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12, 2020
Coordenação
Maria Zilda da Cunha | CNPQ/ Universidade de São Paulo, Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Brasil
Conselho Editorial
Lourdes Guimarães | Universidade de São Paulo, Brasil
Maria Auxiliadora Fontana Baseio | Universidade de Santo Amaro, Brasil
Maria Cristina Xavier de Oliveira | Universidade de São Paulo, Brasil
Maria dos Prazeres Santos Mendes | Universidade de São Paulo, Brasil
Maria Zilda da Cunha | CNPQ/ Universidade de São Paulo, Brasil
Ricardo Iannace | FATEC/ Universidade de São Paulo, Brasil
Rita de Cássia Dionísio | Universidade de Montes Claros, Brasil.
Comissão Científica
Angela Balça | Universidade de Évora, Portugal
Diógenes Buenos Aires | Universidade Estadual do Piauí, Brasil
Eliane Debus | Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil
José Jorge Letria | Associação dos Escritores Portugueses, Portugal
José Nicolau Gregorin Filho | Universidade de São Paulo, Brasil
Pedro Serra | Universidade de Salamanca, Espanha
Rosangela Sarteschi | Universidade de São Paulo, Brasil
Sérgio Paulo Guimarães Sousa | Universidade do Minho, Portugal
Ricardo Iannace | FATEC/ Universidade de São Paulo, Brasil.
Rita de Cássia Dionísio | Universidade de Montes Claros, MG, Brasil.
Comissão de Publicação
Cristiano Camilo Lopes | Universidade Presbiteriana Mackenzie, Brasil
Cristina Casagrande de Figueiredo Semmelmann | Universidade de São Paulo,
Brasil
Lourdes Guimarães | Universidade de São Paulo, Brasil
Maria Cristina Xavier de Oliveira | Universidade de São Paulo, Brasil
Nathália Xavier Thomaz | CAPES/ Universidade de São Paulo, Brasil
Regina Célia Ruiz | Universidade de São Paulo, Brasil
Sandra Trabucco Valenzuela | Universidade Anhembi Morumbi, Brasil
Edição de Arte
Bruno de Oliveira Romão | https://www.instagram.com/ilustra.bruno/
Criação do Logotipo
Silvana Mattievich
Ilustração da Capa
Jéssica Ribeiro Bombonato | Universidade de São Paulo, Brasil
Capa
Bruno de Oliveira Romão | https://www.instagram.com/ilustra.bruno/
Tradutores
Cristina Casagrande de Figueiredo Semmelmann | Universidade de
São Paulo, Brasil
Nathália Xavier Thomaz | Universidade de São Paulo, Brasil
Oscar Nestarez | Universidade de São Paulo, Brasil
Paulo César Ribeiro Filho | CAPES/ Universidade de São Paulo, Brasil
Rafael Bonavina Ribeiro | Universidade de São Paulo, Brasil
Regina Célia Ruiz | Universidade de São Paulo, Brasil
Pareceristas da Décima Segunda Edição
Adriana Falcato Almeida Araldo | Universidade de São Paulo, Brasil
Célia Maria Domingues da Rocha Reis | Universidade Federal do Mato Grosso,
Brasil
Dayse Barbosa | Universidade de São Paulo
Eduardo Boheme Kumamoto | Universidade de Dublin, Irlanda
Ellen Maria Martins de Vasconcellos | Universidade de São Paulo, Brasil
Fernanda Correa | Universidade de São Paulo, Brasil
Ligia Regina Maximo Cavalari Menna | Universidade Paulista, Brasil
Maria Auxiliadora Fontana Baseio | Universidade de Santo Amaro, Brasil
Maria Laura Pozzobon Spengler | Universidade Federal de Santa Catarina,
Brasil
Nathália Xavier Thomaz | Universidade de São Paulo, Brasil
Oscar Nestarez | Universidade de São Paulo, Brasil
Paulo César Ribeiro Filho | Universidade de São Paulo, Brasil
Regina Célia Ruiz | Universidade de São Paulo, Brasil
Ricardo Iannace | FATEC/Universidade de São Paulo, Brasil
ISSN: 2316-9826
SUMÁRIO
Editorial 9
Maria Auxiliadora Baseio, Maria Zilda da Cunha,
Nathália Xavier Thomaz, Paulo César Ribeiro Filho
Entrevista
Uma vida dedicada ao estudo de excelência do conto
de fadas, do livro ilustrado e da literatura infantil -
Entrevista com a Profa. Dra. Bettina Kümmerling-Meibauer.....................15
André Luiz Ming Garcia
Artigos
As narrativas longas, o retorno para casa e o prazer literário...................71
Ana Leticia Adami
Caperucita Roja:
a Chapeuzinho Vermelho na poesia de Gabriela Mistral.......................... 223
Sandra Trabucco Valenzuela
Resenhas
A revisitação dos contos de fadas escritos por mulheres:
a identidade obscurecida no imaginário dos leitores desde o século XVII.. 246
Gabriela Silva
Literatura infantil em renovação............................................................... 254
Maurício Silva
Ensaios
As diferenças entre a mídia manuscrita e a impressa: formas dos (proto-)
contos de fadas Liombruno de Cirino d’Ancona e Lionbruno de Vindalino
da Spira, dos anos de 1470.......................................................................... 259
Ruth Bottigheimer
Tradução
O paradoxo de Charles Perrault: como contos de fadas aristocráticos
se tornaram sinônimo de conservação folclórica, por Lydie Jean........... 294
Paulo César Ribeiro Filho
Borges considera que romance não é narrativa, porque é demasiado alheio às formas
orais, ou seja, perdeu os rastros de um interlocutor presente, a possibilitar o subentendido e a
elipse e, portanto, a rapidez e a concisão dos relatos breves e dos contos orais.
Ricardo Piglia
fundadora da área de Literatura Infantil e Juvenil da Universidade de São Paulo, Nelly No-
vaes Coelho3 (1922-2017), publicou um artigo no qual discorre sobre as linhas do pensamento
pós-moderno e seus reflexos na Cultura, bem como sobre o lugar que o novo homem ocupa
dos últimos séculos, que acabaram por abalar as certezas absolutas sobre as quais a Ciência
materialista se alicerçava, uma vez que as novas ideias colocam em xeque os sistemas de pen-
samento que davam ancoragem ao mundo social, a pesquisadora avança com um olhar curio-
so e crítico para o universo das novas tecnologias e linguagens, para a invasão das imagens
e para as mutações que ocorreram no campo do literário. Por um lado, a autora coloca sob
mira o desafio que o homem contemporâneo enfrenta por perder parâmetros de certeza e de
estar novamente sob a indagação acerca de “quem é” e “para onde vai”. Por outro, dotada de
profunda sensibilidade estética, Coelho evoca para o nosso tempo, em face das grandes des-
2 Disponível em https://www.revistas.usp.br/literartes/article/view/47173/50904.
3 Autora da obra O conto de fadas: símbolos, mitos e arquétipos, publicado em 2003 pela Editora DCL.
cobertas e desafios impostos com o desenvolvimento da inteligência artificial, o fato de nos
Nesta 12ª edição, voltamos a mirar o universo do Maravilhoso, pela via do Conto de
Fadas. Assunto que, pela perspectiva de nossa mestra Nelly, coloca sob a consideração a ne-
cessidade de se rever concepções sobre os mitos, as lendas, as fábulas, os contos de fadas como
mero “entretenimento infantil”; eles precisam ser redescobertos como autênticas fontes de
conhecimento do homem e de seu lugar no mundo (2008). Desse modo, convirá lembrar do
estranho fato de, apesar da inaudita revolução tecnológica e das dimensões antropológicas que
assume, como diz Santaella (2010), os Contos de Fadas continuarem a viver tão plenamente. É
possível haver algum mistério que permeia as narrativas ancestrais, a ponto de permanecerem
resistentes aos tempos, apesar das fortes e constantes ebulições que sacodem a aventura humana.
Convirá reter que, se é inevitável revisitar a tradição com o olhar da contemporaneida-
de, notadamente, serão indispensáveis lentes que permitam perscrutar aspectos, entre os quais
linguagem, cabe reforçar o fato de que, se as tecnologias são essenciais nestes tempos, o que
nos importa, no entanto, é mirar as tecnologias de linguagem. Isso significa, por um lado,
lembrar da primeira tecnologia que se instalou em nosso corpo – o aparelho fonador –, que
constituíam-se em um jogo de forças entre a voz e a memória, com uma busca de esquemas
narrativos que dariam forma ao contado – fórmulas de narração – que permitiriam a monta-
Desse modo, a arte de narrar está intrinsicamente vinculada às nossas atividades ar-
outro. Estaria também relacionada às primeiras tentativas de leitura dos sinais que o mundo
E assim, poderia ser concebida como a: “arte da percepção errada e da distorção”, como diz
Piglia (2017, p.103), porque, se o relato segue um plano incompreensível, ao final, faz emer-
gir no horizonte a visão de uma realidade desconhecida e a apreensão de que há “um sentido
secreto que estava cifrado e como que ausente na sucessão clara dos fatos.” (2017, p. 103).
Ao fim e ao cabo, essa confusão estabelecida entre fatos incertos e “palavras-cegas decidem a
pegadas que encerram o segredo do futuro. Se alguém se colocar à disposição para ouvir
o relato, de algum modo, poderá perceber que, naquela história, há ressonâncias de sua vida
(de sua participação na história da humanidade) e que, de algum modo, ela define seu desti-
no. Essa fatalidade que se engendrou na tecnologia da fala baseia-se, ao fim e ao cabo, na
secreta aspiração de que uma história não tenha fim. Carrega a “utopia de uma ordem fora do
Das narrativas ancestrais, dessa mídia em que se constituiu o nosso corpo, ao salto
para a hipermídia e suportes que a engendram, o Conto de Fadas é narrativa derivada dessa
arte divinatória, que se modula ao tempo, às culturas e sociedades, mas acompanha, testemu-
nha e enovela a humanidade na sua (a)ventura imaginária e simbólica. Passando pela Galáxia
de Gutemberg (prensa mecânica), pela Revolução Industrial (foto, livro, jornal), pela Revo-
fazendo emergir uma nova linguagem – a hipermídia), essas histórias continuam sendo tecidas
e reencenadas com fios de nossas percepções, de nossas paixões, tramadas com nossa própria
vida, pelos sinais que conseguimos apreender e com os quais enfrentamos o caráter inexorável
na qual, como humanos, imprimíamos nossos gestos, é narrando que atravessamos a fronteira
incerta que sabemos existir em nosso futuro, como num sonho – modo de nos projetarmos –,
Este dossiê, reúne artigos, resenhas, ensaios e entrevistas produzidos por investigadores
que perscrutam o universo das Artes, da Literatura Infantil e Juvenil, do ensino de Literatura
e da inextrincável relação que as narrativas ficcionais, mesmo engendradas nos mais novos e
diversos suportes, mantêm entre si, sob o manto do maravilhoso. Os artigos aqui reunidos
trazem a lume um corpus variado de textos a serem examinados, todos vigilantes à conexão
com o universo feérico, das construções imaginárias, da mitologia, dos Contos de Fadas ou que
de Gênero ganharem a visibilidade de nossa época. Sob as lentes da teoria literária, da litera-
tura comparada, dos estudos do imaginário, ou sob o enfoque das traduções intersemióticas,
que abarcam a transposição do verbal para outros sistemas sígnicos, o leitor será conduzido
si numa intensa e complexa rede, que as conecta no percorrer de sua movência na história.
Precedem esses estudos, na seção de abertura, entrevistas concedidas por três notó-
rias especialistas, cada uma sob a luz de seu campo de atuação, visando debater os contos de
fadas ao abarcar alguns de seus muitos aspectos. A primeira entrevistada, Profa. Dra. Bettina
primordial, o livro ilustrado, entre outros temas de grande interesse para o desenvolvimento
da pesquisa em literatura para infância. Regina Célia Ruiz entrevistou a artista visual, escri-
tora, jornalista, professora, pesquisadora, curadora e crítica de arte Katia Canton, que com-
partilhou detalhes sobre a sua formação artística e sobre a sua atuação na pesquisa em contos
de fadas. Ruth Bottigheimer, uma das maiores referências mundiais na pesquisa em contos
de fadas, respondeu às perguntas de Paulo César Ribeiro Filho sobre temas como a história
dos contos de fadas e os contos de autoria feminina, além de registrar seu prognóstico para o
A seção de artigos conta com relevantes pesquisas que conversam diretamente com
o tema de nosso segundo dossiê dedicado ao maravilhoso feérico. Em “As narrativas longas,
o retorno para casa e o prazer literário”, Ana Leticia Adami nos convida a revisitar três dos
maiores clássicos mundiais da literatura de fantasia (Odisseia, O Senhor dos Anéis e A História
Sem Fim), a fim de averiguar o simbolismo do movimento heroico de retorno ao lar, espaço
Ponte, Ismael Arruda Nazario da Silva e Jailma Pereira Martins analisam dois poemas que
a literatura do autor inglês: “Do conto de fadas ao épico: a mudança no tom narrativo em O
Hobbit de J.R.R. Tolkien”, por Fabian Quevedo da Rocha, que, em língua inglesa, contempla
tanto a obra ficcional quando a obra ensaística de Tolkien ao trazer o ensaio “On Fairy-Sto-
The Chronicles of Narnia, by C. S. Lewis”, escrito por Francisco Wellington Borges Gomes e
Isabella Nojosa Ribeiro, revelando uma pesquisa que analisa uma das personagens femininas
tos de fadas”, de Samira dos Santos Ramos, que revisita teorias de diferença sexual e estudos
trabalho “A influência dos contos de fadas na literatura juvenil brasileira”. O pesquisador lo-
caliza as reverberações do gênero na literatura nacional; para tanto, lança mão de categorias
de Sandra Trabucco Valenzuela, que convida seus leitores a redescobrirem a obra poética da
autora chilena.
Já a formação de leitores literários na escola foi o tema escolhido por Andréa Scopel
Piol e Poliana Bernabé Leonardeli, pesquisadoras que levaram o conto de fadas a campo e
investigaram o potencial do gênero como corpus primordial para projetos de leitura destina-
Dois preciosos ensaios também figuram neste nosso segundo volume dedicado aos
contos de fadas: Ruth Bottigheimer apresenta uma análise pormenorizada sobre a relação
entre conteúdo e suporte literário em “As diferenças entre a mídia manuscrita e a impressa:
tual, a história do livro e a história social da literatura maravilhosa. Em “Um pouco além do
espelho de Bela”, Susana Ventura tece importantes elucubrações teóricas e históricas acerca
de uma série de tópicos suscitados pela leitura crítica e analítica do clássico A Bela e a Fera de
para os pesquisadores do conto de fadas: Gabriela Silva analisa Na Companhia de Bela: contos
de fadas por autoras dos séculos XVII e XVIII, de Susana Ventura e Cassia Leslie (Florear Livros,
2019), enquanto Maurício Silva reflete sobre Literatura infantil brasileira: uma outra nova histó-
ria, das professoras e pesquisadoras Marisa Lajolo e Regina Zilberman (PUCPRESS, 2017).
tornaram sinônimo de conservação folclórica”, de Lydie Jean, traduzido do inglês por Paulo
César Ribeiro Filho, e “Conto e mito”, de Eleazar Meletínski, traduzido do russo por Rafael
Bonavina Ribeiro.
Esse conjunto de textos convida para uma renovação do repertório analítico que en-
volve a apreensão dos contos de fadas e sua movência em variadas formas de expressão – em
Boa leitura!
1 Doutor em Letras (Língua e Literatura Alemã) pela Universidade de São Paulo, onde atualmente realiza
pós-doutoramento e atua como professor colaborador. Agradecimentos a Lígia Menna e Cristina Casagrande
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2. Sua tese de doutorado foi sobre contos de fadas artísticos. Mas
hoje a Sra. desenvolveu muita experiência em livros ilustrados. Como
foi esse processo?
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Você mesmo pode discutir sobre isso com excelência. Deve-se enfatizar,
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mas foram revisados a partir da 2ª edição para um público de leitura infan-
til. Os chamados contos de fadas artísticos se comportam da mesma forma:
existem muitos para os leitores adultos, mas também contos de fadas para
crianças. Na Alemanha, aqui estão os contos de Theodor Storm (“The little
Häwelmann”, “The Regentrude”), os contos proletários para crianças nas
décadas de 1920 e 1930 (de Edwin Hoernle, Hermynia zur Mühlen, Bruno
Schönlank, etc.). Portanto, você deve examinar com cuidado quem eram os
leitores pretendidos. Independentemente disso, os contos de fadas na literatura
infantil também desempenham um papel na medida em que são fornecidas
referências intertextuais aos contos de fadas e o livro ilustrado de contos de
fadas está desfrutando de crescente popularidade.
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Literartes, n. 12 | 2020 | Entrevista – MEIBAUER
Kümmerling-Meibauer & Anja Müller (Org.). 2017. Canon Change and Canon Cons-
titution in Children’s Literature. New York: Routledge.
Nina Goga & Kümmerling-Meibauer (Org.). 2017. Maps and Mapping in Children’s
Literature. Amsterdam: John Benjamins.
Elina Druker & Kümmerling-Meibauer (Org.). 2015. Children’s Literature and the
Avant-Garde. Amsterdam: John Benjamins. Edited Book Award 2017 der Children’s
Literature Association; Edited Book Award 2017 der International Research Society
for Children’s Literature (IRSCL)
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Christian Exner & Kümmerling-Meibauer (Org.). 2011. Von Wilden Kerlen und
Wilden Hühnern. Perspektiven des modernen Kinderfilms. Marburg: Schüren.
Teresa Colomer, Kümmerling-Meibauer & Cecilia Silva-Díaz (Org.). 2010. New Di-
rections in Picturebook Research. New York: Routledge.
Svenja Blume, Kümmerling-Meibauer & Angelika Nix (Org.). 2009. Astrid Lindgren.
Werk und Wirkung. Frankfurt: Peter Lang.
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Contos de fadas:
um diálogo pelas vias da Arte
Entrevista com Katia Canton
Katia Canton é artista visual, escritora, jornalista, professora, curadora e crítica de ar-
tes. Estudou arquitetura, dança e formou-se jornalista pela ECA–USP, em São Paulo.
Também estudou literatura e civilização francesas no curso de estudos superiores dado
pela Aliança Francesa juntamente com a Universidade de Nancy II. Em 1984, transfe-
riu-se para Paris, com uma bolsa de estudos de dança moderna no estúdio Peter Goss.
Viveu em Nova York por oito anos, onde trabalhou como repórter para vários
jornais e revistas, realizou Mestrado em Performance Studies, pela Tisch School of the
Arts, New York University, com o título Dança e Performance Pós-Moderno (Kinematic
and The New Performance), e Doutorado em Artes Interdisciplinares pela Faculdade de
Artes Visuais e Educação, da New York University, com a tese The Fairy Tale revisited —
an interdisciplinary approach to the Arts. Sua livre-docência, em Teoria e Crítica de Artes,
pela ECA-USP, Autorretrato, Espelho de Artista, revela as potências da arte na educação.
A pesquisa acadêmica de Katia Canton é interdisciplinar, relaciona as artes e os
contos de fadas de várias épocas e culturas do mundo. Trabalhou um ano e meio como
bolsista no MoMA, de Nova York, criando projetos de arte e narrativa no Departa-
mento de Educação. De volta ao Brasil, ingressou como docente na Universidade de
São Paulo, sendo professora associada e curadora do Museu de Arte Contemporânea
(onde foi vice-diretora) durante 28 anos. Atualmente, é docente do programa de Pós-
-graduação Interunidades em Estética e História da Arte.
Seu trabalho artístico é multimídia, incluindo desenho, pintura, fotografia,
objetos e, conceitualmente, relaciona-se a questões sobre sonhos, desejos e narrativas.
Tem realizado exposições em museus, galerias e instituições culturais no Brasil e no
exterior, desde 2008.
Como autora, além de escrever livros sobre arte, criou mais de 50 livros ilustra-
dos sobre contos de fadas para o público infantil e juvenil, sendo várias vezes premiada
no Brasil e no exterior. Entre elas, recebeu, por três vezes, o prêmio Jabuti e outras
premiações da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.2
Katia Canton nos concedeu esta entrevista, por e-mail, em 28 de setembro
2 Parte da biografia de Katia Canton foi retirada de https://katiacanton.com.br/bio/. Acesso em: 18 set. 2020.
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de 2020, nos permitindo conhecer melhor seus trabalhos, projetos e, sobretudo, sua
pesquisa e encantamento pelos contos de fadas.
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e a Universidade de Nancy II. Ali ganhei uma bolsa para fazer dança e estudar
artes cênicas no Studio Peter Goss, em Paris, em 1984. Escrevi muito nesse
período. Daí retornei, terminei a faculdade e fui para Nova York. Também
tive bolsa durante toda a formação acadêmica, o mestrado e o doutorado na
Universidade de Nova York. Performance Studies era uma modalidade nova,
que combinava as artes cênicas com antropologia e sociologia. No momento
de escolher um tema para a pesquisa da dissertação, minha tia Cecília me veio
imediatamente à mente. Escolhi trabalhar com os contos de fadas. Queria
entender como escritores e artistas contemporâneos tratavam o tema e modi-
ficavam seus sentidos. Acho que queria me entender também!
Durante o doutorado, a mesma pesquisa se ampliou. Estudei coreó-
grafas e artistas contemporâneas, como Maguy Marin, Pina Bausch e o grupo
feminino Kinematic, mas também as origens dos contos, seus aspectos de ora-
lidade e comunicação, sua implicação na construção cultural de determinadas
sociedades, sobretudo no que concerne à educação da mulher e das crianças.
Continuo apaixonada pelo tema e, cada vez mais, me aprofundo na produ-
ção contemporânea em várias mídias, seja na literatura, nas artes visuais, na
performance, na poesia, no cinema e até na publicidade. Vejo as formas de
representação dos contos de fadas como índices culturais importantes para
falar sobre quem somos e como nos vemos.
O ser humano é, por princípio, um animal contador de histórias. Há um
aspecto universal que sustenta a existência e permanência das histórias no
decorrer da existência da humanidade e também um aspecto mutável, um
jeito singular de recontar ou reescrever uma mesma história.
2. Você realiza uma importante pesquisa sobre o papel da mulher nos
contos de fadas. É diretora artística do Museu Internacional da Mulher
(MIMA), em Lisboa, o primeiro museu internacional dedicado à arte
contemporânea, ao artesanato e a movimentos sociais de mulheres. Em
novembro de 2019, você inaugurou a primeira exposição desse museu:
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4. Outra questão que nos chama a atenção quando estudamos o percur-
so dos contos de fadas é a censura. Essas narrativas eram, originalmente,
direcionadas para o público adulto e sofreram muitas adaptações para
que pudessem ser inseridas no universo infantil e juvenil. Atualmente,
existem movimentos que se opõem aos contos de fadas, pois defendem
que essas histórias ratificam o estereótipo da mulher submissa, contra-
riando a liberdade e autonomia feminina. Gostaria que você falasse um
pouco sobre as transformações sofridas pelos contos e sobre esse mo-
mento crítico que censura esse gênero até os dias de hoje.
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Literartes, n. 12 | 2020 | Entrevista – CANTON
meninas deveriam ser doces e suaves, como a Cinderela, que caminha e até
dança com um sapato de cristal sem rachá-lo; deveriam ter paciência, como
é o caso de “A Bela Adormecida”, que dorme por 100 anos, aguardando seu
príncipe; deveriam ser obedientes, ao contrário de Chapeuzinho Vermelho,
que tomou o caminho errado e foi engolida pelo Lobo.
Sabemos que, até esse momento histórico, os contos não eram pensa-
dos para crianças. Porque nem mesmo se pensava na singularidade da criança.
5. Ainda pensando nas novas versões de contos de fadas, muitos têm
sido reescritos e adaptados para as artes visuais, para o teatro, cinema
e musicais. Qual o seu olhar para essas adaptações?
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realidade. Precisa ser curada. Acho que todos sabem o quanto a pandemia
fez aumentar a violência contra a mulher. A disparidade entre os gêneros
ainda é imensa.
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8. O que você pode nos contar sobre as suas próximas publicações ou
exposições? Há algo já sendo preparado na linha de contos de fadas?
Acho que sou filha de Cinderela. Faz parte da minha geração ques-
tionar o mito da mocinha que espera a chegada de um príncipe para salvá-la.
No início da época de faculdade li O Complexo de Cinderela, livro escrito em
1981 por uma autora chamada Collette Dowling, que falava do medo e a in-
segurança da mulher em relação à sua própria independência. Acho que essa
leitura foi impactante nos meus questionamentos sobre o papel da mulher
nas histórias. Cinderela é, provavelmente, o conto de fadas mais popular de
toda a história, com mais de 490 versões já catalogadas e estudadas. Há po-
sicionamentos do feminino que são muito diversos no enredo das narrativas
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Sobre a natureza
dos contos de fadas
Entrevista com Ruth Bottigheimer
Juvenil — Universidade de São Paulo (USP). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
A 12ª edição da Revista Literartes, segundo número dedicado a reflexões artísticas, teó-
ricas e críticas acerca do maravilhoso feérico em seus múltiplos suportes e mídias, tem
o prazer de entrevistar uma das maiores referências mundiais em termos de pesquisa
sobre o conto de fadas: Ruth Bottigheimer, docente junto ao Departamento de Inglês
da Universidade Pública de Nova York em Stony Brook.
Ruth dedicou grande parte de seus estudos universitários a áreas como Língua
e Literatura Germânica, História Medieval, História da Ilustração e reescrituras
de narrativas bíblicas. Estudou no Wellesley College, na University of Munich,
na University of California at Berkeley e na University College, em Londres. Ao
longo de mais de quarenta anos de magistério, Ruth Bottigheimer ministrou aulas
nas Universidades de Stony Brook e de Princeton, atuando como professora vi-
sitante em universidades na Inglaterra, Alemanha, Áustria e Portugal. É membro
da Sociedade Internacional de Pesquisa em Narrativas Folclóricas e da Associação
de Literatura Infantil, entre outras. Foi pesquisadora visitante (visiting fellow) na
Magdalen College, em Oxford, e é pesquisadora vitalícia (life fellow) junto à Clare
Hall, em Cambridge.
Entre suas principais obras, destacam-se: Grimms’ Bad Girls and Bold Boys:
The Moral and Social Vision of the Tales (“As Meninas Más e os Garotos Durões de
Grimm: A Visão Moral e Social dos Contos”, Yale University Press, 1987), Fairy
Tales and Society: Illusion, Allusion and Paradigm (“Contos de Fadas e Sociedade:
Ilusão, Alusão e Paradigma”, University of Pennsylvania Press, 1986), Fairy Go-
dfather: Straparola, Venice, and the Fairy Tale Tradition (“O Padrinho das Fadas:
Straparola, Veneza e a Tradição dos Contos de Fadas”, University of Pennsylvania
Press, 2002), Fairy Tales: A New History (“Contos de Fadas: Uma Nova História”,
State University of New York Press, 2009), Fairy Tales Framed: Early Forewords,
Afterwords, and Critical Words (“Contos de Fadas em Moldura: Prefácios, Posfácios
e Notas Críticas”, State University of New York Press, 2012) e Magic Tales and
Fairy Tale Magic from Ancient Egypt to the Italian Renaissance (“Contos de Magia e
a Magia dos Contos de Fadas do Antigo Egito à Renascença Italiana”, Palgrave
Macmillan, 2014).
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2 Agradecemos à Susana Ventura que, sempre em diálogo com o entrevistador, inspirou e colaborou com
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Sim, você está certo sobre isso, mas houve um passo intermediário.
Desde a infância, logo no primeiro conjunto de mapas do mundo que recebi
aos seis ou sete anos de idade, eu comecei a traçar jornadas, mas, como crian-
ça, é claro, eu não poderia realizá-las. Quando me tornei aluna na Wellesley
College, o programa de intercâmbios Junior Year Abroad me levou para Mu-
nique, pois eu estava aprendendo alemão. Anos depois, na pós-graduação, eu
realmente fui me deparar com os contos de fadas quando o meu supervisor
sugeriu que eu fizesse uma comunicação sobre as mulheres nos contos de
fadas dos Grimm. Primeiro eu li as mais de duzentas histórias dos Kinder-
und Hausmärchen (“Contos Infantis e do Lar”), do começo ao fim. Então li
uma segunda vez, dessa vez tomando notas, o que se tornou um esboço de
pesquisa. Entretanto, quando me voltei para o aporte teórico, não encontrei
nada referente ao que eu havia acabado de encontrar: Wilhelm Grimm havia
criado regras consistentes de gênero, as quais se encontravam mais drastica-
mente evidenciadas pela regularidade da associação dos homens ao fogo e das
mulheres à água. Aquela comunicação se converteu no meu primeiro artigo
acadêmico, The Transformed Queen (“A Rainha Transformada”), que demons-
trava, enfim, a grande importância dos gêneros nos Kinder- und Hausmärchen.
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Literartes, n. 12 | 2020 | Entrevista – BOTTIGHEIMER
pois Madame d’Aulnoy publicou sua primeira ficção da terra das fadas 3, A
Ilha da Felicidade, alguns anos antes de Perrault ter começado a se aventurar
pelos contos de magia em meados da década de 1690. Por outro lado, nem os
Grimm nem ninguém sabia muita coisa a respeito da história dos contos de
fadas e de suas publicações no século XIX, época em que os Grimm estavam
escrevendo. Por conseguinte, os irmãos assumiram que as Histórias ou Contos
dos Tempos Passados, livro escrito por Perrault em 1697, serviram de fonte para
os Contos de Fadas de Madame d’Aulnoy, dado que os contos de Perrault foram
publicados meses antes dos de Aulnoy.
Raramente, em alguns casos há certas coincidências em termos de
enredos e personagens entre os contos de Perrault e os de Aulnoy, mas não
o suficiente para considerar Aulnoy uma imitadora de Perrault. Ademais,
historiadores do livro como Roger Chartier têm delineado e clarificado os
primeiros conceitos modernos de autoria: naquele período, novas abordagens
de uma trama já conhecida eram tão valorizadas quanto a invenção de uma
trama inédita. Essa ideia de autoria viria a mudar fundamentalmente quando
a lei de direitos autorais (copyright) foi introduzida no século XIX.
Outra distinção fundamental no que se refere à Madame d’Aulnoy e
às contistas dos anos finais do século XVII e início do XVIII era o fato de
elas estarem escrevendo um gênero muito diferente do de Perrault. Muitos
de seus contos eram ficções da terra das fadas (fairyland fictions), descenden-
tes das ficções medievais celtas. Suas tramas se passam em dois mundos: um
é habitado por seres mortais, enquanto o outro é uma terra mágica habitada
por fadas e outros personagens feéricos, cujos relacionamentos e conflitos
uns com os outros podem afetar potencialmente os mortais.
As ficções da terra das fadas são tipicamente muito mais longas que os
3 “Fairyland fiction” é o termo utilizado por Bottigheimer para se referir ao gênero cultivado por Marie-Ca-
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contos de fadas, seus enredos são mais complexos e sua linguagem e gramática
são mais elaboradas. Ficções da terra das fadas são produções literárias. Do
outro lado estão os contos de fadas “mais simples” de Perrault, que foram
cuidadosamente elaborados para simular e recobrar a ideia de infância para
seus leitores adultos.
Straparola, Basile e Perrault não produziram ficções da terra das fadas
e seus personagens feéricos tinham pouca ou nenhuma história própria, se-
cundária, que se passava em sua terra natal. As principais ações de suas fadas
eram respostas aos pedidos de seres mortais ao invés de reações à interação
com outras fadas.
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5 Literalmente a “Biblioteca Azul de Todas as Nações”. “Biblioteca azul” (Blue library, em inglês, e Bibliothèque
bleue, em francês) é o termo utilizado para um certo tipo de publicações baratas de histórias da cultura popular
que poderiam ser adquiridas por muitos públicos, dos mais pobres aos mais ricos. É o caso dos chapbooks, das
folhas volantes, dos pliegos de cordel e da própria literatura de cordel enquanto suporte literário.
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e Basile na Itália, pelo conto A Gata Branca da Madame d’Aulnoy e até mes-
mo nas Mil e Uma Noites, um assunto no qual estou trabalhando atualmente.
A literatura popular que fundamenta a criação de contos de fadas e
ficções da terra das fadas inclui muito mais fontes do que se imagina. Strapa-
rola reformulou os contos de fadas modernos de ascensão e de restauração a
partir de material narrativo pré-existente composto por lendas, romances e
coleções de histórias. Basile recorreu a livros escolares de mitologia ovidiana.
Perrault se voltou a narrativas medievais já conhecidas, chapbooks do início
da Modernidade e, presumidamente, contos de manuscritos pré-publicados
de autoras como Bernard e L’Héritier. As evidências estão todas aí. Basta
somente averiguá-las.
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The 12th edition of Literartes Journal, the second issue dedicated to artistic,
theoretical and critical reflections on the fairy tale in its multiple supports and
media, is pleased to interview one of the greatest world references in this field of
research: Ruth Bottigheimer, professor at the Department of Cultural Analysis and
Theory at the New York Public University at Stony Brook.
Ruth devoted much of her university study to Germanic Language and
Literature, Medieval History, History of Illustration, and rewritten Bible narratives.
She studied at Wellesley College, the University of Munich, the University of
California at Berkeley, California, and University College, London. Over more
than forty years of researching, Ruth Bottigheimer taught at the Universities
Stony Brook and Princeton, with visiting professorships at universities in England,
Germany, Austria, and Portugal. She is a member of the International Society for
Folk Narrative Research and the Children’s Literature Association, among others,
and was a visiting fellow at Magdalen College, Oxford, and is a Life Fellow at Clare
Hall, Cambridge.
Among her main works, stands out: Grimms’ Bad Girls and Bold Boys: The
Moral and Social Vision of the Tales (Yale University Press, 1987), Fairy Tales and
Society: Illusion, Allusion and Paradigm (University of Pennsylvania Press, 1986), Fairy
6 Doutorando em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, área de Literatura Infantil e Juvenil
— Universidade de São Paulo (USP). Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
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Godfather: Straparola, Venice, and the Fairy Tale Tradition (University of Pennsylvania
Press, 2002), Fairy Tales: A New History (State University of New York Press, 2009),
Fairy Tales Framed: Early Forewords, Afterwords, and Critical Words (State University
of New York Press, 2012) e Magic Tales and Fairy Tale Magic from Ancient Egypt to the
Italian Renaissance (Palgrave Macmillan, 2014).
In this interview, we explored themes such as the history of the fairy tale,
the model sources of the genre and the fairy tales of female authorship, inviting our
readers to reflect on the most recent discoveries made in this field of studies.
1. First of all, we would like to thank you immensely for your
willingness to grant us this interview. The publication of your
considerations here in Revista Literartes is of great value for the
development of studies in Portuguese language about the fairy tale.
Tell us a little about the presence of fairy tales in your life before the
academy. How did you come into contact with this genre?
I’m delighted to join your special issue on fairy tales and the media.
My interest in fairy tales came after my study of medieval history and
German literature. Fairy tales were just a small part of my childhood.
Instead, I spent those years paging through the books in my parents’ small
library or roaming the close-by tidal marshes with friends or by myself.
By the time I read the Perrault, Grimm, and Andersen fairy tale classics,
I was in graduate school. Their plots came from an unfamiliar mental
world, which led me to think of fairy tales as glimpses into vastly different
experiences and expectations.
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You ask about the centrality of German language and literature to the
beginning of my study of fairy tales. You’re quite right about that, but there’s
an intermediate step. From childhood, from the first set of world maps I was
given at six or seven, I began plotting journeys, but as a child, of course, I
couldn’t make them happen. When I became a student at Wellesley College,
it was Junior Year Abroad that took me abroad to Munich, because I was
learning German. Years later, in graduate school, I seriously encountered
fairy tales when my advisor suggested I do a seminar paper on women in
the Grimm tales. First, I read through the 200+ tales in the Kinder- und
Hausmärchen (“Children’s and Household Tales”) from beginning to end.
Then I did it again, this time taking notes, which became an outline.
However, when I turned to the relevant secondary literature, none of it
addressed what I had just found, namely, that Wilhelm Grimm had created
consistent gender roles, most dramatically by regularly associating men
with fire and women with water. That seminar paper turned into my first
scholarly article, “The Transformed Queen”, which showed how important
gender would turn out to be in the Kinder- und Hausmärchen.
3. Still on the Grimm, in the paratext of the 1812 edition of Children’s
and Household Tales, the brothers refer to Aulnoy (Marie-Catherine
Le Jumel de Barneville, madame d’Aulnoy) and Murat (Henriette-Julie
de Castelnau, madame de Murat) as “inferior imitators” of Charles
Perrault. What are your thoughts on this statement?
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knew very much about the history of fairy tales and their publication in the
nineteenth century, when the Grimms were writing. And so the Grimms
assumed that Perrault’s 1697 Histoires, ou Contes du temps passé, were the
source for Mme d’Aulnoy’s Contes des fées, because his tales had been
published a few months earlier than hers.
In rare cases there is some plot or character overlap between
Perrault and d’Aulnoy tales, but there is not enough to call d’Aulnoy an
imitator (Nachahmer) of Perrault. In addition, as historians of the book
like Roger Chartier have delineated and clarified early modern concepts of
authorship: in that period an author’s novel treatment of an existing plot,
was valued as highly as the invention of a new plot. This understanding
of authorship would change fundamentally when copyright law was
introduced in the nineteenth century.
Another fundamental difference between Mme d’Aulnoy and
conteuses at the end of the seventeenth and beginning of the eighteenth
centuries was that they were often writing in a genre very different from
Perrault. Many of their tales were fairyland fictions, which are literary
descendants of medieval Celtic fictions. Their plots play out in two worlds:
one is inhabited by mortal beings; the other is a magical fairyland with
fairy characters whose relationships and conflicts with one another can
powerfully affect mortals.
