A FENOMENOLOGIA DO ÉTHOS: INTUIÇÕES ÉTICAS A PARTIR DA OBRA DE LIMA VAZ - Ricardo Perin
A FENOMENOLOGIA DO ÉTHOS: INTUIÇÕES ÉTICAS A PARTIR DA OBRA DE LIMA VAZ - Ricardo Perin
A FENOMENOLOGIA DO ÉTHOS: INTUIÇÕES ÉTICAS A PARTIR DA OBRA DE LIMA VAZ - Ricardo Perin
UNIOESTE
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A FENOMENOLOGIA DO ÉTHOS:
INTUIÇÕES ÉTICAS A PARTIR DA OBRA DE LIMA VAZ
TOLEDO, PR
2022
1
RICARDO JOSÉ PERIN
A FENOMENOLOGIA DO ÉTHOS:
INTUIÇÕES ÉTICAS A PARTIR DA OBRA DE LIMA VAZ
TOLEDO, PR
2022
2
Ficha de identificação da obra elaborada através do Formulário de Geração Automática do
Sistema de Bibliotecas daUnioeste.
3
TERMO DE APROVAÇÃO
Marcelo Fabri
Universidade Federal de Santa Maria (UFMS)
Tarcílio Ciotta
GT. Hegel / ANPOF
4
DECLARAÇÃO DE AUTORIA TEXTUAL E DE INEXISTÊNCIA DE PLÁGIO
_____________________________________
Assinatura
5
Trabalho dedicado à memória do
mestre Henrique Cláudio de Lima
Vaz e à de Iolanda Anna Pagot
Perin, minha mãe.
6
AGRADECIMENTOS
E, por fim, à minha família, à Tania Amélia Mello Perin, minha esposa,
aos meus filhos Lucas, Fernando e Ana que não mediram maiores esforços
para acompanhar os longos anos de reflexão e estudos, inclusive, na Europa.
7
Toda cultura, sendo histórica, é
essencialmente ética e é no éthos
que ela encontra a unidade mais alta
das suas manifestações e as razões
mais decisivas para resistir à usura
do tempo. O éthos, em suma, é a
alma de uma cultura viva.
8
RESUMO
RESUMO
9
ABSTRACT
PERIN, Ricardo José. The phenomenology of the ethos: ethicals intuitions from the
Lima Vaz work. 2022, 134p. Dissertation (Masters in Philosophy) – State University of
Western Paraná, Toledo, PR, 2022.
The research circumscribes, in the light of the work of Henrique Cláudio de Lima Vaz
(1921-2002), an influential Jesuit thinker, the theme of the phenomenology of ethos.
To this end, the study is primarily concerned with reconstituting some important
reflective steps of this thematic axis from a multidisciplinary perspective, especially
towards Psychoanalysis. The first step consists in specifying what, in Lima Vaz's
terms, is understood by phenomenology in order to better situate the dimension of
ethos as a transcription from the Greek notion of physis in classical antiquity. The
second aims to reconstitute, from this transcription, the triple mutual figuration
between the individual, the conflict and the culture. The third is the anthropological
understanding, in the course of this event in modernity and, with it, a diagnosis of
moral conscience in a state of crisis. The last great moment proposes to establish the
link between Éthos and Psychoanalysis through three fundamental ethical intuitions
that are mirrored in this broader picture: i) the capillary inscription of the psychic as a
primordial sphere; ii) the articulation between Ethics and Psychoanalysis within the
clinical experience and iii) the return to the infantile ethos as an archaeological
dimension in the midst of the new configurations of personality formation at the turn of
the new century. This culmination of the investigation carried out here turns, above
all, to a whole psychoanalytic-hermeneutic work, of evidently ethical concern, in the
sense of better demarcating the origins of the psychic subject. Finally, the research
advocates the thesis that the work of Lima Vaz establishes a dialectical movement,
phenomenological by definition, capable not only of dialoguing with Psychoanalysis,
but also of relocating the genesis of ethos as a background without which there is no
an ethics of living capable of responding to contemporary demands, that is, to the
challenges imposed by an increasingly plural and unequal society.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
3. ÉTHOS E PSICANÁLISE
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
11
INTRODUÇÃO
Trajetória
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impelem a realizar tal desafio, permite-nos, inclusive, uma maior
compreensão do momento presente.
A minha primeira experiência laboral ocorreu por volta dos treze anos,
quando me tornei aprendiz de relojoeiro. Aos quinze, já consertava relógios.
Esse período marca, portanto, o início mesmo do debruçar-se sobre a
importância do movimento do tempo, seja esse sob o ponto de vista objetivo,
seja sob a perspectiva da constituição da subjetividade. O contato com a
dinâmica de funcionamento do mecanismo instrumental que registra o tempo
possibilitou-me a primeira experiência com a dimensão da precisão. A palavra
precisão, aqui, possui um sentido duplo. Inicialmente, o de exatidão,
pontualidade. Há, em função disso, um jogo de palavras que sempre me
acompanhou, mas que só tomei conhecimento, de fato, por ser relojoeiro de
tal maneira que só hoje consigo atinar a sabedoria nas suas entranhas:
“relógio que atrasa não adianta”. O segundo sentido de precisão é o de coisa
útil, no sentido de necessidade mesma ao homem. No caso, trata-se da
utilidade desse instrumento no intuito de marcar a hora certa, o tempo correto,
pois, do contrário, não tem serventia alguma para a orientação prática
humana. Atualmente sei, como psicólogo, sobre o quanto a existência é um
movimento no tempo e do tempo e que, a forma de cada um situar-se e
orientar-se por ele, pode vir engendrar uma personalidade cujos conflitos
podem determinar as mais diferentes psicopatologias.
Retornando às experiências com a máquina do tempo, devo dizer que,
conjuntamente com a incipiente prática profissional, tomei contato com a
teoria do funcionamento da mecânica, através da própria doutrina mecânica
de Newton, nas aulas de Física do primeiro ano do ensino médio. Por esse
meio tive, então, a preciosa oportunidade de vislumbrar a articulação entre a
teoria e a prática. Ou seja: o conhecimento científico me permitiu entender
melhor, na prática objetiva, que o segredo que habitava aquela sequência de
engrenagens que produzia um coração oscilatório e capaz de precisão, era, a
bem da verdade, fruto de um cálculo preciso. Tal vislumbre ou, se quiser, tal
ver mecânico-fenomenológico que se articulara teórico e praticamente me
permitiu perceber o quanto isso era fundamental no processo da
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aprendizagem, sendo, pois, entre tantas, uma das mais caras contribuições
que passaram a orientar a minha prática futura de professor. Não deixa
igualmente de ser relevante enfatizar que, para aprender a profissão de
relojoeiro, se tornou imprescindível uma observação mais acurada da ação de
outra pessoa que possuía experiência e conhecimento acerca da matéria.
Esse fator só vem corroborar a importância da dimensão intersubjetiva
inalienável presente no processo de aprendizagem como fonte de imitação.
Assim, essa dupla via de interesses conjugados (como relojoeiro e aluno
motivado pelas aulas de Física) fez com que o meu professor de Física, José
Zanchettin, viesse me convidar para substituí-lo nas aulas do primeiro
científico noturno. Desse modo, em 01 de setembro de 1973, comecei minha
atividade de professor na área, tendo apenas concluído o ensino médio. Essa
incipiente, mas rica experiência de professor de Física, formou o amálgama
propício para a escolha do curso de Engenharia Civil. Em 1974, ingressei no
curso de Engenharia Civil da UEM e, com isso, pude adentrar, mais
profundamente, no universo científico-cultural da objetividade, da precisão e
do cálculo.
Em Maringá, Paraná, tive, então, a oportunidade de prosseguir no
magistério em uma escola de confissão católica enquanto cursava a
Engenharia. Nesse ambiente, um novo horizonte se abre, dessa vez, por meio
da religião num movimento que transcende, é claro, a dimensão da
objetividade. É o momento de uma profunda conversão em que se redefine a
subjetividade pelo viés da religiosidade o que provavelmente tenha sido o
momento de ressurgimento de valores motivados por uma forte educação
familiar religiosa. Nesse sentido vale arriscar afirmar que algumas pessoas
realizam a experiência da religião já nos primeiros meses de vida: isso leva a
crer, por exemplo, que no próprio leite materno vai se incorporando a semente
de toda experiência do sagrado. Ora, justo essa ideia, ao que me parece,
exprime a importância do vínculo materno na constituição das aspirações
(boulesis) futuras da criança, já que a mãe é a figura nuclear no sentido de
introduzir o ser humano na vivência amorosa que nos compromete com a
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alteridade. Para empregar aqui uma terminologia psicanalítica, trata-se do
processo de constituição do desejo.
Pois bem: é no curso deste movimento, por uma espécie de dialética
existencial objetiva-subjetiva em que se engendrara a perspectiva vocacional
religiosa, que eu decidi abandonar o curso de Engenharia Civil e optar pelo
ingresso na Companhia de Jesus, congregação dos jesuítas. Foi por meio
desse itinerário que se abriram as portas para o encontro com a Filosofia,
uma vez que ela é inerente à própria formação sacerdotal jesuítica. Foi, pois,
em meio a esse processo conversivo que a transição de uma perspectiva de
mundo centrada na objetividade para uma perspectiva em que o fluir da vida
se torna o verdadeiro objeto de observação (physis) se alicerça radicalmente.
Dizendo de outro modo, as certezas transmutam em possibilidades tais que
albergam o mais próprio do viver humano de cada sujeito, como diria Gilvan
Fogel lembrando Kierkegaard. Pois, como já disse o poeta: navegar é preciso;
ora, viver não é preciso.
Ao chegar a esse estágio, fui percebendo, aos poucos, que a
perspectiva cristã do mundo tem em si uma forma própria de viver a dimensão
da temporalidade. Trata-se, ali, de um tempo em que o presente nos
compromete com um modo de ser, remetendo-nos, pelo vínculo do amor, a
uma forma de relação com a alteridade, para, enfim, se engajar na construção
de um mundo comum só plenamente realizável num além. É o horizonte, por
assim dizer, escatológico. Dessa maneira, a perspectiva do fluir da vida cristã
engendra a realização de si, perpassada pela realização do outro e com o
outro, num compromisso mútuo de amor, cujo modelo está na relação
trinitária. Eis porque tal ótica abre a possibilidade de constituição de várias
formas de vínculos humanos. A vida religiosa vocacional se coloca de tal
forma, que a relação com a alteridade abre o horizonte último de uma vivência
amorosa muito peculiar, exigindo, aliás, um amor exclusivo, o celibato. Nessa
exclusividade, a possibilidade de vínculo amoroso com uma única pessoa é
transmutada para o vínculo com a humanidade, exigindo, de quem opta pela
vocação religiosa, uma dimensão sublimada da própria afetividade. Ora, pois,
a renúncia dessa possibilidade de realização humana exige, do vocacionado,
15
um desafio bem característico, qual seja, que ele remeta para o fim dos
tempos uma certa completude de realização de sua existência.
De todo modo, o que me parece relevante registrar, sobretudo do ponto
de vista filosófico, é que essa minha trajetória, marcada pela formação
seminarística, toma corpo justo num momento realmente privilegiado. Quer
dizer, é a ocasião em que tive mais diretamente contato não só com a obra de
Henrique Cláudio de Lima Vaz, mas com ele próprio que fora, aliás, o meu
professor. Algumas memórias me vêm a partir dessa relação, ou melhor,
pode-se dizer, filiação intelectual a ponto de reconfigurar o meu percurso e
que, em larga medida, inflete nesse trabalho ora em curso.
Para tanto, eu gostaria de retomar alguns momentos de uma Entrevista
(PERIN, 2019) concedida recentemente onde justamente busco reconstituir,
em linhas gerais, essa impactante trajetória. A minha vida no seminário iniciou
em 1979, com os jesuítas, em Porto Alegre. Em 1982, fui para Belo Horizonte
para iniciar o curso de Filosofia junto ao Instituto Santo Inácio, instituição essa
em que se concentrou toda a formação acadêmica jesuítica no país. Como
requisito para fins de ingresso na Filosofia, havia um vestibular que constava
de uma avaliação escrita e de uma avaliação oral. Ora, o avaliador oral era
Lima Vaz. Foi este o motivo de meu primeiro encontro com ele. A Lima Vaz
coube a função de fazer a avaliação de todos os candidatos em
conhecimentos gerais. Começamos, enfim, a avaliação de um modo informal,
por meio de uma breve história de minha vida antes mesmo do ingresso nos
jesuítas. A partir disso, Lima Vaz decidiu que a avaliação versaria sobre
conteúdos referentes aos estudos em que eu já havia feito. Ele não fez
nenhuma pergunta; apenas conversamos sobre temas ligados à Física e ao
cálculo. Na medida em que a conversa fluía, fui percebendo a grandeza da
sabedoria daquela figura humana, aparentemente frágil em seu aspecto. Ele
falava de Galileu, de Newton, de Leibniz de Fourrie com tal propriedade que,
em alguns momentos, me produzia a sensação de ser um principiante. Foi
nesse momento que entendi o verdadeiro sentido do que significa ser filósofo.
