Ecologia de Justicas Sul e Norte
Ecologia de Justicas Sul e Norte
Ecologia de Justicas Sul e Norte
Orientadores:
Professor Doutor João António Fernandes Pedroso
e Professor Doutor António Casimiro Ferreira
Coimbra, 2014
ÍNDICE
AGRADECIMENTOS ................................................................................................................... IX
RESUMO ....................................................................................................................................... XV
Introdução.................................................................................................................................................15
Descolonizar o direito: a antecâmara para o campo das justiças comunitárias [ou concluindo] ................94
iii
CAPÍTULO II – AS JUSTIÇAS COMUNITÁRIAS E A ECOLOGIA DE JUSTIÇAS ............ 97
Introdução ................................................................................................................................................ 97
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças na preparação para o terreno [ou concluindo] ............ 173
iv
2. As técnicas de investigação..................................................................................................................196
Introdução...............................................................................................................................................203
Introdução...............................................................................................................................................267
v
1.3. A viragem do século e o entusiasmo pelos meios RAL ............................................................ 281
1.3.1. Primeiros passos (arbitragem e mediação) ..................................................................... 281
1.3.2. A aposta recente.............................................................................................................. 282
1.3.2.1. A rede dos julgados de paz ...................................................................................... 284
1.3.2.2. O entusiasmo continuado e a regulação da mediação pública e privada ............... 293
1.3.2.3. A arbitragem institucional e as expetativas de bom ambiente de negócios ........... 296
1.4. O balanço de um movimento mais amplo .............................................................................. 298
vi
1.2.1. Volume e tipo de conflitos ............................................................................................... 351
1.2.2. Social ou criminal? A (re)classificação dos conflitos ........................................................ 353
1.3. A proximidade. “Para o cidadão, todo o caso é da competência da polícia” .......................... 358
1.4. A resolução. Demonstração, aconselhamento e exequibilidade ............................................ 362
1.5. Resultados. Celeridade e eficácia ............................................................................................ 371
1.6. A força do Estado heterogéneo ............................................................................................... 372
3. A Associação Nós por Exemplo. A abordagem global aos problemas e a interlegalidade .....................402
3.1. A associação e a abordagem global aos problemas ................................................................ 402
3.2. A conflitualidade. A forte presença do espaço doméstico e das relações multiplexas ........... 404
3.3. Invisibilidade, proximidade humana e segurança ................................................................... 406
3.4. A resolução. Empatia, aconselhamento e interlegalidade ...................................................... 410
3.5. Resultados. Uma relação de continuidade com as partes ...................................................... 420
3.6. A legitimidade assente na confiança ....................................................................................... 421
Introdução...............................................................................................................................................427
vii
2.1. A dependência do GRAL e a existência virtual ........................................................................ 459
2.2. A conflitualidade. As várias dimensões das relações familiares.............................................. 461
2.3. A proximidade humana fora do imaginário jurídico ............................................................... 464
2.4. A resolução. A mediação e a transformação social das famílias ............................................. 471
2.5. Resultados. Expetativa de celeridade e restabelecimento das relações ................................. 477
2.6. A fraca afirmação no contexto da administração da justiça ................................................... 480
BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................... 517
viii
AGRADECIMENTOS
ix
Agradecimentos
x
Agradecimentos
Em Maputo fica sempre parte da minha vida e pessoas que me fazem sentir em casa
a cada regresso. É difícil imaginar como responderia aos desafios sem a amizade
incondicional e o apoio sem restrições de quem torna tudo mais fácil e mais bonito: a
Cristina Azevedo, a Taciana Peão Lopes, a Paula Couto e o Joy Couto. Nunca saberei
agradecer-lhes o suficiente. Espero continuar a voltar.
A toda a equipa do projeto ALICE, agradeço os espelhos estranhos, as lições
imprevistas, os debates e desafios e, acima de tudo, a solidariedade e a amizade. Deixo
uma palavra de reconhecimento especial aos que me acompanharam mais de perto e
sentiram, por vezes, os danos colaterais do processo de escrita: a Alice Cruz, a Aline
Mendonça, o Bruno Sena Martins, o Cristiano Gianolla, o Dhruv Pande, o Francisco
Freitas, o Maurício Hashizume, a Teresa Cunha. À professora Maria Paula Meneses e ao
Professor José Manuel Mendes, coordenadores científicos do projeto ALICE, agradeço o
apoio que surgiu sempre que precisei. À Rita Kácia agradeço o tanto que torna os dias
melhores. À Élida Lauris agradeço as inúmeras partilhas e o suporte decisivo, mas
sobretudo a amizade cúmplice feita de desafios combinados com confiança.
A toda a minha família agradeço a segurança e a compreensão das minhas
ausências. Espero ser capaz de compensar o meu sobrinho Rodrigo que nasceu no início
desta aventura e, entre temporadas longas em Moçambique e o isolamento da escrita,
não me conhece sem as responsabilidades de uma tese. À minha irmã agradeço a
cumplicidade infinita, que me faz mais forte, e a firmeza para resolver todos os problemas
como se fossem simples. À minha mãe agradeço o tanto que não cabe aqui e a
possibilidade de arriscar por ter sempre para onde voltar. Ao meu pai devo a confiança
que sempre teve em mim, o incentivo por uma escolha menos óbvia, tudo o que nunca
serei capaz de expressar. Esta tese é dedicada à minha mãe e ao meu pai.
xi
Este tese beneficiou do apoio de:
xiii
RESUMO
Esta tese nasceu do objetivo de abordar a sociologia do direito a partir das reflexões e
das propostas das Epistemologias do Sul, tendo como horizonte a reflexão sobre a
descolonização do pensamento jurídico. A investigação parte de temas clássicos da sociologia
e da antropologia do direito – o pluralismo jurídico e as justiças comunitárias -, a que procura
trazer uma leitura renovada a partir da sociologia das ausências e das emergências enquanto
proposta epistemológica contra o desperdício da experiência do mundo. A questão que dirige
a investigação assume a seguinte formulação: qual o papel das justiças comunitárias na
promoção do acesso ao direito e à justiça e na transformação das sociedades?
As justiças comunitárias são instâncias de resolução de litígios que recorrem a uma
terceira parte imparcial, não pertencente ao poder judicial, para promover a resolução dos
casos que lhes são apresentados. Apesar de afinar a definição ao longo da tese, os limites são
traçados sobretudo pela negativa, por oposição aos tribunais judiciais. Se esta opção pode ser
entendida como fraqueza, é a flexibilidade de fronteiras decorrente dessa condição que torna
o conceito de justiças comunitárias um instrumento epistemológico relevante. O conceito
funciona como categoria de partida, uma ferramenta intermédia para elaborar cartografias
jurídicas que vão além da leitura por oposição.
A sociologia das ausências visa conhecer e credibilizar a diversidade das práticas sociais
existentes no mundo face às práticas hegemónicas. A sua operacionalização é feita pela
substituição das monoculturas do conhecimento, que o contraem, por ecologias, que o
dilatam. A ecologia de saberes é o seu instrumento mais forte. Partindo do conceito de
ecologia de saberes, procuro promover uma ecologia de justiças, confrontando a conceção
liberal do direito e da justiça e as hierarquias impostas pelo cânone do direito moderno com a
diversidade de direitos e de justiças que existem no mundo, contribuindo para o
conhecimento e a valorização da diversidade que cabe no interior da ideia de pluralismo
jurídico. Daí que o conceito de justiças comunitárias seja necessariamente flexível. Para poder
usá-lo como ferramenta no combate ao desperdício da experiência, procurei uma categoria e
uma definição amplas com o objetivo de chegar ao terreno mais resistente à influência de
preconceitos, evitar a exclusão de instâncias apenas por não encaixarem numa definição
fechada, e ter a possibilidade de dar conta de uma realidade móvel e diversificada, tantas
xv
Resumo
xvi
ABSTRACT
This thesis came about with the aim of addressing the sociology of law starting from the
reflections and proposals provided by the Epistemologies of the South, offering a reflection
on the decolonisation of legal thought. The research starts from the classic themes of
sociology and the anthropology of law - legal pluralism and community justice systems - to
which it seeks to bring fresh insight using the sociology of absences and emergences as an
epistemological challenge to the waste of experience of the world. The question that drives
the research can be formulated as follows: what is the role of community justice systems in
promoting access to law and justice and in transforming societies?
Community justice systems are instances of dispute resolution which use an impartial
third party, who does not belong to the judiciary, to settle cases brought before them.
Despite refining this definition throughout the thesis, the concept is defined mainly in the
negative, by its opposition to the judicial courts. While this option may be seen as a
limitation, it is the flexibility of boundaries resulting from this limitation that makes the
concept an important epistemological tool. It serves as a starting point, an intermediary to
devise legal mappings that go beyond interpretation by opposition.
The sociology of absences aims to raise awareness of and bring credibility to the
diversity of social practices in the world in the face of hegemonic practices. It is put to work
by replacing the monocultures of knowledge, which constrict it, with ecologies that expand it.
The ecology of knowledge is its most powerful tool. Based on the concept of the ecology of
knowledge, I attempt to promote an ecology of justices, confronting the liberal concept of
law and justice and the hierarchies imposed by the canon of modern law with the diversity of
law and justice systems that exist in the world, contributing to knowledge and valuing the
diversity that lies within the idea of legal pluralism. Hence the concept of community justice is
necessarily flexible. In order to use it as a tool in combating the waste of experience, I sought
a category and a broad definition to reach terrain which is more resistant to the influence of
prejudice, to avoid excluding instances simply because they do not fit watertight definitions,
and to be able to describe a mobile and diverse reality, one that is so often unpredictable. I
did not seek the 'exotic', the 'traditional' or the 'informal' and have not privileged or excluded
structures created, encouraged or recognized by the State, tidied away into the drawer
xvii
Abstract
marked 'alternatives'. New and old forms of law and justice fit into the category of
community justices, as well as hybrid instances created in the areas of contact between the
state and the community that do not fit into the modern dichotomous variables
(formal/informal, traditional/modern, official/unofficial).
The implementation of the ecology of justices has been divided into two stages of
empirical research: the macro approach and the micro approach. The first objective was to
become acquainted with diversity and I started by determining geographical boundaries
beforehand rather than the concrete objects of research. Having defined the urban centres of
Maputo (KaMfumo District) and Lisbon (Lisbon Municipality), I began a cartographic process
that resulted in maps of community justice systems operating in the identified areas.
Community justice systems began to take on names and slot into specific categories. In
Maputo, we highlight the hybrid instances emerging in zones of contact with and as a result
of the heterogeneity of the State. In Portugal, community justice systems are players arising
from the dejudicialization and informalization processes controlled by the State.
The second occasion for the ecology of justices was based on a micro analysis of
routines from a grid with six groups of variables (instance, conflictuality, proximity, resolution
process, results and presence). Based on the maps and the pre-established criteria, I selected
five instances for this phase: the 7th Police Department of Maputo, the Office Service Model
for Women and Children Victims of Violence and the Association Nós por Exemplo (Maputo);
the Justice of the Peace for Lisbon and the Family Mediation Service (Lisbon). These instances
tend to function as platforms for access to law and justice, even though the variables show
substantial differences. As stages of social transformation they assume heterogeneous roles
and limitations, but they are identified as bodies which, observed through the lenses of the
sociology of emergences, i.e., the symbolic expansion of knowledge and practices, reveal the
potential to challenge patriarchy and coloniality.
xviii
Lista de acrónimos e abreviaturas
xix
Lista de acrónimos e abreviaturas
xx
INTRODUÇÃO GERAL
1
Introdução geral
tendo em conta os desafios epistemológicos a que fiz referência? Porquê tratar contextos
tão diferentes? Porquê colocar as lentes da investigação sobre centros urbanos?
As justiças comunitárias são instâncias de resolução de litígios que recorrem a uma
terceira parte imparcial, não pertencente ao poder judicial, para promover a resolução
dos casos que lhe são apresentados. Este conceito cobre instâncias altamente
diversificadas, com competência específica ou alargada, reconhecidas ou não pelo Estado
e mais ou menos permeáveis à influência estatal, que podem apelar a princípios distintos
e a diferentes direitos. Ainda que ao longo da tese venha a estabelecer uma definição
mais extensa e detalhada das justiças comunitárias, o conceito é definido sobretudo pela
negativa, por oposição aos tribunais judiciais. Se esta opção pode ser vista como
limitação, é a flexibilidade de fronteiras decorrente dessa condição que o torna um
instrumento epistemológico relevante. O conceito de justiças comunitárias não tem
pretensões de homogeneidade, opondo-se à conceção hegemónica do modelo liberal de
justiça – justiça centralizada no Estado, burocrática, hierarquizada, profissionalizada e
assente no direito estatal (Santos, 1992: 137) –, e tem elasticidade suficiente para incluir
instâncias esperadas e inesperadas, com formas e significados sociais e políticos
altamente diversificados. O conceito funciona, assim, como categoria de partida, uma
ferramenta intermédia para promover cartografias jurídicas mais precisas que vão além
desta leitura por oposição. O primeiro objetivo deste trabalho é pois o estabelecimento
de mapas de justiças comunitárias de escala ampla.
Na base da investigação, encontra-se um desafio lançado por Boaventura de Sousa
Santos no âmbito do que designa por sociologia das ausências e das emergências. Esta
proposta epistemológica parte da ideia de que o que não existe é, na verdade,
ativamente produzido como não existente, isto é como uma alternativa não-credível ao
que existe, e visa conhecer e credibilizar a diversidade das práticas sociais existentes no
mundo face às práticas hegemónicas e pensar o futuro em função dessa dilatação do
presente. A operacionalização da sociologia das ausências é feita pela substituição das
monoculturas do conhecimento, que o contraem, por ecologias, que o dilatam. A ecologia
de saberes é o instrumento mais forte e propõe o confronto da monocultura da ciência
moderna com o reconhecimento da diversidade de formas de conhecimento que existem
2
Introdução geral
3
Introdução geral
4
Introdução geral
responsável por aquilo que Boaventura de Sousa Santos designa por “desperdício da
experiência” (Santos, 2000) e foi classificada como “epistemicídio” (Santos, 1995),
“injustiça cognitiva global” (Santos, 2006a) ou “violência epistémica do imperialismo”
(Spivak, 1988).
O direito moderno foi o duplo da ciência e se esta legitimou o “epistemicídio”, a
conceção moderna de direito enquanto direito do Estado promoveu um “juricídio”
(Santos, 1995, 2011a). A Norte ou a Sul, as sociedades sempre foram juridicamente
plurais e palcos de múltiplas instâncias de resolução de conflitos. A justaposição entre
direito, Estado e nação ou entre justiça e tribunais judiciais foi uma particularidade
introduzida pela modernidade. A versão moderna do direito e da justiça desenvolveu-se
numa visão monista ou centralista ao serviço dos princípios e valores do projeto liberal e
capitalista, como a igualdade, a unidade política, a segurança jurídica, a liberdade
individual e a ordem (Galanter, 1966; Griffiths J., 1986; Hespanha, 1993, 2007; Wolkmer,
1994; Santos, 2000, 2009a).
Tal como a ciência, o direito moderno imaginou-se no “ponto zero” (Casto-Gómez,
2007), ignorando ter um lugar de enunciação, e reivindicou uma superioridade que lhe
confere poder para definir o que é ou não direito, invisibilizando ou inferiorizando o que
existe para além do direito estatal. O Estado assumiu o monopólio da produção do direito
e da administração da justiça e definiu os tribunais judiciais como o espaço legítimo para
reivindicação dos direitos, invisibilizando ou classificando como inferior o mundo jurídico
e de resolução de conflitos que está para além do seu controlo. O recente
reconhecimento de que o pluralismo jurídico aufere não significa que as hierarquias
tenham sido ameaçadas. Evocando uma metáfora usada recentemente, o direito estatal
ainda é considerado o centro do universo e não apenas mais um dos planetas (Janse,
2013). Se a colonialidade que comprimiu o conhecimento assume a forma de
colonialidade do saber, a colonialidade que comprimiu o mundo jurídico pode ser
designada como colonialidade jurídica ou colonialidade do direito.
A urgência da descolonização epistémica é transversal às várias áreas do
conhecimento e, nesse sentido, é importante pensá-la no âmbito dos múltiplos objetos
das ciências sociais. A sociologia do direito tem a particularidade de ter como objeto um
5
Introdução geral
6
Introdução geral
7
Introdução geral
8
Introdução geral
igualdade no acesso ao sistema judicial e/ou à representação por advogado num litígio,
reconhecendo-se que pode ser entendido enquanto garantia dos direitos individuais e
coletivos (Cappelletti e Garth, 1978). No entanto, de que direito ou direitos estamos a
falar no momento em que nos debruçamos sobre espaços híbridos, juridicamente plurais,
zonas de contacto onde o direito negociado escapa às dicotomias formal/informal,
estatal/não estatal, ou moderno/tradicional, onde se cruzam diferentes normatividades,
mesmo que em moldes assimétricos (Santos, 2003c, 2009a)? Qual o potencial dessas
instâncias no uso que é feito por cidadãos e cidadãs para resistirem ao colonialismo, ao
capitalismo, ao patriarcado? Existe possibilidade de transformação efetiva das
desigualdades ou apenas ajudam a reproduzir uma sobrevivência precária, minimizando
danos e permitindo que o Estado possa ignorar as formas de opressão criadas pelas
políticas capitalistas e neocolonialistas e as necessidades reais do país?
Nesta investigação, interessa-me, em primeiro lugar, a discussão mais tradicional da
sociologia e da antropologia do direito sobre a proximidade da justiça, nomeadamente da
justiça não judicial, percebendo se a justiças comunitárias proporcionam uma justiça mais
próxima dos cidadãos e das cidadãs e se tendem a contribuir para a democratização das
sociedades. Nesse sentido, pretendo perceber se as justiças comunitárias funcionam
como um prolongamento assistido da negociação que ocorre no espaço doméstico ou na
comunidade ou se representam uma quebra acentuada com esses mesmos espaços,
funcionando como lugares estranhos ou distantes. Procuro analisar como essas instâncias
se relacionam com os utentes, como resolvem os conflitos, que tipo de soluções propõem
e se correspondem às expetativas dos/as litigantes. Feita essa análise, arrisco uma
reflexão mais heterodoxa, refletindo se, nesses processos, existe margem para uma
negociação que permita transformar as normas e se os processos ocorridos e as soluções
alcançadas contribuem ou não para a transformação da sociedade e para a resistência ao
capitalismo, ao patriarcado e ao colonialismo. Em síntese, procuro compreender, por um
lado, se as justiças comunitárias funcionam enquanto espaços pacificadores, como justiça
não adversarial e, por outro lado, a partir da análise realizada, em que medida funcionam
como espaços de reivindicação e resistência, isto é, de luta pela transformação. Aqui se
encontra o segundo objetivo desta investigação. Se o primeiro objetivo assenta numa
9
Introdução geral
sociologia das ausências este move-se também numa lógica de sociologia das
emergências, isto é, no âmbito de um exercício criativo que procura pensar o futuro em
função do mapa identificado, juntando ao real dilatado as possibilidades e expetativas
futuras que ele comporta (Santos, 2006a: 107-113).
A ecologia de justiças centrou-se nos dois espaços geográficos já referidos: o centro
da cidade de Maputo e o centro da cidade de Lisboa. Desde logo, pretendi abordar dois
contextos onde o projeto moderno se impôs em momentos diferentes e de forma
desigual de modo a captar a máxima diversidade das justiças comunitárias e do
pluralismo jurídico: um país africano, sob domínio colonial até meados dos anos 1970,
com larga tradição das designadas justiças costumeiras ou tradicionais, cujo
relacionamento com o Estado foi sendo transformado ao longo do tempo e dos processos
políticos atravessados; e um país europeu onde pudessem ser identificadas as tendências
de modernização do Estado e dos mais recentes processos de informalização na área da
justiça. A heterogeneidade que caracteriza os dois países foi determinante na escolha,
pois permitiu-me antecipar realidades complexas e dinâmicas que não correspondem
necessariamente à linearidade das narrativas modernas sobre a justiça. Moçambique é
um país com um Estado profundamente heterogéneo em que coexistem diferentes
lógicas de regulação e cuja atuação vai além do que o próprio define e controla. Portugal,
apesar de uma longa história de país colonizador e de ter sido centro de um vasto
império, nunca coube plenamente na categoria de país moderno e central, assumindo
características que o aproximam das sociedades centrais do Norte e outras partilhadas
com os países periféricos do Sul. A familiaridade com os contextos sociais, históricos,
económicos e políticos de Moçambique e Portugal foi o elemento que assegurou a
decisão final.
A opção por contextos urbanos prendeu-se com o objetivo de perceber o papel das
justiças comunitárias nos locais onde são mais densos os círculos da sociedade civil íntima
e estranha, isto é, onde os serviços do Estado são mais frequentes e as pessoas estão
alegadamente mais incluídas. Estas categorias fazem parte dos três tipos de sociedade
civil ou três círculos definidos por Boaventura de Sousa Santos: a sociedade civil íntima, a
sociedade civil estranha e a sociedade civil incivil. A sociedade civil íntima é a esfera da
10
Introdução geral
11
Introdução geral
cada uma das instâncias que os compõem. Recorri a uma grelha analítica transversal para
abordar as várias justiças comunitárias. Esta opção resultou de um esforço para produzir
uma observação sistemática e controlar melhor as expetativas sobre o contexto que
tendem a promover a visibilidade ou invisibilidade de variáveis específicas. Não me
cabendo escrever uma lição ao Norte ou ao Sul, a minha reflexão tem presente o
horizonte das aprendizagens recíprocas. O objetivo global é, pois, conhecer as diferentes
instâncias e suas práticas, a Norte e a Sul, e, num exercício imaginativo, projetar de que
modo a reflexão sobre a justiça a Norte e a Sul poderia ser enriquecida com estas
aprendizagens.
Em seminários avançados dirigidos sobretudo a estudantes de doutoramento,
Boaventura de Sousa Santos lançou uma questão a que não chegou a dar uma resposta
definitiva: é possível fazer uma tese de doutoramento a partir das Epistemologias do Sul?
(Santos, 2013b). O autor acredita que sim, mas sabe-se que este é um caminho de
pequenos passos entre a forma como aprendemos a pensar e o desafio de des-pensar o
que aprendemos; entre a formalidade, as exigências e as limitações de uma tese
académica e a irreverência e a ambição das Epistemologias do Sul; entre o rigor científico
pelo qual se avalia o conhecimento académico e o questionamento da superioridade da
ciência; entre um exercício individual e uma proposta de produzir conhecimento coletivo;
entre uma prova que avalia a nossa capacidade para “conhecer sobre” e a desconstrução
do outro como objeto e o objetivo de “conhecer com”. Quando for possível fazer uma
tese integralmente a partir das Epistemologias do Sul, talvez elas tenham desaparecido,
visto ser esse o seu fim último. Só faz sentido existirem Epistemologias do Sul enquanto
existem epistemologias do Norte que se arrogam universais (Santos, 2012b, 2013b).
Ainda assim, a proposta deste trabalho é refletir sobre as formulações do Norte sobre a
justiça e fazer um esforço para desconstruir as hierarquias que criou, dando um pequeno
passo no caminho de criação de novos diálogos, recetivos a aprendizagens mútuas
baseadas em relações mais horizontais e no respeito entre diferentes construções sobre a
justiça.
Esta tese está dividida em sete capítulos. Nos dois primeiros capítulos faço uma
apresentação das teorias, dos conceitos e das discussões de onde parto, contextualizando
12
Introdução geral
13
Introdução geral
14
CAPÍTULO I – PARA DESCOLONIZAR O PENSAMENTO JURÍDICO
Introdução
15
Capítulo I
seu percurso até à formulação de uma proposta epistemológica mais abrangente que
reconhece a insuperável incompletude da ciência moderna (como a de qualquer
conhecimento) e a forma como a modernidade invisibilizou outros saberes e práticas
assentes nos modos de conhecer não científicos. Ainda nesse ponto, enquadro as
Epistemologias do Sul no contexto de outras escolas críticas do pensamento colonial. No
segundo momento, partindo de reflexões e estudos com origem em diferentes contextos
geográficos e tradições, exponho um conjunto de lógicas em que assentou a ciência
moderna com vista à contração do mundo, isto é, à redução do mundo à imagem
construída pela modernidade: a ilusão do ponto zero e a monocultura do saber; a
invenção do “outro” e o processo de classificação, desqualificação e apropriação; a ideia
de progresso e a monocultura do tempo linear. No terceiro ponto, coloco o direito ao
espelho da ciência, mostrando como paralelamente contribuiu para a contração do
mundo jurídico, reduzindo-o ao direito positivo estatal. Faço uma abordagem crítica dos
estudos do pluralismo jurídico e das teorias da litigação procurando analisar em que
medida contribuíram para ampliar o cânone do direito ou reproduziram a monocultura
do direito moderno e a inquestionabilidade da supremacia dos tribunais judiciais.
Finalmente, a partir da metáfora da linha abissal, introduzo uma sistematização dos
argumentos, mostrando como a ciência e o direito foram responsáveis pela divisão abissal
entre o mundo do que é relevante e do que não é relevante. Partindo dos instrumentos
propostos por Santos (2006) para a superação do pensamento abissal, nomeadamente a
sociologia das ausências e das emergências, a ecologia dos saberes e a tradução
intercultural, apresento uma proposta de concretização de uma sociologia jurídica das
ausências e das emergências e uma ecologia de justiças que coloco em prática ao longo
dos restantes capítulos. Finalmente, à laia de conclusão, sistematizo o resultado desta
reflexão.
16
Para descolonizar o pensamento jurídico
1
Uma versão reduzida do texto deste livro foi proferida por Boaventura de Sousa Santos no âmbito da
Oração de Sapiência da abertura solene das aulas na Universidade de Coimbra, no ano letivo de 1985/86.
2
Ver Santos, 2012b.
17
Capítulo I
3
Para uma discussão da atualidade dessa proposta em função dos desenvolvimentos científicos e das
reflexões epistemológicas quase duas décadas após a publicação da obra de Santos, ver Nunes (2003).
18
Para descolonizar o pensamento jurídico
4
Quando construiu a sua crítica epistemológica, Boaventura de Sousa Santos começou por usar os termos
“pós-moderno” e “pós-modernidade”. Percebendo que a sua conceção se distinguia das conceções de pós-
modernidade que circulavam na Europa e nos EUA, classificou a sua versão como pós-modernismo de
oposição, termo que nunca o terá satisfeito plenamente. Por outro lado, pretendeu sempre distinguir-se
dos estudos pós-coloniais, em primeiro lugar, porque, para além das desigualdades assentes no
colonialismo, considerava enfaticamente as relações de poder assentes na exploração de classe, no sexismo
e no racismo; em segundo lugar, considerava que a análise da cultura ou do discurso tinha que ser
acompanhada pela análise da economia política. Além disso, não lhe satisfazia que a crítica às oposições
binárias da modernidade ocidental se classificasse por meio de uma oposição binária “colonial/pós-
colonial”, observação que também se aplica à dicotomia “moderno/pós-moderno” (Santos, 2004, 2006a,
2010a).
5
Este projeto foi coordenado por Boaventura de Sousa Santos e contou com uma equipa internacional e
multidisciplinar de 69 investigadores/as. Os estudos incidiram sobre iniciativas, organizações e movimentos
19
Capítulo I
Foi em 1995, no último capítulo do livro Towards a New Common Sense, intitulado
Don’t shot the Utopist, que Boaventura de Sousa Santos introduziu a metáfora do Sul
como o metatopos que preside à constituição de um novo senso comum ético. O conceito
de “Sul” incorpora a dupla hierarquia do Sul em relação ao Norte e do Oriente em relação
ao Ocidente. Enquanto metáfora fundadora de uma subjetividade emergente, sugere a
presença de uma dupla dominação: sociocultural e socioeconómica. Enquanto símbolo de
uma construção imperial, o “Sul” expressa todas as formas de dominação que fazem
parte do sistema capitalista mundial: expropriação, supressão, silenciamento,
diferenciação desigual, entre outras (Santos, 1995: 506). Não se trata necessariamente de
um Sul geográfico. É uma metáfora do sofrimento humano causado pelo capitalismo, pelo
colonialismo e pelo patriarcado6 e uma metáfora da resistência para ultrapassar ou
minimizar esse sofrimento, que se encontra distribuído pelo mundo, ainda que de forma
desigual, incluindo no Norte e no Ocidente. Nesse sofrimento cabe uma multiplicidade de
conhecimentos excluídos do mapa, invisibilizados, desperdiçados pela modernidade
(Santos, 1995: 507; Santos, 2012a: 51).
em seis países (África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia, Moçambique e Portugal) e seis domínios sociais
(democracia participativa; sistemas alternativos de produção; multiculturalismo emancipatório, justiças e
cidadanias; biodiversidade e conhecimentos rivais e direitos de propriedade intelectual; novo
internacionalismo operário). Ver http://www.ces.uc.pt/emancipa/en/index.html.
6
Em 1995, Boaventura de Sousa Santos referia o sofrimento humano causado apenas pelo capitalismo
moderno. Mais tarde passa a enfatizar a associação entre capitalismo moderno e colonialismo como
causadores desse sofrimento (Santos, 1995, 2012). Num seminário avançada realizado em 2012 insiste na
ideia de que se trata do sofrimento causado por estas três formas de dominação: capitalismo, colonialismo
e patriarcado (Santos, 2012b).
20
Para descolonizar o pensamento jurídico
7
Santos ilustra o argumento criticando a pretensão de universalidade da teoria da comunicação de
Habermas. Habermas apresenta a sua teoria como um telos de desenvolvimento para a humanidade como
um todo. No entanto, quando questionado se a sua teoria poderia ser útil às forças socialistas do Terceiro
Mundo e se essas forças, por seu lado, poderiam ser úteis às lutas democrática socialistas nos países
desenvolvidos, Habermas reconhece que fica tentado a responder “não” para os dois casos, admite o
eurocentrismo da sua teoria e conclui afirmando que prefere passar essa questão. Para Santos, o que esta
resposta significa é que a racionalidade comunicativa de Habermas, apesar da se arrogar universal, começa
por excluir quatro quintos da população mundial (Santos, 1995: 507).