Fairyland fictions are typically much longer than fairy tales, their
plots are more complex plots, their language and grammar more elaborate.
Fairyland fictions are literary productions. But so are Perrault’s “simpler”
fairy tales, which he carefully crafted to simulate a recaptured childhood
for their adult readers.
Straparola, Basile, and Perrault did not produce fairyland fictions,
and their fairy figures had little or no fairyland backstory. Their fairies’
principal actions were responses to mortal beings rather than interactions
with other fairies.
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Poor peole could afford to buys such cheap productions and stich them
together themselves, while well-off buyers could have the same sheets bound
and even illustrated for themselves and their children. Thus, both rich and
poor readers read the same tales. In Germany in the 1790s, for instance, the
Blaue Bibliothek aller Nationen translated tales from the Cabinet de Fées into
German and brought them to readers, among whom were the Grimms’ early
informants! All of that goes to show that Straparola’s “literary” fairy tales
spread into literary fairy tales and fairyland fictions, like those written by
Mme d’Aulnoy, into some “folk” fairy tales like those composed by Charles
Perrault, and into orally told fairy tales, like those collected all over Europe
in the nineteenth and twentieth centuries.
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with individual Perrauldian fairy tales clearly shows how he, like other
early modern writers, put a new fairy tale twist on earlier writings. This
creative literary process can also be shown to be at work in tales composed
by Straparola and Basile in Italy and by Mme d’Aulnoy’s “White Cat” and
further afield in “The Arabian Nights,” a subject I’m now working on.
The popular literature that undergirds the creation of fairy tales
and fairyland fictions includes far more than expected. Straparola re-
shaped modern rise and restoration fairy tales out of pre-existing narrative
material in legends, romances, and story collections. Basile turned to
schoolbooks with Ovidian mythology. Perrault relied on known medieval
narratives, early modern chapbooks, and presumably contemporaneous
prepublication manuscript tale by Bernard or L’Héritier. The evidence is
all there. You only need to look for it.
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The fairy tales that are often associated with Celtic peoples
generally belong to the category of fairyland fictions. With
interrelationships among fairies, among humans, and between humans and
fairies, fairyland fiction plots generally have a larger number of emotionally
charged interrelationships. In this genre, humans and fairies move between
fairyland and the mortal world and in which fairies themselves have
emotional lives that impinge on the human beings they encounter. In
English literature Oberon and Titania’s humiliating effects on a hapless
human exemplify the problems of fairy-human encounters. In French
fairyland fictions, these encounters can bring danger, even death, to human
characters, as in Mme d’Aulnoy’s L’Île de la Félicité.
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7. Female fairy tales have spent many years in the valley of the
unknown. Except for “Beauty and the Beast”, no other can be
considered canonical until today. In your opinion, what would be the
causes of this historical disinterest?
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8. As a conclusion, for you, as a researcher, what are the paths that
have not yet been sufficiently explored and that you would like to see
addressed by the next generations regarding fairy literature?
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came from book history, which opened up the field in fundamental ways. It
continues to do so as people re-visit sources for folk knowledge of tales and
of folk memory of tale content. This area of study offers enormous potential
for revisionist scholarship about relationships between printed stories (what
I call stories’ public memory) and folk re-fashionings of those stories. What
plot elements get remembered? What gets actively forgotten, i.e. pushed
aside? How, and how extensively, are plots and/or characters re-formulated?
There is material here for social historians, psychologists, and literary
theorists, as well as for folk narrativists.
The history of authorship, reading, publishing, book marketing,
book use and re-use has affected fewer literary scholars than did feminism.
In fairy tale studies, book history has underlain concepts of book
commodification, fairy tale re-use and revision, as well as the effect of
individual media on forming new versions of old fairy tales.
The implications of book history are still unfolding, and I look
forward to seeing how folklorists will eventually join literary historians in
incorporating the fascinating evidence of levels of historical literacy among
people previously considered beyond the reach of the written or
the printed word.
New, unpredictable areas of research will emerge in response to
lines of inquiry that will inevitably develop in the future. New approaches
have repeatedly raised new questions for fairy tale studies, and this will
continue in the future. Personally, I can’t wait to see what comes next.
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Artigos
As narrativas longas, o retorno
para casa e o prazer literário
ABSTRACT: This article is the result of two conferences on literature held at the São
Paulo State Secretariat of Finance and Planning, as a way to disseminate and encourage the
participation of civil servants in the Reading Circle of the State of São Paulo. As a result
of discussions on selected works that make up the common and contemporary imagination
about so-called “epic” narratives, we sought to undertake an analysis based on the return
to home and the search for oneself. Three very popular works were chosen, in which this
theme was present: Homer’s Odyssey, Tolkien’s Lord of the Rings and Michael Ende’s The
Neverending Story. Based on discussions about the meaning of “return home”, expressed
through long-term narratives, we tried to analyze how the symbolism of “home” as a space
for “healing” can be associated with literature itself and the act of reading, understood as
sources of self-knowledge and pleasure.
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Introdução
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uma abordagem que estimulasse a formação de novos leitores, buscando nessas obras
um ponto em comum. Algo que contribuísse, desde os antigos aos tempos de hoje,
para o aperfeiçoamento do humano e que permanecesse, como outrora e desde sem-
pre, sendo uma fonte inestimável de prazer.
Partindo do pressuposto de que, quando falamos hoje no linguajar comum,
de uma “odisseia” ou de uma “epopeia”, em geral pensamos imediatamente em um
empreendimento difícil, ao mesmo tempo longo, penoso e grandioso. Quando se
trata da literatura e do cinema, quase que irremediavelmente pensamos em guerras,
numa luta do bem contra o mal, refletida nos atos heroicos ou trágicos de mocinhos
e vilões. Nada disso é por acaso. Tal era, com efeito, um aspecto importante do epos
grego: por meio da narrativa bélica, os gregos visavam fixar na memória a execução
de feitos grandiosos, levados a cabo por homens valorosos; ou o seu contrário, fixar
o exemplo de guerreiros e até mesmo de reis cuja ruína foi resultado de suas más es-
colhas e fortuna. Dizendo de outro modo, quando falamos de epopeias, referimo-nos
a vícios e virtudes. Era a dimensão portentosa dessas características tão humanas que
os gregos quiseram retratar por meio de suas narrativas épicas. Tão tocante foi o seu
modo de narrar que, até hoje, vemos traços dessas características nos romances mo-
dernos e, muito comumente, são apelidadas de “épicas” pelo senso comum às narra-
tivas contemporâneas que trazem alguns desses elementos – como atos de heroísmo
sobre-humano, a presença de criaturas fantásticas e a sensação de grande distância
temporal, para dar alguns exemplos.
Contudo, sem querermos adentrar nas designações de gênero literário, há um
aspecto em particular sobre o qual nos interessa tratar aqui, e que nasce com o epos
grego. É aquele que diz respeito à sua extensão, isto é, ao aspecto da narrativa longa.
Tal como lemos na Odisseia de Homero, que retrata a longa jornada de retorno à casa
de Odisseus, essa característica acompanhou muito do que o senso comum, em senti-
do figurado, cunhou de uma “jornada ou leitura épica”. O mesmo é dito das jornadas
de Frodo, no Senhor dos Anéis, ou de Bastian, na História Sem Fim. Tal a extensão da
jornada desses personagens, tal é a extensão das obras que as contêm. A leitura desse
tipo de narrativa, dado em geral à extensão de seus volumes, requer do leitor uma
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disposição de tempo e atenção por vezes muito maiores do que o ritmo da vida e do
trabalho nos dias de hoje lhe permitem despender, ainda que certos títulos logrem de
grande apelo popular; e, não raras vezes, esses livros acabam abandonados nas estantes
por seus leitores muito antes de atingirem o seu fim.
Tendo em mente essas dificuldades, encaramos o desafio de tecer algumas
considerações sobre os prazeres e vantagens que o leitor pode extrair desse tipo de
narrativa, bem como sobre aspectos da humana condição que se encontram incuti-
dos num gesto tão íntimo e silencioso como a leitura — mais especificamente, desse
épico grego e desses dois romances citados. Desta forma, pretendemos contribuir
para fomentar a geração de novos leitores, seguindo o exemplo de círculos de leitura
que foram criados em meio a instituições e empresas nos últimos anos. Refiro-me
aqui estritamente a dois, dos quais partem os resultados desta abordagem: o já citado
Círculo de Leitura da Secretaria de Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo
(desde 2019), organizado por Marcelo Lemos Correia (servidor) e demais servidores,
e o Laboratório de Humanidades da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp),
organizado pelos docentes Dante Gallian e Rafael Ruiz (desde 2003). Como escreveu
o professor Dante no seu “Prólogo ao leitor extremamente ocupado” (GALLIAN,
2017, p. 23), sensível ao problema atual do excesso de pressa e da azáfama que nos
adoece e desumaniza, um remédio possível são “as histórias”, “efetivamente ocorridas
ou reinventadas” (GALLIAN, 2017, p. 24), as quais, evocando as palavras de Michael
Ende, se materializam nas “fontes da vida”, “maravilhoso remédio” que fortalece a
alma e restaura a sua saúde (GALLIAN, 2017, p. 25).
A Odisseia de Homero não é apenas um dos primeiros relatos épicos de que temos
registro, mas é reconhecida também como uma das obras fundadoras da cultura euro-
peia (RUIZ, 2019, p. 2). Lembremos também que é na Itália do Renascimento, “berço
da civilização” moderna, que a releitura dos clássicos antigos, entre eles a Ilíada e a
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Odisseia, passa a ser o método pelo qual os homens da Renascença buscaram recriar o
seu próprio modelo de homem: de um homem novo, de um novo tempo, o homem
modernus – palavra latina que utilizamos até hoje para nos referir a nós mesmos, os
modernos (GARIN, 1991; 1996; KRISTELLER, 1995).
Um desses homens do Renascimento, natural de Palermo, de nome Antonio
Beccadelli (1394–1471), tentou separar os textos poéticos em duas modalidades: uma,
referente aos poemas “longos e sérios”; outra, referente aos poemas “curtos” e mais
jocosos (BECCADELLI, 2010, p. 122). É certo que ele se referia, entre os longos, aos
poemas épicos de Homero e Virgílio (a Ilíada, a Odisseia e a Eneida) e, entre os curtos,
a poetas como Marcial, Plauto e Catulo, que ele muito estimava.3 Ocorria com Bec-
cadelli — como ele descreve em uma carta de abril de 1426 (BECCADELLI, 2010,
p. 113–125) — o mesmo que se passa com muitos de nós hoje: a de não termos tempo
para narrativas “muito longas”, pois a agitação da vida da cidade e, principalmente, os
afazeres cotidianos, no trabalho ou em casa, ocupam todo o nosso tempo, e quando
sobra algum, é mais adequado às narrativas “curtas”.
Contudo, antes que o exemplo de Beccadelli, grande erudito do Renascimen-
to, sirva de consolo a nós, leitores de hoje, ressaltemos que o humanista se referia ao
ato de escrever poemas, não ao de ler. Ele foi, de fato, um dos maiores escritores de
poemas “curtos” satíricos da Renascença — os chamados epigramas.4 Quanto ao ato
de ler, Beccadelli era certamente um leitor atento dos dois tipos de poemas, os curtos
e os longos — quanto a nós, leitores modernos, não somos capazes, muitas vezes, de
ler nem os curtos!
O comentário de Antonio Beccadelli nos chama a atenção por outro motivo: a
diferenciação dos gêneros de poesia por critério de extensão — critério já presente na
3 É sabido, pela leitura da obra O Hermafrodita (1425), que Antonio Beccadelli era grande apreciador
de poetas como Plauto, Marcial e Catulo, além de Ovídio e Horácio (ver nota do editor, in BECCA-
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A casa mutante
O pequeno Bastian, herói de A História sem Fim, depois de atravessar o Mar da Névoa,
achava-se finalmente na outra “margem”, no meio de um “infindável roseiral”, por
entre o qual avistou um “caminho tortuoso” (ENDE, 1999, p. 355). Ele enveredou
por esse caminho e ali encontrou, no seu fim, uma casa: era a Casa Mutante. Nessa
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casa habitava uma dama “tão vermelha e redonda” que se parecia com uma “maçã”.
Ela usava um chapéu e um vestido enfeitados de flores e frutos e seu nome era Dama
Aiuola. Ela lhe explicou que a casa não tinha esse nome só porque estava sempre mu-
dando, e sim porque também “modificava as pessoas que nela habitavam”. “E isso era
muito importante para o menino que, até ali, sempre quisera ser uma pessoa diferente,
mas sem se modificar” (ENDE, 1999, p. 355).
No decorrer de sua longa jornada pelo Reino de Fantasia, Bastian sempre de-
sejou ter muitos dons e qualidades, como ser mais alto e belo, mais forte e destemido,
mais inteligente e sábio, e até mais rico e poderoso, mas nunca ser alguém melhor —
quer dizer, como todos nós, na maioria das vezes! E, no entanto, não podemos nos
lamentar disso, pois, em nossa humana condição, desejar “ser melhor” é logicamente
impossível. O que isso quer dizer? “Ser melhor”, como ocorreu com Bastian, não é algo
que possamos simplesmente desejar.
Do ponto de vista gramatical, só podemos desejar algo ou alguma coisa, ou seja,
um objeto, pois “desejar” é verbo transitivo. Assim, por exemplo, se desejamos ser mais
belos, nos interessará a beleza, e sabemos o que ela significa — ainda que possamos
divergir, conforme ao gosto, acerca de seus atributos; também podemos desejar ser
mais ricos e, consequentemente, desejar a riqueza, e sabemos, dadas as diferenças de
proporção, o que isso significa; e o mesmo podemos dizer ainda em relação à força e
à inteligência, as quais sabemos o que significam e o que devemos fazer ou procurar
para adquiri-las. Contudo, quando se trata de desejar “ser melhor”, não sabemos o
que isso significa. Quê melhor, ou, melhor em relação a quê? Falta algo que complete o
sentido da sentença. Para cada bem que desejamos, se a beleza, a riqueza, a força ou a
inteligência, sabemos que espécies de coisas ou ações devemos procurar para adquirir
esses bens — afinal, ninguém pensa em ir à academia de ginástica para aprender uma
nova língua; ou deixar o salão de cabeleireiro com músculos mais definidos. Diferente
de tais bens, para ser uma pessoa melhor não sabemos com clareza o que temos de
fazer ou o que procurar. Até podemos desejar ser uma pessoa melhor, ou, dizendo
mais adequadamente, nos aperfeiçoar, e isso é bom (em geral, é o que queremos).
Contudo, desejar ser alguém melhor é um desejo que nos parece vazio, pois não con-
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A casa de elrond
Frodo, o mais famoso guardião do Anel de Poder de que trata a saga do Senhor dos
Anéis, teve também a sorte de encontrar uma casa muito parecida com a Casa Mu-
tante. Depois de atravessar com extrema pressa o vau do rio Bruinen, trazendo no
ombro um ferimento mortal, sobre o dorso de um cavalo (o mais veloz do senhor elfo
Glorfindel), fugindo de espectros cobertos por mantos negros, “Frodo sentiu que
estava caindo […]. Não escutou nem viu mais nada. Ao acordar, se viu deitado numa
cama” (TOLKIEN, 2001, p. 228–231) — assim Tolkien encerra o primeiro livro da
sua Saga do Anel e inicia um novo. Frodo se encontrava já a salvo na Casa de Elrond,
em Valfenda. Na descrição de Bilbo, tio de Frodo, essa era
“uma casa perfeita, para quem gosta de comer ou dormir, de contar
histórias ou de cantar, ou apenas de se sentar e pensar nas coisas, ou
ainda para quem gosta de uma mistura agradável de tudo isso”. A
simples estadia ali representava uma cura para o cansaço, o medo ou
a tristeza. (TOLKIEN, 2001, p. 237)
Destacamos o efeito terapêutico que a casa exercia sobre seus hóspedes, pois,
como diz o narrador, “a simples estadia ali representava uma cura para o cansaço, o
medo ou a tristeza”. Ela oferecia um remédio tanto para o mal físico, restaurado quer
pelo repouso quer pela alimentação adequada, como para o mal espiritual. Contra
esse mal, a casa oferecia agradável oportunidade de ouvir e contar histórias e canções,
ao mesmo tempo que nos deixava tranquilos para “pensar nas coisas”. Como acres-
centa Bilbo, em passagem mais a frente: “O tempo parece não passar aqui: apenas é”
(TOLKIEN, 2001, p. 244).
Bilbo Bolseiro, principal herói da primeira narrativa de sucesso de Tolkien, de
título O Hobbit, publicado em 1937, não era apenas um amante de aventuras, como
podemos acompanhar no livro que narra a sua odisseia, mas também amava ouvir e
compor seus próprios poemas e histórias. Já idoso, livre do fardo do Anel, ali em Val-
fenda, ele encontrou um lugar mais do que adequado para se dedicar inteiramente a
essa prazerosa arte. Pois os elfos, como ele explica ao sobrinho, detêm um enorme
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apetite “pela música, pela poesia e pelas histórias. Parece que gostam dessas coisas
tanto quanto de comida, ou mais. Ainda vão continuar por um longo tempo” (TOL-
KIEN, 2001, p. 250).
A literatura, por meio de suas longas histórias, imita a jornada de uma ou mais
vidas humanas; para usar um termo que os gregos ajudaram a popularizar, ela narra
uma odisseia — a Odisseia de Homero narra a história do herói Odisseus e, por isso,
dizemos que ela conta a sua história, ou, se quiser, a sua biografia (RUIZ, 2019, p.
4). Na Odisseia, o que Ulisses deseja é voltar para Ítaca, sua verdadeira casa, porque
é lá que pode ser quem verdadeiramente é: o filho de Laertes, Rei da ilha, esposo de
Penélope e pai de Telêmaco.
O vocábulo grego epos, que significa “palavra”, “canto” ou “poema narrativo
longo”, derivou nos termos épico ou epopeia que empregamos até hoje para falar de
todas as outras odisseias que se seguiram àquela de Odisseus, como a de Bilbo, a de
Frodo ou a de Bastian. Tolkien era professor universitário de Língua e Literatura, e
sabia muito bem o sentido que o epos assumia na cultura grega: o sentido do aperfei-
çoamento do humano. Quem já teve o prazer de ler O Senhor dos Anéis sabe o quanto
seus livros estão recheados de poesias cantadas por seus próprios personagens, algumas
delas pelo próprio Bilbo, tradutor dos livros de registros élficos — que costumamos
chamar de “anais” — durante o tempo em que passou em Valfenda. Essas poesias e
histórias nos remetem a acontecimentos ocorridos num tempo muito anterior ao dos
eventos ali narrados, os quais, inclusive, podemos ler nos demais livros de Tolkien,
como O Hobbit (já citado aqui) e O Silmarillion (publicado postumamente, em 1977,
pelo filho do autor).
Podemos então nos perguntar que legado tão importante seria esse que os anti-
gos e os medievais nos deixaram com o seu gosto por “poemas longos”, os épicos, que
Tolkien, com sabedoria e elegância, retratou no caráter do seu povo élfico e pelo qual
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o hobbit Bilbo Bolseiro ficou tão fascinado, do mesmo modo que os nossos modernos
homens do Renascimento ficaram em relação aos antigos?
Podemos supor que uma das grandes contribuições do mundo grego é a ideia
acerca de nossa condição, de que o humano não é apenas um “ser”, mas um “vir a ser”
(RUIZ, 2019, p. 6). Quando nos referimos ao “ser humano”, temos que ter em conta
que esta palavra “ser” não tem sentido fixo nem definido. O próprio do humano é um
“ir sendo”, na medida em que ele vai vivendo, tendo desejos, passando de um desejo a
outro, fazendo escolhas, amando ou odiando. Diferente de uma pedra, de uma planta
ou de um cavalo, para o homem, se não houver história, não há crescimento ou mu-
dança, nem para melhor nem para pior — o que não é bom. Para o homem não é bom
que não haja mudança. Foi com um horror desse tipo que Bastian se deparou em suas
andanças por Fantasia: a Cidade dos Antigos Imperadores.
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Bastian tentou puxar conversa, mas foi inútil. De repente, uma “voz zombeteira”
lhe disse que não valia a pena perguntar, pois essa gente não era capaz de responder.
Por isso eram chamados “Os Que Nada Dizem” (ENDE, 1999, p. 335). Bastian vol-
tou-se na direção da voz e viu um macaquinho cinzento usando um barrete de doutor.
Ele então lhe explicou que ali estavam todos os que um dia haviam querido coroar-
-se imperadores de Fantasia e, tendo gastado todos os seus desejos com esse intuito,
haviam esgotado todas as suas recordações. “Quem não tem passado”, completou o
macaco, “não tem futuro”. E mais adiante:
Por isso não envelhecem. Olhe-os! Custa acreditar que muitos deles
estão aqui há mil anos ou mais. Mas permanecem como são. Para
eles nada pode mudar, porque eles próprios já não podem mudar.”
(ENDE, 1999, p. 337)
Bastian tentou ler alguma coisa que os jogadores formavam com os dados, mas
era impossível, pois nada fazia sentido. “Sim”, gargalhou o macaco, e continuou:
— […] Mas quando se joga esse jogo sem parar durante muito tempo,
durante anos, algumas vezes se formam palavras por acaso. Podem não
ser muito significativas, mas são palavras.… Porém, se se continua a
jogar este jogo durante centenas, milhares ou centenas de milhares
de anos, é provável que alguma vez, por acaso, se obtenha um poema.
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Bastian estava aterrorizado, pois não queria ficar retido naquela cidade junto
daquelas pessoas. Nesse momento, ele se deu conta de que não queria permanecer
para sempre do jeito que estava, ele precisava e queria mudar. Mas como e em qual
direção? Ele já havia gastado quase todas as suas recordações. E não se lembrava mais
de quem era e de como poderia voltar para seu verdadeiro lar. Como disse Rafael Ruiz,
em artigo sobre a Odisseia de Homero e a Condição Humana, “todos precisamos de uma
odisseia para sermos quem gostaríamos de ser, quem verdadeiramente deveríamos ser
e poderíamos ser” (RUIZ, 2019, p. 7). Como vimos na Odisseia, Ulisses desejava voltar
para Ítaca, sua verdadeira casa, porque só lá podia ser quem verdadeiramente é: pai de
Telêmaco, filho de Laertes. Agora, voltar para casa, era tudo o que também desejava
Bastian Baltasar Bux: “um garoto baixo, gordo, de uns dez ou onze anos”, “de cabelo
castanho-escuro” (ENDE, 1999, p. 1), filho de um dentista e que adorava “imaginar
histórias, inventar nomes e palavras” (ENDE, 1999, p. 5).
Na odisseia de retorno a casa, de descoberta do verdadeiro ser, muitas vezes nos perde-
mos: como Ulisses na ilha de Calipso, ou Bastian, na Cidade dos Antigos Imperadores.
O caminho de volta para casa é único para cada homem, ainda que o destino possa
ser, por vezes, o mesmo ou muito parecido. Na compreensão dos gregos, a odisseia
representa o processo de aprendizado de cada homem para se tornar verdadeiramente
humano. Esse é o sentido da educação para os gregos, a paideia. E também é o tema da
obra mais famosa do filólogo alemão, Werner Jaeger, de 1936. Ali, o estudioso defendia
que educar ou formar o homem, segundo os gregos, era “um processo de construção
consciente”, tal como o artesão age sobre a argila, a fim de encontrar a “melhor for-
ma”, a forma boa e verdadeira (JAEGER, s/d, p. 12 apud RUIZ, 2019, p. 2).
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Por ora, só uma coisa era evidente: tinha de sair daquela cidade de
loucos! Para nunca mais voltar! (ENDE, 1999, p. 341)
Quantas vezes já não nos vimos ou nos sentimos numa situação semelhante à
de Bastian? Parar e refletir sobre a situação, reconhecer e distinguir os erros, aceitar
com humildade as dificuldades que deles derivam, tomar fôlego e seguir adiante, com
calma, numa outra direção foi o que Bastian teve de fazer para encontrar a saída da-
quela cidade e de sua salvação. E sabemos como isso é difícil! Não bastou a Bastian
viver uma série de vicissitudes que o levassem a um lugar desagradável, como a Cidade
dos Antigos Imperadores, para que ele percebesse o que fazer. Foi-lhe necessário que
parasse por certo tempo e refletisse sobre os caminhos tomados até então para que
os seus próximos passos fossem dados com mais consciência, ou do contrário, o seu
rumo de volta para casa estaria perdido para sempre. Esse é o drama da vida. Bastian
percebeu que há coisas que queremos, mas que não podemos ainda desejar porque não
temos nem sequer consciência delas, muitos menos de como alcançá-las.
O futuro de Bastian era tão incerto quanto o seu próximo passo. “Mas, para
dizer a verdade”, disse-lhe o macaquinho cinzento, “acho que não vai conseguir […]
Acordou um pouco tarde, e o caminho de regresso é difícil” (ENDE, 1999, p. 340).
Naquela noite, começou para Bastian uma longa e solitária pere-
grinação… Queria procurar o caminho de regresso ao mundo dos
homens… mas não sabia como nem por onde começar. Haveria em
algum lugar uma porta, uma passagem, uma fronteira que o levasse
até lá? Tinha de desejar esse regresso, sabia-o. Mas não lhe restavam
forças para isso. Sentia-se como um mergulhador que procura no
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Era a primeira vez, desde o seu ingresso no Reino de Fantasia, que Bastian de-
sejava se modificar, quer dizer, queria ser alguém melhor, encontrar o seu verdadeiro
eu e regressar para casa. E, para isso, precisava de auxílio contra o cansaço e o medo de
se perder definitivamente e contra a tristeza que o consumia. Bastian precisava, quiçá,
de um lugar, como dizia Bilbo Bolseiro sobre Valfenda, que lhe oferecesse um remédio
contra todos esses males, pois sua jornada havia sido longa, e muito mais havia ainda
pela frente. Um lugar assim ele encontrou nos braços ternos e maternais da Dama
Aiuola. Em sua casa, ele podia permanecer em tranquilidade, apenas “comer e dormir”,
passear pelo meio das rosas, observar as abelhas que zumbiam e escu-
tar os pássaros que cantavam… Por vezes deitava-se debaixo de uma
roseira, aspirava o doce perfume das rosas, piscava os olhos para o
sol e deixava que o tempo corresse como um riozinho, sem pensar
em nada. Assim passaram-se os dias, e os dias transformaram-se em
semanas. Bastian nem dava por isso. (ENDE, 1999, p. 360)
Em suma, o lugar era perfeito para “sentar e pensar nas coisas”, como dizia
Bilbo. Tão profunda, lenta e silenciosa era a transformação que acometia o mais ín-
timo do garotinho, que ele “nem dava por isso” (ENDE, 1999, p. 360) ou sentia o
tempo passar. Um lugar como esse não parece ser simples e fácil de encontrar. Com
efeito, se pensarmos concretamente, nos dias de hoje, um lugar como tal parece-se
mais com esses hotéis de luxo de que lemos em revistas, impossíveis de pagar. Mas, se
nos lembrarmos das palavras de Tolkien, citadas de início, em que nos relatava sobre
o prazer que obtinha com as longas narrativas, podemos ser levados a pensar que esse
lugar pode estar mais perto e ao nosso alcance do que imaginávamos. Esse lugar é a
literatura, por meio da qual emoções profundas são despertadas sem nem nos darmos
conta, e pela qual podemos, na companhia de personagens e seus dramas, refletir, com
calma, sobre os nossos próprios dilemas e caminhos a seguir. Boa leitura!
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Referências
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10 ed. Trad. Roberto Raposo. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2007.
ENDE, Michael. A História Sem Fim. 7 ed. Trad. M. do C. Cary. São Paulo: Martins
Fontes, 1999.
GARIN, Eugenio. Ciência e vida civil no Renascimento italiano. Trad. C. Prada. São
Paulo: Unesp, 1996.
JAEGER, Werner. Paideia. A formação do homem grego. São Paulo: Herder, s/d.
Kristeller, Paul. O. Tradição clássica e pensamento do renascimento. Trad. Artur Morão.
Lisboa: Edições 70, 1995.
RUIZ, Rafael. A Odisseia de Homero e a condição humana. In: Intellèctus, São Paulo, 18
(n.1): 1-25, out. 2019.
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TOLKIEN, J.R.R. O Senhor dos Anéis. Trad. L.M.R. Esteves e A. Pisetta. São Paulo:
Martins Fontes, 2001. 3 vols.
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A influência dos contos de fadas
na literatura juvenil brasileira
Pato Branco.
RESUMO: Este artigo analisa obras da literatura juvenil brasileira que se apropriam e
ressignificam elementos de contos de fadas. Distinguimos três categorias de análise: a)
Obras que apresentam menção e presença intertextual de contos de fadas; b) Narrativas
que adaptam e recontam o conto para público juvenil e c) recriação e ressignificação
total. Analisamos uma obra juvenil de cada uma das categorias a partir dos conceitos de
adaptação e intertextualidade, respectivamente dos estudos de Hutcheon (2011) e Kristeva
(1974), além de estudos sobre Contos de fadas e literatura juvenil, a partir de autores como
Colomer (2017), Novaes Coelho (2002), Tolkien (2017), entre outros. Concluímos que há
na literatura juvenil brasileira uma tendência de revisitar motivos e temas vindos de contos
de fadas. Entretanto, temos obras juvenis que apenas ecoam discursividades das narrativas
infantis adaptadas a um novo público, e outras que apresentam novos olhares críticos sobre
esses conteúdos.
ABSTRACT: This article analyzes books from Brazilian youth literature that appropriate
and give a new meaning to elements of fairy tales. We distinguished three categories
of analysis: a) Books that present mention and intertextual presence of fairy tales; b)
Narratives that adapt and retell the story for a young audience and c) total recreation
and resignification. We analyzed a youth work from each of the categories based on the
concepts of adaptation and intertextuality, respectively from the studies of Hutcheon
(2011) and Kristeva (1974), in addition to studies on Fairy Tales and youth literature, from
authors such as Colomer (2017), Novaes Coelho (2002), Tolkien (2017), among others. We
conclude that there is a tendency in Brazilian youth literature to revisit motives and themes
from fairy tales. However, we have youth works that only echo discursivities of children’s
narratives adapted to a new audience, and others that present new critical perspectives on
these contents.
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Introdução
Contos de fadas são uma presença marcante e constitutiva da Literatura infantil. Des-
sa forma, adolescentes de um modo geral, provavelmente, cresceram lendo ou pelo
menos conhecendo contos de fadas. Assim, ao lerem histórias juvenis que adaptam ou
reelaboram elementos ou personagens de contos de fadas são levados a uma atitude
de engajamento em relação a obra lida. Eles irão reconhecer os elementos retratados
e recriados de contos de fadas e podem atribuir novos significados a eles. Tal processo
pode motivar o que é definido por Linda Hutcheon (2011) como prazer intertextual,
ou seja, quando o leitor reconhece marcas conhecidas de outros textos e sente fruição
nesse processo. A partir dessa premissa, podemos reconhecer como natural a presença
de elementos intertextuais que adaptam, mencionam ou reinterpretam contos de fadas
em narrativas para adolescentes e jovens.
O presente trabalho analisará obras juvenis que utilizam referências a contos
de fadas em sua composição. O objetivo é classificar e elencar características que vão
diferenciar três formas distintas de engajamento intertextual de contos de fadas a partir
de obras juvenis. A partir dessa premissa, analisamos três obras da literatura juvenil
brasileira contemporânea, cuja textualidade apresenta referências explícitas a contos
de fadas. Cinderela Pop, obra de 2015 de autoria de Paula Pimenta, a obra Caçadores de
Bruxas de 2007 de Raphael Draccon, obra integrante da saga Dragões de éter e a obra
Príncipe Gato e a ampulheta do tempo de Bento de Luca (2014). Essas três obras foram
escolhidas porque representam três maneiras de utilização e construção das referências
intertextuais aos contos de fadas no tecido discursivo das narrativas juvenis: quando há
apenas uma menção, resgate de elementos de um conto de fadas, intertextual, quando
o conto de fadas é adaptado e recontado ao público jovem, e finalmente, quando passa
por um processo total de recriação e ressignificação.
Como marcos teóricos importantes deste trabalho destacamos os conceitos
de adaptação e intertextualidade, respectivamente dos estudos de Hutcheon (2011) e
Kristeva (1974), além de estudos sobre Contos de fadas e literatura juvenil, a partir de
autores como Colomer (2017), Novaes Coelho (2002), Tolkien (2017), entre outros.
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O artigo está dividido em quatro seções. A primeira delas aponta a relação entre
contos de fadas e literatura juvenil e explicita as três categorias elencadas para análise.
Em seguida, temos uma seção em que apresentamos e analisamos a obra Príncipe Gato
e a ampulheta do tempo de Bento Luca, obra esta que apresenta uma menção direta e
explícita ao conto O gato de botas. A seção seguinte analisa a obra Cinderela Pop de Pau-
la Pimenta, narrativa que adapta a narrativa infantil de Cinderela ao público juvenil
contemporâneo. A terceira seção analisa uma obra que reconfigura e cria completa-
mente contos de fadas, especialmente Chapeuzinho Vermelho. Trata-se de Caçadores
de Bruxas de Raphael Draccon.
A relação dos contos de fadas como narrativas de gênese da literatura infantil é ampla-
mente investigada. Tais narrativas, que não eram originalmente direcionadas a leitores
específicos, foram adaptadas e remodeladas ao leitor e ouvinte infantil, de tal forma,
que é comum muitas pessoas considerarem contos de fadas como sinônimos de litera-
tura infantil. Estudiosos como Colomer (2017), Nelly Novaes Coelho (2012), Bruno
Bettelheim (2015), Diana e Mário Corso (2013) são alguns que estudam a importân-
cia dessas narrativas para a construção de significações que serão importantes para a
infância. Segundo Coelho (2012), os contos de fadas foram repetidamente adaptados
por diferentes autores ao longo dos tempos, principalmente em função de uma dupla
articulação: por um lado há o interesse lúdico ou dramático do enredo, por outro,
há a articulação de uma exemplaridade do comportamento humano evidenciado na
narrativa. Exemplaridade que não se confunde com uma mera moral da história, que
poderia ser demarcada temporalmente, e sim um valor mais amplo de sabedoria de
vida, esta sim com validade para qualquer tempo ou espaço.
Por essa relação e articulação, os contos de fadas são referências muito presentes
no mundo ocidental. Por isso, são presentes enquanto elementos de composição de
várias narrativas, criadas para as mais variadas faixas etárias, inclusive para os jovens.
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Isso muito se deve à força da fantasia e do maravilhoso como elementos que fascinam
e encantam leitores. Na obra Árvore e Folha, Tolkien (2017) publicou o ensaio “Sobre
Contos de Fadas”, escrito originalmente entre 1938 e 1939. Nesse texto, o autor aponta:
É claro que a Fantasia pode ser levada ao excesso. Pode ser malfeita.
Pode ser empregada para maus usos. Pode até mesmo iludir as men-
tes das quais surgiu. Mas de que coisa humana neste mundo decaído
isso não é verdade? Os homens não somente conceberam elfos, mas
imaginaram deuses, e os adoraram, adoraram até mesmo aqueles
mais deformados pelo mal de seu próprio autor. Mas fizeram falsos
deuses a partir de outros materiais: suas opiniões, seus estandartes,
seus dinheiros - até suas ciências e suas teorias sociais e econômicas
demandaram sacrifício humano. Abusus non tollit usum. A Fantasia
continua sendo um direito humano: fazemos em nossa medida e em
nosso modo derivativo, porque somos feitos, e não somente feitos,
mas feitos à imagem e semelhança de um Criador. (TOLKIEN, 2017,
p. 53-54).
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Sendo assim, espera-se que uma obra juvenil leve o seu leitor à ressignificações,
que amplie o seu horizonte de expectativa e não traga apenas meras reproduções ou
recontos de contos de fadas. Na leitura de obras juvenis brasileiras observamos os
mais diversos usos de tais referências intertextuais. Destacamos três delas: a) menção
e presença intertextual de contos de fadas na obra juvenil b) adaptação e reconto de
um conto de fadas adaptado ao público juvenil e c) recriação e ressignificação de um
conto de fadas.
Para compreender a primeira das formas, vamos retomar o conceito de inter-
textualidade. O uso do termo foi iniciado pela estudiosa Julia Kristeva (1974) a partir
de leituras de Bakhtin. A autora aponta que todo texto se constrói como um mosaico
das mais variadas citações, explícitas ou implícitas, já que pode absorver e transformar
uma multiplicidade de elementos vindos de outros textos. Assim, de maneira genéri-
ca, a intertextualidade faz com que o texto literário não seja fechado em si mesmo, e
sim que dialogue e tenha pontos em contato com outras obras. Entretanto, chama-
mos atenção para obras que têm a intertextualidade como elemento intrinsecamente
constitutivo, ou seja, sem compreender as relações e releituras de outros textos, não
é possível fazer uma leitura global. Assim, paira nessas obras juvenis a menção a um
conto de fadas. Quando o leitor for capaz de relacionar a menção ao seu intertexto,
há a possibilidade de uma leitura mais ampla da narrativa em questão.
Em relação à segunda modalidade apresentada neste estudo, adaptação e reconto
de um conto de fadas adaptado ao público juvenil, é produtivo retomar o conceito de
adaptação. Linda Hutcheon aponta que “a adaptação, do ponto de vista do adaptador
é um ato de apropriação ou recuperação, e isso sempre envolve um processo duplo
de interpretação e de criação de algo novo.” (HUTCHEON, 2011, p. 45). Dessa
forma, a adaptação é uma forma de repetição, porém é uma repetição que não implica
um uma simples replicação, já que tem potencial de alterar elementos. Na perspec-
tiva de Hutcheon, antes de ser criador, o adaptador é um intérprete e além disso, a
transposição criativa da história de uma obra adaptada está sujeita ao temperamento
e talento do adaptador.