Assim, uma vez ingresso no curso de Filosofia, tive, de fato, o privilégio
de ter Lima Vaz como professor de história da filosofia. Eis que as suas aulas
16
permitiam fazer certa experiência de viagem no tempo. Ao falar sobre as
origens do pensamento grego como, por exemplo, o eidos platônico, o
professor produzia no ouvinte uma sensação de regressão, a ponto de fazer o
aluno imaginar-se um espectador dos jogos olímpicos gregos, para, enfim,
compreender melhor que sentido haveria ali proceder a tal retorno. Outro
traço marcante dessa convivência intelectual diz respeito a uma conversa
com Lima Vaz na condição de orientador de estudos. Ele dissera, em alto e
bom som, que para estudar Filosofia seria necessário saber grego.
Acompanhando, então, o seu dito, ele me estendeu uma cópia de uma
gramática grega, juntamente com um evangelho de Marcos no original.
Guardo com carinho o evangelho em grego, pois é uma lembrança viva do
Pe. Vaz. A ele, devo o pouco de experiencia de leitura com o grego que
adquiri.
Há, ainda, outro experimento intelectual que me parece digno de nota.
No seminário, tive a oportunidade de ler Erich Fromm, psicanalista vinculado
à Escola de Frankfurt. Da leitura de Fromm, fui remetido ao pensamento de
Herbert Marcuse, com quem Fromm rivalizava. A questão é que o
pensamento frankfurtiano abriu as portas para vislumbrar a articulação entre
Filosofia e Psicanálise, através da aliança entre a obra de Marx com o
pensamento freudiano. Essa ocasião também me propiciou a possibilidade de
ler o clássico de Martin Jay, La Imaginación Dialéctica. Isso, sem dúvida, me
permitiu vislumbrar uma primeira perspectiva da psicologia, uma ciência
capaz de ajudar a pensar os conflitos sociais.
Para não se alongar aqui, em demasia, em resumo, são essas as
memórias que guardo do breve, mas prazeroso convívio jesuítico e, em
particular, com Lima Vaz, já que saí do seminário em final de maio de 1982.
Ocorre que, após quase três anos e meio de vida religiosa percebi que não
daria conta de suportar o desafio posto quando ingressei no seminário. É o
momento de uma desconversão, mas, ao mesmo tempo, de uma nova
conversão. Desta experiência de compromisso com a alteridade,
proporcionada pela vida religiosa, brotou uma nova possibilidade de envio ao
acolhimento do outro, a Psicologia.
17
Assim, em agosto de 1982, iniciei o curso de psicologia na UEM.
Retomei minha atividade de professor, no mesmo colégio católico em que
havia lecionado, mas, dessa feita, a partir de um horizonte voltado às ciências
humanas. Assim, juntamente com a equipe pedagógica, em 1984, decidimos
implantar as disciplinas de Sociologia e Filosofia, das quais atuei como
professor, provavelmente, sendo uma experiência pioneira à época.
Concluído, em 1988, o curso de Psicologia, me transladei para Toledo, minha
terra natal, iniciando a atividade docente na antiga Facitol, hoje, atual campus
da UNIOESTE.
Foi, nesse ano, já atuando na docência superior, que um novo e último
contato se estabeleceu com antigo mestre jesuíta. Cabe reportar que o meu
contato inicial com a obra de Lima Vaz se deu mediante a escuta e de alguns
textos. De todo modo, a presença mais significativa de seu pensamento
ocorreu através do livro Escritos de Filosofia II: Ética e Cultura de que,
inclusive, abordarei bastante aqui no trabalho e discorrerei na ocasião mais
oportuna. Pois bem: em 1988, quando estive em Belo Horizonte para
participar de um congresso ocorreu o último encontro com o Pe. Vaz. À
época, então, fui agraciado, por ele, com o referido livro, que acabava de ser
publicado, acompanhado de uma carinhosa dedicatória.
A questão que me toca e, é claro, me é, especialmente, cara, é que,
anos depois, a presença da obra e pensamento de Lima Vaz ainda se fez
sentir não só em minha atividade de docência na universidade,
particularmente, no curso de Filosofia, mas em meu trabalho propriamente
clínico. É assim que, entre 1994 e 1996, realizei uma pós-graduação, na
UFPR, em Psicologia Clínica e Psicanálise. Para elaborar o trabalho de
conclusão escolhi o tema da Ética e Psicanálise. O conhecimento da obra de
Lima Vaz foi fundamental, pois me permitiu fazer justo essa articulação
multidisciplinar. Ou seja: foi a partir da leitura da fenomenologia do éthos,
desenvolvida por Lima Vaz, que a articulação com a psicanálise se efetivou
mais concretamente. A perspectiva do éthos designando a morada, a casa do
homem, permitiu fazer a aproximação com a psicanálise por intermédio do
dito de Freud, extraído do Uma dificuldade da Psicanalise, de que o ego não é
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dono nem da própria casa. Ora, pela ótica tal qual se vislumbra na
fenomenologia do éthos, o homem, através do seu agir, é desafiado a
dominar a physis para poder construir seu espaço próprio, a sua morada.
Assim, pois, o éthos brota desse agir constante, manifestando-se nos
costumes e nos hábitos. Isso diz respeito ao comportamento que resulta de
uma repetição constante dos mesmos atos, exigindo do homem um apropriar-
se de um modo de ser que o vincula com a alteridade e, portanto, o vincula ao
coletivo. Há, pois, uma circularidade dialética presente na relação entre o
coletivo e o individual, exigindo de cada indivíduo um movimento de
integração no coletivo para, enfim, constituir-se como personalidade ética.
Como é sabido, Freud apresenta duas formas de a conflitiva existência
humana estruturar o psiquismo. Isso significa que ambas as formas ocorrem
na dinâmica temporal de convívio com a alteridade. Freud faz isso
inicialmente já, em 1900, através da estrutura de inconsciente-pré-consciente-
consciente. A segunda, por volta de 1920, conhecida pela trilogia Id – Ego –
Superego. Por meio dessa estrutura, a dimensão conflitiva pulsional ocorre de
maneira intersubjetiva e intrapsíquica. Ou seja, a estruturação da
personalidade se constitui pela história dos conflitos na convivência com o
outro (intersubjetiva), bem como em um conflito no interior de si mesmo
(intrapsíquico), na medida em que, a partir do Id, vão se constituindo as
instâncias do ego e do superego, em um processo de desenvolvimento.
É no interior desse horizonte constitutivo que Freud faz emergir a
expressão de que o ego não é dono nem da sua própria casa. Podemos
considerar, de maneira abreviada, com o risco de comprometer a
profundidade da questão, que o processo de constituição de um indivíduo
ocorre no interior de uma coletividade, a família. É essa é o espaço primordial
desde onde emerge o indivíduo, ao mesmo tempo em que ele é lançado no
mundo circundante (Umwelt), cultural, permeado de costumes (ethos). O nó
da questão é que, para viver, em seu sentido mais pleno, o coexemplo, o
mamar, a total dependência do outro cria um vínculo propício para,
juntamente com a incorporação do alimento, incorporar valores; portanto,
costumes. Assim, por exemplo, para eliminar o alimento, aprendemos a
19
maneira correta, a maneira costumeira, de usar o penico. Daí emerge a
expressão que transpõe o aprendizado do comportamento repetitivo, de
origem biológica, para o aprendizado do comportamento fundamentado nos
próprios costumes: “não vá mijar fora do penico”. O que significa dizer que
nosso agir (práxis) deve adequar-se ao convívio em comum, ou seja, integrar-
se aos costumes (éthos) através da incorporação de hábitos (éthos-hexis).
Trata-se de uma adequação ao mundo familiar, no qual fazemos a
emergência; emergência essa enquanto brotar, vir à tona, mas, também,
como contingência. Isso desdobra-se em uma dupla dimensão, ou seja, uma
de caráter consciente e outra inconsciente.
A dimensão consciente constitui a personalidade ética, o sujeito da
razão, pois por meio da deliberação e da escolha o indivíduo apropria-se
(hexis) de um hábito, integrando-o aos costumes e, possibilitando, dessa
forma, a manutenção da tradição. A dimensão inconsciente constitui o sujeito
psíquico, cindido pelo conflito existencial com a alteridade. Sabemos que
Freud apresentou a origem do inconsciente como fruto de um processo de
recalque, a partir de experiências dolorosas e desprazerosas, vividas em uma
situação de abuso. A vivência do abuso, aqui, deve ser compreendida como a
intromissão de um mundo adulto, já carregado de significados, do qual a
criança não tem capacidade de metabolizar. Ora, essa incapacidade de
metabolização dos significantes nos introduz na experiência de um estranho
que nos invade, abrindo a emergência do estranhamento e do inquietante. É o
angustiante nos invadindo, o Das Unheimlich freudiano. Esse, contudo,
corresponde ao mundo concreto e familiar que habita em cada um de nós
(éthos). Foi propriamente isso que levou Freud dizer que o ego não é dono
nem de sua própria casa. Quer dizer, essa é a experiência ética do sujeito
psíquico, introduzindo-o em uma cisão irrecuperável, ocasionada pelo
encontro com o desejo do outro e que nos introduz no desejo que nos habita,
incorporando um outro, transformado em um eu, ou melhor, em um superego
ou ideal de ego. Isso, enfim, nos transforma em um sujeito errante, tal qual
Édipo, tendo que ir ao encontro do seu destino.
20
Ao trazer esse breve percurso teórico do tema que me ocupa procurei
explicitar minimamente de que maneira Lima Vaz, explícito ou implicitamente,
se faz ainda presente. É assim que, após a pós-graduação realizada na
UFPR, ainda me vejo diante do desafio de aprofundar tal temática, o que, logo
depois, de imediato, pude, a contento, prosseguir com os estudos, em Madri.
Lá realizei o curso de Fundamentos y Desarrollos Psicoanalíticos que me
permitiu a obtenção do título de Diploma de Estudios Avanzados, título esse
equivalente ao mestrado, que me concedeu a formação de pesquisador na
área de conhecimento de Personalidad, Evaluación y Tratamiento
Psicológico.
II
Estrutura do trabalho
21
platônico, Aristóteles e Sto. Tomás. Na sequência, tratar-se-á, pois, de
estabelecer qual a natureza ou essência última do éthos, ou seja, cumpre, em
termos hermenêuticos, melhor descrever a íntima relação entre physis e éthos
num diálogo intercalado com Aristóteles e Heidegger. Esse primeiro grande
tópico temático conclui ao avaliar, em tal percurso histórico, o registro de três
problemas intrinsecamente ligados: indivíduo, conflito e cultura.
Isso posto, o trabalho, num segundo momento, objetiva traçar uma linha
discursiva mais crítica, no interior desse programa fenomenológico próprio,
sem deixar, ao mesmo tempo, de ser propositiva. Inicialmente, se
reconstituirá alguns recortes em torno de uma questão particularmente cara a
Lima Vaz: o homem. Pretende-se, dentro desse escopo temático, interrogar o
homem como guardião do éthos, isto é, como aquele que faz a sua própria
morada. Trata-se da dimensão antropológica que sem a qual, reconhece Vaz,
não advém a Ética. Essa problemática anuncia outra questão fundamental no
interior da obra vaziana, qual seja, a inscrição da ética no contexto da razão
moderna tomada aqui num sentido mais amplo a ponto de suscitar o nosso
tempo a partir de várias perspectivas ou modelos éticos. O capítulo encerra
com um agudo diagnóstico ético: a crise da consciência moral. Lima Vaz
ambienta essa análise tecendo o que, no mundo moderno, acabou por
aprofundar uma crise moral sem precedentes na história. O que se assiste, na
modernidade, é uma exacerbação da atitude individualista concernente aos
critérios subjetivos do comportamento, mas que, simultaneamente, se sujeita
a exigências que lhe são objetivamente impostas.