21
Capítulo I
8
Parte dos textos incluídos neste livro foram publicados pela primeira vez em 2008 no n.º 80 da Revista
Crítica de Ciências Sociais, organizado por Maria Paula Meneses, sob o tema “Epistemologias do Sul”.
9
Estes instrumentos da razão cosmopolita em que assentam as Epistemologias são abordados
pormenorizadamente no ponto 4 deste capítulo.
10
Ver também brochura do projeto “ALICE, Espelhos Estranhos, Lições Imprevistas. Definindo para a Europa
um novo modo de partilhar as experiências do mundo”, dirigido por dirigido por Boaventura de Sousa
Santos. Disponível em http://alice.ces.uc.pt/en/wp-content/uploads/2013/03/ALICE_PLANO_PT.pdf.
22
Para descolonizar o pensamento jurídico
discutidos a partir de posições horizontais e sem que as narrativas do Sul sejam sempre
sujeitas à extenuante posição de reação (a periferia que reage ao centro, o tradicional
que reage ao moderno, a alternativa que reage ao cânone) (Santos, 2012b).
Apesar de contrariarem a corrente dominante das ciências sociais, as
Epistemologias do Sul não emergiram de um vazio. Juntam-se a um conjunto
heterogéneo de vozes, expressas em linguagens diferentes e construídas a partir de
experiências e geografias variadas, que recusa a superioridade do conhecimento
ocidental ou de qualquer pensamento único, apontando a matriz colonial em que assenta
a arrogância e a violência do Ocidente ao mesmo tempo que valoriza outros
conhecimentos e outras formas de expressão.
A abordagem pós-colonial em meio académico, desafiando por dentro o cânone do
conhecimento universitário - europeu, masculino e branco -, tem origem nos estudos
culturais desenvolvidos sobretudo a partir dos anos 1980 em Inglaterra e nos Estados
Unidos por intelectuais na diáspora com raízes em países colonizados pelo Império
Britânico (Young, 2009; Santos, 2006a; Costa, S. 2006). Não podendo falar-se de uma
matriz teórica uniforme, os estudos pós-coloniais são atravessados pela desconstrução do
etnocentrismo ocidental. Robert Young sintetiza o fundamento da crítica nos seguintes
termos: a perspetiva dominante ocidental hoje ainda é dominada por uma estrutura de
poder originalmente desenvolvida no curso da expansão colonial europeia que definiu a
cultura europeia como a norma para as ideias legítimas de governo, direito, economia,
ciência, linguagem, música, arte e literatura, isto é, civilização (Young, 2009: 19). Os
autores pós-coloniais criticam o uso de lentes ocidentais para perceber o mundo e
apontam a impossibilidade das classes oprimidas ou subalternas se expressarem na sua
linguagem ou se representarem, por serem observadas a partir de categorias e
preconceitos ocidentais, que refletem sempre muito mais o Ocidente do que da realidade
ou da forma como as pessoas fora do ocidente se sentem ou se percebem (Young, 2003:
2). Robert Young escolhe uma passagem do famoso livro de 1945 de Saint-Exupéry, O
Principezinho, para ilustrar como as perspetivas culturais promovem a audição ou o
silenciamento de um discurso:
Tenho sérias razões para acreditar que o planeta de onde veio o Principezinho é
o asteroide B 612. Este asteroide foi observado uma única vez ao telescópio, em
23
Capítulo I
1909, por um astrónomo turco. Nessa altura, fizera uma grande demostração
da sua descoberta num Congresso Internacional de Astronomia. Mas ninguém
acreditou nele porque trajava vestes turcas. As pessoas crescidas são assim…
Felizmente para a reputação do asteroide B 612, um ditador turco [Kamal
Atarük] impôs ao seu povo, sob pena de morte, que passassem vestir-se à
europeia. O astrónomo tornou a fazer a sua demonstração em 1920, vestido
com estilo impressionante e elegância. E dessa vez, toda a gente concordou
com ele.11
11
Este texto é uma tradução da minha responsabilidade a partir da citação usada por Robert Young. Nas
versões portuguesas consultadas, a tradução não referia os trajes turcos, ficando ausente o sentido que
permitiu a Young escolher este excerto como ilustrativo. Versão em inglês: “I have serious reason to believe
that the planet from which the little prince came is the asteroid known as B-612. This asteroid has only once
been seen through the telescope. That was by a Turkish astronomer, in 1909. On making his discovery, the
astronomer had presented it to the International Astronomical Congress, in a great demonstration. But he
was in Turkish costume, and so nobody would believe what he said. Grown-ups are like that… Fortunately,
however, for the reputation of Asteroid B-612, a Turkish dictator made a law that his subjects, under pain of
death, should change to European costume. So in 1920 the astronomer gave his demonstration all over
again, dressed with impressive style and elegance. And this time everybody accepted his report” (Saint-
Exupéry apud Young - de Saint-Exupéry, Antoine (1945), The Little Prince, Tradução de Katherine Woods.
London: William Heinemann).
24
Para descolonizar o pensamento jurídico
subalterna” (Spivak entrevistada por Kock, 1992: 45, 46). O conceito de subalterno inclui
“as pessoas, a elite estrangeira, a elite indígena, em vários tipos de situações: tudo o que
tenha acesso limitado ou não tenha acesso ao imperialismo cultural” (idem).12 Spivak
conclui que o subalterno não pode falar. A sua voz é silenciada com a cumplicidade da
academia ocidental, mesmo dos autores pós-estruturalistas mais críticos, como Foucault
ou Deleuze, cujos trabalhos integram a perspetiva do oprimido, mas não compreendem a
distância que o separa do subalterno. Na entrevista mencionada, a autora clarifica a ideia
que lhe valeu algumas críticas: “quando se diz ‘não pode falar’, isso significa que, se falar
envolve falar e ouvir, esta possibilidade de resposta, a respondabilidade, não existe na
esfera subalterna” (Spivak entrevistada por Kock, 1992: 46)13.
Alguma da teoria produzida pelos estudos pós-coloniais ganhou reputação de ser
obscura e envolver ideias complexas e pouco acessíveis (Spivak entrevistada por Kock,
1992; Young, 2003). Nesse sentido, é interessante que a própria Gayatri Spivak escolha
uma frase escrita no jornal India Abroad, uma publicação que a autora descreve como
não tendo pretensões académicas, para sintetizar o seu próprio argumento: “A Spivak
escreveu um artigo largamente citado sob o título ‘Can the Subaltern Speak?’, em que
argumenta que a resistência não é reconhecida (‘ouvida’) a não ser que seja validada
como tal pelas formas dominantes do conhecimento e da política” (Spivak, 2000: xx).14
O conceito de subalterno é anterior ao artigo de Gayatri Spivak e foi formulado no
âmbito dos “Estudos Subalternos” desenvolvidos a partir do início da década 1980. Este
grupo, a que Spivak veio estar ligada e se reconhece no amplo chapéu dos “estudos pós-
coloniais”, começou por ser constituído pelo historiador indiano Ranajit Guha,
reconhecido mentor, e um conjunto de oito jovens académicos indianos, baseados na
Índia, no Reino Unido e na Austrália. Atualmente, os estudos subalternos adquiriram uma
dimensão muito mais alargada e vão além da Índia ou do Sul da Ásia como área de
12
A metáfora do pensamento abissal desenvolvida de Boaventura de Sousa Santos dá um passo em frente
na compreensão do que é o subalterno ao distinguir entre as desigualdades visíveis e as desigualdades
invisíveis. Sobre esta questão, ver ponto 4 do presente capítulo.
13
No original: “When you say cannot speak, it means that if speaking involves speaking and listening, this
possibility of response, responsibility, does not exist in the subaltern's sphere”.
14
No original: “’Spivak wrote a much much-cited article called ‘Can the Subaltern Speak?’ in which she
argued that, unless validated by dominant forms of knowledge and politics, resistance could not be
recognized (‘heard’) as such’”.
25
Capítulo I
15
Em 1993, nos Estados Unidos, foi criada a Associação Latino-americana de Estudos Subalternos
(Chakrabarti, 2000a).
16
Arturo Escobar foi o primeiro autor a usar designar o grupo por “Programa de Investigação
Modernidade/Colonialidade” (Escobar, 2003). Castro-Gómez e Grosfoguel assumiram a designação “Projeto
latino/latino-americano modernidade/colonialidade” no livro que organizaram em 2007, com o título El giro
decolonial. Reflexiones para una diversidade epistémica mas allá del capitalismo global (Castro-Gómez e
Grosfoguel, 2007: 9).
26
Para descolonizar o pensamento jurídico
17
Para conhecer de forma pormenorizada os vários momentos que contribuíram para a constituição deste
grupo, bem como todos os nomes envolvidos, ver Castro-Gómez e Grosfoguel (2007). Sobre as influências
teóricas envolvidas, ver Escobar (2003).
27
Capítulo I
28
Para descolonizar o pensamento jurídico
18
Nesta conceção, a construção do género e as relações de género têm um lado “leve” e um lado “negro”.
O primeiro ordena a vida da burguesia branca e configura o significado moderno/colonial de “homem” e
“mulher”. O segundo incorpora a violência colonial, a animalização da mulher, a naturalização da violação e
a exploração laboral colonial (Lugones, 2008).
29
Capítulo I
30
Para descolonizar o pensamento jurídico
O trabalho do cientista social, neste contexto, não é o de falar em nome dos grupos
subalternos, das vozes silenciadas e dos grupos invisibilizados, é sim o de facilitar a
audição entre eles, ouvir e ajudar a ampliar as vozes. Como afirma Robert Young, escutar
o que os outros dizem sobre eles ou sobre nós é provavelmente a necessidade central de
qualquer crítica pós-colonial (Young, 2003). Convicto da importância do ouvir, mas
também de intervir, Boaventura de Sousa Santos vai mais longe e assume-se como um
intelectual de retaguarda e não de vanguarda, de facilitador, não de guia. O papel do
intelectual “é acompanhar os movimentos, ver onde é que estão as fragilidades; dar-lhes
31
Capítulo I
mais informação acerca daquilo que aconteceu noutros lugares com resultados bons ou
com resultados maus; aquilo que os pode fortalecer; aquilo que os pode perverter. E,
portanto, é um papel de retaguarda, de facilitador, e não propriamente de guia” (Santos
entrevistado por Jerónimo e Neves, 2012: 691).
A teoria crítica convencional acredita no uso criativo de “franchising conceptual”,
aceitando moldar os debates nos limites do horizonte de possibilidades do seu campo
teórico. Esta situação conduz à desvalorização ou invisibilização das lutas e das realidades
que não se expressam na linguagem da teoria crítica eurocêntrica. Estes limites são
evidentes quando as lutas sociais introduzem expressões que não têm tradução nas
línguas coloniais em que a teoria crítica foi formulada. É o caso do conceito de “Sumak
Kawsay”, a expressão Quechua para “bem viver” ou do conceito de “Pachamama”, Mãe
Natureza. De acordo com Boaventura de Sousa Santos, se não se conceder uma distância
adequada da teoria crítica eurocêntrica, corre-se o risco de não identificar ou valorizar
adequadamente as novidades políticas da América Latina e o seu contributo para a as
políticas emancipatórias em geral. Para o autor “a cegueira da teoria torna a prática
invisível ou subteorizada ao mesmo tempo que a cegueira das práticas torna a teoria
irrelevante”. Santos propõe que “o impensável seja pensado, por outras palavras, que o
inesperado seja assumido como uma parte integral do trabalho teórico”. E acrescenta
“uma vez que as teorias de vanguarda, por definição, não se deixam levar pela surpresa,
eu sugiro que, no atual contexto de mudança política e social, em vez de teorias de
vanguarda, precisamos de teorias de retaguarda” (Santos, 2009b). Robert Young,
dirigindo-se àqueles que estão do lado de dentro ou em posições de poder, incluindo em
instituições como universidades, deixa o conselho que é dado às crianças quando
aprendem a atravessar a rua: “Para. Olha. Ouve.” (Young, 2009: 17). Poderíamos
acrescentar “Age.”.
Este lema e a ideia do intelectual de retaguarda aproximam-se dos ideais do
movimento Neozapatista, onde também é subvertida a separação entre política e
epistemologia. A questão epistemológica é exposta de forma belíssima nas várias
declarações da Serra Lacandona, bem como na literatura do Subcomandante Marcos,
que, próximo da ideia de intelectual de retaguarda, assume como postura “caminhar com
32
Para descolonizar o pensamento jurídico
19
Segunda Declaração da Selva Lacandona, 10 de junho de 1994.
20
Sexta Declaração Selva Lacandona, novembro de 2005.
33
Capítulo I
Eduardo Mondlane (1995), Amílcar Cabral (1974) ou Mahatma Ghandi (1941, 1951) foram
intelectuais comprometidos com a transformação social que enfrentaram o desafio de
pensar o equilíbrio entre homogeneidade e fragmentação, entre igualdade e diferença,
apostando na construção de culturas nacionais entendida como o direito dos colonizados
à sua autorrepresentação.21
Robert Young aponta como momento da constituição do Pós-Colonialismo
enquanto filosofia política auto-consciente a conferência de Bandung, em que 29 países
africanos e asiáticos recém-independentes iniciaram o que veio a ser conhecido por
movimento dos não-alinhados. Onze anos mais tarde, em 1966, em Havana, decorreu a
Conferência Tricontinental, que reuniu pela primeira vez os três continentes do Sul. De
acordo como autor, em muitos aspetos, o termo “tricontinental” é mais adequado do que
o uso do termo “pós-colonial”. No seguimento da conferência veio a ser criada uma
revista intitulada “Tricontinental”, que reuniu textos de teóricos e ativistas pós-coloniais,
como Amílcar Cabral, Frantz Fanon, Che Guevara, Ho Chi Mihn e Jean-Paul Sartre. A ideia
não era estabelecer um corpo coerente de posições teóricas e políticas, mas um corpo de
trabalho que tinha como meta a libertação popular (Young, 2003: 16, 17). Como enfatiza
Maria Paula Meneses, o contexto da América Latina é muito diferente do de África e
dentro de cada macrocosmos existe uma infinidade de microcosmos distintos. No
entanto, “se esta diferença espácio-temporal apela para a diferença dentro do Sul, a
experiência colonial comum permite a constituição de um Sul global, onde a constituição
pós-colonial se impõe cada vez mais na análise e caracterização das condições políticas
específicas” (Meneses, 2008: 7).
Feito este breve e seletivo enquadramento sobre o que cabe no amplo guarda-
chuva dos pós-colonialismos e o contexto histórico em que surgiram, centrar-me-ei nas
lógicas concretas em que assentou a ciência moderna para construir a sua alegada
superioridade e o desaparecimento dos outros conhecimentos. Uma vez que essas lógicas
fazem parte da forma como o nosso pensamento foi estruturado é comum não
percebermos a sua existência. Não será possível desconstruí-las e alargar o cânone do
conhecimento sem tomarmos consciência da forma como atuam sobre nós próprios.
21
Sobre a importância do trabalho destes autores, ver Santos (2006a).
34
Para descolonizar o pensamento jurídico
22
Um localismo globalizado significa a conversão de um determinado fenómeno ou condição com origem
local em condição universal capaz de ditar as regras de integração ou exclusão (Santos, 2001: 71; 2008b:
42).
23
Este conceito do filósofo argentino Enrique Dussel denuncia o erro de tomar as realidades europeias e
norte-americanas como realidades globais. Concebida fora da Europa e dos Estados Unidos, a falácia do
deslocamento é descrita como a falácia de tomar o espaço ou o mundo de uma determinada cultura como
se fosse o nosso e, nesse sentido, invisibilizar a distinção original da outra realidade e as diferenças em
relação à nossa realidade (Dussel, 2013).
24
A falácia do determinismo nega a possibilidade de alternativas e a falácia do desaparecimento do Sul
assenta na recusa em reconhecer hierarquias, bem como a ideia de que o Norte tem a aprender com o Sul
(Santos, 2005a; 2008b).
35
Capítulo I
pessoas colonizadas – por outras palavras, pessoas em quem foi enraizado um complexo
de inferioridade e cuja cultura local original foi comprometida até à morte - se
posicionam em relação à linguagem civilizacional: isto é, a cultura metropolitana”;
“quando mais o colonizado tiver assimilado os valores culturais da metrópole, mais terá
escapado ao mato” (Fanon, (2008) [1952]: 2). Ramón Grosfoguel chama a atenção para a
distinção entre o “lugar epistémico” e “o lugar social”, uma vez “o êxito do sistema
mundo colonial/moderno reside em levar os sujeitos socialmente situados no lado do
oprimido da diferença colonial a pensar epistemicamente como aqueles que se
encontram em posições dominantes” (Grosfoguel, 2009: 409). É nesse sentido que Achile
Mbembe fala de colonialismo como co-invenção. De acordo com Mbembe, o colonialismo
exerceu uma forte sedução material, moral e intelectual sobre os africanos e a
colonização resulta da violência ocidental apoiada em aliados africanos que colonizavam
os seus próprios conterrâneos em nome da nação metropolitana onde havia dificuldades
de ocupação. Nas palavras do autor “como uma fábrica de ficções refratada e
infinitamente reconstituída, o colonialismo gerou mútuas utopias e alucinações
partilhadas pelos colonizadores e pelos colonizados” (Mbembe, 2010).25
Para Boaventura de Sousa Santos, a razão moderna, ou indolente, assenta em
quatro lógicas diferentes: a razão impotente, que não se exerce, porque pensa que nada
pode fazer; a razão arrogante, que também não se exerce, porque não sente necessidade
de se demonstrar; a razão proléptica, que não pensa o futuro, porque acha que sabe tudo
sobre ele; e a razão metonímica, que assume a parte como o todo, afirmando-se como
única forma de racionalidade. Santos centra a sua análise nas duas últimas formas da
25
O lugar de onde se fala é de enorme importância para os críticos da modernidade/colonialidade, mas não
pode tratar-se de um lugar apenas geográfico. Ainda que não deixe também de o ser, a influência da
geografia na teoria não pode ser essencializada. Quando Walter Mignolo classificou a proposta da
“transição paradigmática” de Boaventura de Sousa Santos como “europeia do Sul” (Mignolo, 2003a), Santos
reagiu, afirmando que do facto de ser originalmente do sul da Europa não se pode deduzir que a sua
proposta seja geopoliticamente europeia do sul e conclui que “a concepção do conhecimento situado ou
perspectivado (‘situated knlowledge’ ou ‘standpoint knowledge’) não pode comportar determinismos
geográficos ou outros” (Santos, 2006a: 31). Ramón Grosfoguel, criticando a posição de Mignolo, argumenta
que não podemos celebrar tudo o que tenha origem nos lugares da subalternidade quando sabemos que o
êxito do sistema colonial assentou na capacidade de fazer quem está em baixo pensar como quem está em
cima. Para o autor, se não compreendermos a diferença entre “localização social” e “localização
epistémica” e, pior ainda, se reduzimos a “localização social” à “localização geográfica”, caímos num
essencialismo grosseiro e numa simplificação que acaba celebrando o pensamento do outro de forma
romântica, ingénua e colonial (Grosfoguel entrevistado por Andrade, 2013: 44).
36
Para descolonizar o pensamento jurídico
razão indolente. Focarei a minha atenção na razão metonímica, que alimenta ativamente
a colonialidade do saber a partir cinco lógicas de produção de não existência ou de
inferioridade: a monocultura do saber e do rigor do saber, que produz ou legitima o
ignorante; a monocultura do tempo linear, que produz ou legitima o residual; a lógica da
classificação social, que produz ou legitima o inferior; a lógica da escala dominante ou do
universalismo abstrato, que produz ou legitima o local; e a lógica produtivista, que produz
ou legitima o improdutivo (Santos, 2006a: 95-98).
Nas próximas páginas exploro o modo de atuação destas lógicas usando como
referências não só o pensamento de Boaventura de Sousa Santos, como a teorização e os
exemplos de autores/as originários/as de diferentes geografias e escolas de pensamento.
Divido a reflexão em três pontos: 1) “A ilusão do ponto zero e a monocultura do saber”,
onde abordo a primeira das lógicas identificadas por Boaventura de Sousa Santos em
conjunto com as duas últimas, que considero decorrentes da primeira; 2) “A invenção do
‘outro’” é o subponto onde me debruço sobre a lógica de produção de dicotomias; 3) e,
por fim, sob o enquadramento “’No princípio todo o mundo foi América’” analiso a
monocultura do tempo linear.
37
Capítulo I
máscara de universalidade com que se veste é usada para desqualificar outras narrativas,
saberes e práticas e, nesse sentido, reproduzir as lógicas de dominação.
A monocultura do saber e do rigor do saber é, segundo Boaventura de Sousa Santos,
o modo de produção de não existência mais poderoso. Na definição do autor “consiste na
transformação da ciência moderna e da alta cultura em princípios únicos de verdade e
qualidade estética”. Assim, tudo o que cânone não reconhece, não existe ou é
irrelevante. A monocultura da escala dominante é uma consequência direta da
monocultura do saber: arrogando-se universal e excluindo o mundo que não se encaixa
nos seus padrões, tudo o que é local ou particular é invisibilizado pela lógica da escala
global. A monocultura da produtividade capitalista vive numa relação simbiótica com a
monocultura do saber. A ciência moderna assenta nos princípios que servem a
produtividade capitalista. Todo o outro conhecimento é invisibilizado, porque todo o
outro tipo de produção é desvalorizado. A lógica produtivista considera natureza
produtiva a natureza que é maximamente fértil num dado ciclo de produção e entende
por trabalho produtivo o trabalho que maximiza o lucro num dado ciclo de produção.
Neste caso, a não existência aparece sobre a forma de improdutivo: natureza estéril ou
pessoa preguiçosa ou profissionalmente desqualificada (Santos, 2006a).
Como afirma Mignolo, apesar de sabermos há muito que todo o pensamento é
localizado, não se altera a tendência geral para entender o pensamento construído a
partir da história e da experiência europeias como universal (Mignolo, 2007) e, sublinhe-
se, como se a modernidade não tivesse estado intrinsecamente associada à experiência
colonial (Maldonado-Torres, 2009; Santos, 2006a). Achile Mbembe assinala que não está
em causa o conhecimento produzido, mas a necessidade da teoria social se legitimar pela
ênfase numa alegada capacidade de construir gramáticas universais. O problema da
modernidade não é a sua raiz ocidental, mas sim o legado iluminista e a impossibilidade
de cumprir com as promessas de universalidade contidas nos ideais do Iluminismo
(Mbembe, 2001: 9-11).
Castro-Gómez designa o modelo epistemológico da modernidade por “hybris do
ponto zero”. A ciência imagina-se como Deus, situada no ponto zero, o observador que
observa o mundo a partir de uma plataforma não observável, com vista a exercer uma
38
Para descolonizar o pensamento jurídico
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Capítulo I
40
Para descolonizar o pensamento jurídico
41
Capítulo I
2001). Esta observação vai ao encontro do que afirma Lander sobre o mundo colonial em
geral: “as ciências sociais serviram mais para o estabelecimento de contrastes com a
experiência histórica universal (normal) da experiência europeia (ferramentas neste
sentido de identificação e de carências e deficiências que têm de ser superadas), que para
o conhecimento dessas sociedades a partir das suas especificidades histórico-culturais”
(Lander, 2005).
Nem toda a construção de alteridade partiu de caracterizações pejorativas. O outro
pode ser o “nobre selvagem” que povoou as histórias de aventura, os filmes de cowboys
e outras produções de Hollywood e da televisão (Hall, 2013: 96). Mudimbe (1988)
reconhece que as primeiras representações dos selvagens africanos são marcadas pela
ênfase nas virtudes e não nos vícios ou na brilhante intuição e não nos lapsos de lógica.
No entanto, argumenta que a antropologia foi tomando forma em conjunto com o
imperialismo, permitindo a reificação do ‘primitivo’. Por outras palavras, mesmo que a
ideia do outro seja romantizada, a hierarquia não é colocada em causa. O mesmo autor,
em determinado momento, questiona se o reconhecimento de artefactos como “arte
primitiva” ocorrido a partir do encontro entre europeus e africanos no âmbito do
comércio de escravos do século XVIII poderá ter colocado radicalmente em perspetiva a
cultura ocidental assente em classificações, mas conclui com a ideia de impossibilidade.
As peças de arte são classificadas como “selvagens” no âmbito de uma cadeia evolutiva
do ser e da cultura, que estabelece uma correspondência entre avanço no processo
civilizacional e na criatividade artística, tal como nos ganhos intelectuais. Atualmente, a
arte turística africana produzida sobretudo para exportação, alimentando o imaginário
ocidental e o mercado do exótico, trata-se de uma continuidade do processo iniciado no
século XVIII que classificou os artefactos de acordo com a grelha do pensamento e da
imaginação ocidentais, em que a alteridade é uma categoria negativa do semelhante
(Mudimbe, 1988).
A crítica a esta construção da alteridade pode ir mais longe, argumentando-se que o
outro é colocado numa zona de sub-humanidade (Fanon, 2008 [1952]); Mbembe, 2001;
42
Para descolonizar o pensamento jurídico
1993; Santos, 2007a; Dussel, 2013).26 Para Mbembe toda a epistemologia colonial assenta
numa simples equação: não existe praticamente diferença entre o princípio nativo e o
princípio animal, sendo esta postura que justifica a domesticação dos indivíduos. O nativo
deve pertencer à família das coisas mecânicas, quase físicas, sem linguagem e através da
qual a natureza, no seu poder virginal, se manifesta. Colocado à margem da humanidade,
o nativo, juntamente com o animal, pertence ao registo da imperfeição, do erro, do
desvio, da aproximação, da corrupção e da monstruosidade. Não tendo atingido a
maioridade, os nativos não podem equilibrar-se sobre os seus próprios pés (Mbembe,
2001: 236). De acordo com Dussel, o sistema colonial foi interpretado pelos europeus
como uma oferenda de humanidade, isto é, a colonização dotava de humanidade os
habitantes das regiões colonizadas (Dussel, 2013). Para Bruno Latour, a divisão entre
humanos e não humanos explica a naturalização da superioridade do ocidente, a divisão
entre nós e eles é a exportação da divisão entre humanos e não humanos e assenta na
convicção de que os primeiros controlam a natureza e não apenas uma imagem da
mesma como as outras sociedades (Latour, 1993).
26
A questão da invisibilidade ou da não existência é analisada a partir da metáfora do pensamento abissal
(Santos, 2007) no ponto 4 do presente capítulo.
43
Capítulo I
sua composição racial inadequada, sua cultura arcaica ou tradicional, seus preconceitos
mágico-religiosos ou, mais recentemente, pelo populismo e por Estados excessivamente
intervencionistas, que não respondem à liberdade espontânea do mercado” (Lander,
2005).
Ainda o sentido da história tenha sido formulado de diferentes formas nos últimos
duzentos anos (progresso, revolução, modernização, desenvolvimento, crescimento,
globalização), a conceção de um tempo linear está subjacente a todas as formulações
(Santos, 2006a). Declarando atrasado, arcaico, tudo o que, segundo a norma temporal, é
assimétrico em relação ao mundo declarado avançado, produz-se não existência pela
“não contemporaneidade do contemporâneo” (Santos, 2006a: 96) ou, na linguagem de
Johannes Fabian, pela “negação de simultaneidade” (negation of coevalness) (Fabian,
1983). Para Boaventura de Sousa Santos, esta realidade é ilustrada pelo encontro entre o
camponês africano e o funcionário do Banco Mundial em trabalho de campo. O
camponês e sua atividade não são percebidos com contemporâneos do funcionário, mas
como habitantes de um estádio de desenvolvimento inferior que poderá ser
transformado se forem cumpridos os projetos de desenvolvimento. A não existência
assume, neste caso, a forma de residualização (Santos, 2006a: 96).
De acordo com Shiv Visvanathan “se é certo que a ciência se ocupa de uma
diversidade de tempos, desde o tempo mecânico ao histórico, ao evolucionário e aos
tempos quânticos (os nano-segundos), as suas narrativas constroem-se no tempo
empobrecido das narrativas unilineares”. Para o mesmo autor, a retórica progressista da
ciência é amnésica e “museologiza” outras formas de conhecimento em nome do
progresso (Visvanathan, 2003). Castro-Gómez dá o exemplo do encontro entre o médico
indígena e o cirurgião de Harvard, alegando que, ainda que este possa sentar-se à mesa
com o primeiro e partilhar com ele um café, a hybris do ponto zero classificá-lo-á sempre
como um habitante do passado, uma personagem que reproduz um tipo de
conhecimento “orgânico”, “tradicional” e “pré-científico” (Castro-Gómez, 2007).
A crítica que os estudos subalternos dirigiram ao historicismo prende-se com esta
conceção de tempo. Para Chakrabarty, a chegada do historicismo aos não-europeus
durante o século XIX tomou a forma de um “ainda não” dirigido ao outro. O historicismo
44
Para descolonizar o pensamento jurídico
coloca o tempo histórico como medida da distância cultural entre o ocidente e o não
ocidente. Nas colónias legitimou a ideia de civilização. Na Europa, permitiu desenvolver a
narrativa que incorpora unicamente eventos históricos que decorreram no interior das
fronteiras europeias e conceber o continente como o lugar em que primeiro ocorreu o
capitalismo, a modernidade ou o Iluminismo. Aos habitantes das colónias foi-lhe atribuído
o espaço “outro lugar” na estrutura de tempo concebida nos seguintes termos: “primeiro
na Europa, depois noutro lugar” (Chakrabarti, 2000b).