Um elemento que justifica o interesse do leitor na leitura de uma história adap-
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A primeira categoria que analisaremos é a que trata de uma menção ou presença in-
tertextual de contos de fadas em uma obra juvenil. Nesse caso, há um referente inter-
textual que serve como ponto de partida para ler a nova narrativa. Porém, a história
original não é adaptada e nem recriada. Apenas é mencionada.
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2 Na perspectiva deste trabalho não faremos distinção entre contos maravilhosos e contos de fadas.
Para saber mais sobre suas diferenças e possibilidades de análise, consultar Coelho (2012).
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maneira que anda e se comunica são elementos que sugerem, mencionam e retomam
o Gato de botas ou Mestre Gato, personagem de conto de fadas recriado por Charles
Perrault. Ambos os gatos se envolvem em movimentos que podem ser relacionados à
Jornada do Herói de Campbell (2007)3 e também há a presença de uma das premissas
basilares dos contos de fadas, já que segundo Coelho, “a efabulação básica do conto
de fadas expressa os obstáculos ou provas que precisam ser vencidas, como um verda-
deiro ritual iniciático, para que o herói alcance suas auto-realização existencial [...]”
(COELHO, 2012, p. 13).
O leitor que possuir a referência do conto original consegue criar um relação
intertextual, pois na narrativa, um gato ladino e astuto consegue fazer com que seu
amo e senhor, originalmente pobre, fique rico e bem sucedido, casando ao final da
história com uma linda princesa. Em O Príncipe Gato há uma inversão: é justamente
o humano falho e não tão astuto que conduz um gato esperto a um caminho de auto-
descobertas. Não é um caminho de simples ganhos e casamento e sim uma jornada de
enfrentamento de inimigos e superação de obstáculos, em que o final feliz é a salvação
de um universo inteiro.
O personagem Príncipe Gato inicia a narrativa com uma postura arrogante e
autossuficiente e ao longo da narrativa vai se humanizado e passa a considera o hu-
mano como amigo. Dessa forma, o relacionamento do Príncipe Gato com Hugo, o
humano, apresenta uma evolução, de uma antipatia mútua, evoluindo para uma sólida
3 Jornada do herói é um conceito desenvolvido por Joseph Campbell (2007). Segundo o autor, todas
movimento narrativo: a Jornada de um personagem que empreende uma busca salvadora e assim tor-
na-se um herói. Assim, todas as histórias teriam os mesmos passos ou elementos com a possibilidade
de algumas omissões: “Caso um ou outro dos elementos básicos do padrão arquetípico seja omitido
de um conto de fadas, um ritual, uma lenda ou um mito particular, é provável que esteja, de uma ou
de outra maneira, implícito –e a própria omissão pode dizer muito sobre a história e a patologia do
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amizade. Assim, não é possível caracterizar uma relação de mestre e vassalo, amo e
criado verificada no texto original.
De qualquer forma, há uma clara menção intertextual. Retomando o concei-
to de intertextualidade de Kristeva, a autora afirma que “para os textos poéticos da
modernidade, poderíamos afirmar, sem risco de exagero, é uma lei fundamental: eles
se constroem absorvendo e destruindo, concomitantemente, outros textos do espaço
intertextual” (KRISTEVA, 1974, p. 96). Assim, a intertextualidade é constitutiva,
mesmo quando o leitor não a percebe. Além disso é preciso levar em que há uma
duplicidade pois, “o texto poético é produzido no movimento complexo de uma afir-
mação e de uma negação simultânea de um ou outro texto” (KRISTEVA, 1974, p.
96). Dessa forma, entre O príncipe gato e o Gato de botas há uma intertextualidade
explícita, que tanto afirma uma proximidade entre os personagens, quando marca as
diferenças que acontecem ao longo da narrativa.
Portanto, não podemos considerar O Príncipe Gato como uma adaptação da
história e nem como uma recriação do Gato de Botas, já que os personagens não se
confundem. A personagem Príncipe Gato não é o Gato de Botas. É possível indicar
uma relação implícita entre as obras, mas é possível ler a trilogia de Bento de Luca
sem conhecer ou considerar o conto de Perrault. Em suma, conhecer o Gato de Botas
permite que a leitura de O Príncipe Gato e a ampulheta do tempo seja mais ampla, mas
não é uma condição para compreensão de leitura, pois as duas obras não revivem a
mesma narrativa.
Outra diferença importante é que na obra de Bento de Luca, o Príncipe Gato
passará por uma série de conflitos, tarefas e desafios que tornam o personagem mais
complexo. Já no Gato de Botas, a narrativa culmina na construção de uma moral que
coloca o humano em primazia e o animal falante em segundo plano. Como podemos
observar nos versos finais do conto: “Se um filho de um moleiro, com presteza, / Ca-
tiva o coração de uma princesa, / E atrai o seu olhar enamorado, / É que para inspirar
tal ternura / Aparência, juventude e formosura / São recursos a ser considerados”
(PERRAULT, 1994, p. 70).
Assim, concluímos que na obra O príncipe Gato e ampulheta do tempo, a história
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original não é adaptada e nem apresenta novas significações relacionadas aos contos
de fadas. Na realidade, o conto de fadas é usado apenas como chamariz, como uma
espécie de muleta narrativa, que possibilita reflexões acerca da evolução das persona-
gens. Assim, como no exemplo citado, outras obras juvenis podem exercer o mesmo
engajamento intertextual.
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menos da tia e da mãe, sua profissão de DJ. Seu desespero com a situação chega ao
máximo em determinada noite em que acontecerá uma balada imperdível, em que ela
precisa trabalhar como DJ. Porém, descobre que tal festa é o aniversário de quinze
anos das filhas de sua madrasta, ocasião que seu pai quer que ela se vista como uma
princesa e que obrigatoriamente compareça. Assim, com a ajuda de uma amiga e sua
tia, Cintia monta dois figurinos. O primeiro é com um look com máscara, uma rainha
pop descolada, que usa um All star. O segundo é uma roupa suntuosa de princesa de-
butante. Assim, ela tocará como DJ até meia noite e depois troca de roupa para o pai
e a madrasta não suspeitarem de nada.
O restante dos acontecimentos da trama é compatível com a conhecida narra-
tiva de Cinderela: no agito noturno, a garota conhece o garoto perfeito (ao invés de
um príncipe ele é um cantor pop do momento), eles conversam e desenvolvem uma
conexão especial. Porém, ela precisa sair antes da meia noite para não despertar a ira
do pai e da madrasta. Na fuga, perde o seu All Star. O garoto então usa suas redes
sociais para engajar seguidores e assim conseguir localizar a sua garota especial, a sua
própria Cinderela particular Porém, a madrasta descobre a fuga e tenta fazer com que
seja uma de suas filhas a sortuda escolhida de Fredy Prince, o artista do momento. No
ápice da trama, Cintia precisa morar com o pai e a madrasta e é impedida de revelar-se
a DJ Cinderela que encantou Fredy Prince, pois por um estratagema de sua madras-
ta, seu pai a proíbe de ir em uma festa de formatura, festa de o cantor espera que sua
amada se revele. Nesse ponto, é ajudada por uma fada madrinha: sua mãe que vem
de avião do Japão salvá-la da prisão forçada e recupera um lindo vestido que possibi-
lita que Cintia possa ir ao baile e assim encontrar seu amado. Em suma, a narrativa é
absolutamente relacionável com a narrativa original de Cinderela, porém ela é vivida
por uma adolescente e com forte presença de elementos do mundo atual dos jovens,
como redes sociais, música, blogs, entre outros.
Com a descrição do enredo, torna-se óbvio o processo adaptativo empreendido
da narrativa de Paula Pimenta em relação à Cinderela. Este é um conto particularmente
conhecido, tanto por ser contado por Charles Perrault e pelos Irmãos Grimm, como
adaptado para muitos filmes e desenhos animados. Em Cinderela Pop temos um diálogo
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direto com todos esses textos anteriores, pois a narrativa é adaptada: todos os elementos
são “modernizados”, configurados em uma nova roupagem, mas a narrativa permanece
a mesma. Assim, Cintia é Cinderela, uma nova versão da personagem clássica, mas é
ela, uma encarnação de uma figura conhecida. Alguns pontos não coincidem, porém,
conforme os pressupostos da teoria da adaptação de Hutcheon (2011), a fidelidade
não deve ser o elemento que conduz a leitura e análise de uma adaptação, já que ela é
um produto novo, resultado de um exercício de reinterpretação do adaptador. Como
citamos anteriormente, a transposição criativa da história de uma obra adaptada está
sujeita ao temperamento e talento do adaptador e verificamos isso em Cinderela Pop,
que adapta a narrativa de Cinderela ao formato das Chick-lits4 contemporâneas. Assim,
Cintia tem celular, está inserida em mundo imerso em redes sociais e contatos, vai à
escola, precisa resolver problemas comuns a qualquer adolescente, e é nesse contexto
que encontra o seu “príncipe”.
Coelho (2000, p.178) aponta que “destino, determinismo, fado são presenças
constantes nas histórias maravilhosas, onde tudo parece determinado a acontecer,
como uma fatalidade a que ninguém pode escapar”, essa relação inescapável acom-
panha Cintia: ela é destinada a conhecer Fredy Prince, a se apaixonar, a enfrentar a
madrasta. A diferença está nos elementos encadeadores do conflito. Se o conto de
fadas mobiliza o maravilhoso, fada madrinha, magia, trapos que viram um majestoso
vestido, sapatinhos de cristal e outros recursos, a história contemporânea abre mão do
insólito e investe em soluções verossímeis com os tempos que correm: redes sociais,
engajamento, mídias, personalidades midiáticas, All Star, entre outros.
Em relação a um desses elementos, a fada madrinha, podemos relacioná-la com
o seguinte conceito:
4 Tomé e Bastos (2011) definem Chick-Lit como uma modalidade de narrativa juvenil atual: histórias
centralizadas em protagonistas femininas que vivem conflitos que são resolvidos a partir de um mer-
gulho em sua feminilidade. Uma recorrência é a busca do amor perfeito, da vivência de uma relação
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é adaptado. Aqui há uma definição espacial e temporal mais redutora: apesar de não
haver indicação de cidade, fica claro que é uma grande cidade brasileira, durante os
anos 2000.
Assim, observamos em Cinderela Pop um bem sucedido processo adaptativo,
coerente com o público alvo pretendido. Cintia é a mesma Cinderela do conto origi-
nal, mas em um outro tempo, outro espaço e age conforme esse novo contexto: é uma
adolescente contemporânea. E seguindo a mesma lógica, o maravilhoso é adaptado a
essa nova situação, sendo omitido e transmutado em soluções tecnológicas.
Entretanto, é importante ressaltar que apesar de ser um processo adaptativo
muito bem sucedido, há algumas questões que podem ser problematizadas. No artigo
“Entre cinderelas e belas adormecidas: representações femininas na literatura juve-
nil contemporânea” (BARTH, 2018), empreendemos uma análise das representações
femininas que ecoam em Cinderela Pop e concluímos que é uma narrativa que segue
fielmente os sentidos do conto original, ou seja, reproduz discursos patriarcais que
poderiam parecer datados. Por exemplo, Cintia é uma personagem que passa a se de-
finir pelo encanto e pela paixão ao seu príncipe. Sua construção como personagem é
completamente guiada para viver um relacionamento amoroso, assim como a da Cin-
derela Original era ser conduzida ao casamento com o príncipe encantado. O sentido
de felizes para sempre para as mulheres é o mesmo: a felicidade é somente possível
pelo relacionamento com um homem perfeito. Assim, a narrativa pode ser relacio-
nada com um grupo de “histórias que refletem o discurso da fragilidade feminina e
escondem a necessidade de as mulheres começarem a articular seus próprios valores
e opiniões” (RIBEIRO, 2006, p. 74).
Entretanto, analisar criticamente a manutenção da mesma discursividade não
significa condenar a leitura da obra. Pelo contrário, este deve ser um incentivo para
questionamentos, para refletir sobre as limitações dos discursos apresentados. Até por-
que a narrativa, além de ser um dos livros mais vendidos da autora, apresenta um apelo
entre leitores. Um exemplo disso é que no ano de 2019 a obra recebeu uma adaptação
para o cinema e Cintia foi interpretada por Maísa Silva, grande estrela juvenil desta
década. Compreender o engajamento intertextual de uma adaptação com sua obra
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manchada com o sangue da sua avó, durante o ataque mortal de um lobo maligno e
possuído. O lobo era um animal encantado com magia negra por uma bruxa malig-
na e sua missão era matar Ariane por ela ser uma bruxa boa que iria ser iniciada pela
grande sacerdotisa, a sua avó.
Chapeuzinho Vermelho é uma das narrativas de contos de fadas mais analisadas
por psicólogos, psicanalistas e estudiosos da literatura infantil. Os sentidos e relações
da personagem, sua capa vermelha, seus diálogos com o lobo permitem muitas inter-
pretações. Uma delas é a menção ao início da vida sexual de uma jovem mulher e dos
riscos de perder a virgindade. Outra é a moral explícita dos perigos de crianças fala-
rem com estranhos. Esses sentidos e moralidades são completamente ressignificados
e modificados na versão de Nova Éter.
Para compreender a recriação de Chapeuzinho Vermelho é preciso levar em
conta que ela é apenas uma engrenagem de uma trama maior, a história dos Caçadores
de Bruxas. No principal reino em que a história se passa, as bruxas são consideradas
seres malignos e por isso são caçadas e queimadas vivas, para extirpar a ameaça que
representam. A presença de bruxas boas representa um conflito, pois elas precisam
provar que não são uma ameaça para a população e assim precisam enfrentar precon-
ceito e intolerância, já que há o impulso de condená-las à fogueira pelo simples fato
de serem bruxas.
No decorrer da história, Ariane vai descobrindo sua origem mágica e resolve
assumir sua condição. Ao se assumir, ela precisa entrar em confronto duplo: com a
sociedade que não reconhece bruxas boas e tentará matá-la e com as bruxas malignas
de outro clã, responsáveis pela morte de sua avó.
Em relação a recriação da trama de Chapeuzinho Vermelho, destacamos o
seguinte trecho, retirado do epílogo da obra:
Por que a avó de Chapeuzinho Vermelho morava sozinha no meio
de uma floresta? E qual diabos é o nome dessa garota? E por que ela
foi enviada sozinha pela mãe? Se eu tentasse ir sozinho para a escola
com aquela idade, minha avó me daria uns cascudos (se soubesse que
lobos estivessem por aí, então...). (DRACCON, 2010, p. 426).
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Considerações Finais
O presente artigo teve como objetivo analisar obras da literatura juvenil brasileira
que apresentassem a articulação de elementos intertextuais de contos de fadas, crian-
do três categorias de análise, cada uma delas exemplificando uma forma distinta de
engajamento intertextual.
As três categorias são: a) Obras que apresentam menção e presença intertextual
de contos de fadas; b) Narrativas que adaptam e recontam o conto para público juve-
nil e c) recriação e ressignificação total. O primeiro caso apresenta uma menção a um
personagem de contos de fadas, mas não é ele propriamente, apenas alguns aspectos
intertextuais são recuperáveis. Assim, no exemplo citado temos a menção a um gato
falante e inteligente, o que nos remete à imagem do Gato de Botas. A segunda cate-
goria diz respeito a narrativas que adaptam completamente a trama, anteriormente
considerada infantil, para um novo público. No exemplo analisado, Cintia é uma Cin-
derela, Pop e contemporânea, que atualiza a personagem Cinderela do conto original.
Entretanto, é uma atualização superficial, já que a Cinderela adolescente reproduz os
mesmos comportamentos e atitudes da Cinderela original, e assim, o que é realmente
atualizado são os elementos de composição da narrativa. Assim, a história de Paula
Pimenta é criada em um tempo e espaço determinado e substitui elementos insólitos
por tecnológicos e por situações verossímeis com o contexto do século XXI. A terceira
categoria representa uma recriação total de personagens ou tramas conhecidas dos
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Referências
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Editora Paz e
Terra, 2015.
CORSO, Diana Lichtenstein; CORSO, Mário. Fadas no divã: psicanálise nas histórias
infantis. Artmed Editora, 2013.
COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: Símbolos, mitos, arquétipos. São Paulo:
Editora Paulinas, 2012.
DRACCON, Raphael. Dragões de Éter: Caçadores de Bruxas. São Paulo: Leya, 2010.
LUCA, Bento. O príncipe gato e a ampulheta do tempo. São Paulo: Novo Século Edito-
ra, 2013.
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PERRAULT, Charles. Mestre gato ou o gato de botas. In: Contos da mamãe gansa.
Tradução Elisa Tamajusuku, Maria Alves Müller e Maria Stella Dischinger da Cunha.
Porto Alegre: Paraula, 1994. p. 53-70.
TOLKIEN, John Ronald Reuel. Sobre histórias de fadas. Tradução: Ronald Kyrmse.
São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2017.
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Translating Lucy: An analysis
of cinematic strategies to the
empowerment of a female
character in The Chronicles of
Narnia, by C. S. Lewis
1 PhD in applied linguistics; Faculty member of the Language graduate programs at the Federal
2 Holder of a degree in English language and English literatures by the Federal University of Piauí, Brazil.
ABSTRACT: Since the beginning of the cinema industry, literature has been
influencing movies both in direct and indirect forms. Intersemiotic translation is the
main tool in this process once it involves transferring meaning from a system of signs
to another. It generally consists of the translation of written media into an audiovisual
text (JACOBSON, 1969), taking into consideration all the different specifications and
characteristics of each support. Under the perspective of Translation Studies, this article
aims to reflect upon the intersemiotic translation of the character Lucy Pevensie, from
the literary work The Chronicles of Narnia: The Lion, The Witch and The Wardrobe
to the cinematic narrative released in 2005, directed by Andrew Adamson and produced
by Walden Media. For that, the presence of feminist aspects in both written and filmic
depiction of the character are analyzed. The results show that being produced in different
cultural moments, book and film bring different perspectives on feminism, as the film
intends to update the literary work by recovering similar meanings though different
narrative audiovisual strategies.
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Introduction
Since cinematography was invented by the Lumiere brothers, in 1895, literature has a
great role in the cinema industry. From the nineteenth century on, several books were
translated into movies. In his seminal work Novels into Film: the metamorphosis of fiction
into cinema Bluestone (1957) estimated that around 50% of all cinema production was
derived from written literature. Nowadays, considering the growth of the cinema in-
dustry, we estimate that percentage as much higher. Despite not having precise num-
bers on that, it is easy to see that book-inspired films are everywhere, showing that
translation is a process commonly used by producers and directors when developing
scripts and audiovisual narratives.
According to Bluestone (1957), despite being closely related, cinema and litera-
ture are different systems since they use different media, aim at distinct audiences, use
different narrative strategies and are governed by divergent factors, including market,
censorship and cultural values. It means that when translating written literature to
cinema, some changes are needed in order to adapt the new text to the specifications
of the audiovisual medium. For example, while sometimes an author takes an enti-
re page to describe details of a place, a character, or a narrative passage in a written
work, those can be easily represented in one or two seconds on the screen. In general,
considering the characteristics of cinematic texts, no matter how long the book is, it
generally is translated into a two-hour movie. That makes some people believe that
the audiovisual translated material is often inferior when compared to the written
work (WOOLF, 1926; BLUESTONE, 1951; KRACAUER, 1965; BAZIN, 1971).
However, in this paper, we assume a rather different posture, mainly based on
the tenets of the Theory of Translation proposed by Jakobson (1969), Lefevere (2012),
Benjamin (1979) Even-Zohar (1978) and Catrysse (1992), for whom the translated text
is seen as a product of creativity and authorship, which gives it the status of an original
work, the same way as it is attributed to the source material. For that reason, in this ar-
ticle, we use the term “translation” instead of others as “adaptation” or “transposition”,
since we believe these latter undervalue translation as an act of authorship and creativity.
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Although the practice of translating books into movies is very common, what
we often see on screen is not exactly what we expected when we read the written
work for the first time: details are often changed, some information is generally cut
out and new ones are added or vice versa. That happens because the written code is
often modified to create a new text that, at the same time, maintains resemblance to
the source text and fits to the constraints of audiovisual narratives, support and con-
sumption, as well as to the cultural characteristics of the audiences and markets that
will receive it. According to McFarlane (1996), that happens because what audiences
have contact with in cinemas is not the source text, but a new byproduct of the work,
by producers’, directors’ and screenwriters’ interpretations. Based on that, we de-
part from the perspective that those changes are necessary to make everything work
in the audiovisual text, keeping audiences attained to the narratives that unveil on
the screen, sometimes in totally different pace and direction, when compared to the
written source material.
Amongst the many literary works that were translated to audiovisual sign sys-
tems is C.S. Lewis’ The Chronicles of Narnia, a series of books that describe a fictional
parallel universe that coexists with ours. The books present the universe of Narnia
and have been fascinating readers from different backgrounds and ages, as well as
instigating controversies and debates in academic contexts. The book series, initially
published during the 1950’s, tells us the stories of kids and teenagers that are trans-
ported to Narnia and live adventures in order to save that realm and its inhabitants.
In the first volume published, the main four characters are the siblings Peter,
Susan, Edmund and Lucy Pevensie and even though all of them have a relevant part in
the story, it is clear that the youngest one, Lucy, plays the major role in it. That brings
up a whole set of discussions into light, some of them related to C.S. Lewis’ writing
of female characters. That is frequently seen as one of the author’s most controversial
aspects since different points of view have been built upon the author’s depiction of
women. For Pullman (1998), for example, the author displays a sexist view of women
when he portrays them as obedient and subservient to the gods of Narnia. A similar
view is built by McSporran (2005), to whom Lewis’s depiction of women as villainous
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witches hides a demonization of magical women and the author’s medievilized pre-
judices. For Rodriguez (2012), following the same line of thought, Narnia is a boys’
world once all the adventures are led by male characters.
Different perspectives, however, are sustained by Zettel (2005), Hilder (2012),
Graham (2004) and Markkanen (2016), amongst many others. According to Zettel
(2005), Lewis empowers not only witches but heroines, which display strong moral
values and virtues, including fighting skills. A similar point of view is supported by
Graham (2004), to whom the novels present ambivalent female roles just like clas-
sic works as Homer’s and Virgil’s did. In Lewis’ work, the witches, described as the
daughters of Lillith3, represent female sexuality and power while the girls represent
the heroic ideals, commonly attributed to men in medieval literature. Hilder (2012),
on the other hand, sustains that Lewis portrays women in what she calls Theological
Feminism, a biblically inspired vision of women that questions the classic chauvinist
culture of heroism by proposing feminine heroines grounded in religious beliefs. That
perspective is also considered by Markkanen (2016), who draws an outline of the main
arguments used in academic literature to support a feminist perspective in Lewis’ work.
Despite of dating back to Roman times, the movements for equality between
men and women only intensified during the so called “Second Wave of Feminism”,
consolidated during the 60’s and 70’s of the Twentieth Century. That new wave differs
from the early feminist movement, from the mid 1900’s, because while early feminists
focused mainly on woman suffrage, the second wave is characterized by an association
with the fights for human rights (BRUNELLI; BURKETT, 2002) and a diversifica-
tion of objectives and philosophies. Other authors as Brunel (2008) and Evans (2015)
mention a third wave of feminism, initiated during the 90’s and characterized by the
3 Lilith is a mythological character assumed to be Adam’s first wife. Because she was rebellious, not
accepting to be ruled by neither her husband nor God, she was expelled from Eden, and turned into
a demon. According to Hurwitz (1980), the myth represents dark feminine aspects, as seen by the
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Although for many people translation may be primarily seen as the changing of codes
from one language to another, it is considered by others under a much broader point
of view. For Benjamin (1997), for example, when he discusses linguistic represen-
tations of the world in his essay “On language as such and on the language of man”,
translation is seen as a feature deeply integrated to human cognition and communi-
cation. In that perspective, language itself is seen as the translation of thoughts into
words while actions are translations of thoughts into movements. Out of the human
body, communication also consists of the continuous flow of coding and decoding
meaning into verbal language to and from the people we interact with. In other words,
communication, for Benjamin, is a translational process.
Plaza (1987) takes that premise a little bit further when he considers that in
human interaction we are constantly translating a diversity of semiotic systems that
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are not restricted to verbal language. According to him, we translate what we have in
mind into images, shapes, gestures, sounds, feelings, among other forms of represen-
tation. In that sense, the translation of different semiotic signs is also a key component
in the cognitive processes of constructing and conveying meaning.
Jacobson (1959) classifies translation into three different categories: The first
one is intralingual translation, or reformulation. It is an interpretation of verbal signs
to other equivalent verbal signs in the same language. It happens, for example, when
we paraphrase. It is very common in literary translation when a new version of a book
is released, generally to update linguistic or cultural elements. Despite focusing on
the translation of verbal texts, we could also apply that category to cinema to describe
the many versions of the same story that are frequently released, each one built up
around specific objectives that make them similar and different from each other at
the same time. The writing of a screenplay for a movie, departing from a book, could
also fit in this category.
The second category is interlingual translation, or translation itself. It consists
of the translation of verbal signs in one language to verbal signs in another language.
It is the idea of translation that people generally have. In cinematic texts it is generally
present in subtitling and dubbing, which are modes of translation devoted to change
the linguistic signs from one language to another.
The third and last category is intersemiotic translation. It is an interpretation
of verbal sings to a non-verbal system of signs or vice versa. It can be understood as
the use of different codes that have an equivalent message. For example, a poem can
be transformed into a play, or paintings can be transformed into movies. Intersemiotic
translation is, therefore, the reconstruction of meaning from any art or language to
another, each one with different characteristics.
An important discussion concerning translation theory is the everlasting debate
on the relevance of creativity and its opposition to fidelity. In this work we assume
the culturalist paradigm in which translation can never be an exact copy of the source
text, due to a number of factors which play a role in the translation process, amongst
them the subjectivity of the translator and the requirements of the different systems
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that are around source and target texts. This point of view contrasts to a structuralist
perspective of translation, in which fidelity is seen as the purpose of the translated text.
On that, Sapir, cited in Bassnett (2005 p. 22) states that “No two languages
are ever sufficiently similar to be considered as representing the same social reality”.
With that said we can understand that different systems of representation portray,
inevitably, different realities. The same prerogative can be applied to the translation
of written works into movies. As each medium has its singularities, it has to be taken
into consideration that, most of the time, the narratives on screen won’t reproduce
the various elements of the books in the same way they were portrayed in paper. The
fact that the two codes are always going to lead to different massages is what makes
it possible to transform books with hundreds of pages into movies of one hour and
forty minutes long.
According to Bassnett (2005 p. 52), one of the problems of analyzing transla-
tions between books and films is the mistakenly general assumption that the written
work is superior, and, therefore, the audiovisual counterpart is always an incomplete
or “less noble” form of expression, deemed to imperfection. It happens due to our
cultural tradition of overvaluing writing to other forms of communication. To the
author, by focusing on the losses we tend to ignore the gains that the translated text
brings to the narrative. To Benjamin (1997), on the other hand, no translation will
be possible if it aspires essentially to be a similar reproduction of the original. In that
sense, we consider that, for intersemiotic translation, complete similarity is not a goal.
That perspective is reinforced by the concept of untranslatability. According
to Catford (1965), it can be referred as the impossibility of translating a linguist or a
cultural aspect. In book-movie intersemiotic, translation it can also describe the te-
chnical impossibility to translate certain aspects of the narrative into the film screen.
As an example, we can mention the composition of the mythical creatures of Narnia
in the cinematic text. Most of the characters could only be put to screen after tech-
nological advancements in digital animation and especial effects were reached. As an
untranslatability problem, that factor had the power to deeply affect the choices of
screenwriters, producers, directors, and actors, changing the final product. Being a
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fantasy-fiction movie, some parts of the narrative, as well as the visual description of
landscapes, objects and actions could have looked completely different if those tech-
nological advances had not been achieved yet.
With that said, it is clear that translating any text is a very complex activity.
Besides by considering semantic factors, it must be taken into consideration that the
translated text must be understandable and acceptable to the group of people that
are going to receive that message. The process of intersemiotic translation, however,
must consider many other elements. When compared to verbal text translation, for
example, we can observe that instead of being an individual work, the translation to
cinema screens is the result of the collective creative works of dozens of people invol-
ved with film production, shooting and editing. Despite being the result of the work
of so many translators, it is very common to attribute to the director the main credits
over the film results. That happens because the director generally is the person who
is responsible for coordinating the team of translators, as well as for imprinting his
visual perspective to the story taken from the book and the screenplay. That is what
Lefevere (2012) calls Patronage (the dependence the translation has on several factors
that control both the translation process and the results achieved).
The personal choices of the director and how they affect the final result on the
audiovisual translated text are illustrated by the following commentary delivered by
director Andrew Adamson even before he started shooting The Lion, the Witch and the
Wardrobe:
For me, the film I am working on at the moment is a book that was
very important to me as a child and it’s another movie that comes
with a lot of expectations because it’s a book that a lot of people
enjoyed as children. And then going back and reading it as an adult
I was surprised by how little was there. C.S. Lewis is someone who
paints a picture and lets you imagine the rest. To me it’s about ma-
king a movie which lives up to my memory of my book rather than
specifically the book itself.
And it needs to live up to everyone else’s memories and that is what
my challenge is — to make it accessible and real. You read it and it’s
a 1940s children’s book. I want it to feel real and for kids today to
actually relate to the children.
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So I’ve really tried to make the story about a family which is disenfran-
chised and disempowered in World War II, that on entering Narnia,
through their unity as a family become empowered at the end of the
story. It’s really bringing the humanity of the characters into what is
effectively a symbolic story. (ADAMSON, 2004)
Amongst some of the elements that interfere directly in the meanings carried
by the final product of the process of intersemiotically translating a text are cultural,
historical and social components that guide both translators and readers to certain
interpretations of the text. These interpretations from translators and other readers,
however, might not coincide. It explains why very often people get out of the projec-
tion room with a mix of feelings towards the translated text. In that sense, we cannot
forget that what viewers see is the product of how the director and his crew interpre-
ted the narratives.
Even-Zohar (1978) also describes the multiple elements that play a part in the
translation of a text with his Polysystem Theory. According to him, the translation en-
vironment is composed of several systems that encompass different aspects of the world,
including economy, politics, social power, cultural manifestations, values, ideologies and
so on. These systems are constantly interacting with each other to form more complex
polysystems. A literary polysystem, for example, can be formed of various other smaller
polysystems, each one affecting and being affected by one another. In that sense, writ-
ten literature polysystems have influence on cinematic literature4 as much as cinema
has influence on written works. The same can be said by other polysystems, including
the ones that are deeply rooted in cultural and ideological perspectives, as gender and
feminist ideologies. In the next section, we will discuss a little more on the latter.
4 Although the objective of this paper is neither to put an end nor to deepen the everlasting discus-
sion on what is and what is not literature, we assume that literary elements are present in all kinds of
texts and semiotic modes. Therefore, we use literature in this text as a general term to describe texts
that carry the power to narrate, move and awake aesthetic feelings towards the text itself.
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Over the Twentieth Century, the mainstream feminist ideology has been associated
with women’s efforts to challenge the archetype of men as privileged citizens while
women were regarded as their less powerful counterparts. To Adichie (2012) a feminist
is the person who believes in the social, political and economic equality of the sexes.
In recent connotations given to the movement, it deals with women’s fight against all
oppressions, prejudice, and patriarchal domination in order to change the historically
attributed role of inferiority assigned to them.
Delmar (1986) indirectly defines feminism when she says that:
Feminist is someone who holds that women suffer discrimination
because of their sex, that they have specific needs […] and the sa-
tisfaction of these needs would require a radical change (some will
say a revolution even) in the social, economic and political order
(DELMAR, 1986, p. 8).
Despite the general definitions above, we adopt the perspective that feminism
itself is a concept in constant change. Brunelli e Burkett (2002), for example, men-
tion feminist protests in Ancient Rome, and cite the efforts held by some renaissance
women to guarantee females the right for education. Amongst them, are Christine
de Pisan in France, Laura Cereta and Moderata Fonte in Italy, Jane Anger and Mary
Astell in England.
In modern times, the feminist movement has gone through many different
stages. Each stage, or “wave”, has its own history and unique defining qualities. The
first wave, also known as “The Suffrage Movement”, took place in the late nineteenth
and early twentieth centuries, emerging out of an environment of urban industrialism
and liberal, socialist politics. The goal of this wave was to open opportunities for wo-
men, with a focus on suffrage. However, after partially achieving its objectives during
the 1920’s, with household wives and female university graduates over the age of 30
being given the right to vote in the U.S and in some European countries, feminist
movements started to diminish (BRUNELLI e BURKET, 2002). The death of the
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first wave for feminism was consolidated during World War II, when women started
getting the jobs left by men who fought in the conflict, giving activists the feeling that
their battle for equal rights had been won. However, with the end of the war, many
women lost their jobs and a new conservative wave started to emerge.
The second wave of feminism started during the 1960s and early 1970s. At
the time, there were many issues at hand, including the idea that outer appearance
for women was more important than their personal accomplishments in life. Many
advertisements at the time pushed that into the limelight. Women were told to fall
into gender norms, which included their role as housewives or other duties that did
not advance them further in career or politics, amongst other fields. According to
Brunelli e Burket (2002), American women in the 1950’s married earlier and had more
children than women in the 1920’s. Jobs filled by females in the 1960’s were also less
frequent than in the 1930’s.
One of the most popular feminist activists of that time was Betty Friedan, who
had written a book entitled The Feminine Mystique. The book was popular because it
opened women’s eyes to the fact that they were victims of a “mystique”. Friedan de-
fined this “mystique” as finding fulfillment in “sexual passivity, male domination, and
nurturing maternal love” (FRIEDAN, 1963). For the author, women were putting
all their focus on those around them and tended to neglect themselves. Friedan also
questioned the idea that women were only to be seen as housewives. She was especially
against the mainstream advertisements that only highlighted women doing household
chores. Her book also pointed out that women did not have the political influence
they needed to make a change in the world, inspiring activists to take actions in order
to get a voice for themselves.
Authors as Evans (2015); Brunel (2008), Gillis, Howie e Munford (2004),
amongst many others, point out the emergence of a third wave of feminism in the
1990’s. While in the first wave money was a large contributor to the feminist protests
(once only the privileged and those with money easily accessible were really trying
to make the biggest differences for making it possible for women to vote), and while
the second wave also included mostly upper-class white females at the forefront and
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did not give women of color and other oppressed groups much of a voice, the third
wave came with a different proposal. Marked by the presence of young women born
when feminism was already consolidated as a worldwide spread ideology, the third
wave counts on the help of Social media to raise issues that still deprive women from
having their full rights consolidated.
When discussing this third wave, Ianello (1998) describes some of the charac-
teristics of the women who make part of it:
The discussion has demonstrated that much of the third-wave feminist
focus has been located in the social cultural of women between the
ages of fifteen and thirty. These young women have tried to provide
stronger images of women in the popular media and they have raised
consciousness about women’s oppression related to cultural institu-
tions such as religion and sexuality. They have rejected second wave
feminism’s “victim feminism” in favor of “power feminism”. While
“victim feminism” applies to a group, “power feminism” applies to
the individual.
Women in this age group prize individualism and have a keen sense
of social justice. Leadership is a function of both, to be applied locally
on college campuses or in communities, as the opportunity arises, but
not usually on a broader national level. These younger women do not
address the issues of power in the family that have been described as
feminism’s “final frontier”. While some of them are mothers, to a
large extent, they have yet to experience the conflict between family
and career that has become more critical to the women who have
come of age a generation before them (IANELLO, 1998. p. 316–317).
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Besides mainstream feminism, there are many other strands, each one with pecu-
liar characteristics, philosophies and objectives. As describing each one of them is not
the objective of this work, we opted for adopting, as analysis strategy, the comparison
of the way the character is developed in both written and cinematic works according
to Even-Zohar’s Theory of Polysystems (EVEN–ZOHAR, 1978) and Campbell’s Path
of the Hero (CAMPBELL, 1949), which will be discussed in the following section.
The Lion, The Witch and The Wardrobe (referred as TLWW from now on) is the first
book of seven. It was written during the 1940’s but published in 1950. Although it is
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the first one in the publishing order, it is the second in the order established in the
book series. The Magician’s Nephew, published five years later, works as a prelude to
TLWW. The Chronicles of Narnia is the most known work by C.S. Lewis and is
considered a children’s literature classic. Over the years, it has been translated to TV,
cinema, theater, and radio. In this work, we take into consideration the latest audio-
visual translation to cinema screens5.
The movie was first released on December 9th, 2005. It was directed by Andrew
Adamson, who also developed the screenplay in partnership with Ann Peacock. It
was produced by Walt Disney Pictures and Walden Media and has a length of 2 hours
and 23 minutes. As there is a 55-year gap between the releases of the written and the
audiovisual texts, we assume the hypothesis that each work, even though reflecting the
same story, brings different perspectives in relation to the portrayal of feminist values.
In order to investigate that, we proceed by analyzing some of the features attributed
to the character Lucy Pevensie in each work.
The character was chosen due to its relevance to the plot and due to some
of the author’s personal motivations. In the book Lucy is the first of the Penven-
sies to enter the world of Narnia. She is also the one responsible for taking the
other siblings there. It is also known that, when writing the book, C.S. Lewis was
inspired by real children to compose some of the characters that visit that realm
(DOWNING, 2005). Lucy is named after Lewis’ goddaughter, Lucy Barfield, adop-
tive daughter of his friend Owen Barfield. It is to her that the author dedicates his
work, as it can be seen below, in the reproduction of the message he left on the
page preceding the first chapter:
5 Walt Disney Pictures and Walden Media released a sequel to TLWW in 1998, translating the
second book of the series (in order of publication), “Prince Caspian”. In 2010, The Twentieth Century
Fox produced the translation of the third book The Voyage of the Dawn Treader”. Even though the
plot and characters of the three films are connected, this work analyzes just elements present in the
first one.