O terceiro momento do trabalho se configura sob o horizonte do vínculo
estreito entre éthos e psicanálise. Esse panorama projeta importantes
intuições éticas sendo a primeira a trilha aberta por Lima Vaz orientada para
uma hermenêutica quanto à natureza última do psíquico em diferentes
correntes da Psicologia contemporânea e, em particular, da Psicanálise. Essa
última enseja uma percepção intuitiva fundamental que visa uma articulação
com a própria Ética perpassada pela experiência ou prática clínica. Tal
domínio da práxis se torna substancial na medida em que traz para a
discussão certa herança psicanalítica no que compete, do ponto de vista
22
ético, ao próprio ofício do analista. Nessa direção, uma nova senda também
se abre de maneira tematicamente propositiva: o éthos infantil. A atenção,
nesse último momento, se concentra em situar, ao menos, o vínculo
psicanalítico-fenomenológico entre essa forma primordial de éthos e o mundo
vivido. Trata-se de trazer à cena a figura da criança como agente no processo
de constituição ética ou, se quiser, de restituir a gênese mesma desse modus
operandi constitutivo do sujeito psíquico como dialeticamente éthos ou
morada frente aos desafios da contemporaneidade.
Por fim, a dissertação, dentro de limites aqui propostos, visa tão
somente perspectivar um pano de fundo que me tem levado, nos últimos
anos, a transitar entre diferentes abordagens, buscando justo encontrar um
elo que as convirjam sob certos aspectos sem comprometer, é claro, a
peculiaridade de cada uma delas. Isso explica a razão pela qual a pesquisa
pretende apenas ser um ensaio, ainda preliminar, um esboço provisório de
uma questão que se tornou especialmente cara a mim, fruto da experiência
clínica como psicólogo e da minha formação, durante certo período com a
Filosofia por meio da qual, inclusive, tive a honra e privilégio de ter Lima Vaz
como um dos primeiros mestres.
23
1. FENOMENOLOGIA DO ÉTHOS (I)
Antes de iniciar o presente estudo que tem como escopo nuclear a tese
de uma fenomenologia do éthos, convém explicitar, em linhas gerais, o que
Lima Vaz entende pelo termo fenomenologia. Parece-me instrutivo reportar,
ainda que sumariamente, que tal termo fixa, de maneira explícita, o seu lugar
no vocabulário filosófico com Hegel. É a Fenomenologia do Espírito1, de 1807,
que, pela primeira vez reivindica a tarefa de uma descrição do movimento
geral do Espírito Absoluto como presença viva na História. Ora, Lima Vaz se
coloca, em larga medida, como um herdeiro desse momento singular: ele
constrói o seu pensamento próprio embebido em fontes gregas, mas também
hegelianas. Ele incorpora, em seus escritos, não só o espírito, mas a letra
dessa inspiração emblematicamente filosófica. É evidente, como o leitor
poderá oportunamente aqui se certificar, que se Lima Vaz retorna ao
pensamento grego, no sentido ali de restituir um sentido do éthos, colocando-
se ainda como um leitor fervoroso dos clássicos até à tradição
fenomenológica que se institui a partir de Husserl, ele assim o faz tendo como
pano de fundo a obra de Hegel. Quer dizer: a sua interlocução com os
antigos, com os medievais e com os modernos que é travada, numa rara
erudição, contemporizada com autores como Husserl, Scheler, Heidegger,
Merleau-Ponty (para ficarmos no circuito fenomenológico) é mediada, sempre
que necessário, com Hegel. Então realmente parece razoável, ao se cunhar o
termo fenomenologia e toda a configuração polissêmica que esse estabelece
em outros momentos da história da filosofia, não perder de vista essa
1
Como ver-se-á, mais adiante, Lima Vaz redige, especialmente, uma “Apresentação”
da obra publicada, no Brasil, já em sua quarta edição, de 2007, pelas mãos, em
particular, de Paulo Meneses. Esse importante extrato será significativo no tocante
a esse momento inicial aqui do capítulo na medida em que ele joga luz própria ao
conceito norteador que se matura cada vez mais ao longo de toda a pesquisa: a
cara noção de fenomenologia.
24
linhagem espiritual que, aqui e acolá, ao longo do texto, inspira, instiga,
convoca.
Dito isso, ao falar de éthos parece igualmente instrutivo considerar que o
pensador brasileiro tem em conta uma tarefa, um problema a ser posto,
melhor refletido e que ocupara, recorrentemente, o centro de suas atenções
mais imediatas. Não se trata, pois, de um estado de interrogação menor,
periférico ou meramente cosmético. Ele imprime um movimento, um estilo
peculiar, dá viva voz, uma voz, por vezes, inquietante, mas precisa o
suficiente no sentido de formular, sem deixar de revisitar a tradição, uma
posição teórica própria. Ele pretende elaborar uma fenomenologia do éthos. E
é essa fenomenologia o lugar privilegiado de fala que terá muitos ecos,
ressonâncias ou intuições, por assim dizer.
Tal como o seu mestre Hegel, Lima Vaz é um pensador sistemático.
Esse é outro aspecto que não passa despercebido em seus escritos. Nosso
filósofo, aqui em estudo, também pensa os seus problemas no interior de um
sistema. Trata-se de uma preocupação não só metodológica, mas teórica.
Isso tudo sem deixar de acenar ao leitor a direção de uma práxis; práxis essa
meditada sem dúvida, mas intimamente aliada à reflexão.
É com essa perspectiva de leitura mais ampla, complexa por sinal e, não
raras vezes, restrita, que o trabalho aqui se detém na tentativa de um esforço
mínimo que busca ser o mais fiel possível à intenção de um mestre que, a
todo tempo, guia, ensina, indica.
Esse reconhecimento nos devolve à questão de início: o sentido da
fenomenologia. Afinal, essa unidade entre estilo e método é o que caracteriza
mais propriamente a fenomenologia no sentido hegelianamente importado por
Lima Vaz. Não há como falar em éthos sem, antes, compreender bem o
estatuto fenomenológico a partir do qual o éthos, em sentido próprio, é
radicalmente interrogado. Essa clareza primeira se traduz, aqui, como o
grande pórtico de entrada no tema. A fenomenologia é o caminho, um
movimento que nos leva ao éthos, nos conduz a ele. Mais que um simples
instrumento metódico, no sentido moderno utilitarista da palavra, a
fenomenologia se torna o processo incessante, o devir mesmo do éthos em
25
sua significação mais primordial. Essa lição de fundo, Lima Vaz recolhe de
Hegel, ao comentar o sentido e alcance da Fenomenologia do Espírito como
sendo, sobretudo,
27
Kant unifica as categorias do Entendimento na unidade transcendental da
apercepção no Eu penso”. E complementa, a respeito da obra hegeliana:
2
Trata-se do seguinte texto: VAZ, H. C.L. “Senhor e escravo: uma parábola da
filosofia ocidental”. In: Síntese-Nova Fase, n° 21, jan./abr. 1981, p. 7-29.
28
definitivamente a direção do roteiro que Hegel traçará para
essa sucessão de experiências que devem assinalar os
passos do homem ocidental no seu caminho histórico e
dialético para cumprir a injunção de pensar o seu tempo na
hora pós-revolucionária, ou para justificar o destino da sua
civilização como civilização da Razão. Com efeito, o que
aparece agora no horizonte do caminho para a ciência são as
estruturas da intersubjetividade ou é o próprio mundo humano
como lugar privilegiado das experiências mais significativas
que assinalam o itinerário da Fenomenologia (2007, p. 22).
30
Para que se consiga melhor acompanhar esse movimento de transcrição
fenomenológica em sua intenção última é preciso traçar, mesmo que
sumariamente, a noção grega de physis. O pesquisador brasileiro Murachco,
reconhecido helenista, abre uma pista interessante nesse sentido. Ele parte
da premissa de que “physis significa brotação, isto é, o ato dinâmico de
NASCER, de BROTAR” (MURACHCO, 1996, p. 14)3. Noutra linha não muito
diversa, o helenista alemão Werner Jaeger (2013, p. 8-9) já observara, por
exemplo, que
3
Para uma melhor explicitação quanto à evolução do conceito grego de physis o
leitor é convidado a conferir dois importantes trabalhos de NADDAF (1992; 2006).
31
Heidegger tem em vista que com o advento da modernidade, sobretudo,
com a era da técnica, esse caráter originário da ύσις se perde
irremediavelmente. A ύσις passa a ser transcrita como natureza, isto é,
como objeto, artefato. É o ele subscreve em sua crítica:
4
Ver, por exemplo, Heidegger (1979a; 1979b; 2007).
33
Ética vem do grego éthos, que significa analogamente "modo
de ser" ou "caráter" enquanto forma de vida também adquirida
ou conquistada pelo homem. Assim, portanto,
originariamente, éthos e mos, "caráter" e "costume",
assentam-se num modo de comportamento que não
corresponde a uma disposição natural, mas que é adquirido
ou conquistado por hábito. É precisamente esse caráter não
natural da maneira de ser do homem que, na Antiguidade, lhe
confere sua dimensão moral.
5
O “hábito”, descreve Hume (1999, p. 67), “é, assim, o grande guia da vida humana
... Sem a influência do hábito seríamos inteiramente ignorantes de toda questão de
fato que extrapole o que está imediatamente presente à memória e aos sentidos”.
34
parmenídico, por princípio, mas originária. Tudo se passa como se esse
sentido não estritamente lógico do logos pousasse ou habitasse o éthos como
daímon (δαίμων). “Daímon é o deus na sua ação e significado voltados para o
Homem. Na Grécia, “o que importa, portanto”, volta a retratar Jaeger (2013, p.
1174), “é infundir à pólis um éthos bom e não a dotar de um amontoado cada
vez maior de leis especiais para cada setor da existência”.
35
Segundo as palavras de Heráclito, isto é, o daímon (δαίμων),
o deus. A sentença diz: o homem, enquanto é homem, mora
nas cercanias de deus (HEIDEGGER, 2008, p. 367).
Pois bem: Lima Vaz estenderá essa análise de que physis e éthos
constituem, em rigor, duas ordens de experiência correlatas. Ele também
compreende o que há de propositivo no contexto pré-socrático em pensar
physis e éthos numa aliança indissolúvel. O éthos como morada é tão
originário quanto a physis como elemento. Torna-se impossível pensar um
sem o outro uma vez que são co-partícipes desse protagonismo que enseja,
na primeira cultura do Ocidente, um só e mesmo processo ou movimento.
36
Fato é, por uma parte, como bem nota o pensador brasileiro, que a ideia de
physis como princípio de movimento é fundamental para pensar o processo
engendrador do éthos pela via da práxis. Isso revela sobre o quanto o homem
é perpassado por essa necessidade de construir o seu lugar próprio no
mundo dando origem à cultura. O que pressupõe, no domínio da práxis, uma
relação prioritária com o outro mediada pela linguagem (logos).
Como visto, Lima Vaz localiza a vertente desse debate, isto é, a matriz
conceptual primeira e o espaço teórico dos seus problemas fundamentais.
Pretender demonstrar physis e éthos, reconhecera o próprio Aristóteles, nada
mais soa do que uma profunda ignorância quanto aos procedimentos
analíticos. Por que, afinal? Porquê, por exemplo, a physis é o próprio
princípio, a arqué mesma da demonstração. O pensador brasileiro ainda
expõe a razão mais profunda pela qual physis e éthos são duas formas
primeiras de manifestação do ser: o éthos figura como transcrição da physis
por meio da práxis sócio-histórica. Isso, aliás, será muito relevante para o
nosso argumento ao longo aqui da pesquisa cujos capítulos posteriores
pretendemos explicitar melhor. Por ora, ainda devemos esclarecer um pouco
mais em que sentido se opera essa fenomenologia do éthos.
Para tanto, Lima Vaz aponta, via também um trabalho todo filológico-
hermenêutico, a raiz etimológica de éthos. Bem nota ele:
6
Outra análise digna de apreço é o livro de Vergbières (1998).
38
A primeira acepção de éthos (com eta inicial) designa a
morada do homem (e do animal em geral). O éthos é a casa
do homem. O homem habita a terra acolhendo-se ao recesso
seguro do éthos. Este sentido de um lugar de estada
permanente e habitual, de um abrigo protetor, constitui a raiz
semântica que dá origem à significação do éthos como
costume, esquema praxeológico durável, estilo de vida e
ação. A metáfora da morada e do abrigo indica justamente
que, a partir do éthos, o espaço do mundo torna-se habitável
para o homem. O domínio da physis ou o reino da
necessidade é rompido pela abertura do espaço humano do
éthos no qual irão inscrever-se os costumes, os hábitos, as
normas e os interditos, os valores e as ações. Por
conseguinte, o espaço do éthos enquanto espaço humano,
não é dado ao homem, mas por ele construído ou
incessantemente reconstruído. Nunca a casa do éthos está
pronta e acabada para o homem, e esse seu essencial
inacabamento é o signo de uma presença a um tempo
próxima e infinitamente distante, e que Platão designou como
a presença exigente do Bem, que está além de todo ser
(ousía) ou para além do que se mostra acabado e completo.
