Psicanálise Contemporânea e Anorexia Masculina

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Revista Brasileira de Psicanálise · Volume 41, n.

4, 53-65 · 2007 53

Psicanálise contemporânea com enfoque em caso


de anorexia masculina

Cássia A. N. B. Bruno*1

Resumo: A anorexia masculina é um ótimo exemplo de patologia contemporânea e permite ilustrar


as indagações que se colocam ao analista frente a esses pacientes. Basicamente, a reflexão privilegia
estas perguntas: de que lugar fala o analista? Qual é sua metodologia básica? Qual é sua técnica? Quais
os pré-requisitos para se colocar no lugar de analista? A proposta aqui é formalizar a postura teórica
que fundamenta a abordagem dos casos ditos de patologia narcísica.
Palavras-chave: psicanálise contemporânea; patologias narcísicas; distúrbio alimentar; anorexia; ano-
rexia masculina; metodologia psicanalítica.

A clínica contemporânea é, em grande parte, formada por casos que no passado re-
cente foram descritos como não-analisáveis – as ditas patologias narcísicas –, que formam
a base para os quadros de compulsão e de adição. Nós, analistas, nos deparamos com difi-
culdades no manejo técnico dessas novas patologias, motivo pelo qual nossa atenção tem
se voltado para os estudos realizados por analistas que pesquisaram áreas como a psicose e
o autismo.
Proponho neste trabalho formalizar a postura teórica que fundamenta a abordagem
clínica por mim realizada em casos de distúrbios alimentares, detendo-me num caso de
anorexia masculina.
Entendo que o diagnóstico psiquiátrico de anorexia ou bulimia é um primeiro ponto
de abordagem, tendo como utilidade fornecer orientação básica no sentido de realizar os
encaminhamentos que se fizerem necessários a outros profissionais, para trabalho conjunto,
como o psiquiatra, o endocrinologista. Também o conjunto de sintomas englobados no
diagnóstico psiquiátrico nos serve como referência em relação aos sintomas manifestos,
os quais apresentam seu correlato psíquico, a anorexia ou bulimia psíquica, ocorrendo na
transferência.
O olhar psicanalítico propriamente dito prescinde de diagnóstico psiquiátrico, por-
que nosso foco não é o plano manifesto.
A teoria psicanalítica é uma teoria de desenvolvimento psíquico e considera que tra-
balhamos simultaneamente com vários estratos da mente, referentes às diferentes etapas de

*
Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.
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desenvolvimento, estas armazenadas numa memória mais consciente ou menos consciente.