A frase de John Locke “no princípio todo o mundo foi América” é evocada por
Castro-Gómez para ilustrar o imaginário europeu que transformou um caminho trilhado
em etapas que todas as nações devem superar (Castro-Gómez, 2005). Esse imaginário
colonial comporta a ideia de que nem todas as sociedades o poderão fazer sozinhas.
Alguns povos são menores de idade, outros podem evoluir como “epígonos crioulos” e vir
a viver no presente (Castro-Gómez, 2007). A narrativa da imobilidade das sociedades
tradicionais é conveniente à justificação dos processos de colonização. As sociedades
classificadas como tradicionais, nomeadamente as sociedades africanas, para além de
classificadas como cegas pela força do costume, são pensadas como vivendo sob o fardo
da feitiçaria e da resistência à mudança. Na investigação científica, a incapacidade de
integrar fenómenos não lineares resultou frequentemente na associação da não
linearidade ao caos e na impossibilidade de dar conta da complexidade das sociedades
(Mbembe, 2001).
45
Capítulo I
46
Para descolonizar o pensamento jurídico
por um tipo de justiça baseado numa racionalidade lógico-formal” (Santos, 2000: 132). Na
mesma linha, Wolkmer atribui quatro pressupostos ao direito moderno: estatalidade,
unicidade, positivação e racionalidade. O sistema jurídico, emanado do Estado, é
constituído por um sistema único de normas jurídicas coercivas, estabelecidas
oficialmente a partir de um modelo centralizado. É contaminado pela racionalidade
própria da lógica de desenvolvimento capitalista que aparece estreitamente ligada à
estatalidade, à organização burocrática e ao desenvolvimento jurídico (Wolkmer, 1994:
53-57).
Marc Galanter, ainda nos anos 1960, recorria a um conjunto de onze traços
distintivos com vista a caracterizar o direito moderno enquanto tipo ideal. Em primeiro
lugar, trata-se de um direito uniforme e aplicado de forma invariável. A incidência das
normas é territorial e não pessoal. Em segundo lugar, o direito é contratual, isto é,
enfatiza direitos e obrigações que resultam da situação perante o contrato (por exemplo,
funcionário ou empresário) e não de diferenças inerentes aos indivíduos. Em terceiro
lugar, as normas são universalistas, permitindo uma aplicação da lei reproduzível e
previsível. Em quarto lugar, o sistema é hierarquizado, constituído por uma rede de
tribunais de primeira instância e uma estrutura de recursos por categoria que garante que
ações locais estão conforme os padrões nacionais. Em quinto lugar, o sistema é
organizado de forma burocrática, operando de forma impessoal, seguindo procedimentos
previamente determinados e decidindo de acordo com as leis escritas. Em sexto lugar, o
sistema é racional e instrumental. Em sétimo lugar, o sistema é gerido por profissionais.
Em oitavo lugar, à medida que o sistema se complexifica, surgem profissionais
especializados que atuam como intermediários entre os tribunais e os cidadãos. Em nono
lugar, o sistema é emendável no sentido em que prevê métodos regulares para revisão de
normas e procedimentos de forma a ir ao encontro das mudanças necessárias. Em
décimo lugar, o sistema é político, o Estado detém o monopólio da coerção e da
resolução de conflitos. Por último, o poder está separado entre o legislativo, o executivo e
o judicial (Galanter 1966: 154-156).
Por modernização, Galanter entendia o desenvolvimento das caraterísticas descritas
ou o movimento no sentido da sua concretização. O autor deixa no entanto claro que o
47
Capítulo I
quadro traçado retrata apenas um modelo. Desde logo, Galanter sabia que o direito
escrito e o direito em ação não se sobrepõem e reconhecia que, para compreender o
funcionamento do sistema moderno, era necessário analisá-lo em contexto, onde o
direito oficial dos juristas é justaposto com a tradição jurídica local, as práticas desviantes
e as atitudes populares divergentes. Em síntese, era já claro que a narrativa do direito
moderno não contempla a história toda. Ao direito universal, formal, impessoal, escrito,
refinado, elaborado, articulado e aplicado por especialistas organizados
hierarquicamente, a realidade juntava práticas que envolvem padrões e compreensões
locais, relações informais e julgamentos pessoais (Galanter, 1966: 56-58).
A ideia de que o Estado detém o monopólio do direito é um mito que começou a ser
questionado logo como reação aos movimentos de codificação moderna ocorridos no
Ocidente a partir do século XIX, mas que ainda hoje ocupa boa parte do nosso imaginário
jurídico. Reconhecendo que a narrativa do direito moderno é apenas uma parte da
história, esta veio a ser classificada como “centralismo jurídico” (Griffiths J., 1986) ou
“monismo jurídico” (Wolkmer, 1994; Higuera e Maldonado, 2007), por oposição ao que
ficou conhecido como “pluralismo jurídico”. Em meados dos anos 1980, John Griffiths
reconhecia no centralismo jurídico uma construção ideológica, segundo a qual “a lei é e
deve ser a lei do Estado, uniforme para todas as pessoas, exclusiva de todas as outras leis,
e administrada por um único conjunto de instituições estatais”. De acordo com esta
conceção, todas as outras ordens normativas são menores, estão e devem estar
subordinadas ao direito e às instituições estatais (Griffiths J., 1986: 3).
Galanter (1966) identifica traços do movimento de modernização do direito na
Europa no início do século XI com a receção do Direito Romano. Wolkmer (1994) afirma
que o período de formação do monismo jurídico acontece nos séculos XVI e XVII,
associado a um conjunto de desenvolvimentos históricos associados, como o Estado
absolutista, o capitalismo mercantil, o fortalecimento do poder aristocrático e o declínio
da Igreja e do pluralismo corporativista medieval. No entanto, estes e outros autores,
reconhecem que só no final do século XVIII se desenvolvem sistemas jurídicos nacionais
modernos e só no século XIX a paisagem jurídica é radicalmente substituída, com a
pluralidade a ser colocada sob a tensão unificadora do direito escrito estatal, que
48
Para descolonizar o pensamento jurídico
reivindica a regulação de campos até então à margem da justiça oficial (Galanter, 1966:
153; Hespanha, 1993: 16; Wolkmer, 1994: 43).
De acordo com António Hespanha, o direito pré oitocentista das sociedades do
Norte vigorava apenas no seio dos homens letrados e informados e lidava sobretudo com
as questões da liberdade e da propriedade (Hespanha, 2007: 304). O designado “direito
erudito” era entendido como o direito das elites e reconhecia a vastidão de formas de
organização social e jurídica que lhe escapavam. A pluralidade que vigorava para lá do
direito estatal era classificada como “direito dos rústicos (iura rusticorum)” e olhada “com
um misto de desprezo e condescendência”, sendo associada aos detentores de uma
“ignorância primitiva e sã (pristina et ingenua ignorantia)”, aos incapazes de alcançarem a
sofisticação do direito erudito (Hespanha, 1993: 16).27
O papel dos juristas durante o período medieval não estava limitado a uma ordem
jurídica inflexível. Num artigo com o título “Os Juristas como Couteiros”, Hespanha (2001)
parte de uma metáfora concebida por Zigmunt Bauman para caracterizar a emergência
da modernidade, usando-a para analisar a grande transformação ocorrida no direito com
a passagem do período medieval para o início da idade de moderna. Bauman compara o
processo da emergência da modernidade à transformação de culturas selvagens em
culturas-jardins e à substituição do couteiro pelo jardineiro. Os primeiros não
ambicionam transformar o território e aproximá-lo do ideal imaginado. Não assumem a
responsabilidade de alimentar as plantas e os animais que se encontram no espaço
deixado ao seu cuidado. Confiando nas capacidades dos seus protegidos, procuram
apenas garantir que as condições de auto-reprodução não são perturbadas. Na
cosmologia medieval, “a ordem era uma dádiva original de Deus”. Os juristas não deviam
criar a ordem, eram apenas os guardiões de um mundo multiordenado e multiorientado.
O seu papel seria “o de induzirem a natureza, tirando proveito de todos os recursos
(virtutes) da sensibilidade humana (amor, bonitas, itellectus, sensus) numa era em que os
métodos intelectuais da definição do direito não estavam ainda privados de abordagens
27
Este tipo de dualismo tem características comuns com o que encontramos nas sociedades coloniais
africanas sob domínio do governo indireto: de um lado, os cidadãos e o direito europeu; do outro, os
súbditos e o “direito tradicional”. Esta questão será desenvolvida no segundo capítulo.
49
Capítulo I
50
Para descolonizar o pensamento jurídico
51
Capítulo I
de toda e qualquer norma que pertence a este sistema é determinada por uma outra
norma do sistema e, em última linha, pela sua norma fundamental. A única norma que
tem de se ser pressuposta é, então, a norma fundamental. Para Kelsen, Estado e direito
sobrepõem-se. O Estado é concebido como uma comunidade social que apenas pode ser
constituida pela ordem de coerção centralizada que é a ordem jurídica Estatal. Nas
palavras de Kelsen “se se pergunta por que é que um indivíduo, conjuntamente com
outros indivíduos, pertence a um determinado Estado, não poderemos encontrar outro
critério para a resposta que não seja o de que ele está, conjuntamente com os
outros, submetido a uma determinada ordem coerciva relativamente centralizada”. O
poder do Estado “não é senão a eficácia da ordem jurídica”. Para Kelsen, “dizer que o
governo estadual, que exerce o poder do Estado, tem de ser independente, significa que
ele não pode juridicamente ser vinculado por qualquer outra ordem jurídica estadual, que
a ordem jurídica estadual só está subordinada à ordem jurídica internacional, se é que se
subordina a qualquer outra ordem jurídica”. Para Kelsen o direito internacional
assemelha-se ao que designa por direito da sociedade primitiva. Ambos se distinguem do
direito estatal por se encontrarem num estádio de descentralização e não vincularem os
cidadãos (Kelsen, 1999).
Recorrendo à cartografia simbólica do direito desenvolvida por Boaventura de Sousa
Santos, ainda nos anos 1980, podemos afirmar, desde logo, que estes desenvolvimentos
práticos e teóricos definiram a escala privilegiada a partir da qual passou a ser observado
o mundo jurídico: o Estado. Como observa o autor, “o Estado moderno assenta no
pressuposto de que o direito opera segundo uma única escala, a escala do Estado”. Para
além do efeito da escala e do seu efeito na estrutura e no uso do direito, esta abordagem
distingue também as formas de direito em função do tipo de projeção da realidade social
que adotam. Como a escala, cada tipo de projeção distorce a realidade. Não o faz forma
caótica, criando um campo de representação em que a distorção tem lugar segundo
regras conhecidas e precisas. Por um lado, o tipo de projeção escolhido é sempre uma
compromisso sobre o tipo de distorção a privilegiar, que assenta na ideologia do
cartógrafo e no uso específico a que se destina o mapa. Por outro lado, o centro escolhido
para o mapa, à volta do qual se dispersam os restantes espaços, é variável em função do
52
Para descolonizar o pensamento jurídico
Como acima referi, desde cedo, o centralismo jurídico teve os seus opositores. Os
estudos do pluralismo jurídico desempenharam um papel muito relevante no
questionamento da conceção centralista do direito, argumentando e mostrando que o
28
Boaventura de Sousa Santos descreve ainda um terceiro grande mecanismo da representação/distorção
cartográfica da realidade, que me parece menos relevante desenvolver aqui: a simbolização (Santos,
1988b).
29
Esta frase de Eduardo Galeano é extraída da capa da coletânea organizada por Edgardo Lander, intitulada
A colonialidade del saber: Eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latino-americanas (Lander, 2000).
53
Capítulo I
30
Existem várias revisões teóricas sobre o conceito de pluralismo jurídico (por exemplo: Griffiths J., 1986;
Merry, 1988; Higuera e Maldonado, 2007). Eu própria faço-a num outro lugar (Araújo S., 2008a).
31
Sobre este exemplo de Castro-Gómez (2007), ver ponto 2.3.
54
Para descolonizar o pensamento jurídico
central na ordenação normativa da vida social. Ainda que a realidade estivesse do lado
dos “pluralistas jurídicos”, dada a hegemonia do centralismo jurídico, coube-lhe os ónus
de provar a existência de outros direitos para além do estatal (Santos 2002, 2009a).
Um dos primeiros contributos significativos a esta discussão pertence a Eugen
Ehrlich, um jurista de formação, tido por um dos fundadores da sociologia do direito. No
início do século XX, Ehrlich estabeleceu o conceito de “direito vivo” (“living law”), o
direito que regula a própria vida, ainda que não tenha sido colocada em proposições
jurídicas. A chave da sua teoria é a distinção entre “regras para decisão” e “regras para
conduta”. Na conceção positivista, o direito limita-se às regras para decisão, o conjunto
de leis seguidas por um oficial do Estado para resolver as disputas jurídicas que lhe são
trazidas. O autor defende que a imposição do sistema judicial é apenas um entre os
muitos motivos que influenciam a conduta humana e, nesse sentido, uma conceção do
direito que se pretenda científica deve considerar as normas de conduta. Nas relações
que mantêm entre si, os cidadãos reconhecem determinadas normas de conduta como
obrigatórias e, em regra, regulam efetivamente a sua conduta por elas. Estas normas são
de vários tipos (normas de direito, da moral, da religião, do costume ético, de honra, de
decoro, de tato, de etiqueta, de moda) e ameaçam sancionar o agressor ainda que não
com punição ou penhora. A sanção não é uma particularidade das normas jurídicas.
Aquele que se recusa a agir de acordo com as normas tem que conformar-se com o facto
de ver desapertarem-se os laços de solidariedade no seu próprio círculo. Assim, o Estado
não é a única associação que exerce coerção, existe um sem número de associações na
sociedade que exercem coerção de forma muito mais intensa (Ehrlich 1979: 121, 122;
Griffiths J., 1986: 25). A análise de Ehrlich é ainda centrada no direito estatal, abordando a
pluralidade a partir da contraposição entre, o direito estatal, de um lado, e toda a
diversidade de normas que existem na sociedade e do outro. John Griffiths, apesar de
reconhecer o mérito da teoria, afirma que a conceção do direito vivo carece de um
critério independente para determinar o que é “jurídico”, lamenta o facto de o autor não
discutir como identificar uma associação e manifestar pouco interesse na relação entre as
associações não estatais (Griffiths J., 1986: 26-29). O pensamento de Erhlich é no entanto
altamente inovador ao desafiar a conceção de homogeneidade jurídica em que assenta o
55
Capítulo I
32
Uma versão deste artigo terá circulado ainda antes desta data. Marc Galanter faz referência a uma versão
não publicada e não revista de 1979, sob o título The Legal Integration of Minority Groups Set in the Context
of Legal Pluralism (Galanter, 1981).
56
Para descolonizar o pensamento jurídico
33
Sobre a lógica do tempo linear em que assenta a razão moderna, ver ponto 2.3 do presente capítulo.
57
Capítulo I
58
Para descolonizar o pensamento jurídico
34
Sobre as cinco lógicas de produção de não existência ou inferioridade, tal como definidas por Boaventura
de sousa Santos (monocultura do saber e do rigor do saber; monocultura do tempo linear; lógica da
classificação social; lógica da escala dominante e lógica produtivista), ver ponto 2 do presente capítulo.
59
Capítulo I
60
Para descolonizar o pensamento jurídico
Gulliver, é legítimo que o direito, sendo um conceito ocidental, seja definido segundo
critérios ocidentais, facto que, reconhece, conduziu a problemas epistemológicos, como o
da ausência de identificação de direito em muitas sociedades não ocidentais. Ainda
segundo o mesmo autor, em determinada altura, as definições vieram a ser tão alargadas
ou diluídas de modo a serem inclusivas que tornaram o termo difuso e crescentemente
inútil enquanto base de discurso ou instrumento de análise. Gulliver defende que a
primeira preocupação da antropologia do direito é o estudo dos processos, em particular
dos processos de resolução de conflitos. Assim, a unidade de observação é o caso, a
disputa empírica, e não o direito (Gulliver, 1997 [1969]: 12, 13).
No interior destas discussões surge um debate sobre a forma de identificar a
presença de direito cuja relevância assenta sobretudo no facto de estar associado ao
reconhecimento da elasticidade dos direitos por oposição a leituras estáticas. Gulliver,
ainda que o reconheça no trabalho de Gluckman uma contribuição marcante, acusa este
autor de negligenciar a história anterior e posterior à resolução dos casos. Para Gulliver,
essa negligência passa, “pela preocupação inútil com o que o ‘direito’ é, em vez da
concentração no que o ‘direito’ faz”. Segundo este autor, a tarefa de compilação de leis,
regras e normas, por si só, esconde mais do que revela, sendo necessário perceber como
as leis são usadas na prática e sob que circunstâncias são modificadas ou ignoradas
(Gulliver, 1997 [1969]: 16-19). Gluckman defende que as situações factuais, bem como o
conhecimento das normas, são ambos essenciais para compreender um caso e, em
resposta a Gulliver, argumenta que a análise dos casos é fundamental, mas que o
trabalho do investigador não pode esgotar-se aí (Gluckmann, 1973: 614-616).35
Apesar dos desenvolvimentos destes debates, foi só no segundo período, designado
por “novo pluralismo jurídico”, que se os estudos se estenderam também às sociedades
industrializadas do Norte (Merry, 1988) e o conceito foi desenvolvido na versão dinâmica
e “forte”. Autores como Boaventura de Sousa Santos (1988a, 1988b, 1992, 2002), Richard
35
Gluckman argumenta que, mesmo o jurista Karl N. Llewellyn, um dos realistas mais conhecidos, co-autor
da obra The Cheyenne way of life: Confliting and Case Law in Primitive Jurisprudence, não negava o
significado do direito. Llewellyn reconhecia que as questões jurídicas não são completamente cobertas pela
lei, mas no aconselhamento aos clientes não eliminivava as prováveis linhas de uma decisão judicial. Na
obra referida, que juntou Llewellyn com o antropólogo E. Adamson Hoebel, os dois autores concentraram-
se na forma como os Cheyenne operacionalizavam as leis no cenário da sua vida social ou como as regras
eram criadas para responder às novas contingências dessa vida (Gluckmann, 1973).
61
Capítulo I
Abel (1982), Sally Engle Merry (1988) ou Marc Galanter (1981, 1983) mostraram não se
tratar de um fenómeno exclusivo das sociedades classificadas como menos
desenvolvidas, mas uma condição virtualmente existente em qualquer sociedade. O
alargamento da geografia dos objetos etnográficos permitiu que o pluralismo jurídico
fosse perdendo a sua conotação de exotismo e marginalidade. A teoria adquiriu
complexidade, uma vez que deixou de ser clara a distinção entre direito imposto e
direitos locais, e os direitos começam a ser observados nas suas formas dinâmicas,
interativas e mutáveis (Merry, 1988; Santos 2009a). Os desenvolvimentos teóricos
influenciaram os estudos empíricos quer das sociedades industrializadas do Norte, quer
das sociedades pós-coloniais, onde a representação inflexível do direito tradicional
passou a ser identificada como mito.36
Sally Falk Moore aplica o conceito de campo social semi-autónomo já mencionado e
critica a noção de que a mudança social fundamental pode ser imediatamente realizada
por meio da legislação. A sua proposta é que o pequeno campo observável pelo
antropólogo seja estudado em termos da sua semi-autonomia. O campo social semi-
autónomo, como vimos, tem capacidade de produzir normas e os meios para induzir ou
coagir o seu cumprimento. No entanto, está inserido numa matriz social mais alargada
que os afeta e invade, às vezes a convite das pessoas no interior do campo social, outras
vezes por sua própria iniciativa. Essa matriz influencia-os, mas não os determina. Moore
chama a atenção para a ubiquidade desta questão analítica, assinalando a sua presença
em todas as sociedades. Recorrendo aos casos da indústria de vestuário em Nova Iorque
e dos Chagga da Tanzânia, mostra que a legislação exterior não tem os efeitos
aparentemente esperados, precisamente pela semi-autonomia do campo social em que
tem que operar, sendo os laços internos de obrigações mútuas muitas vezes mais fortes
do que a lei externa (Moore, 2000 [1978]). Este, sem dúvida, constituiu um contributo
significativo na conceção de um quadro conceptual para o pluralismo jurídico que permita
captar a complexidade e o cruzamento entre as normas jurídicas. Sally Engle Merry
36
A “invenção da tradição” e parte do debate que se relaciona com esta questão serão abordados no ponto
seguinte e retomados de forma mais pormenorizada no segundo capítulo.
62
Para descolonizar o pensamento jurídico
define-o como “a mais durável, generalizável e largamente usada conceção das ordens
jurídicas plurais” (1988: 878).
Marc Galanter (1981) argumenta que o modelo jurídico centralista é deficiente
enquanto modelo descritivo e defende o seu abandono na definição das políticas de
acesso ao direito e à justiça. Galanter parte de um mapa de resolução de conflitos
desenhado com base no trabalho que desenvolveu no contexto dos Estados Unidos da
América. No entender do autor, apenas uma pequena porção dos litígios que poderiam
ser levados a tribunal chega efetivamente a ser-lhe apresentada. Para o autor, “tal como
a saúde não é encontrada primeiramente nos hospitais ou o conhecimento nas escolas,
também a justiça não é encontrada primeiramente numa instituição oficial de justiça”. As
pessoas acedem à justiça nos fóruns patrocinados pelo Estado e nos locais institucionais
primários das suas atividades, como sejam a casa, a vizinhança, o local de trabalho, os
negócios. A enunciação das normas e a aplicação de sanções nestas estruturas podem ser
mais ou menos organizadas mais ou menos auto-conscientes, mais ou menos
consensuais, etc. Galanter escolhe o termo “direito indígena” para se referir à
regulamentação social que é indígena, isto é, familiar a e aplicável pelos participantes nas
atividades diárias sob regulamentação. A regulação indígena e a oficial não são
mutuamente exclusivas, ambas proliferam nas sociedades modernas. A regulação jurídica
nas sociedades modernas, tal como nas outras, é constituída por retalhos (Galanter,
1981).
O trabalho de Richard Abel (1982) distingue-se dos restantes aqui mencionados. Ao
abordar o fenómeno da informalização da justiça, Abel desafia o centralismo jurídico sem
discutir ou recorrer ao conceito de pluralismo jurídico. O autor assume o seu interesse em
instituições que “declaram, modificam e aplicam normas no processo de controlo de
conduta e resolução de conflitos”. Essas instituições são informais, no sentido em que são
desburocratizadas e relativamente indiferenciadas da sociedade em geral, recorrem
pouco a profissionais e evitam o direito oficial em favor de normas procedimentais vagas,
não escritas, assentes no senso comum, flexíveis, ad hoc e particularísticas. Partindo de
uma discussão levada a cabo no final dos anos 1970 em Madison no âmbito de uma
conferência dos Critical Legal Studies, Abel reúne, num primeiro volume, um conjunto de
63
Capítulo I
textos que discutem teórica e empiricamente a informalização da justiça nos EUA e, num
segundo volume, a justiça informal num leque variado de outras sociedades (ocidentais e
não ocidentais).37
Um dos trabalhos que proporciona instrumentos mais precisos para a análise
teórica e empírica do pluralismo jurídico é o de Boaventura de Sousa Santos. O primeiro
trabalho que desenvolveu nesta área foi realizado nos anos 1970 no Rio de Janeiro, onde
estudou a legalidade de uma favela, que ficou conhecida por Pasárgada38, centrando-se
na análise sociológica do discurso jurídico usado na prevenção e na resolução de
conflitos. Numa leitura mais recente sobre esse trabalho, Boaventura de Sousa Santos
afirma que já nessa altura a pluralidade jurídica não era apenas um problema teórico e
analítico, era também um problema epistemológico: “qual a verdade ou validade do
conhecimento jus-científico oficial que concebe como não-direito ou ignorância do direito
o que ‘vale’ para vastos sectores das classes populares como outro direito ou
conhecimento jurídico alternativo?” (Santos, 2003a: 43)
O discurso jurídico de Pasárgada era reconhecidamente complexo e alimentado por
um movimento dialético de ordens jurídicas diferenciadas. Envolvia referências ao direito
de Pasárgada, que funcionava à margem do direito estatal, e a leis do “direito do asfalto”
(direito oficial), que embora não fundamentassem as decisões, não eram “arbitrárias ou
inúteis”, mas sim parte do discurso tópico retórico, com a função de criarem uma
atmosfera de oficialidade e de normatividade. Eram, assim, uma retórica institucional,
que visava reforçar os objetivos retóricos e sublinhar as linhas do discurso no seu
percurso para a decisão (Santos, 1988a: 19).
Foi também a partir do trabalho em Pasárgada que Sousa Santos desenvolveu o
quadro conceptual das componentes estruturais do direito, um instrumento para analisar
diferentes campos jurídicos que voltará a usar em outros trabalhos empíricos realizados
ao longo da sua carreira. São três as componentes estruturais do direito: a retórica, a
burocracia e a violência. A sua presença não é fixa, variando internamente e na sua forma
37
O trabalho de Richard Abel e a compilação de textos que apresenta serão abordados mais
aprofundadamente no segundo capítulo.
38
Só muitos anos mais tarde se soube que a favela estudada por Boaventura de Sousa Santos era o
“Jacarezinho”. O nome foi alterado em função do período de ditadura que o Brasil atravessava e da
decorrente necessidade de evitar a identificação das pessoas envolvidas nos dados divulgados.
64
Para descolonizar o pensamento jurídico
65
Capítulo I
66
Para descolonizar o pensamento jurídico
39 Brian Tamanaha (2000) e Melissaris (2004) contestam a abordagem de Boaventura de Sousa Santos com
base em duas principais ordens de críticas: em primeiro lugar, acusam-no de não distinguir entre normas
sociais ou valores e direito; em segundo lugar, de definir de forma etnocêntrica o que é o direito, isto é, de
aplicar a sua própria definição a todas as realidades. A discussão faz-nos regressar à já mencionada
polémica Gluckman-Bohanam, que opunha a decisão de usar os conceitos estabelecidos pelo cientista
social aos que são usados nos discursos dos indivíduos nas comunidades. Santos já classificava a discussão
dos anos 1970’ de mais frutuosa pelas questões que levantava do que pelos resultados. E, em relação ao
argumento de Bohanam, o mesmo autor afirmava preferir estar consciente da impossibilidade uma
erradicação completa do etnocentrismo do que pensar que o podia erradicar de forma tão simples. Num
outro lugar (Araújo S., 2008a) apresento uma discussão aprofundada sobre as críticas e as propostas desses
autores. Por já o ter feito e por não as considerar relevantes para a discussão que se segue, optei por não o
fazer aqui em profundidade, apresentando apenas alguns dos argumentos mais recentes de Tamanaha.
67
Capítulo I
estão ancoradas nos seis espaços sociais das sociedades capitalistas que integram o
sistema mundial: o espaço doméstico, o espaço da produção, o espaço do mercado, o
espaço da comunidade, o espaço da cidadania e o espaço mundial. A cada um destes seis
espaços corresponde não apenas uma ordem jurídica, mas também uma forma de poder
e uma forma de conhecimento. Assim, de acordo com o argumento de Santos, as
sociedades capitalistas são constelações políticas constituídas por seis modos básicos de
produção de poder; constelações jurídicas constituídas por seis modos básicos de
produção de direito; e constelações epistemológicas constituídas por seis modos básicos
de produção de conhecimento. Cada uma dessas seis formas de poder, direito e
conhecimento é estruturalmente autónoma, mas articula-se com as outras (Santos 2000:
253).40
O tema do pluralismo jurídico continua a alimentar intensas discussões na
antropologia e na sociologia do direito. Brian Tamanaha afirma que, no âmbito de um
combate cerrado ao centralismo jurídico, muitos “pluralistas jurídicos” são anti direito
estatal por inclinação e demonstram uma tendência para romantizar as ordens
normativas não estatais (Tamanaha, 2000: 305). No seu entender, os “pluralistas
jurídicos” partilham apenas uma proposição negativa que assenta na recusa do
centralismo jurídico. O autor acredita que o combate ao etnocentrismo está na origem do
uso do conceito, mas considera esse uso extemporâneo e pouco convincente enquanto
40
O direito doméstico “é o direito do espaço doméstico, o conjunto de regras, de padrões normativos e de
mecanismos de resolução de litígios que resultam da, e na, sedimentação das relações sociais do agregado
doméstico”. É, em regra, um direito informal, desigual. O direito da produção “é o direito da fábrica ou da
empresa, o conjunto de regulamentos e padrões normativos que organizam o quotidiano das relações do
trabalho assalariado (relações de produção e relações na produção): códigos de fábrica, regulamentos das
linhas de produção, códigos de conduta dos empregados, etc.”. O direito da troca “é o direito do espaço do
mercado, os costumes do comércio, as regras e padrões normativos que regulam as trocas comerciais entre
produtores, entre produtores e comerciantes, entre comerciantes, e também entre produtores e
comerciantes, por um lado, e consumidores, por outro”. O direito da comunidade é uma das formas de
direito mais complexas, na medida que cobre situações muito diversas, “pode ser invocado tanto pelos
grupos hegemónicos como pelos grupos oprimidos, pode legitimar e reforçar identidades imperiais
agressivas ou, pelo contrário, identidades defensivas subalternas, pode surgir de assimetrias de poder fixas
e irreconciliáveis ou, pelo contrário, regular campos sociais em que essas assimetrias quase não existem ou
são meramente circunstanciais”. O direito territorial ou direito estatal “é o direito do espaço da cidadania e,
nas sociedades modernas, é o direito central da maioria das constelações jurídicas”. Por fim, o direito
sistémico “é a forma de direito do espaço mundial, o conjunto das regras e padrões normativos que
organizam a hierarquia centro/periferia e as relações entre os Estados-nação no sistema inter-estatal”
(Santos, 2000: 269-281).