(LIMA VAZ, 2000a, p. 12-13).
40
Éthos (épsilon) é mais do que o costume de acordar cedo,
tomar uma média e ler o jornal. É o costume de ser e de
pensar. É o modo acostumado de ler, avaliar e decidir
diariamente, sobre a verdade de todas as coisas. Fazer por
costume é sempre um já ter feito, um fazer por fazer
indiferente a si mesmo, que, quando se percebe, deixa pra lá,
porque não se reconhece. É o modo de atuar e a perspectiva
interpretativa de toda ação, que se recebe e se transmite sem
digestão. Por isso o costume se estrutura sempre, de início,
como herança, e se instala, segundo uma metáfora de
Kierkegaard, como um óculo encavalado sobre o nariz e
simplesmente esquecido. Mas porque, para o grego, nem
toda regularidade praxiológica é herança indigesta, nós
devemos acrescentar, aos dois éthos já vistos, como sugere o
Pe. Vaz e a título de uma caracterização mais completa da
eticidade como o modo de ser aberto do agir humano, um
outro vocábulo, que não tem a mesma raiz, mas fala do
mesmo espaço. Trata-se do nome héxis, que vem explicar,
sobre a eticidade, algo que faltava, a saber, o modo mais
sólido de vigência e perpetuação do éthos (épsilon), em que a
coesão de um conjunto de valores, seja no indivíduo, seja na
comunidade, não se sustenta na indiferença de um agir
meramente herdado, de um fazer por fazer, mas na
necessidade consciente e livremente instituída de fazer o
bem, segundo a imperiosidade de um dever-ser (REGO,
1995, p. 182-183).
Rego nos traz aqui o ponto chave. Ele acentua uma distinção capilar
entre héxis e éthos. Para tanto, ele volta a argumentar:
42
Não se trata, na paideia, de receitar um modo de fazer, mas
de ensinar a necessidade moral do bem [...]. Sabendo por que
repete – simplesmente porque é bom – o homem educado
escapa à pura mecanicidade do costume, ao mesmo tempo
em que dispensa todo tipo de coerção. Além disso, não exige
uma recompensa por sua ação, pois já encontrou nela o móbil
e o fim de todo empreendimento; a liberdade de agir segundo
o bem (REGO, 1995, p. 186)7.
Rego frisa que a paideia grega é bem mais que um método pedagógico
puramente instrumental costumeiro, mas uma orientação habitual para o agir
voltado à constituição da consciência moral. Nesse sentido,
Pois bem: "o que se renova, aqui, é mais a força de hexis do que o
conteúdo definido do costume [...] a renovação não supõe mudança, mas, ao
contrário, depende do contato intensivo e repetitivo com a tradição" (1995, p.
189). Vale reportar que, na Ética a Nicômaco (1996), Aristóteles já definia,
precisamente, a virtude de caráter como “uma disposição (hexis) envolvendo
escolha, consistente em um meio termo (que é relativo a nós), sendo este
determinado por um princípio racional, e por um princípio racional que o
homem de sabedoria prática determinaria (1996, II.6 1106b36-37).” Aqui,
7
“É a educação, portanto, que levanta a primeira voz contra o projeto anti-ético que
embalsama modos, costumes e interpretações fenomênicas que já não respiram
por si sós, e acaba impondo aos homens a vigência de leis morais mortas. Apontar
para a conquista de hexis e ensinar sua universalidade incondicional é uma tarefa
da educação” (REGO, 1995, p. 190).
43
como vemos, a virtude se define como uma hexis e uma hexis é uma
qualidade que diz respeito ao modo (bom ou mau) pelo qual agimos quando
somos afetados pelas pathés (1996, II.5 1105b25-26). A hexis se
compreende, portanto, como um traço disposicional estável, uma qualidade
duradoura e enraizada, em contraste com uma qualidade provisória e
maleável (ARISTÓTELES, 1985, 8b25-10a16). Agora, compreender ainda de
que maneira essa qualidade estável se engendra em nós, Aristóteles
considera que “a virtude de caráter surge como resultado do hábito (éthos)”
(1996, II.1 1103a16), no interior, é claro, dessa perspectiva héxica.
44
Segundo Lima Vaz, Heidegger, na mesma linhagem que Nietzsche, se
insere numa só crítica a certo “moralismo” vigente que anuncia o advento da
Razão no domínio da práxis e que tem na figura de Sócrates, um de seus
ícones. Como o pensador jesuíta nota: “A crítica heideggeriana da Ética de
inspiração socrática e sua proposição de uma ‘Ética originária’ inserem-se
nessa corrente de pensamento que coloca sob suspeita a transposição
racional da práxis”8 (LIMA VAZ, 1993, p. 214). Embora Lima Vaz não se
indisponha ferrenhamente com Nietzsche e com Heidegger nesse quesito, e,
embora ainda considere a críticas desses autores como “instrutivas”, a sua
posição é, obviamente, fundacionista. O pensador brasileiro almeja fundar
uma Ética; ele quer pensar uma ciência da ética e, isso, sem deixar de
reconhecer a posição socrática como paradigmática na história da filosofia no
ocidente. Isso fica explícito, por exemplo, nessas linhas quando escreve:
8
Ver, p. ex., LIMA VAZ, 2000a, p. 61 e p. 108.
45
É sobre esse contexto ainda que é preciso ver que a circularidade
dialética do éthos traz à tona a diferença entre o costume (éthos) e a lei
(nómos) como posição dupla do universal ético como conteúdo próprio da
liberdade. Ora, é sob esse ângulo que Lima Vaz introduz no debate a noção
de indivíduo. Ela entra em cena justo no momento em que se trata de
compreender a intrínseca relação entre éthos e indivíduo. Vaz vai buscar nas
fontes do individualismo moderno a sua expressão máxima. Pois bem: se a
sociedade é um conjunto, os indivíduos se revelam em seu pertencimento a
ela não como fatos singulares somente, mas como, valores, em sentido
axiológico: "Vale dizer que a pertença de uma determinada esfera de agentes
e relações ao todo social se define primeiramente ao nível da sua legitimação
ética, da sua participação ao éthos fundamental que constitui o primeiro dos
bens simbólicos da sociedade" (LIMA VAZ, 2000a, p. 22). É a partir desse
éthos fundamental como primeira camada que tem origem os diversos
aspectos que assume a socialização e educação do próprio indivíduo. Dentre
os aspectos, um, ao menos, aparece ao indivíduo em sentido teleológico, ou
seja, como um fim, “como o lugar da sua auto-realização, o campo onde se
experimenta e se comprova a sua independência, a sua posse de si mesmo
(autárqueia)” (LIMA VAZ, 2000a, p. 22). Assim,
Ao mesmo tempo, Lima Vaz aponta uma crítica a certo ideal molecular,
uma caricatura atomizada do indivíduo no contexto desse éthos societário.
Argumenta ele:
46
Como é notório, do ponto de vista da estrutura social, o
indivíduo não se apresenta como molécula livre, movendo-se
desordenadamente num espaço sem direções privilegiadas e
regido apenas pela lei da probabilidade do choque com outras
moléculas – os outros indivíduos. Uma cadeia complexa de
mediações ordena os movimentos do indivíduo no todo social
e, entre elas, desenrolam-se as mediações que integram o
indivíduo ao éthos: os hábitos no próprio indivíduo e, na
sociedade, os costumes e normas das esferas particulares
nas quais se exercerá sua práxis, ou seja, trabalho, cultura,
política e convivência social. (LIMA VAZ, 2000a, p. 23).
9
Ao leitor que se interessar em aprofundar melhor este tema, ver CIOTTA (2014).
47
É assim que Lima Vaz reafirma o movimento dialético como princípio no
qual se retorna do particular ao universal, "fazendo do indivíduo empírico um
universal concreto, que repõe o problema na forma da relação entre a
liberdade do indivíduo como livre-arbítrio e a universalidade normativa do
éthos" (LIMA VAZ, 2000a, p. 26). Isso ele faz sem deixar de enunciar
Nietzsche. Este é lembrado na medida em que via na função educadora do
éthos a evocação da história terrível das crueldades sociais impostas
subjugando o homem a uma condição animalesca. Com isso, se institui uma
moral, a moral de rebanho. Pois bem, em que pese essa crítica, a explicação
nietzschiana não é suficiente aos olhos de Lima Vaz (2000a, p. 28):
É agora que Lima Vaz introduz outro elemento chave nessa discussão: a
ideia de conflito. Essa noção é preparada no sentido de nos apercebermos de
algo fundamental: a universalidade e normatividade do éthos não se mostra
ao indivíduo nem cronologicamente (como se o indivíduo fosse
predeterminado ou precedido); nem exteriormente (como se o indivíduo fosse
extrinsecamente condicionado) e nem logicamente (como se o indivíduo fosse
eticamente produzido por causalidade). O que convém observar é que não há
determinismo: o primado do éthos tem um acento arquétipo, originário ou se,
quiser, dialético de reconhecimento. Eis porque a liberdade jamais é exterior
ao éthos; ela "introduz no movimento dialético constitutivo do éthos o
momento do poder-ser, o espaço de possibilidade que se abre entre a
particularidade da práxis como ato do indivíduo no aqui e agora da sua
existência empírica e a singularidade da mesma práxis que se efetiva
concretamente como realização da universalidade do éthos no agir virtuoso"
(LIMA VAZ, 2000a, p. 29).
48
Se não há determinismo, o conflito ético também não se confunde, pois,
com o niilismo ético. Então, qual a natureza desse conflito? De onde ele
provém? Como situá-lo em seu devido lugar? Lima Vaz circunscreve tal
conflito num parágrafo elucidativo:
10
Sobre, p. ex., a leitura heideggeriana dessa noção em Platão, ver: GEVEHR
(2016).
49
trabalha com uma noção cara, a ideia de pólemos (πόλεμος): “O combate é
de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros,
homens; de uns fez escravos, de outros livres” (HERÁCLITO, 1978, p. 84).
Heráclito alude aí a uma dimensão de pólemos que não afasta
arbitrariamente, mas aproxima. Ora, a mais bela harmonia parte
essencialmente desse princípio arquétipo que tudo rege, tudo ordena.
Lima Vaz traz pra mesa aqui o debate em torno a essência do conflito
ético: a ideia de transgressão. O que subjaz nesse conflito é certa concepção
de transgressão que nada tem a ver com o seu uso semântico convencional
50
no sentido, por exemplo, niilista de revolta ou de falta, de contravenção
ideológica pura e simples. Talvez seja preciso reencontrar a sua acepção
etimológica originária da Etnologia e da Psicanálise num sentido mais
positivo, afirmativo; sentido esse que perfaz como um traço marcante da
fenomenologia do éthos como movimento de universalização. Qual seria esse
traço?
51
O terceiro nível da fenomenologia do éthos é a cultura. Lima Vaz chama
a atenção de que a cultura é o fenômeno de passagem entre o éthos e a
ética, em sentido próprio: "afirmar que o éthos é coextensivo à cultura
significa afirmar a natureza essencialmente axiogência da ação humana, seja
como agir propriamente dito (práxis), seja como fazer (poiesis)" (LIMA VAZ,
2000a, p. 36). Esse movimento, vale insistir sempre, é dialético. Tal processo
jamais é obra de uma funcionalidade mecânica, puramente rígida ou natural,
mas é fruto de uma consciência histórica que se efetiva por mediações.
Nosso filósofo observa que esse processo nada mais implica ainda do que um
fenômeno de transcendência; ele reflete uma espécie de excesso do símbolo
sobre o real sem deixar, ao mesmo tempo, de motivar uma tensão
característica: "A estrutura da ação se constitui em permanente tensão com o
seu objeto, e é essa tensão que alimenta o Maurice Blondel denominou o
'crescimento orgânico' da ação, o percurso do caminho entre o que o agente é
e o que o agente tende a ser" (LIMA VAZ, 2000a, p. 37). Assim, "enquanto
produtora de símbolos ou enquanto portadora da significação do seu objeto, a
ação manifesta desta sorte uma propriedade constitutiva da sua natureza: ela
é medida (métron) das coisas e, enquanto tal, eleva-se sobre o determinismo
das coisas e penetra o espaço da liberdade" (LIMA VAZ, 2000a, p. 37).
