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Bento

A vida e obra de

XVI
1927 — 2022

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


Em 31 de dezembro de 2022, a Igreja Católica e o
mundo perderam o papa emérito Bento XVI. Descre-
vê-lo apenas como “o papa que renunciou”, ou fazer
desta renúncia o ato definidor do seu pontificado, se-
ria uma simplificação exagerada, como afirmou a Ga-
zeta do Povo no editorial publicado no dia de seu fa-
lecimento; trata-se de um papa que, apesar do
pontificado relativamente curto, de quase oito anos, dei-
xou uma marca profunda na teologia católica. É certa-
mente um dos maiores teólogos das últimas décadas, e
também um dos grandes intelectuais de nossos tempos.

Neste e-book, a Gazeta do Povo quer apresentar ao


leitor um panorama da vida e da obra de Bento XVI.
Reunimos, além do obituário publicado no dia 31, uma
série de reportagens e artigos originalmente publi-
cados em 28 de fevereiro de 2013, em um caderno es-
pecial que marcou o último dia do pontificado de Bento
XVI. Esperamos que esses textos ofereçam ao leitor
uma compreensão abrangente, ainda que longe de
completa, do legado deste que é uma das grandes per-
sonalidades do fim do século 20 e deste século 21.

Marcio Antonio Campos

Editor de Opinião da Gazeta do Povo e editor do caderno es-


pecial sobre Bento XVI publicado em 2013

A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


Sumário
• Bento XVI: a longa vida de um papa genial . . . . . . . 4

• O papa professor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

• Uma bibliografia extensa e variada . . . . . . . . . . . . . 35

• Nas encíclicas, o abandono do egoísmo . . . . . . . . . 42

• Relativismo, o inimigo sutil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46

• O legado litúrgico do papa Bento . . . . . . . . . . . . . . . 54

• Um dilema, duas respostas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58

• O insuportável humanismo de Bento XVI . . . . . . . 63

• Transpassados pela Beleza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 69

A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


OBITUÁ RI O

Bento XVI: a
longa vida de
um papa genial
Jônatas Dias Lima
De alguma forma, o papa João Paulo II parecia sa-
ber o destino do homem que por 24 anos foi seu
braço direito e a mente brilhante que o ajudou a
erguer um dos pontificados mais marcantes na
história da Igreja Católica. A transformação do car-
deal Joseph Ratzinger no papa Bento XVI está li-
gada de forma indelével ao papel que desempe-
nhou junto ao seu santo antecessor na condição de
prefeito para a Congregação da Doutrina da Fé e
conselheiro pessoal. Por três vezes o fiel cardeal
pediu oficialmente para se aposentar, ouvindo um
fraterno “não” do pontífice polonês em todas as
tentativas. Foi assim, sendo mantido na ativa meio
que a contragosto, para além do que se costumava
permitir, que Ratzinger entrou na fase mais im-
portante de sua vida aos 78 anos, herdando um
trono que ele conhecia bem e por isso mesmo nunca
desejou.

No último 31 de dezembro, o mundo se despediu


do papa mais longevo de todos os tempos, embora
seu pontificado tenha durado pouco menos de oito
anos. Aos 95, enfim Bento XVI completou a cor-

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rida, tendo “guardado a fé” (II Tim 4,7) como pou-
cos fizeram com tamanha maestria antes dele.

Selecionar os fatos mais marcantes de uma vida


tão extensa e repleta de realizações é um desafio
assustador, mas ao menos podemos nos inspirar
no exemplo do próprio Ratzinger que, não sem te-
mor, encarou e cumpriu a tarefa de prosseguir e
aprofundar o trabalho de um gigante.

O 265º papa da Igreja Católica nasceu na pequena


cidade bávara de Marktl am Inn, em 1927, num Sá-
bado de Aleluia, sendo batizado no mesmo dia. Com
um pai policial, ele passa os primeiros dez anos de
sua vida viajando muito e a família acaba adotando
como lar a cidade de Traunstein, próximo da fron-
teira com a Áustria. É ali onde ele passa a maior
parte de sua infância e adolescência, sempre acom-
panhado de seus irmãos mais velhos, Maria e Ge-
org. Ambos se fizeram muito presentes na vida de
Ratzinger mesmo após sua mudança para Roma.

Chega a década de 1940 numa Europa em ebuli-


ção, assombrada com as ameaças de uma nova
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guerra e sua Alemanha ocupa o centro das tensões,
graças ao regime totalitário imposto pelo novo
führer. Contudo, a educação e a fé transmitidas por
sua família preparam Joseph para as dificuldades
que viriam em seguida. Em seu livro de memórias,
Ratzinger conta que viu os nazistas açoitarem o
pároco da capela que frequentava antes de come-
çar a celebração da missa. Pouco tempo depois, se-
guindo a sina de todo garoto alemão daquele pe-
ríodo, foi obrigado a participar de atividades da
Juventude Hitlerista.

O horror de um novo conflito mundial se concre-


tiza, bem como o derramamento de sangue que
todos sabiam que ocorreria. Em 1945, nos últimos
meses da Segunda Guerra, o regime que o jovem
Joseph detestava começa a fraquejar e impõe que
estudantes internos devem trabalhar para man-
tê-lo. “Assim, o pequeno grupo de seminaristas
da minha classe — nascidos em 1926 e 1927 — foi
convocado para a Flak, em Munique”. Flak era o
nome dado às baterias de defesa antiaéreas dos
nazistas. Sobre esse período, sua autobiografia não
diz muito, mas revela que foram dias amargos:
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“não preciso contar detalhadamente os muitos
aborrecimentos que o tempo na Flak trouxe con-
sigo, especialmente para uma pessoa tão pouco
militar como eu”.

De fato, sua verdadeira luta, aquela na qual inves-


tiria todos os seus esforços e potências, viria dé-
cadas depois, servindo ao verdadeiro Senhor, não
a um tirano. Ratzinger acaba por desertar e volta
para casa. Mais tarde é preso por soldados norte-
americanos e solto com o fim da guerra.

Com o pesadelo nazista chegando ao fim, surge a


possibilidade de retomar o caminho rumo ao sa-
cerdócio, sendo ordenado em 29 de junho de 1951,
aos 24 anos. Seguindo uma vocação irresistível ao
ensino, começa a lecionar já no ano seguinte, as-
sumindo como professor na Escola Superior de
Freising. Dois anos depois, torna-se doutor em te-
ologia, com uma tese focada na obra de Santo Agos-
tinho. Posteriormente, só em doutorados honoris
causa viriam outros dez.

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A partir desse ponto, sua vida acadêmica não pa-
rou mais, tendo produzido novos escritos inclu-
sive após se tornar papa emérito. Como professor
de teologia passou por universidades em Bonn,
Münster e Tubinga, onde se tornou catedrático de
Dogmática e História do Dogma na Universidade
de Ratisbona, da qual também foi vice-reitor.

Estamos na década de 60, quando o papa João XXIII


convoca o Concílio Vaticano II, um importante
evento que reuniu bispos de todo o mundo e cuja
última edição havia ocorrido há quase um século.
O encontro que teve consequências tremendas para
a Igreja das próximas décadas foi assistido de perto
pelo padre Ratzinger que foi escolhido para atuar
como perito, ao lado do cardeal Joseph Frings, ar-
cebispo de Colônia. Depois, o destaque obtido o
leva a desempenhar cargos importantes na Con-
ferência Episcopal Alemã e na Comissão Teológica
Internacional.

Em 1977, o papa que encerra o concílio, Paulo VI,


nomeia o prodigioso sacerdote como arcebispo de
Munique e Freising, num salto de etapas pouco co-
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mum, já que para arquidioceses importantes o pa-
drão era o de se nomear bispos ou bispos auxilia-
res, mas não padres. A ascensão na hierarquia
ganharia um grau a mais no mesmo ano, quando
o pontífice lhe concede o barrete escarlate. Foi
quando o alemão recebeu o primeiro título pelo
qual ficará conhecido em todo o mundo, atraindo
amigos e inimigos: cardeal Ratzinger.