Sabemos que, quando estamos com um paciente de 60 anos de idade na nossa frente, de fato
temos de saber qual a idade de desenvolvimento que ele nos apresenta em plano mais pro-
fundo, além daquele aparente. E temos mesmo de saber se ele já nasceu, ou se já morreu prema-
turamente na específica camada de mente que está vivendo no momento da sessão, isto é, qual
a idade psíquica subjacente e qual é sua específica realidade e necessidade (Bion, 1988b).
A fala do analista aparentemente é uma conversa comum, dentro do tema trazido pelo
analisando, mas de fato sua escuta está dirigida para camadas mais primevas da mente, para
áreas onde ainda não houve simbolização. Perscrutar essa área, e nela mergulhar para intuí-la,
através do foco de escuridão – algo como fechar os olhos para ouvir música e poder perceber,
através dos órgãos dos sentidos, o que está sendo transmitido ao analista –, esse é o objetivo.
O que interessa ao analista é o desconhecido (Bion, 1987), aquilo que não está dis-
ponível para simbolização a nenhum dos dois na dupla analítica e que, em função das con-
dições especiais do analista, pode se tornar disponível a ele, que na medida do possível o
transmitirá ao paciente, simbolizando aquilo que lhe é interditado simbolizar.
O trabalho psicanalítico ocorre no presente, e o que interessa é o desconhecido do
presente: o passado e a prospecção do futuro estão no presente.
Numa sessão tudo se passa muito rápido, não há tempo para pensar, as coisas acon-
tecem, o que implica que o analista, para poder dispor de escuta analítica, necessita de condi-
ções confortáveis tanto físicas, quanto psíquicas. É um estado próximo ao da meditação, eu
diria, para poder seguir o curso de sua atenção flutuante, que lhe possibilita o afinamento
da intuição e o sonhar. O acesso aos seus próprios afetos, ao que está sendo despertado pelo
paciente em sua mente, em termos de associação ou sonho, esse é o foco do analista.
Tenho aprendido com meus analisandos do mercado financeiro, os quais funcionam
em ritmo acelerado com vários níveis simultâneos de atenção de boa qualidade (trabalham
com cinco monitores na frente, acompanhando as bolsas do mundo globalizado, e três ce-
lulares ao mesmo tempo), que a exigência ao analista é semelhante, em termos de exigir
grande concentração nos diferentes níveis de comunicação que ocorrem na sessão, isto é,
intelectual, emocional, intuitiva. Estar disponível para o sonhar nesse turbilhão, poder so-
nhar, e encontrar uma boa formulação em momento adequado, quer dizer, ter prontidão e
lucidez para estratégias, é o que se espera do analista.
Entretanto, o analista nunca está preparado para o que vai vir, é sempre tomado de
surpresa, dentro da disciplina de tomar o paciente a cada sessão como um novo momento,
sem memória e sem desejo (Bion, 1970/1991a). O encontro entre as duas personalidades
tem de apresentar uma qualidade tal, que seja possível a comunhão entre os participantes do
processo. Esse encontro será único na vida de cada um.
Ao tomar contato com o livro de Francis Tustin Estados autísticos em crianças
(Tustin, 1981/1984), observei ali uma possibilidade de técnica para atendimento de casos
de distúrbios alimentares que passaria por Margaret Mahler, por Anzieu. Tustin chamava a
atenção para aspectos da sensorialidade dos autistas que eram muito semelhantes ao que eu
observava na clínica da anorexia.
Observei que essas pessoas estavam de tal forma voltadas para si ou fechadas a re-
lacionamento, que seu aparato sensorial ficava muito aquém do desejável para captação do
mundo externo e, paradoxalmente, muito pouco atentas ao que se passava com seu mundo
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interno. Sua atenção estava focada geralmente em algum órgão interno – o estômago, por
exemplo – e apresentavam uma fixação em algum tema específico da realidade externa – a
mãe, a irmã, a esposa.
Embora meus pacientes anoréxicos não fossem autistas no sentido descrito
por Tustin naquele livro, percebi que poderia entendê-los como apresentando um nú-
cleo autista, conforme a autora descreve em Barreiras autistas em pacientes neuróticos
(1986/1990), e que poderiam ser abordados a partir das investigações realizadas com os
núcleos autistas.
Fiz meu primeiro trabalho na SBPSP sobre o silêncio (Bruno, 1991); é uma reflexão
sobre a aproximação sensorial com a analisanda para penetrar em sua comunicação silen-
ciosa, isto é, dando relevo a tom, ritmo e entonação da voz, calor ou frio da sala, ruído ou
música, silêncio ou fala, ritmo das falas, das sessões, luminosidade da sala etc. No segundo
trabalho (Bruno, 1993), examinei o desenvolvimento da sensorialidade à simbolização, par-
tindo da imitação dos elementos sensoriais da analista (no caso, minhas roupas e gestos),
até a imitação de elementos mais abstratos de personalidade (meu ser analista), resultando
em incorporação e introjeção de elementos internos. E, a partir daí, disponíveis para psica-
nálise tradicional.
Nessa época eu ainda não tinha tão claras as conseqüências da teoria bioniana sobre
a clínica, tal como ela se refletiu no trabalho de Tustin, mas já percebera a importância
dos distúrbios relacionados ao aspecto sensorial. Se a pulsão está ancorada no somático, os
órgãos dos sentidos são a porta de comunicação e o meio do caminho para a simbolização.
A idéia de núcleo autista veio resolver a questão de por que uma pessoa de funcionamento
desenvolvido podia ter vivências tão alteradas da sensorialidade. Trata-se de ter a persona-
lidade preservada nas suas funções, porém alterada no núcleo autista.
A psicanálise descreve o desenvolvimento afetivo-cognitivo da mente a partir de
seus primórdios. Estuda o fluxo das cargas de energia somato-psíquicas, nos seus aspectos
dinâmico, percorrendo o trajeto do corpo ao psíquico, tópico, pela definição dos espaços so-
máticos e psíquicos, e econômico, pela medida de exigência de trabalho demandada por suas
relações (Freud citado por Green, 1998/2002a). Estuda também a dinâmica dos conteúdos
das fantasias, particularmente das posições esquizo-paranóide e depressiva (Melanie Klein,
1946/1984). E estuda a evolução da mente desde o momento psíquico sem simbolização até
o pensamento mais abstrato, tema da obra de Bion, em que ele aprofunda sua original idéia
de pensamentos à procura de um aparelho para pensar.
Green tem sido importante teórico sobre essa nova posição ideológica colocada a
partir da clínica atual de casos limítrofes, particularmente nos textos “L’intrapsychique et
l’intersubjectif ” (Green, 1998/2002a) e “Ouverture pour un renouvellement de la théorie:
lignée subjectale et lignée objectale” (Green, 2002b). Green analisa as relações intrapsíqui-
cas; a hipótese central é a pulsão (Freud) e o intersubjetivo, que remete às relações de objeto
(Klein). Green ressalta que não é possível separar a pulsão do objeto a que está relacionada.
Isto é, um influi no outro; o fora modela o dentro que modela o fora. Quando se pergunta
como é que o mundo exterior ajuda o mundo interior a se construir, segundo quais parâme-
tros organizadores, e como o mundo interior modela nossa concepção de mundo exterior,
em função de quais exigências, Green atinge, a meu ver, o ponto nodal do atendimento
psicanalítico.
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Tomo para mim que esse é o ponto de partida do analista, ou seja, qual é o padrão
afetivo-cognitivo que o analisando está transferindo para a sessão? Como ele molda o clima
psicanalítico, a transferência, a dinâmica da sessão? Como o analista, por sua vez, como
objeto externo, pode moldar o objeto interno do analisando, ou seja, como pode se colocar,
com vistas a aprendizado de novos padrões que sejam mais interessantes ao analisando?
Como contribuir para a formação de organizações menos patológicas?
Considerando essas colocações, a primeira pergunta é: de que lugar fala o analista?
Com a idéia de realização, e mais tarde, de transformação, Bion (1983) abre novas
possibilidades de aproximação a essa pergunta. Ao se referir à expectativa inata de um seio
acoplando-se à percepção da realização, quando o bebê é posto em contato com o seio real,
ele nos ajuda a explicitar o enfoque psicanalítico: o que se passa entre analista e analisando
é que o analista se coloca como objeto real e parcial por não fazer parte da vida interior do pa-
ciente, e também se coloca como uma mente capaz de rêverie (Bion, 1966), possibilitando
realização de expectativas frustradas ou não desenvolvidas, o que, conseqüentemente, gera
desenvolvimento.
O analista não visa corrigir. Seu objetivo é possibilitar experiências emocionais num
campo transferencial de rêverie, de modo a facilitar simbolização em área onde não ocorreu o
encontro da expectativa com a realização. Em algumas áreas isso será possível; em outras, nunca.
Em relação ao universo do analista, Sapienza (1997) traz importante colaboração
quando descreve:

[…] quatro grupos de fatores de personalidade do analista vinculados ao equipamento metodoló-


gico, que dão suporte básico, na prática clínica, ao vir a tornar possível a discriminação, interação
e correlação entre realidade interna e externa, tendo em vista a aprendizagem emocional, junto ao
analisando:
1. A cada sessão, o analista deve experienciar dor mental, sendo capaz, ao mesmo tempo, de man-
ter fluidez de pensamento inconsciente de vigília.
2. A elaboração de sonho-alfa (dream-work-alfa) será realizada pelo analista, operando mudanças
psíquicas, no campo de interação bipessoal, capazes de gerar aprendizagem emocional, ligada inti-
mamente à experiência da sessão em andamento;
3. O analista necessita saber preservar, cultivar e desenvolver equipamento de “pensamentos-sonhos”;
4. O analista deverá “sonhar” a sessão analítica: sua capacidade intuitiva bem treinada será seu
sustentáculo.

Sapienza condensa em quatro itens um trabalho altamente complexo, a ser realizado


em primeiro lugar pelo analista para si mesmo, ou seja, afinar seu instrumento de trabalho.
Observa-se nessa colocação a intensa participação do analista com cada paciente, partindo
sempre da preservação da sua própria mente, da sua individualidade, do seu lugar. O seu
compromisso é com a verdade, tanto a sua como a do analisando.
Não há por que o analista assumir papéis transferenciais que não sejam seu lugar de
realidade, não há por que sonhar junto, mas penetrar no sonho do analisando, processá-lo
e devolvê-lo ao analisando. É muito interessante a colocação de Bion (1988a) referindo-se a
um caso de transferência erótica, em que ressalta o fato de que não cabe ao analista repre-
sentar papéis nele projetados pelo analisando, nem fazer jogos de palavras. A relação real
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é fundamental. A relação verdadeira tem de estar muito clara para o analisando, isto é, o
analista não é seu namorado, nem sua mãe; é um analista contratado para fazer psicanálise
e não para estar no papel de sua mãe.
Se as relações com o outro moldam o mundo interno e se o mundo interno por
sua vez molda o externo, essa interação será a ferramenta técnica do analista, quer dizer,
será utilizada a mesma ferramenta que serviu para forjar a matriz na relação mãe-bebê.
O objetivo do analista é o acesso à alteridade do outro como outro, à diferenciação do eu-
outro a partir da indiferenciação inicial. A questão é o analista se colocar tão próximo que
o analisando possa se identificar com ele e se sentir em área de segurança. Nesse caso, a
consciência da separação de ser outro não mais ameaça o lugar do ego; ao contrário, posso
pensar o outro porque sou eu mesmo.
Tanto o silêncio como a palavra constituem a linguagem que transforma aquilo que
está sendo enunciado por um outro. “Falar é engendrar sentido, e o intrapsíquico e o inter-
subjetivo são dimensões imbricadas, que a análise decompõe, para compreender o que é a
relação com o próprio corpo e o que é a relação com o outro” (Green, 1998/2002a).
Em outras palavras: a pulsão é o elemento básico constituinte da mente, particular-
mente a relação prazer-dor, na referência freudiana. O equilíbrio entre essas duas forças,
necessário ao desenvolvimento, é sutil. O desequilíbrio para qualquer um dos lados vai de-
terminar as características de cada personalidade. Excesso de dor ou excesso de prazer têm
conseqüências. Para crescimento se faz necessária uma dose de sofrimento suficiente, e não
tanto mais que chegue a ser obstrutiva, o mesmo valendo para prazer.
Nesse equilíbrio contam fatores constitucionais, genéticos, culturais. Não há equilí-
brio perfeito, não há ser humano perfeito, nem física nem psiquicamente. O desequilíbrio
entre as forças é que vai dar as características individuais de cada pessoa.
As relações de crescimento se assentam na flutuação entre as características psíqui-
cas de cada pessoa envolvida na dupla: bebê-mãe, bebê-pai, analisando-analista, mais tarde
desenvolvidas por Klein em termos de relação de objeto.
A dor primordial do ser humano é a separação, a individuação, o corte do nasci-
mento, bem descrito no Banquete de Platão (1989):

Ora, uma vez dividido em dois o ser primitivo, cada uma das partes, ansiando pela outra metade,
foi à sua procura. E, abraçando-se e enlaçando-se uma à outra, no ardor de se fundirem numa
só, morriam de fome, por inércia, pois nada queriam fazer, uma sem a outra.