52
Na verdade, a relação mensura-mensurado que se
estabelece entre o símbolo e a realidade tende a inverter-se à
proporção em que a realidade, enquanto conteúdo do
símbolo, se apresenta como a realidade verdadeira ou
significada como tal. A transcendência do sujeito sobre o
objeto ou da práxis sobre o prãgma, atestada na prolação do
símbolo tende a ser suprassumida na transcendência do
objeto significado ou do conteúdo do símbolo [...]. Do métron
de Protágoras ao métron de Platão, o caminho percorrido
indica o sentido da transcendência da medida em torno da
qual se desenvolverá fundamentalmente a reflexão ética
(LIMA VAZ, 2000a, p. 38-39).
Por fim, ao mostrar que toda cultura é constitutivamente ética, Lima Vaz
reconhece também a função do sagrado como uma expressão mais antiga e
universal. Ou seja: a religião é a forma de linguagem mais antiga da
consciência moral como um fato universal da cultura. Eis porque, em rigor, se
torna impossível “separar, na história das grandes civilizações, tradição ética
e tradição religiosa" (2000a, p. 41). Afora, o elemento religioso que se
permeia por raízes ético-culturais, também não se pode desconsiderar o
saber como expressão da cultura na sua relação com o éthos. No contexto do
saber figuram o mito como função didática, pedagógica e prescritiva sob a
perspectiva ética. Ao mesmo tempo, temos também a sabedoria da vida,
estilizada em legendas, fábulas, parábolas, máximas e provérbios que
aparece como o lugar privilegiado da formação da linguagem e do éthos.
Pois bem: é esse traço fundamental do éthos que conduz Lima Vaz, um
pouco mais além da antiguidade clássica, refletir melhor sobre o estatuto
11
Aqui, merece atenção o debate interpretativo posto por Souza (2011); Tedesco e
Strieder (2016) e a obra coletiva de homenagem organizada por Oliveira (2020).
53
mesmo da Antropologia como porta de entrada para Ética dentro ainda do
horizonte de uma fenomenologia do éthos.
54
2. FENOMENOLOGIA DO ÉTHOS (II)
12
Veja, p. ex., Lima Vaz (2001).
55
se propõe. A intenção apenas consiste em tomar esse registro que constitui
um primeiro marco do livro, pois é a segunda parte, a parte “sistemática” que
mais vai nos interessar. Ela se estrutura a partir de três grandes categorias
que serão tomadas por Lima Vaz: corpo próprio, psiquismo e espírito. Para o
nosso intento, nos valeremos de duas delas, corpo próprio e psiquismo. Sobre
o psiquismo, consagraremos o subcapítulo inicial do terceiro capítulo aqui do
trabalho dissertativo.
Lima Vaz explicita melhor qual é o seu intento. Ele compreende que:
O que, aos olhos de Lima Vaz, cabe ser destacado é toda essa empresa
se insere no campo das ciências hermenêuticas, ou, se quiser, das ciências
humanas em geral. Nesse sentido, ele enumera alguns dos problemas
capitais que se circunscrevem no âmbito dessa Antropologia: cultura (tratada
no primeiro capítulo), sociedade, psiquismo (que ainda trataremos), história,
religião e, em suma, o éthos (via régia aqui da dissertação). Sobre esse último
problema, o que nos diz Lima Vaz?
57
específicos, a Ética tendo por objeto o agir individual e o
Direito, e a Política, o agir social (LIMA VAZ, 1991, p. 17).
Lima Vaz evidentemente têm uma visão mais ampla do éthos como uma
espécie de órbita ao redor da qual gravitam muitos outros problemas. O que,
de fato, o éthos constitui, no âmbito dessa Antropologia,
59
tempo do mundo. Pela presença intencional começa a
estruturar-se o espaço-tempo propriamente humano, que tem
no corpo próprio como corpo vivido o polo imediato de sua
estruturação para-o-sujeito, ou o lugar em que primeiramente
se articulam o espaço-tempo do mundo e o espaço-tempo do
sujeito: psicológico, social e cultural. O corpo próprio pode ser
chamado, assim, o lugar fundamental do espaço
propriamente humano, e o evento fundamental do tempo
propriamente humano (LIMA VAZ, 1991, p. 177).
60
Lima Vaz toma esse discurso dialético como o discurso sistemático de
sua Antropologia filosófica. Ele pretende conferir ao corpo um estatuto
ontológico. Ele pensa o corpo como exprimindo a essência do humano ou
ainda como a afirmação do ser do homem. Tudo se passa como se o
pensador jesuíta estivesse perguntando acerca de quem é esse guardião ou
pastor do éthos, para parodiar, aqui, a emblemática expressão heideggeriana.
Nosso filósofo entende que a razão não pode deixar de descer às raízes de
onde emergem as questões postas por Platão e Aristóteles (1982), na atitude
do thaumázein, onde se entrelaçam as razões primeiras de ser e de agir.
Como aponta Herrero: "É por isso que a tarefa iniciada na Antropologia
filosófica de tematizar o ser do homem tinha que continuar numa ontologia do
agir humano" (2012, p. 394).
Por outra parte, esse programa ainda não está completo precisamente
porque a categoria de corpo, por si só, exige ser transcendida para outros
níveis ou domínios antropológicos, quer dizer, para além de suas fronteiras ou
limites da presença imediata do homem no mundo por meio do corpo. Eis
porque, o autor, dará vazão a outras duas categorias, a de “psiquismo” (que
trataremos mais tarde) e a de “espírito” que não será aqui abordada mais
detidamente por duas razões de fundo teórico-metodológico: a primeira é que
o tema envolve toda uma discussão de caráter místico-transcendente à luz da
filosofia cristã do autor que remonta necessariamente à tradição judaico-
cristã. A segunda é que tal enfoque faz o trabalho perder de vista um de seus
propósitos que será desenvolvido no terceiro e último capítulo aqui que visa
justamente a uma articulação nuclear entre o sentido último do éthos com a
psicanálise por meio da categoria vaziana de psiquismo como um dos
estratos fundamentais dessa Antropologia.
Dito isso, o que esse breve recorte da obra antropológica vaziana nos
permite vislumbrar é certa retomada do horizonte da ética na modernidade e,
com isso, fechando depois, aqui, o capítulo, fazer um balanço, um diagnóstico
mais preciso da crise ética que atravessamos, nos tempos modernos.
61
2.2. Ética e razão moderna
Lima Vaz, nesse texto, entende por "razão moderna" não só a filosofia
moderna clássica, mas a racionalidade em geral que recobre o século XX.
Para tanto, ele faz um balanço da situação da Ética na cultura
contemporânea. A primeira parte do texto acompanha a evolução da
chamada razão moderna desde o século XVII, confrontando-a com a razão
clássica. A segunda parte mostra a formação das racionalidades éticas
modernas na sua correspondência com as racionalidades científico-
filosóficas. Por fim, o autor enumera vários problemas da Ética
contemporânea vindo a sugerir alguma solução via um retomo aos princípios
da ética clássica.
Lima Vaz avalia que, para além dos destroços causados entre a Primeira
Grande Guerra (1914-1918) e a Segunda (1939-1945), assistimos na década
de 80 e no começo dos anos 90 o surgimento de um novo perfil de crise bem
diverso daquela que abalou as primeiras décadas do século. Essa crise, bem
entendido, não concerne à base material das sociedades ditas avançadas,
uma vez que essa base parece solidamente assentada. Noutros termos:
62
Não é, pois, no terreno da produção dos bens materiais e da
satisfação das necessidades vitais que a crise profunda se
delineia. É no terreno das razões de viver e dos fins capazes
de dar sentido à aventura humana sobre a terra. Em suma, a
crise da civilização num futuro que já se anuncia no nosso
presente, não será uma crise do ter, mas uma crise do ser.
Será um conflito dramático não apenas nas consciências
individuais, mas igualmente na consciência social entre
sentido e não-sentido. É na perspectiva desse tipo de crise
que podemos situar a extraordinária atualidade que os temas
éticos alcançaram na linguagem e nas preocupações das
sociedades ocidentais nos últimos anos (LIMA VAZ, 1995, p.
55).
Isso se explica, segundo Lima Vaz, pelo fato de que nos anos que se
seguiram à Segunda Guerra, a reconstrução da Europa, a reorganização do
mapa mundial na esteira da "descolonização" e o extraordinário ritmo de
crescimento econômico dos "trinta anos gloriosos" deram origem à ideia e à
linguagem do desenvolvimento. Passada essa mudança em relação ao
período entreguerras, surge outra reconfiguração na sociedade geral moderna
anunciando uma nova idade, a “idade da ética”. Escreve o autor:
63
O imediato pós-guerra teve como tarefa precípua a
reconstrução da base material das nações diretamente
envolvidas no conflito. Essa tarefa estava praticamente
terminada por volta de 1950, quando teve início o
extraordinário surto de expansão econômica que fez do
conceito e do termo de desenvolvimento o emblema de uma
época. No entanto, o ritmo acelerado da produção dos bens,
sua acumulação e os problemas da sua distribuição, bem
como a enorme multiplicação e entrelaçamento dos fios da
"economia-mundo", para falar como F. Braudel, deram origem
a uma perigosa assimetria entre a esfera material e a esfera
simbólica da vida. Nesse momento, a lógica que rege o
equilíbrio do todo social deslocou para a esfera simbólica, ou
seja, para a cultura, o campo principal dos grandes problemas
que desafiam a sociedade. Desta sorte, as sociedades
ocidentais conheceram, ao longo da década de 70, um
enorme crescimento de interesse em torno dos lemas
culturais, como a originalidade das culturas, o pluralismo
cultural, a inculturação e outros. Ora, Cultura e Ética
mutuamente se implicam, sendo os dois conceitos
logicamente coextensivos. Com efeito, o conceito de cultura
abre o horizonte das necessidades vitais do homem ao
mundo das formas simbólicas e do sentido. Em face desse
mundo, manifesta-se a necessidade mais profundamente e
mais autenticamente humana, qual seja de confrontar-se com
a realidade não apenas como objeto a ser utilizado e
consumido, ou como dado a ser conhecido, interpretado e
transformado, mas ainda como fonte de normas que devem
orientar o seu agir segundo o finalismo do bem e do melhor.
No momento em que as sociedades ocidentais atingiram um
alto nível de satisfação das necessidades materiais e um
domínio até então desconhecido pela humanidade, da
racionalidade científico-técnica a serviço dessa satisfação, o
problema do sentido passa a ser o desafio maior dessas
sociedades e a reflexão sobre a cultura e, consequentemente,
sobre a ética, impõe-se como a sua mais importante tarefa
intelectual. As duas últimas décadas do nosso século
assistem ao espraiar-se dessa espécie de onda ético-cultural
que, após o esto da onda do desenvolvimento, cobre as
antigas nações cristãs do Ocidente (LIMA VAZ, 1995, p. 56).
64
análoga à que se verifica em nosso tempo. Ela acompanhou a
transformação da sociedade arcaica nas cidades industriosas
e democráticas da Jônia e da Ática, tendo Atenas à sua
frente. No fio dessa evolução apresenta-se, em primeiro lugar,
o problema do trabalho e da riqueza, depois o problema da
cultura e, finalmente, o problema do "bem agir" e do "bem
viver" ou da Ética. Os primeiros filósofos e legisladores, os
Sofistas e Sócrates assinalam esses três momentos que
antecipam, de maneira exemplar, outros ciclos que se
repetirão na história da civilização ocidental. Essa evocação
das origens da Ética contêm uma lição importante para nós,
pois mostra-nos que a legitimação social da Razão
demonstrativa e o lugar privilegiado que passa a ocupar na
esfera simbólica da sociedade, ao mesmo tempo em que
provocam a perda da força de coesão do éthos tradicional,
despertam a necessidade imperativa de explicitar, organizar e
justificar criticamente a racionalidade implícita desse éthos,
tarefa que cabe exatamente à Ética. Ela se constitui como
ciência dos costumes transmitidos na sociedade, dos estilos
permanentes do agir dos indivíduos (hábitos), bem como da
comprovação crítica dos novos valores que a evolução da
sociedade faz surgir (LIMA VAZ, 1995, p. 56-57).
Lima Vaz vê, sem dúvida, nesse processo, um movimento dialético sui
generis que, de tempos em tempos, segue, ao menos, uma lógica realmente
similar do ponto de vista histórico, ou seja, ele não hesita em dizer que todo
esse movimento "obedece à lei dialética da suprassunção dos seus
momentos" (LIMA VAZ, 1995, p. 57).
Em tal retrospectiva:
67
legislador moral, em contraste com a Ética clássica,
essencialmente ontonômica, pois nela o ser objetivo,
mediatizado pela "reta razão" (orthòs logos), é a fonte da
moralidade. Ora, a autonomia moral principial do sujeito,
qualquer que seja a forma com que é proposta, encontra-se,
por outro lado, em face do problema fundamental da
constituição da comunidade ética, ou da passagem do eu ao
nós no exercício da vida ética (LIMA VAZ, 1995, p. 70).