68
Para descolonizar o pensamento jurídico
razão para abraçar tal abordagem. No seu entender, o direito [moderno] é atualmente
ubíquo e a categoria de direito estatal não conduz nenhuma sociedade à categoria de
incivilizada (Tamanaha, 2007). Profundo conhecedor da literatura sobre o pluralismo
jurídico, Tamanaha mergulha sobre os estudos e desenvolvimentos teóricos desde
Malinowski, dividindo com a academia as suas angústias sobre a ausência de consenso
para definir direito e a incapacidade persistente de distinguir direito de vida social, ou
normas jurídicas de normas sociais. Para este autor, até este problema estar resolvido, o
conceito de pluralismo jurídico não terá uma fundação sólida e deve ser reformulado ou
abandonado. Assim, opta pela primeira opção e propõe o que classifica como saída
pragmática. Depois de todo o esforço argumentativo contra os desenvolvimentos teóricos
do pluralismo jurídico assentes no conceito de direito, Tamanaha sugere que os
pluralistas jurídicos substituam o conceito de direito por “sistema de regras”, libertando-
se do peso que a palavra “direito” carrega. Trata-se, segundo o autor de uma mudança
substantiva que implica o abandono da pretensão de que os padrões que regulam a vida
são direito, pois este é o direito do Estado. Fica por esclarecer por que razão Tamanha
abraça o conceito de pluralismo jurídico se apenas admite um único direito, o direito
estatal. Não é suficientemente claro também por que razão o conceito de “sistema de
regras” não é sujeito ao mesmo rigor crítico e nível de exigência a que submeteu o
conceito de direito. Embora não seja insensível à argumentação de Tamanaha, identifico
como principal resultado o enfraquecimento do conceito de pluralismo jurídico enquanto
instrumento teórico para fragilizar as hierarquias criadas unilateralmente pelo direito
ocidental. A ausência de informação empírica para mostrar a sua teoria dificulta também
a compreensão e valorização da mesma (Tamanaha, 2000, 2007, 2008, 2011).
No que diz respeito à crítica sobre a romantização do pluralismo jurídico, é preciso
notar que a classificação dos estudiosos do pluralismo jurídico como “pluralistas
jurídicos” é, em sim mesma, reveladora dos termos do debate. Entre a romantização e a
dramatização da realidade nem sempre há espaço para o crescimento construtivo de
69
Capítulo I
ideias. Os debates em bastidores são ainda mais tensos.41 A forma como o pluralismo
jurídico teve que se impor, ficando com o ónus de provar a sua presença face a um
mundo jurídico dominado pelo positivismo jurídico, criou uma intensidade particular nos
debates. A discussão do pluralismo jurídico no âmbito da sociologia e da antropologia do
direito não permaneceu indiferente ao contexto político-ideológico que lhe subjazia. O
facto de, ainda hoje, os princípios do centralismo jurídico serem aceites pela grande
maioria dos juristas e de os teóricos do pluralismo jurídico estarem sujeitos a ser
rejeitados sem grande consideração pode explicar o carácter combativo com que se
iniciou e desenvolveu o debate (Woodman, 1998: 22). Quando, no início dos anos 1980,
John Griffiths redige o célebre artigo já mencionado acrescenta uma nota que explica que
o carácter programático do texto se deve ao facto de ter sido escrito durante a sua
“infância combativa” (Griffiths J., 1986: 1).
Boaventura de Sousa Santos admite que algumas visões do pluralismo jurídico
podem tender a romantizar a realidade, mas esclarece, que, no seu entender, “não há
nada de intrinsecamente bom, progressista e emancipatório no pluralismo jurídico”,
havendo mesmo “exemplos de pluralismo jurídico bem reaccionários de que foram
exemplos os Estados coloniais e a África do Sul no tempo do apartheid” (Santos, 2002).
Também Antônio Carlos Wolkmer (1994, 2013) distingue um pluralismo jurídico
conservador e reacionário de um pluralismo jurídico progressista e emancipatório. Um
bom exemplo do primeiro é o pluralismo jurídico imposto a partir de cima pela
globalização neoliberal, nomeadamente pelas grandes corporações e pelos acordos
internacionais que determinam as regras sobretudo na área económica e na área
financeira. No âmbito do pluralismo jurídico emancipatório, Wolkmer propõe o
paradigma do pluralismo jurídico do tipo comunitário participativo que deve ampliar uma
realidade existente de forma subterrânea e surge como resposta à injustiça, à ineficácia e
ao esgotamento do modelo legalista liberal individualista. O modelo que se aproxima de
uma proposta de democracia participativa é definido pelo autor nos seguintes termos:
41
Numa revisão da literatura sobre pluralismo jurídico, Gordon Woodman afirma que apesar de não
existirem críticas substanciais ao conceito, as discussões informais sobre o tema evidenciam que o
pluralismo jurídico está longe de ter reconhecimento nos círculos académicos (1998: 40).
70
Para descolonizar o pensamento jurídico
71
Capítulo I
teórica anterior que associava o terceiro tipo de pluralismo jurídico aos estudos que
envolviam a abordagem sobre ordens jurídicas locais, nacionais e globais e as complexas
situações de hibridismo e interlegalidade, o autor identifica a abordagem às inovações
ocorridas na América Latina no âmbito do que designa por novo pluralismo jurídico
transformador e põem em causa a simetria entre Estado, direito e nação como
“novíssimo pluralismo jurídico” (Santos, 2011a).
Como veremos, a realidade da América Latina é substancialmente diferente da que
encontramos no continente africano. São poucas as vezes que a literatura se cruza. Isso
permite que Boaventura de Sousa Santos, em momentos diferentes, tenha definido de
forma dissemelhante o que entende por terceiro período de estudos do pluralismo
jurídico: uma definição para o contexto africano (Santos, 2003b) e outra para o contexto
da América Latina (Santos, 2011a). É fácil perceber o entusiasmo pelas transformações da
Bolívia e do Equador. Partem de ações coletivas concertadas, têm resultados visíveis e
culminam numa transformação do próprio direito estatal e das instituições do Estado. No
entanto, as Epistemologias do Sul não podem focar-se apenas nos saberes e na
transformação que emerge das ações coletivas, da transformação integrada no direito
moderno, das lutas através das instituições estatais. Se esta realidade tem resultados
visíveis, não pode invisibilizar outro tipo de lutas, mais individuais, com resultados menos
mediáticos, como são as lutas quotidianas pela consagração de direitos estabelecidos
pelo direito estatal ou pelo direito vivo.
72
Para descolonizar o pensamento jurídico
42
Nos anos 1980’, Boaventura de Sousa Santos afirmava que, em parte devido ao que designou por “efeitos
paralisantes” do debate “Gluckmann-Bohannam”, vários autores optaram por seguir uma via pragmática de
se eximirem de às dificuldades de definir o conceito de direito, substituindo-o enquanto unidade de análise
pelo fenómeno universal do comportamento coletivo em que o direito, implícita ou explicitamente, se
objetiva: a disputa, o litígio. No entanto, o autor argumentava que a dificuldade desta linha reside no facto
de os autores que a seguem não estarem interessados em qualquer tipo de disputa, mas nas que têm
fundamentação normativa, sendo que, nessa situação, “o conceito de direito renasce das cinzas sob a
forma de determinação dessa fundamentação” (Santos, 1988a).
43
Apesar desta distinção ser referida em trabalhos sobre as sociedades portuguesa e moçambicana (Frade,
2002; Cebola, 2008; Jacobs, 2010), “conflito” e “litígio” são conceitos usados quase sempre de forma
alternada, com o mesmo significado. Ao longo deste trabalho não faço uso da distinção.
73
Capítulo I
causador ou não perceber que podem reagir (Felstiner et. al., 1980-1; Santos et al. 1996).
Felstiner et. al. (1980-1) notam a influência da posição social e as características
individuais no curso da transformação de um dano em litígio e criticam o modelo liberal
de acesso ao direito e à justiça que, comprometido com a igualdade formal, não
compreende o processo anterior à transformação do conflito em litígio. Neste sentido, as
medidas que procuram eliminar as desigualdades na última fase de transformação do
conflito em litígio tendem a ampliar a posição desvantajosa dos que não têm condições
para chegar a esta última etapa de transformação.
A construção de um litígio não depende unicamente de fatores individuais e sociais.
A estes somam-se as variáveis interpessoais, isto é, a natureza das relações que ligam os
indivíduos na medida em que estas influenciam a atitude face à rejeição de uma
reclamação. Prosseguir de forma litigiosa pode ser prejudicial quando o conflito emerge
no âmbito de uma relação multiplexa. O conceito de relações multiplexas foi elaborado
pela primeira vez no contexto da sociologia jurídica por Max Gluckman (1955). As
relações multiplexas são relações abrangentes, com dimensões interativas múltiplas, que
se estendem para além do momento de ocorrência do conflito. Exemplo de relações
multiplexas são as que, em regra, se estabelecem entre familiares, vizinhos ou amigos.
Este tipo de relação difere das relações uniplexas, de vínculo único, que se estabelecem
entre estranhos, por exemplo, numa relação de compra e venda. Nas relações
multiplexas, importa existirem condições para a continuidade da relação após a resolução
do conflito. O inconformismo com ausência de uma resposta considerada adequada à
reclamação pode contribuir para a polarização de posições, agravando o problema ao
colocar em causa a relação que se estende para além do contexto em que ocorreu o
problema (Santos, 1988a; Santos et. al., 1996).
Nas relações continuadas ou multiplexas podem ser agravados os custos associados
à desistência de uma reclamação. Nesses casos, aumenta, ainda, a probabilidade de
existirem normas partilhadas, bem como as oportunidades para a aplicação de sanções.
Para Galanter, nos conflitos que emergem deste tipo de relações, as partes tendem a
privilegiar o que o autor designa por “fóruns embutidos” (“embedded forums”), isto é,
instâncias diversificadas que fazem parte da estrutura social em que o conflito emerge e
74
Para descolonizar o pensamento jurídico
44
Sobre o significado de regulamentação indígena para Marc Galanter, ver ponto 3.2. deste capítulo.
75
Capítulo I
A metáfora da pirâmide ilustra como os tribunais judiciais lidam apenas com uma
pequena parte dos conflitos e mostra que centrar as políticas de acesso à justiça no
acesso aos tribunais é insuficiente e desadequado. É sempre difícil fixar uma imagem que
dê conta da complexidade e da maleabilidade da realidade e a pirâmide dos litígios não
configura a exceção à regra. Por mais variações que apresente quando se comparam tipos
45
A autoria da metáfora perdeu-se com o tempo. Herbert M. Kritzer (2010) defende que a publicação de
Henry Hart e Albert Sachs (1994), em que fazem referência à “Grande Pirâmide da Ordem Jurídica”, apesar
de apenas ter sido publicada nos anos 1990, circulou como manuscrito pelo menos desde 1958.
76
Para descolonizar o pensamento jurídico
77
Capítulo I
Nas suas diversas formas, a pirâmide dos litígios tem servido os propósitos dos
estudos jurídicos comparativos focados nos padrões de litigação por tipo de litígios e por
país e nas culturas de litigação que podem ser de propensão para litigar ou para soluções
mais consensuais (Murayama, 2007; Kritzer, 2010). No entanto a propensão para litigar
ou para soluções consensuais pode resultar dos sinais enviados, isto é, do legado para
negociação que vem dos tribunais judiciais, mas também dos resultados conhecidos de
todas as outras instâncias. A pirâmide invisibiliza a diversidade que cabe no estádio da
“tentativa de resolução da terceira parte”. É aqui que se situa o objeto deste trabalho.
A pirâmide de litígios pode ser construída a uma escala mais pormenorizada. João
Pedroso, por exemplo, apresenta uma pirâmide onde estão representados um conjunto
de meios de resolução e prevenção de conflitos, que na pirâmide de Santos et. al. ficam
diluídos na categoria “tentativa de resolução por terceira parte”: autocomposição,
aconselhamento, prevenção, profissões que resolvem conflitos, conciliação, mediação,
arbitragem e meios híbridos. Trata-se da representação do sistema integrado de
resolução de litígios que defende como solução para um acesso ao direito e à justiça mais
democrático. Veja-se a figura n.º 4.
78
Para descolonizar o pensamento jurídico
Figura n.º 4
Não defendo a inutilidade estas imagens, muito pelo contrário. Tal como acontece
com os mapas, devemos estar conscientes das suas limitações e da sua parcialidade e a
ter abertura à possibilidade de outras representações. João Pedroso, na área dos conflitos
de família em Portugal, e António Casimiro Ferreira, na área dos conflitos individuais de
trabalho, recorrem a mapas de resolução de conflitos não piramidais para representar a
realidade que observaram. No primeiro caso, o mapa representa quatro espaços onde
ocorre a resolução de conflitos: comunidade (terapia familiar/conciliação e mediação
informal, terceiras partes informais), mercado (terapia familiar/conciliação e mediação
privada), Estado (sistema público de mediação familiar, tribunais, Ministério Publico,
conservatórias do registo civil) ou num espaço híbrido que Pedroso define como o Estado
em parceria (Comissões de Proteção de Crianças e Jovens) (Pedroso, 2011: 66). De acordo
com o modelo de António Casimiro Ferreira, os conflitos individuais de trabalho podem
ser resolvidos por via judicial, formal não-judicial e informal judicialmente e as formas de
resolução podem ser proporcionadas pelo Estado, pelo mercado ou por formas da
comunidade mais institucionalizadas que designa por “associação” (Ferreira, 2005: 179).
O mapeamento deve ser feito a partir da realidade encontrada sem ser subjugado a
representações exteriores assentes na hegemonia do direito estatal e dos tribunais
judiciais. Deve ainda ter em conta as possibilidades de circulação através das instâncias
representadas com base em estratégias individuais dos litigantes que por vezes quebram
a lógica linear que os levaria do mais informal ao mais formal. O conceito de forum
79
Capítulo I
shopping ajuda a compreender este argumento. Construído por analogia a uma noção
própria do direito privado internacional, transmite a ideia de que os litigantes têm a
possibilidade de escolher entre diferentes instâncias e baseiam a sua escolha na
expetativa que têm do resultado, por mais vaga ou debilmente fundada que essa
expetativa possa ser (Benda-Beckmann 1981). A sua utilização nos estudos do pluralismo
jurídico remonta ao início dos anos 1980. O conceito foi transformado num clássico que
tem vindo a ser reproduzido vastamente para analisar os resultados dos estudos
etnográficos em várias realidades jurídicas. Na prática isto significa que os litigantes
podem experimentar várias instâncias numa ordem que obedece à gestão que fazem das
suas expetativas a partir da realidade de que dispõem e da forma como a interpretam.
80
Para descolonizar o pensamento jurídico
46
Sobre as Epistemologias do Sul, ver ponto 1.2. deste capítulo.
81
Capítulo I
47
Sobre a distinção entre pluralismo jurídico forte e pluralismo jurídico fraco ver ponto 3.2. do presente
capítulo ou Griffiths J., 1986.
82
Para descolonizar o pensamento jurídico
48
O princípio do Estado, cuja formulação remonta a Hobbes, incorpora a obrigação política vertical entre os
cidadãos e o Estado, cuja relação é assegurada pela coerção e pela legitimidade. O princípio do mercado,
desenvolvido por Locke e Adam Smith, consiste na obrigação horizontal, estabelecida com base no auto-
interesse mútuo, entre os agentes de mercado. O princípio da comunidade, assente na teoria social e
política de Rousseau, comporta uma obrigação horizontal que liga os indivíduos de acordo com critérios de
pertença não estatais e não mercantis (Santos, 2000).
83
Capítulo I
subalternas silenciadas. A luta pela emancipação social não é irrelevante ou inválida, mas
é insuficiente.
É a linha abissal que separa a humanidade da sub-humanidade.49 Do lado de lá não
estão os excluídos, mas os seres sub-humanos não candidatos à inclusão social. A
negação dessa humanidade é essencial à constituição da modernidade, uma vez que é
condição para que a outra parte possa afirmar a sua universalidade. Assim, práticas que
não se encaixam nas teorias não põem em causa essas teorias e práticas desumanas não
põem em causa os princípios da humanidade. E esta tese é tão verdadeira hoje como era
no período colonial (Santos, 2007a).50
Esta linha divisória que separa o espaço de reconhecimento do de não
reconhecimento foi identificada por Mamhood Mamdani (1996) no contexto africano
como a continuidade do “Estado bifurcado” colonial, em que o poder urbano fala a
linguagem da sociedade civil e dos direitos civis e o poder rural fala a linguagem da
comunidade e da cultura; o poder civil afirma defender os direitos e o poder costumeiro
promete fazer cumprir a tradição. Para Mamdani, a versão atual do Estado africano é uma
versão não racial do Apartheid, onde se encontra uma cidadania de primeira classe e
outra de segunda.
49
Sobre esta questão, ver final do ponto 1.3.
50
É pela força desta colonialidade do saber que mesmo os teóricos mais críticos da modernidade
invisibilizaram grande parte do mundo, contribuindo para o desperdício da experiência. O Sul ou o Terceiro
Mundo está ausente na maioria das conceções do pensamento pós-moderno (Santos, 1995, 2000, 2006a;
Spivak, 1988). Não se tematiza a relação Norte-Sul, “como se o Norte – ‘Nós’ – fosse apenas ‘Nós’ e não
‘nós e eles’ (Santos, 1995: 508).
84
Para descolonizar o pensamento jurídico
85
Capítulo I
51
Sobre a sociologia das emergências, ver Santos 2006a, 2007, 2009.
86
Para descolonizar o pensamento jurídico
87
Capítulo I
88
Para descolonizar o pensamento jurídico
52
Exemplo original de Hommi Bhabha (1994), recuperado por Boaventura de Sousa Santos (2006a).
89
Capítulo I
90
Para descolonizar o pensamento jurídico
91
Capítulo I
53
Topoi, de forma simplificada, são premissas argumentativas totalmente claras a partir da cultura de onde
partem e que por isso não são discutidas no seu interior. Sobre esta questão, ver Santos (2006: 123) e
referências que sugere.
92
Para descolonizar o pensamento jurídico
54
Para mais informações sobre a UPMS, consultar a página oficial em www.universidadepopular.org.
93
Capítulo I
94
Para descolonizar o pensamento jurídico
desaparecimento do vasto mundo jurídico que existe para além do direito e justiça
estatal.
A proposta de descolonização epistémica é transversal às várias áreas do
conhecimento e, nesse sentido, é importante pensá-la no âmbito da sociologia do direito.
O próprio objeto da sociologia do direito foi um dos instrumentos da colonização e da
invenção do outro, construindo-o como inferior, atrasado, primitivo. Vários estudos no
âmbito da antropologia e da sociologia do direito contrariaram a tendência positivista de
sobreposição entre direito, Estado e nação e contribuíram para a queda do mito do
monopólio estatal de criação e administração do direito sem que tenha sido seriamente
questionada a classificação que lhe subjaz. A reflexão e o trabalho empírico no âmbito do
pluralismo jurídico e das teorias da litigação proporcionaram um contributo importante.
No entanto, há um processo de descolonização epistemológica por realizar. Ainda que
esses trabalhos reconheçam a existência de outro direito e outras estruturas jurídicas
para além das modernas, continuam quase sempre a ser analisar o objeto a partir do que
o Estado reconhece ou por comparação ao Estado. O direito estatal e a justiça estatal
tendem a permanecer no centro do mapa e os outros direitos e as outras justiças nas
margens. Des-pensar o direito e a forma como produzimos ciência é um processo que
requer reflexão, mas sobretudo muito exercício até sermos livres das construções que
comprimem o pensamento.
O pensamento pós-abissal é sobretudo um pensamento ecológico que subverte
hierarquias. A sociologia das ausências opera substituindo monoculturas por ecologias.
Partindo dos instrumentos propostos por Boaventura de Sousa Santos para superar o
pensamento abissal, propus a uma sociologia jurídica das ausências e uma ecologia de
justiças. Se o direito moderno replicou a lógica da ciência moderna, a ecologia de justiças
replica a lógica da ecologia de saberes. Recusando a monocultura do direito moderno, a
ecologia de justiças confronta a conceção liberal do direito e da justiça com a diversidade
de direitos e de justiças que existem no mundo. O objetivo é alargar o cânone do direito,
evocando a ideia de copresença radical pela recusa de leituras evolucionistas assentes na
monocultura do tempo linear. Pensar a justiça e o acesso ao direito e à justiça por meio
de uma ecologia de justiças não equivale a aceitar acriticamente como melhores as
95
Capítulo I
práticas que diferem das que são próprias da conceção jurídica moderna, mas colocá-las
num espaço em que a sua credibilidade possa ser discutida e argumentada e as suas
relações com as experiências hegemónicas possa ser objeto de disputa política.
A ecologia de justiças permite estudar, analisar, comparar e estabelecer diálogos
entre instâncias esperadas e inesperadas, novas e velhas formas de direito e de justiça,
bem como instâncias híbridas que se cruzam no espaço entre o Estado e a comunidade;
quer nos países do Norte, quer nos países do Sul, com o objetivo de subverter a
hierarquia do direito moderno e as representações piramidais da sociologia do direito ou
o olhar condescendente da antropologia conservadora. A ecologia de justiças não rejeita
ou desvaloriza o papel do direito estatal, mas reconhece-lhe a incompletude. Tal como
acontece na ecologia de saberes, explora a sua pluralidade interna, nomeadamente as
suas práticas alternativas, e estabelece interações e diálogos horizontais entre formas
jurídicas estais e não estatais. O objetivo é a luta contra o desperdício das experiências
jurídicas com as quais pensar a democratização do acesso ao direito e à justiça e a
transformação das sociedades.
96
CAPÍTULO II – AS JUSTIÇAS COMUNITÁRIAS E A ECOLOGIA DE
JUSTIÇAS
Introdução
97
Capítulo II
apresento uma contextualização histórica, social e política do lugar ocupado pelas justiças
comunitárias no contexto africano e no contexto europeu, nomeadamente da sua relação
com o Estado. Por último, apresento alguns dos debates, mais ou menos inflamados,
sobre o desempenho das justiças comunitárias e o seu papel na promoção do acesso ao
direito e à justiça.
98
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
99
Capítulo II
variados; apelar a diversas ordens jurídicas, a princípios de equidade ou outros e ser mais
ou menos permeáveis à influência do direito e dos mecanismos do Estado. Podem ser ou
não reconhecidas pelo Estado e resultar da iniciativa estatal, da comunidade, de grupos
privados com interesses lucrativos diretos ou indiretos, de qualquer outra iniciativa e
parcerias não antecipáveis. A resolução de conflitos pode ser exercida como atividade
exclusiva ou constituir uma entre outras funções da instância. Como ponto de partida, se
quisermos pensar a partir da metáfora da pirâmide,55 cuja forma hierarquizada não é a
mais adequada ao exercício da ecologia de justiças, as justiças comunitárias seriam
instâncias intermédias, situadas entre os tribunais judiciais e as tentativas de reclamação
direta à outra parte, sempre que cabem na descrição acima.56
Num esforço de combate desperdício da experiência jurídica, procurei uma
definição ampla e flexível com vista a promover uma chegada ao terreno mais livre de
preconceitos, evitar a exclusão de formas de justiça apenas por não encaixarem numa
definição fechada e ter a possibilidade de dar conta de uma paisagem móvel e
diversificada, tantas vezes não antecipável. Como mostrei no primeiro capítulo, a ecologia
de justiças não procura o exótico ou o tradicional. Também não pretende centrar-se
apenas nas estruturas incentivadas ou reconhecidas pelo Estado no âmbito dos seus
processos de informalização. Na categoria de justiças comunitárias cabem novas e velhas
formas de direito e de justiça, bem como instâncias híbridas que se cruzam nas zonas de
contacto entre o Estado e a comunidade; quer nos países do Norte, quer nos países do
Sul; deste lado da linha e do outro lado da linha.
O conceito de justiças comunitárias, por si só, expressa muito pouco e serve apenas
para delimitar um objeto de investigação. A agregação numa única categoria da tão
grande pluralidade que existe para além dos tribunais judiciais não foge a uma certa dose
de artificialidade e não é completamente alheia à lógica binária que contaminou as
ciências sociais e assenta na classificação por ausência ou oposição ao padrão definido
55
Sobre a pirâmide da litigiosidade, ver ponto 3.3. do primeiro capítulo.
56
Neste sentido, exclui-se do objeto de estudo uma instância que resolva um conflito esporadicamente e
num registo de excecionalidade ou não seja reconhecida como competente pelas partes que lhe acedem.
Os linchamentos não são formas de justiça comunitária.
100
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
Ainda que o estudo do pluralismo jurídico e das justiças comunitárias não constitua
uma novidade na sociologia e na antropologia, a abordagem conceptual permanece
vagamente nebulosa. Se o conceito de direito foi e é objeto de acesas discussões,58 a
escolha das categorias que captam as instâncias de resolução que cabem no conceito de
pluralismo jurídico está longe de ser consensual. Em 2003, Wilfried Shärf assumia a
inexistência de uma abordagem teórica dominante e afirmava que cada nova teoria
acrescentava formas de dar sentido ao fenómeno e se vestia de designações que deviam
distingui-la das abordagens anteriores (Shärf, 2003). Mais de uma década volvida, a
situação não se alterou. Dada a artificialidade acima referida, todos os conceitos que
pretendem agregar a diversidade e a heterogeneidade em causa são facilmente alvo de
críticas, na medida em que acabam por ser definidos por oposição ou por defeito em
relação ao cânone - o Estado moderno, o direito estatal, a justiça moderna, a justiça
57
Sobre a lógica da classificação social, ver ponto 2.2 do capítulo I.
58
Sobre as acesas discussões em torno do conceito de direito, ver ponto 3 do capítulo I.
101
Capítulo II
102
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
59
Veja-se o parágrafo com que Abel dá início à obra: “Presentemente, estamos a viver o que pode muito
bem ser uma enorme transformação do nosso sistema jurídico. Os anos recentes têm assistido a invetivas
repetidas contra a expansão dos direitos processuais e substantivos, a distribuição de mais serviços
profissionais jurídicos e a proliferação de instituições jurídicas formais (tribunais, agências regulatórias, etc.)
que caracterizarão o século atual. Neste estádio inicial, os contornos da mudança são incertos e o seu
significado é ambíguo. Os seguintes fenómenos têm alguma coisa em comum: ataque aos profissionais,
Estado e burocracia; chamadas para a desregulação da economia; a defesa da descentralização; exigências
de descriminalização e desjuridificação do comportamento privado (uso de drogas, divórcio);
desinstitucionalização (na educação, no cuidados dos doentes mentais, na limitação e na punição dos
delinquentes e criminosos); preferência pela informalidade na audição das queixas e nos procedimentos
das disputas?” (Abel, 1982: 1) (tradução minha).
60
Sobre as justiças comunitárias em contexto africano e as justiças comunitárias nos países do Norte, ver
ponto 2 do presente capítulo.
103
Capítulo II
uma publicação com o carimbo do PNUD, que pretendia servir de guia geral, definia
acesso à justiça como a “capacidade das pessoas de buscarem e obterem uma solução
através de instituições formais ou informais de justiça, e em conformidade com os
padrões de direitos humanos”. Essa publicação chamava a atenção para o facto de as
reformas da justiça estarem excessivamente centradas na justiça formal e negligenciarem
os sistemas informais e definia uns e outros nos seguintes termos:
Para fins deste artigo, sistema formal de justiça envolve a justiça cível e criminal
e inclui instituições e procedimentos de justiça formais assentes no Estado, tais
como polícia, Ministério Público, tribunais (religiosos e seculares) e medidas
privativas da liberdade.
O termo sistemas de justiça informais será utilizado ao longo deste artigo para
referir mecanismos de resolução de litígios fora do âmbito do sistema de justiça
formal. O termo não se encaixa em todas as circunstâncias, uma vez que
existem muitos termos para descrever sistemas específicos (tradicional,
indígena, costumeiro, restaurativo, popular), e é difícil usar um termo comum
para designar a diversidade de processos, mecanismos e normas que existem
no mundo. O termo sistema de justiça informal é usado aqui para fazer uma
distinção entre os sistemas formais de justiça administrados pelo Estado e os
sistemas de justiça informais não administrados pelo Estado (Wojkowska, 2006:
3).
104
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
diferentes dos que são propostos pela justiça judicial, mas ser formalmente reconhecidas
pelo Estado ou até parte integrante do mesmo. Como nota Aase Gundersen, o que muitas
vezes foi designado por “informal” foram sistemas de justiça com procedimentos
diferentes dos tribunais formais de estilo ocidental, não necessariamente informais. É por
isso que Wojkowska, ao usar o conceito de justiça informal, se vê obrigada a avançar com
um aviso, reconhecendo que o termo pode falhar ao captar até que ponto o Estado está
envolvido, uma vez que a linha que separa o formal do informal pode ser turva. Em
muitos países, afirma Wojkowska, as comunidades que aplicam o direito costumeiro são
reconhecidas e reguladas pelo Estado, sento, nesse sentido “semiformais” (Wojkowska,
2006). Reportando-se ao contexto moçambicano, Gundersen afirma que embora os
tribunais populares moçambicanos usassem procedimentos informais, faziam parte do
sistema formal de justiça, divergindo das instâncias informais da comunidade, como a
família e as igrejas (Gundersen, 1992: 260, 261). Também Helene Kyed e Peter Albretch
têm o cuidado de fazer um reparo quando usam os conceitos de não estatal ou informal.
Embora os considerem úteis para descrever instâncias e ordens jurídicas em situações de
pluralismo jurídico, reconhecem-nos como inerentemente problemáticos, na medida em
que muitas vezes as instâncias referidas por esses conceitos são elementos essenciais ou
integrantes das instituições estatais (Albretch e Kyed, 2011).