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TO LUCY BARFIELD
My Dear Lucy,
I wrote this story for you, but when I began it I had not realised
that girls grow quicker than books. As a result you are already too
old for fairy tales, and by the time it is printed and bound you will
be older still. But some day you will be old enough to start reading
fairytales again. You can then take it down from some upper shelf,
dust it, and tell me what you think of it. I shall probably be too deaf
to hear, and too old to understand a word you say but I shall still be,
your affectionate Godfather. (LEWIS, 1950)
The character’s importance to the plot is emphasized not only by the dedication
to Lucy Barfield, but also by a central focus given to her throughout the narrative, as
well as by the psychological transformations she undergoes throughout the narrative.
She is initially depicted as the youngest and most fragile of the Pevensies but ends up
known as “Queen Lucy the Valiant”, as she ages as one of Narnia’s rulers. That re-
flects Lewis’ view on childhood and adulthood, also implicit in the dedication above.
In the author’s perspective, growing means leaving childhood features behind, as in
a transformation in which adults assume other personalities. In TLWW that can be
noticed by the sudden growth of the characters, as the reader is quickly taken from
the observation of the Pevensies coronation as kings and queens in Narnia, while they
are still children, to realize that they have become adults. However, there seems to be
an exception for Lucy, who, despite growing, keeps some of her childhood features.
That can be seen in the extract below:
And they themselves grew and changed as the years passed over them.
And Peter became a tall and deep-chested man and a great warrior,
and he was called King Peter the Magnificent. And Susan grew into
a tall and gracious woman with black hair that fell almost to her feet
and the kings of the countries beyond the sea began to send ambas-
sadors asking for her hand in marriage. And she was called Susan the
Gentle. Edmund was a graver and quieter man than Peter, and great
in council and judgement. He was called King Edmund the Just. But
as for Lucy, she was always gay and golden-haired, and all princes in
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those parts desired her to be their Queen, and her own people called
her Queen Lucy the Valiant. (LEWIS, 1950, p. 78)
Even though not changing completely when she grows up, there is still a no-
ticeable difference in the way Lucy is pictured as an adult. By the end of the book,
the four of them go on a chase for the White Stag, a magical animal that could grant
wishes to those who caught it. They then find the light pole which marks the portal
between Narnia and our real. As Susan hesitates to continue further, Lucy encourages
her by saying: “Sister, my royal brother speaks rightly. And it seems to me we should
be shamed if for any fearing or foreboding we turned back from following so noble
a beast as now we have in chase” (LEWIS, 1950, p. 79). That marks that Lucy is no
longer a fragile hesitating girl. The movie, however, develops that transition more
clearly, either by the addition of original scenes or by the changing of details and
narrative perspectives.
The written work begins with the narrator’s explanation that Peter, Susan,
Edmund and Lucy had to leave the city of London during World War II to escape
from the German air attacks6. They were sent to the countryside to live with profes-
sor Kirke, a bachelor who lived with his housekeeper and three other servants. That
is told very quickly in the first paragraph of chapter one. In the movie, however, the
viewers are presented to an opening scene in which planes bombard London while the
Pevensies try to look for cover. Lucy is then portrayed as a young defenseless girl who
is awakened in the middle of the night in cries. While they travel to the countryside,
6 The Blitz, as the attacks became known, were night air bombings by the German air force, the
Luftwaffle, to London and other British cities. Around 43,000 British citizens were killed and other
139,000 wounded during the attacks. During the war, British government developed an evacuation
plan, designed to protect mostly children in school age, disabled people, pregnant women and mothers
with children under 5 years old. Around 3.7 million people were displaced from big centers to smaller
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she reveals herself to be shy and speechless as well. The insertion of that sequence
of events is probably designed to provide modern audience with an understanding of
the reasons why the kids were living with Mr. Kirke at the beginning of the story. It
also works as a portrayal of each of the kids’ personalities. Peter, the eldest, is shown
as responsible and bossy; Suzan, the second eldest, as down-to-earth and pessimistic
at the same time; Edmund, the second son, as strongminded and stubborn; and Lucy,
the youngest, as shy and insecure.
The scenes also work as an audiovisual text with equivalent function to the
passage in which Lucy is Mentioned for the first time. In the book, when professor
Kirk meets the kids, it is said that “on the first evening when he came out to meet
them at the front door he was so odd-looking that Lucy (who was the youngest) was
a little afraid of him” (LEWIS, 1950, p. 5). With that, it is possible to see that the
film tries, from the very first moment, to convey similar meanings through different
narrative structures.
Despite that, subversion is also noticed during the first scenes of the motion
picture. While London is being bombarded the viewer watches Edmund tries to re-
cover a portrayal of their father before running into a bunker nearby, almost being
killed by an explosion. He is then heavily criticized by Peter, the older brother, because
he “can’t just do as he is told”. With that, the audiovisual translation states a position
that contrasts to the interpretation given by Pullman (1998), McSporran (2005) and
Rodriguez (2012), to Lewis’ work. For them, the author tended to show evil women as
rebellious. In the film, however, if rebellion is still associated with evil (since Edmund
is portrayed as a villain in the first half of the story), it is not related only to women.
That is the cinematic position to one of the biggest controversies related to C.S. Lewis’
work: the way he supposedly portrays women. In the film, however, equality between
men and women are highlighted.
Taking into consideration that C.S. Lewis wrote the first part of his masterpiece
during the 1940s, it seems logical to attribute to him a perspective that is in accordance
to the social movements and cultural polysystems that marked his own time. It was
not much before that when the suffragists had succeeded in their quest for the right to
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vote. That seems to be reflected in the book when Lucy, being the first to visit Narnia,
is asked to lead her siblings in the quest to find Mr. Tumnus, a Faun she befriended
during her first trip there. In the 2005 movie, however, that does not stand alone as a
representation of gender equality. For modern audiences of adventure/fantasy films,
having the characters going through a journey is often seen as an essential narrative
strategy. It is during this journey that the characters face challenges and go through
learning experiences that help them change as the plot unfolds.
The motion picture does so by adding a considerable number of extra scenes to
the narrative that work as transition tools for character development. In Lucy’s case, the
narrative is organized around a third wave feminist hero’s journey. Described by Campbell
(1949), the hero’s journey is a set of steps classic and modern narratives tend to follow to
present the deeds of heroic characters. In the film, the viewer can see that Lucy gradually
changes from insecure to a strong and brave girl as she experiences challenges during the
journey to meet Aslam (a lion that is an allegory to Christ). That can be observed, for
example, in an original sequence in which the Pevensies try to run away from the White
Witcher’s secret police, a pack of ferocious wolves. They chase the kids to the base of a
melting frozen waterfall, which manages to escape by clinging to a piece of ice that goes
apart from it and down a turbulent river. After almost drowning, they finally manage
to reach the shore to find out that Lucy had been taken by the freezing current. After
tense seconds in which the siblings cry out for her and blame each other, Lucy shows up
standing wet and cold, but as if the experience was nothing serious. That scene provided
the viewer with the perspective that in Narnia Lucy was not a weak girl anymore.
According to Evans (2015); Brunell (2008), Gillis, Howie & Munford (2004)
and Ianello (1998), third wave feminism is marked by the intense presence of young
women in media, providing images of strong female figures that take leadership po-
sitions and fight against oppression related to a wide spectrum of social and cultural
contexts. That positive image of autonomous femininity is also reinforced in the film
by another added scene. After being present during Aslam’s sacrifice and resurrection,
Lucy shows she is ready to fight against the witch’s army by drawing her dagger and
compelling Aslam and Susan to get into the fight.
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7 In Lewis’ Christianity-filled imagery Aslan represents Jesus Christ himself, the rightful ruler
of Narnia. Despite of that metaphor, Lewis makes it clear that he is still a lion, and as such must be
respected, as said by Mr. Beaver to Lucy: “He’s wild,” you know. Not like a tame lion.” Serpa, Rocha
and Soares (2018) used corpus linguistics and software analysis to identify and relate meanings between
lexical units in TLWW. According to the authors, “Lucy” and “Aslan” are words that often come
close to each other in the book (the lion’s name generally comes two words after the girl’s) indicating
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It is well known that C. S. Lewis’ books are deeply rooted in Christian values,
being TLWW filled with allegories that are frequently associate to the author’s hyper-
-nationalism and conservativeness. Towns (2012), for example, establishes a parallel
between English national food and foreign food and the meaning they carry in that
literary work. Downing (2005), on the other hand, associates the names of the cha-
racters to national values. In relation to gender aspects in the book series, Lewis has
also often been accused of misogyny. According to Berlatsky (2005), there is no doubt
that Lewis’s work was filled with conservative ideas, for example, when the Pevensie
sisters were left aside in the battles while their brothers had the chance to fight the
war against the White Witch, denying the heroines the right to be part of the Army.
However, that doesn’t mean women were not empowered in the story. For the author,
the fact that Lucy is the first to enter Narnia gives her a distinct role, as she later is
going to be the one that guides her siblings when they get inside the wardrobe too.
Her leading role is also clear when Peter, the older brother, admits that Lucy should
lead them in Narnia, as it can be seen below:
“I think Lu ought to be the leader,” said Peter; “goodness knows she
deserves it. Where will you take us, Lu?”
“What about going to see Mr Tumnus?” said Lucy. “He’s the nice
Faun I told you about.”
Everyone agreed to this and off they went walking briskly and stam-
ping their feet. Lucy proved a good leader. At first she wondered
whether she would be able to find the way, but she recognized an
oddlooking tree on one place and a stump in another and brought
them on to where the ground became uneven and into the little valley
and at last to the very door of Mr Tumnus’s cave. But there a terrible
surprise awaited them. (LEWIS, 1950. p. 26)
The same can be said for the White Witch, who is a powerful character. In
contrast to the Pevensie girls, however, she rules and fights against men, turning them
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into stone. In that, we can see that Lewis’ vision of “good” and “bad” women were
profoundly affected by the European post-war context, when “good women” were
not supposed to go to war (BERLATSKY, 2005).
In that case, it is necessary to consider that under deeper perspective, especially
because during the 1940’s women were not regular members of any armies (NATIO-
NAL ARMY MUSEUM, 2018). In that sense, Lewis’ conservativeness reflects not
only his personal view but also the cultural values of his society and the cultural aspects
surrounding the book polysystems. That is reinforced when the presence of women in
war is also denied in another passage of the book, when three of the kids meet Father
Christmas. He gives them “tools” instead of toys: a sword and shield for Peter; an
ivory horn, a bow and a quiver full of arrows for Susan and a bottle of healing potion
and a small dagger to Lucy.
Despite the 21st Century, strangeness of giving kids weapons as gifts, the mi-
d-20th century Father Christmas makes it clear that the girls are only supposed to
use them to defend themselves and not to go to war. That leads Lucy to complain
about his view of women and war as she states her strength to him, as can be seen in
the passage below:
“Susan, Eve’s Daughter,” said Father Christmas. “These are for you,”
and he handed her a bow and a quiver full of arrows and a little ivory
horn. “You must use the bow only in great need,” he said, “for I do
not mean you to fight in the battle. It does not easily miss. And when
you put this horn to your lips; and blow it, then, wherever you are,
I think help of some kind will come to you.”
Last of all he said, “Lucy, Eve’s Daughter,” and Lucy came forward.
He gave her a little bottle of what looked like glass (but people said
afterwards that it was made of diamond) and a small dagger. “In this
bottle,” he said, “there is cordial made of the juice of one of the fire-
flowers that grow in the mountains of the sun. If you or any of your
friends is hurt, a few drops of this restore them. And the dagger is to
defend yourself at great need. For you also are not to be in battle.”
“Why, sir?” said Lucy. “I think - I don’t know but I think I could be
brave enough.”
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“That is not the point,” he said. “But battles are ugly when women
fight. And now” - here he suddenly looked less grave - “here is so-
mething for the moment for you all!” and he brought out (I suppose
from the big bag at his back, but nobody quite saw him do it) a large
tray containing five cups and saucers, a bowl of lump sugar, a jug of
cream, and a great big teapot all sizzling and piping hot. Then he
cried out “Merry Christmas! Long live the true King!” and cracked
his whip, and he and the reindeer and the sledge and all were out of
sight before anyone realized that they had started. (LEWIS, 1950.
p. 47- 48)
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Non-conformist lucy:
stregh and weakness in forgiveness
The fact that Lucy is not treated as a fighter in the book, despite of her willing to be-
come one, shows the author destined her to other roles that, according to his religious
beliefs, were much nobler than having fighting skills. Lucy is a healer and a forgiver,
impersonating Christian qualities. That is shown, for example, when she forgives
Tumnus for his potential betrayal. Those are the main characteristics that define the
character throughout the narrative in the book. Despite of that, Lucy is not portrayed
as a conformist for she is always questioning the roles given to her and, in some occa-
sions, rebelling against the passive attitudes that were expected from her. With that,
C. S. Lewis portrays Lucy as a character that gradually turns into a strong- minded
girl and as someone who does not follow orders just because they were given to her.
In the written work, her compassion is also directed to Edmund, who is initially
depicted as having a nasty character. When she comes back from Narnia, for example,
she tells her siblings what had happened to her, just to find out they don’t believe in
her. That causes her great sorrow and sadness, as it can be seen in the extract below:
For the next few days she was very miserable. She could have made
it up with the others quite easily at any moment if she could have
brought herself to say that the whole thing was only a story made up
for fun. But Lucy was a very truthful girl and she knew that she was
really in the right; and she could not bring herself to say this. The
others who thought she was telling a lie, and a silly lie too, made her
very unhappy. The two elder ones did this without meaning to do it,
but Edmund could be spiteful, and on this occasion he was spiteful.
He sneered and jeered at Lucy and kept on asking her if she’d found
any other new countries in other cupboards all over the house. What
made it worse was that these days ought to have been delightful. The
weather was fine and they were out of doors from morning to night,
bathing, fishing, climbing trees, and lying in the heather. But Lucy
could not properly enjoy any of it. And so things went on until the
next wet day. (LEWIS, 1950, p. 12)
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Those feelings are worsened when she comes back to our realm from Narnia
for the second time, followed by Edmund. As she tells the older siblings about their
experience, she finds the same discredit, worsened by lies from Edmund, who denies
being with her in Narnia. In the cinematic translation, however, Edmund is represen-
ted as a betrayer in much more intensity that it is in the written work since it is not
clear to the viewer that he is under the spell of the Witch, after he has eaten enchanted
food offered by the witch. Despite that, Lucy seems less troubled and soon is given a
chance to forgive them all, especially Edmund, as they go to Narnia and Peter forces
him to apologize for the lies he had told. She forgives him without hesitating.
Furthermore, while Lucy’s character is, in TLWW, mostly shown as a good girl,
there is one part of the text that reveals her moral vulnerabilities. After the final battle,
once the White Witch has finally been defeated, Lucy’s task is to heal the wounded
with her healing cordial. However, instead of caring for each warrior at a time, she
only attends to her brother Edmund, deeply worried with him and neglecting all the
others. It can be read in the extract reproduced below:
“There are other people wounded,” said Aslan while she was still loo-
king eagerly into Edmund’s pale face and wondering if the cordial would
have any result. “Yes, I know,” said Lucy crossly. “Wait a minute.”
“Daughter of Eve,” said Aslan in a graver voice, “others also are at the
point of death. Must more people die for Edmund?” “I’m sorry, Aslan,”
said Lucy, getting up and going with him. (LEWIS, 1995. p. 76)
Lucy’s weakness is exposed: she would rather risk everyone else’s wellbeing in
order to make sure her brother survives. In the end she apologizes to Aslan and takes
care of everyone. As a result, Lucy’s defect further establishes her role as a true Nar-
nian-Christian heroine: an imperfect character who may stumble and fall, but, at the
end, learns from her mistakes and becomes a better person. In the motion picture,
however, that does not occur. After saving Edmund she decides by herself to save all
the other creatures, a fact that helped to preserve her good qualities and strength to
the eyes of big screen viewers.
Non-conformism, however, is still highlighted in the movie, but as a feature
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of both male and female characters. As mentioned before, the scene that depicts Lon-
don under the air raids in WWII emphasize Edmund’s inaptitude to follow orders and
updates C. S. Lewi’s perspective of problematic female characters. In the end of the
film, on the other hand, Edmund is the one responsible for breaking the Witcher’s
wand, being severely wounded by her during the attempt. After he has recovered by
Lucy’ cordial, he is hugged by Peter, who asks him, in a joyful tone, why he couldn’t
do what he was told. As none of the passages are described in the book, they were
added to the motion picture to make it clear that obedience is not what defines good
or bad characters, neither it is related to the definition of good or bad girls.
Final remarks
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our world, Lucy’s heroic qualities might have gone unnoticed. In Narnia, however,
they rise as she lives adventures that were mainly reserved to male roles in the adven-
ture film genre.
Lucy also may have these hero trades in her condition of yet becoming a wo-
man. She is not a full woman, yet she is becoming one, in a society that has different
archetypes of the one she is used to.
Both book and movie portray her as a hero, one of the most memorable mo-
ments it is when Lucy is worried about her brother well-being and her vulnerability
transpires off and this helps her grow, in the book this trade of her personality is clear,
but in the movie, as the order of the facts are changed, Lucy transpires stronger in
the book.
Throughout the analyses of the feminist characteristics in the cinematic trans-
lation of the book The Chronicles of Narnia: The Lion, The Witch and the Wardrobe, re-
leased in 1950, taking in consideration the way that Lucy Pevensie was portrayed in
the movie and the time gap between the literary and the audiovisual work. The cha-
racter had several trades that could be considered feminist, but also is possible to say
that C.S. Lewis was not insentiently writing her as a feminist character as the motion
picture portrays.
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Literartes, n. 12 | 2020 | Artigo – GOMES E RIBEIRO
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Shanna. Revisting Narnia: fantasy, myth and religion in C. S. Lewis’ chronicles. Texas.
Benbelle. 2005. p. 181-190.
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Contos de fadas na educação
infantil: preparando professores
para formar leitores
nicipal de Ensino de Aracruz, ES, e Professora da Faculdade Pública de Ensino Superior de Linhares
da Ufes (Mestrado Acadêmico). Professora de Língua Portuguesa da Rede Estadual de Linhares, ES,
gmail.com.
RESUMO: O artigo objetiva divulgar um projeto de extensão desenvolvido por estudantes
do curso de Pedagogia da Faculdade de Ensino Superior de Linhares – FACELI, em
escolas públicas de Educação Infantil do município do qual a instituição faz parte. O
material deste trabalho possibilita uma reflexão sobre a importância da formação do
professor de Educação Básica como formador de leitores, uma vez que o uso da literatura
se faz urgente na prática docente. A importância do projeto dá-se devido ao gênero Conto
de Fadas, quando trabalhado de forma eficiente, ser instrumento capaz de oportunizar
a interação da criança com o universo da imaginação e também aprimorar ainda mais
o desenvolvimento crítico do educando em formação. Nesse contexto, o artigo busca
demonstrar a importância do projeto desenvolvido pela instituição de Ensino Superior
ao comprovar que, pela prática dos estudantes envolvidos, há possibilidade de estimular
e incentivar as crianças para o conhecimento literário, que não acontece só por meio de
livros, mas também pela imersão em espaços literários, o que ocorre, no caso, por meio de
projetos de leitura como o que aqui será apresentado.
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Introdução
O artigo propõe divulgar, por meio de suporte teórico, relatos, fotos e outros mate-
riais desenvolvidos, um projeto de formação leitora promovido por uma Instituição
de Ensino Público Superior. O projeto de extensão em questão, iniciado no primeiro
semestre de 2018, chamado Contos de Fadas na Educação Infantil, objetivou alcançar
e atender escolas de Educação Infantil geridas pelo município de Linhares-ES que,
por sua vez, também mantém a instituição de Ensino Superior que abriga o projeto, a
FACELI, sendo esta uma das poucas faculdades públicas municipais do país.
Devido a não obrigatoriedade de municípios em gerir instituições de Ensino
Superior públicas, estando a modalidade mais restrita a estados e ao governo federal,
a FACELI enfrenta resistência em alguns níveis no município, seja por forças políti-
cas que se voltam contra sua existência, seja por alguns entes internos, como outras
instituições particulares superiores de ensino.
A FACELI, uma autarquia pública municipal, criada em 1994, localizada no
maior município do Espírito Santo, é a única Faculdade de Ensino Superior pública
da região, e sua permanência no município, como indicam pesquisas, gera resultados
satisfatórios para a população e de localidades vizinhas. Sem elencar todos os pontos
positivos da instituição para a comunidade, uma vez que ela oferece três formações
distintas, concentrar-nos-emos somente na importância da instituição para a Educação
Básica da cidade de Linhares.
Linhares possui uma vasta rede pública municipal que oferta a Educação In-
fantil e o Ensino Fundamental. Grande parte dos professores da rede foram formados
no Curso de Pedagogia dessa Instituição Pública de Ensino Superior, sendo hoje a
instituição que mais habilita professores para a Educação Infantil e os primeiros anos
do Ensino Fundamental na cidade.
A formação desses profissionais, dentro do próprio contexto cultural da região,
já é imensamente importante como investimento do município, mas, mais do que isso,
a FACELI desenvolve inúmeros projetos em parceria com as escolas de Educação
Básica e Ensino Infantil. No seio da instituição ainda se fazem presentes projetos de
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A literatura e a formação
do jovem leitor no espaço escolar
A formação de leitores, na Educação Básica, pode ser apontada como um dos grandes
fracassos na educação pública e, consequentemente, um empecilho para a aprendizagem
de qualidade. Silva (2009) aponta fatores ligados ao processo pedagógico como razões
para o fracasso da formação leitora no Brasil. Um dos motivos para tal desinteresse,
apontado pelo autor, pode estar na escolha realizada pelo professor que, muitas vezes,
não garante aos alunos opções de leitura que estejam de acordo com o grau cognitivo
ou campo de interesse dos educandos.
Formar jovens leitores é um desafio educacional. Cabe ao professor, nesse
processo, ser um mediador de saberes e não somente o construtor daquilo que Silva
(2009, p. 28) caracteriza como “uma prática homogênea de formação leitora, utilizando
o texto para fim tão somente pedagógico”. Geraldi afirma:
Não pode o professor usar a leitura para outros fins, como pretexto
para desenvolver outra atividade: dramatizar uma narrativa, ilustrar
uma estória, por exemplo. O tipo de leitura em que o intuito de ler
por ler se faz gratuitamente, quebra tal paradigma tão alicerçado por
professores no ensino fundamental (GERALDI, 1986, p. 26-27).
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O conceito de criança construiu-se ao longo dos tempos. Ariès (1975) destaca que, no pas-
sado, a vida era homogênea e não havia distinção entre as fases da infância e a vida adulta.
Segundo Ariès , “a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É
difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou a falta de habilidade. É mais
provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo” (ARIÈS, 1975, p. 50).
A partir dos sete anos, no período medieval, as crianças começavam trabalhar
nos comércios e nas colheitas. Na época não existia uma literatura voltada à infância.
A educação ocorria pela aprendizagem de “técnicas”, a formação era prática, apren-
dia-se imitando o adulto. A partir do Renascimento Italiano, no século XV, inicia-se
uma mudança nesse quadro, Passeti assim descreve a criança no período:
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[...] a criança passa a ser vista um ser inacabado, vista como um corpo
que precisa de outros corpos para sobreviver, desde a satisfação de
suas necessidades mais elementares, como alimentar-se. Os primeiros
anos de vida são para ela, o tempo das aprendizagens do meio que a
cerca. Brinca com outras crianças da sua mesma idade e até maiores
do que ela; arrisca-se em busca de saberes que lhe poderão ser úteis
para viver em comunidade (PASSETI, 2003 p. 1-2).
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guês e com a função de educar moralmente as crianças, os primeiros livros infantis tinham
uma estrutura maniqueísta, a fim de demarcar claramente o bem a ser aprendido e o mal
a ser desprezado (ARIÈS, 1975). Os gêneros infantis ainda se incluem nessa tradição.
No começo, a literatura infantil alimenta-se de obras destinadas a outros fins,
aos leitores adultos, cujas histórias contadas eram da mesma forma narradas às crian-
ças, essas narrativas são adaptadas ao universo infantil. Com a mudança de valores, a
partir do século XVIII, geraram-se as adaptações aos ouvintes dos contos populares,
convertendo-os em livros para crianças, os populares Contos de Fadas.
A importância desse gênero para a formação da criança já parece ter sido compro-
vada por inúmeros estudos. Bettelheim, um dos principais estudiosos do tema, acredita
que, “através dos contos de fadas a criança alicerça seu sofrimento com conhecimen-
tos, pois quanto mais alternativas ficcionais forem oferecidas para as crianças, mais elas
conseguem elaborar e organizar seus dramas” (BETTELHEIM, 2007, P. 78), sendo o
gênero, uma forma de enriquecimento interior do sujeito no início de sua formação.
Nos contos de fadas, apesar de adaptados ao espírito maniqueísta burguês, sobres-
sai-se a natureza popular desse tipo de produção, e todo seu fôlego cultural. Desse modo,
essas histórias cumprem um papel mais que somente educativo, uma vez que se alcança,
por meio de seu enredo, uma visão de mundo mais alargada, permitindo ao leitor inúme-
ras interpretações, indagações e análises sobre diversas perspectivas. Bettelheim afirma:
Os contos de fadas, à diferença de qualquer outra forma de literatura,
dirigem a criança para a descoberta de sua identidade e comunicação,
e também sugerem as experiências que são necessárias para desenvol-
ver ainda mais o caráter. Os contos de fadas declaram que uma vida
compensadora e boa está ao alcance da pessoa apesar da adversidade
– mas somente se ela não se intimidar com as lutas do destino, sem as
quais não se adquire verdadeira identidade. Estas estórias prometem
à criança que, se ela ousar se engajar nesta busca atemorizante, os
poderes benevolentes virão em sua ajuda, e ela o conseguirá. (BET-
TELHEIM, 2007, p. 32)
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que este público, ao ler um livro, não o faz superficialmente e apenas de forma ma-
niqueísta; a criança procura um significado em cada palavra e se lança sem medo na
jornada de desvelar os segredos dos símbolos que compõem a narrativa.
De acordo com Cosson (2012), na escola, a leitura literária tem a função de ajudar a
“ler melhor”, não apenas porque possibilita a criação do hábito da leitura ou porque
seja prazerosa, mas sim, e, sobretudo, porque nos fornece, como nenhum outro tipo
de leitura faz, os instrumentos necessários para conhecer e articular com proficiência
o mundo feito linguagem.
Um meio de levar a literatura aos espaços escolares se dá por meio de projetos
de leitura. No entanto, a leitura é, muitas vezes, tratada de modo mecanizada pelos
professores, com o intuito de cumprir um currículo, sem a preocupação de ser peça
fundamental para a construção leitora do aluno, em sua leitura de mundo e até mesmo
na formação crítica e pessoal:
Outra concepção de leitura, observada com maior frequência, denota
uma decodificação de signos linguísticos, por meio do aprendizado
estabelecido a partir do condicionamento estímulo respostas. Tal
conceito, de perspectiva behavorista-skinneriana, ignora a profundi-
dade da experiência do contato do indivíduo com os elementos da
comunicação humana (SILVA, 2009, p. 67).
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literárias na escola a leitura efetiva dos textos, e não as informações das disciplinas que
ajudam a construir essas leituras. Essa leitura não pode ser realizada simplesmente pelo
prazer absoluto de ler. “[...] Por fim, devemos compreender que o letramento literário
é uma prática social e, como tal, responsabilidade da escola” (COSSON, 2012, p. 23).
Por isso, os projetos de leitura deveriam ser mais estruturados e atrativos.
A experiência literária não só nos permite saber da vida por meio da
experiência do outro, como também vivenciar essa experiência. Ou
seja, a ficção feita palavra na narrativa e a palavra feita matéria na
poesia são processos formativos tanto da linguagem quanto do leitor
e do escritor. (COSSON, 2012, p. 17)
A leitura literária deve ser incentivada. O aluno, segundo Silva (2000), precisa
ter a liberdade de ler o que gosta e com o que se identifica, a escola precisa tratá-lo
como um sujeito de educação, uma vez que ele constrói seu conhecimento. Os plane-
jamentos e as metodologias a serem utilizadas para a formação leitora desses alunos
deveriam ir ao encontro dos interesses e dificuldades desses alunos.
Projeto de extensão:
Contos de Fadas na Educação Infantil
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Fadas. Na formação em questão, estuda-se desde a história desse gênero, seus princi-
pais autores, técnicas de contação de histórias e a produção de material pedagógico.
Após a escolha das escolas de Educação Infantil, sempre mapeando instituições
que ainda não foram atendidas pelo projeto, os alunos da instituição são recebidos
pelas equipes dessas escolas e o trabalho é desenvolvido.
O projeto visa a atingir estudantes iniciantes de Pedagogia e tem sido o primeiro
contato de alguns desses alunos com a prática pedagógica, muitos deles relatam, inclu-
sive, que se havia dúvidas na escolha da graduação, elas acabaram sendo esclarecidas
ao fazerem parte do projeto em questão.
Ao longo dos quatro semestres em que o projeto tem sido desenvolvido, 20
(vinte) escolas foram atendidas, sendo 03 fora do município e 17 do município de Li-
nhares. Até o presente momento todas as escolas atendidas foram públicas e mantidas
pelo município. Na avaliação do projeto, que se faz rotineiramente nas escolas visitadas
pelos estudantes, a atuação dos acadêmicos foi vista como positiva em todas elas, sem
que nenhuma crítica sequer fosse registrada. Todas as escolas também demonstraram
anseio de receber o projeto novamente.
Os registros do projeto de extensão, em execução, sejam por meio de fotos,
vídeos, relatos e materiais diversos, têm sido arquivados pelas professoras responsá-
veis. Já há um farto conjunto de registros e de ideias que brotaram da mente dos 160
participantes diretos desse trabalho. Abaixo, seguem alguns relatos a fim de comprovar
não só a existência do projeto, mas, sobretudo, a criatividade e a disposição dos envol-
vidos na disseminação do gênero Contos de Fadas em turmas de Educação Infantil.
Consideramos, pois, uma experiência que o leve a questionar e tecer novas concepções
acerca da leitura. Assim, esse trabalho visa apresentar a importância dos livros e dos
contos na iniciação da criança no mundo da leitura.
Descrevemos alguns relatos de professoras da Educação Infantil quanto à im-
portância do projeto Contos de Fadas na Educação Infantil, reafirmando a ressignificação
do enlace entre Escola de Ensino Superior e Educação Básica.
Os contos de fadas são de suma importância no mundo das crianças.
E a presença dos teatros com a participação dos estudantes do Cur-
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Podemos constatar, a partir dos relatos acima, que a leitura literária e, especial-
mente, os Contos de Fadas são de extrema importância para as crianças e torna-se prati-
camente um ato fundamental nos currículos escolares. Notamos, também, que a parceria
entre Escola de Ensino Superior e Escola Básica tem fundamental importância, uma
vez que esse projeto de extensão tem por finalidade, também, possibilitar a inserção de
acadêmicos no cotidiano da educação básica. Durante o projeto, o acadêmico vivencia o
cotidiano de uma escola de educação básica, buscando conhecer, interagir, promover um
maior intercâmbio com as escolas, crianças e professores e discutir em sala de aula subsí-
dios teórico-metodológicos que possam contribuir para a melhoria da formação inicial.
Teoria e prática, articuladas entre si, sustentam os alicerces da formação docen-
te inicial e continuada. Desse modo, aproximar os acadêmicos do cotidiano in loco dá
sentido ao estudo da teoria. Compreender a relação teoria-prática constitui um eixo
de valorização do curso como momento de práxis, que contribui para a formação e o
desenvolvimento do futuro professor em busca de sua formação docente.
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dentro da sociedade, para entender as relações políticas e seu papel nessas relações.
Nesse sentido, a prática da leitura literária infantil é essencial em espaços escolares
e, especialmente, vida cotidiana dos nossos estudantes. A literatura desde a infância é
algo que potencializa as habilidades da vida adulta em sociedade, configurando-se em
um viés com múltiplas possibilidades na prática pedagógica.
Considerações finais
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literatura em sala, e como essa prática influencia na vida dos alunos. Além disso, por
ser uma pesquisa de campo, vale ressaltar que tivemos a oportunidade de presenciar
questionamentos a respeito da entrevista realizada com os professores, e recebemos
como resultado que os alunos gostam de ler livros.
De acordo com a coleta de dados, a literatura infantil e juvenil desperta um
olhar diferenciado pela leitura, de forma que leva as crianças a criarem um hábito em
suas rotinas diárias, e que desperta a curiosidade dos alunos para estudar mais sobre os
acervos literários, tornando-os pesquisadores de novos conhecimentos, conduzindo-os
para uma forma significativa de ensinar e aprender.
Com este projeto, pretendemos provocar nos envolvidos o despertar da leitu-
ra de livros literários para o público de séries iniciais, trazendo, assim, a importância
da leitura em si, como ela deve ser ressaltada em sala de aula e o que ela provoca nos
estudantes quando ocorre esse contato.
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Literartes, n. 12 | 2020 | Artigo – PIOL E LEONARDELI
ZILBERMAN, Regina. Como e por que ler a literatura infantil brasileira. Rio de Janeiro,
R.S.: Objetiva, 2005.
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Dialogismo entre gêneros
intercalados na narrativa O Hobbit,
de J.R.R. Tolkien
yahoo.com.br.
2 Mestrando em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, UERN, will_du-
3 Mestranda em Letras pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, UERN, jailmamar-
[email protected].
RESUMO: A narrativa presente em O Hobbit, de J.R.R. Tolkien, é composta por variados
poemas que dialogam com a história em desenvolvimento. Essa conexão é importante
pois promove uma comunicação conteudística entre aqueles o romance. Assim sendo,
objetivamos, neste artigo, investigar as relações existentes entre os dois gêneros numa
perspectiva dialógica. Mostraremos como o conteúdo dos poemas relaciona-se com os
eventos da narrativa. Utilizaremos, principalmente, como aporte teórico, os trabalhos
de Bakhtin (1992 e 2015) acerca do dialogismo entre os diferentes discursos e dos
gêneros intercalados, e o trabalho de Brait (2005) concernente também ao dialogismo.
Selecionamos dois poemas e analisamos os conteúdos. Após a análise, compreendemos que
os poemas são fundamentais para a dinâmica interna do romance, dialogando em muitos
pontos com ele, dando suporte na apresentação dos fatos narrados.
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Introdução
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A relação intertextual entre as artes, ou seja, o diálogo que se estabelece entre textos pro-
duzidos em épocas diferentes ou no mesmo período, tem se tornado uma característica
da contemporaneidade. Tem sido uma prática frequente entre escritores, roteiristas e
diretores, que retomam em contos, romances, crônicas, poemas ou histórias em quadrinhos al-
guns temas que lhes são relevantes. Embora esse fenômeno seja antigo, o seu tratamento é
novo, constituindo uma nova maneira de pensar e de apreender formas de intersecção
explícita ou implícita de um texto em outro. Segundo Bakhtin (1992, p. 331), todo texto
é essencialmente dialógico, ou seja, todo texto abriga em si outros com os quais interage.
4 Ao leitor deste trabalho, é importante salientar que as traduções dos poemas divergem em muitos
pontos das versões em inglês desses. Quando for necessário, estaremos abordando essas principais
diferenças em nota de rodapé, para que o leitor tenha uma compreensão maior acerca da discussão que
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encontrar um gênero que não tenha sido introduzido algum dia e por
alguém no romance. Os gêneros introduzidos no romance costumam
conservar nele a elasticidade de sua construção, sua autonomia e sua
originalidade linguística e estilística (BAKHTIN, 2015, p. 108).
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No tocante à análise dos poemas presentes em O Hobbit, entendemos que, por haver
uma grande quantidade de produções desse gênero no interior da narrativa, foi neces-
sário selecionar apenas dois para que pudéssemos analisá-los com profundidade. Dos
variados poemas existentes na história, escolhemos o primeiro que, na nossa edição
de análise, lançada pela editora Martins Fontes, em 2002, emerge na página 13, no
capítulo Uma festa inesperada, e o poema das páginas 254 e 255, presente no capítulo
Tempestade à vista. O critério de seleção foi a semelhança que esses poemas apresen-
tavam entre si, principalmente quanto à forma de falar sobre os acontecimentos da
história em prosa.
Para uma apropriada análise dialógica dos poemas, relacionando-os com a
história maior, é fundamental que narremos os principais fatos que movem O Hobbit
enquanto objeto de estudo, a fim de que possamos situar o leitor quanto ao contexto
de inserção das produções poéticas. Dessa maneira, o leitor poderá, mesmo não tendo
lido o livro de Tolkien, imergir na história e compreender as relações que conectam
ambos os gêneros, romance e poema.
A narrativa começa quando Gandalf, um mago vestido de cinza, com um chapéu
azul pontudo, aparece no Condado onde os hobbits moram e aborda Bilbo Bolseiro,
dizendo que está à procura de uma pessoa para participar de uma aventura. O hobbit
fica incomodado com a proposição e dispensa o mago, afirmando que aventuras são
incômodas. No dia seguinte, Gandalf reúne o hobbit e treze anões para discutirem
os detalhes da viagem e da contratação de Bilbo como ladrão. É nesse momento que
Bilbo descobre que há muito tempo, quando o reino dos anões prosperava na Monta-
nha Solitária, um dragão surgiu e tomou o local, matando inúmeros anões, expulsando
os sobreviventes para longe e se apossando do tesouro dos anões, o qual Bilbo deve
ajudar a recuperar.