João Paulo II

A providência quis que já no ano seguinte à sua


chegada ao cardinalato, Ratzinger fosse convo-
cado a colocar em prática o mais precioso dos atri-
butos da função, o de votar no conclave que esco-
lheria o novo papa. Em agosto de 1978 acompanha
a eleição do cardeal italiano Albino Luciani, que
assumiria o nome pontifício de João Paulo. Passa-
dos 33 dias, uma surpresa trágica abala a Igreja e
de forma muito particular aos cardeais que parti-
ciparam daquele conclave. O papa morre de em-
bolia pulmonar, deixando a sede vacante pela se-
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gunda vez no mesmo ano, o que exige dos cardeais
uma nova eleição.

No mês de outubro, a maioria dos votantes opta


dessa vez por um não italiano, o primeiro em 455
anos, cuja relativa juventude também chamou a
atenção dos observadores. Aos 54 anos, Karol Wo-
jtyła, o cardeal arcebispo de Cracóvia, na Polônia,
se tornava o papa João Paulo II. Poucos anos de-
pois, a vida do cardeal Ratzinger seria profunda-
mente modificada pelas escolhas do novo suces-
sor de Pedro.

Em 1980, a inteligência e a cordialidade de Ratzin-


ger se sobrassaem novamente durante o sínodo
dos bispos que discutiu o tema “A missão da fa-
mília cristã no mundo contemporâneo”, evento
no qual ocupou o papel de relator. Um ano depois,
o papa polonês o nomeia prefeito da Congregação
para Doutrina da Fé, tornando-o a máxima auto-
ridade abaixo do papa no que diz respeito ao en-
sino da Igreja nas questões de fé e moral. Poste-
riormente, biógrafos de João Paulo II relatarão que
ele raramente faria algum discurso ou publicaria
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qualquer texto sem que o mesmo não tivesse sido
revisado por Ratzinger.

A lealdade do cardeal alemão ao papa e o zelo pela


correta doutrina eram tão notórias que seus críti-
cos logo o apelidariam de Rottweiller de Deus, o
que remetia muito mais à sua origem germânica e
ao seu dever de guardião da fé do que ao seu tem-
peramento pacato. Os ataques à ortodoxia defen-
dida por Ratzinger cresceram sobremaneira após
1984, quando foi publicada com sua assinatura a
instrução Libertatis nuntius, na qual são formal-
mente condenados alguns aspectos da Teologia da
Libertação, corrente teológica popular na América
Latina e que interpretava a fé cristã a partir da vi-
são marxista, frequentemente substituindo pon-
tos cruciais da doutrina católica por conceitos mais
úteis ao pensamento revolucionário.

Expor e criticar a instrumentalização da Igreja por


uma ideologia foi um ato corajoso que lhe custou
caro. Muito das narrativas difamatórias usadas
contra Bento XVI após sua eleição como papa eram,
na verdade, versões recicladas dos insultos emi-
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tidos por teólogos da década de 80 diretamente
afetados pelo documento e que nunca superaram
seu rancor.

Catecismo

Relevantes analistas católicos apontam hoje que,


ao menos em parte, o avanço da Teologia da Li-
bertação podia ser explicado pela confusão ins-
taurada na Igreja após o Concílio Vaticano II e a
reforma litúrgica que veio em seguida. Os mais tra-
dicionalistas não hesitam em depositar a culpa no
concílio em si, enquanto outros — Ratzinger en-
tre eles — apontavam para as interpretações en-
viesadas dos documentos pastorais emitidos na-
quela ocasião. Faltava clareza quanto ao que de fato
a Igreja dizia sobre uma extensa lista de questões
e nesse quesito — clareza — Ratzinger sempre foi
um especialista. Foi então que João Paulo II con-
fiou a ele a presidência da comissão encarregada
de produzir um novo catecismo para a Igreja, uma
espécie de compêndio que explicasse de forma di-
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dática em que consiste a fé católica, fazendo uso
de linguagem acessível ao homem contemporâ-
neo, mas fiel à Tradição de 2 mil anos.

A tarefa consumiu boa parte do tempo e energia


do cardeal entre os anos de 1986 e 1992, quando o
resultado do intenso trabalho foi enfim publicado.
Em pouco tempo, o Catecismo da Igreja Católica
escrito por Ratzinger e seus colaboradores se tor-
naria o manual de cabeceira de todo católico que
buscasse crer e viver conforme ensina a Igreja fun-
dada por Cristo e governada pelos sucessores dos
apóstolos. O texto foi traduzido para inúmeros
idiomas e posteriormente ganhou novas versões,
algumas mais resumidas, na forma de perguntas
e respostas, outras, adaptadas para jovens e crian-
ças. Para muitos, o Catecismo da Igreja Católica é
seu maior e mais duradouro legado espiritual.

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A despedida do amigo

A chegada do novo milênio trouxe para Ratzinger


a esperança de que sua missão estivesse perto de
ser concluída e, quem sabe, logo poderia enfim de-
dicar-se a uma vida mais contemplativa, ou vol-
tar à vida acadêmica que amava, o que lhe permi-
tiria escrever os livros que havia planejado há muito
tempo, mas jamais conseguira graças à agenda in-
tensa do papa e as consequentes tarefas que caíam
sobre sua mesa. No entanto, como sabemos, o de-
senrolar da história não foi bem assim.

Em 2002, um João Paulo II já bastante debilitado


pelo Parkinson aprova a eleição de Ratzinger como
decano do colégio cardinalício, posição que lhe
permitiria exercer uma série de funções impor-
tantes após a morte do pontífice, fato que ocorre-
ria três anos mais tarde, em 2 abril de 2005. No dia
8, numa Praça de São Pedro completamente lo-
tada, incluindo a presença de chefes de estado de
todo o mundo, é o próprio Ratzinger quem celebra
o funeral do papa e amigo que mudou sua vida.
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Poucos dias depois, o cargo de decano do colégio
cardinalício impunha também sobre ele o dever de
presidir a missa de abertura do conclave que defi-
niria o sucessor de João Paulo II. Na homilia, uma
mensagem forte para o escolhido, seja lá quem
fosse, sobre as nefastas consequências do relati-
vismo, tema que se faria presente por todo o seu
pontificado.

A eleição

Quando as portas da Capela Sistina se fecharam,


as listas de papabile fervilhavam na imprensa e nas
casas de apostas. O nome de Ratzinger não cons-
tava em muitas delas, principalmente por causa
dos seus 78 anos de idade. Outros, ainda mais equi-
vocados, achavam impossível que os cardeais es-
colhessem alguém que, de certa forma, seria con-
siderado mais conservador do que o próprio João
Paulo II.

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A torcida contrária não surtiu efeito e no dia 19 de
abril de 2005, logo após a subida da fumaça branca
que anuncia eleição de um novo papa, a figura que
surge na sacada do Palácio Apostólico é a do car-
deal Ratzinger, ou melhor, Bento XVI, o nome que
assume fazendo referência, principalmente, ao
padroeiro da Europa, São Bento de Núrsia, pai da
tradição monástica no Ocidente.

Assim, o intelectual discreto, dotado de uma mente


potente, mas comedido e até tímido nos gestos,
teria de se acostumar com o clamor das multidões
que criavam enormes expectativas a cada apari-
ção do pontífice, em muito, graças às duas déca-
das de cativantes performances de João Paulo II,
um líder nato, agraciado com personalidade mag-
nética e muito carisma, qualidades às quais Bento
XVI sabia bem que não possuía e que eram inimi-
táveis.

Ciente do quanto seu velho amigo transformou a


figura do que vem a ser um papa, Bento assumiu
tentando dar continuidade à forma de pastoreio
iniciada pelo polonês: muitas viagens, uso intenso
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da mídia e eventos de massa. É claro que adapta-
ções foram necessárias, afinal, Wojtyła inventou
aquela rotina aos 54, mas Bento também foi favo-
recido pela sorte — ou pela providência? — já que
herdou como primeiro megaevento agendado a
Jornada Mundial da Juventude em Colônia, Ale-
manha, sua terra. O encontro reuniu 1,5 milhão de
jovens católicos provenientes do mundo todo para
celebrar a memória do amado João Paulo II e co-
nhecer o novo líder que logo teria o nome musi-
cado entre palmas e tambores, exatamente como
faziam com JP2, o acrônimo predileto com o qual
se referiam ao antigo pontífice.