Wilfried Shärf argumenta que os conceitos escolhidos refletem a posição dos
investigadores e é crítico da bolsa de termos disponível. Rejeita conceito de
informalidade por denotar uma hierarquia normativa. Para o autor, o conceito de justiça
informal sofre do mal de que padece o termo “não-branco” na categorização racial:
“branco é a norma, não-branco a exceção marginalizada e deslegitimada”. Assim, o autor
opta cautelosamente pelo conceito de ordenamento não estatal por, no seu entender,
não estar ainda marcado por uma lógica depreciativa. O autor refere o trabalho de
Boaventura de Sousa Santos, onde é reconhecido o vasto leque de situações que cabem
no conceito de pluralismo jurídico, variando entre uma maior ou menor ligação ao Estado
e maior ou menor dependência do mesmo. Assim, na categoria de “sistemas de justiça
não estatais” cabe o ordenamento que ocorre fora do controlo imediato do Estado, quer
seja complementar ou oposto ao Estado (Shärf, 2003). O esforço de Wilfried Shärf e
105
Capítulo II
106
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
informal, caracterizado por uma relativa informalidade de rituais e decoro, uma relativa
desprofissionalização da linguagem e dos recursos humanos, local no alcance e limitado
em termos de jurisdição. Em regra, mais do que o “direito estatal”, aplica normas e
preceitos locais e usa lógicas de argumentação assentes no senso comum. As formas de
atuação, o espaço físico e os modos de expressão são semelhantes aos que usa a
comunidade circundante. A língua de trabalho é a língua local. Os fóruns de justiça
popular seguem uma forma de organização e orientação local e modos não burocráticos
de processar os casos. Em regra, a terceira parte não é profissionalizada e dispõe de
formação mínima e, a maior parte das vezes, não é remunerada pelo trabalho que realiza.
Para tomar decisões, prefere-se a conciliação ou o consenso. Os utentes pagam quase
sempre taxas de utilização baixas e não são obrigados a contratar os serviços de um
especialista para os representar. Os tribunais populares encontram-se, em regra, nas
proximidades das habitações dos utentes. Os horários e a duração dos casos são fixados
de forma a adaptarem-se aos ritmos do trabalho e da vida familiar dos utilizadores, bem
como do pessoal que trabalha nesses espaços (Merry, 2003: 41).
Merry concebe a justiça popular como instituição intermédia, situada na fronteira
entre a justiça estatal e a justiça indígena ou local, diferente de ambas, mas vinculada a
cada uma delas. O cruzamento com o sistema jurídico estatal dá-se através da supervisão
dos funcionários estatais, dos apoios económicos do Estado, da competência para aplicar
multas ou penas de prisão, da participação estatal na escolha dos juízes e das formas de
recurso para tribunais superiores. A ligação a outras formas de justiça não estatais,
indígenas ou locais, prende-se com a influência de mecanismos de controlo social e
tratamento dos conflitos na família, na vizinhança ou na povoação e a influência
reinterpretativa das categorias culturais locais. É a estes modos de ordenamento jurídico
que a autora atribui a designação de locais ou indígenas, embora reconhecendo que não
são estáticos, nem alheios à influência da justiça estatal (Merry, 2003: 43, 44).61
Por vezes o que determina o uso de um conceito abrangente em detrimento de
outro não são tanto as diferenças sobre a realidade que classificam, mas suscetibilidades
61Sobre o conceito de regulamentação indígena para o contexto norte-americano, ver abordagem de Marc
Galanter apresentada nos pontos 3.1. e 3.2. do capítulo 1.
107
Capítulo II
semânticas que colocam problemas complexos quando traduzimos conceitos para uma
língua diferente daquela em que foram concebidos. Anne Wyvekens (2008: 30) inicia o
texto de uma coletânea intitulada Justice, Community and Civil Society [justiça,
comunidade e sociedade civil], com a seguinte frase: “a palavra comunidade não é, de
todo, francesa”. No contexto francês, explica, o conceito está ancorado na noção de
“comunidade étnica”, vista, conscientemente ou inconscientemente, como algo não
totalmente civilizado, que, ao sublinhar diferenças entre indivíduos, transmite uma
imagem que a tradição republicana francesa, assente no valor da igualdade, não pode
aceitar. No entanto, argumenta Wyvekens “mesmo que o Estado francês desconfie das
comunidades, tenta, como todo o Estado em todo o lado, pelo menos na Europa,
aproximar-se, digamos, das pessoas”. As sensibilidades semânticas são assumidas por
Shapland, organizadora da obra, ao reconhecer que se para alguns autores e leitores do
livro (especialmente os do Reino Unido) há familiaridade com o termo comunidade e este
é encarado de forma positiva na sua relação com a justiça, a leitura de outros será
completamente diferente (Shapland, 2008: 5). Nesse sentido, Anne Wyvekens, não sem
confessar alguma hesitação, opta por fazer tradução direta do conceito francês “justice de
proximité” e, em vez do conceito de “community justice”, usa o de “proximity justice”
(justiça de proximidade).
As peculiaridades semânticas podem manifestar-se de múltiplas formas.
Reportando-se especificamente aos tribunais comunitários sul-africanos, Wilfried Schärf
justifica o uso da designação “community courts” em detrimento de “people’s courts”, por
esta última estar associada à ideia de justiça violenta, uma imagem difundida pelos meios
de comunicação social a partir do desempenho de alguns tribunais, que se espera serem
hoje uma exceção (Schärf, 1992). Debora Isser (2011), reconhecendo que, em África, o
conceito de justiça tradicional está vinculado à ideia de imobilidade ou de justiça idílica
assente num passado glorificado, opta pelo uso de sistemas de justiça costumeiros (ainda
que o conceito de direito costumeiro tenha sido tão contaminado quanto o de tradição).
A autora recusa o conceito de “justiça não estatal”, uma vez que, por definição, este
exclui as formas locais de justiça que foram oficialmente reconhecidas ou reguladas pelo
Estado ou incorporadas no sistema de justiça estatal; bem como de “justiça informal” que
108
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
não coincide com uma realidade de sistemas complexos e bem desenvolvidos de regras e
procedimentos. Além disso, argumenta a autora, as categorias de “não estatal” e
“informal” têm sido usadas para designar um conjunto de inovações ad hoc que não têm
raízes na história de uma comunidade e distinguem-se portanto das realidades
costumeiras que trata.
Os termos “justiça indígena” e “direito indígena” são ilustrativos de como
determinados conceitos poder conotar realidades muito diferentes consoante a geografia
e o contexto histórico a que se referem. Muito pouco usados em África, onde a lógica de
dividir para reinar e o Estado bifurcado do governo indireto deixaram mal vistas
categorias como “indígena” ou “tribal”, na América Latina estão associados às lutas
emancipatórias contra a monoculturalidade imposta pelos Estados coloniais e ao
reconhecimento da diversidade de cosmovisões alternativas. Como afirma Boaventura de
Sousa Santos, numa dupla publicação sobre o Equador e a Bolívia:
109
Capítulo II
tradicionais e nas não tradicionais os fóruns populares e os fóruns de ADR conduzidos por
ONGs (Stevens, 2001).
Esta breve e seletiva resenha teórica terá mostrado não só a diversidade do campo
teórico como a fragilidade dos conceitos agregadores e das dicotomias analíticas. Como
afirma Santos, as dicotomias podem ser um ponto de partida, desde que fique claro que
elas não constituirão o ponto de chegada. A porosidade jurídica e a interlegalidade
resultam em híbridos jurídicos, isto é, entidades ou fenómenos que misturam ordens
jurídicas ou culturas diferentes e por vezes contraditórias, dando origem a novas formas
de significado jurídico e ação jurídica. Estas hibridações jurídicas desafiam as dicotomias
na medida em que as práticas frequentemente combinam ambos os polos e contêm um
infinito número de situações intermediárias (Santos, 2006b: 46).62
62
Sobre os conceitos de “interlegalidade” e “hibridismo”, ver capítulo I.
110
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
63
A reflexão que apresento neste ponto consiste na atualização de uma revisão de literatura, da análise e
da compilação de dados que venho realizando desde há alguns anos e cujos resultados parciais apresentei
em outros lugares (Araújo S., 2008a e 2008b).
111
Capítulo II
invisibilidade ou a inferioridade do que foge aos seus padrões. Por outro lado, a presença
europeia em África alterou profundamente a paisagem e o rumo da história do
continente ficou definitivamente marcado. Sendo certo que não podemos observar o
continente africano apenas a partir de um lugar de subalternidade – a história é
composta de imposições e resistências - seria absurdo seguir em busca das instâncias
tradicionais perdidas, como se estas não tivessem sido sujeitas ao encontro colonial e
recriadas a partir das condições desse encontro. Compreender os termos e a violência do
encontro colonial e a forma como a pluralidade foi usada para subjugar e inferiorizar os
dominados é fundamental para compreender as opções dos Estados pós-coloniais e as
perceções sobre o pluralismo jurídico contemporâneo em contextos rurais e urbanos.
As sociedades africanas passaram pela experiência de transplantação de um
universo normativo oriundo da Europa que se impôs, não sem violência e sem resistência,
ao mundo que encontrou. Uma parte considerável da legislação estatal africana é
importada da tradição jurídica europeia e as instituições judiciárias são, em grande
medida, influenciadas pelo padrão imposto (Woodman e Obilade, 1995). Esta situação
não significou a introdução de um regime jurídico universal, centralizado, que pôs fim às
instituições que existiam. A teoria do pensamento abissal, exposta no primeiro capítulo,
permite compreender como a existência de um mundo jurídico para os cidadãos e outro
para os indígenas não punha em causa a universalidade das instituições jurídicas
ocidentais. Do outro lado da linha, invisível, arrumava-se o que não alcançara o nível
instituições europeias e não podia por isso ser sujeito às mesmas normas. A lógica da
classificação social assegurou a organização do arcaico, do inferior: as autoridades e
instituições políticas e jurídicas do continente africano foram transformadas em
“autoridades tradicionais”; a pluralidade jurídica e o direito vivo em “direito costumeiro”;
a diversidade cultural em “cultura tradicional”, “exótica” e “local”. Foi assim que a
violência colonial andou a par do reconhecimento de direitos na Europa sem que fossem
questionados os avanços civilizacionais (Santos, 2006b, 2007b).64 O nativo, não é sujeito
de direito, não é sujeito de política, não é cidadão, não existe (Mbembe, 2001; Santos,
2007b).
64
Sobre a monocultura dos saberes e da classificação social e a linha abissal, ver capítulo I.
112
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
Mas como é que uma pequena minoria estrangeira pode governar uma maioria
indígena, explorar o seu trabalho e os seus recursos? Este tipo de preocupações foi
central na organização e reorganização do Estado colonial e as respostas foram
concebidas sob duas variantes principais, dois tipos de resposta às questões da
governação/dominação e da exploração lucrativa: o governo direto e o governo indireto65
(Mamdani 1996, Gentili 1998; O’Laughlin 2000; Meneses, 2012).66 O governo direto
pressupõe a existência de uma única ordem jurídica, assente nas leis da Europa, não
reconhecendo qualquer instituição africana. Os “nativos” obedeciam às leis europeias,
ainda que apenas os “civilizados” acedessem aos direitos europeus. Uma célebre frase de
Cecil Rhodes ilustra na perfeição a lógica que sustenta o pensamento abissal: “direitos
iguais para todos os homens civilizados” (Mamdani, 1996: 16, 17). O governo indireto
assenta na distinção entre não nativos e nativos com base nas ordens normativas e nas
instituições a que estão sujeitos: os primeiros ao direito civil da metrópole e às
instituições da mesma; os segundos aos direitos costumeiros e às autoridades
tradicionais, seletivamente reconstituídos ou criados à medida das necessidades do poder
colonial (Roberts e Mann, 1991; Mamdani, 1996; Gentili, 1998). Em ambas as situações, a
sociedade civilizada distinguia-se da incivilizada e as instituições africanas eram
desqualificadas e reduzidas à categoria do “outro”: no primeiro caso, foram ignoradas; e,
no segundo, embora reconhecidas, foram reconfiguradas e confinadas a um lugar de
subalternidade em relação às instituições europeias. Como afirma Maria Paula Meneses,
as linhas esbatiam-se com facilidade e o objetivo que as movia era o mesmo:
“implementar localmente as normas emanadas pelo centro” (Meneses, 2012: 230).
Em regra, o governo direto é associado às colónias francesas e o governo indireto às
britânicas, uma distinção nem sempre evidente e não totalmente coincidente com a
65
Ao longo de todo o texto, opto pela tradução dos conceitos de “direct rule” e “indirect rule”, em vez da
sua utilização na língua em que foram concebidos. Nesse sentido refiro-me a esses sistemas de governação
e administração como “governo direto” e “governo indireto”.
66
A organização e a reorganização do Estado colonial derivam, no entender de Mamdani (1996), da
resposta àquilo que o autor designa por “questão nativa”, que passa precisamente por saber “como uma
pequena minoria estrangeira pôde governar uma maioria indígena?”. O’Laughlin (2000) acusa Mamdani de
sobrevalorizar a “questão nativa” em detrimento da “questão do trabalho”. No entender da autora é na
exploração económica que se encontra a explicação para os caminhos traçados quer pelos governos
coloniais, quer pelos governos pós coloniais. Ainda que partam de questões diferentes, as suas leituras são
complementares.
113
Capítulo II
114
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
costumeiro por parte dos nativos, a não ser que falhasse no teste da repugnância ou
chocasse com estatutos formais (Roberts e Mann, 1991: 21). Uma agenda de manutenção
dos costumes era, assim, combinada com uma outra de mudança e modernização
(Moore, 1992: 14).
Ao contrário do direito civil, que falava a linguagem dos direitos, as leis costumeiras
falavam a linguagem da tradição, da autenticidade. Cada grupo étnico era forçado a ter o
seu próprio direito costumeiro que, administrado pelo chefe, regulava as relações nas
questões da terra (nomeadamente a sua distribuição), da família e do trabalho. Esta
distinção não era cultural, mas juridicamente imposta pelo Estado colonial. Se a Europa
tinha nações, África era concebida como tendo as suas tribos. Se cada nação europeia
tinha o seu próprio Estado e o seu direito civil, a cada tribo africana correspondia uma
autoridade nativa e um direito costumeiro. A Autoridade Nativa não se aproxima do
modelo político, jurídico e administrativo dos países colonizadores. Desrespeitando o
princípio da separação de poderes, o chefe definia as leis costumeiras e concentrava em
si o que Lord Lugard entendia como os pilares do sistema das administrações nativas: os
tribunais nativos, a administração nativa e a tesouraria nativa. O chefe era, assim o
legislador, o administrador, o juiz e o polícia que prestava contas apenas à autoridade
superior (Mamdani, 1996).
Foram várias as táticas usadas pelos governos coloniais para enfraquecer centros de
poder e autoridade africanos que consideravam hostis ou demasiado autónomos. 67 Se
ambicionavam preservar alguma autoridade, os chefes africanos viam-se obrigados a
aceitar a cooptação no interior do quadro territorial e normativo imposto pelos governos
coloniais. Dessa forma conseguiam “manter parte das prerrogativas do seu estatuto e,
assim, obterem privilégios na distribuição de terras, trabalho, financiamento, acesso aos
mercados, em economias que estavam a mudar” (Gentili, 1998: 290). Alguns chefes
aliaram-se ao poder colonial, outros foram substituídos. Mas, se estes podiam ser
reconstituídos seletivamente na criação das administrações nativas, de acordo com
Gentili, o governo colonial procurava colaborar com chefes legítimos, optando por outros
67
Passaram pela subdivisão dos territórios em unidades mais pequenas com diferentes administradores,
pela deposição e exílio de reis e imperadores, por limitações drásticas dos poderes dos reis e imperadores e
pelo reconhecimento de privilégios a chefes subordinados (Gentili, 1998: 288).
115
Capítulo II
apenas quando tal não fosse possível (idem: 213, 114). Nas comunidades descentralizadas
e democráticas, ou quaisquer outras em que o tipo de autoridades procurado pelos
colonizadores não existisse, a imposição colonial não podia ressoar em algum aspeto da
tradição. Nesses casos, ou era encontrada uma chefia ou tal comunidade era agregada a
outra tribo (Mamdani, 1996: 41; Roberts e Mann, 1991: 21). Como coloca Ana Maria
Gentili: “as ‘tribos’ sem chefes ou conseguiam inventá-los, e sobre territórios bem
circunscritos, ou então arriscavam-se a perder a sua autonomia e identidade” (1998: 214).
A novidade não estava, de acordo com Mamdani (1996), na interpretação ou
recriação do costume por parte dos que controlavam as instituições tradicionais, mas sim
no privilégio da instituição das chefias tradicionais como única autoridade costumeira. A
África pré-colonial não tinha apenas uma autoridade costumeira, mas várias. A maioria
dos africanos movia-se entre múltiplas identidades, definindo-se alternadamente como
súbditos do chefe, de um culto, de um clã, ou de um grupo (Mamdani, 2001: 655; Ranger,
1994: 248). A novidade estava, ainda, no fim das formas de controlo popular a que os
chefes tradicionalmente estavam sujeitos. Dos chefes esperava-se discernimento. Cabia-
lhes governar com sensatez, julgar de forma justa e satisfazer as necessidades do seu
povo. Era comum terem rivais e, caso governassem de forma tirana, deviam esperar a
revolta, a sucessão, a eliminação ou a emigração política (Bennet, 1998; Gentili, 1998:
293; Villiers, 1998).68 Nenhum chefe sensato tomava grandes decisões sem consultar os
conselheiros, que representavam a voz das opiniões correntes. Ao cooptar os chefes para
o governo colonial, o governo indireto pôs fim a este equilíbrio (Bennet, 1998: 14, 15),
dissolvendo as formas indígenas de prestação de contas69 (Olaniyan, 2000: 272). Barbara
Oomen clarifica que, apesar da nova realidade, os chefes nunca puderam negligenciar
completamente as opiniões dos seus súbditos: se não queriam ser assassinados,
68
F. de Villiers (1998: 110) reproduz um episódio conhecido que constitui uma ilustração desta situação.
Trata-se da história Cirha e Tshawe. O primeiro era chefe dos Xhosa; o segundo um mero súbdito. Certo dia,
a população foi caçar e Tshawe apanhou um antílope. Cirha ficou entusiasmado e pediu a porção que, como
chefe, lhe cabia. Thsawe negou, argumentando que o animal era muito pequeno. Lutaram e Tshawe, que
recebera o apoio da população, venceu, tornando-se chefe da população. O tamanho do antílope era uma
questão importante, visto que o chefe teria direito a uma parte de um animal grande. Se este insistia em
receber um pedaço de um animal pequeno, significava intenção de engordar à custa do seu povo. Segundo
a fonte, ainda hoje, todos os Xhosa, mesmo os descendentes de Cirha, concordam que o súbdito tinha o
direito de resistir.
69
“Accountability” no original.
116
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
apedrejados, queimados nas suas casas ou afastados, tinham que manter alguma forma
de legitimidade local (Oomen, 2005: 20).
Quando as decisões deixam de assentar na negociação, passa a ser a força e não a
tradição que torna inteligível os poderes dos chefes. Ainda que o uso da força fosse
proibido em todas as colónias britânicas depois da Primeira Guerra Mundial, a proibição
não era aplicada às autoridades nativas (Mamdani, 1996). Como mencionei, a violência
ficava do outro lado da linha, na zona de invisibilidade que ameaça ou descredibiliza a
continuidade dos princípios definidos pelo Estado central (Santos, 2007). Assim, desde
que fosse considerado costumeiro, era legítimo. Mamdani descreve a situação nos
seguintes termos: “na linguagem do poder, o costume passou a ser o nome da força”
(Mamdani, 1996: 286, 287).
A distinção entre Estados de colonialismo direto e indireto deixa de fazer sentido na
fase tardia do colonialismo. Tejumola Olaniyan argumenta que “África nunca foi a joia da
coroa” e a ideia de missão civilizacional assente no progresso não foi duradoura
(Olaniyan, 2000). Como mostra Mamdani, na altura da corrida a África (Scramble for
Africa), ficou completa a viragem de um colonialismo de missão civilizadora para uma
administração assente na lei e na ordem, do progresso para o poder, com a assimilação
francesa a ficar a par da “associação”, designação que os franceses atribuíram às formas
de governo indireto. Isto não significa que o governo direto fosse totalmente colocado de
lado. As duas formas de dominação – governo direto e indireto – tornaram-se sistemas
complementares de controlo. O governo direto era a forma e poder civil urbano e excluía
os nativos das liberdades garantidas aos cidadãos na sociedade civil. O governo indireto
significava a autoridade tribal rural e garantia a incorporação de nativos numa ordem
costumeira imposta pelo Estado. Para o autor, estas formas de governo são variantes do
despotismo. A primeira assenta num despotismo centralizado, a segunda num
despotismo descentralizado. O Estado era, assim, a face de Janus, bifurcado. Na sua
organização diferenciada entre áreas rurais e urbanas, continha uma dualidade: duas
formas de poder sob uma única autoridade hegemónica. Se o poder urbano falava a
linguagem da sociedade civil e dos direitos civis, o poder rural da comunidade e da
117
Capítulo II
cultura; se o poder civil afirmava defender os direitos, o poder costumeiro prometia fazer
cumprir a tradição (Mamdani, 1996:18).
70
Não só os chefes tradicionais burocratizados ou os administradores e funcionários coloniais fizeram parte
do processo de reconhecimento ou, tantas vezes, de codificação do direito costumeiro. Muitos dos
primeiros antropólogos e etnógrafos, alguns simultaneamente administradores ou funcionários coloniais,
estiveram ao serviço do poder colonial. O famoso livro, de 1938, de Shaphera – Handbook of Tswana Law
and Custom é um exemplo deste tipo de antropologia (Shapera, 1994 [1938]). Sobre esta questão, ver
Oomen (2005: 17), Roberts e Mann (1991: 6) e Mamdani (1996: 129). Sobre os estudos clássicos do
pluralismo jurídico, ver ponto 3.2. do capítulo I.
118
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
A questão não é que a “tradição” seja inventada. Isso é óbvio. O que não é
óbvio é que a tradição tenha sido inventada na perspectiva da modernidade
porque a “tradição” era a diferença colonial para afirmar a ideia da
modernidade (Mignolo, 2003b: 640).
71
Ver, por exemplo, Chanda, 2006: 49.
119
Capítulo II
história toda”. Desde logo, “as invenções coloniais não foram feitas a partir do nada”, mas
“recorreram a um material identitário, que obviamente distorceram, mas que, muitas
vezes, lhes preexistia sob a forma de Estados pré-coloniais, povos, reinos, linhagens,
línguas, etc.” (Santos, 2003: 76, 77).
Também Mahmood Mamdani reconhece que o direito costumeiro não foi
construído a partir do nada, constatando que o costume não era sempre imposto de
cima, inventado ou construído, mas o resultado de uma luta entre várias forças. Coloca,
no entanto, a tónica no contexto institucional em que se trava a luta e este é, no seu
entender, marcado pelo enviesamento a favor das autoridades nomeadas pelo Estado,
que, em última análise, estabelecia os limites sob a forma de uma “cláusula de
repugnância”. Tratava-se de um jogo em que os dados estavam viciados. Mamdani recusa
qualquer ideia de opção, argumentando que não havia nada de voluntário sobre o
costume no período colonial. Para ele “mais do que reproduzido através da sanção social,
o costume colonial era imposto com um chicote por uma constelação de autoridades
costumeiras – e, se necessário, com o cano de uma arma pelas forças do Estado central”
(Mamdani, 1996).
Mamdani e Santos representam duas leituras que, centrando o olhar em aspetos
diferentes do processo de construção dos direitos costumeiros, produzem posições
divergentes quanto ao significado e ao papel das justiças comunitárias nos dias de hoje.
No meu entender, uma abordagem crítica e complementar conduzirá a uma apreciação
mais rica da história, concretamente da construção da realidade jurídica nos períodos
colonial e pós-colonial. É certo que não existia nos momentos das várias independências
um direito tradicional africano puro, aceite igualmente por todos, libertador, que se
opunha ao direito estatal, estrangeiro, imposto. Aquilo que os Europeus definiram como
direito costumeiro foi uma construção, concebida através de uma série de confrontações
entre europeus e africanos, africanos e africanos, europeus e europeus, homens e
mulheres, jovens e velhos, governantes e governados (Starr e Collier, 1989; Roberts e
Mann, 1991; Moore, 1992; Chanock, 1998; Mamdani, 1996, 2001; Nina e Shärf, 2001;
Santos, 2003b). O conceito de co-invenção da colonização (Mbembe, 2001b) evocado no
primeiro capítulo, que nos remete para a ideia de cooptação de membros da população
120
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
72
Sobre o conceito de pluralismo jurídico fraco, ver ponto 3.2. do capítulo I.
121
Capítulo II
genuinamente plural (Mamdani, 1996). No entanto, importa não esquecer, como afirma
Paula Meneses, que “as sociedades sob domínio colonial não eram monolegais antes da
imposição da ordem jurídica colonial”. De acordo com esta autora “a intervenção colonial
foi mais uma fonte de ordem jurídica, ganhando proeminência por conta do seu monismo
jurídico: a ideia de um único sistema de direito indígena, não-ocidental e unificado
fornecia aos administradores coloniais uma visão mais familiar da plataforma legal
presente, em lugar da miríade de sistemas existentes” (Meneses, 2012: 227). Como
aponta Woodman (1998), o reconhecimento estatal de vários direitos não é incompatível
com a existência de uma pluralidade jurídica para lá daquela que o Estado estabelece. Na
linguagem deste autor, o “pluralismo jurídico estatal” não é incongruente com o
“pluralismo jurídico profundo”, ainda que seja necessário diferenciá-los.
Sally Falk Moore (1992), a partir do trabalho de campo que desenvolveu em
Kilimanjaro, mostra como, ao lado das imposições violentas do colonialismo se
desenvolveram estratégias de resposta, embora variáveis no espaço e no tempo. Ainda
que a população de Kilimanjaro não tivesse como rejeitar as estruturas impostas,
nomeadamente os tribunais locais, uma vez que grande parte da gestão diária era
deixada nas suas mãos, a prática tendia a ser adaptada aos fins políticos dos atores locais.
Estes mantinham uma margem de manobra no interior do espaço semi-autónomo, à
parte do qual eram expostos à lógica dos governantes estrangeiros. Se o controlo colonial
dos tribunais nativos deveria ser construído com base nos registos escritos, a deturpação
dos mesmos era gerida de forma a condicionar a informação que chegava às autoridades
coloniais. Assim, o Estado de direito imposto era continuamente frustrado por
irregularidades. Se estas, por vezes, resultavam de ineficiência ou de ausência de
competências, eram também usadas como estratégias de conservação do poder local e
de criação de obstáculos no caminho das autoridades. No entanto, uma vez que a malícia
deliberada carregava implicações políticas inquietantes, as autoridades preferiam atribuir
a situação à incompetência, à ineficiência e à ignorância. Enfatizar a superioridade
colonial era reconfortante quando não se dominava o jogo. A leitura de Morre vai
precisamente no sentido do provérbio mencionado no primeiro capítulo: se são os
caçadores quem conta a história, teremos apenas a sua versão vitoriosa.
122
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
O fim do colonialismo político não resultou numa página em branco, num recomeço
a partir do zero. Na área da justiça, o Estado pós-colonial herdou uma complexa paisagem
que incluía as estruturas tradicionais, resultado de imposições coloniais e processos de
resistência; instâncias que emergiram ou sobreviveram paralelamente a esses processos;
e, ainda, a ideologia moderna em que assenta o Estado de direito a reivindicar a
superioridade do universalismo e do centralismo jurídico. Neste contexto, os Estados
africanos encontraram respostas diferenciadas à combinação entre a “tradição
73
Native Administration Act.
123
Capítulo II
124
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
125
Capítulo II
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As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
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Capítulo II
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As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
129
Capítulo II
debates sobre o direito e o acesso ao direito e à justiça em contexto europeu (Santos et.
al., 1996, Santos, 2000).
Como foi abordado no primeiro capítulo, embora os traços do movimento de
modernização do direito na Europa remontem ao início do século XI, é com o projeto
capitalista liberal que o centralismo jurídico se impõe. O capitalismo liberal cobre todo o
século XIX, embora as três últimas décadas tenham um carácter de transição. Nesse
período, o direito foi transformado num “instrumento dócil da construção institucional e
da regulação do mercado” (Santos, 2000).74
No período que se seguiu, o “capitalismo organizado” concentrou-se nas promessas
da modernidade que podiam ser cumpridas e tentou, através da socialização e da
inculcação cultural, eliminar do universo simbólico da praxis social e cultural aquelas que
não podiam ser cumpridas. Passa a vigorar, enquanto sistema de regulação, o fordismo,
cuja gestão económica e gestão política assentam, respetivamente, no keynesianismo e
no conceito de Estado-Providência. Este modo de regulação baseia-se na convergência do
desenvolvimento do Estado e do princípio do mercado.75 A par da tradicional
componente repressiva do Estado, passa a existir uma componente promocional de bem-
estar. Pode até defender-se que, no período do capitalismo organizado, também se
fortaleceu o princípio da comunidade, na medida em que as políticas sociais assentam
numa noção de solidariedade que se assemelha à obrigação política horizontal de cidadão
para cidadão. No entanto, não se reconheceu o princípio da comunidade, uma vez que
esta solidariedade inter-cidadãos ocorreu sob a égide do princípio do Estado. O impacto
deste modelo de regulação social no direito foi enorme, tendo levado ao
desenvolvimento de novos domínios do direito, como o direito económico, o direito do
trabalho e o direito social. O direito constitucional deixa de ser percebido como um
conjunto de leis inegociáveis, parte de um Estado burocrático e de um sistema político
definido de forma estreita, e passa a existir num terreno de intermediação e negociação
entre interesses e valores sociais conflituantes. Como resultado mais sintomático desta
74
Sobre a cientifização e estatização do direito e sua ligação ao desenvolvimento do projeto capitalista
liberal, ver ponto 3.1. do capítulo I.
75
Sobre a tensão entre regulação e emancipação e os três pilares da regulação, ver ponto 4.1 do primeiro
capítulo.