69
Que a história, desde o momento em que caminha para
tornar-se efetivamente universal, seja atravessada pelo apelo
irresistível à constituição desse éthos, atestam-no as grandes
revoluções intelectuais e político-sociais que marcam o
avançar dos tempos modernos. Todas elas, a começar pela
revolução cartesiana da Razão, inscrevem nas suas
bandeiras o programa de um Ética do viver histórico no qual
estejam finalmente reconciliados o indivíduo e o universal.
Ora, a Ética não é senão a codificação racional de um éthos
que se supõe vivido pela comunidade histórica ou que esta se
propõe viver. Assim, a primeira tarefa das revoluções
modernas e que é provavelmente o traço mais marcante da
sua originalidade, consiste em desenraizar o indivíduo da
particularidade dos seus ethoi históricos tradicionais e em
plasmá-lo segundo a forma daquele que se propõe como
indivíduo universal: o filósofo da Ilustração, o citoyen
revolucionário, o burguês progressista, o homem comunista.
(LIMA VAZ, 1990, p. 7).
Lima Vaz compreende que o sentido último do éthos vivido ou, se quiser,
de uma fenomenologia do éthos; fenomenologia essa radicada historicamente
em revoluções, mas que, mesmo assim, perde a sua substância em modelos
éticos reflexivos na modernidade:
71
conhecimento, na crítica das tradições culturais, na psicologia
religiosa (LIMA VAZ, 1995, p. 76).
Não há como falar, em Lima Vaz, sobre o sentido último do éthos sem
se reportar ao sintoma da crise. A sua obra abre um diagnóstico preciso, isto
é, reconstitutivo no intuito de demarcar as origens da crise ética de nossos
tempos. Para levar adiante tal tarefa, o filósofo busca reconstituir a gênese da
consciência moral. Ele opera uma breve resenha histórica do problema.
Senão vejamos.
13
Ver FABRI (2019).
72
O que dizer desse curioso paradoxo? A bem da verdade, ele envolve,
em nossos tempos, a linguagem comum como expressão de uma das
categorias fundamentais do pensamento ético. Tal paradoxo exprime,
flagrantemente,
14
Ver Cardoso (2008).
73
Sendo assim, de onde mesmo exatamente emana a ideia de consciência
moral? O seu sentido ideal que acabou prevalecendo na tradição ética do
Ocidente reconhece sua gênese histórica em duas fontes, fontes das quais
“procedem as grandes categorias do nosso sistema de normas e valores: a
fonte greco-romana e a fonte bíblico-cristã (LIMA VAZ, 1998, p. 464). Ora,
curiosamente, uma vez recebido na Ética ocidental, o seu conceito conhece,
em nossos dias, a sua hora de crise. Assim, se é verdade que o princípio
socrático do conhece-te a ti mesmo, cujo conteúdo ético é notório, se tornara,
portanto, o “primeiro passo no caminho da noção de consciência moral na
filosofia antiga" (LIMA VAZ, 1998, p. 464), também é verdade que essa
premissa parece estar com os seus dias contados. Ela não parece ser
fundante mais. Se desconstruiu, se esfacelou. Não resiste à força do
paradoxo acima entrevisto. Ora, talvez tenhamos que recuperar algo aí, isto é,
voltar às origens dessa primeira enunciação no sentido de captar a sua
essência. Para tanto, Lima Vaz faz um balanço entrecruzando esse registro
inicial com a noção medieval, de cariz cristã, da consciência moral. Observa
ele;
[...] um ato que reflete sobre o agir moral para testificar, julgar
e acusar ou escusar, reunindo, pois, em síntese vital, além do
momento cognitivo expresso no juízo, o momento volitivo
presente na responsabilidade diante de si mesmo livremente
assumida. Em Tomás de Aquino harmonizam-se, portanto,
equilibradamente a tendência intelectualista da tradição grega
e a tendência voluntarista da tradição cristã. Esse equilíbrio,
no entanto, desfaz-se ante o voluntarismo radical dominante
na Ética tardo-medieval e uma nova figura da noção de
consciência moral começa a delinear-se com o advento da
Ética moderna. (LIMA VAZ, 1998, p. 465-466).
Esse primeiro breve balanço sistematicamente feito aqui pelo autor visa
esclarecer um aspecto da noção de consciência moral em seu caráter
judicativo e volitivo-afetivo. Ocorre que a partir do Renascimento e, sobretudo,
do século XVII, assistimos uma reviravolta, sem precedentes, quanto ao
estatuto mesmo do conceito de consciência moral. Lima Vaz caricatura esse
novo momento de “revolução cartesiana” que se estabelece, pois, num
registro metafísico ao inverter a prioridade entre o “ser” e o “pensamento”.
Tudo se passa como se na fundamentação do conhecimento é sujeito
realmente se tornasse o ponto arquimediano do real. Mais que isso: esse
sujeito se define antropologicamente como substância pensante, e,
noeticamente como “a primazia da razão metódica sobre a razão teorética ou
contemplativa na estruturação simbólica do mundo humano” (LIMA VAZ,
1998, p. 466). O que se tem aí é um paradigma tríplice – metafísico,
antropológico e noético –, paradigma esse que permite com que se
compreenda melhor o destino da consciência moral nos tempos pós-
cartesianos que ainda são os nossos. Lima Vaz lembra que essa inovação no
75
estatuto filosófico do cogito cartesiano imprimirá uma força semântica nessa
destinação. O termo conscientia, na razão moderna, dará a tônica de todo um
debate que marcará o desenvolvimento, mais tarde, das ciências humanas.
Ora,
77
perfil da sua figura eidética: “a consciência moral é essencialmente livre”
(LIMA VAZ, 1998, p. 470). Quer dizer:
Lima Vaz também está cônscio de que a consciência moral, uma vez
renovada, está longe de ser um “porto seguro”, o santuário da evidência. Tal
consciência se revela fenomenologicamente como desafiadora à medida que
sempre se confronta com o enigma do mundo, da existência em suas
vicissitudes inalienáveis. Assim,
78
Esse desafio – sem dúvida o mais grave entre os que se
levantam na nossa existência de seres racionais e livres –
impõe à Ética filosófica como ciência prática do nosso agir
segundo o éthos ou, fundamentalmente, segundo o Bem, a
tarefa de traduzi-lo no nível conceptual do discurso filosófico.
A experiência da consciência moral mostra-a com evidência
como elemento constitutivo do nosso agir moral. Ela é a
expressão da sua estrutura reflexiva, na medida em que agir
moralmente implica sempre como momento final da sua
efetivação em ato o juízo e avaliação imanentes do teor moral
do próprio ato. Nesse sentido, a consciência moral pode ser
considerada, em primeira aproximação, como sendo a
componente reflexiva da posição final do agir na sua estrutura
subjetiva, sendo o seu termo objetivo o fim por ele
intencionado. Ela se delineia, pois, como a face reflexiva da
síntese dos elementos e dos momentos que integram o
exercício efetivo do agir ético. Exprimir conceptualmente essa
reflexividade e definir suas funções no organismo da vida
moral, eis o alvo pretendido por uma investigação sobre a
consciência moral no quadro sistemático de uma Ética
filosófica (LIMA VAZ, 1998, p. 471).
Ora, são justamente tais elementos que a consciência moral irá reunir
numa síntese original e única. Como bem volta observar o autor:
Como vemos, Lima Vaz pensa em termos causais esse caráter sintético
triplamente elementar da consciência moral. A sua posição, sob essa ótica, é
profundamente aristotélica. Há um télos muito presente como ideal a ser
alcançado nessa recomposição teórica da ética vaziana. É uma ética que se
orienta para um fim último inabdicável. Esse fim é o éthos; éthos esse só
atingível via a práxis, isto é, o exercício do agir moral, reflexivamente
constituído. Por isso, ainda explicita o filósofo:
81
formas e condições num momento sintético efetivado pelo ato moral e como
ele inscreve, reflexivamente pela consciência moral.
Por outra parte, o autor retira da consciência moral o peso de ser uma
superestrutura ou, o que seria pior, uma instância adventícia que a ele venha
agregar-se. Bem ao contrário: a reflexividade que agora descobrimos no ato
moral opera “no cerne mais íntimo da pessoa, no indevassável recesso onde
cada um é posto diante do imperativo de julgar-se a si mesmo” (LIMA VAZ,
1998, p. 474). O que Lima Vaz sustenta é a tese de que
84
Segundo uma análise que me parece fundamentalmente
correta, na raiz da situação acima descrita está o fenômeno,
já entrevisto por Bergson, de um desequilíbrio ou
descompasso entre o que chamamos a produção material da
sociedade e seu universo simbólico. Temos de um lado o
crescimento vertiginoso da tecnociência, e, na sua esteira, a
produção incessante e exponencialmente crescente de
objetos que passam a ocupar quase totalmente o mundo
humano, tornando-o cada vez mais um mundo de artefatos. A
essa invasão do artificial corresponde, nos indivíduos e na
sociedade, o aparecimento de mecanismos sempre mais
aperfeiçoados de utilização. O útil erige-se em categoria
primeira e quase exclusiva da prática social. Ora, o útil não
pode, por definição, sendo condicionado pelo objeto por ele
visado, desejado ou possuído, presidir ao universo simbólico
do ser humano onde estão presentes fins, normas e valores
irredutíveis ao critério da simples utilidade. Negá-lo seria fazer
do ser humano apenas o sujeito inquieto de desejos sem fim,
aprisionado à lógica do consumo e da satisfação e sem outra
finalidade superior na sua existência. Regido pela categoria
do útil, o universo simbólico no qual se exprimem nossas
razões de viver seria apenas a versão ideológica do universo
material dos objetos oferecidos ao consumo. É essa a face
mais visível do nosso mundo “globalizado" e é para ela que
se voltam as reflexões de filósofos, moralistas e de todas as
pessoas lúcidas que se preocupam com o futuro da
civilização. Essas reflexões são necessariamente de natureza
ética e daí a atualidade onipresente da Ética (2000c, p. 37).
15
Ver também: "Sentido e não-sentido na crise da modernidade". In: Síntese Nova
Fase, Belo Horizonte, v. 21, n. 64 (1994): 5-14.
86
Lima Vaz expressa nessa alternativa outra reconfiguração do éthos. Em
que pese as reservas dele para com a Psicanálise, sobretudo, no tocante à
constituição da consciência moral, ao nosso ver, a tradição psicanalítica, em
seus desdobramentos após os trabalhos de Freud, converge, em certo
aspecto, com algumas intuições éticas importantes a partir da obra de Lima
Vaz que pretendemos trazer, aqui, à baila, sob alguns lampejos ou registros.
87
3. ÉTHOS E PSICANÁLISE
Antes de tudo, muito embora Lima Vaz não tenha redigido um tratado
específico sobre a psicanálise, ele, ao menos, oferece algumas indicações
preciosas acerca da Psicologia em geral, bem como a sua difusão, na
passagem do século XIX ao século passado, situando a própria corrente
psicanalítica como um movimento de pensamento no interior dessa grande
área. Esse apontamento realizado pelo pensador brasileiro não se
circunscreve sem levar em conta a maneira pela qual ele retoma e aprofunda
o próprio conceito de psyché em seu trabalho de Antropologia Filosófica I,
88
obra essa que tivemos a ocasião, logo no início do capítulo anterior, de
esboçar muito ligeiramente, em particular, acerca da categoria de corpo.
Senão vejamos.
16
Esse, aliás, é um tema que consagraremos um tópico especial no próximo projeto
de pesquisa no sentido de melhor articular a circularidade de fundo entre éthos,
psyché e physis. Aqui, tão somente, nos limitamos por indicar, ao menos, a cara
questão. Para tanto, ver Platão (1975; 1979; 1988; 1999).
89
“Os termos psyché, pneûma evocam a metáfora do sopro vital, assim como
os vocábulos latinos anima, animus, spiritus”17. O filósofo observa que
17
Ver, p. ex., Erwin Rohde (2006).