No natal daquele mesmo ano, 2005, seria publi-


cada sua primeira encíclica, Deus caritas est, uma
reflexão profunda sobre o amor. A próxima foi de-
dicada a outra virtude teologal, Spe Salvi, de 2007,
sobre a esperança cristã. Na terceira, publicada em
2009, Bento XVI deixa sua contribuição à doutrina
social da Igreja. Intitulada Caritas in veritate, o texto
faz uma análise da economia contemporânea, cri-
tica a divisão crescente entre ricos e pobres e chega

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a pedir uma verdadeira “autoridade política mun-
dial” que seja preocupada com o bem comum.

Também em 2009 ocorre um de seus gestos mais


determinantes na busca por ovelhas desgarradas.
O papa retira a excomunhão de quatro bispos or-
denados ilicitamente por Marcel Lefebvre, 1988,
um arcebispo francês que liderou uma revolta con-
tra as reformas instauradas após o Concílio Vati-
cano II, especialmente no campo litúrgico. O ob-
jetivo era o de facilitar a reconciliação com o grupo
fundado por ele, a Fraternidade Sacerdotal São Pio
X, mas também não deixava de ser um reflexo da
preocupação que o então cardeal Ratzinger de-
monstrou em vários escritos com a decadência na
liturgia católica, a falta de zelo pelo sagrado e o
quanto isso afetava até mesmo a fé eucarística,
central na vida da Igreja. Essa tentativa de reapro-
ximação foi preparada dois anos antes, sobretudo
com o motu proprio Summorum Pontificum, um do-
cumento que autorizou o clero de todo o mundo a
celebrar, de forma extraordinária, a missa em la-
tim conforme o missal anterior à reforma litúrgica

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realizada na década de 60, uma demanda preciosa
para as comunidades tradicionalistas.

Viagens

Durante seu pontificado Bento XVI fez 25 viagens


apostólicas, aquelas feitas para outros países, fora
da Itália. Dessas, destaca-se a visita ao Brasil, 2007,
para acompanhar a 5ª Conferência Geral do Epis-
copado da América Latina e do Caribe, ocorrida em
Aparecida. Antes de se reunir com os bispos, ele
vai à São Paulo, reúne-se com jovens no estádio
do Pacaembu e canoniza Frei Galvão, o primeiro
santo nascido no Brasil.

Em 2009, cumprindo o que passou a ser visto como


obrigatório para todo papa, vai à Jerusalém rezar
na igreja do Santo Sepulcro. Em 2012, para reno-
var a delicada ponte construída por seu anteces-
sor, visita Cuba e se encontra com o ditador Fidel
Castro. Na mesma viagem vai ao México, ocasião
na qual sofre uma queda, fato posteriormente ci-
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tado pelo próprio Bento XVI como determinante
para a decisão que tomaria no ano seguinte e que
surpreenderia o mundo.

Renúncia

Em 11 de fevereiro de 2013, numa reunião com car-


deais, Bento XVI lê a carta de renúncia que havia pre-
parado há meses, afirmando que a partir de 28 de
fevereiro daquele ano, a sede de São Pedro ficaria
vaga e que deveria ser convocado um novo conclave
para a eleição do próximo Sumo Pontífice.

No texto, Bento XVI diz:

“Após ter examinado perante Deus


reiteradamente minha consciência,
cheguei à certeza de que, pela idade
avançada, já não tenho forças para exercer
adequadamente o ministério petrino. Sou
muito consciente que este ministério, por

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sua natureza espiritual, deve ser realizado
não unicamente com obras e palavras,
mas também e em não menor grau
sofrendo e rezando.

No entanto, no mundo de hoje, sujeito a


rápidas transformações e sacudido por
questões de grande relevo para a vida da
fé, para conduzir a barca de São Pedro e
anunciar o Evangelho, é necessário
também o vigor tanto do corpo como do
espírito, vigor que, nos últimos meses,
diminuiu em mim de tal forma que eis de
reconhecer minha incapacidade para
exercer bem o ministério que me foi
encomendado.

Por isso, sendo muito consciente da


seriedade deste ato, com plena liberdade,
declaro que renuncio ao Ministério de
Bispo de Roma, sucessor de São Pedro, que
me foi confiado por meio dos Cardeais em
19 de abril de 2005 (...)”.

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Como não podia deixar de ser, o anúncio provocou
enorme perturbação na Igreja em todo o mundo e,
claro, especulações. Para todos, era bastante com-
preensível que aos 85 anos manter uma agenda de
compromissos como a que um papa tem era bem
difícil, portanto, a justificativa seria plausível. O
problema estava no ineditismo do ato. Embora
houvesse outros casos na história de papas que re-
nunciaram, eles ocorreram séculos atrás e nenhum
deles o fez em tempos de paz, de forma comple-
tamente livre, como Bento decidiu fazer. Em todos
os casos sempre houve o contexto de guerras, de-
posições, sequestros, enfim, situações trágicas não
tão incomuns para governantes da Idade Média.

Dessa vez não era o caso. Bento XVI simplesmente


concluiu que não desempenhava mais tão bem suas
funções e escolheu abrir mão de um poder único
no mundo, de forma totalmente livre, conforme
enfatizou tanto na carta de renúncia quanto em
entrevistas posteriores, como a que concedeu ao
jornalista Peter Seewald, no livro O Último Testa-
mento, publicado em 2017. Para quem não dispõe
de uma vida espiritual que dê sentido a tamanho
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desprendimento, o ato parecia incompreensível,
até suspeito. Grupos anticlericais sedentos por fe-
rir a credibilidade da Igreja apontavam para os ca-
sos de abusos de menores por padres ocorridos em
décadas passadas e relatados sobretudo na Europa
e Estados Unidos. Para vinculá-los ao pontífice
alemão era preciso omitir todas as estruturas ecle-
siais e procedimentos criados pelo próprio Bento
XVI para que crimes horrendos como aqueles não
voltassem a ocorrer, incluindo maior punição para
culpados e estipulando regras mais rígidas na se-
leção de candidatos ao sacerdócio.

Por outro lado, a renúncia também provocou rea-


ção nas alas mais tradicionalistas da Igreja que va-
riavam entre considerar o ato um erro grave ou
uma completa impossibilidade teológica. De fato,
mesmo após a eleição do cardeal argentino Jorge
Mario Bergoglio como o sucessor de Bento XVI,
houve quem nunca o tenha reconhecido, pois, para
eles, supostamente, só poderia haver um papa e
este seria Bento XVI até sua morte, independen-
temente do que fosse proclamado ou formalmente
estabelecido. Esses grupos, que o amavam profun-
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damente, foram a verdadeira razão pela qual o
agora papa emérito se preocupou tanto em reafir-
mar que tomou a decisão livremente e que agora
havia um novo sucessor de Pedro no trono.

Em 2019, em entrevista ao jornal Corriere della


Sera, por exemplo, ele recordou a histórica luta da
Igreja Católica para manter sua unidade, desta-
cando que ela sempre esteve em perigo: “Foi as-
sim em toda a sua história. Guerras, conflitos in-
ternos, ameaças de cismas. Mas sempre prevaleceu
a consciência de que a Igreja é e deve ficar unida.
A sua unidade sempre foi mais forte do que as lu-
tas e as guerras internas”. Concluiu afirmando,
enfaticamente: “O Papa é um só: Francisco”.