130
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
76
Estas pressões para a juridificação, tal como definidas por Habermas, estão vinculadas à emergência de
diferentes formas de Estado: O Estado burguês, o Rechtsstaat, o Estado democrático e, finalmente, o
Estado-Providência (Habermas, 1986).
131
Capítulo II
132
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
133
Capítulo II
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135
Capítulo II
136
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
137
Capítulo II
uma melhor gestão dos recursos; o terceiro com a inovação tecnológica e o quarto com a
“elaboração de ‘alternativas’ ao modelo formal e profissionalizado que tem dominado a
administração da justiça”. Para a presente discussão interessam, particularmente, as
inovações que se prendem com a última reforma mencionada. Estas incluem, seguindo os
conceitos dos autores, a justiça alternativa ou informal e a desjudicialização (Pedroso et.
al., 2003: 39-41).
77
Em inglês “ADR” – Alternative Dispute Resolution.
138
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
139
Capítulo II
78
Conhecida como Early Neutral Evaluation.
79
Conhecido como Court Minitrial.
80
Para uma breve sistematização de todas as formas de RAL, ver CPR (1995).
81
Sobre o contexto em que Galanter usa estas expressões, ver pontos 3.2 e 3.3 do primeiro capítulo.
140
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
141
Capítulo II
anos 1970 apresentava algumas anomalias que os otimistas não anteciparam. Por
exemplo, ao contrário das previsões que apontavam no sentido de uma redução do peso
e da dimensão do aparato judicial, este continuou a expandir-se consideravelmente. Por
um lado, aumentou o número de profissionais e para-profissionais, bem como a
complexidade e opacidade do sistema judicial. Por outro lado, estavam por clarificar os
modelos de referência mais apropriados para os tribunais informais, bem como o nível de
sanções que deviam administrar; por que razão o informalismo era entendido como
relevante para alguns casos e não para outros; que formação (se alguma) era necessária
para aqueles que administram os procedimentos; o que constitui prova adequada; ou que
tipo de justiça deveria ser distribuído. As críticas centraram-se em torno de quatro temas.
O primeiro prende-se com a duplicação de esforços, isto é, em vez de se verificar uma
redução da intervenção judicial, deu-se simultaneamente uma expansão dos sistemas
formal e informal, verificando-se, ainda, uma certa formalização do informal que, para
alguns autores, proporciona uma justiça de segunda classe. Os restantes prendem-se com
a ineficiência, a relegitimação do sistema jurídico e a expansão do controlo do Estado
(Mathews, 1988). 82
Para Sally Falk Moore (2001), o movimento de informalização do sistema judicial
americano constituiu um curioso teste para avaliar o gosto da antropologia pelas
instituições informais e, ao contrário do que poderia esperar-se, a antropologia não
revelou uma queda pela informalidade nem foi particularmente otimista, pelo menos no
período em que Mathews identificou a vaga de pessimismo. De acordo com Moore,
embora os RAL tenham sido anunciados como resposta às necessidades dos pobres e de
quem tinha problemas menores, o judiciário só os abraçou por estar sobrecarregado, com
alguns juízes a afirmarem que queriam o “lixo” da litigação fora dos seus tribunais
(Moore, 2001).
Há mais de uma década, Boaventura de Sousa Santos defendia que as reformas que
visam a criação de alternativas constituem uma das áreas de maior inovação na política
judiciária. No entanto, também as suas observações oscilaram entre o otimismo e o
pessimismo. Por um lado, em determinado momento, afirmou que os modelos de
82
Estas críticas serão retomadas e desenvolvidas no ponto 3 do presente capítulo.
142
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
Assim, o autor questiona até que ponto as reformas foram realizadas para
aproximar a justiça dos cidadãos e, nesse sentido, democratizar as sociedades em geral.
Para Boaventura de Sousa Santos, a justiça comunitária tende a prolongar o poder do
Estado. Esse processo faz parte de um movimento mais amplo que decorre da crise do
Estado-Providência e consiste na devolução às comunidades de tarefas que lhe
pertenciam antes de o Estado se apropriar delas e resulta na desresponsabilização
financeira das prestações sociais do Estado sem que a perda do controlo simbólico. Em
1990, o autor afirmava que o Estado estava a expandir-se sob a forma de sociedade civil,
isto é, através de um “governo indireto” que se aproximava do “governo indireto” que o
colonialismo adotou em África para diminuir os custos da administração do império,
envolvendo os nativos da sua própria subjugação ao poder colonia (Santos, 1990: 25).
Apesar da oscilação entre estudos pessimistas e otimistas, na última década a
Europa tem mantido entusiasmo pela informalização. João Pedroso e Patrícia Branco
143
Capítulo II
83
Conselho Europeu de Tampere, 15 e 16 de outubro de 1999, Conclusões da Presidência, n.º 28.
84
Conselho Europeu de Tampere, 15 e 16 de outubro de 1999, Conclusões da Presidência, n.º 30.
144
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
No entanto, não deixam de ser reconhecidas aos RAL outras vantagens relacionadas
com o seu grau de adequabilidade a determinado tipo de conflitos:
85
A diretiva deverá aplicar-se à mediação em conflitos transfronteiriços, mas pode ler-se nas considerações
da diretiva que nada deverá impedir os Estados-Membros de aplicar as disposições estabelecidas nos
processos de mediação internos.
86
Diretiva 2008/62/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de Ministros, de 21 de maio de 2008,
publicada no Jornal Oficial da União Europeia L 136, de 24 de maio de 2008.
145
Capítulo II
87
O acesso ao direito e à justiça tem assumido um lugar central nos estudos levados a cabo pela sociologia
do direito nos países do Norte global (sobre esta questão, ver Pedroso et. al., 2002 e Pedroso, 2011).
Considerado a “pedra de toque dos regimes democrático” (Santos et. al., 1996), trata-se de um direito
humano fundamental, reconhecido em 1948 na Declaração Universal dos Direitos Humanos, reforçado em
1950 na Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, e reafirmado,
em 2005, na Carta Mundial do Direito à Cidade (Branco, 2008). Como realçam João Pedroso e Patrícia
Branco, o acesso ao direito e à justiça não só é, em si mesmo, um direito consagrado, como um meio de
assegurar a proteção de outros direitos e, para ser plenamente vivido, outros direitos devem ser
igualmente protegidos, como o direito à informação, à segurança física, à confidencialidade ou à
privacidade (Pedroso e Branco, 2010).
146
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
147
Capítulo II
grande parte das sociedades do globo. Joanna Stevens, a partir de um estudo sobre o
acesso à justiça na África Subsaariana, aponta como principais problemas da justiça e do
acesso à justiça nessa região: a lentidão processual e as pendências; a distância geográfica
entre os tribunais e os cidadãos; os tipos de decisões alheios às expectativas dos
litigantes; a utilização de uma língua, uma linguagem e procedimentos estranhos aos
cidadãos; as dificuldades de acesso a um representante legal por parte dos litigantes
(Stevens, 2001). Um livro organizado por Boaventura de Sousa Santos e João Carlos
Trindade, resultado de aprofundado trabalho de investigação em Moçambique,
proporciona-nos um retrato da “paisagem da justiça moçambicana” e identifica grandes
bloqueios ao nível do sistema judicial, que se prendem, em grande medida, com a
distância entre os cidadãos e os tribunais judiciais (Santos e Trindade, 2003).
Estudos na área da sociologia judiciária mostraram que as classes mais baixas
tendem a ter mais dificuldades de acesso à justiça. As causas prendem-se com uma maior
distância dos cidadãos à administração da justiça, que se mostra tanto maior quanto mais
baixo é o estrato social. Essa distância não deriva unicamente de fatores económicos, mas
também de fatores sociais e culturais. Os custos económicos incluem, por exemplo, os
preparos e custas judiciais; honorários de advogados e outros profissionais, como peritos;
gastos em transportes; e custos resultantes da morosidade. Estes custos são
proporcionalmente maiores para as ações de pequeno valor, o que vitimiza mais uma vez
as classes populares (Santos et. al., 1996: 486, 487). No que diz respeito aos obstáculos
sociais e culturais, observou-se que os cidadãos com menores recursos tendem a
conhecer pior os seus direitos, tendo mais dificuldades em reconhecer como jurídico um
problema que os afeta e hesitam muito mais que os restantes em recorrer aos tribunais,
mesmo quando reconhecem estar perante um problema jurídico (o que se prende com
experiências negativas com a justiça, explicadas pela diferença de qualidade entre os
serviços advocatícios prestados às classes de maiores recursos e os prestados às classes
de menores recursos e pelo receio de receber represálias em caso de recurso ao tribunal)
(Santos et. al., 1996: 487). Mas, mesmo que reconheçam o problema como jurídico e
desejem recorrer aos tribunais, outras dificuldades podem imperar. De acordo com
Boaventura de Sousa Santos, “quanto mais baixo é o estrato socioeconómico do cidadão,
148
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
menos provável é que conheça um advogado ou que tenha amigos advogados, menos
provável é que saiba onde, como e quando contactar o advogado, e maior é a distância
geográfica entre o local onde vive ou trabalha e a zona da cidade onde se encontram os
escritórios de advocacia e os tribunais” (Santos, 1997: 147-149).
Patrícia Branco aborda a questão da linguagem no âmbito do acesso ao direito e à
justiça e levanta uma questão: “a linguagem do direito: um idioma do outro mundo?”. A
linguagem do direito é efetivamente um elemento crucial que aproxima os que o
dominam e afastam os que lhe são alheios. Como afirma a autora “para o ouvido
treinado, o som do direito é bastante (ou, pelo menos, relativamente) harmonioso, para
os que não compreendem o seu discurso existe a barreira do som, que dá lugar seja ao
silêncio, seja ao ruído”. Esta questão coloca-se não apenas na linguagem das leis, mas na
própria linguagem usada durante os procedimentos judiciais (Branco, 2008). Esta barreira
tende a ser ainda mais problemática quando a língua oficial do Estado, usada nas
instituições judiciárias, não é necessariamente a primeira língua dos cidadãos e das
cidadãs, como acontece, por exemplo, no caso de Moçambique.
A arquitetura é outra das componentes do acesso ao direito e à justiça abordada
por Patrícia Branco, para quem os edifícios dos tribunais transmitem informação sobre a
justiça. A autora apresenta uma leitura semelhante à que nos traz em relação à
linguagem: no edifício do tribunal, as estruturas arquitetónicas e os rituais erguem
fronteiras, transformando o ordinário em extraordinário, aproximando os que estão
familiarizados com o espaço e afastando os que lhe são estranhos. Um tribunal bem
desenhado pode comunicar que a justiça é acessível e que a segurança e a privacidade
são respeitas. Por outro lado, pode enviar outro tipo de mensagens, como as de que as
pessoas não são iguais perante o tribunal, os participantes e o público não têm direito a
compreender os procedimentos e as necessidades do tribunal são mais importantes do
que as necessidades dos cidadãos e das cidadãs. Ainda assim, argumenta Patrícia Branco,
não se pensa muito sobre os espaços em que o direito e a justiça são exercidos, como se a
configuração arquitetónica pudesse ser neutra (Branco, 2010). No mesmo sentido destas
reflexões, Boaventura de Sousa Santos argumenta que mesmo os cidadãos que têm
consciência dos seus direitos tendem a sentir-se impotentes para os reivindicar quando
149
Capítulo II
88
Sobre o trabalho de Marc Galanter, ver primeiro capítulo.
150
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
Existe um conjunto amplo de razões para encarar com otimismo o trabalho das
justiças comunitárias. Desde logo, tendem a assentar em modos de resolução não
adversariais e, nesse sentido, a ser emocionalmente menos penalizadoras. Quando se
trata de relações de vínculo único, estabelecidas entre estranhos, a adjudicação pode ser
o mecanismo adequado. No entanto, se os conflitos decorrem no seio de relações
multiplexas, a continuidade das relações deve ser assegurada.89
Em regra, as justiças comunitárias privilegiam soluções mini-max em detrimento das
soluções de soma-zero. Nestas últimas, também conhecidas como decisões por
adjudicação ou vencedor-vencido, é estendida a distância entre quem ganha e quem
perde. Nas soluções mini-max, o objetivo é maximizar o compromisso entre as
pretensões opostas de modo a que a distância entre quem ganha em quem perde seja
89
Sobre o conceito de relações multiplexas, ver ponto 3.3. do primeiro capítulo.
151
Capítulo II
mínima ou, se possível, nula. A resolução do conflito é deixada nas mãos dos litigantes,
permitindo-lhes percorrer o caminho da resolução e participar na construção da decisão
(Mathews, 1988: 5; Santos et. al. 1996: 48).
As resoluções que recorrem à mediação ou a outros métodos não adversariais
tendem a subverter a separação entre o conflito processado e o conflito real, “separação
que domina a estrutura processual do direito do Estado capitalista e é a principal
responsável pela superficialização da conflitualidade social na sua expressão jurídica”
(Santos, 1988: 22, 23). Como sustenta Carrie Menkel-Meadow, os tribunais dispõem de
“imaginação curativa limitada” e não são necessariamente a melhor solução institucional
para resolver as disputas que continuam a ser-lhe colocadas (Menkel-Meadow, 1996).
Joanna Stevens, a partir do seu trabalho na África subsariana, defende que o tipo de
justiça proporcionado pelos tribunais judiciais pode ser inapropriado, quer em zonas
rurais, quer em zonas urbanas, para resolver litígios em que o quebrar das relações
sociais individuais venha a causar dano na comunidade e a afetar a cooperação
económica de que a comunidade depende. No entender da autora, a justiça comunitária
(administrada por autoridades tradicionais e outras) é mais adequada à resolução de
conflitos entre pessoas que vivem na mesma comunidade e procuram reconciliação e os
tribunais judiciais são apropriados para proporcionar a certeza jurídica e procedimental
dos casos que envolvem penas sérias, como a de prisão, ou quando as partes não
conseguem alcançar o consenso. Assim, os cidadãos devem ter a possibilidade de
escolher a justiça que consideram mais adequada (Stevens, 2001).
152
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
de “justiça doce”, tal observada por Bonafé-Schmitt (1992), isto é, uma forma menos
severa de tratamento dos casos criminais. O conceito de “proximidade geográfica”
prende-se com a distância física entre as instâncias e os cidadãos e cidadãs e tem
configurado uma preocupação permanente desde sempre na história da justiça de
proximidade. Por fim, o conceito de “proximidade temporal” está associado à ideia de
que não basta estar perto, a justiça deve agir de forma rápida (Wyvekens, 2008). Este
triângulo da proximidade tal como definido por Anne Wyvekens – cultura, geografia e
tempo – sintetiza de forma estruturada as vantagens que vêm sendo amplamente
reconhecidas por vários estudos, não só em contexto europeu, mas também no
continente africano. A este triângulo podemos acrescentar o vértice da proximidade
económica, uma vez que, em regra, as justiças comunitárias constituem opções menos
dispendiosas do que os tribunais judiciais.
Reportando-se aos tribunais tradicionais sul-africanos, T, W. Bennet não propõe
uma leitura cor-de-rosa, mas associa os tribunais tradicionais à ideia de fóruns que
correspondam às expetativas culturais dos litigantes. Este autor, ainda que reconheça a
inexistência de estudos empíricos para comprovar se todos os tribunais tradicionais
ascendem a altos padrões, considera que a forma de resolução de conflitos em África é
equivalente, se não melhor, à dos tribunais de estilo ocidental. Numa nota de rodapé do
seu trabalho, Bennet afirma que um indivíduo pode ter maior garantia de justiça
procedimental num tribunal africano do que num tribunal ocidental. No primeiro, na
tentativa de reconciliar as partes, procede-se a um exame demorado de todos os conflitos
e os litigantes dispõem de oportunidade de expor as suas queixas em ambiente familiar.
Em comparação, argumenta o autor, o modelo de resolução de conflitos ocidental,
altamente profissionalizado, tende a alienar e confundir os litigantes (Bennet, 1998). No
mesmo sentido apontam os principais resultados de um projeto de investigação levado a
cabo na Namíbia sobre autoridades tradicionais e resolução de conflitos, onde estas
instâncias revelaram um conjunto de características que permitem fazer uma leitura
otimista: proximidade geográfica e cultural, possibilidade da comunidade participar na
resolução do conflito; baixos custos; uso de linguagem vernacular e alívio processual dos
tribunais (Hinz, 2006: 13).
153
Capítulo II
154
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
155
Capítulo II
Uma outra ordem de críticas, e provavelmente a mais enfatizada nos debates sobre
o pluralismo jurídico, prende-se com as assimetrias de poder das sociedades e a alegada
incapacidade das justiças comunitárias para as anularem. Por trás de uma máscara de
neutralidade, as instâncias comunitárias podem servir para reforçar desigualdades e
promover “compromissos” que beneficiam a parte mais poderosa. Desde o início da
discussão sobre os processos de informalização europeus e norte americanos, foi
assinalado o perigo de mover os conflitos de família para a esfera informal e todas as
situações em que as partes apresentem diferenças estruturais de poder, como acontece
nos litígios entre senhorios e inquilinos ou consumidores e comerciantes. Em tais casos, a
mediação pode tornar-se repressiva, porque carece de poder coercitivo para neutralizar
as diferenças de poder entre as partes. É, por isso, necessário ter em atenção se a solução
final resulta de um mútuo acordo ou da vulnerabilidade dos participantes (Santos, 1982;
Mathews, 1988).
Muitos autores denunciam o que veio a ser designado por “ideologia da harmonia”,
acusando os defensores da justiça informal ou alternativa de negarem a assimetria de
156
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
157
Capítulo II
Estas questões remetem-nos para toda a discussão do primeiro capítulo. Tal como a
alegada universalidade do conhecimento científico, a universalidade dos direitos
humanos é uma falácia que mascara o facto serem um localismo globalizado. Os direitos
humanos são parte importante da expansão da visão moderna do individuo e da
sociedade (Merry, 2006). Foram criados com base em pressupostos ocidentais e liberais e
em conformidade com as expetativas do direito moderno (Santos, 2009a). Na mais
recente formulação de Boaventura de Sousa Santos, a hegemonia de que gozam os
direitos humanos assenta em quatro ilusões: a ilusão teleológica impede-nos de perceber
a contingência do passado e do presente, que em cada momento histórico houve
diferentes ideias em competição e que a vitória dos direitos humanos é um resultado
contingente que pode ser explicado a posteriori mas não podia ser previsto; a ilusão do
triunfalismo, a ideia de que os direitos humanos são um bem humano incondicional,
assume que todas as outras gramáticas de dignidade humana que competiram com os
direitos humanos eram inerentemente inferiores, não tomando em consideração o
verdadeiro génio histórico da modernidade, isto é, o facto de ter sabido complementar a
força das ideias que servem o seu interesse com a força das armas; a ilusão da
descontextualização, ignorando que os direitos humanos foram usados como linguagem
emancipadora de revoluções, mas também para justificar práticas opressivas e contra-
revolucionárias; e a ilusão do monolitismo, que nega as tensões e contradições internas
das teorias dos direitos humanos, por exemplo, entre direitos individuais e direitos
coletivos (Santos, 2013a).
A problematização da alegada universalidade dos direitos humanos não os torna
irrelevantes. O direito é um lugar de contestação e os direitos humanos internacionais
têm potencial para serem apropriados localmente de forma criativa e interligada com
outras ordens normativas (Merry, 2006; Wilson, 1997; Araújo S., 2008a). Observadores
locais e académicos reconhecem os tons imperialistas que muitas vezes acompanharam o
discurso dos direitos humanos e as propostas descontextualizadas, hegemónicas e
contraproducentes, nomeadamente na luta pela igualdade género. Muitas dessas
estratégias reproduzem a imagem do sujeito nativo como civilizacionalmente atrasado e
representam a mulher não ocidental como vítima de uma cultura inferior. Os conceitos de
158
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
159
Capítulo II
defende que uma investigação sobre a posição jurídica da mulher não pode limitar-se à
legislação e aos registos escritos dos tribunais, sendo necessário recorrer aos métodos da
sociologia e da antropologia, como a observação participante e as entrevistas. A autora
sugere a utilização da perspetiva do ator, cuja abordagem conduz a uma análise do
pluralismo jurídico em termos da coexistência de normas jurídicas, sociais e económicas,
valores e instituições que proporcionam aos indivíduos e aos grupos um conjunto de
opções e dilemas quanto à forma de alcançar os seus objetivos e tem em conta os
processos de negociação contínuos na aplicação do direito. Esta abordagem não observa
a mulher como vítima passiva do patriarcado, conferindo-lhe oportunidade de agir como
agente de mudança. Hellum ressalva que não se espera que as mulheres e os homens
sejam totalmente livres para mudar as regras que afetam as suas posições sociais. A
escolha de ação pode ser limitada pela estrutura jurídica, pela estrutura religiosa, ou pela
estrutura económica em que as pessoas sentem, vivem e agem. O enfoque da análise
passa assim a ser nos diferentes atores e nas suas possibilidade limitadas com vista a
promoverem os seus objetivos e as suas metas (2004).90 Têm sido realizados vários
trabalhos empiricamente fundamentados que analisam o papel das justiças comunitárias
e do pluralismo jurídico no acesso ao direito e à justiça das mulheres. Alguns apresentam
conclusões otimistas, outros são menos confiantes no papel das instâncias comunitárias e
por vezes, pode afirmar-se, nas capacidades das próprias mulheres (Hirsch, 1998; Griffiths
A., 1997; Khadiagala 2001; Osório e Temba 2003).91
Anne Griffiths, uma das investigadoras que tem conduzido trabalho mais
interessante nesta área, afirma que assumir automaticamente que a justiça informal
90
Hellum (1995) dá como exemplo um caso estudado por uma equipa da WLSA no Botswana para mostrar
como os processos de transformação do costumeiro e das relações de género contêm elementos de velhos
conceitos jurídicos e valores associados combinados com novas práticas e novos valores associados: muitas
mães solteiras abordam os tribunais dos chefes tradicionais com vista a requererem pensão de alimentos
do pai da(s) criança(s). De acordo com o direito costumeiro “in the books”, as mulheres não têm capacidade
jurídica, nem direito a um pedido individual por pensão de alimentos. No entanto, muitos chefes
concederam às mães solteiras o direito a pensões de alimentos consideráveis dentro do quadro conceptual
dos danos por sedução. Esta prática representa continuidade com práticas anteriores, em que o pai da
criança era responsabilizado pelos seus atos. No entanto, houve uma alteração substancial, na medida em
que os danos por sedução eram um tipo de acusação originalmente feita para compensar o pai da mulher
solteira devido à diminuição do valor do lobolo da filha. Assim, os tribunais tradicionais recorrem
indiretamente a dois princípios do direito estatal, o princípio da maioridade legal e o princípio do direito
individual de reivindicação de pensão de alimentos.
91
Para uma abordagem detalhada destes estudos, ver Araújo S., 2008a.
160
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
161
Capítulo II
ser transferida depois para um chefe tradicional. Essas transferências ocorrem, em regra,
quando uma mulher não fica satisfeita com a decisão de uma instância e procura retificar
a situação procurando outro. Assim, na vida das mulheres e das famílias, a divisão formal
entre direito costumeiro e Common Law faz pouco sentido na medida em que assentam
numa mistura dos dois (Griffiths A., 1997, 1998; Hellum, 1998).
Como afirma Abdullahi An-Na’im, é necessário reconhecer a tensão inerente à
noção de universalismo dos direitos humanos, em vez de a desvalorizar ou ignorar. No
seu entender é possível a mediação entre a igualdade e a diferença, desde que
reconheçamos que as culturas envolvem mudança; são sujeitas a diferentes
interpretações, quer por parte dos seus membros, quer por parte de pessoas de fora; e
que o valor e o significado que uma determinada cultura proporciona à vida dos que nela
participam variam entre os membros dessa cultura. É ainda, importante reconhecer que
as culturas são influenciadas, direta e indiretamente, por outras culturas; e que membros
de uma dada cultura podem ser expostos ou ter acesso a outras culturas e até participar
enquanto membros noutras culturas. Isto é particularmente verdade sob as condições
presentes de globalização crescentemente intensiva (An-Na’im, 2002: 35). Se aplicarmos
estes princípios sobre as culturas à análise do pluralismo jurídico, reconhecemos um
conjunto de características do pluralismo jurídico que complexificam a questão, mas têm
obrigatoriamente que ser levados em consideração: os direitos não são estáticos, têm
diferentes interpretações no interior e no exterior dos grupos a que pertencem, um
direito está sujeito a influências de outros direitos e as personalidades jurídicas dos
indivíduos são compostas por vários direitos. Todas estas tendências têm vindo a ser
fortalecidas com a intensificação da globalização.
162
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
163
Capítulo II
mental, escolas – e permeie a sociedade (Abel, 1982: 6). Para Richard Abel, o principal
objetivo das instituições informais é o controlo social e a expansão do Estado para esferas
que tendem a fugir à sua área de penetração. Segundo o autor, enquanto as instituições
formais são largamente passivas e reativas, as instituições informais podem ser
propositivas e proactivas. Passam por cima das clássicas distinções liberais entre o público
e o privado, o Estado e a sociedade civil, o que é permitido e o que não é e, de forma a
cultivarem a sua expansão, cultivam uma aparência não coerciva. Assim, a retração de
aspetos manifestamente coercivos do controlo foi um complemento necessário da
expansão de mecanismos de coerção menos óbvios (Abel, 1982: 5, 6). Para Peter
Fitzpatrick, a ideia de uma justiça informal que se opõe à justiça formal é um mito, sendo
que a primeira “não é mais do que a extensão da regulação formal, a sua máscara ou o
seu agente” (Fitzpatrick, 1992: 199). Boaventura de Sousa Santos, referindo-se, tal como
os anteriores, às mudanças ocorridas nas sociedades ocidentais a partir das décadas de
sessenta e setenta, afirma que o Estado, ao informalizar-se, assumindo um formato que
se aproxima do de governo indireto, “tenta cooptar as relações sociais continuadas”, isto
é, tende a articular o “poder cósmico” (poder centralizado, fisicamente localizado em
instituições formais e hierarquicamente organizado) com o poder caósmico (poder
inerente às relações e interações sociais sempre que estas são desiguais ou assimétricas).
O primeiro é um macro-poder que corresponde à conceção tradicional do poder jurídico-
político e encontra a sua mais completa concretização no poder estatal. O segundo é um
micro-poder presente na família, na fábrica, na escola, na igreja, no clube, etc. É um
poder caótico, sem centro, sem localização específica. Ao informalizar-se, o Estado tenta
cooptar o poder coercitivo desenvolvido no domínio das “relações sociais continuadas”:
Na medida em que o Estado consegue, por esta via, controlar acções e relações
sociais dificilmente reguláveis por processos jurídicos formais e integrar todo o
universo social dos litígios decorrentes dessas acções e relações no
processamento informal, o Estado está de facto a expandir-se. E expande-se
através de um processo que na superfície da estrutura social surge como um
processo de retracção. O que parece ser deslegalização é na verdade
relegalização. Por outras palavras, o Estado está a expandir-se sob a forma de
sociedade civil […]. E porque o Estado se expande sob a forma de sociedade
civil, o controlo social pode ser executado sob a forma de participação social, a
violência sob a forma de consenso, a dominação de classe sob a forma de acção
comunitária (Santos, 1982: 28-29).
164
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
92
Para uma análise mais aprofundada deste processo, ver Araújo S., 2008b.
165
Capítulo II
166
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
93
Veja-se, por exemplo, os autores incluídos numa das publicações mais recentes: Lauren Benton, Brian Z.
Tamanaha, David Kinley, Sally Engle Merry, Daniel Adler, So Sokbunthouen, H. Patrick Glenn, William
167
Capítulo II
Twining, Gordon R. Woodman, Kanishka Jayasuriya, Doug J. Porter, Julio Faundez, Christian Lund Varun
Gauri, Meg Taylor, Nicholas Menzies, Deborah H. Isser (Tamanaha et. al., 2013).
94
Ver website Justice for the Poor. Promoting equity and managing conflict
development: http://go.worldbank.org/IMMQE3ET20.
95
O conceito de pobreza está associado a um paradigma de desenvolvimento neoliberal que faz recair
sobre o indivíduo ou grupos de indivíduos a responsabilidade da sua condição e a possibilidade de sair dela,
sem se colocar em causa o sistema em si. Os programas de apoio à pobreza são pensados no quadro de um
sistema, devendo funcionar para o pleno desenvolvimento do mesmo e não numa perspetiva de que é o
próprio sistema capitalista que funciona por via da criação de desigualdades e da exclusão. A este
propósito, veja-se um excerto da “Conversa do Mundo” entre Leonardo Boff e Boaventura de Sousa Santos,
realizada no âmbito do projeto ALICE no dia 9 de outubro de 2012:
Boaventura de Sousa Santos – Isto é, eu tenho uma visão, realmente durante muito tempo lidei com
conceito de desenvolvimento alternativo, desenvolvimento sustentável, desenvolvimento integral, todos
estes adjetivos que nós fomos acrescentando ao conceito de desenvolvimento para o tornar mais agradável
e enfim, no fundo mais aceitável. A verdade é que o conceito de desenvolvimento não se liberta nunca do
conceito de crescimento e portanto no fundo e nunca se liberta do conceito de que a natureza é um recurso
natural e que está à nossa disposição incondicionalmente e que no fundo é inesgotável, portanto os
movimentos indígenas, as lutas sociais dos últimos 20 anos vieram trazer um outro paradigma que não é o
desenvolvimento alternativo mas a alternativa ao desenvolvimento.
Leonardo Boff – Exacto, perfeito.