Na psicanálise falamos em cesura do nascimento. O prazer primordial é o encontro


pleno, o reencontro primevo, possível por frações de tempo. Quando a dupla consegue se
relacionar de modo suficientemente equilibrado, propicia desenvolvimento. Caso contrário,
há seqüelas de desenvolvimento afetivo, que podem ser mais graves, e podem ser tratadas
pela psicanálise.
A teoria psicanalítica estuda o inconsciente, o desconhecido, o não-nomeável, as áre-
as da mente que envolvem afetos não-cognoscíveis pelo sujeito. Essa área primeva da mente
se dá a conhecer através de realizações mentais como fragmentos de sensações, fragmentos
de imagens, em pictogramas que se aglomeram em forma de sonho e mesmo de uma narra-
tiva pictográfica, um filme-sonho (Bion, 1991).
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Casos limítrofes

Nos casos limítrofes, observa-se aquilo que Green (1998/2002a) tão inspiradamente
denominou cristalização da alienação do sujeito. Isso significa que não ocorre apenas uma
organização conflitual interna como nas neuroses, mas uma verdadeira alienação narcísica a
um objeto interno, onde não é mais o sujeito que fala, é o objeto que fala pela voz do sujeito.
Penso que podemos compreender dessa forma a anorexia.
No ambiente psicótico ou anoréxico, a pulsão se organiza de modo a sobreviver no
ambiente. Não estamos falando de um objeto persecutório na fantasia, resultado de uma
cisão necessária a crescimento, e sim de um objeto que forma a base do universo interior
do sujeito, impregnado de uma força destrutiva, necessário não a crescimento, mas, antes
disso, a sobrevivência em ambiente hostil. Esse objeto, para se constituir, vai alterar qualita-
tivamente o mundo interno, já que é atacada a captação sensorial do mundo interno (nada
vejo, não ouço), e conseqüentemente o mundo externo, uma vez alterado na sua apreensão
ou mesmo não percebido, não será mais motivo de sofrimento. A destruição dos órgãos
dos sentidos serve para desenvolver estruturas que possibilitam uma organização interna
de sobrevivência, ainda que sob influência das angústias arcaicas. É a organização mental
possível nos casos limítrofes, algo como um misto de psicose e autismo.
A pulsão está ancorada no somático e tende a um processo de ativação, o desejo.
Longe do desejo, a pulsão funciona narcisicamente, volta-se para o interior e se torna cativa
do corpo. Ela é forçada não a abandonar a sua força somática, mas a partir para a pesquisa do
que pode apaziguar a forte tensão, uma vez que a maternagem não está sendo suficiente para
conter a pulsão. Para que o sistema funcione, se faz necessária uma comunhão de objetivos:
o desejo de satisfação da criança fazendo eco ao desejo da mãe que a criança quer satisfazer.
Sabemos também que uma alucinação positiva tem por trás uma alucinação negativa, ou
seja, por detrás de uma situação de distúrbio alimentar, temos a negação da realidade. É
quando o tubo digestivo ou as camadas de gordura são tomados como fetiche. Essa alucina-
ção é organizadora. É sobrevivência.
Estamos falando de relações corporais elementares ligadas à vida de relação.
Se a mãe é depressiva, ou psiquicamente bulímica/anoréxica, resulta que o bebê
terá de suprir as necessidades psicológicas de sua mãe. Se o desejo é o desejo do outro,
a pessoa recorrerá à alucinação negativa, evitando entrar em contato com áreas de sua
própria personalidade possíveis de crescimento e ficando a pulsão narcisicamente cativa
do corpo para sobreviver. A criança passa a se compreender como parte coadjuvante da-
quele universo psicótico. Para não perder a mãe na doença, precisa supri-la na sua carên-
cia básica. Existir como complementação da doença do outro é perverso, no sentido de
restringir-se à condição de fetiche; entretanto, ainda é melhor anular-se para ter mãe do que
não tê-la.
Conseqüentemente, nos distúrbios alimentares, o tubo digestivo fica sendo a úni-
ca área de sobrevivência psíquica, porque única área de preservação do ego. É uma con-
dição excepcional porque o objeto interno é concreto, parcial, objeto com características
de exterioridade, de apêndice, de prótese, e não de densidade psíquica, de interioridade, de
abstração. A capacidade de abstração está muito prejudicada e prevalece o sensorial mais
primevo, mais o corporal do que o mental. O aparelho digestivo fica sendo o ponto nodal,
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a espinha dorsal da pessoa, porque o restante é sua mãe anoréxica ou sua mãe bulímica, a
depressiva ou a hipomaníaca.
O aparelho digestivo, no caso, é tratado como objeto externo e concreto, onde ocor-
rem rivalidade, controle, domínio, como uma relação entre irmãos. A pessoa controla o
que coloca para dentro de si, isto é, uma concreta folha de alface, por exemplo, e o que
coloca para fora de si dizendo algo do tipo: “Primeiro vomitei o alface, depois o doce, nessa
ordem”. Mesmo sabendo que não é possível essa discriminação, a vivência é essa, de total
controle. É com seu aparelho digestivo que ela vive sua vida de relação. Essa relação entre
corpo e mente é altamente complexa, porque a pessoa vive toda a dinâmica da relação com
o outro, isto é, de mundo externo e abstrato, com os elementos corporais e concretos trata-
dos como objeto externo.
A forma com que o interior vai moldar o exterior – no caso, mãe que invade inte-
rioridade – vai depender de cada personalidade. Um filho pode se submeter à situação e
outro não. Quando há esse encontro perverso, geralmente ocorre um misto de somatização,
psicose e psicopatia, em diferentes proporções. Por parte do filho, também há uma mani-
pulação sádica e psicopática do meio, que acaba sendo muito agredido. A pessoa usa seu
vocabulário afetivo psicopático para manipular mãe e família – afinal, é uma inter-relação.
O fato de o analista não ser nem anoréxico nem bulímico é a vantagem. Não fazer
parte da estrutura psicótica e preservar-se como estrangeiro àquela condição, dá ao anali-
sando a segurança necessária à criação de ambiente propício a desenvolvimento.