Emérito

A prudência de Bento XVI e o profundo respeito


por seu sucessor — por mais diferentes que fos-
sem e sem compartilhar da mesma proximidade
que o unia a João Paulo II — o levaram a optar por
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uma vida de reclusão, dentro do próprio Vaticano,
de modo a não interferir de modo algum no novo
pontificado. Assim, a partir do dia em que se tor-
nou emérito, seus dias se assemelhavam aos de
um monge. Conforme contou seu secretário pes-
soal, o arcebispo Georg Gänswein, por ocasião do
aniversário de 95 anos, a rotina de Bento XVI no
Mosteiro Mater Eclesiae, seu lar final, não mudou
muito desde que se mudou para lá, em 2013.

Fisicamente cada vez mais frágil, mas incrivel-


mente lúcido, o pontífice ancião começava o dia
com a missa e as orações do breviário. Depois, o
café da manhã, uma pausa, e então se dedicava às
correspondências e às leituras da manhã. “De vez
em quando, há espaço para a música, até a hora do
almoço”, dizia Gänswein, completando que o pe-
ríodo da tarde era dedicado a receber eventuais vi-
sitas e a recitação do terço durante uma pequena
caminhada nos Jardins do Vaticano. À noite, a janta
e uma oração antes de se deitar.

Foi assim, contemplativo, vivendo num quarto


modesto até demais, que Bento XVI terminou seus
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dias, livre de todo o poder que somente o líder má-
ximo de 1,3 bilhão de católicos tem ao seu alcance.
Serenamente, o genial Joseph Ratzinger, cuja for-
midável obra deve um dia render-lhe o título de
Doutor da Igreja, completa sua Páscoa deixando
em todos que o amam a certeza de que profético o
lema escolhido para seu episcopado, décadas atrás,
só pode ter sido revelado pelo próprio Deus, dada
a precisão com que foi cumprido. O “cooperador
da Verdade” finalmente descansa e se encontra
com aquele que guiou seus quase cem anos de vida
dedicados a fazer Cristo ser conhecido, amado e
compreendido.

Originalmente publicado na Gazeta do Povo em 31 de de-


zembro de 2022

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O papa
professor
A paixão de Bento XVI pelo ensino e a habilidade de

falar com clareza para qualquer público — de

intelectuais a crianças — nasceram no ambiente

acadêmico

Por Jônatas Dias Lima


Se João Paulo II ganhou seu lugar na memória dos
fiéis ao transformar seu conhecimento filosófico
em imagens cativantes e frases de efeito que re-
tratavam todo o seu carisma, Bento XVI também
será lembrado pela facilidade de se comunicar com
públicos que vão desde cultos teólogos até crian-
ças da catequese, sempre de modo claro e cordial,
uma habilidade adquirida no exercício da profis-
são à qual dedicou vários anos de sua vida: a de
professor.

Em 2011, durante a Jornada Mundial da Juventude


de Madri, na Espanha, o papa relembrou seus pri-
meiros passos como docente no encontro que teve
com jovens professores universitários. Na ocasião,
ele citou as inúmeras carências materiais para mi-
nistrar aulas em uma Alemanha recém-saída da
guerra, mas afirmou que “o encanto de uma ati-
vidade apaixonante” era o que ajudava a superar
qualquer obstáculo.

Para o padre José Lino Currás Nieto, historiador e


escritor, a experiência de Ratzinger como docente
foi decisiva para sua forma de pregar. “Seu vigor
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intelectual tem a grande qualidade, pouco fre-
quente, de esclarecer verdades difíceis e abstratas
de forma serena e simples, sempre adaptada aos
ouvintes”, diz. Para Currás Nieto, essa é uma ha-
bilidade que só se adquire depois de uma grande
experiência acadêmica em aulas e debates.

Antes de Ratzinger se tornar arcebispo, no fim dos


anos 70, alunos de cinco universidades alemãs ti-
veram a oportunidade de assistir a aulas de Teo-
logia com o futuro papa. O então professor Ratzin-
ger passou por instituições de ensino em Freising,
Bonn, Münster, Tubinga e Ratisbona. A eferves-
cência intelectual dos anos 60 proporcionou a ele
o contato com colegas que viam o mundo e o ho-
mem de forma muito diferente, como o teólogo
Hans Küng e outros influenciados pela tendência
marxista que se espalhava pela Europa.

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


Crianças

Quando assumiu o pontificado, as complexas dis-


cussões que nunca deixou de ter com o mundo aca-
dêmico não o impediram de se lançar no diálogo
com as crianças. Em outubro de 2005, o papa re-
cebeu no Vaticano cerca de 100 mil crianças que se
preparavam para receber a primeira comunhão. O
encontro se tornou uma conversa, na qual os ca-
tequizandos fizeram perguntas a Bento XVI sobre
a importância da missa, da confissão e da eucaris-
tia. O pontífice respondeu de forma espontânea a
cada uma das dúvidas, usando palavras simples
diante do enorme público de fiéis — um desafio
que certamente muitos intelectuais evitariam.
Bento XVI ainda repetiu a dose em maio de 2009.

A preocupação com a catequese apareceria nova-


mente nos dois livros infantis que publicou. Os
Amigos de Jesus chegou aos italianos em 2010, e
conta a história dos 12 apóstolos e de São Paulo.
Em 2011, o pontífice lançou Maria, a mãe de Jesus,
uma pequena publicação de 48 páginas, na qual
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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


ele apresenta alguns episódios da vida da Virgem
Maria.

Doutrina

O Catecismo da Igreja Cató­­lica é outra prova da


paixão de Ratzinger por ensinar. En­­quanto car-
deal, a pedido de João Paulo II, ele foi o líder da co-
missão que sintetizou em um livro toda a fé da
Igreja. A obra levou seis anos para ficar pronta, mas
hoje é a referência para a formação doutrinal em
todo o mundo. Já como Bento XVI, e ciente de que
o denso livro com 700 páginas poderia ser inaces-
sível aos fiéis comuns, lançou no primeiro ano de
pontificado o Compêndio do catecismo, uma versão
resumida na forma de perguntas e respostas. Em
2011, disposto a adaptar ainda mais a linguagem,
dessa vez para os jovens, lançou o YouCat — Cate-
cismo Jovem da Igreja Católica.

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


Debates

Como cardeal, Joseph Ratzinger se envolveu em


pelo menos dois debates com grandes intelectu-
ais. Em 2000, 2 mil pessoas tiveram de acompa-
nhar do lado de fora do Teatro Quirino, em Roma,
o debate entre Ratzinger e o filósofo italiano ateu
Paolo Flores d’Arcais.

O evento preencheu as 930 poltronas disponíveis


no teatro; os demais ouviram o encontro por meio
de um amplificador improvisado. Outro debate fa-
moso de Ratzinger ocorreu em Munique, em 2004,
com o filósofo alemão Jürgen Habermas. Ambos
foram posteriormente transformados em livros.

“Embora, como disse, não seja necessário


confessar-se antes de cada comunhão, é
muito útil confessar-se com uma certa
regularidade. É verdade, geralmente os
nossos pecados são sempre os mesmos,
mas fazemos limpeza das nossas

A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


habitações, dos nossos quartos, pelo
menos uma vez por semana, embora a
sujidade seja sempre a mesma. Para viver
na limpeza, para recomeçar; senão, talvez
a sujeira não possa ser vista, mas se
acumula. O mesmo vale para a alma, por
mim mesmo, se não me confesso a alma
permanece descuidada e, no fim, fico
satisfeito comigo mesmo e não
compreendo que devo me esforçar para ser
melhor.”

— No encontro com crianças da catequese, em 15 de outu-


bro de 2005, respondendo a uma menina que perguntava
se era preciso confessar-se antes de cada comunhão.

Originalmente publicado na Gazeta do Povo em


28 de fevereiro de 2013

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


Uma
bibliografia
extensa e
variada
Por Jocelaine Santos
A intensa atividade intelectual de Joseph Ratzin-
ger, antes e durante o pontificado, se reflete na
publicação de inúmeros artigos, discursos e livros
— nem todos traduzidos para o português — que
transmitem uma visão espiritual da vida cristã,
enaltecendo a importância de vivenciá-la em atos,
gestos e palavras cotidianas.