Com o hobbit decidindo participar da aventura, a companhia inicia sua jorna-
da. E, no limite das terras conhecidas, eles se deparam com um grupo de trolls, que
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os capturam. No entanto, Gandalf os salva com a ajuda da luz do sol que transforma
as três criaturas em pedra. O grupo segue para Valfenda, morada dos elfos, onde ob-
têm descanso e descobrem como entrar na montanha, usando uma antiga chave e um
antigo mapa que Gandalf guardava consigo.
Finalizando a estadia em Valfenda, eles seguem para as Montanhas Sombrias.
Enquanto descansam numa caverna, são capturados e levados para a presença do mes-
tre dos orcs. Nesse meio tempo Bilbo se perde e acha Um Anel de Sauron no chão
dos túneis da montanha. Ele desce tão fundo que encontra Gollum, uma criatura com
olhos grandes e que quer devorá-lo. Bilbo foge com a ajuda do anel que o torna invisí-
vel. A companhia também escapa da montanha graças a Gandalf mais uma vez. Todos
se reúnem na floresta adjacente e são perseguidos por lobos e orcs. As águias salvam
a todos e os deixam nas terras de Beorn, um homem que se transforma em um urso
selvagem. Na casa dele, todos se alimentam e descansam para continuarem a viagem.
O grupo segue para a Floresta das Trevas e grandes aranhas os prendem. Bilbo
os salva e, logo em seguida, os elfos da floresta os prendem e os levam para seus do-
mínios. O hobbit é o salvador mais uma vez, tirando-os de lá em barris, que seguem
para a Cidade do Lago, onde conseguem ajuda para seguir adiante. Ao chegar na
montanha, Bilbo conversa com o dragão Smaug. Após o diálogo, a fera sai para des-
truir a cidade, pois descobre que eles ajudaram o grupo. O dragão é morto e os anões
recuperam a montanha. Logo em seguida, acontece a Batalha dos Cinco Exércitos e
muitos morrem, inclusive alguns da companhia de Bilbo. O hobbit retorna para casa
com Gandalf ao final da aventura.
O resumo acima ilustra os principais eventos desenvolvidos na história de O
Hobbit como reportado na segunda versão da obra que ficou mundialmente conhe-
cida. Agora possuímos um pano de fundo adequado para situarmos e abordarmos os
poemas escolhidos para esta análise. Havendo necessidade, iremos aprofundar os fatos
expostos anteriormente como meio de evidenciar com mais propriedade o dialogismo
entre os poemas citados.
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O primeiro poema que dialoga com a narrativa em prosa está exposto a seguir na ín-
tegra. Este poema é cantado pelos anões na casa de Bilbo quando todos estão reuni-
dos decidindo sobre a jornada que os espera e fazendo os devidos preparativos para o
dia seguinte. Bilbo é tomado de grande espírito aventureiro quando o ouve e, na sua
mente, cenas de lugares distantes surgem e o impressionam. É nesse momento que
ele deseja partir para terras longínquas e conhecer o mundo.
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5 Far over the misty mountains cold/To dungeons deep and caverns old/We must away ere break
The dwarves of yore made mighty spells,/While hammers fell like ringing bells/In places deep, where
For ancient king and elvish lord/There many a gleaming golden hoard/They shaped and wrought,
On silver necklaces they strung/The flowering stars, on crowns they hung/The dragon-fire, in twisted
Far over the misty mountains cold/To dungeons deep and caverns old/We must away, ere break of
Goblets they carved there for themselves/And harps of gold; where no man delves/There lay they
The pines were roaring on the height,/The winds were moaning in the night./The fire was red, it
The bells were ringing in the dale/And men looked up with faces pale/The dragon’s ire more fierce
The mountain smoked beneath the moon;/The dwarves, they heard the tramp of doom./They fled
Far over the misty mountains grim/To dungeons deep and caverns dim/We must away, ere break of
day,/To win our harps and gold from him! (TOLKIEN, p. 18-9, 2006)
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Thorin, um dos anões, diz claramente que a viagem será perigosa e que talvez
nenhum, com exceção de Gandalf, retorne com vida. Ao ouvir isso, Bilbo se desespera e
cai no chão, pois a perspectiva de não retornar ou retornar sem vida o põe muito medo.
Retornando aos versos, quando o poema menciona “cavernas”, os anões podem estar
fazendo referência às cavernas das Montanhas Sombrias, pelas quais os aventureiros
irão se enveredar. Aqui, o autor antecipa a narrativa, para Bilbo e o leitor, indicando
que a companhia atravessará um espaço perigoso, em analogia aos termos anteriores,
e que nesse espaço, eles encontrarão cavernas e calabouços aparentemente perigosos.
Os versos seguintes também dialogam com a narrativa em prosa: “Devemos
partir antes de o sol surgir/Em busca do pálido ouro encantado”. Nesse ponto, os
versos mostram que eles estão apressados e que devem seguir viagem o mais rápido
possível. No enredo, eles mencionam constantemente o Dia de Durin, ou seja, o pri-
meiro dia do ano novo dos anões, e concordam que devem seguir para a montanha
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antes que esse passe. O propósito da companhia é recuperar seu antigo lar no interior
da Montanha Solitária e, também, o tesouro roubado por Smaug muitos anos antes
de a história ser relatada para Bilbo, no Condado.
Na estrofe seguinte, há o relato de que antes de o dragão chegar a Erebor, os
anões viviam prósperos, produzindo objetos preciosos e, no processo de feitura de
seus artefatos, eles realizavam encantos, impregnando-os com magia. Os versos não
relatam que tipo de magia era realizada e nem com que propósito. As duas linhas se-
guintes falam um pouco acerca de onde os trabalhos dos anões eram realizados: na
“[...] profundeza onde dorme a incerteza”, querendo dizer, no interior da montanha,
cavando e escavando a rocha atrás de joias preciosas.
No interior da montanha, eles não sabem o que poderão encontrar e relatam
isso quando dizem que a profundeza é incerta6. O poema pode estar fazendo referên-
cia às criaturas sombrias, à semelhança do Balrog7, encontrado em Moria, quando os
anões de lá escavaram fundo. Acerca do último verso da segunda estrofe, não temos
informações, nem no poema e nem no romance traduzidos, que nos conceda pistas
sobre a que os anões estão se referindo quando mencionaram, “Em antros vazios sob
penhascos do mar8”, muito embora possamos imaginar que estejam se referindo ao
dragão Smaug que também dorme sob a montanha.
6 A palavra “incerteza” não existe na versão em inglês, sendo utilizada apenas na tradução: The
dwarves of yore made mighty spells/While hammers fell like ringing bells/In places deep, where
dark things sleep,/In hollow halls beneath the fells. (TOLKIEN, p. 18, 2006) (Grifos dos autores).
7 Balrogs eram originalmente Maiar que foram corrompidos por Morgoth, um dos espíritos pri-
mordiais, na Primeira Era da Terra-média. São demônios envoltos em chamas que, em uma mão,
seguram uma espada, e na outra, um chicote. Eles aparecem em O Senhor dos Anéis: A Sociedade do
8 A palavra “fells” no original foi traduzida por “penhascos do mar”. Fells é uma palavra britânica
para montanha. Em O Hobbit o mar não desempenha a função vital que tem em outros livros como O
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do dragão que representou a ruína do reino dos anões. Em seguida, o Smaug atacou
e queimou tudo com seu fogo. O último verso é bem ilustrativo do momento de sua
atuação, pois “as árvores-tochas em fachos de luz” fazem clara referência a incêndio e
queimadas. Os anões discutem após cantarem o poema na casa de Bilbo.
Depois da chegada do dragão, como relatado na oitava estrofe, os sinos da ci-
dade de Valle soaram. Essa cidade, habitada por humanos, situava-se às margens da
montanha e quem a governava era Girion. O lugar foi atacado e destruído. As pessoas,
nas ruas, olhavam ansiosas para Smaug e à sua presença no local “erguiam-se pálidos
rostos ansiosos”. O dragão destruiu tudo e o último verso ilustra bem esse aconteci-
mento marcante: “Arrasando casas e torres formosas”. No entanto, o poema não relata
se alguém sobreviveu à passagem da criatura.
A penúltima estrofe é bastante esclarecedora quanto ao destino dos anões após
a investida de Smaug. O ataque aconteceu à noite, uma vez que faz referência à lua.
O dragão invadiu a montanha e incendiou muito do que nela havia, o que no verso
fica explícito pela fumaça que sai de Erebor. Os versos seguintes falam da saída dos
anões remanescentes do local. Eles não podiam mais morar no interior da Montanha
Solitária pois Smaug a havia tomou para si, junto com seu tesouro. Os anões agora
estavam privados de tudo que um dia haviam construído e da sua riqueza. Eles fugiram
da montanha e só encontraram a morte ao luar.
Finalizada a análise do primeiro poema, podemos tecer algumas considerações
sobre o segundo. Enquanto aquele retratou, predominantemente, situações pregressas
da história dos anões, envolvendo, inclusive, o ataque do dragão, o segundo irá realizar
uma espécie de resumo da jornada até aquele momento. Observemos a estrutura do
poema e as semelhanças com o anterior, pois ele possui sete estrofes com quatro versos
cada, e as rimas acontecem tomando o segundo e o quarto versos. E assim como acontece
com o primeiro em inglês, com o segundo poema temos também rimas envolvendo o
primeiro, o segundo e o quarto versos, possuindo o terceiro uma rima interna. Abaixo,
transcrevemos o segundo poema na íntegra para o analisarmos logo em seguida.
Sob a Montanha alta e sombria
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9 Under the Mountain dark and tal/The King has come unto his hall!/His foe is dead, the Worm
The sword is sharp, the spear is long,/The arrow swift, the Gate is strong;/The heart is bold that
The dwarves of yore made mighty spells,/While hammers fell like ringing bells/ In places deep, where
On silver necklaces they strung/ The light of stars, on crowns they hung/ The dragon-fire, from
The mountain throne once more is freed!/O! wandering folk, the summons heed!/Come haste! Come
haste! across the waste!/The king of friend and kin has need.
Now call we over mountains cold,/‘Come back unto the caverns old’!/Here at the Gates the king
The king is come unto his hall/Under the Mountain dark and tall./The Worm of Dread is slain and
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A canção soa para Bilbo como algo bélico demais. Os anões querem defender
seu tesouro daqueles que, no olhar deles, desejam saqueá-lo, muito embora as pessoas
que estejam acampadas perto da entrada da montanha sejam os homens da Cidade do
Lago. Dain é o primo de Thorin e este o convocou para ajudá-lo a defender o espaço.
É nesse contexto que se insere a segunda estrofe. Nele, os anões falam em espadas
cortantes e lanças compridas, flechas rápidas e portão forte. Os anões estão se prepa-
rando para defender o lugar contra quem quiser invadir, mesmo contra os homens do
lago, seus amigos.
É possível notar a semelhança da primeira canção com a segunda, não somente
em estrutura, embora mais curta, mas em conteúdo, quando lemos a terceira estrofe
e percebemos que ela é semelhante à segunda do primeiro poema, com a exceção de
que no lugar de antros vazios, há “[...] salas vazias sob penhasco no ar”10. Os anões re-
tomam a primeira canção e a transformam para adequá-la aos novos acontecimentos.
Mais uma vez, nessa estrofe, eles ressaltam a grandeza e os feitos dos anões de outrora,
exatamente como fizeram com o outro poema. No entanto, há, nessa passagem, um
tom de melancolia, pois, mesmo recuperando o seu lar, eles não sabem o que fazer
com o local, que é imenso, em comparação com quantidade de anões, e nem como
transportar o tesouro, ou o que fazer com ele. Eles também não têm o que comer e
logo passarão fome se não negociarem. O verso que melhor define essa estrofe e o
ânimo dos anões é “Na profundeza onde dorme a incerteza”.
10 O uso do termo “sala” para “hall” é uma decisão estilística do tradutor. Notamos também o uso de
“penhascos no mar”, no primeiro poema, e, no segundo, temos, “penhascos no ar” para a palavra “fell”.
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Considerações finais
Nós havíamos proposto desenvolver neste trabalho uma análise dialógica nos termos
de Bakhtin da relação entre o gênero poema e o gênero romance na obra O Hobbit,
de J.R.R. Tolkien. Tomando como base os poemas presentes na narrativa citada, re-
lacionamos o conteúdo desses, com o conteúdo da história em prosa desenvolvida na
obra, evidenciando pontos de contato e dialogismo.
O dialogismo proposto por Bakhtin (2015) refere-se à interconexão existente
entre os discursos produzidos por uma comunidade, por uma cultura ou mesmo por
uma sociedade. O dialogismo no interior do romance é caracterizado por uma rela-
ção conteudística entre os poemas e a história em prosa. Analisamos os dois gêneros
e evidenciamos seus pontos de contato, fosse anterior ao momento de reunião na casa
de Bilbo, fosse posterior, retomando a história. Os dois poemas possuem estruturas
semelhantes e, em alguns casos, estrofes com versos iguais.
A análise revelou que os dois gêneros dialogam em muitos pontos da história.
O primeiro poema discorre sobre os eventos anteriores ao momento da reunião na
casa de Bilbo, no Condado, retratando os tempos de glória do reino dos anões quando
da chegada do dragão à Montanha Solitária. O poema narra a chegada de Smaug e a
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destruição que este causou nos entornos do local, expulsando os anões remanescen-
tes, pois muitos foram mortos, para terras distantes. O poema dialoga com a narrativa
no início da história e vai além, pois retoma o infortúnio atravessado pelos anões nos
tempos de outrora.
O segundo poema dialoga com a narrativa a posteriori, mostrando alguns dos
fatos acontecidos até o momento em que o dragão é morto. No entanto, ele retoma
alguns elementos do primeiro poema para reforçar a glória dos anões e injetar ânimo
no espírito deles quando percebem que o tesouro está desprotegido e que os homens
do lago querem ajuda, afinal, o dragão só atacou a Cidade do Lago porque descobriu
que eles haviam ajudado os anões na empreitada de chegar à montanha.
Nesses termos, entendemos que os poemas selecionados são indicativos do
dialogismo e representativos da interconexão existente entre os discursos dos poemas
e do romance. Entendemos também que, devido às limitações de espaço, a análise de
dois poemas não foi suficiente para cobrirmos toda a história desenvolvida na obra.
Uma análise com os demais poemas evidenciará mais apropriadamente o dialogismo.
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Referências
LOPEZ, R. S. O Senhor dos Anéis e Tolkien: o poder mágico da palavra. São Paulo:
Devir: Arte e Ciência, 2004.
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Aço mais brando que a seda:
papéis de gênero e a donzela
travestida nos contos de fadas
1 Mestra em Letras (USP). Professora no Instituto Federal de Mato Grosso. E-mail: [email protected].
RESUMO: O artigo propõe um estudo comparativo sobre o travestir-se nos contos
de fadas em três obras em língua portuguesa, observando essa troca de veste à luz da
simbologia e das teorias de diferença sexual, para compreender como o deslocamento de
papéis de gênero fazia parte do domínio dos contos antes mesmo dos Estudos de Gênero
ganharem visibilidade em nossa época.
ABSTRACT: The paper is a comparative study about the maiden disguised in Portuguese
and Brazilian fairy tales. Considering the results, the displacement of gender roles was part
of fairy tales of before the visibility of Gender Studies in contemporary times.
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São recorrentes as críticas às figuras femininas nos contos de fadas, deixando em voga
a tendência antiprincesa em nossa contemporaneidade. Cada vez mais a donzela em
perigo tem se salvado sozinha nas produções culturais que fazem referência ao universo
dos contos de fadas, sejam obras para a infância ou para adultos.
Contudo, apesar de essas discussões fundamentarem-se em uma mudança do
discurso sobre o feminino em curso e que se amplia nas últimas décadas amparada
nos estudos feministas e de gênero, nem tudo antes delas foi paralização feminina na
literatura popular. Um exemplo disto são as narrativas de donzelas que se travestem
de homem, geralmente para guerrear. Neste artigo2, propomos um estudo compara-
tivo sobre o travestir-se nos contos de fadas, tendo como corpora o conto português
A donzela que vai à guerra, com adaptação de António Torrado (1981), o conto Maria
Gomes, compilado por Câmara Cascudo (2004) e Entre a espada e a rosa, de Marina
Colasanti (1992), observando as obras literárias sob a luz do símbolo e das teorias de
diferenciação sexual para compreender o lugar do travestir-se no deslocamento de
papéis de gênero para a trama apresentada nas narrativas.
A donzela/princesa guerreira ou travestida é uma figura que, levada por uma
problemática social, ética ou existencial, após deslocar-se das convenções femininas
de seu tempo por travestimento ou por transmutação em uma figura masculina, en-
contrará a própria realização.
Na narrativa fílmica, a animação Mulan (1998), dos Estúdios Walt Disney,
adaptou e traduziu a narrativa da donzela guerreira a partir de um poema popular
chinês. Em 2020 a obra ganhou nova adaptação, desta vez para longa-metragem. No
Brasil, no entanto, um importante romance já retomava a donzela guerreira em sua
narrativa. Em Grande sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa (2006), a personagem
Diadorim traveste-se de homem para acompanhar um grupo de jagunços e vingar a
morte de seu pai. Riobaldo, narrador autodiegético que durante todo o tempo convive
2 Este artigo desenvolve parte da pesquisa iniciada na dissertação de mestrado da autora, de título
Entre a espera e a jornada: as representações do feminino na literatura infantil brasileira como metáfora
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com Diadorim, sentindo uma amizade incomum e certa atração pelo companheiro, só
descobre momentos antes da morte dela que se tratava de uma mulher.
Estas obras com universos tão diferentes têm em comum a capacidade de fazer-
-nos questionar os papéis sociais de cada gênero, pois na narrativa da donzela guerreira
o travestimento da mulher geralmente ocorre para enfrentar as arbitrariedades de uma
determinada relação social e, em alguns casos, mudar o equilíbrio das relações de poder
de gênero consolidadas, pois o gênero é “um elemento constitutivo de relações sociais
fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é um primeiro
modo de dar significado às relações de poder” (SCOTT,1995, p. 86).
Chevalier e Gheerbrant, ao definirem o símbolo veste em diferentes culturas,
informam-nos que “a roupa é um símbolo exterior da atividade espiritual, a forma vi-
sível do homem interior. Entretanto, um símbolo pode transformar-se num simples
sinal destruidor da realidade quando o traje é apenas um uniforme sem ligação com a
personalidade” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 2018, p. 947). Este símbolo implica
significados espirituais, de individualidade, de pertencimento a um grupo e, em sua
mais elaborada formulação gnóstica, a roupa seria o símbolo do próprio ser do homem.
A roupa – própria do homem, já que nenhum outro animal a usa – é
um dos primeiros indícios de uma consciência da nudez, de uma
consciência de si mesmo, da consciência moral. É também revela-
dora de certos aspectos da personalidade, em especial de seu caráter
influenciável (modas) e do seu desejo de influenciar. (CHEVALIER
e GHEERBRANT, 2018, p. 949).
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Donzelas à luta
Filha, conhecer-vos-ão.
Filha, conhecer-vos-ão.
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Filha, conhecer-vos-ão.
Filha, conhecer-vos-ão.
Filha, conhecer-vos-ão.
Os ombros abaterão.
Filha, conhecer-vos-ão.
Filha, conhecer-vos-ão.
Filha, conhecer-vos-ão.
Filha, conhecer-vos-ão.
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dispondo-se a ser descoberta enquanto mulher pelo homem que até então foi seu
companheiro de armas.
Assim que o mistério de sua condição feminina é desvendado, ocorre um retor-
no ao mundo feminino: a notícia do falecimento da mãe e do fim próximo do rei leva
a donzela de volta à casa paterna, convidando Dom Marco a acompanhá-la e receber
a aprovação do pai moribundo se seu desejo for manter-se ao seu lado. A narrativa
finaliza com a fala da donzela, que considera justo ter um par após estar solitária du-
rante sete anos de batalhas.
Esta narrativa encontra ressonância em narrativas de “Contos Tradicionais
do Brasil”, de Câmara Cascudo (2000), entre as quais está o conto Maria Gomes. No
entanto, apesar do travestimento de Maria e das estratégias do príncipe para desco-
brir sua real identidade após desconfiar dos olhos dela, as convergências terminam aí.
Enquanto Guiomar persiste em sete anos de batalhas e revela-se ao príncipe quando
lhe convém, Maria, apesar de descrita como inteligente, bonita e trabalhadeira, tem
suas ações controladas por um cavalo mágico. A diferença entre as obras suscita a
compreensão de que o ato de se travestir, em si, não é um compromisso com deslo-
camento de papéis de gênero.
O modelo de educação da mulher, assim como o papel da mulher na sociedade,
foi restrito ao lar, à obediência à autoridade masculina e ao cuidar dos homens e das
crianças durante um longo tempo. Porém, foram teorias de diferença sexual que legi-
timaram esses modelos, que não eram compreendidos como injustos pela sociedade,
já que a própria filosofia e ciência conseguiam justificá-los.
Contudo, se retomarmos um período remoto na história, em alguns povos pri-
mários, inclusive na cultura céltica que é fonte arcaica das narrativas feéricas (COE-
LHO, 2000, p.75), encontraremos a mulher como liderança social e espiritual. Em
algum momento, porém, a mulher foi relegada a um papel de inferioridade, que lhe
colocava como um indivíduo a ser protegido e vigiado, devido à sua fragilidade física,
espiritual e intelectual. Maria Gomes é representada nestes termos.
No conto recolhido no Brasil, observam-se dois momentos distintos. Inicial-
mente, Maria, nascida em uma família pobre e abandonada na floresta, encontra uma
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casa encantada. Nesta casa, uma voz misteriosa lhe provê alimento e mantém-na in-
formada da saúde de seu pai.
Realiza três visitas ao pai doente, nas quais não poderia informar como e onde
estava vivendo e sempre obedece aos rinchos do cavalo quando chegado o momento
de partir. Na terceira visita, na qual ocorre a morte do pai, Maria Gomes deixa de se-
guir o relincho do cavalo por um instante e corre e chora atrás do animal. Este revela
que se Maria não o tivesse perseguido, ele teria voltado para matá-la a coices. Até este
momento, percebemos as convergências com a narrativa do noivo animal, com ações
encadeadas que remetem à narrativa latina Cupido e Psique ou à francesa A Bela e a Fera.
Após essa prova, a voz a orienta a vestir-se de homem e seguir para um reino
próximo. Lá se emprega como jardineiro e torna-se amigo do príncipe, que caminha
pelo jardim todos os dias. A função do travestimento aqui diferencia-se do conto A
donzela guerreira, e mesmo a função social do disfarce remete a um rompimento menor
com o universo compreendido como feminino. Ao invés de guerrear, Maria, enquanto
jardineiro, é responsável pela fecundação e cuidado com a vida.
Novamente são os olhos que denunciam sua condição feminina. O príncipe
vai aconselhar-se com sua mãe, usando o bordão Minha Mãe do Coração, / Os olhos de
Gomes matam, / De mulher sim, d’homem não!. Apesar de a rainha tentar dissuadi-lo, o
príncipe segue em sua convicção. Assim, a mãe o orienta a levar Maria em uma caçada
e dormir abaixo do jasmineiro encantado, pois as folhas caem em cima dos homens
e as flores em cima das mulheres. Porém, com a intervenção do cavalo encantado, o
príncipe acorda coberto de flores.
O cavalo intervém ainda quando o príncipe tenta levar Maria para o banho de
rio, fazendo com que os dois humanos o persigam; intervém quando o rapaz a chama
para jantar, orientando-a a sentar-se na cadeira alta e tomar a sopa quente; e quando o
príncipe lhe joga uma laranja, orientando Maria a fechar as pernas como um homem
invés de abri-las para tentar aparar a fruta com a saia, como faria uma mulher.
Diferentemente do conto português, podemos avaliar que Maria recebe outra
veste que também não representa sua personalidade. É o cavalo quem a veste e é dele a
responsabilidade de fazer com que a mulher desempenhe o papel masculino aos olhos
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do príncipe. No entanto, por baixo das roupas de homem, Maria segue passiva e sus-
cetível às violências de ambas as figuras masculinas. Mesmo seu segredo é conhecido
à sua revelia, quando o príncipe passa a mão por seu busto enquanto a moça dormia
após não resistir ao sono, pois foi obrigada a permanecer no mesmo quarto que o
príncipe por três noites, passando duas noites sem dormir para não ser descoberta.
O conto de Maria Gomes termina com a protagonista casada com o cavalo,
na verdade um príncipe encantado, retornando à casa da floresta que, após a quebra
do encantamento, transforma-se em um lindo palácio, no qual o casal será feliz para
sempre. Neste conto, a mudança de vestes de Maria e a transformação do príncipe não
acarretam transcendência. Antes, Maria é premiada após as provações, aproximando-se
mais das narrativas hebraico-cristãs da qual aparentemente a moça herda o prenome.
Isto porque enquanto as concepções científicas e filosóficas serviam para legiti-
mar a ordem social, a religião e a cultura contribuíam para a formação do imaginário
cultural, interpretando e alimentando essas concepções através de símbolos. O culto a
Maria, pela Igreja Católica, o amor cortês e a literatura trovadoresca na Idade Média
foram fundamentais para essa construção simbólica do feminino:
Cânones, por exemplo, como os que disciplinaram rigidamente as
relações homem-mulher, (relações que, em última análise, são a ver-
dadeira pedra-base de qualquer sociedade ou grupo social) e cuja
regra de ouro é, como sabemos, interdito ao sexo como prazer: a
superioridade do amor conjugal (“puro” e destinado exclusivamente
ao dever de procriação) contraposto ao amor sexual (“impuro” e con-
denado às penas do Inferno). Na base dessa concepção de amor está
a imagem dual da mulher tal como foi gerada nos tempos bíblicos
(COELHO, 2000b, p. 92).
Assim, diferentemente do conto A donzela que vai à guerra, no conto Maria Go-
mes não existe uma explicação lógica para que a moça tenha que se travestir de homem.
Enquanto Guiomar tem necessidade de representar a família na batalha entre a França
e Aragão, Maria apenas segue os comandos da voz misteriosa, pois isso é o esperado
dela. Obediência e servidão que serão compensadas no final. Motivos divergentes do
travestimento da personagem Guiomar.
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Como convergência com Maria Gomes, a jornada da princesa não se inicia por
intenção, mas por autopreservação. Obrigada pelo pai a se casar para garantir uma
aliança entre poderes, a jovem se tranca no quarto e, em lágrimas, pede ao corpo e à
mente para ajudá-la a sair deste impasse. Então, nasce barba no rosto da moça. Ela é
expulsa do castelo pelo pai, percebendo que não conseguirá ganhar a vida com serviços
considerados femininos, devido à barba, nem como homem, devido ao corpo.
Esse espaço entre o feminino e o masculino que a princesa passa a habitar co-
bra um deslocamento do papel de gênero bem próprio das discussões atuais. A busca
contemporânea da mulher na sociedade é de uma nova imagem, que se configura em
uma busca existencial do que é ser mulher. Coelho afirma que essa mudança “atinge
as próprias bases do sistema de relações vigentes no mundo civilizado, de estrutura
patriarcal, que herdamos” (COELHO, 2000b, p.89). A mudança da representação
do feminino reflete imediatamente em seu papel social e, por conseguinte, em toda a
estrutura social que tem a família como núcleo.
Ainda assim, os novos paradigmas não admitem um modelo exemplar, já que a
individualidade e a moral da responsabilidade ética são mais desejáveis do que a moral
dogmática (COELHO, 2000a, p. 19). E, com os modelos vigentes de feminilidade e
de masculinidade em reconfiguração, inicialmente indica-se apenas o que não é acei-
tável. Casar-se por conveniência não é aceitável para a princesa de Entre a Espada e a
Rosa. E uma mulher com barba não é aceitável para a sociedade em que vive. Necessita
de uma veste para que volte a fazer parte de um grupo. Desfaz-se de suas joias para
comprar um elmo, escudo e cavalo, e passa a ser guerreiro.
É na chegada a um reino de um jovem príncipe que a toma como guerreiro e
amigo, mas que passa a desenvolver “uma devoção mais funda por aquele amigo do
que um homem sente por um homem”, que a princesa sente necessidade de deixar
cair a armadura, assim como Guiomar. Porém, tem consciência que o príncipe não
a aceitará com a barba. Novamente, busca em seu corpo e sua mente o caminho que
a levará a felicidade. No lugar da barba, nascem as rosas, que vão despetalando até
que reste apenas a pele rósea. Por fim, desce ao encontro do príncipe, espalhando o
perfume das flores pelo ar.
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Referências
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wers. Tradução Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990.
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2004.
COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil: história, teoria e análise. São Paulo:
Moderna, 2000a.
COELHO, Nelly Novaes. Literatura: arte, conhecimento e vida. São Paulo: Peirópolis,
2000b.
COELHO, Nelly Novaes. O Conto de Fadas: símbolos – mitos – arquétipos. São Paulo:
Paulinas, 2008.
COOK, Barry; BANCROFT, Tony. Mulan. EUA: Walt Disney Pictures, 1998. 1
DVD (88 min), animação, color.
GRILLO, Nícia de Queiroz (coord). A princesa que era um príncipe. In: Histórias da
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ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Revista
Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2,jul./dez. 1995, p. 71-99.
TORRADO, Antônio. A donzela que vai à guerra. Ilus. Madalena Raimundo. Lisboa:
Plátano Editora, 1981.
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From the fairy tale to the epic: the
change in the narrative tone in
J.R.R. Tolkien’s The Hobbit
1 * Professor Me. (UFRGS). Bolsista (CAPES) e Doutorando em Estudos de Literatura pelo Programa
gmail.com>.
RESUMO: Este trabalho analisa como J.R.R. Tolkien usa elementos do conto de fadas e do
gênero épico para escrever seu romance O Hobbit. Publicado em 1937, o primeiro romance
de Tolkien é frequentemente visto como um conto de fadas. Além disso, partindo-se de seu
ensaio “On Fairy-Stories” para analisar sua própria ficção, é possível argumentar que O
Hobbit tem a maioria das características que ele atribui ao gênero conto de fadas: acontece em
um mundo secundário consistente, satisfaz vários desejos humanos, como o de vislumbrar
outros mundos e o de conversar com outros seres; mais importante, tem um “final feliz”,
que é, por excelência, a essência do gênero para o autor. No entanto, uma leitura atenta de
sua ficção revela que seu tom leve é lentamente substituído por um tom mais sombrio, típico
de narrativas antigas como o poema épico Beowulf. Esta pesquisa, portanto, investiga como
Tolkien constrói uma narrativa que começa com a sobriedade do conto de fadas, atinge um
clímax característico do épico e termina com um sabor agridoce que mistura traços de ambos
os gêneros. Para tal, utilizo as teorias de Tolkien sobre esses gêneros.
ABSTRACT: This work analyses how Tolkien uses elements of the fairy tale and the
epic genre to write his novel The Hobbit. Published in 1937, J.R.R. Tolkien’s first published
novel2 is frequently seen as a fairy tale. In addition, by using the author’s essay “On
Fairy-Stories” to analyze his own fiction, it is possible to argue that it has most of the
characteristics he ascribes to the fairy tale genre: it takes place in a consistent secondary
world, it satisfies several human desires, such as the one of glimpsing other worlds and
the one of conversing with other beings; more importantly, it has a “happy ending”,
which is, par excellence, the essence of the genre for the author. However, a close reading
of such fiction reveals that its light tone is slowly replaced by a darker one, typical of
ancient narratives like the epic poem Beowulf. This research, therefore, investigates how
Tolkien builds a narrative that begins with the sobriety of the fairy tale, reaches a climax
characteristic of the epic, and closes with a bittersweet taste that mixes traces of both
genres. To do so, I rely on Tolkien’s own theories concerning such genres.
2 Used here as an all-encompassing term to mean simply a fictional narrative of considerable length
and complexity.
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If fairy stories are, for Tolkien, the ones that take place in the realm of Faërie
and in such realm things that in our world are seen as fantastic and extraordinary
have their being, it can be argued, as Brian Attebery (2014) and John Clute (1996)
believe, that Tolkien envisions fairy stories as fantasy stories. Such argument is, to a
great extent, corroborated when Tolkien discusses the social function of fairy stories.
Tolkien claims that among all the benefits of reading fairy stories there is one
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that stands out: their potential of providing readers with four things: fantasy, reco-
very, escape, and consolation. Briefly put, fantasy has to do with the human mind’s
capacity of forming mental images of things not present in our world (TOLKIEN,
2001, p. 46–47). In addition to that, fantasy is connected to the power of giving to
such imagined things what is called secondary belief, “[…] a belief that accepts the
inner reality of the story and believes in its ‘truth’ as long as the reader’s mind is there
within that story’s bounds.” (RUUD, 2011, p. 327). Fantasy also makes possible the
creation of what Tolkien calls secondary worlds, fictional universes in which fantastic
things or events (i.e.: things and events that are regarded as impossible in our world)
feel possible. Recovery, in its turn, is deeply connected with fantasy, for when one
sees the fantastic things in a secondary world, one may regain a clearer view of the
things in the real world. In other words, as Tolkien argues, recovery is concerned
with the return and renewal of health and the regaining of a clear view: “[w]e should
meet the centaur and the dragon, and then perhaps suddenly behold, like the ancient
shepherds, sheep, and dogs, and horses – and wolves. This recovery fairy-stories help
us to make.” (TOLKIEN, 2001, p. 57).
Then, there is escape and consolation, which Tolkien discusses jointly. For
the writer, these two characteristics are deeply concerned with wish fulfillment and
the imaginary satisfaction of ancient desires: escape, for example, fulfills what C.S.
Lewis calls our desire for a far-off country, a glimpse of other-worlds: “[…] a desire
for something that has never actually appeared in our experience.” (LEWIS, 2001, p.
30). Consolation, on the other hand, satisfies a very specific human desire: the desire
for a happy ending. Tolkien proposes that such consolation is the highest function of
fairy stories and to illustrate it he creates the term Eucatastrophe,3 explaining it thus:
In its fairy-tale – or otherworld – setting, it is a sudden and mira-
culous grace: never to be counted on to recur. It does not deny the
3 As Verlyn Flieger (2017, p. 37) points out, Tolkien’s Eucatastrophe is derived from the Greek word
katastrephein, kata (down) and strephein (turn). By adding the prefix “eu-” (good), Tolkien changed the
negative meaning of the original word to a positive one: the “good catastrophe”.
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The notion of fairy tale used in this article, then, comprises all these specificities
proposed by Tolkien. The understanding of epic, on the other hand, derives from the
author’s 1936 essay “Beowulf: the monsters and the critics”, in which he discusses the
literary and historical importance of the Old English poem Beowulf. Tolkien was deeply
concerned with medieval texts and he spent a considerable time of his life studying and
lecturing about them. The Beowulf poem was among his favorites, for he believed it was
a meaningful expression of pagan Germanic warrior culture, whose centrality resides on
what he calls “the theory of courage, which is the great contribution of early Northern
literature.” (TOLKIEN, 2006, p. 20). Before I discuss such theory, it is important that
I call attention to the fact that Tolkien did not consider Beowulf an epic poem per se but
rather an elegy: “Beowulf is not an ‘epic’, not even a magnified ‘lay’. No terms borrowed
from Greek or other literatures exactly fit: there is no reason why they should. Though
if we must have a term, we should choose rather ‘elegy’. It is an heroic-elegiac poem;
[…].” (TOLKIEN, 2006, p. 31). For Tolkien, most of the poem (its first 3,136 lines to
be precise) works as a prelude to a dirge, the hero’s demise. During most of these first
3,136 lines, the reader is presented with the heroic deeds of Beowulf, from his youth,
when he becomes a legendary hero, to his old age, when he becomes king of his people,
4 Also coined by Tolkien and derived from the Greek word katastrephein, it means the opposite of
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the Geats. Beowulf’s trajectory during most of the narrative, to a considerable extent,
resembles those of Aeneas and Odysseus, since the three heroes leave home seeking for
renown and, after years of perilous adventures, win it. One of the main differences bet-
ween these heroes is that Beowulf’s tale ends with his demise during his confrontation
with the dragon that was threatening to destroy the hero’s homeland. The warrior slays
the beast and saves his people, but pays with his own life.
It can be argued, however, that “[…] though Tolkien called Beowulf a heroic-
-elegiac, it is precisely its heroism that allows one to define it as an epic elegy, for if on
one hand, it tells of the heroic deeds of “superior men”, to use Aristotle’s own term,
on the other hand, it closes with the somber tone that reminds us that “lif is læne: eal
scæceð leoht and lif somod.”5 (TOLKIEN, 2006, p. 19). Such tone and quote capture,
as Flieger (2017, p. 62) suggests, the essence of what the poem meant to Tolkien and
of what he called the theory of courage. Such theory, as Ruud (2011, p. 558) suggests,
is founded on the belief that true courage is connected to keep fighting even when
there seems to be no more hope left. Tolkien’s theory of courage is, in this sense, about
doomed heroism and, differently from what he proposes in his “On Fairy-Stories”,
about the recognition that happy endings depend not only on providential help but
also on the self-sacrifice of a hero for a greater cause.
Having defined the terms I use in my analysis, I intend now to exemplify how
Tolkien’s The Hobbit moves from the light-hearted fairy tale tone to a darker and
heavier one that resembles Beowulf, and closes with a bittersweet mixture of the two.