90
posição mediadora entre o corporal e o espiritual. Por isso mesmo ele
entende e traz essa tese para o seu texto de que há uma dimensão de pré-
compreensão do psiquismo. Essa pré-compreensão pressupõe, pois, que no
esforço de compreender-se a si mesmo como ser psíquico, “o homem parte
necessariamente de sua situação fundamental, que é a situação do estar-no-
mundo, ou estar presente no mundo que, como Natureza, o determina ou o
submete a suas leis” (LIMA VAZ, 1991, p. 188). Assim, “a primeira
determinação mundana ou natural dessa presença é a determinação espaço-
temporal, ou seja, é o estar no aqui e agora do mundo” (1991, p. 188). Qual
seria, então, o estatuto dessa presença, para dizer em linguagem
fenomenológica, em carne e osso? Lima Vaz responde:
Essa passagem, um tanto longa, fala por si mesma. Lima Vaz não abre
mão de um Eu, do marco de uma consciência, mas não abre mão também do
caráter intencional, pré-compreensivo, fáctico, afetivo, pulsional que o
psiquismo encerra. Tudo é pensado, aqui, a partir do nível da pré-
compreensão do psíquico, ou seja, unidade fundamental assegurada pelo Eu
consciente. Nesse sentido, mostra o autor, “podemos dizer que, na
experiência da vida psíquica, manifesta-se uma reflexividade dos atos
psíquicos que os distingue radicalmente dos processos orgânicos que têm
lugar no domínio da corporalidade” (LIMA VAZ, 1991, p. 189).
Lima Vaz, como fica evidente, trata esse tema em linguagem hegeliana.
Essa é a expressão máxima da qual a sua obra jamais perde o ancoradouro.
Aliás, ele é um “fundacionista” confesso. É o que deixa claro em uma de suas
últimas Entrevistas:
93
Ligo-me a uma tradição para a qual a filosofia eleva-se, como
que por um movimento inato à sua natureza, sobre o
transitório e o événementiel e procede à busca de princípios
que são também fundamentos. Em outras palavras, só
entendo a filosofia como “fundacionista”, para usar um termo
hoje em moda (LIMA VAZ, 2000c, p. 36).
O que Lima Vaz quer pensar com isso é que a sua obra se traduz numa
busca por princípios, no sentido clássico mesmo da palavra. Ele encontra em
Hegel a possibilidade de situar a pré-compreensão do psiquismo num nível
fundamental, nível esse “estrutural original no homem que se mostra
irredutível à estrutura somática” (LIMA VAZ, 1991, p. 189). É nesse plano que,
segundo o pensador brasileiro, começa a “delinear-se a identidade do sujeito,
exprimindo-se fundamentalmente no “sentimento-de-si’ (Selbstgefühl), e que
se consumará na unidade espiritual do Eu inteligível” (1991, p. 190).
94
A Psicologia é, talvez, a ciência do homem mais próxima da
Filosofia e cujos conceitos se encontram frequentemente
ligados a uma longa tradição filosófica. Por outro lado, a
diversidade de métodos e modelos nos autoriza a falar de
“Psicologias”, dificilmente redutíveis a um quadro conceptual
e metodológico único. A própria caracterização científica dos
ramos da Psicologia conhece variações notáveis, desde a
Neuropsicologia, estreitamente ligada à Neurofisiologia, até à
Psicanálise, cujas pretensões científicas continuam a ser
discutidas (LIMA VAZ, 1991, p. 190).
95
O que o autor acima discute é que a compreensão explicativa do
psiquismo se concentra, fundamentalmente, na noção de consciência como
um dos polos em torno dos quais se organiza a vida psíquica, sendo que os
outros são o inconsciente e os estados supraconscientes. Sob esse prisma, o
problema da consciência na Psicologia científica, abordado ora sob o ponto
de vista da psicologia cognitivista, ora do ponto de vista de suas bases
neurofisiológicas, permanece uma ordem de questão aberta e não
satisfatoriamente resolvida. Assim,
98
de comunicação entre os sujeitos (relação intersubjetiva), e
que investe igualmente a tradução psíquica do mundo
exterior, conferindo uma dimensão psíquica ao acesso às
coisas pela relação objetiva (LIMA VAZ, 1991, p. 194).
99
protensão, segundo a terminologia de E. Husserl em suas
análises clássicas do problema (LIMA VAZ, 1991, p. 196).
Afinal, o que esse estudo vaziano indica, em suas linhas gerais, acerca
do estatuto da psyché ou, como ele prefere chamar, da esfera psíquica? Ele
apenas descreve que
18
Ver, p. ex., SILVA (2014).
101
esse escopo que defendemos a tese de uma articulação entre ética e
psicanálise; tese essa, aliás, muito bem entrevista, como se sabe, por Lacan,
em seus seminários.
102
[...] com a fragmentação do corpo teórico da disciplina e com
a multiplicidade de tendências representadas por diversos
autores da psicanálise contemporânea. A situação se tornou
tão preocupante, que a comissão de programa do Congresso
da Associação Psicanalítica Internacional, ocorrido, em Nice,
em 2001, sentiu necessidade de submeter à nossa reflexão
um questionamento tão geral quanto possível sobre o que é a
psicanálise. Poderíamos nos surpreender ao nos vermos
obrigados a retomar definições de base que deveriam estar
solidificadas mais de cem anos após o nascimento da
psicanálise (GREEN, 2001, p. 17).
103
Fundamentos para el Psicoanálisis, Laplanche apresenta a possibilidade de
refletir tal práxis desde quatro lugares. O primeiro deles é a posição
privilegiada da cura psicanalítica no interior da própria clínica. Nessa o
trabalho é perpassado por um marco fundador cuja essência é a “regra
fundamental” que encaminha um processo em ressonância com um processo
fundador do ser humano. Ademais, o
104
Já o terceiro lugar seria a teoria como experiência. Aqui novamente um
retorno a Freud se faz imprescindível. Assim, por exemplo, em Além do
Princípio do Prazer, encontramos uma experiência muito particular
denominada especulação. O termo especulação assume aí um caráter teórico
revestido ao mesmo tempo por uma prática numa perspectiva multidisciplinar
sempre acenando para algo de novo, isto é, de um possível vislumbrar de
algo que se desvela. A este episódio, André Green (2003) se referiu, em seu
livro La Nueva Clínica Psicoanalítica y la Teoria de Freud, como “a virada dos
anos loucos” ou “a virada de 1920”. Tal reviravolta tem como pano de fundo a
experiência da Primeira Guerra Mundial, bem como o efeito dos falecimentos
ocorridos ao redor de Freud nessa época, em especial o falecimento de sua
filha Sophie que o afetou profundamente. Além disso, o aparecimento de
certas dificuldades oriundas da própria práxis clínica e que dificultavam a
evolução do paciente, fazia Freud pensar na presença de uma certa pulsão
destrutiva. Tudo isto o levou a postular a hipótese de uma pulsão de morte, de
tal forma que ele apresenta um novo dualismo pulsional: pulsão de vida e
pulsão de morte. O que chama a atenção aí é que tais termos produzem um
forte impacto entre os psicanalistas, por conta justamente de tais
especulações, introduzindo conflitos, ao confrontá-los com novas escolhas,
com novos caminhos por ainda a ser trilhados. Isso só vem reforçar a
premissa segundo a qual toda teorização é uma experiência que compromete
o pesquisador.
A quarta posição é a história mesma como lugar e objeto da
experiência. Como observa, mais uma vez, Laplanche, “interessa a história de
um pensamento inteiramente movido pelo seu objeto ou, se vocês preferirem,
inteiramente movido pela sua pulsão” (1987, p. 24). Nessa direção, a história
da psicanálise e, particularmente, do pensamento freudiano, mostram
inequivocamente a riqueza da emergência do elemento pulsional inconsciente
como princípio de movimento da produção teórica e objeto da própria
psicanálise. Trata-se, aí, da história como um lugar de experiência conflitiva
que aflora sensivelmente no interior do colóquio editado pela Revista
105
Francesa de Psicanálise, quando põe em questão: a qual Freud, a qual
momento do seu pensamento convém trilhar?
Ora, aí ressurge a questão ética de fundo acerca do comprometimento
do analista na relação terapêutica. Laplanche se volta simplesmente para o
princípio de que a teoria e a história em uma relação dialética onde aflora o
essencial da psicanálise, a dimensão do desejo, o aflorar do inconsciente;
posição essa também examinada por Mezan (1985, p. 10):
106
essa trilha, ele faz ou refaz um percurso de volta às origens da ética, visando
mostrar toda a riqueza do movimento presente no pensamento grego. Assim,
ao caracterizar o ideal de uma fenomenologia do éthos, Lima Vaz parece abrir
um importante aporte para a psicanálise. Ele reconstitui, desde o pensar
grego, o sentido último daquilo tal qual aparece, ou seja, o fenômeno. Aquilo
que aparece figura originariamente pela via da própria razão como logos; quer
dizer, como discurso que possibilita o ver. Trata-se, ao mesmo tempo, do que
deixa e faz ver, e, portanto, uma forma genuína de estruturação fazendo
recolher o dado em sua originariedade.
Em seu livro Ética, o pensador espanhol José Luis Aranguren, considera
que o filósofo não deve contentar-se em ser tão somente amigo da razão
argumentativa, mas deve, também, ser amigo das palavras. E acrescenta:
“[...] a etimologia nos devolve a força elementar das palavras originárias,
gasta com o longo uso, às quais é imprescindível voltar para recuperar seu
sentido autêntico, a arkhé”. (ARANGUREN, 1968, p. 22). Ora, pois,
reconstituir o sentido originário das palavras é um gesto de busca, de procurar
reconstruir uma peça em seu aspecto (eidos) original o que implica,
obviamente, um trabalho arqueológico, por definição.
O que Lima Vaz já nos chamava a atenção é de que o termo éthos, em
sua acepção originariamente helênica, já nos permite ver a força e o vigor
daquilo que permanece justo na ética. Ou, como se diria em uma expressão
heideggeriana, aquilo que “perdura e demora” na ética. A fenomenologia do
éthos, em Lima Vaz, busca, enfim, dar conta desse movimento arqueológico
ao reconhecer implícito não só no vocábulo grego éthos, mas no de physis, as
duas formas primeiras de manifestação do ser.
Recordemos brevemente que éthos exprime a transcrição da physis que
ocorre através da práxis ou ação humana engendrando as estruturas
histórico-sociais. Éthos possui dois sentidos fundamentais, como salienta
Lima Vaz (2000a, p. 12-13):
Isso posto, não é difícil voltar a perceber que essa dupla função
semântica do éthos designa, ao fim e ao cabo, a formação do hábito, pois
justamente esse se constitui pela repetição, mas, ao mesmo tempo, a
completude ou realização plena do hábito só se dá pela incorporação de um
estado de coisas que passa a fazer parte da constituição do próprio agente.
Vimos, então, que essa concepção de estado ou de constituição tem a sua
origem no termo grego échein, do qual se origina hexis. O vocábulo hexis tem
por significado a posse estável de uma determinada maneira de ser que
ocorre através da escolha e da deliberação do agente, o que determina uma
característica de repetição que nada mais é do que o próprio hábito. Assim, o
hábito é um éthos-hexis, significando, originariamente, a possibilidade de o
sujeito apropriar-se de si mesmo, expressando a sua autonomia e, com isso,
o seu caráter. Sob tal prisma,
O que Lima Vaz também chama a atenção é para o fato de que esse
processo todo acena para a dimensão da tradição tendo como horizonte a
perspectiva da produção da cultura no Ocidente, a formação mesma da
civilização. Isso, sem dúvida, sugere que o éthos social ou o éthos cultural
constituem o espaço não só possível, mas, de fato e de direito, privilegiado,
para a compreensão e a expressão do ser do homem. Esse é o espaço
hermenêutico, por excelência, no qual, não apenas ontológico, mas
antropologicamente, a physis se radica como physis. Isso, ao nosso ver, é
sumamente significativo.
No fundo, a articulação éthos-cultura realça justo a natureza axiogênica
da ação humana, o que simplesmente significa que é por intermédio dessa
práxis que o homem cria o mundo como um universo de formas simbólicas, já
que a práxis é produtora de significação vindo a construir, dessa forma, a sua
morada. É o que, mais uma vez, reitera Lima Vaz (2000a, p. 38): “É, pois, a
partir da própria origem do universo das formas simbólicas que se desdobra a
dimensão do éthos: o homem habita o símbolo e é exatamente como métron,
como medida ou norma que o símbolo é éthos, é morada do homem”.
O éthos entendido como morada coloca em destaque a necessidade de
o homem ter que construir o seu espaço no mundo, tornando-o habitável e
dando-lhe uma feição humana. Para tal, tem que fazê-lo por meio da sua
ação, da sua práxis sobre a natureza (physis). Pensar a ética como ciência do
éthos requer compreendê-la a partir da tensão dialética apresentada na
fenomenologia do éthos, ou seja, na articulação do éthos como costume ao
éthos como hábito através da práxis. Em outras palavras, pela práxis
incessante de fazer a refazer a sua morada, o homem engendra os costumes,
as normas e a própria ação tendo um lugar seguro onde possa se recolher.