Em geral, pode-se fazer uma distinção entre as


obras do pensador Joseph Ratzinger e as do papa
Bento XVI. Como cardeal, Ratzinger tenta escla-
recer questões relacionadas à fé e ao seu impacto
na vida das pessoas e da sociedade. No período, a
obra apontada como uma das mais sig­­nificativas
é Introdução ao Cristianismo: preleções ao sím­bolo
católico, série de conferências ministradas por Rat-
zinger durante um curso de verão em 1967, em Tu-
binga (Alemanha). “Segundo o teólogo Ratzinger
— e, como papa, ele sempre reiterou esse aspecto
—, o Cristianismo não é o encontro com uma ideia
ou uma verdade abstrata ou conceitual, mas é o
encontro com uma pessoa, que confere sentido à
existência”, resume José André de Azevedo, dou-

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


tor em Teologia pela Pontifícia Universidade Ca-
tólica do Paraná.

A partir de 2005, quando assume o pontificado, as


obras de Bento XVI adotam uma postura mais uni-
versal, tentando superar eventuais idiossincrasias
acadêmicas. As três encíclicas, além das cateque-
ses e alguns documentos, como a exortação Ver-
bum Domini, sobre a palavra de Deus na vida e mis-
são da Igreja, são exemplos representativos do
período.

Outra forma de conhecer o pensamento de Bento


XVI é se basear nos livros escritos sobre ele. O papa
já foi retratado em diversas obras — algumas nem
sempre condizentes com a realidade —, mas é o
próprio Ratzinger quem oferece o retrato mais fiel
de sua vida na autobiografia parcial Lembranças da
minha vida, lançada no Brasil em 2006 e que cobre
sua vida até 1977, quando se tornou arcebispo. As
entrevistas ao jornalista Peter Seewald, apresen-
tadas nos livros O Sal da Terra e Luz do Mundo, tam-
bém são uma boa fonte para conhecer um pouco

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


mais da riqueza intelectual e da vida de Joseph Rat-
zinger.

Biblioteca Ratzinger

Introdução ao Cristianismo: Preleções sobre o Sím-


bolo dos Apóstolos (Ed. Loyola)
O livro analisa o problema da fé e do ateísmo, discutindo
a fé em Deus, na Santíssima Trindade e na Igreja Católi-
ca. É definido pela escritora australiana Tracey Rowland,
autora de Ratzinger’s Faith, como “o primeiro best-sel-
ler internacional” de Bento XVI.

Introdução ao Espírito da Liturgia (Paulinas Por-


tugal)
Apresenta a centralidade da ação litúrgica como fonte
da vida eclesial, manifesta nos sacramentos em geral,
principalmente na eucaristia.

Sal da Terra (Imago) e Luz do mundo — O papa, a


Igreja e os sinais dos tempos (Paulinas)
Dois livros-entrevista — o primeiro, ainda antes da elei-
ção de Bento XVI; o segundo, já durante o pontificado
— em que o papa responde a perguntas feitas pelo jor-
nalista alemão Peter Seewald.

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


Lembranças da minha vida (Paulinas)
Autobiografia parcial, que cobre os primeiros 50 anos da
vida de Ratzinger. Recomendada pelo historiador Alex
Catharino como “uma fonte mais confiável do que qual-
quer texto escrito por terceiros” sobre a vida pessoal de
Bento XVI.

Trilogia Jesus de Nazaré (Planeta)


Nos livros da série, Bento XVI conta a vida de Jesus a
partir do Evangelho, desmontando muitas especulações
sobre a figura de Cristo.

Encíclicas
Deus caritas est, Spe salvi e Caritas in veritate (várias edito-
ras), também disponíveis no site do vaticano no endereço
http://bit.ly/enciclicas

Outras obras
• Via-Sacra no Coliseu — Meditações e orações de
Bento XVI (Paulinas)

• Palavras do papa Bento XVI no Brasil (Paulinas)

• Os apóstolos e os primeiros discípulos de Cristo


(Planeta)
• A segunda primavera (Quadrante)

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


• Breve introdução ao catecismo da Igreja Católica
(Santuário)

• Os amigos de Jesus (Thomas Nelson Brasil)

• Natureza e missão da teologia (Vozes)

• Perguntas e respostas (Pensamento)

• Deus Existe? (Planeta)

• Dogma e anúncio (Loyola)

• E o Verbo se fez carne — reflexões sobre o mistério


do Natal (Ecclesiae)

• São Paulo — catequeses paulinas (Ecclesiae)

• Dialética da secularização — sobre razão e religião


(Ideia e Letras)

• Fé, verdade, tolerância (Raimundo Lulio)

• Vocação para a comunhão (Vozes)


• A porta da fé (Paulus)

• No princípio Deus criou o céu e a terra (Principia)


• Os Padres da Igreja I: de Clemente Romano a Agostinho
(Ecclesiae)

• Os Padres da Igreja II — de São Leão Magno a São


Bernardo de Claraval (Ecclesiae)

• Abri as portas a Cristo — Meditações sobre João Paulo


II (Lucerna)

• Os movimentos da Igreja (Principia)

• Paulo — Os seus colaboradores e as suas comunidades


(Paulus)

• Pensamentos espirituais (Lucerna)

• Fé e futuro (Principia)

• A fé em crise? (EPU)

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


Livros sobre Bento XVI
• Joseph Ratzinger — Uma biografia (Quadrante), de
Pablo Blanco

• Meu irmão, o papa (Principia), de Georg Ratzinger

• Chico e Bento: a vida de Bento XVI contada por um


gato (Principia), de Jeanne Perego. Livro infantil
que conta o cotidiano de Bento XVI a partir de seu
gato de estimação

Originalmente publicado na Gazeta do Povo em


28 de fevereiro de 2013

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


Nas encíclicas,
o abandono do
egoísmo
Por Jônatas Dias Lima
Libertar um homem preso em si mesmo e apontar
o amor a Deus e aos demais como único meio de
desenvolver integralmente o que é próprio da hu-
manidade. Esse seria o objetivo de Bento XVI com
as três encíclicas que publicou ao longo do ponti-
ficado. Para os especialistas ouvidos pela Gazeta
do Povo, esse estímulo ao abandono do egoísmo
estaria presente nas três cartas, ainda que com en-
foques diferentes.

De acordo com o padre José Lino Currás Nieto,


histo­­riador e escritor, há uma clara correlação en-
tre as encíclicas Deus caritas est (2005), Spe salvi
(2007) e Caritas in veritate (2009) que remete à
mensagem central do amor nos Evangelhos. “A
ideia de fundo dessas encíclicas é que o homem fe-
chado em si não se desenvolve como deveria e deixa
de ser ele mesmo”, explica.

Para o professor Francisco Bor­­ba, coordenador do


Nú­­cleo de Fé e Cultura da PUC-SP, os três docu-
mentos se articulam com ramos que partem da
primeira encíclica, Deus caritas est, carta que trata
das várias formas de amor, desde o amor erótico
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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


entre homem e mulher até a caridade prática nas
obras sociais da Igreja.

O primeiro desses ramos se refere à cultura. “O


papa enfrenta o problema contemporâneo da in-
capacidade de compreender o que é o amor, e a ne-
cessidade que o ser humano tem de se perceber
amado por Deus”, diz Borba. Essa necessidade te-
ria relação com a esperança cristã, abordada na Spe
salvi, que não deixa de ser uma resposta ao desen-
canto com utopias socialistas e com o mito do pro-
gresso positivista e liberal. Nessa mesma encíclica,
o pontífice adverte que “nenhuma estrutura po-
sitiva do mundo é possível nos lugares onde as al-
mas se brutalizam”. Ao discorrer sobre a relação
com o transcendente e a esperança, ele cita escri-
tos de Platão, Lutero, Kant, Dostoievski e até Marx.