Caso clínico

Vou descrever um caso que já foi abordado em trabalho recente (Bruno, 2007), en-
focado de outro ponto de vista. Aprendi muito com esse senhor, venho aprendendo, e sinto
que ainda tenho muito o que pensar sobre nosso trabalho analítico, particularmente o que
está marcado pelos haicais que ele escreve e que passou a trazer para as sessões no terceiro
ano de análise. Ele continua em análise, atualmente está com 71 anos de idade, não apresenta
mais o comportamento de distúrbio alimentar, mas ainda come muito pouco, continua ma-
gro e elegante, escreve muito, pensa em publicar seu livro.
Só fui saber que esse senhor era anoréxico depois de um ano de atendimento (ele
estava com 66), quando espontaneamente revelou que comia e vomitava duas vezes ao dia
havia trinta anos. Naturalmente essa informação não fez muita diferença, uma vez que já
conhecíamos sua bulimia e anorexia psíquica desde a primeira entrevista.
Bem-nascido, fala de modo amargo a seu respeito: que já fez análise outras vezes mas
não acredita nessa técnica, sabe muito sobre si próprio e de nada adianta. Por insistência
de seu médico gastroenterologista, veio procurar uma analista mais uma vez. A educada
apresentação já demonstrava de que lugar ele iria falar comigo, o lugar da desconfiança e do
persecutório, e dali para a frente eu iria sentir internamente a pressão da avaliação.
De fato, ele está dizendo para mim que estou sendo avaliada desfavoravelmente já
de saída. Perscruta-me e escaneia-me com rigor enquanto fala durante a entrevista. Seu
tema serve para observar-me. Fala de sua história de vida: pai ausente, mãe carente, pos-
sessiva. Foi educado com muita rigidez pela mãe autoritária, não podia jogar futebol com
os amigos, mais tarde não podia sair para namorar, tinha de ficar sempre junto a ela, à sua
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disposição. À medida que vai se empolgando, vai ficando mais emocionado, até o ponto de
estar visivelmente alterado, falando com muito ódio de sua mãe, de sua esposa e de seus
filhos, sentindo-se espoliado por todos.
Percebo que ele está me intimidando com seu tom de voz e seus palavrões, ao recla-
mar da família. De fato, está me agredindo com sua alteração. Destitui-me de meu lugar de
analista e é como se eu fosse um de seus familiares. Fica vermelho de ódio e fala aos berros.
Sinto a violência dessa pessoa. Fico constrangida. Tento voltar à situação anterior, mais inte-
lectualizada e menos emocional, e ficar numa situação mais confortável para pensar. Faço-
lhe perguntas sobre ele como pessoa, como ser próprio: onde estudou, como é seu trabalho,
do que gosta, colocando-me no lugar de analista novamente e saindo daquele lugar em que
ele quer me pôr ao me tratar como se eu fosse sua mulher. Ele percebe e se modera. Com
dificuldade, porque continua a dizer que não faz nada, que é fracassado, que não pediu para
nascer, que odeia pessoas, que só não se mata porque é covarde; apenas agora já não está
tão emocionado e gritando. Ao mesmo tempo, observa o efeito de suas palavras em mim, vê
que estou contornando minha surpresa e meu susto diante dele. É a nossa verdade.
Nesses minutos rapidamente muita coisa se passou tanto nele quanto na analista.
A pulsão estava sendo descarregada, o quantum de energia não elaborada e não su-
blimada (pensando em Freud). A justificar essa descarga, sua relação perversa com o outro.
Exibia-se para mim como o estereótipo do agressivo masculino. Entendi que havia dificul-
dade em lidar com seu lado masculino, e que, sendo um homem sensível e afetivo, possivel-
mente não havia desenvolvido equipamento para lidar com a agressividade do mundo, do
cotidiano, da mãe, então atacava defensivamente. Apresentava-se de forma exibicionista e
defendia-se persecutoriamente. Media forças comigo. A questão do objeto interno moldando
a relação externa.
Mais distanciada, senti que a forma de não entrar nesse jogo que alimentava o seu
padrão repetitivo, e dentro do qual ele já havia me instalado, seria, de minha parte, não
disputar poder, mas retomar meu lugar de analista; em conseqüência, o dele seria o do
analisando. E mais: eu sendo analista mulher e com uma específica personalidade, diferente
do estilo de seu padrão. O fato de eu poder ser o feminino com tranqüilidade seria impor-
tante nesse momento, para nos falarmos como homem e mulher civilizados, pessoas que
estão trabalhando. Entendi que, por não saber usar as características sadias de agressividade
masculina como forma de lidar com o meio externo, utilizava três recursos: ou se rendia ao
outro de modo submisso, estereótipo do feminino; ou atacava de forma exagerada com o
estereótipo do masculino; ou se afastava. Entendi que sua questão nesse momento era como
usar agressividade adequadamente, de modo a poder conviver com pessoas mais ou menos
normais. No caso, para iniciarmos uma relação baseada na verdade, isso seria fundamental.
Considerava-se vítima do destino, que colocara tal mãe e tal esposa na sua vida, e
não conseguia perceber sua contribuição para que a vida tivesse tomado esse rumo. Assim,
a forma como me seduzia para que eu me comportasse de maneira a lutar com ele não lhe
era acessível. Não havia ego suficiente para se deparar satisfatoriamente com essa verdade.
Estávamos em área de posição esquizo-paranóide (Klein, 1946/1984), com muitos elemen-
tos parciais persecutórios e idealização de vida distante da frustração do real.
Esse é um contato bulímico, no sentido de comer vorazmente o outro, estimulando
todo tipo de emoções, observando todas as suas reações, vomitando qualquer presença do
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analista diferente do seu padrão. Poderíamos dizer, figurativamente, comer com os olhos e
vomitar a presença indigesta do outro, quase obrigá-lo a ser do seu padrão.
O desafio do analista é, após ser bombardeado de afetos, recuperar-se e, a partir de
seu referencial teórico, e do extremo respeito ao padrão do analisando, começar a formular
para si e para ele, cuidando de manter os respectivos lugares, uma simbolização do afeto para
torná-lo disponível à psicanálise.
A questão do masculino e a indiscriminação entre agressividade e violência foi a
forma como se configurou para mim, naquele momento, o seu padrão.
Como é que ele figurativa e transferencialmente me comia e me vomitava?
Ele me comia provocando as mais diferentes emoções em mim, desde pena, medo,
atenção, doçura, raiva, repulsa, até eu me sentir desautorizada a estar ali, perguntando-me