The Hobbit opens with the famous sentence “In a hole in the ground there lived a
hobbit.” (TOLKIEN, 2007, p. 3). Such sentence, as Flieger (2017, p. 38) claims, has
5 Life is loan: all perishes, light and life together. (Verlyn Flieger’s translation).
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a very important narrative function since it is through it that readers enter Tolkien’s
secondary world: the author makes sure that his readers are arrested to his fictional
universe from the very beginning and he does so by informing us that the story we are
about to read does not take place in the primary world, but in a magical one in which
creatures called hobbits live in holes in the ground. However, immediately after that,
readers are informed that such hole was
Not a nasty, dirty, wet hole, filled with the ends of worms and an oozy
smell, nor yet a dry, bare, sandy hole with nothing in it to sit down
on or to eat: it was a hobbit-hole, and that means comfort.
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toad in a real garden: the Shire, Bilbo’s homeland, is a worldly place that is home to
fantastic creatures.
The secondary world in which Bilbo lives is a rather safe one, where there are
no perilous adventures or dangers of any sort and the hobbit is happy for that, so much
so that when Gandalf comes to him one morning saying that he was having difficulties
in finding someone to share in an adventure he had been planning, the hobbit tells him
straight away: “I should think so—in these parts! We are plain quiet folk and have no
use for adventures. Nasty disturbing uncomfortable things! Make you late for dinner! I
can’t think what anybody sees in them […]” (TOLKIEN, 2007, p. 6). Bilbo, and most
other hobbits, are not fond of adventures mainly because going on an adventure means
leaving the comfort and safety of the Shire and stepping into the dangerous unknown.
Rarely do Hobbits leave the Shire and they do not know much about the affairs of the
lands beyond the borders of their homeland. It is as if the Shire was an altogether dif-
ferent world, secluded from the rest of Middle-earth. In fact, scholars such as Shippey
(2001) and Flieger (2017) see it exactly this way: according to them, Tolkien’s narrative
consists of multiple secondary worlds; Middle-earth, per se, is the greatest of them all
and it encompasses a number of other secondary worlds. Every time the characters
move from one of these worlds to another, there is a change in the narrative tone. Such
aspect can be noticed already in chapter one, “An Unexpected Party”, in which the
comic and light-hearted tone predominates in the exchanges between the characters,
as it can be argued from the dialogue between Bilbo and Gandalf in which the wizard
plays with the (un)intended meaning of the hobbit’s “good morning”:
“Good Morning!” said Bilbo, and he meant it. The sun was shining,
and the grass was very green. But Gandalf looked at him from un-
der long bushy eyebrows that stuck out further than the brim of his
shady hat.
“What do you mean?” he said. “Do you wish me a good morning,
or mean that it is a good morning whether I want it or not; or that
you feel good this morning; or that it is a morning to be good on?”
[…]
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“What a lot of things you do use Good morning for!” said Gandalf.
“Now you mean that you want to get rid of me, and that it won’t be
good till I move off.”. (TOLKIEN, 2007, p. 5–6).
The following day, when Bilbo is getting ready for his afternoon tea, he recei-
ves a most unexpected visitor: a dwarf from a far-off land. Bilbo does not at first un-
derstand the meaning of the dwarf’s visit, but soon he learns that Gandalf had set the
hobbit’s residence as the meeting point of a group of 13 dwarves who are planning a
most perilous adventure. Not knowing what to do and not wanting to be rude, Bilbo
welcomes the unwanted visitors who soon turn the meeting into a lively party. This
is probably one of the funniest moments in the narrative (at least for the dwarves and
the readers), but it is also during the party that readers are first presented with the
difference between the light tone of the Shire and the grave one of the lands outside its
borders, as it may be argued by comparing the two songs sung by the dwarves during
the party. Here is an excerpt from the first one: “Dump the crocks in a boiling bowl;/
Pound them up with a thumping pole;/ And when you’ve finished, if any are whole,/
Send them down the hall to roll!/ That’s what Bilbo Baggins hates!/ So, carefully!
carefully with the plates!” (TOLKIEN, 2007, p. 13). The language in such song is
quite plain and the tone is playful, for the dwarves were mocking Bilbo’s uneasiness
in the face of the apparent mess the visitors were making out of his residence. The
second song, however, contains much more ornate language, since it is used to describe
a secondary world outside the Shire, a world which is the homeland of the dwarves:
Far over the misty mountains cold/ To dungeons deep and caverns old
/We must away ere break of day/ To seek the pale enchanted gold.//
The dwarves of yore made mighty spells,/While hammers fell like
ringing bells/ In places deep, where dark things sleep, /In hollow
halls beneath the fells. (TOLKIEN, 2007, p. 14-15).
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The song tells of a far-off land, filled with dangers and dark creatures. A land
where great deeds once took place. The light tone witnessed in the previous song is
replaced by a sense of wonder that may remind one of ancestral times, which can be
argued from Tolkien’s choice of words and syntax (e.g.: “ere”, yore”, “paces deep”, etc.).
This song is the prelude to the adventure that Bilbo is soon to join in, which means
he will leave the orderly and peaceful Shire and step into the wild and perilous lands
beyond its borders. If, on one hand, the song above is the prelude to the upcoming
adventure, on the other hand, the exact moment Bilbo moves from one secondary
world to another is marked by a dramatic change in the surrounding landscape. Dif-
ferently from the Shire, which is depicted as orderly and homely, the lands in which
Bilbo enters are unwelcoming and dreary, as it can be noticed in the excerpt below:
At first they had passed through hobbit-lands, a wide respectable
country inhabited by decent folk, with good roads, an inn or two, and
now and then a dwarf or a farmer ambling by on business. Then they
came to lands where people spoke strangely, and sang songs Bilbo had
never heard before. Now they had gone on far into the Lone-lands,
where there were no people left, no inns, and the roads grew steadily
worse. Not far ahead were dreary hills, rising higher and higher, dark
with trees. On some of them were old castles with an evil look, as if
they had been built by wicked people. Everything seemed gloomy,
for the weather that day had taken a nasty turn. Mostly it had been
as good as May can be, even in merry tales, but now it was cold and
wet. (TOLKIEN, 2007, p. 30).
The language choice is particularly interesting in the passage above: the nar-
rator closes the paragraph by saying that the weather had been mostly good; he even
compares it to the weather in “merry tales”. The past perfect tense there is used to
recall the beginning of the paragraph, when the adventurers were still traveling through
hobbit-lands, Bilbo’s own peaceful and orderly secondary world. At that point, things
still seemed like a merry tale, however, from the moment they leave those lands, the
atmosphere darkens and becomes gloomy and uninviting. The transition between
the secondary world of the Shire to the one of Middle-earth is well marked and from
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that narrative point on, Bilbo will have to struggle to survive, for he does not belong
to the epic world beyond the borders of his homeland.
It is worth noticing that the first adventures of the hobbit outside the Shire,
though dangerous, still maintain a somehow comic tone, such as in the confrontation
with the trolls, in which Bilbo, rather than fighting for his life, decides to convince
his captors to let him live by offering to cook breakfast for them: “‘And please don’t
cook me, kind sirs! I am a good cook myself, and cook better than I cook, if you see
what I mean. I’ll cook beautifully for you, a perfectly beautiful breakfast for you, if
only you won’t have me for supper.’” (TOLKIEN, 2007, p. 35). As the adventure goes
on, the confrontations with the dangerous creatures of Middle-earth grow grimmer
and grimmer: from the riddle game with Gollum in the Misty Mountains, through
the dreadful fight against the giant spiders in Mirkwood, and to the grim Battle of
the Five Armies at the end of the narrative. Through all these adventures, the readers
confirm what they may have already guessed by then: Bilbo is not a hero, at least not
an epic hero such as Beowulf. In this sense, none of the great war deeds in the narra-
tive are performed by him, but rather by some other character; that does not mean,
however, that Bilbo lacks courage, but rather that his courage is different from that
portrayed by Beowulf and by Thorin and his company. The hobbit’s courage is con-
nected to the classical virtue of temperance, which Louis Markos (2012, p. 74) defines
as a kind of courage that lies between rashness and cowardice: Bilbo will neither leave
his companions behind during a moment of need nor will he run deliberately into
mortal danger without a plan that grants him a chance to survive. Such idea is cor-
roborated, for example, in the passage the hobbit rescues the dwarves that had been
snared by the spiders in Mirkwood: Bilbo was only able to do so because he wore the
invisibility ring he had found in the Misty Mountain, which means he did not have to
engage in direct fight. This idea is even stronger in the chapter “The Clouds Burst”,
in which The Battle of the Five Armies takes place. Bilbo’s participation in it, as the
narrator declares, was “quite unimportant […]. Actually I may say he put on his ring
early in the business, and vanished from sight, if not from all danger.” (TOLKIEN,
2007. p. 257). Later, in that same chapter, readers are informed that Bilbo first idea
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is not to fight, but rather to hide: “[h]e had taken his stand on Ravenhill among the
Elves—partly because there was more chance of escape from that point, and partly
[…] because if he was going to be in a last desperate stand, he preferred on the whole
to defend the Elvenking.” (TOLKIEN, 2007, p. 259).
As it was mentioned above, after the confrontation with the trolls, the narra-
tive tone starts to get darker and darker. The passage that probably best illustrates
that appears in the chapter “On the Doorstep”, which tells readers that when Bilbo
and his companions finally approach the final stage of their quest, the atmosphere is
no longer hopeful:
It was a weary journey, and a quiet and stealthy one. There was no
laughter or song or sound of harps, and the pride and hopes which
had stirred in their hearts at the singing of old songs by the lake
died away to a plodding gloom. They knew that they were drawing
near to the end of their journey, and that it might be a very horrible
end. The land about them grew bleak and barren, though once, as
Thorin told them, it had been green and fair. There was little grass,
and before long there was neither bush nor tree, and only broken and
blackened stumps to speak of ones long vanished. They were come
to the Desolation of the Dragon, and they were come at the waning
of the year. (TOLKIEN, 2007, p. 186-187).
It is interesting to think that Tolkien (and the writer himself, as well as scholars
such as Shippey and Flieger, comments on that) inserted a passage that was undenia-
bly inspired by the Beowulf poem right after the chapter in which we are given the
information above. In the chapter “Inside Information”, Bilbo enters Smaug’s lair and
steals from the dragon’s hoard a “great two-handled cup, as heavy as he could carry
[…]. (TOLKIEN, 2007, p. 198). Such an act soon rouses the dragon’s wrath and im-
pels him to leave his lair and cause great havoc in the village nearby. Below, I selected
an excerpt from Beowulf which describes a scene similar to the one mentioned above:
Even thus had that despoiler of men for three hundred winters kept
beneath the earth that house of treasure, waxing strong; until one
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filled his heart with rage, a man, who bore to his liege-lord a gol-
dplated goblet, beseeching truce and pardon of his master. […] Then
the serpent woke! New strife arose. […] The Guardian of the Hoard
searched eagerly about the ground, desiring to discover the man who
had thus wrought him injury as he lay in sleep. Burning, woeful at
heart, ofttimes he compassed all the circuit of the mound, but no man
was there in the waste. Nonetheless he thought with joy of battle, of
making war. Ever and anon he turned him back into the barrow, see-
king the jewelled vessel. Quickly had he discovered this, that some one
among men had explored the gold and mighty treasures. In torment
the Guardian of the Hoard abode until evening came. Then was the
keeper of the barrow swollen with wrath, purposing, fell beast, with
fire to avenge his precious drinking-vessel. Now was the day faded
to the serpent’s joy. No longer would he tarry on the mountain-side,
but went blazing forth, sped with fire. Terrible for the people in that
land was the beginning (of that war), even as swift and bitter came
its end upon their lord and patron. (TOLKIEN, 2015, p. 144–145).
When Tolkien brings this grave tone to the narrative accompanied by a series
of scenes that resembles the Beowulf poem, he seems to be trying to make sure that
whoever has read the poem makes the connection between his own novel and the
medieval text. It is likely that even the ones who have not read Beowulf will be able, at
that point in the narrative, to understand that whatever comes next will require he-
roic deeds: the dragon was awakened and it must be slain. Bilbo cannot slay it, for he
is not a hero, at least not a hero of the same kind as Beowulf. The burden of slaying
the dragon falls onto Bard’s6 shoulders, who has to face the beast in order to save the
lives of the residents of Lake-town, which Smaug chose to destroy as an act of revenge
against their inhabitants who had helped Bilbo and his companions. It is true that the
dragon is slain and its slayer survives the confront, but the price that is paid is burden-
6 A resident of Lake-town who is a descendant of Girion, the last lord of Dale, a city situated in
the valley between the south-western and south-eastern arms of the Lonely Mountain and that was
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some: Lake-town is utterly destroyed and a quarter of its inhabitants lose their lives.
At this point in the story, with the dragon slain, readers may feel that the narrative is
flowing towards some sort of happy-ending, the Tolkienian Eucatastrophe. However,
there is one last confrontation to be faced: a gruesome battle in which dwarves, elves,
the men of Lake-town and the eagles have to join forces to fight against an enormous
and deathly army of goblins. The Battle of the Five Armies is the apex of The Hobbit
and it is during such war that the essence of what Tolkien calls the theory of courage
appears more prominently. As mentioned earlier in this work, such theory encompasses
the idea that in a hostile world such as Middle-earth there will be moments in which
it will be necessary to fight and resist in the face of imminent defeat. To use Ruud’s
words, such theory is connected with “the willingness, even the necessity, to continue
fighting in a lost cause even to the death. Lasting glory only comes with the heroic
and unflinching defense against impossible odds.” (RUUD, 2011, p. 157). According
to this theory, the scholar adds, “courage to fight on when all hope was gone was the
ultimate value of life in a world in which even the gods were destined to be destroyed
[…].” (RUUD, 2011, p. 292). All the creatures fighting in such battle, except for Bilbo,
belong to this hostile world; thus, it is expected that they will fight to their last breath
and the bitter end. Such is what happens to Thorin and two of his companions, his
cousins Fili and Kili, who are all slain in the battle against the goblins while fighting
to protect their homeland. Their deaths are probably one of the saddest moments in
the narrative and the language and the tone used by the author to describe the mo-
ment Bilbo learns Thorin was slain reflect such idea:
There indeed lay Thorin Oakenshield, wounded with many wounds,
and his rent armour and notched axe were cast upon the floor. He
looked up as Bilbo came beside him.
“Bilbo knelt on one knee filled with sorrow. “Farewell, King under
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“No!” said Thorin. “There is more in you of good than you know,
child of the kindly West. Some courage and some wisdom, blended
in measure. If more of us valued food and cheer and song above
hoarded gold, it would be a merrier world. But sad or merry, I must
leave it now. Farewell!”
Then Bilbo turned away, and he went by himself, and sat alone wra-
pped in a blanket, and, whether you believe it or not, he wept until
his eyes were red and his voice was hoarse. (TOLKIEN, 2007, p.
262–263).
Afterwards, Bilbo learns the full account of what happened in the battle7 and,
readers are informed, that what he heard gave him more sorrow than joy. With the
battle over and the dead buried, Bilbo returns home with a heavy heart and also with
a heavy purse, for he had been promised a share of the treasure Thórin and his com-
pany reclaimed from Smaug. It is interesting to notice that on the homeward journey,
the narrative once again returns to a somehow light-hearted and hopeful tone, which
may be perceived by the way the narrator describes the weather and the landscape:
It was spring, and a fair one with mild weathers and a bright sun […].
At last they came up the long road, and reached the very pass where
the goblins had captured them before. But they came to that high
point at morning, and looking backward they saw a white sun shining
over the outstretched lands. (TOLKIEN, 2007, p. 268).
The return journey is marked by the beauty of Spring, which may allude to
renewal and hope. At the same time, when Bilbo and Gandalf reach the Misty Mou-
ntains, where, at the beginning of the narrative, they had been snared by the goblins,
7 Bilbo is knocked out by a stone during the battle and misses its final events.
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the region is no longer seen as dreary as it had been before, for where there had been
dark skies and snow, the Sun now shines. Then, when Bilbo finally arrives home, he
slowly gets back to his normal life. It is true that he has to deal with some incidents
upon his arrival and that the adventure he had made him a totally new hobbit; ho-
wever, as we are informed by the narrator, “he remained very happy to the end of his
days, and those were extraordinarily long.” (TOLKIEN, 2007, p. 275). Such senten-
ce recalls the typical “and he lived happily ever after” of fairy tales, the Eucatastrophe
that, as Tolkien believes, assures readers of fairy stories that no matter how dreary
and near to tragedy a tale may be, there will always be a sudden turn that denies ul-
timate final defeat. (TOLKIEN, 2001, p. 68–69). Such ending, however, is possible
for Bilbo, who does not belong in the wild world of Middle-earth, but rather in the
peaceful Shire. For the dwarves, for example, inhabitants of the perilous realm beyond
the Shire borders, the ending is not as happy, for it is not inspired in fairy tales, but
rather in the dark tales of doomed heroism, such as the Beowulf poem. Can it be said,
then, that The Hobbit has a happy ending? The answer, for Flieger is both yes and no:
The Hobbit is an idiosyncratic fairy story whose tone and ethos shift
markedly halfway through. […] What began as a mock fairy-tale
quest to There and Back Again changes when the dwarves reach the
Lonely Mountain and rouse the wrath of Smaug into a mini-epic like
Beowulf than “Snow White” […]. (FLIEGER, 2017, p. 39).
Thus, The Hobbit may be seen as neither a fairy tale or an Epic, but a hybrid
that draws on the elements of both genres and hovers, in tone and style, between
them. In this sense, the author’s first novel presents traces of the two narrative genres
he appreciated the most, both as scholar and reader. By mixing aspects of the fairy
tale and of the Epic, the author managed to write a narrative that reminds one that
happy endings may exist, but at times not for everyone and, at others, at a high price.
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References
CLUTE, John; GRANT, John. The Encyclopedia of Fantasy. London: Orbit, 1996.
FLIEGER, Verlyn. There Would Always Be a Fairy Tale: More Essays on Tolkien. Ohio:
Kent State University Press, 2017.
MARKOS, Louis. On the Shoulders of Hobbits: The Road to Virtue with Tolkien and
Lewis. Chicago: Moody, 2012.
RUUD, Jay. Critical Companion to J.R.R. Tolkien. New York: Facts On File, 2011.
SHIPPEY, Tom. J.R.R. Tolkien: Author of the Century. London: HarperCollins, 2001.
TOLKIEN, J.R.R. The Monsters and the Critics and other Essays. (Edição de Christopher
Tolkien) London: HarperCollins, 2006.
TOLKIEN, J.R.R. The Hobbit or There and Back Again. London: HarperCollins, 2007.
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Caperucita Roja: a Chapeuzinho
Vermelho na poesia de Gabriela
Mistral
1 Pós-Doutora em Literatura Comparada pela Universidade de São Paulo (USP); Doutora e Mes-
tre em Literatura pela FFLCH - USP, Bacharel e Licenciada em Letras (FFLCH – USP), docente
da Fatec e da FAM; tradutora, autora e pesquisadora de literatura infantil e juvenil e ficção seriada.
E-mail: [email protected]
RESUMO: O presente artigo analisa o poema narrativo “Caperucita Roja”, inserido na
seção “Cuentos”, do livro de poemas infantis Ternura, de 1945, da poeta e ensaísta chilena
Gabriela Mistral. Inicialmente, apresenta-se um breve panorama da obra da autora,
identificando as diferentes edições do livro Ternura, esclarecendo seus temas e suas seções,
em especial a seção “Cuentos”. A seguir, estuda-se o conto Chapeuzinho Vermelho, de
Charles Perrault, para, então, analisar-se o poema “Caperucita Roja”, de Gabriela Mistral.
ABSTRACT: This article discusses the narrative poem “Little Red Riding Hood” –
“Caperucita Roja”, in the section “Cuentos” (Tales), in Ternura, from 1945, by the Chilean
poet and essayist Gabriela Mistral. First, some aspects of the life and work of the author
are presented, identifying the different editions of Ternura, clarifying its objects and
sections, especially the section “Cuentos”. Next, the tale “Little Red Riding Hood” by
Charles Perrault is studied, in order to, then, analyze the poem “Caperucita Roja”, by
Gabriela Mistral.
KEYWORDS: Gabriela Mistral; children’s poetry; Little Red Riding Hood; Perrault;
Caperucita Roja.
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A vida e a obra de Gabriela Mistral são marcadas pela dor da perda sucessiva de
entes queridos, pelo exílio voluntário, pela necessidade de conhecimento, preservação e
divulgação da cultura latino-americana, do indigenismo, do americanismo e por questões
relativas à criança, à mulher, à mãe e à educação. Tais aspectos resultaram não só numa
vasta obra poética, mas também em artigos e ensaios que abordam temas pertinentes
à História, Pedagogia, Política, Cultura, Filosofia, Literatura e Artes. Para Mistral,
“o americanismo constitui uma luta pela cidadania, uma luta feita através do amor ao
próximo, de caráter marcadamente cristão, do amor, do respeito e fidelidade à terra
americana, [...] que se personifica na figura materna” (VALENZUELA, 1998, p. 13).
Desolación, primeiro livro de poemas de Mistral, publicado em 1922 na cidade
de Nova Iorque com o apoio da Casa das Américas, lançou a poeta ao cenário literário
internacional. Seguiram a Desolación outros livros de poesia: Ternura, Tala, Lagar e o
póstumo Poema de Chile, todos marcados pela dor e pelo amor à natureza, e ainda por
um americanismo que prega a fraternidade e a unidade continental, que estende sua
visão ao indigenismo e ao campesinato.
A primeira edição de Desolación, o livro mais conhecido de Mistral, consistia na
reunião dos “Sonetos de la Muerte”, de poemas líricos e de pequenas poesias e nar-
rativas para crianças, as quais já apareciam, desde 1914, nos Libros de lectura e El lector
chileno (cartilhas de ensino básico das escolas públicas do Chile) de Manuel Guzmán
Maturana.2
Ternura teve sua primeira edição em Madri, 1924, e mais tarde em Buenos Ai-
res, 1945. O livro contém a seção “Infantiles” (cuja inclusão em Desolación foi muito
criticada por quebrar a sequência poética da obra), acrescida de algumas alterações
na pontuação e na ortografia. A linguagem utilizada nos poemas mostra, porém, um
aspecto original que introduz o “falar sul-americano”, nos termos de Jorge Edwards
(MISTRAL, 1969). Contudo, dada a inclusão de palavras, expressões, nomes próprios,
2 Guzmán Maturana, M. El Lector Chileno. Libros de Lectura. 1905. Cartilhas das escolas públicas
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3 Para o presente artigo, trabalhamos com a 8ª. edição de Ternura, publicada em 1965, e que segue
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Por sua vez, Desolación recebe nova edição em 1926, dois anos após a publica-
ção de Ternura. Neste Desolación, Mistral suprimiu todos os poemas da seção “Infanti-
les”, exceto “Manitas” e “Himno a la Escuela Gabriela Mistral”. No entanto, a seção
“Canciones de Cuna” é novamente publicada, mas segundo as modificações feitas pela
poeta em Ternura, de 1924.
Tala é um livro de poemas lançado por Mistral em Buenos Aires, em 1938. As
seções «Albricias», «Cuenta Mundo» e «Cuentos» apresentam 29 poemas infantis
inéditos.
Somente em 1945, em Buenos Aires, Mistral publica uma nova edição de Ternu-
ra, agora dedicada à sua mãe. Suas 190 páginas dividem-se em sete seções acrescidas de
novos poemas. A seção “Cuentos” é formada por poemas de Tala (“La Madre Granada”
e “El Pino de Piñas”) e de Desolación (“Caperucita Roja”), seguidos por “Colofón con
cara de excusa”, escrito por Mistral a pedido do Editor.
As edições subsequentes de Tala e Desolación perderam em definitivo os poemas
incluídos em Ternura, 1945. Para o presente trabalho, selecionamos a edição argentina
do livro Ternura para analisar o poema “Caperucita Roja”, inserida na seção “Cuentos”.
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cama vestido com as roupas da avó. A menina estranhou a voz; porém, mesmo assim,
decidiu entrar. O Lobo, escondido sob os cobertores, pediu que a menina colocasse a
broa e a manteiga na mesa e se deitasse com ele. Chapeuzinho, então, despiu-se e se
deitou ao seu lado. Foi então que a menina se espantou com o corpo nu da avó, ques-
tionando o grande porte dos braços, das pernas, das orelhas, dos olhos e, por fim, dos
dentes. O Lobo se lança de repente sobre Chapeuzinho e a devora, como fizera com a
avó (PERRAULT, 2007, p. 91-92). Ao final da narrativa, Perrault introduz a “Moral”
da história, explicando que “muitas crianças, principalmente as menininhas bonitas,
jeitosas, boazinhas”, não devem dar ouvidos a qualquer pessoa:
Aqui se vê que muitas crianças,
Principalmente as menininhas,
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O enunciador não especifica seu narratário, pois este assume a posição de narra-
dor em 3ª. pessoa, onisciente, semelhante àquele da tradição oral, isto é, um contador
de histórias. Na primeira estrofe, a instância narrativa apresenta as personagens Ca-
perucita Roja — Chapeuzinho Vermelho — e a Abuela — a avó. Segundo Coelho, o
estilo narrativo do contador de histórias tradicional se impôs a partir do Romantismo,
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4 PERRAULT, C. Les Contes des Fées de Perrault. Dessins par Gustave Doré. Prefácio de P. J. Stahl.
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A segunda quadra revela que Caperucita, assim que amanheceu, pôs-se a ca-
minho da casa da avó. Não há qualquer referência à mãe ou a advertências sobre os
cuidados necessários para atravessar o bosque em segurança. A menina caminha com
“un pasito audaz”, trazendo novamente um diminutivo — “pasito” — que semantica-
mente contrasta com a caracterização de “audaz”. Os dois últimos versos da segunda
estrofe introduzem a ação do Lobo, chamado pelo epíteto de “Maese”, termo arcaico,
já em desuso na Língua Espanhola5, que significa “Mestre” em Língua Portuguesa. O
Lobo é associado a “olhos diabólicos”, numa conexão com a representação do mal na
religião católica. O Lobo interpela a menina, pedindo-lhe que lhe diga para onde ela
vai. A Caperucita, agora associada à cor branca, aos lírios brancos e à candura, explica,
com ingenuidade, os detalhes da avó, de sua moradia e do que está levando. Caperucita
é cândida “como los lirios blancos”, ela é pura e virginal.
O lírio é sinônimo de brancura e, por conseguinte, de pureza, ino-
cência, virgindade. [...] Na tradição bíblica, o lírio é o símbolo da
eleição, da escolha do ser amado: Como o lírio entre os cardos, assim
minha bem-amada entre as jovens mulheres (Cântico dos Cânticos,
1, 2). [...] O lírio simboliza também o abandono à vontade de Deus,
isto é, à Providência, que cuida das necessidades de seus eleitos [...]
(CHEVALIER, GHEERBRANT, 1991, pp. 553-4)
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A menina no bosque esclarece ao Lobo que está levando uma torta e uma so-
pinha (“pucherito”, diminutivo de “puchero”, que no Chile é uma forma familiar de
referir-se a um tipo de sopa) para a avozinha doente. Mais uma vez, vale-se de dois
diminutivos — Abuelita e pucherito —, destacando o tom afetivo de sua linguagem
coloquial chilena, e trata o Lobo na 2ª. pessoa do singular, “(tú) Sabes del pueblo
próximo”, aproximando-se dele sem marcar qualquer cerimônia. No Chile, o “tú” é
o pronome de tratamento informal para pessoas próximas.
Na estrofe seguinte, revela-se uma menina distraída e brincalhona, que se
“enamora” do colorido das borboletas, colhe flores e frutas vermelhas pelo cami-
nho, esquecendo completamente da presença do Lobo, chamado pelo enunciador
de “Traidor”. Caperucita, sempre cercada pela cor vermelha, tem sua ingenuidade
marcada pelo verso “y se enamora de unas mariposas pintadas”, pois não há um
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Considerações finais
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Esse parágrafo de Mistral, escrito em 1945, traduz em boa medida suas preocu-
pações e esforços em prol da cultura americanista, como já explicamos. Seria o Lobo
a metáfora de uma cultura esmagadora que cala e oprime a nova cultura emergente?
Ao definir aspectos pertinentes à poesia destinada à infância, Maria Zilda da
Cunha aponta que
A poesia apura nossa sensibilidade e provoca reflexões. Tem uma fun-
ção social específica — como gênero poético, traz marcas ideológicas,
culturais e históricas —, porém, diferencia-se em natureza e função
de outros gêneros textuais. A poesia não se confunde, portanto, com
textos veiculadores de informações (CUNHA, 2012, p. 115).
Com base nessas afirmações, é possível pensar que Mistral encerra o livro Ter-
nura de forma surpreendente com o intuito de provocar reflexões, sem a necessidade
de explicitar a moral da história, como fez Perrault, provocando no leitor/ouvinte,
seja ele adulto ou criança, uma reação de perplexidade.
A crueldade da cena que finaliza o livro Ternura resgata a sensação de medo
provocado por um dos mais antigos vilões pertencentes à tradição oral de cunho exem-
plar — o Lobo —, confrontando leitor/ouvinte, de modo catártico, com o mal, com
a ingenuidade, com o engano e, por fim, com a morte.
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Referências
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fada. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1979.
COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil. 3ed. São Paulo: Quíron, 1984.
COELHO, Nelly Novaes. A literatura infantil: Teoria. Análise. Didática. São Paulo:
Moderna, 2000.
CUNHA, Maria Zilda da. “Poesia”. In: GREGORIN FILHO, José Nicolau (org.)
Literatura infantil em gêneros. São Paulo: Mundo Mirim, 2012.
GOIC, Cedomil. Historia y Crítica de la Literatura Hispanoamericana. vol. 2. Barcelona:
Crítica, 1988.
JEHA, Julio. (org.) Monstros como metáforas do mal. In: Monstros e Monstruosidades
na Literatura. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
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PERRAULT, Charles. Contos e Fábulas. Trad. Mário Laranjeira. São Paulo: Ilumi-
nuras, 2007.
PERRAULT, C. Les Contes des Fées de Perrault. Dessins par Gustave Doré. Prefácio
de P. J. Stahl. Paris: Hetzel, 1862. Disponível em https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/
bpt6k855619t/f11.image Acesso em 18 abr. 2020.
QUILIS, Antonio. Métrica española. Madrid: Alcalá, 1969. Col. Aula Magna, 20.
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Resenhas
A revisitação dos contos de
fadas escritos por mulheres:
a identidade obscurecida no
imaginário dos leitores desde
o século XVII
Gabriela Silva1
1 Doutora em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail:
[email protected]
RESUMO (RESENHA): VENTURA, Susana. Na companhia de Bela: contos de fadas
por autoras dos séculos XVII e XVIII. Seleção, organização e comentários: Susana Ventura,
Cassia Leslie/ Ilustrações: Roberta Asse. 1. Ed. Londrina: Florear Livros, 2019.
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gênero, portanto estamos nos referindo ao sexo masculino) que se opõem ao número
de escritoras. E elas existiram e construíram narrativas que permanecem no campo
do imaginário literário até os dias de hoje. O saber dos letrados pertencia também
ao feminino e, mesmo que obscurecidas pela história e pela predominância das vozes
masculinas, essas mulheres escreveram seus contos, romances e demais formas textuais,
formando uma parte significativa da história da literatura, que se tornou importante
objeto de estudo e pesquisa nas mais diferentes perspectivas do assunto.
Na companhia de Bela: contos de fadas por autoras do século XVII e XVIII é um feliz
exemplo de pesquisa sobre o tema. O livro apresenta cinco escritoras e uma anôni-
ma (que nos instiga ainda mais a curiosidade): Jeanne-Marie Leprince de Beaumont,
Marie-Catherine Le Jumel de Barneville, Charlotte-Rose de Caumont de La Force,
Marie-Jeanne Lhéritier de Villandon e Marie-Madeleine de Lubert e a Mademoisel-
le Anônima. Na Companhia de Bela é resultado da pesquisa elaborada pela escritora,
pesquisadora e professora de Literatura Susana Ventura; pela escritora, pesquisadora
e editora Cassia Leslie e com o projeto gráfico de Roberta Asse, também pesquisado-
ra, autora e ilustradora de livros, além de designer gráfica, pesquisa também a cultura
das infâncias. Os textos foram traduzidos do original em francês pela própria Susana
Ventura, Maria Valéria Rezende, Maikon Augusto Delgado e Caroline Rodovalho.
Para além dos contos de cada escritora, a obra apresenta uma introdução que
justifica a sua presença entre os livros que abordam e retomam os contos de fadas e
a escrita feminina. As organizadoras, através de um texto elucidativo e resultado de
bastante tempo de pesquisa, conduzem o leitor por meio da história da literatura, dos
contos de fadas e dessas autoras, obscurecidas pelas figuras masculinas e que se tor-
naram expoentes do cânone ocidental, especificamente no âmbito dessas narrativas.
Charles Perrault (o ponto inaugural do gênero), depois os Irmãos Grimm e Hans
Christian Andersen são os principais nomes que consagraram os contos de fadas. As
perguntas- chave das pesquisadoras e que permitiram um profícuo resultado foram:
E as escritoras? E os contos que essas mulheres escreveram?
Mulheres que contaram histórias, lançaram a moda na arte de escrever e pu-
blicar seus contos e tiveram suas identidades guardadas através de pseudônimos ou
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Referências
MANGUEL, Alberto. A cidade das palavras, histórias que contamos para saber quem somos.
Trad. Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Trad. Raquel Ramalhete, Laís Eleonora Vi-
lanova, Lígia Vassalo e Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Editora 34, 2017.
VENTURA, Susana. Na companhia de Bela: contos de fadas por autoras dos séculos XVII e
XVIII. Seleção, organização e comentários: Susana Ventura, Cassia Leslie/ Ilustrações:
Roberta Asse. 1. Ed. Londrina: Florear Livros, 2019.
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Literatura infantil em renovação
Maurício Silva1
1 Professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação, na Universidade Nove de Julho (São Paulo).
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Tratar da literatura infantil atualmente significa ter que transitar por um universo tão
instável, insólito e inesperado quanto é a própria contemporaneidade. É isso, contudo,
que faz da atual produção literária infantil brasileira um conjunto de obras criativas e
instigantes, conectadas com a atualidade.
Conectadas é o termo mais acertado, já que boa parte dessa produção – e é disso,
entre outras coisas, que trata o mais recente livro de Marisa Lajolo e Regina Zilberman:
Literatura infantil brasileira: uma outra nova história – é veiculada pelos meios virtuais.
Como dizem as autoras, há que se considerar que o novo contexto cultural que o país
vive atualmente afeta diretamente toda a cadeia de produção dessa literatura, como
demonstra exatamente o exemplo da produção literária infantil veiculada por meio dos
meios eletrônicos (e-books, e-readers), inaugurando uma discussão acerca das relações
entre cultura digital e cultura impressa.
Assim, a produção literária infantil atual não prescinde de uma discussão acer-
ca da pluralidade de suportes por meio dos quais ela é veiculada, tampouco acerca da
importância que, cada vez mais, a ilustração adquiriu na produção voltada para crian-
ças e jovens. Desse modo, a plurimidialidade – que ela sempre se fez presente nessa
produção – surge de modo mais intenso na atualidade.
Segundo Lajolo e Zilberman, um dado novo na produção literária infantil
contemporânea é o fato de ela prescindir do livro, sendo veiculada, atualmente,
por outros suportes, sobretudo os digitais, com o advento da hipermídia (associa-
ção de imagem, animação, som etc.). Nesse sentido, as autoras analisam as obras,
veiculadas pela internet, de Sérgio Capparelli e Ana Cláudia Gruszynski (www.
ciberpoesia.com.br), de Leo Cunha (www.leocunha.jex.com.br) e de Angela Lago
(www.angela-lago.com.br/Chapeuzinho.html), numa forma de veiculação que afeta
profundamente a produção e divulgação de textos literários. Um caminho contrário
– isto é, a incorporação da linguagem das novas tecnologias midiáticas pelo livro
impresso – também pode ser verificado, como ocorre com os livros Poesia visual, de
Sérgio Capparelli e Ana Cláudia Gruszynski, 33 ciberpoemas e uma fábula virtual, de
Sérgio Capparelli, Perdido no ciberespaço, de Leo Cunha ou Todos contra D@ante, de
Luís Dill. Em suma, pode-se afirmar:
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lhe são próprios, mas, por outro, podem bem servir de exemplo para
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Ensaios
As diferenças entre a mídia
manuscrita e a impressa:
formas dos (proto)contos de fadas
Liombruno de Cirino d’Ancona e
Lionbruno de Vindalino da Spira,
dos anos de 1470
Ruth B. Bottigheimer1
1 Professora junto ao Departamento de Inglês da Universidade Pública de Nova York em Stony Brook.
RESUMO: Essa edição especial da Literartes é dedicada aos contos de fadas em diferentes
mídias. Trago aqui um pequeno relato a respeito de um protoconto de fadas europeu que
circulou em duas mídias concorrentes, um manuscrito produzido à mão em 1470 e um
livreto impresso feito por máquina em 1476. A mídia manuscrita tinha um alcance limitado
em seu público; já o livreto impresso, pertencente a uma tiragem de muitas centenas,
precisava incorporar as expectativas de uma população muito maior para ser vendável.
Assim, acontece que o mesmo enredo, quando produzido em duas mídias diferentes na
década de 1470, conta uma história diferente em relação a Deus, ao dinheiro e às mulheres.
ABSTRACT: This special issue of Literartes is devoted to fairy tales in different media.
I have contributed the following miniature account of a European proto-fairy tale, which
appeared in two competing media, a 1470 hand-produced manuscript and a 1476 machine-
made printed booklet. The manuscript medium had a limited reach in its audience; the
printed booklet, one of a quondam print run of many hundred, needed to incorporate the
expectations of a much larger population in order to be saleable. Thus, it happened that the
same plot, when produced in two different media in the 1470s, tells a different story with
respect to God, money and women.