O segundo ramo, diz Bor­­ba, seria o político-social,


no qual o amor é apresentado como fundamento
de toda ação pelo bem comum, criando uma so-
ciedade mais participativa e solidária. Esse aspecto
é mais desenvolvido na terceira encíclica, Caritas
in veritate, que resgata o conteúdo das encíclicas
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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


sociais de outros papas, como a Populorum pro-
gressio (1967), de Paulo VI, e a Sollicitudo rei socia-
lis (1988), de João Paulo II. Nesse documento, Bento
XVI adverte para os riscos de uma caridade que
pode cair no sentimentalismo se não tiver raízes
na verdade, pois nesse caso “o amor torna-se um
invólucro vazio, que se pode encher arbitraria-
mente”. Na última encíclica, o papa também afirma
que a Igreja não pretende se envolver na política
dos Estados, mas esclarece que a missão da Igreja
a serviço da verdade é “irrenunciável”.

“Deus é o fundamento da esperança —


não um deus qualquer, mas aquele Deus
que possui um rosto humano e que nos
amou até ao fim: cada indivíduo e a
humanidade.”

— Trecho da encíclica Spe salvi, de 2007.

Originalmente publicado na Gazeta do Povo em


28 de fevereiro de 2013

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


Relativismo, o
inimigo sutil
Mesmo antes de assumir o pontificado, Joseph

Ratzinger já alertava para o perigo de aderir à noção

de que não existem verdades objetivas

Por Jônatas Dias Lima


Bento XVI incluiu definitivamente nos debates
eclesiais a crítica ao relativismo que domina a cul-
tura ocidental. Poucos temas ganharam tanto des-
taque e apareceram com tanta frequência em dis-
cursos e homilias quanto a negação da existência
de uma verdade objetiva, segundo a definição ofe-
recida pelo próprio papa. Essa posição filosófica
não teria causado grandes preocupações ao pon-
tífice se, contraditoriamente, não viesse sendo im-
posta como uma verdade absoluta, na cultura e na
política, afetando vários aspectos da realidade so-
cial, inclusive a própria fé, afirmam analistas.

Em abril de 2005, na missa que abriu o conclave


da sucessão de João Paulo II, o então cardeal Rat-
zinger já havia dado pistas de qual deveria ser o
maior desafio do futuro papa — tarefa que coube
ao próprio Ratzinger. Naquela ce­­rimônia, ele cha-
mou de “di­­­­­tadura do relativismo” a sistemática
tentativa de calar os que se opõem à tese de que
tudo se reduz a meras opiniões. A expressão se tor-
nou um símbolo de sua luta e passou a ser repro-
duzida.

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


Embora à primeira vista o tema possa parecer dis-
tante de necessidades pastorais mais práticas,
Bento XVI se esforçou para explicar a amplitude
das consequências dessa forma de pensar. “Em
nossa época parece que o relativismo se coloca pa-
radoxalmente como ‘verdade’ que deve guiar o
pensamento, as escolhas, os comportamentos”,
disse o papa em uma de suas audiências gerais, em
agosto de 2010.

Joel Pinhei­­ro da Fonseca, mestre em Filosofia pela


USP, explica que a exigência dessa subjetividade
seria o motivo pelo qual a Igreja é atacada quando
se pronuncia, por exemplo, sobre matrimônio ou
sobre a própria fé em Jesus Cristo. “O relativismo
admite que há opiniões conflitantes, mas nenhuma
delas seria mais verdadeira que outra, e assim todo
mundo estaria preso às suas verdades subjetivas”,
descreve.

Segundo Pinheiro, essa tendência se tornou muito


forte na intelectualidade europeia, migrou para a
política e passou a ser usada como instrumento
para evitar conflitos. No entanto, o que começou
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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


como uma forma de propagar a tolerância passou
a não tolerar aqueles que não aderem ao impera-
tivo de que tudo é relativo.

Efeitos sociais

Para o filósofo e colunista da Gazeta do Povo Car-


los Ramalhete, os efeitos do relativismo não atin-
gem apenas as religiões, mas o próprio valor dado
à vida humana, já que ele também dependeria de
pontos de vista e, assim, não haveria uma digni-
dade objetiva do homem. “Se tudo é forçosamente
subjetivo, eu posso afirmar que você não tem di-
reito à vida. É o caso do aborto, da eutanásia, dos
genocídios”, afirma.

Luiz Felipe Pondé, colunista do jornal Folha de S.


Paulo, acrescenta que os danos causados pelo re-
lativismo à família e à própria cultura ocidental
justificam a ênfase que Bento XVI deu ao tema, ci-
tando o que considera outro ponto frágil do rela-
tivismo. “Só os ocidentais são relativistas. Ne-
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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


nhuma das outras culturas que assu­­­mimos como
tão válidas quanto a nossa leva a sério essa coisa
de relativismo”, diz.

O diálogo entre fé e razão nas


viagens apostólicas

Embora o tema do relativismo tenha se destacado,


estudiosos do pensamento de Bento XVI afirmam
que o assunto está inserido em uma preocupação
ainda mais ampla do pontífice: o diálogo entre fé
e razão. “Para cada citação da ‘ditadura do relati-
vismo’ foram feitas cerca de 80 referências ao tema
da razão”, observa Francisco Borba, coordenador
do Núcleo de Fé e Cultura da PUC-SP.

Nas 26 viagens internacionais que o papa fez, fo-


ram frequentes os encontros com representantes
da intelectualidade, como o que ocorreu na Ale-
manha, em 2006, com estudantes e docentes da
Universidade de Ratisbona, onde foi professor. Em
2009, na França, o papa falou a representantes do
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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


mundo cultural, em Paris. Na ocasião, Bento XVI
criticou tanto o “fanatismo fundamentalista”
quanto o “arbítrio do relativismo”, e fez um apelo
pela racionalidade na correta compreensão da Bí-
blia e do conceito de liberdade. Encontros seme-
lhantes ocorreram na Re­­pública Tcheca, em 2009,
e na Espanha, em 2011.

Para Joel Pinheiro, o destaque dado à racionali-


dade é uma tradição do catolicismo frequente-
mente esquecida, e que o papa tentou resgatar.
“Ele enfatizou a razão como instância de resolu-
ção de conflitos numa sociedade plural, e isso tem
uma origem bem antiga que remonta a Santo To-
más de Aquino”, diz.

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


Bento XVI sobre o relativismo

“O relativismo contemporâneo mortifica a


razão, porque de fato chega a afirmar que
o ser humano nada pode conhecer com
certeza, para além do campo científico
positivo.”

— Audiência geral, em 5 de agosto de 2009.

“Ter uma fé clara, segundo o Credo da


Igreja, muitas vezes é classificado como
fundamentalismo. Enquanto o relativismo,
isto é, deixar-se levar — aqui e além por
qualquer vento de doutrina—, aparece
como a única atitude à altura dos tempos
hodiernos. Vai-se constituindo uma
ditadura do relativismo que nada
reconhece como definitivo e que deixa
como última medida apenas o próprio eu e
as suas vontades.”

A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


— Trecho da homilia da missa de abertura do conclave,
em 18 de abril de 2005.

“Quando se nega a possibilidade para


todos de referir-se a uma verdade
objetiva, o diálogo transforma-se
impossível e a violência, declarada ou
oculta, torna-se a regra dos
relacionamentos humanos.”

— Audiência com os membros da Comissão Teológica


Internacional, em 7 de dezembro de 2012.

Originalmente publicado na Gazeta do Povo em


28 de fevereiro de 2013

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


A RTIG O

O legado
litúrgico do
papa Bento
Por Tracey Rowland
Um dos momentos mais dramáticos do pontifi-
cado de Bento XVI foi a divulgação do motu pro-
prio Summorum pontificum, em 7 de julho de 2007,
que eliminou as barreiras ao uso do missal de João
XXIII, conhecido popularmente como rito triden-
tino.

Em seus escritos anteriores ao pontificado, Bento


observou que os que preferiam o missal de João
XXIII ao de Paulo VI vinham sendo tratados como
párias, e que isso não era justo. Não havia nada te-
ologicamente defeituoso no rito antigo. O missal
de Paulo VI foi promulgado para ir ao encontro das
necessidades pastorais do “homem moderno”,
mas uma parcela significativa de católicos em todo
o mundo ainda preferia a maior solenidade do rito
antigo à maneira “caseira” como o rito novo era
frequentemente celebrado. Bento se compadeceu
desse grupo.