Através dessa ação, o homem descola da physis e cria o seu lugar
propriamente humano, o éthos como costume. Com isso, pois, na
109
peculiaridade da ação, assistimos as primeiras formas de manifestação do
homem, transcrevendo a physis em éthos.
110
Pensadas, dessa forma, as virtudes pontuam a dimensão da tradição e
da razão no interior da ciência do éthos. Para Lima Vaz, a tradição supõe,
desde o início, a possibilidade de transmissão da riqueza simbólica criada
através da práxis na constituição do éthos como transcrição da physis e que
passa de uma geração para outra.
113
Pois bem, essas rápidas incursões retomadas e aprofundadas, conforme
o espírito e a letra de Lima Vaz e ponto de inflexão heideggeriano repõe a
questão da fenomenologia do éthos no coração mesmo da Psicanálise.
Pois bem, em seu livro Palavra e Verdade: na filosofia antiga e na
psicanálise, Luiz Alfredo Garcia-Roza comenta:
115
Freud apresenta o outro discurso como possibilidade de
desvelamento do velamento, ou seja, aquilo que faz parte da
essência da manifestação do ser, cuja origem está no
movimento do existir que nos coloca em uma relação com o
outro, a ponto de que aquilo que nos é familiar transforma-se
em não familiar (Unheimlich). Quando pensamos a
experiência psicanalítica apenas do ponto de vista da clínica
da cura, ficamos esvaziados para pensar o conflito no interior
do movimento psicanalítico como a emergência do outro
discurso (PERIN, 2022, p. 107).
116
processo, Freud ainda percebeu uma transformação denominada de cura
catártica. Ao mesmo tempo, porém, as associações ocorriam em um estado
de consciência alterado devido à hipnose. O passo além ocorreu quando, ao
fazer indagações investigativas ao paciente, Freud foi solicitado a se calar
para o paciente poder falar de si. O paciente passou a falar de si, a associar,
não mais no estado de hipnose. Ao falar de si, o paciente produziu um saber
sobre a sua própria doença. É o engendramento da técnica psicanalítica: a
associação livre. Para tal, é fundamental a escuta, mas não uma escuta
qualquer, é a escuta analítica, a escuta da atenção flutuante.
Nesse sentido, podemos dizer que foi a histérica quem ensinou Freud.
Ou dizendo de outro modo: ao inclinar-se sobre a histérica, deu-se um
encontro que produziu um novo pensar em Freud. Ao mesmo tempo, a
paciente mudou de posição, pois, ao estabelecer uma relação simbólica,
mediada pela linguagem, ela passou da condição de paciente para se tornar
sujeito. O novo paradigma estabelecido propiciou a Freud verificar que o
sintoma era o substituto de algum pensamento ou impulso suprimido no
momento de uma experiência traumática. Assim, pois, os sintomas tinham um
sentido e relacionavam-se articuladamente a um complexo de pensamentos e
à experiência traumática. Freud percebeu, também, que não era qualquer
ideia, qualquer pensamento que, uma vez suprimido, poderia se manifestar
sintomaticamente. Ele descobriu que, invariavelmente, eram pensamentos
associados à sexualidade.
Temos, portanto, aí, na experiência da histérica com a sua sexualidade,
algo que lhe produziu um pensamento insuportável devido à situação
traumática, e que precisou ser suprimido, recalcado. Esse recalcado, no
entanto, retornou sob a forma de sintoma somático, indicando um sentido que
se desvela na relação simbólica com a linguagem. Esse novo saber aponta
para algo que falta, para algo de não sabido. A isso, Freud conferiu o estatuto
de inconsciente.
117
em sua fenomenologia fundante que éthos nada mais é do que um
ordenamento próprio, construído e transcrito simbolicamente a partir do
ordenamento da physis pela mediação da práxis. Assim, pensando o sintoma
somático, no caso da histeria, pode-se entende-lo como um ordenamento
próprio da physis devido à “escolha” de manifestação corporal. O sintoma,
entretanto, não fica apenas como um modo de ordenamento da natureza,
uma vez que ele acena para um sentido quando se abre à possibilidade de
associá-lo através da linguagem. Com isso, pelo novo paradigma
desenvolvido pela psicanálise evidencia-se a possibilidade de uma
simbolização que transcende a physis criando um novo ordenamento prenhe
de sentido pela práxis inovadora da linguagem cuja transcrição é a morada
simbólica do homem.
119
Como vemos, aqui tem-se uma segunda articulação da psicanálise com
a ciência do éthos. A vertente do éthos, na forma de éthos-hexis, enfoca a
característica do comportamento constantemente repetido, qual seja, o hábito.
O significante, enquanto manifestação sintomática, constantemente repetido,
é involuntário e aponta para algo que habita o homem. Reside exatamente aí
a ponte estabelecida por Lacan entre a psicanálise e a filosofia ao atribuir um
estatuto apodítico ao inconsciente, pela via do significante.
120
Contudo é espantoso que tanto pelos meios que empregamos
quanto pelos móveis teóricos que colocamos em primeiro
plano, a ética da análise – pois existe uma – comporte o
apagamento, o obscurecimento, o recuo, até mesmo a
ausência de uma dimensão, cujo termo basta ser dito para se
perceber o que nos separa de toda a dimensão ética anterior
a nós – é o hábito, o bom e o mau hábito.
122
partir de Husserl, ou seja, uma intencionalidade que se radica e se propaga
corporalmente, intersubjetivamente. Tudo isso elevando, por meio desse
movimento intencional, sobre o determinismo das coisas para penetrar no
espaço próprio da liberdade. Essa característica da ação humana põe, em
destaque, a dimensão simbólica como já vimos em Lima Vaz.
Ora, se ele não é dono, isso coloca outra questão de fundo que
perspectiva um aspecto acerca do éthos nem sempre devidamente entrevisto
nos estudos psicanalíticos: a dimensão do éthos infantil. Trata-se, agora, de
ao menos indicar, quem, afinal, é esse sujeito psíquico tomado desde as suas
origens e que faz morada.
Portanto, vamos retornar aos aspectos tratados a partir das pp. 55-61, o
tema da Ética e Antropologia, para fazer uma breve reflexão sobre a questão
do corpo e da dimensão do éthos infantil, enquanto engendrador do desejo.
Ali Lima Vaz nos faz ver que o problema primordial é de que o homem está
presente ao mundo por seu corpo. Porém, não se trata do corpo biológico,
mas do corpo próprio enquanto uma totalidade intencional que constitui e
expressa o ser do homem. Para tal, o autor nos remete à tradição
fenomenológica, iniciada por Schopenhauer, ao propor a distinção entre corpo
como coisa física, equivalente à rex extensa de Descartes (Körper) e corpo
19
Já tivemos a ocasião de assinalar, por alto, o sentido desse movimento intencional
do corpo compreendido a título de intencionalidade operante. Essa é, aliás, uma
sugestão preciosa do último Husserl que Merleau-Ponty retoma e aprofunda ao seu
modo. Mas, essa ideia é algo que também Merleau-Ponty parece destacar em
Freud a propósito desse último, na evolução de sua obra clínica, provocar uma
reviravolta em torno da noção de corpo. Senão vejamos: Merleau-Ponty então dirá
que a psicanálise, por exemplo, realiza a passagem de uma concepção do corpo
que era inicialmente a de Freud, aquela dos médicos do século XIX, pela noção
moderna do corpo vivido (1960, p. 127). O fenomenólogo francês está justamente
chamando a atenção acerca de um movimento de transcendência do corpo
radicado na ideia, do Husserl tardio, de intencionalidade radicada,
ontofenomenologicamente, na experiência do corpo próprio. Quando Merleau-Ponty
pensa esse regime de transcendência, ele quer imprimir um sentido ainda mais
radical num movimento que vai do corpo em direção à carne, ou seja, aquela ideia
de que estamos “misturados numa confusão inextrincável”. Essa ideia de mistura
ou promiscuidade, como ele prefere chamar em seus últimos escritos, é a
expressão da carne mesma. A carne é aquilo que se aproxima do que os gregos
antigos caracterizavam como “elemento”, a coesão de tudo com tudo, a ideia
também pré-socrática de nossa indivisibilidade com o mundo; a textura geral e,
portanto, carnal com a physis.
125
vivido enquanto expressão da vontade através de movimentos pulsionais. O
que, inclusive, levara Heidegger a dizer, nos seminários de Zolikon, que
nossa relação com o corpo é existencial. Meu corpo é minha existência.
126
Porém, há também, aí, nesse engendramento do desejo, a importância
do acolhimento e do reconhecimento desse éthos infantil enquanto
constituição de uma morada, quer dizer, de uma familiaridade, de uma
perspectiva concreta, portanto, ôntica em direção à perspectiva propriamente
ontológica, o mundo do ser.
127
Um conjunto mínimo de questões que gravitam em torno do éthos infantil
como o seu centro de gravidade, e que, de certo modo, tem me levado a
algumas inquietações de fundo pode se estabelecer sobre tais preocupações.
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como Lebenswelt (mundo vivido). Nesse novo ambiente, julgo que a
Psicanálise também necessita se reformular e ser mais propositiva.
129
CONCLUSÃO
131
Lima Vaz ressoam e que são particularmente decisivas ao interesse do autor
aqui em estudo. Para tanto, o capítulo final parte de um escopo temático
recortado diretamente da antropologia vaziana: a esfera do psíquico. Trata-se,
segundo o filósofo, de perspectivar melhor, no horizonte do humano,
eticamente vivido, como se estabelece o estatuto da experiência psicológica.
Esse movimento reflexivo é empreendido pelo pensador jesuíta ao mostrar a
importância da Psicologia contemporânea e suas escolas, nas quais, a
Psicanálise, emblematicamente, não poderia deixar de exercer um papel
relevante. Na sequência, num movimento que vai de Lima Vaz a Freud, o
trabalho se deteve em melhor preparar, por meio dessa articulação de fundo,
um lugar mais favorável de interlocução da mensagem psicanalítica. A
intenção consistiu pensar, em rigor, o sentido último da aliança entre ética e
psicanálise; questão essa discutida recorrentemente por Lacan, entre outros
psicanalistas. O capítulo se encerra, então, numa intuição ética que tem se
tornado especialmente cara, nesses últimos tempos, via o meu trabalho
clínico: um retorno àquilo que tenho entrevisto sobre o termo “éthos infantil”.
Trata-se, ali, de demarcar, a partir das origens do sujeito psíquico, a
gratuidade de um éthos não só como morada, mas como cuidado, desde a
mais tenra infância. Essa última é a raiz do novo problema com o qual, desde
já, me vejo em termos hermenêuticos. Para tanto, nesse movimento final do
trabalho, procurei reestabelecer o estatuto desse éthos, tomando, é claro, a
intuição vaziana de uma fenomenologia na constituição desse éthos.
São essas entre outras questões que nos devolve a um ponto crucial
radicado no ideal vaziano de uma fenomenologia do éthos; éthos esse que
nos remete às origens mesmas do sujeito psíquico que, aliás, só
conseguiremos retomar e aprofundar numa pesquisa próxima.
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REFERÊNCIAS
REFERÊNCIAS PRIMÁRIAS
_____. "Ética e comunidade". In: Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 18, n.
52 (1991) p. 5-11.
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(Org.). Dialética e liberdade: Festschrift em homenagem a Carlos Roberto
Cirne Lima. Petrópolis, RJ/Porto Alegre: Vozes/Editora UFRGS, 1993, p. 209-
217.
_____. "Ética e razão moderna", in: Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 22,
n. 68 (1995): 53-85.
_____. “Ética e justiça: filosofia do agir humano”. In: Síntese Nova Fase, Belo
Horizonte, v. 23, n. 75 (1996) 399-404.
_____. "Crise e verdade da consciência moral" in: Síntese Nova Fase, Belo
Horizonte, v. 25, n. 83 (1998): 461-476.
_____. Escritos de filosofia II: ética e cultura. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2000a
_____. Escritos de filosofia VI: Ontologia e história. São Paulo: Loyola, 2001.
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_____. Escritos de filosofia VII: raízes da modernidade. São Paulo: Loyola,
2002.
REFERÊNCIAS SECUNDÁRIAS
_____. Física (livros I e II). Trad. Lucas Angioni. In: Coleção Textos Didáticos
34, IFCH/UNICAMP, 1999.
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MURACHCO, H. G. "O conceito de physis em Homero, Heródoto e nos pré-
socráticos", in: Reflexões sobre a natureza. São Paulo: EDUC, Palas Athena,
1996, p. 11-22 [Hypnos, 2]
_____. “Fédon”. In: Diálogos. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa.
2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Coleção Os Pensadores).
139