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2 Cirino, que alegadamente veio do outrora grandioso porto adriático de Ancona, também compôs uma
narrativa ainda mais curta, intitulada Historia d’un me[r]cadante Pisano (“História de um Comerciante Pisano”).
3 O Lai de Lanval, de 1170, escrito por Marie de France, é o inegável progenitor do Liombruno de Cirino. O
grande número de motivos e tropos compartilhados nos mostra que Cirino conhecia o Lai de Lanval, de Marie
de France, e que ele o conhecia muito bem. Ele o teria lido muitas vezes em francês, pois no final do século XV,
os lais ainda não haviam sido traduzidos para o italiano, como sugerem as evidências remanescentes. Mas o Lai
de Lanval, como muitos romances medievais cujos protagonistas românticos são figuras reais, é o antecessor
narrativo dos contos de fadas de ascensão, e não dos de restauração, uma distinção importante.
4 Esse mesmo enredo é encontrado no conto “O Rei da Montanha de Ouro”, dos Grimm.
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Liombruno leva presentes caros para sua pobre família e descobre que o Rei
de Granada ofereceu a sua filha em casamento ao vencedor de um torneio. Usando o
anel mágico que Aquilina lhe dera, Liombruno adquire um belo cavalo, cavalga para
Granada e vence o torneio, mas é desafiado pelos barões sarracenos, que duvidam de
sua elegibilidade e o enganam, levando-o a quebrar a proibição de Aquilina ao van-
gloriar-se de sua beleza, ao que eles exigem vê-la. Aquilina é obrigada a aparecer, mas
pune a desobediência do amado, abandonando-o e removendo os poderes mágicos do
anel. Mais tarde, sozinho em uma floresta, Liombruno encontra dois ladrões perigosos;
assim termina a primeira parte.
A segunda parte começa com um resumo da primeira, e continua no momento
em que os ladrões estão lutando pela divisão de alguns bens que eles haviam roubado:
um manto que torna seu portador invisível, botas que permitem deslocamentos ma-
gicamente instantâneos e moedas de ouro. Cirino escreve que Liombruno se dirige
aos ladrões em latim e eles lhe pedem para que os ajude a resolver aquela disputa.
Em resposta, ele calça as botas e se reveste com o manto e, invisível, pega as moedas
de ouro e desaparece. Enfurecidos por perderem tudo, culpando uns aos outros, eles
lutam e matam uns aos outros.
A busca de Liombruno por Aquilina começa em uma pousada, onde comer-
ciantes lhe contam sobre um lugar tão distante que só o vento sabe sua localização.
Um deles fala sobre um idoso eremita, a quem os ventos retornam à noite. Usando as
botas mágicas, Liombruno rapidamente encontra o eremita, que escuta sua história e
permite que ele, com a ajuda de um dos ventos, vá visitar a montanha em que Aquilina
vive. Liombruno chega ao local, mata os seis dragões guardiões e encontra Aquilina
sentada à mesa, fazendo uma refeição. Usando o manto da invisibilidade, ele começa a
comer de seu prato, deixando-a atônita à medida em que a comida vai desaparecendo
na frente dela.
Quando a princesa Aquilina suspira e começa a rezar, pedindo a Deus que proteja
seu amado Liombruno, ele coloca o ex-anel mágico diante dela, surpreendendo-a ainda
mais. Ela vai para o quarto e deita-se na cama. Liombruno, ainda invisível, deita-se
na cama ao seu lado, ao que ela reage com desespero. Depois de retirar a capa que o
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encobria, ela pergunta como ele a encontrou e diz que o amado “ateou fogo em seu
coração”. Ela se reconcilia com Liombruno, reconhece a tristeza que sentiu com sua
ausência e eles “fazem as pazes do amor”.
As linhas finais da história reiteram, em linguagem cortesã, o regozijo físico
de Aquilina e Liombruno por estarem juntos novamente. A narrativa termina com a
declaração de que a história foi enfeitada para “vossa honra” (questa storia è fornita al
vostro onore).
Ancona, uma cidade de comerciantes, demonstrava, em menor escala que Ve-
neza, o mesmo progresso econômico que na década de 1550 promoveu o desenvolvi-
mento dos contos de fadas de ascensão de Straparola7. A economia de manufatura e
comércio de Ancona, como a de Veneza, dependia de pagamentos em dinheiro. Nesse
sentido, as condições propiciadas por esse cenário serviram de base para o surgimento
de narrativas sobre a repentina ascensão social e econômica de pessoas pobres. Um
investimento magicamente bem-sucedido pode, por mais improvável que seja, levar ao
enriquecimento. Esse tipo de conto de fadas, de realização de desejos, aqui exemplifica-
do pelo protoconto de fadas de Cirino, Liombruno, faz uso de um casamento mediado
por magia com um membro da realeza para escapar da pobreza. Assim, cria-se uma
ponte sobre o abismo econômico e social advindo dos tempos medievais, suscitando
as esperanças da aurora da modernidade: temos um gran dimonio maligno que forne-
ce riquezas para o pai do herói, uma mulher-águia mágica que aparece do nada e um
aprendiz de cortesão de oito anos, elementos medievais utilizados para embasar a união
de um herói com uma princesa e para justificar o banimento do herói por violar uma
proibição. Na sequência, porém, temos uma inovação literária, uma nova reviravolta
(o herói adquire um manto da invisibilidade e botas de sete léguas), representada pelo
roubo de pilhas de moedas de ouro, seguida de uma demanda medieval tradicional e
7 Para a criação de contos de fadas de ascensão, ver Fairy Godfather: Straparola, Veneza and the Fairy Tale Tra-
dition (University of Pennsylvania Press, 2002) e sobre o desenvolvimento da magia nos contos de fadas a partir
da prática e da crença em magia, ver Magic Tales and Fairy Tale Magic from Ancient Egypt to the Italian Renaissance
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a final reconciliação marcada pela alegria física. A feliz união do herói e da heroína e
a alegria perene acontecem aqui na Terra, uma característica comum entre os contos
de fadas de ascensão e de restauração. Ancona e Veneza eram habitadas pelo mesmo
tipo de leitor, pessoas envolvidas com o trabalho artesanal, industrial e mercantilista,
o que sugere que as condições econômicas propiciadas por um sistema monetário
proporcionaram o surgimento desse protoconto de fadas de ascensão, o que também
explica a origem dos contos de fadas ascensão de Straparola, oitenta anos depois.
Vamos fazer uma pausa e considerar a performance da narrativa e as marcas do
registro oral mantidas pela mídia manuscrita de Liombruno. O “m” em Liombruno
sugere a performance oral do manuscrito, visto que o “n” de “Lion” (leão) é proferido
como o “m” ao preceder a bilabial “b” de “Bruno”, uma regra da língua falada que não
precisaria ser representada na escrita. Apesar de a ambientação do registro manus-
crito de Liombruno de Cirino apontar para um mundo cortês localizado em espaços
remotos e longínquos (o topo da montanha, a floresta, Granada), sua personae dramatis
inclui as pessoas pobres conhecidas por uma audiência urbana do século XV8. Eles
reconheceriam e talvez até se identificariam com um pescador empobrecido. Talvez
a capacidade de se identificar com personagens tão familiares aumentaria o prazer de
conhecer as aventuras de um herói mal nascido. Conhecendo as antigas práticas de
formação familiar pré-Contrarreforma, o protoconto de fadas de ascensão de Cirino
também não faz menção ao casamento, outra situação habitual para os ouvintes de
uma época em que a união entre um homem e uma mulher era reconhecida como
legítima tão somente pela simples concordância entre ambas as partes. Embora seja
impensável para os leitores de contos de fadas do século XXI que uma princesa como
Aquilina se relacione sexualmente sem o consentimento do clero, isso era algo rotineiro
para a audiência do século XV de Cirino, composta por artesãos urbanos, aprendizes
e lojistas, bem como por cidadãos socioeconomicamente medianos.
8 Nessa discussão está presumida, mas omitida, a referência à considerável literatura secundária que diz respeito
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9 Existiam dois modos de comercialização de manuscritos populares em cidades como Alepo, Damasco e Cairo
nos séculos XV, XVI, XVII e XVIII, antes do advento das prensas de impressão: um deles atendia aos compra-
dores que os adquiriam para o seu próprio uso, e o segundo para compradores que alugavam um manuscrito
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papel ou pergaminho com a impressão dessa mesma história. O que subjaz a essa va-
riação de mídias é uma ampliação em termos de alcance: de uma pequena audiência
(manuscrito) para o grande mercado da impressão. Essa mudança teve consequên-
cias visíveis e fascinantes. A composição de Liombruno de Cirino custou-lhe o preço
de algumas folhas de papel, tinta para sua pena e talvez a própria pena. Talvez ele já
possuísse a faca necessária para apontar a pena. Os custos para a cópia escribal seriam
os mesmos, maiores para produções mais elitizadas e ilustradas feitas em velino 10. A
produção escribal em massa, por outro lado, exigia um leitor (lector) e tantos escribas
quanto fosse o necessário para produzir o número desejado de cópias. O mercado de
impressão de títulos de literatura popular (caso de Lionbruno de Vindalino da Spira)
exigia a mesma quantidade de papel e tinta por cópia, um tipógrafo que colocasse os
tipos individuais em uma forma simples, um assistente que não precisava ser alfabeti-
zado para tirar cada folha impressa da prensa e pendurá-la até secar, e o custo de uma
prensa simples de mão feita em madeira, que era, naqueles dias, uma variação prensas
para tecidos. Sabe-se bem que um custo mais baixo para a produção de obras impres-
sas, como Lionbruno, possibilitou o barateamento dos livros e, como consequência,
expandiu grandemente o potencial do mercado livresco, ocasionando um grande au-
mento no número de publicações.
10 O velino é um tipo mais refinado de pergaminho, mais fino, liso e acetinado, preparado a partir do couro
11 Seu nome de nascença era Wendeln e ele era nativo de Speyer, sudeste da Alemanha, de onde seguiu
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concedido pelo governo municipal para imprimir com tipos móveis. Como muitos
outros impressores de incunábulos, Vindalino primeiro imprimiu clássicos em latim
e livros relacionados à igreja latina12. Quando o monopólio de Vindalino expirou,
outros editores de impressos entraram no mercado de língua latina e ele foi posto
de lado; à época, ele tinha apenas um volume latino ainda em produção, Sententiae,
de Peter Lombard13. O senso comum nos leva a crer que os negócios de Vindalino
devem ter passado por graves problemas financeiros. Foi nesse momento que ele se
voltou para um livreto de bolso de vinte e quatro páginas intitulado Lionbruno, que
exigia apenas uma única folha impressa dobrada doze vezes, ou seja, um duodécimo
ou in-12 (note-se que o título Lionbruno não apresenta o nome do herói com o “m”
que sinalizava a assimilação falada de seu “n” para a letra seguinte, o bilabial “b”,
como discutido acima).
Acredita-se que as prensas manuais sejam capazes de produzir até mil folhas
impressas por dia. Não sabemos se Vindalino produzia mil cópias diárias de seu Lion-
bruno, mas, mesmo se ele imprimisse apenas 500 ou 600 folhas, teria um estoque muito
maior de pequenos livros do que poderia ter sido produzido pelos funcionários de um
scriptorium em um único dia. Com uma única tiragem, o editor de impressos poderia
alcançar um público muito maior a um custo muito menor. Muitos dos primeiros
impressores modernos editavam seus materiais para atrair o público que desejavam
alcançar14, e isso explica o motivo de Vindalino ter desejado editar o seu texto para
que ele fosse vendável para o maior público comprador possível.
12 Nesse período, apenas a Bíblia foi publicada em italiano por Vindalino.
13 Para chegar a essa conclusão, examinei a publicação de impressos listados no WorldCatSearch por data e
editores de Veneza.
14 As separatas impressas em língua inglesa dos contos de fadas Mme d’Aulnoy para públicos de elite, comer-
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16 Eu trabalho com essa mudança em seu contexto literário e econômico no artigo “Fertility Control and the
Birth of the Modern Fairy Tale Heroine” (Marvels & Tales, n. 14, v. 1, p. 64-79).
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17 McLuhan cunhou a célebre máxima “A mídia (medium) é a mensagem”, presente em seu livro de 1967 de
título homônimo.
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Referências
D’ANCONA, Cirino. Hystoria d’un mecadante pisano. Bolonha: Bazaliero de’ Bazalieri,
1490 [Disponível na Biblioteca Houghton, em Harvard; 8 p., 22 cm].
FRANCE, Marie de. Lais de Marie de France. Transc. e anotações de Laurence Harf-
-Lancner. Ed. de Karl Warnke. Paris: Livre de Poche, 1990 [1170].
McLUHAN, Marshall. The Medium is the Message. New York: Random House, 1967.
Esse ensaio foi elaborado a partir dos estudos listados abaixo; cada um deles apresenta
discussões detalhadas de alguns dos assuntos aqui mencionados:
BOTTIGHEIMER, Ruth B. Magic Tales and Fairy Tale Magic from Ancient Egypt to the
Italian Renaissance. Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2014.
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BOTTIGHEIMER, Ruth B. “Upward and Outward: Fairy Tales and Popular, Print,
and Proletarian Culture, 1550-1850.” In Elore, n. 17, v. 2. Joensu (Finland): The Finnish
Folklore Society, 2010, p. 104-120. Disponível em http://www.elore.fi/arkisto/2_10/
bottigheimer_2_10.pdf. ISSN 1456-3010.
BOTTIGHEIMER, Ruth B. Fairy Godfather: Straparola, Venice, and the Fairy Tale Tra-
dition. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2002.
BOTTIGHEIMER, Ruth B. “Fertility Control and the Birth of the Modern Fairy
Tale Heroine”. In Marvels & Tales, n. 14, v. 1, 2010, p. 64-79.
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Um pouco além do espelho de
Bela*
Susana Ventura1
* As notas indicadas ao longo do texto estarão disponibilizadas no final do artigo para consulta do leitor.
RESUMO: Ensaio que parte do conto “A Bela e a Fera” de Jeanne-Marie Leprince de
Beaumont, publicado em 1756 para tecer considerações sobre a obra de que faz parte e das
várias questões que o conto mobilliza.
ABSTRACT: Essay that analyzes the fairy tale “Beauty and the Beast” by Jeanne-Marie
Leprince de Beaumont, first published in 1756 to think about the book Le magasin des
enfants and the various possibilities showed by the tale.
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que era bastante difícil conseguir professoras. Muitas vezes, quando o professor era
casado, sua esposa exercia a função de professora das meninas enquanto ele ensinava os
meninos. Há documentos que mostram que o ensino para as meninas, quando existia
em muitas dessas escolas, era realizado num ‘canto’ da sala de aula dos meninos, onde
a professora se cercava de suas alunas e ensinava.
Bela, nossa personagem, sabe ler, o que é muito precioso e por isso o livro que
ela vê ‘fala’ com ela. Em letras de ouro ela decifra aquilo em que, a princípio, não
consegue acreditar: ela pode desejar, pode comandar, ali ela é senhora.
Como leitora treinada, Bela conversa em silêncio consigo mesma, duvidando
do que acabou de ler: “Pobre de mim, eu não desejo mais nada senão ver meu pobre
pai e saber o que ele está fazendo agora”. Na sequência ela, surpresa, vê, num espelho
que está no aposento, a imagem de seu pai chegando em casa. O livro estava certo, ela
comanda e pode ter seus desejos realizados.
O conto “A Bela e a Fera” é uma parte de um livro chamado Magazine das
crianças. Quando sua autora, Jeanne-Marie Leprince de Beaumont (1711- 1780) o
publicou, ela era uma experiente preceptora e o longo subtítulo que deu à sua obra
foi “diálogos de uma sábia preceptora com suas alunas de primeira distinção, nos
quais se faz a juventude pensar, falar e agir segundo o temperamento e as inclinações
de cada uma... Aqui apresentamos os ‘defeitos’ da idade e mostramos de que maneira
podemos corrigi-los; também nos aplicamos para tanto “formar os corações quanto
esclarecer as mentes”.7 Jeanne-Marie viveu no Reino Unido e a escolha do título foi
uma inovação completa. “Magazine” é uma palavra derivada do árabe e foi inserida
no Ocidente a partir do século XIII, sendo empregado em várias línguas neolatinas
com o sentido de ‘depósito de suprimentos’. Desde o século XVI, com a populariza-
ção dos impressos no Reino Unido ‘magazine’ também era usado com o sinônimo de
‘revista’ e de ‘coleção ou arsenal de informações’. No tempo em que Jeanne-Marie
vivia por lá, ‘magazine’ era, além disso, sinônimo de publicação periódica. A autora
fez propaganda do volume em que está “A Bela e a Fera” já supondo que aquele seria
o primeiro de uma série de volumes destinados a formar a juventude, e que, se bem
recebidos e recebendo assinatura, teriam periodicidade anual.
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Nas palavras da autora: “Se os pais tiverem a bondade de ler este primeiro
volume, se acreditarem que ele seja útil o bastante para as crianças para desejar sua
continuação, devem solicitar aos seus amigos que façam parte de um pequeno número
de assinantes para o próximo ano, sem o que me restará abandonar tudo.”
As coisas não saíram exatamente como a autora desejava – como na maior parte
dos projetos pessoais e editoriais desde sempre. Mas ela chegou a fazer várias outras
publicações que tinham em seu título a palavra “Magazine”. Ao todo, durante a vida,
ela publicou cerca de 70 títulos, parte deles eram manuais muito bem recebidos para
educação de diversos grupos.
Jeanne-Marie, nascida apenas Marie em 1711, se casou por amor e não por con-
veniência, o que revelava que a classe social não era tão elevada para que seu casamento
representasse um negócio para sua família e as demais de seu círculo. Divorciou-se
com uma filha pequena, alegando infidelidade constante do marido, o que mostra sua
disposição em fazer valer sua vontade. Já com reputação construída na França, mu-
dou-se para o Reino Unido (ao que tudo indica a partir de 1745), onde foi também
reconhecida como preceptora altamente instruída e contratada por famílias inglesas.
Os livros disponíveis para educação de crianças eram poucos, entre eles esta-
vam As aventuras de Telêmaco, do próprio Fénelon e História de Gil Blas de Santillana,
de Alain-René Lesage, clássicos lidos, sobretudo, por garotos desde suas publica-
ções em 1699 e 1715. As aventuras de Telêmaco foi uma publicação dedicada ao então
príncipe francês, pensando em sua educação e História de Gil Blas é uma aventura
de natureza picaresca.
Parece ter sido a falta de livros para crianças e, especialmente, o distanciamen-
to que o material disponível apresentava com relação à experiência de ser menina
que fez com que ela escrevesse para suas jovens alunas. Em vez de retratar apenas
figuras mitológicas ou personagens literários, Jeanne-Marie retratou crianças que se
pareciam com suas próprias alunas, que tinham idades entre 5 e 12 anos8, e escreveu
diálogos similares aos que ela mesma deve ter tido com elas. Para a criação de sua
obra parece clara a inspiração num livro publicado em 1749 no Reino Unido, The
governess or Little Female Academy, de Sarah Fielding onde uma governanta ou pre-
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ceptora interage com suas jovens alunas. O livro tem dois contos de fadas inseridos
em sua narrativa e Jeanne-Marie ampliou e aprofundou tanto em dimensão (seu
Magazine das crianças é aproximadamente cinco vezes maior que o livro de Sarah
Fielding) quanto em construção de personagens e no desenvolvimento de uma trama
que sustente a narrativa principal.
O Magazine das crianças foi publicado em quatro partes, divididas em volumes
(dois ou quatro, dependendo da edição). Edições posteriores reuniram o conteúdo num
único tomo. E o que temos como conteúdo? São vinte e sete “diálogos” ou “sessões”,
em que meninas pré-adolescentes conversam entre si e com uma preceptora e onde
são apresentadas informações sobre geografia, história, mitologia, religião, ciência
e filosofia, além de “belas histórias”, contos de fadas e passagens bíblicas resumidas.
Os contos de fadas aparecem como uma pausa, esperada e solicitada pelas per-
sonagens-meninas de tempos em tempos. Após o conto, a conversa toma rumos diver-
sos, explorando aspectos do que foi narrado ou estendendo as discussões para temas
correlatos. Imediatamente após “A bela e a fera”, por exemplo, a preceptora aborda o
ciclo de vida das borboletas e fala das lagartas e de seu casulo para dizer que “O bom
Deus que as criou dá a elas tudo que é necessário para viverem e se conservarem. As-
sim, elas têm em seu corpo uma loja, onde encontram ferramentas necessárias para
fazer sua casa”. Para os leitores do que era publicado na França da época, o paralelo
remete a uma fábula de François Fénelon (1651-1715) na qual abelhas e bichos da
seda brigam por uma causa justa: “a glória das invenções úteis”, diante dos deuses do
Olimpo. O conjunto de conhecimentos disponíveis na época é, então, literatura neste
formato inventado pela autora, o “Magazine”, em que encena a vida cotidiana de um
grupo de meninas em sua relação com a preceptora, sendo que tanto a narrativa prin-
cipal quanto sua ficção colocada em moldura são construídas numa linguagem atraente
às jovens leitoras e conseguem abordar, de maneira eficiente, saberes considerados
muito relevantes para aquela sociedade (e logo para várias dos países do entorno, que
a traduziram num curto espaço de tempo).
O mencionado Fénelon havia publicado em 1687 A educação das jovens, livro
que era visto por muitos na primeira metade do século XVIII como um bom guia
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e depois para suas leitoras “A Bela e a Fera” e “Orlando e Angélica”, por exemplo,
são recontos muito bem realizados de obras mais extensas publicadas anteriormente
por outros autores (Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve e Ludovico Ariosto, res-
pectivamente). “Aurora e Amada” é um conto filosófico com lances de folhetim, “O
príncipe Titi” tem ares de epopeia. Não faltam os contos de personagens contrastantes
como “Belinda e Feiosa”, “Azarado e Sortudo” e, pelo menos, uma facécia, “Conto
dos três desejos”.
Pela linguagem do Magazine como um todo, mas especialmente na empregada
nesses contos de fadas inseridos na narrativa, a autora conquista, como Scherazade,
suas “ouvintes” representadas pelas alunas na ficção interna da obra, e constituídos,
pela leitura do livro, por gerações e gerações de leitores posteriormente.
Sobre afirmação de possibilidades de escolha das mulheres – embora sempre
muito circunscrita na obediência ao estabelecido – há mais um dado curioso sobre a
biografia da autora, que convém trazer neste momento. Durante muito tempo pairou
entre os que estudavam sua obra uma dúvida: seu prenome era Marie, qual o motivo
de ter passado em muitas publicações a ser Jeanne-Marie? Em anos recentes desco-
briu-se que ela nasceu Marie e mudou seu nome por vontade própria. O que parece
um simples detalhe não é realmente algo pequeno, pois mostra a afirmação de uma
identidade escolhida por si mesma, o que completa o quadro das decisões tomadas ao
longo da vida.
A única personagem do conto que sobreviveu de sua vasta obra, Bela, também
toma várias decisões a partir da descoberta realizada na biblioteca (embora estritamen-
te dentro da ordem do casamento, para o qual entrou pelas mãos do pai): o livro ali,
parte da biblioteca que abre certas portas, apresenta-se como um meio de descobrir
que a situação que ela vivia poderia ter diferentes encaminhamentos.
O espelho que mostra as pessoas que ela deseja ver e que estão distantes no es-
paço antecipa em muito nosso mundo contemporâneo. E para além de Bela, seu livro
e seu espelho ‘mágico’, o que há nos demais contos de fadas do Magazine das crianças?
Um conjunto, recontado de fontes que talvez seja possível retraçar com alguma pre-
cisão, e que ajudam a preceptora da ficção, e a autora fora da ficção, no seu trabalho
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de educar meninas das classes altas e prepará-las para os desafios da vida (uma vida
estreitamente determinada pelo casamento que deveria, com a ajuda de algum estudo,
ser uma aliança socialmente interessante).
Em que pese a ênfase no desenvolvimento de virtudes e do cultivo da fé da Pro-
vidência Divina, vemos no conjunto de escolhas que a inteligência não é subestimada
(mas continua sendo condicionada a servir dentro de uma situação de conveniência
social estruturada no casamento). 11
Magazine das crianças, em sua totalidade, apresentou todas as condições para
ter se tornado o clássico da época, exatamente por atender aos requisitos sociais mais
apreciados pelas classes dominantes. Foi traduzido com brevidade para alemão e cas-
telhano e foi lido em quase todos os países europeus. Com o passar dos séculos, curio-
samente, foi esquecido quase em sua totalidade, com exceção do conto A Bela e a Fera.
De volta à cena da biblioteca, quando Bela encontra o livro em que estão escritas,
em letras douradas, as palavras que a fazem perceber que ela comanda e pode desejar
o que quiser, que outros livros estariam por ali? Afinal, tratava-se de uma biblioteca.
O que um aristocrata dono de um palácio com biblioteca teria em suas estantes por
volta de 1750? Ele deve ter lido na juventude tanto Fénelon quanto Lesage e com cer-
teza havia aprendido grego e latim, possivelmente castelhano, alemão e inglês. Quais
seriam os outros livros que estariam naquela sala?
O pesquisador Peter Bjorn Kerber nos revela12 que, cinquenta anos antes do
reconto de Jeanne-Marie ser publicado, no século XVIII, para a elite francesa, ler,
solitária ou comunalmente era parte do cotidiano e era considerado chique. Havia a
ideia de que a leitura melhorava as pessoas e, portanto, após as primeiras obrigações
do dia: se arrumar, tomar a primeira refeição e responder à correspondência, havia
pelo menos duas horas dedicadas à leitura.
Havia um repertório comum, composto por História Antiga, Mitologia grega
e romana, Fábulas de Esopo, Fedro e La Fontaine (as últimas publicadas em 1668, e
teve grande popularidade por pelo menos um século), As mil e uma noites (conforme
publicadas por Galand, em volumes, entre 1704 e 1717).
Essas leituras constituíam um repertório comum que aparece nos textos que
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vão sendo publicados. No próprio Magazine das crianças observamos ecos de Cândido
de Voltaire (no conto “Aurora e Amada”), das Mil e uma noites (o professor em “O
príncipe Querido” se chama Suleiman), e de História Antiga (em “O príncipe Titi”).
Porém, será naqueles mencionados dois recontos de livros para adultos que, com maior
transparência, vemos o aproveitamento de repertório comum. Nas releituras de textos
clássicos, vemos apropriações para a leitura por jovens do que constituía o principal
conteúdo simbólico veiculado pela escrita fruída pela elite francesa.
A biblioteca não voltará a ser mencionada em outra parte da história de Bela.
Mas, investigando mais sobre o passado, chegamos ao texto de partida da autora, o
conto de fadas de Gabrielle-Suzanne Barbot de Villeneuve (1685-1755). Em 1740,
ela publicou A jovem americana e contos marinhos, e neste livro estava o conto de fada A
Bela e a Fera. Não era o primeiro livro da autora, que já publicava desde 1734, e tirava
da atividade editorial grande parte de sua renda.13 Não era aquele um livro pensado
para jovens leitores, e sim para os leitores possíveis daquela sociedade. A autora parece
ter sido frequentadora dos salões parisienses e possivelmente desfrutava e participava
dos jogos de contar histórias que aconteciam nesses ambientes. Seu conto, longo para
a dimensão do que hoje é considerada a média para um conto de fadas, narra, com ri-
queza de detalhes, a história que conhecemos, mas não se detém com a transformação
de Fera num belo príncipe, que se casa com Bela. A narrativa é bem mais complexa
e antes da quebra do encanto Bela, que encontrara Fera moribunda, consegue reavi-
vá-lo e vai com ele, em sua forma monstruosa mesmo, para o leito conjugal, onde ele
dorme imediatamente. Em sonhos, como acontecia desde a primeira noite que passou
no palácio de Fera, Bela é visitada por um belo desconhecido e, ao despertar, encon-
tra ao seu lado a réplica da adorável figura, que lhe explica que estava preso de um
encantamento. Na mesma manhã, Bela é visitada pela sogra e por uma fada. A sogra,
após saber que Bela não é nobre, manifesta seu desagrado com a aliança feita pelo filho
(Fera sim, que provavelmente seria rejeitado por qualquer mulher, mas, para a mãe, a
questão de classe é primordial). Ofendida, Bela abre mão do casamento e a fada reve-
la que tem um meio de apaziguar a situação, pois tem um dado que é desconhecido:
Bela tem, afinal, origem nobre. Segue-se à revelação um longo capítulo, “A história
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da Fera”, em que, em primeira pessoa, o príncipe/Fera narra sua história. São, então,
revelados aspectos do passado e complexas teias de relacionamentos dignas de um
bom folhetim – gênero que se tornaria popular décadas depois.14 Jack Zipes chama a
atenção para essa questão de classe na obra de Gabrielle-Suzanne e a diferença para o
conto de Jeanne-Marie, em que não parece haver qualquer problema no casamento
entre uma filha de comerciante (falido, ainda por cima) e um príncipe.15
Como seria a relação de Bela com os livros na obra de Gabrielle-Suzanne? Ela
encontra a biblioteca – e também uma coleção de quadros uma sala de música - em
seu primeiro reconhecimento da nova casa.
Deixando esse quarto, ao passar por uma galeria repleta de quadros,
encontrou ali o mesmo retrato em tamanho natural, que parecia
contemplá-la com uma atenção tão amorosa, que a fez corar, como
se aquela pintura fosse o próprio modelo ou ela estivesse diante de
testemunhas de seu pensamento. Continuando o passeio, viu-se numa
sala equipada com os mais variados instrumentos musicais. Sabendo
tocar quase tocar quase todos eles, testou alguns, dando preferência
ao cravo, pois se harmonizava mais com sua voz. Dessa sala passou
a outra galeria, semelhante à dos quadros, onde havia uma imensa
biblioteca. Gostava de ler, e, desde sua mudança para o campo, tinha
se visto privada dessa atividade. Seu pai, devido à desordem em seus
negócios, fora obrigado a vender todos os livros. Sua paixão pela
leitura podia facilmente ser saciada naquele local e protegê-la do
tédio da solidão. (“A bela e a fera”, Gabrielle-Suzanne de Villeneuve,
tradução de André Telles)16.
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Notas
3 Como Contos de fadas de Perrault, Grimm, Andersen e outros (AAVV, 2010), obra constante nas refe-
rências bibliográficas.
4 O interesse da pesquisa de que este ensaio faz parte é exclusivamente sobre a escrita de autoria
feminina e por isso os dados enfatizados são, em sua maior parte, referentes às meninas e mulheres,
5 Do ensaio da professora Samia I. Spencer “Women and Education” (em livro citado nas referências
bibliográficas, em texto às páginas 83 e 84, com tradução de trabalho realizada por mim):
Há poucas áreas nas quais o espírito crítico do século XVIII foi expresso tão vigorosamente e profu-
samente quanto no que diz respeito à educação, particularmente à educação feminina. Discussões e
escritos sobre o tópico não estiveram limitados aos educadores profissionais (Rollin, Reballier, Abade
de Saint-Pierre, Mme. de Genlis ou Mme. Campan), aos filósofos (Montesquieu, Voltaire, Rousseau,
Diderot, Helvécio ou Condorcet), ou até mesmo aos romancistas (Restiff de la Bretonne, Choderlos
de Laclos, Sade ou Bernardin de Saint-Pierre). Pelo contrário, a educação de mulheres foi um tema
central de debate entre a sociedade polida nos Salões Parisienses e o foco de atenção de um público
muito mais amplo através do país, conforme demonstrado pelo número de competições sobre o tema
A despeito do volume do material disponível sobre o tema, é difícil obter uma avaliação das práticas
educativas do período. A maior parte dos tratados, panfletos, brochuras e livros tratando do assunto
consistem em críticas às instituições existentes e propostas de projetos para reformas. Não há estudo
sistemático deste tema que tenha sido publicado, nem no século XVIII, nem nos séculos subseqüentes.
Uma boa bibliografia revela que, a despeito do interesse contínuo no tema, há falta de material crítica
de terem professores homens e mulheres. Os pais eram demandados a enviar suas crianças para a escola
até a idade de 14 anos, o que estabeleceu, ao menos em teoria, o princípio da educação compulsória.
No entanto, esses decretos nunca foram plenamente colocados em prática (de maneira obrigatória) e a
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falta de letramento continuou grassando mesmo entre as meninas de classes superiores e da burguesia.
A famosa feminista e ativista política Olímpia de Gouges ditava suas obras para um secretário pois
não sabia escrever. Mme. de Genlis nunca foi ensinada a escrever, aprendeu sozinha na idade de doze
anos. As cartas da bem conhecida autora Mme. de Graffigny estão cheias de erros de ortografia. O
caso mais notório talvez seja o das quatro filhas mais novas de Luís XV. Depois de muitos anos no
convento, elas permaneciam iletradas, e uma delas, Mme. Louise aprendeu a ler apenas na idade de
doze anos. A despeito da pobre qualidade de sua educação formal, muitas mulheres eram capazes de
completar sua própria educação independentemente, algumas delas adquirindo rara proeminência no
campo da auto-educação.
A obra de Fénelon, A educação das jovens (escrita em 1685 e publicada pela primeira vez e 1687) e a Casa
Real de Saint Louis em Saint Cyr de Mme. de Maintenon (fundada em 1686) eram vistas por muitos
da primeira metade do século XVIII como o ideal da educação feminina. Ambos os pedagogos rejei-
tavam o papel da mulher como um ser ocioso e propunham uma nova identidade – aquela da esposa
virtuosa, mãe devotada e bem informada dona de casa que espalhava felicidade para todos à sua volta.
Eles enfatizavam a importância das virtudes morais e força – qualidades que acreditavam que não eram
naturalmente da natureza feminina. O papel da educação, portanto, era corrigir as más inclinações à
fraqueza (suavidade) e coquetterie e proteger as mulheres das más tendências à “natural fraqueza de seu
6 A capacidade de leitura não está sendo subestimada, mas, tendo como base os livros da época em que
o assunto da educação feminina é abordado, fica evidente que era difícil, mesmo no âmbito conventual,
encontrar quem ensinasse escrita. O mesmo ensaio de Samia I. Spencer mostra que várias das escritoras
provenientes das classes mais altas ditavam suas obras por não saber escrever.
7 Edições posteriores têm subtítulo mais curto e um tanto diferente: “diálogos de uma sábia precep-
tora com suas alunas de primeira distinção, nos quais se faz a juventude pensar, falar e agir segundo
9 No ensaio “Madame de Beaumont e a versão clássica de A bela e a fera”, assinado pelo editor Rodrigo
Lacerda e contido na edição brasileira de A Bela e a Fera, obra citada nas referências bibliográficas,
páginas 14 e 15, sobre a saída de Jeanne Marie do convento e a sua contratação: “Dez anos depois,
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em 1735, desistiu da vida eclesiástica e foi residir com o pai na região nordeste da França. Quase ime-
diatamente, viu-se contratada pela corte austro-francesa instalada na comuna de Lunéville, região
da Lorena, onde por dois anos serviu como preceptora, dama de companhia e professora de música
vida cortesã, Jeanne-Marie conheceu grandes intelectuais da época, Jeanne-Marie conheceu grandes
intelectuais da época, entre eles Voltaire, admirador do duque Leopoldo, e entrou em contato também
com o trabalho de escritoras contemporâneas, como Émilie du Châtelet, Françoise de Graffigny, Ma-
por mim:
“A educação de meninas de todas as classes sociais era, então, quase exclusividade das ordens religiosas.
A primeira educação das filhas das classes altas era feita em casa. Usualmente, a governante estava
encarregada do básico: ler e religião, enquanto tutores privados cuidavam da instrução em cantar,
dançar e fazer música. Depois, meninas eram enviadas para um convento, de onde saíam, no início da
adolescência para serem casadas. Fontevrault, Panthémont e La Présentation estavam entre os conventos
exclusivos reservados às princesas reais da França e às filhas da mais alta nobreza. Famílias estavam
mais ansiosas para enviar suas filhas para essas instituições porque desejavam que elas cultivassem
essas relações que poderiam assegurar posições no círculo íntimo de alguma princesa ou rainha. Em
geral, a vida das jovens não era isenta de bons momentos. Em algumas instâncias, as pensionistas eram
acompanhadas por suas próprias preceptoras e estavam autorizadas a receberem visitas femininas em
seus apartamentos privados. Frequentemente mercadores eram admitidos aos conventos para vender
suas mercadorias às residentes. Eventos sociais não eram raros, estudantes podiam se entreter umas
às outras com chás e jantares elegantes. Mulheres casadas eram hóspedes temporárias ou refugiadas
permanentes nos conventos e, naturalmente, eram livres para se associarem às estudantes. De acordo
aos irmãos Goncourt, essas instituições eram, de fato, cortes em miniatura, que trescalavam alegria.
[...]
Esta visão romântica e idealizada, no entanto, é bastante ‘retocada’ e não dá uma visão nem realista nem
as práticas terroríficas e as cruéis punições contadas por estudantes (segue-se passagem dizendo que,
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em Fontevrault as meninas eram punidas deixadas sozinhas nos lóculos onde as freiras eram enterradas
e que Mme. Louise – filha de Louis XV – teria adquirido acessos de terror dos quais jamais se curou).
[..]
A chocante falta de instrução entre professores era talvez a maior causa da ignorância das estudantes.
Em suas memórias Mme. de Roland lembra sua experiência [numa das mais respeitadas instituições
parisienses em 1765]. A instrutora mais competente, responsável pela tarefa mais árdua – o ensino da
escrita – era uma velha freira de 70 anos [...e seus talentos provocavam inveja e ciúmes nas freiras de
nível superior mas menos sabidas. As alunas, cujas idades variavam entre 6 e 18 anos eram simplesmente
Filhas da burguesia média eram educadas mais ou menos nos mesmos moldes, com pouca diferença.