Em seu livro Introdução ao Espírito da Liturgia, Bento


criticou a tendência de muitos padres a interpre-
tar mal o rito novo, como se fosse um chamado à
idiotização da liturgia. Ele comparou esse processo
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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


à adoração ao bezerro de ouro por parte dos he-
breus no Antigo Testamento, e afirmou que a no-
ção de que Deus deveria ser rebaixado ao nível do
povo era nada menos que apostasia.

Ao levantar as sanções ao rito antigo, o papa disse


esperar que os dois ritos fossem “enriquecer-se
mutuamente”. Para ele, a possibilidade de ter as
leituras nas línguas nacionais, trazida pelo rito
novo, é um desenvolvimento positivo, mas Bento
também defende que o Gloria, o Credo, o Sanctus
e o Agnus Dei latinos, bem como o Kyrie grego, de-
vem ser parte do capital cultural de todo católico,
independentemente de nacionalidade.

A busca por um único rito romano legítimo foi um


desenvolvimento ocorrido após a Reforma protes-
tante. Depois do Concílio de Trento, alguns ritos
pré-tridentinos sobreviveram, como o carmelita
e o dominicano. Ratzinger vê como legítima essa
pluralidade. Seu princípio básico é o de que não há
nada errado com a pluralidade de ritos, desde que
cada rito possa ser ligado a um rito com origem
apostólica. O que ele criticou enfaticamente é a
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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


ideia de que um comitê de especialistas ou uma
equipe litúrgica de paróquia possam criar seu pró-
prio rito.

Bento também combateu a tendência de muitos


liturgistas pós-conciliares de rebaixar o caráter de
sacrifício da missa e priorizar a noção de uma re-
feição em comum. Isso era um movimento na di-
reção de uma teologia sacramental protestante, e
Ratzinger se colocou contra isso. Sua exortação
apostólica Sacramentum caritatis lançou várias crí-
ticas contra práticas e ideias que separavam a Úl-
tima Ceia do sacrifício do Calvário. Ele também in-
sistiu que tudo que fosse relativo à Eucaristia fosse
marcado pela beleza.

Bento será lembrado como um grande defensor da


solenidade na liturgia, e um papa para quem os ca-
tólicos não deviam ser ignorantes.

Tracey Rowland é pesquisadora do Instituto João


Paulo II para o Matrimônio e a Família, em Mel-
bourne (Austrália), e autora de Ratzinger’s Faith

Originalmente publicado na Gazeta do Povo em


28 de fevereiro de 2013

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


A RTIG O

Um dilema,
duas respostas
Por James Martin
É rara a pessoa que de livre e espontânea vontade
abra mão de tanto poder. Nos anos finais do pa-
pado de João Paulo II, houve uma intensa especu-
lação de que o mal de Parkinson provocaria sua
aposentadoria, mas ele escolheu continuar. Em
contraste, o papa Bento XVI disse que “as minhas
forças, devido à idade avançada, já não são idôneas
para exercer adequadamente” seu ministério.

Sua renúncia nos lembra que, diante de um dilema,


dois católicos devotos podem tomar decisões di-
vergentes. O discernimento espiritual é sempre
pessoal. Deus fala conosco de uma forma feita sob
medida para nossas circunstâncias, personalida-
des e histórias pessoais. Deus nos encontra lá onde
nós estamos. Se João Paulo era uma estrela, Bento
era um professor erudito. Ele será lembrado pelo
fortalecimento da ortodoxia da Igreja, por encícli-
cas notáveis pela sua profundidade teológica, por
uma recente revisão da tradução inglesa do Mis-
sal Romano, e — apesar de sua longa experiência
na Cúria Romana — por uma série de problemas
internos no Vaticano.

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


Os críticos enfatizarão a supervisão mais rígida das
congregações religiosas femininas nos Estados
Unidos, ou seus comentários controversos sobre
o Islã. Os admiradores lembrarão seus encontros
com vítimas de abusos sexuais, e a ação firme e
disciplinadora contra o reverendo Marcial Maciel
Degollado, um poderoso padre mexicano que abu-
sou de garotos e teve alguns filhos.

Seu grande legado, no entanto, deverá ser uma


obra em três volumes, Jesus de Nazaré, na qual ele
aplicou décadas de estudo e oração à questão mais
importante que um cristão pode perguntar: quem
é Jesus? Ele lembrou os leitores que escrevia ape-
nas na qualidade de teólogo e, de forma mais sim-
ples, como um crente.

Menos conhecidas fora dos círculos católicos, mas


também significativas, são as mensagens do papa
na oração do Angelus, um tipo de meditação que
ele oferecia na Praça de São Pedro, frequentemente
tratando das vidas dos santos.

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


Paradoxalmente, Bento XVI também será muito
lembrado pela forma como deixou o papado. Ao se
tornar o primeiro papa a renunciar desde 1415, ele
demonstrou uma imensa liberdade espiritual, co-
locando o bem da instituição e de 1 bilhão de cató-
licos à frente do poder e do status. Esse papa tre-
mendamente tradicional — que, como prefeito da
Congregação para a Doutrina da Fé, costumava ser
criticado por exercer poder até demais — fez uma
das coisas mais não tradicionais que se poderia
imaginar.

O Evangelho diz que “o Filho do Homem veio não


para ser servido, mas para servir”. Talvez a parte
mais difícil do serviço seja colocar de lado os pró-
prios planos e objetivos; certamente Bento sentiu
que deixou parte do trabalho inacabada. Como
gosta de dizer um velho jesuíta que conheço, “o
Messias existe, e não é você”. Líderes podem apren-
der muito de um homem consciente de que ele não
é indispensável, que ele não é Cristo. Ele é sim-
plesmente Seu vigário, e apenas por algum tempo.

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


James Martin é sacerdote jesuíta e editor da revista ca-
tólica norte-americana America

Tradução: Marcio Antonio Campos

Originalmente publicado na Gazeta do Povo em


28 de fevereiro de 2013

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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


A RTIG O

O insuportável
humanismo de
Bento XVI
Por Francisco Borba Ribeiro Neto
Em 1944, Henri de Lubac, um dos intelectuais que,
juntamente com o jovem Ratzinger, fundou a re-
vista internacional Communio, escreveu O drama
do humanismo ateu. Sua tese era de que o huma-
nismo moderno, perdendo a referência em Deus e
no seu amor, é incapaz de realizar a pessoa, le-
vando à dramática desumanização da sociedade
contemporânea. Além disso, o livro procurava va-
lorizar as críticas que Feuerbach, Marx e Nietzs-
che, entre outros, faziam ao Cristianismo — mos-
trando que muitas delas eram válidas, porém se
referiam a um Cristianismo descaracterizado, que
perdera seu élan vital.

A trajetória do teólogo Rat­­zinger, papa Bento XVI,


pode ser lida como um diálogo entre os fundamen-
tos do Cristianismo e esse humanismo em crise,
que ao longo da modernidade parece ir vencendo
todas as batalhas que luta (direitos humanos, de-
mocracia, igualdade, liberdades individuais etc.),
mas estar perdendo a guerra da construção de uma
humanidade mais feliz. Mas peço atenção: as ba-
ses da postura de Ratzinger não são os “valores da
tradição”, como muitos dizem, mas sim os “fun-
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A vida e obra de Bento XVI (1927—2022)


damentos da tradição”. Ele tem claro que os valo-
res morais e sociais, privados de seu fundamento
original, se tornam normas vazias que mais opri-
mem que valorizam a pessoa; por isso sua batalha
não é pela defesa de valores esclerosados, mas por
uma renovação a partir da crença de que na raiz de
qualquer valor realmente humanizador está o re-
conhecimento do amor de Deus.