o que estou fazendo aqui, o que ele está fazendo aqui. Uma orgia de alimentos os mais va-
riados. Ser vasculhada na minha interioridade e ele observando minhas reações. Ele atuava
e me observava. Isso me consumiu: as fortes experiências emocionais provocadas em mim.
Ele era homem, mulher, criança, bebê. Seria isso o que vivia na sua família, com mãe, mu-
lher, filhos, essa confusão de identidade, de lugares, de papéis, de gênero?
Ao final da entrevista, me ocorreu começar a falar com ele a partir de uma qualidade
sua, a inteligência, a qual ele exibira com eficiência: raciocínio rápido, profundo nas análises
psicológicas dos personagens citados, competente em capturar a atenção do outro, humor
cáustico.
Privilegio um elemento concreto, um sensorial, algo que havíamos percebido ali e que
é uma qualidade que remete a ele próprio e não a projeções e identificações, qualidade mais
abstrata e a que mais chamou atenção (naturalmente havia outras). Tem o sentido de situá-lo
no lugar de onde será visto por mim, o de si próprio. Dirijo-me à sua interioridade. Cabe a
mim resgatá-la ou construí-la nessa nova relação. Isso já é mostrado a ele de saída.
A seguir, digo que ele me observava muito para saber como eu sou, para saber se eu
vou poder trabalhar com ele, e falo sobre as diferentes emoções que ele me provocava. Que
ele era exageradamente curioso a respeito de quem poderia vir a ser seu analista, e muito
rigoroso na sua investigação avaliativa. Precisava de tanto? Digo algo na linha: “Você deve
estar mesmo muito desanimado com as pessoas, pelo rigor do teste que você está aplicando
em mim”.
Falei sobre a indiferenciação que dominava sua vida. Descrevi o que observei que
havia se passado entre nós naquela entrevista, mostrando como havia usado sua masculi-
nidade comigo, sua feminilidade, seu momento adulto, seu momento bebê, seu momento
natimorto. Falei-lhe do já conhecido. O trabalho inicial seria o de discriminar cada um
desses elementos. Mais tarde, o de perceber a dinâmica desses elementos, como eles se
entrelaçavam, por exemplo, como a indiscriminação servia para protegê-lo de se pôr em
contato com sua própria pessoa e com todas as dificuldades que isso implicava. Com essa
fala, penso que o convido a trabalhar comigo através de suas funções egóicas.
Chamei sua atenção para o fato de que durante um bom tempo na sessão eu não
conseguira estar presente como pessoa que fala. No final, tive a impressão de que ele ficara
com uma semente de mim dentro dele. Eu o tratara como uma pessoa inteira, diferente de
mim, e isso, no lugar de ser perigoso, estava sendo tranqüilizador e seguro. Concretamente,
isto é, dentro do seu referencial.
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Segunda entrevista. Começa mais calmo, olha-me perscrutando, como quem ficou en-
vergonhado de ter exagerado no nosso contato anterior. Logo se esquece de mim como pessoa e
passa a me devorar da mesma maneira. Só que desta vez eu já estava preparada e com ele dentro
de mim. Ouvi com mais distância. Ele foi o mesmo. Interrompi sua fala de modo a ter um tempo
maior do que na entrevista anterior e me concentrei na sua dor psíquica, que foi o que mais tocou
meu coração, mais me sensibilizou. Esse foi um momento de transformação, de tomar contato
com algo desconhecido. Aos poucos a sua dor foi tomando forma para mim, como nuvens que
se movimentam até chegarem a uma forma com sentido para o observador. Percebi que sua dor
era oceânica, era todo ele, que talvez nunca tivesse elaborado, moldado essa dor, porque talvez
nunca tivesse tomado contato com ela. Parecia um material bruto, rude.
Falei com ele a partir dessa impressão. Disse-lhe que ele sentia uma dor muito grande
que doía a ponto de sangrar a alma. Era uma dor muito forte, realmente muito forte. Essa
dor ressoava pela sala e se dava a perceber como ódio, como medo, como receio de mim
como analista e como pessoa. A dor mesma, em si, não aparecia abertamente. Estava ve-
lada por esses gestos raivosos e desconfiados. Formulei mais ou menos assim, de forma
direta e curta.
Nesse caso eu estava penetrando em área de afeto, de emoção, em área mais abstrata
que a da entrevista passada. Estava verificando sua capacidade de entrar em contato com o
outro dentro das condições em que se encontrava. A qualidade do seu medo, se era capaz
de superá-lo e quanto, se conseguia sair de seu padrão no contato com o outro, se era capaz de
permitir a penetração do outro em contato afetivo da área da genitalidade e de objeto total,
superando momentos de percepção fragmentada e parcial. Se era capaz de síntese, juízo
crítico. Se sim, poderíamos trabalhar. Visava prospecção futura do atendimento, se seria
possível ou não. A questão era perceber, sentir, discriminar, isto é, nos mantermos em fun-
ções egóicas.
Marcamos mais uma entrevista, a decisiva.
Iniciou-a afirmando que decidira fazer análise comigo porque tivera uma experiên-
cia inusitada: nunca ninguém falara assim com ele, tocando de modo firme em ponto tão
profundo. Concluíra que eu era muito inteligente por captá-lo dessa forma impensável por
ele até então. “Eu com dor? Sim, claro, era isso, mas nunca tinha percebido. Sempre soube
que era agressivo e violento, mas não sabia que isso era uma manifestação de dor. Realmente
essa sacada foi decisiva na minha decisão. Além do mais, há muito tempo que não converso
com gente inteligente. Então, no mínimo pode ser bom para mim.”
A partir daí, iniciamos nosso trabalho, que transcorre nos moldes dessas entrevistas
iniciais. Nesses primeiros encontros marcamos nossos territórios e método de ação.
O que houve entre nós nessa terceira entrevista? Observo que ele usa a mesma pala-
vra por mim usada anteriormente para abordá-lo. Ele, inteligentemente, usa o mesmo mé-
todo e o mesmo caminho, como bom observador perseguido que é. A mesma ferramenta.
Entendo que formulou, com a palavra inteligente, o fato de eu ter trazido à tona uma verda-
de sua à qual não tinha acesso e que era de fato o ponto nodal do momento, a partir do qual
poderíamos trabalhar, que era a sua dor. A sua história de vida e os fatos que gulosamente
tomaram conta das entrevistas e revelavam objetos internos persecutórios, acompanhados
das defesas a sentimentos hostis, desviavam não apenas a atenção do analista, mas a dele
próprio; ele também, quando se analisava, via essa cortina de formulações que encobriam
Abordagem clínica na psicanálise contemporânea com enfoque em caso de anorexia masculina C. A. N. B. Bruno 63