Boaventura de Sousa Santos – Então aparece não a prosperidade mas o viver bem, o que é viver bem, não é
viver melhor, não é a acumulação de bens é uma vida em que nós por exemplo acabemos com o conceito de
pobreza, por exemplo os povos indígenas, é curioso as línguas quéchua não têm conceito de pobreza por
exemplo, as línguas ameríndias, porque a pobreza é sempre coletiva, e é resultado de uma catástrofe, de
uma inundação, de uma seca, não há pobreza individual, e portanto nós não saímos nesta transição deste
modelo, pelo contrário aprofundamos o modelo e justificamos, a destruição da natureza, a destruição dos
povos indígenas o suicídio coletivo deles é tudo parte de darmos bem-estar à grande maioria e a maioria
quer a bolsa família, quer a minha casa minha vida paciência os indígenas são um estorvo acabemos com
eles, é possível o meu problema é o equilíbrio, porque se a gente, um certo equilíbrio como se dá uma
transição mas era para o pós-extrativismo isto é para uma economia que não dependesse tanto da extração
dos bens dos recursos naturais que afinal não têm nenhuma transformação, a maior parte do lucro vai para
168
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
o estrangeiro e que deixam o país mais pobre e as populações mais desamparadas no futuro, quando este
boom desaparecer, não é? (Boff e Santos, 2012).
169
Capítulo II
justiça não responde a reformas e ações de capacitação impostas de cima para baixo e
procura-se outras soluções através da justiça informal para promover a estabilização do
Estado de Direito.
Este entusiasmo pela justiça informal não é prerrogativa do Banco Mundial. As
Nações Unidas, através das suas agências e organismos, como a UNICEF, o PNUD ou a UN
Women têm defendido que está na hora de integrar os sistemas de justiça informal em
programas de desenvolvimento amplos que incluam a promoção dos direitos humanos e
o acesso à justiça para todos/as. Uma publicação já citada com o título Informal Justice
System admite a centralidade dos sistemas informais de justiça, reconhecendo a sua
acessibilidade e a capacidade para providenciarem soluções mais baratas, rápidas e
culturalmente relevantes. Nesse sentido, assume a importância de aprofundar o
conhecimento sobre os sistemas informais e a forma de interagir com os mesmos com
vista fortalecer os direitos humanos, o Estado de direito e o acesso à justiça,
manifestando claramente a inadequabilidade das abordagens one-size-feets-all. É
manifesta a preocupação com as violações dos direitos humanos, embora se reconheça
que o problema se coloca também ao nível da justiça formal, afirmando que os dois tipos
de sistemas “podem violar direitos humanos, reforçar a discriminação e negligenciar
princípios de procedimentos justos” (UN Women, PNUD, UNICEF, 2012).
Este estudo de 2012 não surgiu de um vazio. Em 2006, uma publicação com a
chancela do PNUD, argumentava sobre a importância da justiça informal e a necessidade
de envolver estes sistemas de justiça em programas abrangentes de promoção do acesso
à justiça. Tal como o relatório anterior, mostra preocupação com as situações de
discriminação, em particular contra a mulher, mas argumenta que a solução não passa
por ignorar a relevância dessas instâncias, defendendo a criação de iniciativas graduais
que melhorem os padrões de justiça, enfatizando a inexistência de uma solução geral e a
necessidade de pensar soluções específicas para cada problema. No entanto, afirma a
importância de promover aprendizagens entre países com experiências semelhantes,
nomeadamente em países em desenvolvimento (Wojkowska, 2006). O relatório de 2012
de alguma maneira vai ao encontro desta sugestão. Recolheu dados qualitativos e
quantitativos em 7 países (Bangladesh, Equador, Malawi, Niger, Papua Nova Guiné e
170
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
Uganda) e a analisou literatura de outros doze, produzindo um registo das práticas dos
sistemas de justiça informal e de interação com os mesmos, nomeadamente no âmbito
dos programas de reforma de justiça (UN Women, PNUD, UNICEF, 2012).
É difícil perceber o significado real deste interesse internacional sobre as justiças
comunitárias e que impacto irá ter ao nível local. Chegou o momento valorizar de facto o
pluralismo jurídico ou esta é apenas uma forma mais eficiente das instituições
internacionais alcançarem os objetivos que lhes escaparam no passado? Será que o Banco
Mundial descobriu o que o colonialismo inglês sempre soube? O Banco Mundial pretende
usar as justiças comunitárias como o “Cavalo de Troia” das suas políticas de construção
de um mundo favorável aos grandes negócios capitalistas e à extração de recursos? Serão
promovidos diálogos amplos e democráticos para discutir com a população as normas e
os procedimentos de interação com as instâncias como é sugerido num dos relatórios? As
justiças comunitárias tenderão a desvirtuar-se, democratizar-se ou encontrarão formas
de passar relativamente à margem deste processo? Será um entusiasmo de curto ou de
longo prazo? Caminhar-se-á para a horizontalidade da diferença ou trata-se de uma
concessão intermédia até se chegar onde se quer: um Estado de direito à imagem e
semelhança do modelo de Estado ocidental? Um discurso que opta por reconhecer a
diversidade desde que não contradiga os direitos humanos, sem questionar em algum
momento o processo de construção dos direitos humanos, aproxima-se mais de uma
estratégia de compromisso (quando já se percebeu que a imposição a partir de cima não
resulta) do que uma disposição real para estabelecer um diálogo cultural e jurídico
destituído de hierarquias. A visão do programa The World Justice Project, uma
organização independente que promove o avanço do Estado de Direito, expressa no
parágrafo que abaixo transcrevo reforça a escolha de uma posição mais cética do que
otimista:
171
Capítulo II
96
The World Justice Project, “Informal Justice”: http://worldjusticeproject.org/factors/informal-justice.
172
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
A realidade não deve ser comprimida para caber em conceitos, mas estes devem ser
capazes de se adequar e expandir para abarcar a realidade. O conceito de justiças
comunitárias foi definido de forma ampla com o objetivo de permitir ver, escutar e sentir
o terreno e perceber quais as instâncias que nele atuam. Uma categoria estreita tenderia
a reduzir as experiências, invisibilizando estruturas relevantes por não encaixarem na
moldura. O conceito de justiças comunitárias é uma categoria de partida, uma ferramenta
intermédia, que, por si só, expressa muito pouco, servindo apenas para delimitar um
objeto de investigação. A agregação numa categoria da tão grande pluralidade que existe
para além dos tribunais judiciais não foge a uma certa dose de artificialidade e não é
completamente alheia à lógica binária que contaminou as ciências sociais e assenta na
classificação por ausência ou oposição ao padrão definido pela modernidade.
Reconhecendo esta fragilidade, espero superá-la com o mapeamento das instâncias.
Optei pela designação de justiças comunitárias em detrimento das categorias criadas por
oposição ao Estado ou ao cânone da modernidade, como informais, não estatais,
alternativas ou tradicionais.
A história das justiças comunitárias assume contornos substancialmente diferentes
no âmbito dos dois continentes em questão. No contexto africano, importa ter presente
os termos e a violência do encontro colonial e a forma como a pluralidade foi usada para
subjugar e inferiorizar os dominados. Conhecer os percursos é fundamental para
compreender as opções dos Estados pós-coloniais na área da justiça, bem como as
perceções atuais sobre o pluralismo jurídico, seja em contextos rurais ou em contextos
urbanos. As designadas autoridades tradicionais que sobrevivem hoje na paisagem
jurídica africana – por vezes, ainda classificadas como instituições originárias - foram
cooptadas e transformadas pela colonização europeia no âmbito da estratégia do
governo indireto para controlar e explorar a população. Não só foram adulteradas como
associadas a uma lógica de apartheid, a uma justiça de segunda classe. Ainda assim, em
muitas situações, a resistência assumiu formas subtis e a legitimidade das autoridades
173
Capítulo II
174
As justiças comunitárias e a ecologia de justiças
175
CAPÍTULO III – CAMINHOS METODOLÓGICOS DA ECOLOGIA DE
JUSTIÇAS
Introdução
177
Capítulo III
178
Caminhos metodológicos da ecologia de justiças
Pretendi abordar contextos marcados de forma diferenciada pela história com vista
a captar a máxima diversidade. Optei por dois países com relações distintas com o projeto
da modernidade e onde este se impôs em momentos diferentes e no âmbito de
processos distintos: um país africano, colonizado até aos anos 1970, com larga tradição
das designadas justiças costumeiras ou tradicionais, cujo relacionamento com o Estado foi
sendo transformado ao longo do tempo e dos processos políticos atravessados; e um país
europeu onde a história do Estado moderno é mais antiga e consolidada e em que podem
ser identificados traços dos recentes processos de informalização na área da justiça. A
heterogeneidade que caracteriza os dois países foi determinante na escolha, pois
permitiu-me antecipar realidades complexas e dinâmicas que não correspondem
necessariamente à linearidade das narrativas modernas sobre a justiça. Moçambique é
um país com um Estado profundamente heterogéneo em que coexistem diferentes
lógicas de regulação e cuja atuação vai além do que o próprio define e controla. Portugal,
apesar de uma longa história de país colonizador e de ter sido centro de um vasto
império, nunca coube plenamente na categoria de país moderno e central, assumindo
características que o aproximam das sociedades centrais do Norte e outras partilhadas
com os países periféricos do Sul. A minha familiarização enquanto investigadora com os
contextos de Moçambique e Portugal, que facilitava a aproximação ao terreno e uma
abordagem mais aprofundada, foi também relevante na escolha.
Como mostrei nos capítulos anteriores, o pluralismo jurídico vive dias de
popularidade nos países que sofreram processos de colonização política no passado. Na
Europa, os estudos sobre justiças comunitárias têm tido alguns adeptos que optam
sobretudo por análises e comparações legislativas, não sendo frequentes as abordagens
sobre as rotinas. No contexto de Moçambique, a grande maioria das investigações sobre
179
Capítulo III
este tema centra-se nas autoridades tradicionais e nos tribunais comunitários e aborda
zonas rurais ou periferias urbanas.97 No âmbito dos argumentos que sobrepõem justiças
comunitárias com justiça de segunda classe está latente a ideia de que as justiças
comunitárias crescem sobretudo devido à ausência do Estado e portanto nas zonas mais
remotas. Ainda que essa perspetiva seja apresentada sobretudo nos trabalhos que se
debruçam sobre o continente africano, as minhas primeiras hipóteses estendem-se aos
dois contextos e apontam noutro sentido:
[hipótese 1] A compreensão da justiça a partir da ecologia de justiças excede as
dicotomias modernas oficial/não oficial, formal/informal ou tradicional/moderno,
revelando não só a uma grande heterogeneidade da realidade, como a existência de
múltiplos híbridos jurídicos que não cabem em tais compartimentos.
[hipótese 2] Em Moçambique e em Portugal, as justiças comunitárias
desempenham um papel relevante mesmo em locais em que os tribunais judiciais se
encontram fisicamente próximos dos cidadãos e são mais amplos os círculos da sociedade
civil íntima e da sociedade civil estranha. Aqui se encontra a principal razão da escolha de
contextos urbanos, nomeadamente os centros de cada uma das capitais dos respetivos
países: o Distrito Municipal n.º1 (DM1) da cidade de Maputo, recentemente renomeado
como KaMpfumo; e o concelho de Lisboa.
No momento em que, a Sul, o pluralismo jurídico assume um lugar relevante nas
discussões académicas e políticas e, a Norte, continuamos a ouvir discursos de
valorização dos designados mecanismos de resolução alternativa de conflitos, assistimos
a uma efetiva valorização e a um real incentivo estatal das justiças comunitárias em
ambos os contextos? Qual o papel desempenhado pelo Estado moçambicano face à
miríade de ofertas de justiça local e qual o papel do Estado português face à sua própria
realidade? Existe diferença entre o papel desempenhado pelo Estado nas capitais e no
restante território?
97
Eu própria participei num amplo projeto de investigação sobre a justiça em Moçambique, tendo
trabalhado nos distritos de Macossa e Angoche, bem como em dois bairros da periferia de Maputo (Araújo
S., 2008, 2009, 2012). Esse amplo projeto de investigação, que serviu de base à elaboração de uma
proposta de reforma da justiça, foi realizado em parceria pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de
Coimbra e pelo Centro de Formação Jurídica e Judiciária de Moçambique. Coordenado por Boaventura de
Sousa Santos e João Carlos Trindade, foi conduzido por uma equipa binacional, envolvendo vários
investigadores/as de ambas as instituições.
180
Caminhos metodológicos da ecologia de justiças
181
Capítulo III
98
Riccardo Campa faz uma revisão da discussão que envolve o tema a partir dos desenvolvimentos de
Merton ao longo de várias décadas de investigação, que culminaram com a publicação da obra em co-
autoria com Elinor Barber, intitulada The Travels and Adventures of Serendipity (Merton e Barber, 2004;
Campa, 2008).
182
Caminhos metodológicos da ecologia de justiças
183
Capítulo III
184
Caminhos metodológicos da ecologia de justiças
desenhei um mapa satisfatório para avançar na verificação das minhas hipóteses. Assumo
com convicção que mapeei as justiças comunitárias mais relevantes de ambos os
contextos.
185
Capítulo III
níveis de desenvolvimento dos dois países ou avaliar qual deles proporciona as melhores
soluções, mas sim conhecer a diversidade, tendo em vista um horizonte virtual de co-
aprendizagem. Assim, analisei três instâncias em Maputo e apenas duas em Lisboa, uma
vez que, no primeiro caso, a diversidade e a complexidade justificou um esforço acrescido
e uma dedicação ao terreno mais prolongada. Partindo dos objetivos do trabalho e dos
critérios pré-definidos, selecionei para a segunda fase da investigação as seguintes
instâncias: 7ª Esquadra da Cidade de Maputo, Gabinete Modelo de Atendimento à
Mulher e Criança Vítimas de Violência e Associação Nós Por exemplo (distrito de
KaMpfumo); e Julgado de Paz e Sistema de Mediação Pública Familiar (concelho de
Lisboa).
Um conjunto de hipóteses ajudou a conduzir este segundo momento da
investigação:
[hipótese 5] As justiças comunitárias, no seu conjunto tendem a proporcionar uma
justiça mais próxima e, no uso seletivo que os cidadãos e as cidadãs fazem das mesmas
no âmbito das possibilidades de forum shopping, a democratizar o acesso ao direito e à
justiça. A variável da proximidade pode desdobrar-se em proximidade geográfica,
humana, económica e visibilidade. [hipótese 5.1.] Na ausência de justiças comunitárias
com uma longa história, as justiças comunitárias que emergem em zonas de contacto,
espaços híbridos que cruzam elementos do Estado e da comunidade e onde é maior a
interlegalidade, tendem a ser socialmente mais visíveis do que as instâncias criadas
unilateralmente por iniciativa do Estado ou por agências da comunidade a partir de
modelos importados. [hipótese 5.2.] A proximidade humana e económica tende a ser
transversal às várias instâncias independentemente da iniciativa de criação das mesmas e
do lugar onde surgem. [hipótese 5.3.] A visibilidade da instância tende a ser mais
determinante na procura da instância do que as restantes variáveis da proximidade ou o
grau de satisfação com as soluções alcançadas.
[hipótese 6] Os processos de resolução de conflitos das justiças comunitárias
diferem da adjudicação e apresentam semelhanças e diferenças entre si. Esta hipótese é
desdobrada em quatro: [hipótese 6.1.] os mecanismos de resolução de conflitos usados
pela generalidade das justiças comunitárias permitem a resolução de litígios não
186
Caminhos metodológicos da ecologia de justiças
judiciáveis, i. e., da procura suprimida que não chega aos tribunais, e tendem a subverter
de forma desigual a distância entre o conflito real e o conflito processado; [hipótese 6.2]
as justiças comunitárias recorrem de forma variável às três componentes estruturais do
direito (retórica, burocracia e violência) e [hipótese 6.3] ao uso criativo de interlegalidade;
e [hipótese 6.4] divergem no grau consensualidade das soluções alcançadas.
[hipótese 7] Enquanto palcos de reivindicação de direitos, o potencial das justiças
comunitárias para transformar as sociedades é também diferenciado. Neste sentido,
defino duas sub-hipóteses: [hipótese 7.1] As justiças comunitárias, de iniciativa estatal ou
da comunidade, reguladas pelo direito estatal tendem a promover soluções adequadas à
continuidade das relações multiplexas, garantindo a paz social e subvertendo as
desigualdades de poder, sem desafiar, acrescentar ou transformar a ordem jurídica do
Estado moderno. [hipótese 7.2] Nas justiças comunitárias que emergem das zonas de
contacto, as soluções negociadas com base em elementos jurídicos modernos e locais, se
por um lado podem reproduzir desigualdades de poder; por outro, podem transformar as
relações sociais, compensando a colonialidade do direito estatal moderno e as
desigualdades decorrentes do patriarcado presente no direito doméstico e comunitário.
187
Capítulo III
188
Caminhos metodológicos da ecologia de justiças
compreensão para os cidadãos); c) língua (a língua usada pelas instâncias pode ou não ser
familiar aos cidadãos) d) linguagem (a linguagem usada pode ser corrente ou técnica); e)
o horário (pode ou não ser ajustado à realidade dos cidadãos). (4) A proximidade
económica é fundamental. Importa perceber se o acesso é facilitado ou bloqueado pelos
custos impostos pela instância.
[iv. processo de resolução] No âmbito do processo de resolução, será considerado
um conjunto alargado de variáveis: (1) mecanismos usados (negociação, mediação,
arbitragem, adjudicação ou outro); (2) maleabilidade do objeto de discussão (flexível ou
rígido); (3) reação da instância às assimetrias de poder (tendência para as neutralizar ou
para as reproduzir); (4) envolvimento das partes (participam na construção da solução ou
não participam); (5) envolvimento de outros elementos; (6) intervenção da terceira parte
(influencia diretamente a solução ou posiciona-se de forma neutral; (7) direito usado
(estatal, local, internacional); (8) componentes estruturais do direito (burocracia,
violência, retórica).
[v. resultados] Os resultados serão analisados, desde logo, em função (1) da
distância temporal (resolução lenta ou em tempo razoável) e do (2) grau de eficácia
(resolução eficaz dos problemas ou ausência de eficácia na resolução). O tipo de soluções
será ainda observado no que diz respeito a (3) ganhos e perdas (soluções soma zero ou
mini-max), (4) validade das decisões (vinculativas ou não vinculativas); (5) grau de
consensualidade (consensuais ou não consensuais); e (6) grau de formalização (os
acordos/decisões/soluções são reduzidos a escrito e assinados pelas partes ou definidos
apenas oralmente). Finalmente, (7) interessa compreender se a relação entre instância e
utentes termina com o fim do conflito ou se existe um acompanhamento do caso, mesmo
depois de terminado o conflito.
[vi. presença] Por fim, as instâncias serão analisadas em termos do seu tipo de
presença no espaço em que atuam, isto é, (1) na confiança que os litigantes lhes
depositam; (2) nos instrumentos de coerção disponíveis ou não pela instância; e (3) na
relação com outras instâncias (competitividade ou cooperação).
189
Capítulo III
Quadro n.º 1
I – INSTÂNCIA
VARIÁVEIS
1. CRIAÇÃO 1) DATA
2) INICIATIVA DE CRIAÇÃO
3) CONTEXTO
2. OBJETIVOS GERAIS i. Unidimensional (resolução de
conflitos)
ii. Multidimensional (a resolução de
conflitos é um entre múltiplos
objetivos da instância)
3. ESPAÇO FÍSICO
4. 1) SEXO
MOBILIZADORES/AS
DA INSTÂNCIA 2) IDADE
i. Geograficamente próxima da
3) RESIDÊNCIA
instância
ii. Geograficamente afastada da
instância
4) PROFISSÃO
6) EDUCAÇÃO FORMAL
5. TERCEIRA(S) i. individual
1) NÚMERO
PARTE(S) ii. colegial
2) SEXO
3) IDADE
i. A resolução de conflitos é a
4) PROFISSÃO
atividade principal,
ii. A resolução de conflitos é uma
segunda atividade
5) FORMAÇÃO FORMAL OU i. Tem formação específica na
INFORMAL resolução de conflitos
190
Caminhos metodológicos da ecologia de justiças
Quadro n.º 2
II – CONFLITUALIDADE
VARIÁVEIS INDICADORES
7. JURISDIÇÃO/COMPETÊNCIA
ii. Espaço da
comunidade
v. Espaço da cidadania
191
Capítulo III
Quadro n.º 3
III – PROXIMIDADE
VARIÁVEIS INDICADORES
12. ACESSIBILIDADE GEOGRÁFICA i. Próxima (utentes não têm 1. Meio de transporte dos
dificuldade no acesso físico) utentes para chegar à
ii. Distante (utentes têm instância (a pé, transporte
dificuldade no acesso físico) público, transporte privado)
– existe ou não dificuldade
14. VISIBILIDADE i. Visível (utentes não têm 1. Os utentes acedem
dificuldade em identificar o local) diretamente à instância ou
ii. Invisível (utentes não têm por encaminhamento de
dificuldade em identificar o local) outra instância.
14. ACESSIBILIDADE 1) FORMALIDADE i. Procedimentos rígidos, 1. Queixa, 2.Notificação, 3.
HUMANA/SOCIAL padronizados Resolução, 4.
CULTURAL ii. Procedimentos flexíveis, Declarações/outros
adaptáveis às expectativas e aos documentos, 5. Espaço físico
interesses das partes e disposição das partes, 6.
Tipo de registos
(Procedimentos rígidos ou
flexíveis),
2) COMPLEXIDADE i. Procedimentos complexos/ 1. Queixa, 2.Notificação, 3.
Utentes têm dificuldade em Resolução, 4.
compreender os procedimentos Declarações/outros
ii. Procedimentos simples/ Utentes documentos, 5. Espaço físico
compreendem os procedimentos e disposição das partes
(Utentes têm ou não
dificuldade em compreender
cada etapa)
3) LÍNGUA i. Familiar 1. Língua usada nas várias
ii. Não familiar fases do processo é
entendida ou não entendida
pelos utentes
4) LINGUAGEM i. Corrente (informação em 1.Lingugem usada durante
linguagem acessível, termos da as várias fases do processo é
linguagem oral) ou não entendida pelas
partes
ii. Complexa (utilização de
linguagem /terminologia jurídica,
informação em linguagem
complexa para o cidadão)
5) HORÁRIO i. Desajustado o à realidade dos 1.Horário (laboral ou pós
cidadãos laboral)
ii. Ajustado à realidade dos 2.Justificação ou não
cidadãos justificação de faltas
15. ACESSIBILIDADE ECONÓMICA i. Custos elevados (bloqueio) 1.Custos impostos pela
instância
2.Pagamento de honorários
ii. Custos reduzidos (advogados ou outros
(promoção) peritos)
3.Custos de transporte
4. Custos de alojamento
5.Outros
192
Caminhos metodológicos da ecologia de justiças
Quadro n.º 4
IV - PROCESSO DE RESOLUÇÃO
VARIÁVEIS INDICADORES
16. MECANISMOS USADOS i. Mediação
ii. Conciliação
1.Tipo de intervenção da
iii. Arbitragem terceira parte
2. Percurso até à decisão
iv. Adjudicação
v. outro
17. MALEABILIDADE DO OBJECTO i. Flexível 1. Objetos de discussão no
DE DISCUSSÃO decorrer das sessões de
ii. Inflexível/rígido resolução de conflito
18. REACÇÃO ÀS ASSIMENTRIAS DE i. Neutralizadas (conflito 1. Discussão do conflito
PODER libertador) 2.Tipo de intervenção da
ii. Reproduzidas (conflito terceira parte
conservador) 3. Desigualdades de poder
19. ENVOLVIMENTO DAS PARTES i. Participação
1. Discussão do conflito
ii. Não participação
20. INTERVENÇÃO DE OUTROS i. Não intervenção
ELEMENTOS
ii. Familiares
iii. Peritos 1. Presença e intervenção de
iv. Testemunhas outros elementos
v. Advogados
vi. outros
21. INTERVENÇÃO DA TERCEIRA I. Influencia diretamente a 1. Intervenções da terceira
PARTE solução (dá conselhos, opina) parte no decorrer do processo
ii. Apoia as partes na de resolução de conflitos
construção da solução (posição
neutral)
22. DIREITO USADO i. Estatal 1. Elementos usados no
discurso jurídico dos litigantes
ii. Local e da terceira parte
iii. Internacional
23. COMPONENTES ESTRUTURAIS i. Burocracia
DO DIREITO 1. Formas de comunicação e
ii. Retórica
estratégias de decisão
iii. Violência
24. CONFIDENCIALIDADE i. Confidencialidade 1. Local e onde são
apresentadas as queixas e
ii. Inexistência de ouvidas as partes
confidencialidade 2. Queixas e resolução do
conflito
193
Capítulo III
Quadro n.º 5
V – RESULTADOS
VARIÁVEIS INDICADORES
25. DISTÂNCIA TEMPORAL i. Resolução lenta em 1.Tempo médio de resolução dos
(morosidade) conflitos/por tipo de conflito
2. Opinião/queixas dos utentes
ii. Resolução em
em relação ao tempo de
tempo razoável
resolução
26. GRAU DE EFICÁCIA i. Resolução eficaz dos 1.Resolução (alcançada/não
problemas alcançada)
ii. Resolução não 2.Encaminhamento dos casos
eficaz dos problemas para outras instâncias (volume,
forma, descrição das instâncias)
3. Resposta dos demandados às
notificações
4.Aceitação das soluções
5.Cumprimento das soluções
27. 1. Soluções contemplam ou não o
I. Soma-zero
SOLUÇÕES/ 1. GANHOS E interesse das partes
DECISÕES PERDAS 2. Posição das partes em relação à
II. Mini-max
solução alcançada
I. Decisões
1. Obrigatoriedade ou não
vinculativas
2. VALIDADE obrigatoriedade do cumprimento
ii. Decisões não
das decisões alcançadas
vinculativas
3. I. Consensuais 1. Posição das partes em relação à
CONSENSUALIDA decisão final (concordam ou não
ii. Não consensuais
DE concordam)
i. Formal 1. Os acordos/decisões/soluções
4. GRAU DE são reduzidos a escrito e
FORMALIZAÇÃO ii. Informal assinados pelas partes ou
definidos apenas oralmente.
28. ACOMPANHAMENTO i. Relação entre 1. A instância promove ou não um
instância e utentes acompanhamento dos casos;
termina com o fim do 2. Os utentes tendem ou não a
conflito regressar quando o acordo não é
cumprido;
ii. Promove-se uma
3. Quando os utentes regressam
relação continuada
os casos são ou não tratados
com os utentes
como novos casos
194
Caminhos metodológicos da ecologia de justiças
Quadro n.º 6
VI – PRESENÇA
VARIÁVEIS INDICADORES
1. Manifestações discursivas de
i. Litigantes confiam na
confiança ou de desconfiança,
capacidade da instância
2. Razões de procura da
para resolver o problema
29. CONFIANÇA NA instância
INSTITUIÇÃO ii. Litigantes não confiam 3. Percurso dos cidadãos até à
na capacidade da instância (primeira opção ou
instância para resolver o opção de recurso)
problema
195
Capítulo III
2. As técnicas de investigação
196
Caminhos metodológicos da ecologia de justiças
197
Capítulo III
Quadro n.º 7
198
Caminhos metodológicos da ecologia de justiças
44. Vice-diretor do Departamento dos Assuntos Religiosos (Ministério da Justiça), 9 de fevereiro de 2009;
45. Vice-Presidente da Assembleia Geral Comunidade Hindu, 12 de fevereiro de 2009;
46. Vice-presidente do Centro de Arbitragem, Conciliação e Mediação, 13 de janeiro de 2009.
Lisboa99
47. Bastonário da Ordem dos Advogados, 23 de julho de 2009;
48. Diretor do Gabinete de Resolução Alternativa de Conflitos (GRAL), 2 de julho de 2009;
49. Diretora do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa, 17 de junho 2009;
50. Funcionário do Conselho dos Julgados de Paz, 18 de junho de 2009;
51. Juiz de Paz do Julgado de Paz de Lisboa e e Presidente da Associação dos Juízes de Paz, 20 de janeiro
de 2011;
52. Juíza de Paz do Julgado de Paz de Lisboa, 27 de janeiro de 2011;
53. Jurista do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa, 17 de junho de 2009;
54. Membro da CPCJ Ocidental de Lisboa, 20 de agosto de 2009;
55. Presidente do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa, 17 de junho de 2009;
56. Presidente do Conselho dos Julgados de Paz, 15 de julho de 2009;
57. Presidente e Vice-Presidente da Direção da CONSULMED, 30 de julho de 2009;
58. Presidente Executiva e Advogadas do Instituto de Apoio à Criança (IAC), 29 de julho de 2009;
59. Procurador Coordenador do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, 24 de julho de 2009;
60. Representante da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), 20 de agosto de 2009;
61. Técnica de atendimento do Julgado de Paz de Lisboa, 27 de julho de 11;
62. Técnicas do GRAL e Mediadoras do Sistema de Mediação Familiar, 10 de setembro de 2009.
99
No contexto de Lisboa, cinco entrevistas foram realizadas coletivamente com investigadores/as do Centro
de Estudos Sociais, no âmbito do projeto "O género do direito e da justiça de família - As desigualdades e
violência de género na transformação da lei de família e nas decisões dos Tribunais de Família e Menores”,
coordenado por João Pedroso e financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia
(PIHM/GC/0028/2008) (Entrevistas a Procurador Coordenador do Tribunal de Família e Menores de Lisboa,
Bastonário da Ordem dos Advogados, Presidente Executiva e Advogadas do Instituto de Apoio à Criança,
Técnicas do GRAL e Mediadoras do Sistema de Mediação Familiar, Representantes da APAV). A entrevista a
membros da CPCJ Ocidental de Lisboa foi realizada sem a minha presença e cedida pelo coordenador do
referido projeto.
199
ECOLOGIA DE JUSTIÇAS/PRIMEIRA FASE: O PLANO MACRO – OS MAPAS
201
CAPÍTULO IV – AS JUSTIÇAS COMUNITÁRIAS NO DISTRITO DE
KAMPFUMO
Introdução
100
Uma primeira referência a esta metáfora é feita no ponto 2.1.3. do segundo capítulo.