Primeira educação providenciada pelas mães e parentes próximos (sem preceptora). É o caso de Mme.
Roland, que aprendeu catecismo com a mãe, desenho com o pai, Latim com um tio eclesiástico. Também
recebeu educação em geografia, escrita, dança e música pela visita dos vários tutores, todos homens,
pela quase ausência de mulheres professoras. Com as idades de 10 ou 12, as garotas burguesas freqüen-
tavam conventos como os das Beneditinas, Augustinianas, Notre Dame, Visitandinas e Bernardinas,
que providenciavam serviço de educação não apenas em Paris mas nas maiores cidades do interior.”
11 Jack Zipes opina que a atitudes da autora em sua vida contrasta com o que mostram os contos em
sua obra:
“Embora Mme. Leprince de Beaumont advogasse mais igualdade e autonomia para mulheres na
sociedade, seus contos são contraditórios, na medida em que descrevem como meninas deveriam se
domesticar, ajudar homens e provar seu valor demonstrando diligência e boas maneiras. Seria através
de leitura, diálogo e aulas que as meninas deveriam socializar para avançar socialmente e a ‘fé’ de Mme.
Leprince de Beaumont no poder da leitura dos materiais certos teriam um efeito muito difundido na
maneira como os contos para crianças deveriam ser feitos e moldados na maior parte do século XVIII
Em contraponto me parece que ela avança muito em relação ao que havia em termos de materiais para
educação e que seus contos e o conjunto dos diálogos de Magazine das crianças possibilitam dar um
13 Conforme consta nos dados biográficos da já citada edição da Zahar de A bela e a fera, a autora nasceu
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em Paris em 1685, casou-se em 1706 e ficou viúva em 1711, ficando em péssima condição financeira.
A partir de 1734, com a publicação de A fênix conjugal, a atividade como escritora passou a ser uma
componente importante para sua subsistência. Ela publicou continuamente até o ano anterior ao de
“Enquanto Mme. Leprince de Beaumont representava uma perspectiva social em que a educação
era essencial, sendo muito mais aberta à aliança entre a burguesia e a aristocracia (o que lhe garantiu
muito do futuro sucesso), Mme. de Villeneuve era mais rígida ao desenhar comportamentos de classe
17 O conto é realmente muito rico em referências que poderiam ser retomadas em releituras. No pa-
lácio, pelo artifício de abrir algumas janelas internas do palácio, Bela se vê transportada a teatros em
que assiste desde peças de teatro a óperas e concertos. O papel das artes no conto de Gabrielle-Suzanne
18 “Após terminar de se vestir, diferentes trabalhos de costura, livros e animais a ocuparam até o
momento do teatro.”
19 No conto, é colocada a questão de origem de Bela como impeditivo de casamento com o príncipe.
Esta questão era muito presente nos contos de fadas escritos a partir de 1690. Lembro dois exemplos:
“Fortuné”, de Marie Catherine d´Aulnoy, em que a jovem, criada como pobre camponesa é, em reali-
dade, princesa e “Le prodige d´amour” de Catherine Durand, em que a jovem pastora é, por fim, uma
20 O sistema de classificação de contos populares, hoje conhecido como ATU, começou a ser formatado
por Kaarle Krohn e Antti Aarne em 1910, passando por ampliações posteriores.
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Referências:
AAVV. Contos de fadas de Perrault, Grimm, Andersen e outros. Seleção de Maria Tatar.
Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Apresentação de Ana Maria Machado. Rio
de Janeiro: Zahar, 2010.
KERBER, Peter Bjorn. Read to improve themselves in XVIII century Paris.In BREMER-
DAVID. Charissa. Paris: Life and Luxury in the eighteenth century. Chicago: Jean-Paul
Getty Museum, 2011.
SPENCER, Samia I. (editor). French Women and the age of Elightement. Bloomington:
Indiana University Press, 1984.
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Traduções
O paradoxo de Charles
Perrault: como contos de fadas
aristocráticos se tornaram
sinônimo de conservação folclórica
Lydie Jean1
1 Mestra em Literatura Francesa Moderna pela Universidade de Paris IV Sorbonne. E-mail: [email protected].
2 Doutorando em Literatura Infantil e Juvenil pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
ABSTRACT: At the end of the 17th century, Charles Perrault wrote what would remain
his most famous book, and one of the biggest successes of French literature: the Histoires
et Contes du temps passé. It is commonly thought that Perrault took the matter of his book
directly from traditional folklore, in order to preserve its tales. However, studies show
that even if he was inspired by folktales, he was not interested in their conservation. But
the popularity of Perrault’s fairy tales has been so extensive that they finally returned to
folklore, became an important part of it and finally helped to preserve it. This process
can be explained by successive causes, which all together made it possible. From the very
beginning, Perrault’s fairy tales were modified to fit cheap publications. When it became
a fashion to study folklore, his tales were analyzed from a wrong angle. And when more
serious studies were made, it was too late: one could no longer tell which tales were original
folktales, and which were Perrault’s modified versions.
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Apresentação
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1. Introdução
A primeira imagem que geralmente vem à mente quando Charles Perrault é men-
cionado é a de um velho gentil ouvindo uma aia, contando às crianças maravilhosos
contos de fadas. Esse agradável Sr. Perrault supostamente teria coletado esses contos
de fadas com o intuito de entreter seus próprios filhos e, eventualmente, salvar essas
histórias do esquecimento. Tal ideia comumente difundida será chamada de “o mito
do bom Sr. Perrault” neste artigo. Esse mito baseia-se na ideia de que Perrault escre-
veu suas Histórias e Contos do Tempo Passado, também chamadas de Contos da Mamãe
Ganso, com a genuína intenção de prestar reverência ao folclore tradicional. Perrault
escreveu doze contos no total: A Paciência de Grisélidis, Os Desejos Ridículos, Pele de Asno,
estas três escritas em verso; A Chapeuzinho Vermelho, A Bela Adormecida no Bosque, O
Gato de Botas, Cinderela, Barba Azul, O Pequeno Polegar, As Fadas e Riquete de Topete,
estes escritos em prosa e com uma moral ao final. Quase todos os contos mencionados
têm, de fato, origem no folclore tradicional, mas foram sensivelmente modificados por
Perrault para se adequar ao público-alvo pretendido: a aristocracia.
Pensar que Perrault estava interessado na cultura popular seria um erro. Essa
crença generalizada pode ser explicada pelo fato de que seus contos se tornaram parte
da tradição popular. Perrault modificou os contos tradicionais com o intuito de en-
treter um público aristocrático, mas seu próprio trabalho também foi modificado. A
cultura popular reapropriou-se de seus contos, mas o nome de Perrault permaneceu
inseparável das histórias. Esse processo de reescritura das histórias tradicionais por
Perrault e a sua futura reatribuição à cultura popular é o que este artigo tentará analisar.
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Os contos de fadas de Perrault foram escritos entre 1694 e 1697, numa época em que a
préciosité estava na moda na França e em toda a Europa. Préciosité, ou preciosidade, era
uma tendência aristocrática. Os denominados “preciosos” acreditavam que os diálogos
brilhantes, as provas de inteligência e a elegância linguística eram meios de se denotar
sua distinção. O humor requintado e o pensamento crítico de seus escritos expressa-
vam um estilo de vida. O contexto de refinamento em que viviam condicionava suas
obras, de sorte que consideravam o modo de vida burguês como o auge da vulgaridade.
Como um gênero literário menor, proveniente da cultura popular e constituído
principalmente de formulações simples, o conto teria sido desprezado pelos preciosos.
No entanto, era o que estava em voga nos salões literários e, naquela época, todos
que buscavam algum reconhecimento literário escreviam contos (STORER, 1928).
Eram versões estruturalmente elaboradas de histórias que realmente não se pareciam
com contos populares. E mesmo que os contos tradicionais muitas vezes inspirassem
os contos de fadas preciosos, os escritores modificavam as versões originais a fim de
que não fossem prontamente reconhecidas. Os contos de fadas escritos nos salões
costumavam ser longos e de estilo elaborado; ocorre também que muitos deles eram
totalmente inventados, não tinham raízes populares e não respeitavam nenhuma das
características típicas dos contos tradicionais. Esses contos veicularam preceitos de
uma subcultura libertina, partilhada entre pessoas cultas: não há nada de ingênuo ou
inocente aqui.
O conto de fadas precioso foi projetado para o entretenimento da aristocracia e
não tem quase nada de semelhante com o conto de fadas popular do qual ele se origina.
É preciso entender que os contos de Perrault definitivamente pertencem à préciosité
(ROBERT, 1982). Algumas das morais que encerram os contos e alguns detalhes nos
textos são, obviamente, comentários espirituosos dirigidos a pessoas instruídas. Esses
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detalhes não podem ter sido extraídos de contos populares e muito menos de contos
infantis. No entanto, como veremos mais adiante, Perrault manteve muitos aspectos
dos contos tradicionais. A mistura de preciosidade e tradição forneceu ao seu trabalho
um polimorfismo único que provavelmente é a razão de seu sucesso.
Charles Perrault nasceu em 1628, em uma rica família burguesa que havia alçado à
corte real. Junto de seus sete irmãos e irmãs, foram criados pelos pais no “ódio às su-
perstições populares”, um contexto típico do racionalismo iluminista da época. Suas
primeiras obras, escritas com seus irmãos, refletiam as contradições da classe burguesa:
aliada às classes baixas, mas aterrorizada com a possibilidade desse aliado ficar fora de
controle. Eles zombavam das massas e de seu linguajar não refinado: se usavam seus
termos, era apenas para ressaltar a distância entre essas massas e o leitor erudito.
Por vinte anos, Perrault foi o parceiro mais próximo do ministro Colbert e,
como tal, contribuiu para a implementação e o fortalecimento do poder real absoluto.
Perrault estava encarregado do campo artístico: seu dever era criar estruturas para su-
pervisionar e, assim, controlar os intelectuais. Ele criou Academias de pintura, escultura,
música, arquitetura etc. Ao ser eleito para a Academia Francesa, em 1671, participou
ativamente da criação do dicionário institucional, cujo objetivo era completar a ruína
das variantes regionais e impor um modelo exemplar que diferenciasse o que era vulgar
ou grosseiro daquilo que seria de bom gosto, outra maneira de controlar os escritores.
Perrault era um homem muito mais moderno do que seu mito permite acredi-
tar, longe da imagem de bom burguês próximo às classes mais baixas. Ele participou
ativamente da política e do trabalho literário de então e foi ambicioso e firme em suas
posições. Foi o principal defensor da tendência modernista e considerou que o progresso
só era possível através da fé católica; escreveu O Paralelo dos Antigos e dos Modernos sobre
as Artes e as Ciências (Le Parallèle des Anciens et des Modernes en ce qui regarde les Arts et les
Sciences), em quatro volumes, para defender sua teoria. Suas ambições eram políticas
e, para afirmá-las, experimentou muitos estilos literários, inclusive o estilo galante.
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paródia de contos populares e uma reescrita desses contos. É isso que torna seu trabalho
único. Perrault retocou o estilo popular, manteve a estrutura das histórias e algumas
frases típicas, mas ainda assim os apresentou em um estilo ao gosto dos intelectuais e
aristocratas, fazendo uso de um vocabulário precioso e respeitando as regras de escrita
dos contos de fadas de salão. No tocante às suas reais intenções, o debate ainda conti-
nua. O polimorfismo de seu trabalho provavelmente reflete o polimorfismo do homem.
3.1. Os Iluminismos
Luís XIV morreu em 1715, e com ele morreu um estilo de vida, todo um estado de
espírito. Sua representatividade era tão forte que, quando faleceu, uma era terminou
e uma outra teve início. Todas as realizações de seu reinado pareceram desatualizadas
e os contos literários do preciosismo foram rapidamente esquecidos. A ruptura foi
ainda mais profunda porque a maioria dos escritores de contos de fadas morreu ainda
no início do século XVIII — Perrault morreu em 1703.
No século XVIII, o número de editoras havia aumentado drasticamente e o
público leitor crescia rapidamente. Os contos, como um tipo de literatura facilmente
acessível, também aumentaram sua audiência. Os Contes de ma Mère l’Oye, apesar de
antiquados, ainda desfrutavam de enorme sucesso popular. Apenas quatro edições
do livro foram mapeadas no século XVIII, muito provavelmente porque seu sucesso
editorial deveu-se às edições simples, difíceis de serem contabilizadas. No entanto,
esse tipo de publicação apresenta um problema, que é a despreocupação com a auto-
ria: geralmente não se imprime exatamente o texto original. É o caso dos Contes, que
passou por muitas modificações.
Após a morte de Luís XIV, muitos procedimentos foram questionados. A mo-
narquia absoluta foi examinada, o debate religioso foi fortalecido e novos sistemas
filosóficos nasceram. Esse contexto comprometeu o trabalho dos escritores do século
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O século XIX viu surgir uma tendência muito mais duradoura que qualquer outra
corrente literária, atingindo a maioria dos países europeus. Pode ocorrer como um
arroubo democrático, ou como resultado de uma excitação dos sentimentos nacionais
e patrióticos, ou mesmo ambos ao mesmo tempo. A tendência certamente foi genera-
lizada, mas ocorreu mais cedo ou mais tarde de acordo com o país, com as condições
econômicas e com as classes sociais envolvidas; pode ter consistido em debates teóricos
ou insurgências sangrentas, com orientação liberal, conservadora ou revolucionária.
Em todos os casos, descobriu-se que a cultura popular era digna de ser estudada, mes-
mo que nem todos os países partilhassem do mesmo entusiasmo. A Alemanha foi a
iniciadora dessa tendência e os irmãos Grimm, suas figuras emblemáticas.
Tentando preservar o folclore nacional, eles coletaram histórias com um pro-
fundo respeito pela tradição. Conta-se que os Grimm não dispunham de antologias
semelhantes já publicadas onde pudessem se inspirar quanto ao conteúdo de seus tra-
balhos. Assim, direcionando seus esforços para a tradição oral, eles teriam coletado
mais de duzentos e cinquenta contos de informantes germânicos, que foram reescritos
procurando manter o estilo dos narradores populares. Eles publicaram esse compên-
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mas seu trabalho passou a ser analisado sob uma perspectiva sentimental, que descon-
siderava sua real posição na história literária. “Descobriu-se” que Perrault não havia
inventado seus contos de fadas do nada, pois teria se inspirado nas tradições orais e
populares (WALCKENAER, 1876). E, imediatamente, o mito foi criado; Perrault
passou a ser visto como um bom homem burguês que colecionava contos populares no
campo e os reescrevia com absoluta fidelidade. Ele se tornou o símbolo, o precursor
daqueles que queriam preservar a produção tradicional.
Naquela época, os Contes de Perrault atingiram o auge de sua popularidade.
Eram histórias que as pessoas conheciam desde a infância e, portanto, tocavam-nas
profundamente. Conscientes do que os leitores populares agora representavam em
termos de dinheiro, as editoras começaram a lançar muitas edições do Contes em
formatos e preços acessíveis às massas. Perrault adquiriu uma popularidade sem pre-
cedentes e, entre 1842 e 1913, houve pelo menos mais 233 edições de seus contos
de fadas, por mais de sessenta editores diferentes. Isso significa uma média de três
ou quatro publicações por ano, sem incluir as edições e traduções mais baratas. Os
personagens de Perrault foram reapropriados pelo folclore popular e também pene-
traram nos círculos intelectuais. De forma semelhante, o Decadentismo os apropriou
e modificou seu significado original (DE PALACIO, 1993). Essa tendência mostrou
que Perrault ainda estaria muito presente no mundo da literatura e também que seus
Contes haviam se tornado tão famosos que, mesmo que totalmente modificados, ainda
eram reconhecidos pelo que haviam sido. Agora eles faziam parte da cultura comum.
4. Conclusões
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mecida, por exemplo (SORIANO, 1968). As principais origens escritas para os outros
contos são provavelmente os livretos baratos da chamada Bibliothèque Bleue francesa.
Perrault os mencionava com desdém, mas sabe-se que ele de fato leu esses folhetos,
como a maioria de seus contemporâneos. Após a publicação do livro de Perrault, a Bi-
bliothèque Bleue também publicou seus contos, mas, na maioria dos casos, os textos não
eram de autoria de Perrault. Eles foram modificados para se parecerem com os contos
que as pessoas conheciam, embora ainda fossem apresentados sob o nome de Perrault;
seus contos finalmente haviam retornado ao folclore tradicional. Até hoje, muitas pu-
blicações chamadas de “Contos de Perrault” são, na verdade, adaptações de algumas
histórias direcionadas às crianças. Eles apenas mantêm a estrutura principal dos contos
originais, como o próprio Perrault fez em relação às narrativas tradicionais. A influência
que Perrault exerceu no folclore é comprovada pelo caso de A Bela Adormecida, conto
de raízes literárias que passou a ser considerado narrativa tradicional. Através de Per-
rault, e mais tarde os irmãos Grimm, essa história se tornou parte da tradição popular.
Antes de instituir oficialmente o “folclore” local, os especialistas precisaram
coletar material para o trabalho. A maior parte dessas coleções foi compilada na pri-
meira metade do século XX na Europa em geral, e após a Segunda Guerra Mundial na
França. A principal publicação dos folcloristas franceses é o Le Conte populaire français,
catalog raisonné, de Delarue, continuado após a sua morte por Marie-Louise Tenèze
(DELARUE, 1957; DELARUE; TENÈZE, 1964). Trata-se de uma enorme coleção
de contos populares, e justamente a partir dessa coleção é que se levanta a questão
principal a respeito da influência de Perrault: os contos coletados seriam os contos
primitivos que inspiraram Perrault ou seriam versões modificadas dos contos estabele-
cidos por Perrault? Esse questionamento testifica, por si só, a profunda influência dos
Contes no folclore. Agora é quase impossível determinar quais contos são os “originais”
e quais são os escritos por Perrault. Apesar de os contos de fadas do autor terem sido
distorcidos desde suas primeiras publicações, seu nome e a forma estrutural por ele
estabelecida correspondem ao maior sucesso na história literária francesa. Nenhum
outro livro passou por tantas modificações e, ainda assim, continuou a ser tão ampla-
mente publicado e relido.
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Referências
DE WALCKENAER, Charles Athanase. Lettres sur les contes de fées attribués à Perrault
et sur l’origine de la féerie. Paris: Jouaust, 1826.
DELARUE, Paul. Le Conte populaire français, catalogue raisonné, Tome I. Paris: Éras-
me, 1957.
GRIMM, Jacob and Wilhelm. Les Contes. Translation by Guerne, Armel. Paris: Flamma-
rion, 1967.
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Conto e mito, por Eleazar M.
Meletínski
1 É graduando em Letras pela FFLCH-USP, com dupla habilitação em Português e Russo, atualmente em
as ligadas ao folclore como gênero literário e aos mitos, suas particularidades e sua relação com a literatura mo-
derna. Além de desenvolver suas pesquisas nessas áreas, também atua como tradutor, principalmente de textos
em língua russa. A partir de 2020 começou a colaborar com a Revista RUS como Assistente Editorial.
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mentos que podem se revelar mais corretos. Uma tal polêmica pode
apresentar um interesse científico geral. Foi por isso que aceitei com
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bem como o livro Do Mito à Literatura (Ot Mifa k Literature), que lamentavelmente
ainda não foi traduzido. Para tentar suprir em parte essa lacuna, propusemos a tra-
dução a seguir de um dos textos em que o crítico literário russo repisa a trilha segura
encontrada em suas pesquisas.
Como se pode notar pelo título, o autor aponta para um processo que liga o
mito e a literatura, ou seja, a partir do mito, que é absolutamente sincrético, as dife-
rentes artes vão se diferenciando pouco a pouco e se distanciando de sua raiz mito-
lógica e adquirindo contornos próprios. Esse processo de transformações é chamado
de desmitologização e o leitor pode encontrar algumas reflexões a esse respeito na
tradução a seguir.
Para concluir, é importante ressaltar que o texto em questão pode ser lido como
um gêmeo, por assim dizer, do artigo “Mito e Conto Maravilhoso” (MELETÍNSKI,
2019a), que tivemos a oportunidade de traduzir e publicar. Acreditamos que a leitura
conjunta só pode vir a contribuir para o entendimento geral dessa teoria e, havendo in-
teresse, é possível recorrer às demais obras do autor e aquelas derivadas do seu trabalho.
Rafael Bonavina Ribeiro
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Referências
______. Mito e Conto Maravilhoso. RUS (São Paulo), v. 10, n. 13, pp. 149-164, 12
jun. 2019a.
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Mito e Conto
No folclore arcaico, a distinção entre mito e conto (doravante C.) é difícil de preci-
sar. Os próprios nativos dividem as tradições em duas formas [pynyl e lymnyl entre
os tchukotos2; khvenokho e khekho, entre os fon3 (Benin); liliu e kukvanebu entre os
nativos de Kiriwina da Melanésia e assim por diante4] provisoriamente relacionadas
aos mitos e C.
Entre a maioria dos pesquisadores, não há dúvida de que a origem do C. seja
o mito. Os C. arcaicos demonstram a ligação particular da trama com os mitos primi-
tivos, os rituais e os costumes tribais. Encontra-se com frequência nos C. de animais
os motivos típicos dos mitos totêmicos e, principalmente, das anedotas mitológicas
sobre trapaceiros. É bem evidente a ampla divulgação da ancestralidade mitológica
do C. maravilhoso sobre o casamento com o ser “totêmico” mágico que deixa tem-
porariamente a forma de animal e assume a aparência humana (vide tramas AT 4005,
2 Povo nativo da Sibéria, cujo nome deriva da palavra tchautchu, no idioma tchukoto, que significa “os ricos
3 Este povo africano também é chamado de Daomé e foi um reino muito importante há alguns séculos. A
influência deste povo em nossa cultura não deve ser descartada, pois o Brasil foi uma das regiões que mais recebeu
4 O autor não se detém muito na discussão deste ponto em particular, pois já desenvolveu o tema no artigo
“Mito e Conto”, de Meletínski, que, por isso, pode servir de complemento. O leitor encontra, ao final, a referência
de uma tradução deste texto, feita com ajuda da Profa. Dra. Ekaterina Vólkova, que tivemos a oportunidade de
5 É preciso fazer uma ressalva quanto à referência do autor. Fala-se do sistema de catalogação dos motivos dos
mitos amplamente divulgado dentre os folcloristas, em especial os da escola finlandesa. Este sistema foi criado por
Antti Aarne nos anos 1920, depois ampliado por Stith Thompson nos anos 50, por isso juntaram-se as iniciais dos
sobrenomes e nasceu à sigla AT. Recentemente o sistema foi revisado por Hans-Jörg Uther, então a classificação
passou a ser chamada de ATU, no entanto a consagração dessa nova sigla é bem recente e ainda debatida, o que
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425 etc.): a esposa mágica (nas versões mais tardias, o marido) dá sorte na caça ao seu
escolhido, mel (se for uma abelha), uma colheita farta e assim por diante, mas o aban-
dona por violar uma proibição qualquer (não usar o nome, não discutir e assim por
diante). Os C. sobre visitar outros mundos para libertar um prisioneiro (AT 301 etc.)
são análogos aos mitos e lendas sobre os xamãs e feiticeiros que vão atrás da alma do
doente ou falecido. Os motivos característicos dos ritos iniciáticos aparecem nos fa-
mosos C. sobre um grupo de crianças que cai nas garras de um espírito maligno, um
monstro, um canibal, e é salvo graças a uma delas (AT 327 etc.), ou sobre a morte de
um dragão poderoso, um demônio ctônico (AT 300 etc.).
Tendo suas bases ritualísticas e sendo parte necessária dos rituais ou dos co-
mentários a eles, os mitos se transformaram em C. mediante um importante pré-re-
quisito, a ruptura da relação imediata desses mitos com a vida ritualística da tribo.
O desaparecimento dos limites específicos à transmissão do mito, a antecipação do
número de ouvintes e principiantes (mulheres e crianças) fazia o narrador deter-se
inconscientemente para inventar, enfatizando a diversão do momento e, sem dúvida,
enfraquecendo a crença na verossimilhança do conto. Diminuindo a sacralidade dos
pode causar confusão quanto à nomenclatura apresentada pelo autor, que a chama pela sigla antiga, embora use
a nova numeração. Nesta referência, Meletínski nos apresenta o que chamaríamos hoje de ATU400 e ATU425,
a partir disso, sabemos que ele indica os contos de magia (ATU300-749), mais especificamente os contos em que
um cônjuge ou familiar é uma criatura sobrenatural (ATU400-459), e precisamente os contos em que se tem a
esposa (ATU400-424) ou o marido (ATU425-449) sobrenatural. Como se pode ver, a classificação é uma ferra-
menta muito útil para a folclorística, pois permite encontrar motivos semelhantes, bem como suas variações. Se
ignorássemos essa diferença de nomenclatura, o leitor não teria dificuldade em encontrar a categoria correta. Em
primeiro lugar, a divisão AT é feita a partir de uma seção temática indicada por uma letra e depois um número,
então a indicação de Meletínski seria insuficiente para se encontrar o motivo a que ele se refere. Em segundo
lugar, ainda que se deduza pelo contexto que o autor esteja falando da subdivisão T, que engloba os motivos ligados
ao sexo, a entrada de número 425, por exemplo, se referiria à sedução da meio-irmã por parte do meio-irmão, o
que não condiria com o texto. A partir disso, afirmamos que Meletínski utiliza a classificação ATU. [N. do T.]
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mitos, aumenta a atenção dada às relações familiares dos personagens, suas discussões,
lutas e assim por diante. A verossimilhança rígida da primeira fase dá lugar à relativa,
que permite uma criatividade mais consciente e livre.
Na gênese do C., desempenham um papel essencial a desmitologização do es-
paço e do tempo da ação; a transformação da localização precisa (ali onde ela de fato
aconteceu) dos eventos no espaço e tempo indeterminados da narrativa. A partir disso
surge também a desmitologização do resultado da ação; ou seja, no C., não existe a etio-
logia típica do mito. No mito os feitos demiúrgicos (ainda que se pareçam em essência
com os truques do trapaceiro mitológico) e as aquisições mitológicas têm significado
coletivo, cósmico e determinam o processo cosmogônico (a criação do mundo, do
fogo, da água fresca e assim por diante), já no C. os objetos adquiridos e as conquistas
são benefícios pessoais do herói, e essa obtenção possui uma natureza familiar, tribal,
social. Dessa forma, o protagonista do C. maravilhoso consegue a Água da Vida para
salvar o pai doente (por exemplo, nos C. havaianos ou nos C. populares europeus)
ou consegue, com a ajuda dos bichos, a brasa para a sua fogueira (entre os fon), e um
personagem do C. de animais (a lebre ou a aranha) toma para si a água do poço através
de uma artimanha. O sentido etiológico do mito aos poucos vai se transformando em
moral (nos C. de animais), em fórmulas estilísticas e alusões à inveracidade do conto
(nos C. maravilhosos). A desmitologização acontece inclusive com os próprios perso-
nagens. Por serem os herdeiros das narrativas sobre os trapaceiros mitológicos, uma
condição necessária para a formação dos C. de animais é a dessacralização dos perso-
nagens totêmicos, que deve preservar formas animais deles; o protagonista destes C.
é o trapaceiro transformado em animal, e suas peripécias são os elementos estruturais
básicos da trama. Na mesma medida em que abandonavam as crenças totêmicas, os
C. de animais enriqueciam-se com os motivos cotidianos.
A desmitologização do protagonista do C. maravilhoso e mágico-heroico é
acompanhada pela sua completa antropomorfização e, em certo grau, idealização: ele
tem pais divinos, uma origem milagrosa, às vezes há alguns traços totêmicos resqui-
ciais. Apesar disso, o herói do C. não apresenta desde o início aqueles poderes mágicos
que o herói mitológico tem por natureza. Nos C. arcaicos, ele ganha essas qualidades
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6 O nome é composto por duas partes: Ivan, o equivalente russo para o nome João, um nome muito comum,
e tsariévitch, o filho do tsar, que poderia ser traduzido como “príncipe”, então teríamos Príncipe João. Por ser
um personagem muito recorrente no folclore russo, com diferentes feitos, esposas, família e nuances de perso-
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o “rapaz sujo”, é análogo aos zapetchnik 7, aos irmãos mais novos, à Cinderela dos
C. europeus, ao Ivan, o Tolo8.
A forma clássica do C. maravilhoso apareceu muito depois do C. de animais
clássico, após o fim da cultura primitiva; essa forma só é conhecida no folclore dos
povos civilizados da Europa e da Ásia e difere do C. arcaico em maior medida do que
este do mito. A sua formação foi preparada pela decadência (embora parcial) da visão
de mundo mitológica, a transformação da fantasia concreto-etnográfica em abstrato-
-poética. No folclore arcaico, a representação narrativa é tão concretamente etnográ-
fica quanto nos mitos, isto é, baseada nas crenças tribais concretas; no C. maravilhoso
clássico, elas se separam, e nasce sua mitologia poética bastante fundamental. Dife-
rentemente do que se encontra na bylitchka, os seres mágicos do C. russo refletem a
manutenção da superstição em certos meios. Apesar de não estar geneticamente ligada
à magia e ao sagrado, a compreensão do maravilhoso não é a mesma, pois é específica
ao C. (e não igual ao mito). O conto não poetiza apenas as figuras dos seres míticos
nalidade, podemos considera-lo como uma espécie de herói genérico, isto é, um nome dado para um tipo e não
7 Espírito do folclore eslavo que vive atrás do forno da isbá, geralmente retratado como um humanoide. Não
8 Ivan, o Tolo é mais um tipo do que um personagem de fato, de índole sempre boa e prestativa. Ressaltamos
que “tolo”, aqui, não carrega uma conotação negativa, embora seja inevitável para o leitor contemporâneo. Algu-
mas das principais características de Ivan, o Tolo, são sua inocência, sua facilidade em perdoar os demais e uma
inteligência não habitual, que é interpretada por muitos como tolice, mas é a razão de seu sucesso nas histórias.
Ao contrário do Ivan-tsariévitch, sua origem é extremamente humilde, via de regra, ele é filho de camponeses.
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9 Baba-Iagá é uma bruxa do folclore russo que, como apontou V. Propp, pode ter a função de antagonista ou
de doador/ajudante, dependendo do conto em questão. Dentre os muitos trabalhos feitos sobre esta controversa
nássiev e o conto popular russo”, escrita por Flávia Moino, 2008. Neste trabalho, o leitor brasileiro tem acesso
gratuito e fácil a um excelente material a respeito do folclore russo, pois, partindo de algumas explicações sobre
a vida de um dos mais importantes folcloristas do século XIX. Não bastando o estudo interessante a respeito de
Afanássiev, Moino também apresenta traduções de vários contos centrados na figura de Baba-Iagá, bem como
10 Por vezes chamado de Koschei, o Imortal, é um feiticeiro do folclore eslavo, geralmente de má índole,
também conhecido por ser um guerreiro excepcional. Seu semblante parece com um esqueleto, pois ele é magro
e longilíneo, vale ressaltar que uma das etimologias do nome é a palavra kost (em português, osso). Apesar de
seu epíteto, há uma forma secreta de mata-lo, e a sua descoberta é parte da aventura dos personagens. [N. do T.]
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tes C., é comum que o herói esconda-se conscientemente sob uma máscara “baixa” e
só depois revele sua real origem (como no C. sobre o jovem dos cabelos de ouro etc.).
Como um todo, é característica à semântica do C. maravilhoso a preservação
da importantíssima oposição mitológica próprio x alheio (que se caracteriza pela re-
lação do herói e seu antagonista), que se projeta em diferentes planos: casa x bosque
(criança x Baba-Iagá), o nosso reino x o reino alheio (o jovem x o dragão), a família
de sangue x a família de casamento (afilhada x madrasta) etc.; a descrição das normas
das relações familiares e matrimoniais é conduzida ao plano da oposição: do costu-
meiro casamento exogâmico com o cônjuge “totêmico”, que unifica o “humano” e o
“animal”, para a transgressão máxima sob a forma de incesto.
No C. maravilhoso clássico, o sucesso ou fracasso do herói já não é conse-
quência direta da sua observância de prescrições mágicas, da aquisição das habilida-
des mágicas como resultado de uma iniciação ou provação xamanística, das relações
consanguíneas ou matrimoniais com os espíritos. É como se os poderes mágicos se
separassem do herói e, de certa forma, agissem em seu lugar. A sua ajuda é condicio-
nada à observância de preceitos definidos e bastante abstratos, que ditam a estrutura
da ação do C. Seu princípio fundamental é a obrigatoriedade da resposta positiva a
qualquer desafio, principalmente os que levam à ação (em especial se ele vier de um
ser evidentemente hostil): toda prescrição deve ser realizada; e qualquer proibição,
transgredida. Esse sistema formular de conduta foi abstraído a partir das normas
consuetudinárias características ao C. Isso não impede que os atos do herói também
sejam de caráter ético-moral (educação, bondade, generosidade etc.), o que é típico
do gênero. Os poderes mágicos colaboram ativamente com o herói para a realização
do feito, frequentemente agindo em seu lugar, mas a boa índole sempre demonstra a
alma pura do herói (e a má, a alma impura do falso-herói).
Assim como no mito, o C. tardio possui uma estrutura morfológica única, pare-
cida com uma corrente de perdas (problemas, deficiências) de alguns valores cósmicos
ou sociais e suas aquisições, que são ligadas entre si pelos atos do herói (consequência
delas). Os feitos cosmogônicos e culturais dos demiurgos míticos, as peripécias dos
trapaceiros nos C. de animais e as provações dos heróis dos C. maravilhosos – esses
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atos são distributivamente semelhantes (todos eles são os elos intermediários entre as
perdas e as aquisições). Mas o mito ou o C. arcaico servem como certa metaestrutura
para o C. maravilhoso clássico. No C. arcaico, a corrente de perdas e aquisições pode
ser feita de um número indeterminado de elos e o final positivo, feliz (aquisição), não é
obrigatório, apesar de ser mais comum do que o negativo (perda). Quanto à estrutura,
todas as conexões são mais ou menos equivalentes e independentes. No C. maravilho-
so clássico, os elos narrativos independentes formam necessariamente uma estrutura
hierárquica rígida e delimitada, em que alguns valores narrativos são o meio para o
progresso de outros (análogo ao C. de animais clássico, constituído por uma corrente
de truques, também hierarquicamente relacionados um ao outro, embora em menor
grau do que no C. maravilhoso). A estrutura hierárquica do C. maravilhoso é feita de
dois ou, mais frequentemente, três elos fundamentais de provações do herói: a prelimi-
nar (algum doador checa o conhecimento do herói a respeito das regras de conduta),
a principal (o feito que conduz à liquidação do problema ou da deficiência iniciais) e a
complementar (a comprovação da identidade: o herói deve provar que foi ele mesmo
quem realizou o feito, seguida pela condenação dos rivais e dos impostores). O final
do C. maravilhoso clássico é invariavelmente feliz; via de regra, é o casamento com a
princesa e a aquisição de metade do reino. Dessa forma, não basta liquidar o problema/
deficiência inicial, pois há aquisições complementares, que se tornam a recompensa
do herói. As provações no C. maravilhoso são comparáveis àquelas típicas dos ritos
de consagração (iniciático) ou conjugais (mais tardios) na sociedade arcaica, ligadas
aos mitos. Já que cada indivíduo atravessa a iniciação e outros ritos de passagem (por
exemplo, de uma classe etária para outra), o C. utiliza amplamente os motivos mitoló-
gicos, relacionados aos rituais do tipo iniciático, por causa do seu interesse pelo destino
pessoal. Esses motivos são pontos de referência no caminho do herói (a sequência de
provações, a aquisição dos poderes mágicos) e são símbolos da própria heroicidade (a
vitória sobre o dragão etc.). Assim a sequência dos mais importantes símbolos, mo-
tivos, tramas e, em parte, a estrutura geral do C. maravilhoso estão ligadas aos ritos
iniciáticos (ver as pesquisas de V. Propp, J. Campbell e, mais recentemente, P. Sainty-
ves). No entanto, o equivalente ritualístico do C. maravilhoso clássico é o casamento,
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11 Gênero folclórico em verso ou prosa, geralmente de conteúdo cômico. O nome do gênero é formado a
partir da palavra “быль” (byl’), em português “fato”, que dá origem ao gênero “былина” (bylina), um dos maiores
exemplos de conto maravilhoso do folclore russo; somando-se à raiz etimológica o prefixo negativo “не” (ne) e os
sufixos necessários, chegamos ao nome do gênero textual em questão “Небылица” (nebylitsa). Ou seja, o nome
é do gênero pode ser entendido como “inverdade”, “invenção”, “mentira”, por isso é comum encontrar textos
que beiram o absurdo, para sublinhando o seu caráter de criação, de inverdade. Por outro lado, a nebylitsa pode
ser vista como uma paródia do conto maravilhoso, mas é importante ressaltar que ela não apresenta os motivos
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Referências12
PROPP, Vladimir. Raízes Históricas do Conto Maravilhoso. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2003.
JOLLES, A. Einfache Formen: Legende, Sage, Mythe, Rätsel, Spruch, Kasus, Me-
morabile, Märchen, Witz. Berlin: De Gruyter, 1993.
12 Nesta edição, as referências originais foram trocadas pelas mais acessíveis para o leitor brasileiro. Quando
possível, referenciamos as traduções já feitas em português, em edições mais contemporâneas. Em alguns casos,
as edições já se encontram em domínio público, por isso oferecemos as versões disponibilizadas gratuitamente.
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THOMPSON, S. The Folktale. Nova Iorque: Dryden Press, 1946. Disponível em:
https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=inu.30000118310238
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Сказка и Миф
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