uma situação emocional. A partir do emocional, pudemos aprender, isto é, nomear afetos,
discriminá-los, como discriminar ódio de explosão, ódio de raiva, as diferentes intensidades
de ódio e diferentes qualidades de ódio: ódio amoroso, ódio raivoso, ódio por sentir-se
impotente, por sentir-se rebaixado, por perceber defeitos em si mesmo, ódio por amar-me e
não me ter e nada saber de minha vida. Trabalho que vem sendo feito ao longo dos anos.
A idéia estratégica era, através desses fatores, desenvolver qualidades egóicas que
possibilitassem ao paciente lidar com superego rígido, e, passo seguinte, tomar contato com
dor, junto de alguém. Suportar seus erros até agora o deixava muito desanimado, daí pre-
ferir ver apenas aqueles que suportava. O medo de não se superar era intenso. Via apenas a
morte na sua frente, pois se considerava velho para mudanças.
Em resumo, o que vimos na primeira entrevista continuou sendo tema pelos anos
seguintes, sempre aprofundando nossa análise das situações trazidas, que podiam ser emo-
cionais ou intelectuais no sentido de serem suas interpretações dos fatos. A idéia era traba-
lhar funções egóicas: nomear, discriminar, estabelecer relações, generalizações, desenvolver
juízo crítico, tendo como base as emoções por ele provocadas em mim. Meu critério é atra-
vessar sua cortina de associações e teorizações, para ir direto ao coração.
Uma vez tendo conseguido, através do desenvolvimento do aparelho sensorial, a
idéia é propiciar uma comunicação que esteja aquém do sensorial. Tratamos de algo mais
abstrato que tem a ver com afeto, com sensibilidade intuitiva, o que só é possível depois de
aquisição de vocabulário sensorial.
Com a ausência do pai, sempre viajando a negócios, a mãe o tomava como substituto,
o que ele aceitava de bom grado, gostando de tomar o lugar do pai. Ocorre que, quando este
voltava das viagens, a mãe reclamava do filho para o pai, talvez uma vingança sádica pelo
fato de o filho ser apenas um filho que, mesmo se submetendo a ela, nunca a satisfazia nas
suas necessidades básicas. O pai, para se eximir da culpa de sua ausência, ou/e para retomar
seu lugar, batia no moleque pretensioso. Este perdia a mãe para o pai e perdia o pai também,
que o humilhava. O masculino disponível para identificação ficava, dessa forma, relaciona-
do com violência, com disputa violenta de lugar. Quando gritava na sessão, tinha também o
sentido de ter introjetado um modelo de homem, aquele que é violento, e este modelo é que
apresentava a mim, talvez por tomá-lo como ideal nunca atingido. “Papai era um homem
muito bonito, fazia muito sucesso com as mulheres. O oposto de mim.” Para me atrair, ele
usava os recursos que conhecia.
O que acabo de descrever foi uma formulação que fiz para mim mesma, para poder
conversar com ele.
Quando algo de sua realidade interna faz sentido para mim, raramente falo dela di-
retamente. Uso essas informações para mim, e como vou usá-las ou nomeá-las para ele, isso
vai depender do momento. Sinto que é importante deixar claro para ele que estou no lugar
do analista que analisa e não da mãe ou pai. Mais do que falar, a questão é ser. É fornecer
discriminação entre o eu e o outro, é deixá-lo perceber que não há risco em ser; é conviver
com o fato de que cada um de nós pode ser si-próprio. É não deixá-lo se confundir comigo
ou eu com ele, é estabelecer nossas diferenças à medida que surgem, conforme a evolução
de sua mente: eu sou mulher e ele homem, eu sou mais nova do que ele, não gosto das mú-
sicas que ele gosta, ele é mais viajado do que eu, ele sabe de receitas maravilhosas, eu não.
Nós dois gostamos de haicai.
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O principal para engendrar interioridade, me parece, é trabalhar uma discriminação


