ou,
se quiser, programático. Para tanto, buscou-se, num primeiro momento, de
precisar semanticamente o conceito de fenomenologia. Entendeu-se que sem
essa explicitação de base, inspirada, sobretudo, em Hegel, a questão própria
do éthos perderia a sua força hermenêutica. Na sequência, procurou-se
abarcar o conceito mesmo de éthos e sua íntima relação com a noção grega
de physis. Por fim, fechando o balanço desse primeiro momento da pesquisa,
intentou-se projetar a pertinência de uma fenomenologia do éthos
compreendida a partir do tríplice elo entre indivíduo, conflito e cultura.

Já, no segundo capítulo, ainda no contexto da fenomenologia do éthos,


ancorada nos escritos vazianos, um novo balanço toma a frente. Trata-se de
pensar a Ética por intermédio de uma via especialmente cara a Lima Vaz: a
antropologia. Aos olhos do filósofo, não há como pensar, em sentido radical, a
Ética desprendida de um discurso sobre o ser, mas também acerca do
homem. Só podemos falar de um éthos vivido à luz daquele que, de certo
modo, é o principal agente no interior dessa morada, aquele que, pelo
cuidado, habita e, em função disso, se responsabiliza eticamente. Em
seguida, examinou-se a Ética na tradição da razão moderna em seu
movimento histórico dialético de auto-diferenciação, bem como buscou-se
situar o alcance e os limites desse empreendimento. Ora, é a partir desse
diagnóstico que, no subtópico capitular seguinte, emerge outro ponto alto de
questionamento da obra vaziana: a crise do conceito de consciência moral.
Lima Vaz, então, lança um olhar para o seu próprio tempo no sentido de
ensaiar uma melhor compreensão entre consciência moral e crise na qual
esse guardião do éthos que é o próprio homem responsavelmente é inquirido.

Por fim, no terceiro momento da pesquisa, abriu-se espaço no sentido


de situar a articulação nuclear e circular entre ética e psicanálise a partir, é
claro, de importantes intuições éticas que continuamente o pensamento de

131
Lima Vaz ressoam e que são particularmente decisivas ao interesse do autor
aqui em estudo. Para tanto, o capítulo final parte de um escopo temático
recortado diretamente da antropologia vaziana: a esfera do psíquico. Trata-se,
segundo o filósofo, de perspectivar melhor, no horizonte do humano,
eticamente vivido, como se estabelece o estatuto da experiência psicológica.
Esse movimento reflexivo é empreendido pelo pensador jesuíta ao mostrar a
importância da Psicologia contemporânea e suas escolas, nas quais, a
Psicanálise, emblematicamente, não poderia deixar de exercer um papel
relevante. Na sequência, num movimento que vai de Lima Vaz a Freud, o
trabalho se deteve em melhor preparar, por meio dessa articulação de fundo,
um lugar mais favorável de interlocução da mensagem psicanalítica. A
intenção consistiu pensar, em rigor, o sentido último da aliança entre ética e
psicanálise; questão essa discutida recorrentemente por Lacan, entre outros
psicanalistas. O capítulo se encerra, então, numa intuição ética que tem se
tornado especialmente cara, nesses últimos tempos, via o meu trabalho
clínico: um retorno àquilo que tenho entrevisto sobre o termo “éthos infantil”.
Trata-se, ali, de demarcar, a partir das origens do sujeito psíquico, a
gratuidade de um éthos não só como morada, mas como cuidado, desde a
mais tenra infância. Essa última é a raiz do novo problema com o qual, desde
já, me vejo em termos hermenêuticos. Para tanto, nesse movimento final do
trabalho, procurei reestabelecer o estatuto desse éthos, tomando, é claro, a
intuição vaziana de uma fenomenologia na constituição desse éthos.

Tudo isso nos reporta ao fato segundo o qual os ditos conflitos


existenciais devem ser pensados pelo viés da história. Trata-se de uma
história indubitavelmente constituída pelo temporal cujo papel é sumamente
preponderante. Com a ideia de temporal se pretende, aqui, visar uma dupla
dimensão. A primeira é a remissão ao nosso existir no tempo, constituído
pelas dimensões de passado, presente e futuro. Isso significa dizer que um
existir permeado e preenchido pela presença de outrem do qual não posso
desvincular-me na busca de realização de um projeto de vida, tem como
horizonte a construção de um mundo que alberga um abrigo protetor. O
projeto de vida se abre nas mais diversas possibilidades de constituição
132
desse mundo. Por ser a abertura um espaço de liberdade, existe a
possibilidade de presença dos mais variados projetos, como, por exemplo, o
das ciências naturais e ciências humanas. Dessa maneira, nos deparamos
com a segunda forma do temporal, o tempo feio, a tempestade, o conflito.
Nesse embate, nos deparamos com o grande desafio do entendimento, só
possível pela ação mais própria do humano, isto é, a palavra, o logos. Aí está
o grande desafio que temos pela frente. Para dar um breve exemplo, tomo a
descoberta do neurônio espelho, feita pelo neurocientista italiano Giacomo
Rizzolatti. Essa descoberta, oriunda da produção científica, própria das
ciências naturais, permitiu inquirir sobre a fundação de um conceito
importante na Psicologia, a empatia.

Como sabemos, a empatia é um processo de identificação em que o


indivíduo se coloca no lugar do outro, ou seja, ele toma, por base, as suas
próprias ideias a fim de compreender o outro. Aquilo que até então era uma
especulação pode, a partir dessa descoberta, ser pensada como um fato, pois
o neurônio espelho é o neurônio que permite realizar esse movimento onde
se torna possível me colocar no lugar do outro. São aproximações deste tipo
que se tornam fundamentais como, por exemplo, pensar a origem do autismo
não apenas pela forma de relação com o outro e com o ambiente, mas
também a partir de uma falta de tal neurônio. Isso é um exemplo da
importância da articulação entre perspectivas epistemológicas distintas e do
desafio que temos que enfrentar no contexto de uma abordagem psicanalítica
aliada essencialmente também a uma interpretação de fundo
neurofenomenológica.

São essas entre outras questões que nos devolve a um ponto crucial
radicado no ideal vaziano de uma fenomenologia do éthos; éthos esse que
nos remete às origens mesmas do sujeito psíquico que, aliás, só
conseguiremos retomar e aprofundar numa pesquisa próxima.

133
REFERÊNCIAS

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