Então Bento XVI não foi um tradicionalista? Sem


dúvida não; seu pretenso “moralismo” e “reacio-
narismo” é uma construção midiática, que não se
sustenta em uma análise de seus escritos ou do
conjunto de suas atitudes no papado. Um conser-
vador? Se olharmos para o valor que dá à tradição
da Igreja, sim. Mas quem ler Caritas in veritate, sua
grande encíclica social, encontrará uma obra sin-
tonizada com as demandas sociais da chamada
“ala progressista” da Igreja. Dentro desse universo
de caracterizações esquemáticas, talvez a melhor
para ele seja a de “pós-moderno”.

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As imagens mais frequentes que se tem das mu-
danças pelas quais a Igreja devia passar a partir do
Concílio Vaticano II nasceram dos ideais da mo-
dernidade da metade do século 20, que já enfren-
tava a crise que gerou esse processo ambíguo e
complexo que chamamos pós-modernidade. Bento
XVI é o papa pós-moderno por excelência, que não
procura criar uma Igreja que se molda aos valores
da modernidade, mas que responde à destruição
destes valores — realizada pelo próprio pensa-
mento crítico moderno.

Em oposição aos pensadores ateus estudados por


De Lubac, que construíram a grandeza e o drama
do pensamento moderno, Bento XVI pode ser com-
preendido como um humanista religioso, que acre-
dita que a ligação do ser humano com Deus é o vín-
culo de amor que é a condição necessária para
encontrarmos nossa felicidade e realização. Po-
rém, esse humanismo, nascido de um gesto de
amor gratuito e de uma esperança sem limites, é
quase insuportável para a cultura contemporânea.
Corresponde de tal forma ao desejo mais profundo
de cada um que chegamos a ter medo... Medo de
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nos entregarmos a essa promessa e descobrirmos
depois que se trata de mais uma ilusão.

Quem não quer receber um amor que não pede nada


em troca? Quem não quer ver a si próprio e a todos
os que ama livres da sombra da morte? Quem não
gostaria de saber que todas as vítimas de Auschwitz
encontraram a paz e a justiça, que o mal que se
abateu sobre elas não foi a última palavra? De sa-
ber que o futuro dos jovens mortos no incêndio da
boate de Santa Maria não terminou abruptamente
no horror, mas, pelo contrário, apenas se abriu,
naquela noite fatídica, para a eternidade? O que
uma jovem pobre, carregando dentro de si uma
gravidez indesejada, prefere: poder tirar o filho
que carrega em seu ventre, admitindo a desgraça
e/ou o erro do que lhe aconteceu, ou ter a certeza
de um amor que lhe permitirá ter esse filho e se
realizar na vida, juntamente com essa criança,
transformando a tragédia em esperança? O que
corresponde mais ao desejo do sábio: descobrir
com sua razão que a realidade é uma rede de cau-
sas e efeitos em última análise aleatórios, ou des-

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cobrir em cada fenômeno a beleza de um amor
oculto, mas infinito?

Insuportável esperança, que parece negar a evi-


dência de que nascemos marcados pela desgraça.
Se acreditarmos nela, será muito mais doloroso
voltarmos à desilusão da descrença, voltar a viver
“sentados à sombra da morte”, inseguros em re-
lação a cada afeto, sabendo que nenhum amor é
para sempre! São essa esperança e a experiência
de um amor impensável, mas realizado, que cons-
troem o humanismo cristão proposto por Bento
XVI. Ainda é cedo para uma avaliação adequada de
seu papado, mas é inegável que ele, como poucos,
recolocou o humanismo cristão na agenda cultu-
ral da sociedade contemporânea; que em seu pa-
pado o mistério de Deus se tornou provocação e
escândalo para um mundo fechado em si mesmo.

Francisco Borba Ribeiro Neto é coordenador do Núcleo


de Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP)

Originalmente publicado na Gazeta do Povo em


28 de fevereiro de 2013

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A RTIG O

Transpassados
pela Beleza
Matthew Alderman
Alguns anos atrás, enquanto estudava Arquitetura
em Roma, nosso grupo foi levado para ver o ma-
ravilhoso Êxtase de Santa Teresa, de Bernini. Nele,
o genial escultor barroco apresenta aquele mo-
mento místico em que a grande carmelita foi trans-
passada pela flecha ardente do amor divino. Tam-
bém eu fui alvejado pela profundidade e beleza
daquele trabalho. Agora, minha mente volta àquela
tarde na semiescuridão de Santa Maria della Vit-
toria e à face de mármore leitoso da santa, leve-
mente iluminada, depois que dois amigos chama-
ram minha atenção para uma mesma passagem
nos escritos de Bento XVI.

Em On the way to Jesus Christ, o então cardeal Rat-


zinger descreve a verdade como ser “atingido pela
flecha da beleza que fere o homem: ser tocado pela
realidade, ‘pela presença pessoal do próprio
Cristo’”, citando o teólogo grego Nicolau Cabasi-
las. O homem contemporâneo confunde a beleza
com o glamour superficial. Quando os jornalistas
comentam sobre a “teologia da beleza” do papa,
enfatizam o exterior – os brocados de seda, os
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sapatos vermelhos, as mitras – e a associam a
uma exibição orgulhosa desses itens. Mas o papa
é uma pessoa culta e reservada, um pianista ama-
dor que aprecia Mozart e gosta da companhia de
gatos; a autopromoção pomposa não é de sua ín-
dole.

Para Bento, a visibilidade inerente ao cargo insi-


nua uma realidade mais profunda. Para ele, a ver-
dadeira beleza é algo que vai bem mais fundo, que
penetra o coração humano. Essa beleza transcen-
dente abrange a totalidade da verdade de Jesus
Cristo, a glória e o sofrimento, a luz da ressurrei-
ção e a escuridão do Calvário. Como na visão de
Santa Teresa, há tanto deleite quanto dor no toque
da beleza à medida que ela nos abre para Deus.

Bento XVI também escreveu que “a única defesa


realmente efetiva do Cristianismo se resume em
dois argumentos: os santos que a Igreja produziu
e a arte que floresceu em seu seio”. Em uma era
que perdeu a arte da argumentação filosófica, essa
experiência da beleza no testemunho de sacrifício
da vida cristã, e na beleza física da arte e da arqui-
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tetura nos permite vencer os muros defensivos que
erguemos dentro de nós mesmos contra Deus. O
testemunho de beleza de Bento é, portanto, um ato
evangélico, de pregação e apostolado. A beleza
nunca se encerra em si mesma.

Em um nível mais concreto, o amor do papa pela


arte coloca a beleza em um contexto histórico, pas-
sado e presente. Os elaborados rituais papais e ou-
tros atos que podem parecer arcaicos ao não cató-
lico, e até para muitos católicos, são tentativas de
nos colocar em continuidade com dois milênios de
pintura, escultura e música que buscam nos levar
a Cristo. Eles representam não a autoglorificação,
mas um desejo de união de Bento com seu cargo,
de comunhão com seus predecessores. Ele não quer
que ninguém desvie para o homem Joseph Ratzin-
ger a atenção devida a Cristo. Por isso, em muitas
missas papais, ele coloca no altar um enorme cru-
cifixo: assim, ele e os fiéis podem olhar para o
mesmo Cristo e ser transpassados pelo mesmo raio
de beleza que emana dEle.

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Como Teresa, Bento XVI foi atingido pelo amor e
pela beleza. Sua renúncia nos mostra que seu co-
ração também foi alvejado por muitas outras fle-
chas: tristeza, desunião, o fardo do papado e o peso
da idade. Também há beleza em aceitar esse so-
frimento, e rezemos por ele, agora que terá um
merecido descanso.

Matthew Alderman é arquiteto especialista em


arquitetura sacra, artista, ilustrador e colaborador do
site The New Liturgical Movement

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Expediente

Redação
Marcio Antonio Campos
Jônatas Dias Lima
Jocelaine Santos

Revisão
Angelica Favretto
Jones Rossi

Projeto Gráfico
Guilherme Storck

Foto de capa
Alessia Pierdomenico/Shutterstock

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