entre dentro e fora, entre eu e outro. É oferecer um campo onde não é preciso satisfazer
necessidades tão exigentes como sofrera com os pais e ele poder perceber que há outras
formas de ser no mundo. Discriminamos passado de presente, analisamos a psicologia da
família antiga e da família atual, enfocamos psicodinâmica de objetos internos e externos,
enfocamos inter-relações. Mas há uma base já preparada, que é a diferenciação.
Esses casos da clínica contemporânea são excepcionais? Eles nos obrigam a rever nos-
sas posições metodológicas sobre as bases mesmas da mudança do mundo contemporâneo?

Psicoanálisis contemporáneo con enfoque en un caso de anorexia masculina

Resumen: La anorexia masculina es un óptimo ejemplo de patología contemporánea y permite ilus-


trar las indagaciones que le son colocadas al psicoanalista delante de estos pacientes. Básicamente la
reflexión privilegia la pregunta: desde que lugar habla el analista? Cual es su metodología básica?
Cual es su técnica? Cuales son los requisitos para colocarse en el lugar del analista? La propuesta aquí
es formalizar la postura teórica que fundamenta el abordaje de los casos conocidos como siendo de
patología narcísica.
Palabras claves: psicoanálisis contemporáneo; patologías narcísicas; disturbio alimentar; anorexia; ano-
rexia masculina; metodología psicoanalítica.

Contemporary psychoanalysis focusing male anorexia

Abstract: Male anorexia is a good example of contemporary pathology, and it allows us to illustrate
the uncertainties facing the analyst who treat such patients. Basically, the investigation concentrates on the
question: where does the analyst stand? What is his or her basic methodology? What is his or her tech-
nique? What are the pre-requisites to put oneself in the place of an analyst? Our purpose here is to formalize
the theoretical viewpoint which substantiates the approach of cases seen as narcissistic pathology.
Keywords: contemporary psychoanalysis; narcissistic pathologies; eating disorders; anorexia; male
anorexia; psychoanalytical methodology.

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[Recebido em 18.4.2007; aprovado em 18.9.2007]

Cássia Aparecida Nuevo Barreto Bruno


[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Pedroso Alvarenga, 1255/42 – Itaim Bibi
04531-012 – São Paulo SP – Brasil
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