203
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
101
Noutros lugares, abordo exemplos diferentes da pluralidade jurídica moçambicana, incluindo em
espaços rurais e na periferia urbana de Maputo (Araújo e José, 2007; Araújo S., 2008a, 2010b, 2012).
204
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
205
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
102
Sobre a colonização do conhecimento e do direito, ver capítulo I. Sobre a justiça dualista no contexto
africano, ver capítulo II.
206
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
103
A lei estabelecia que todos os nativos estavam sujeitos à obrigação, moral e legal, de tentar obter
através de trabalho os meios necessários para subsistir e melhorar as suas condições sociais. Previa, ainda,
que, se tal não acontecesse, o governo tinha o direito de forçar os nativos a prestar serviços quer ao
governo, quer a privados. Havia poucos empregos disponíveis com salários que atraíssem os africanos por
sua livre vontade e só os que possuíam terrenos grandes e férteis seriam considerados agricultores. Assim,
a lei afetava a maioria da população (O’Laughlin, 2000; Mondlane, 1995).
207
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
Depois de cerca de dez anos de uma luta armada conduzida pela Frente de
Libertação Nacional (FRELIMO), uma união de vários grupos de resistência ao
colonialismo, Moçambique tornou-se independente em 25 de Junho de 1975. A FRELIMO,
transformada em partido político, governou em regime de partido único até 1994, data
das primeiras eleições democráticas.105
Como a afirmam Albie Sachs e Gita Welch, após a independência, “a teoria era clara:
desmantelar completamente o aparato do Estado colonial e substitui-lo por um novo,
desenhado para servir os interesses das massas populares” (Sachs e Welch, 1990: 1). A
expressão “escangalhamento do Estado”, usada, por exemplo, no Relatório do Comité
Central ao 3.º Congresso da FRELIMO, dá conta dessa missão de destruição das estruturas
do passado (Dava et. al., 2003). Era necessário desenvolver uma cultura nacional e
104
Ainda que o trabalho forçado tenha sido abolido em 1961, a legislação permitia a coerção em situações
de emergência (Isaacman e Isaacman, 1982).
105
Pouco tempo após a independência, emergiu um movimento de resistência, a Resistência Nacional de
Moçambique (RENAMO), e teve início uma guerra civil entre este movimento e a FRELIMO que só culminou
em 1992.
208
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
106
Ainda durante a Guerra de Libertação nacional, nas designadas zonas libertadas, territórios extensos no
norte de Moçambique, a FRELIMO experimentara novas disposições de governação e de administração do
território e da justiça, que deveriam ser expandidas para o restante país.
209
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
profissionais nomeados trabalhavam ao lado de juízes eleitos pela população. 107 Na base
da pirâmide, os tribunais de localidade ou de bairro funcionavam exclusivamente com
juízes eleitos, desprofissionalizados, que conheciam das infrações de pequena gravidade
e decidiam de acordo com o bom senso e a justiça e tendo em conta os princípios que
presidiam à construção da sociedade socialista.108 Estes tribunais desempenhavam um
papel determinante na promoção do acesso à justiça, proporcionando uma justiça rápida
e simples, sem formalismos desnecessários (Moiane entrevistado por Honwana e
Dagnino, 1984).
A ideia era construir um sistema que, em vez de impor um dualismo entre a elite e
a restante população, estabelecesse a unidade e fosse simultaneamente indígena e anti-
tradicional, assentando em aspetos democráticos da tradição africana, rejeitando os
divisionismos e permitindo a transformação. Albie Sachs e Gita Welch citam a ilustrativa
frase de Samora Machel: “para a nação nascer, a tribo deve morrer” (Sachs e Welch,
1990: 5). Assim, se, por um lado, se desmantelou o sistema dualista e foi criada uma
organização judiciária de cariz universalista, esperava-se que os juízes eleitos
conhecessem os problemas da comunidade e as suas noções de bom senso e justiça,
abrindo-se espaço à subsistência do direito costumeiro, que se interligava agora com os
princípios do novo Estado (Gundersen, 1992). Isto não equivale a afirmar que a justiça
popular foi sempre mal sucedida na transformação do direito costumeiro, mas que
sobreviveram espaços de interlegalidade onde se cruzavam diferentes ordens normativas
na resolução dos problemas (Araújo S., 2008).
Os tribunais populares de base deveriam substituir as autoridades tradicionais ao
nível das funções judiciais. Contudo, a estas cabiam, ainda, funções administrativas, que,
na estrutura estabelecida pelo Estado moçambicano, passariam a ser desempenhadas
pelos Grupos Dinamizadores (GDs). Logo no período de transição para a independência,
que duraria entre 20 de setembro de 1974 e 24 de Junho de 1975, a FRELIMO enfrentava
107
Lei n.º 12/78, de 12 de dezembro.
108
O Tribunal Popular Supremo ocupava o topo da hierarquia e era seguido pelos tribunais populares
provinciais, pelos tribunais populares distritais e, finalmente, pelos tribunais populares de bairro ou
localidade. Em todos os escalões participavam, no exercício da atividade judicial, juízes eleitos, isto é, juízes
desprofissionalizados, eleitos pelas assembleias populares para exercerem funções judiciais. Estes exerciam
funções verdadeiramente jurisdicionais, intervindo, nos casos penais, sobre matéria de facto e de direito
(Lei n.º 12/78, de 12 de Dezembro).
210
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
109
Resolução sobre a organização dos Grupos Dinamizadores e Bairros Comunais, 1979.
211
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
Para os líderes tradicionais, a luta pela autoridade era numa luta pela dignidade que
não cabia no projeto popular hegemónico da FRELIMO. A crítica tradicionalista não
apregoava a tradição imutável contra um Estado modernizador, contestava a
implementação autoritária de políticas desadequadas produzidas centralmente,
constituindo “uma rejeição não da modernização per se, mas de uma modernização
falhada e coerciva” (Meneses, 2009: 29). Virada uma página da história política
moçambicana, uma realidade permanecia: a desqualificação do que não cabia no cânone
definido pelo Estado moderno. Segundo Maria Paula Meneses, “não querendo assumir a
110
A autora analisa mais pormenorizadamente o caso de Namapa, distrito de Erati, província de Nampula,
argumentando que “os antigos régulos tiveram oportunidade de continuar a reinar por outros meios”. Em
Namapa, a FRELIMO manteve a divisão administrativa herdada, mudando apenas o nome de regedoria para
círculos. Além disso, a nova administração estatal trabalhou com as antigas estruturas para configurar as
novas. Durante vários anos, em todo o distrito, os chefes arranjavam estratégias para colocar no poder
familiares, de modo a conseguirem manter o controlo. Mesmo quando as novas estruturas eram
independentes dos antigos chefes, nem sempre se viravam contra os régulos. O próprio Estado veio a sentir
necessidade de se apoiar fortemente nos régulos, assumindo e reforçando a sua importância nas
hierarquias locais. Na segunda metade da década de 1980’, face à crise económica que o país enfrentava,
na província de Nampula, os régulos foram chamados a desempenhar o papel de “chefes de produção”,
voltando a atuar como controladores da economia camponesa, à imagem do que era o seu papel no
período colonial (Dinerman, 1999).
111
Entrevista a Ex-juiz do Tribunal Comunitário da Malhangalene “B”, 5 de maio de 2010.
212
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
112
Lei n.º 10/92, de 6 de maio.
113
Lei n.º 10/92, de 6 de maio, art. 10.º.
213
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
agora constituída pelos tribunais distritais. Ainda no mesmo ano foram criados, por lei
própria, os tribunais comunitários (TCs).114 No preâmbulo da lei dos tribunais
comunitários pode ler-se:
As experiências recolhidas por uma justiça de tipo comunitário no país apontam
para a necessidade da sua valorização e aprofundamento, tendo em conta a
diversidade étnica e cultural da sociedade moçambicana.
Impõe-se pois a criação de órgãos que permitam aos cidadãos resolver
pequenos diferendos no seio da comunidade, contribuam para a harmonização
das diversas práticas e para o enriquecimento das regras, usos e costumes e
conduzam à síntese criadora do direito moçambicano.115
A lei prevê que os TCs deliberem sobre pequenos conflitos de natureza civil,
conflitos que resultem de uniões constituídas segundo os usos e costumes e delitos de
pequena gravidade, que não sejam passíveis de penas de prisão e se ajustem a medidas
definidas na lei.116 Prevê, ainda, que os tribunais procurem, em primeiro lugar, a
reconciliação das partes e, em caso de insucesso, julguem de acordo com “a equidade, o
bom senso e a justiça”.117 A regulamentação destes tribunais está por fazer até hoje em
prejuízo do acesso ao direito e à justiça. A indefinição de questões como a eleição e a
formação dos juízes e o apoio que o Estado lhes deve prestar resulta em
constrangimentos materiais e humanos, enfrentados localmente de forma diferenciada,
em função das capacidades locais destas estruturas (Gomes et. al., 2003; Santos, 2006b;
Araújo e José, 2007; Araújo S., 2008a, 2012). Se Gundersen (1992) mostrava que os
tribunais populares de base viviam na fronteira entre o formal e o informal, Boaventura
de Sousa Santos classifica os tribunais comunitários como o híbrido jurídico por
excelência, por se encontrarem num limbo institucional, na medida em que são
reconhecidos por lei, mas estão fora do sistema judicial e não estão regulamentados
(Santos, 2006b).
No novo quadro democrático, com o reconhecimento oficial de que o sistema
administrativo era excessivamente centralizado (Cistac, 2002) e num contexto em que
instituições internacionais, como o Banco Mundial, reconhecem a necessidade de
114
Lei n.º 4/92, de 6 de maio.
115
Lei n.º 4/92, de 6 de maio (Preâmbulo).
116
Lei n.º 4/92, de 6 de maio, art. 3.º.
117
Lei n.º 4/92, de 6 de maio, art. 2.º.
214
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
118
Para uma descrição detalhada desses estudos, seus financiamentos e autores envolvidos, ver Lourenço
(2009).
215
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
119
Decreto 15/2000, de 20 de junho.
120
Decreto 15/2000, de 20 de junho, art. 1.º. Esta tendência para diluir as autoridades tradicionais entre as
outras autoridades comunitárias vem-se manifestando desde a promulgação da Lei de Terras, em 1997. O
primeiro diploma legal em matéria de descentralização, de 1994, atribuía um papel especificamente às
autoridades tradicionais no processo de consulta e tomada de decisões locais e no arbítrio de conflitos e
questões relacionadas com o uso da terra, definindo autoridade tradicional como “autoridades
reconhecidas como tais pelas comunidades” (Lei 3/94 de 13 de setembro). No entanto, três anos mais
tarde, a Lei de Terras faz referência a “líderes locais” e define-os como “aqueles que são respeitados por
todos” (Lei n.º 19/97, de 1 de Outubro).
121
Como nota Santos, o n.º 2 do artigo 3.º do decreto 15/2000 sublinha bem o carácter instrumental do
reconhecimento das autoridades tradicionais, ao afirmar que a articulação entre estas e os órgãos locais
decorre das “necessidades de serviço”. O mesmo autor, não deixa de mencionar que “simetricamente, as
autoridades tradicionais pretendem instrumentalizar o apoio do Estado para consolidar o seu próprio
controlo político sobre as comunidades” (Santos, 2003b: 84).
122
O Regulamento da Articulação dos Órgãos das Autarquias Locais com as Autoridades Comunitárias
define três tipos de autoridades comunitárias: os chefes tradicionais, “pessoas que assumem e exercem a
chefia de acordo com as regras tradicionais das respectivas comunidades”; os secretários de bairro ou de
aldeia, “pessoas que assumem a chefia por escolha feita pela população do bairro ou aldeia a que
pertencem”; e outros líderes legitimados, “pessoas que exercem algum papel económico, social, religioso
ou cultural aceite pelo grupo a que pertencem”. Embora todos estejam integrados na categoria de
216
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
autoridades comunitárias por parte do Estado com vista a impulsionar a sua legitimidade
e a estender a sua influência sobre o vasto território envolveu a recuperação das
estruturas apropriadas pelos colonizadores (em mais um processo de reinvenção da
tradição); a relegitimação e a reconfiguração de estruturas criadas no pós-independência,
como a transformação dos chefes dos grupos dinamizadores em secretários de bairro e
líderes comunitários; e a apropriação das figuras locais que se estendem além das
categorias principais numa realidade sempre muito mais complexa do que aquela que a
lei consegue prever.
O pluralismo jurídico tem vindo a ocupar um espaço crescente nos discursos
políticos. Face à eterna dificuldade em alcançar toda a sua extensão territorial e no
âmbito da revelação internacional sobre as potencialidades das instituições locais, o
discurso oficial do Estado e das instituições que o influenciam tem insistido no
aproveitamento das sinergias locais. Ainda que a prática seja feita de modestas
alterações, os documentos de intenções e os discursos políticos colocam o
reconhecimento, a valorização e o incentivo das instituições jurídicas locais na ordem do
dia.123 Desde logo, com a Constituição de 2004 “o Estado reconhece os vários sistemas
normativos e de resolução de conflitos que coexistem na sociedade, na medida em que
não contrariem os valores e os princípios fundamentais da Constituição” (art. 4.º). O
PARPA II – 2006-2009 (Plano de Ação para a Redução da Pobreza Absoluta) insiste na
regulamentação e na importância dos tribunais comunitários como um dos elementos
chave para implementar um sistema de justiça justo e célere, nomeadamente através da
sua articulação com os tribunais judiciais (arts. 227.º; 294.º e); 310.º) e o PARPA III –
2011-2014 menciona a importância de clarificar as regras de relacionamento entre a
justiça formal e outras formas de resolução de conflitos e volta a mencionar a aprovação
futura da Lei dos Tribunais Comunitários. O Plano Estratégico Integrado do Sector da
autoridades comunitárias, são atribuídos aos secretários de bairro e às autoridades tradicionais, para além
dos direitos e deveres em geral, direitos e deveres específicos comuns (Diploma Ministerial 80/2004, de 14
de maio). O Regulamento da Lei dos Órgãos Locais do Estado reforça a tendência para atribuir um caráter
particular às autoridades tradicionais e aos secretários de bairro, atribuindo-lhes os direitos especiais de a)
“ostentar os símbolos da República”, b) “usar fardamento” e c) “receber um subsídio em razão da sua
participação na cobrança de impostos” (Decreto 11/2005, de 10 de junho).
123
Sobre o interesse internacional pelas dinâmicas do pluralismo jurídico, ver ponto 3.5.2 do segundo
capítulo.
217
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
Justiça (PEI) para os anos 2002 – 2006 estabelece como prioritária a revisão e a
regulamentação da lei dos tribunais comunitários e o PEI 2009-2014 identifica como meta
o funcionamento adequado dos Tribunais Comunitários e de outras instâncias de
composição e resolução de litígios. O documento “Política e Estratégia da Reforma Legal”,
elaborado pela Unidade Técnica da Reforma Legal, em 2005, identifica como uma das
prioridades da reforma a Lei Orgânica dos Tribunais Comunitários, descrevendo estes
tribunais como uma “experiência que importa consolidar e desenvolver no quadro geral
dos imperativos da celeridade da justiça em casos de pequena gravidade”. Os Programas
do Governo 2004-2009 e 2010-2014 mencionam a necessidade de promover a
coordenação entre a justiça formal e a informal, bem como promover a instalação e o
funcionamento dos Tribunais Comunitários para dar resposta à demanda dos cidadãos na
base. Referem, ainda, a importância da promoção, criação e consolidação de mecanismos
alternativos de resolução de conflitos através da arbitragem, mediação e conciliação.
Em 2005, uma equipa do Centro Formação Jurídica e Judiciária (CFJJ), na sequência
de uma solicitação que lhe foi endereçada, entregou à Unidade Técnica de Reforma Legal
um conjunto de propostas para a reforma da justiça que incluíam uma Anteproposta de
Lei de Bases da Administração da Justiça e uma Anteproposta de Lei Orgânica dos
Tribunais Comunitários, onde se previa, entre outras mudanças, um conjunto de
inovações que se prendem com o reconhecimento da pluralidade jurídica e a valorização
dos tribunais comunitários.124 Estas antepropostas não vieram a ser acolhidas. A Lei da
124
Estas propostas foram realizadas com base nos resultados de um projeto de investigação conduzido por
uma equipa do CFJJ em parceria com o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Para
conhecer a leitura do então diretor do Centro de Formação Jurídica e Judiciária sobre as propostas
apresentadas, ver Trindade (2010). De entre as várias inovações, destaco: os tribunais comunitários e uma
pluralidade de instâncias comunitárias de resolução de conflitos são reconhecidos como parte do sistema
de justiça; as instâncias comunitárias de resolução de conflitos não reguladas pela lei são permitidas se
aceites pelas partes, salvo se violarem a Constituição; a base da pirâmide judiciária é reforçada através da
integração dos tribunais comunitários no sistema de administração da justiça e do alargamento das suas
competências; a criação dos Conselhos Provinciais Coordenadores das Justiças Comunitárias, presididos
pelo Juiz-Presidente do tribunal judicial de província e integrados, ainda, por um procurador junto dos
tribunais provinciais, dois juízes de tribunais judiciais de distrito, um representante do serviço público de
assistência jurídica, oito representantes dos tribunais comunitários e três representantes das autoridades
comunitárias, cujas funções são as de propor ao Ministério da Justiça a criação de novos TCs, avaliar e
inspecionar a atividades dos juízes dos TCs, coordenar com o CFJJ as ações de formação daqueles juízes, a
definição e execução de programas destinados à avaliação e à melhoria de desempenho dos TCs e a
promoção de programas de divulgação da justiça comunitária.
218
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
125
Lei n.º 24/2007, de 20 de agosto.
219
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
que não têm capacidade de acesso às instituições do Estado moderno. Ignorados pelo
Estado, os TCs encontram-se jogados à sua sorte e à sua capacidade de criação e
recriação para contrariar as dificuldades; vão respondendo com base em estratégias
individuais, constituindo, por vezes, um meio de acesso ao direito e à justiça; outras,
atropelando os direitos mais básicos ou encerrando portas (Gomes et. al., 2003; Araújo e
José, 2007, Araújo S., 2008a). Os doadores internacionais tendem a contribuir para a
reprodução desta situação. Instituições como a DANIDA, a Comissão Europeia, o PNUD ou
o Banco Mundial, apesar de admitirem a importância das instituições “informais” e
“semiformais”, continuam a repartir os recursos pelas instituições formais do Estado
(Kyed e Trindade, 2012).
O inconsistente processo de criação dos Conselhos de Policiamento Comunitário
constitui mais um exemplo da ausência de firmeza nos passos dados pelo Estado no que
toca às políticas de valorização de instâncias comunitárias. Introduzidos em 2001 por
documentos políticos do Ministério do Interior, com apoio de doadores internacionais
como a GTZ e a USAID, não estão regulamentados por lei. Assentam numa filosofia de
que a ordem pública, a segurança e a paz não devem ser funções apenas das autoridades
policiais, mas ser partilhadas com cidadãos ativos empenhados na segurança da
comunidade local. São constituídos por membros voluntários da comunidade, aprovados
pela população, e devem integrar os líderes comunitários e representantes dos vários
setores da comunidade (como agentes económicos, associações religiosas, ONGs).
Encarados como mediadores entre os cidadãos e a polícia, previa-se inicialmente que
funcionassem sobretudo como parceiros da polícia na recolha de informação sobre
problemas criminais locais. Podem, no entanto, resolver pequenos conflitos, como
altercações sobre terrenos ou disputas familiares, sem que esteja regulamentado como
devem interagir com outras instâncias de quem se espera o mesmo tipo de funções,
como os tribunais comunitários ou líderes comunitários (Kyed, 2012, 2014). De acordo
com o trabalho desenvolvido por Helene Kyed, a ausência de um enquadramento jurídico
coerente conduz a comportamentos muito variáveis por parte desta instância e a
situações em que excedem claramente as suas funções e de abuso claro de autoridade
(idem).
220
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
126
Sobre o conceito de linha abissal, as hierarquias do conhecimento e do direito e o conceito de
alargamento do cânone jurídico, ver capítulo I.
221
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
127
Lei n.º 11/99, de 8 de julho.
128
Lei n.º 23/2007, de 1 de agosto.
222
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
129
Diploma Ministerial n.º 75/2008, de 13 de agosto.
130
Decreto nº 50/2009, de 11 de setembro de 2009.
131
Decreto nº 15/2013, de 26 de abril de 2013.
132
Decreto n.º 54/95, de 13 de dezembro.
223
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
224
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
No período colonial, as cidades cresciam com base numa dualidade muito marcada
entre o que era designado por “cidade de cimento” e “cidade de caniço”. Manuel de
Araújo descreve a primeira como “branca, de desenvolvimento vertical, planificada, com
infraestruturas e serviços” e a segunda como “negra, suburbana, horizontal, não
planificada, de construção espontânea e de material precário (estacas, barro, caniço,
etc.), sem infraestruturas e serviços e que se dispunha à volta da ‘cidade de cimento’,
cercando-a” (Araújo M., 2003). Com as transformações pós-coloniais, a cidade de cimento
deixa de ser branca e a periferia vê o fim da proibição dos materiais duráveis mas o
dualismo em termos de serviços disponibilizados pelo Estado não desaparece (Araújo M.,
2003; Veríssimo, 2013). Para Manuel de Araújo, a principal mudança prende-se com a
atual perda de homogeneidade da cidade de caniço, que se divide agora entre a "área
suburbana", onde o caniço e as estacas estão a ser substituídos por material mais durável,
e a "área periurbana", resultante do aumento dos limites administrativos da cidade, onde
se mantêm vivas as características ruais, mas começam a surgir espaços urbanizados
(Araújo M., 2003). Apesar da gradação, o dualismo mantem-se entre o centro e a
periferia, agora identificada como os “Bairros” (Costa A. B., 2011). A realidade continua a
remeter-nos para a imagem do Estado bifurcado de Mamdani (1996) e a distinção entre
cidadãos de primeira - a quem o Estado assegura infraestruturas e serviços modernos - e
cidadãos de segunda - sobre quem o Estado se desresponsabiliza, remetendo-os para as
instituições, as construções e as formas de gestão tradicionais.
A cidade de Maputo, capital de Moçambique, tem mais de um século de história.
Sobreposta ao território anteriormente governado pela dinastia Mfumo, ascendeu à
categoria de cidade durante o período colonial, em 1887 (Oliveira, 1987). Enquanto
Lourenço Marques, topónimo que lhe cabia antes da independência, era apresentada nos
álbuns fotográficos de Santos Rufino como “um canto da Europa na África do Sul”, “uma
225
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
cidade de África que procura não sentir África”. A cidade era o local de intervenção
colonial e esta devia sobrepor-se à etnicidade, ao direito e às autoridades tradicionais
(Meneses, 2009: 13). Configurando o típico crescimento urbano colonial, o
desenvolvimento registou o formato dualista, em que a “cidade de cimento” cresceu sob
a imagem de uma sociedade ocidental, com serviços e infraestruturas próprias das
cidades modernas europeias, contrasta com a “cidade de caniço”, que cresce ao seu
redor sem planeamento ou infraestruturas, “adaptando a tradição à economia moderna e
aos desafios urbanos” (Veríssimo, 2013). No círculo interior, as casas eram sólidas de
alvenaria, o abastecimento de água e a canalização dos esgotos estavam assegurados e as
estradas eram alcatroadas. No círculo exterior, sem infraestruturas que se comparassem,
vivia a população negra e pobre. Com a independência, houve uma tentativa de melhorar
as condições de vida das populações que habitam os subúrbios, mas mantiveram-se
problemas habitacionais, dificuldades de abastecimento de água, energia e alimentos,
bem como de empregabilidade (Muchangos, 1987: 124).
De acordo com o Conselho Municipal de Maputo, a guerra, a carência de
infraestruturas e de recursos, bem como o êxodo do campo para a cidade ajudam a
explicar as dificuldades em reverter a lógica dualista colonial.133 Para Céline Veríssimo, os
conceitos de planeamento urbano importados constituem muitas vezes obstáculos a
políticas urbanas e a um planeamento e gestão convenientes, afetando o bem-estar das
populações e distorcendo as culturas locais. Assim, as cidades moçambicanas, com
políticas importadas e distribuição desigual de recursos e riquezas, perpetuam a intrusão
estrangeira que alimenta a segregação do espaço social e do empobrecimento social e
natural. Por outro lado, a urbanização envolve uma permanente reinvenção da cidade
moçambicana, através do que a autora designa por “resiliência” e “resistência”, como
novas formas de produção que combinam desafios presentes com conhecimentos do
passado (Veríssimo, 2013). Assim, para Ana Bénard da Costa, a atual configuração
espacial e demográfica de Maputo “é mais uma criação dos seus habitantes do que o
133
Conselho Municipal de Maputo, Programa de Desenvolvimento Municipal de Maputo II, Requalificação
Urbana Disponível em http://www.cmmaputo.gov.mz/CMMBalcao/PhotoHandler.ashx?i=4031 [acedido em
agosto de 2013].
226
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
134
Página Oficial do Conselho Municipal de Maputo:
http://www.cmmaputo.gov.mz/CMMBalcao/Default.aspx?PageId=164 [acedido em agosto de 2013].
135
Censos de 2007, Portal do Instituto Nacional de Estatística de Moçambique, http://www.ine.gov.mz.
227
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
Com estatuto de província desde 1980,136 uma situação singular, a sua área
configura também um município, estando dividida em delimitações administrativas
próprias que se designam por distritos municipais. Se até 2010 eram classificados por
uma numeração que ia do “1” ao “7”, hoje apresentam as seguintes designações: Distrito
Municipal KaMpfumo (antigo, n.º 1), Distrito Municipal Nlhamankulu (antigo n.º2),
Distrito Municipal KaMaxaquene (antigo n.º 3), Distrito Municipal KaMavota (antigo n.º
4), Distrito Municipal KaMubukwana (antigo n.º 5), Distrito Municipal KaTembe (antigo
n.º 6), Distrito Municipal de KaNyaka (antigo nº7). Os distritos municipais estão divididos
ao todo em 63 bairros, cada um com o seu secretário de bairro. Os bairros encontram-se
divididos em quarteirões, cuja administração cabe aos respetivos chefes de quarteirão.
Podem ainda existir subdivisões da responsabilidade dos chefes de 10 casas. O distrito de
KaMpfumo corresponde à antiga cidade de cimento e está dividido nos seguintes bairros:
Central A, B e C; Alto Maé A e B; Malhangalene A e B; Polana Cimento A e B; COOP e
Sommerhield. Foi nestes bairros que se centrou a investigação.
De acordo com os últimos censos, o distrito de KaMpfumo está longe de ser o mais
populoso, concentrando apenas 9,9% da população da cidade, ficando acima apenas dos
distritos não continentais da KaTembe e da KaNyaka. No entanto, a maioria das
infraestruturas estão situadas no centro. Dados da mesma altura dos censos, compilados
pelo Conselho Municipal de Maputo, indicam que 17,7% das escolas públicas e 43,1% das
escolas privadas estão situadas neste distrito. Mostram, ainda, que é o distrito do país
com menor incidência de pobreza e com a rede comercial mais extensa (Conselho
Municipal de Maputo, 2008). É o distrito municipal com maior número de cidadãos com
acesso a água canalizada e com o mais elevado número de Empresas Industriais de Micro-
Dimensão (INE, 2012). As diferenças deste centro urbano podem ser percebidas a olho nu
por qualquer observador pouco atento. As fronteiras do Distrito 1 delimitam uma cidade
de imagem ocidentalizada, planeada, com avenidas largas, clínicas privadas, consultórios
médicos, restaurantes caros, lojas, centros comerciais e hotéis cosmopolitas. Os bairros
136
Apesar de ter estatuto de província desde 1980, apenas em 2005 foi nomeada uma governadora para a
cidade de Maputo. Não deve confundir-se a cidade de Maputo, com estatuto de província, com a província
de Maputo, que inclui os distritos de Boane, Magude, Manhiça, Marracuene, Matutuíne, Moamba e
Namaacha.
228
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
Secretário do Bairro da COOP (SBC)– Então, isso para dizer que, a cidade de
Maputo em si, Distrito 1, é mais complexo do que os outros distritos,
porque o secretário de bairro do Distrito Municipal n.º 1 é diferente do
secretário de Bairro de Malhazine, Magoanine, porque o secretário de
bairro lá, chefe de quarteirão, chefe de 10 casas é respeitado como a lei
manda. Agora, aqui somos todos doutores, pessoas intelectuais… Quem é o
137
Estas observações assentam sobretudo no trabalho que realizei no distrito municipal n.º 5 (Araújo e
José, 2007; Araújo S., 2008a).
138
Sobre os conceitos de sociedade civil íntima, sociedade civil estranha e sociedade civil incivil, ver
introdução.
139
Entrevista à Vereadora do Distrito Municipal n.º 1, 29 de janeiro de 2009.
229
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
SA – É mais difícil trabalhar aqui do que nos bairros dos outros distritos
municipais?
Secretário do Bairro Polana “B” (SBPB) – Difícil não é. O que mais se nota
aqui nas zonas urbanas é que as pessoas estão mais ocupadas. Por exemplo,
as senhoras! A maioria delas são trabalhadoras ou estudantes. Nas zonas
não urbanas muitas são domésticas e disponibilizam-se. Assim como os
jovens, nas zonas não urbanas têm mais disponibilidade. E a zona
urbanizada tem população não moçambicana, de nacionalidades diversas.
[…]
SA - Aqui é mais difícil conhecer todas as pessoas?
SBPB – Aqui as pessoas vivem um pouco, depois mudam, vêm novas
pessoas. As pessoas de subúrbio também vêm para aqui por questões
económicas. Vêm vender mercadorias e é um transtorno. E algumas até
vêm para roubar.141
140
Entrevista ao Secretário de Bairro da COOP, 28 de janeiro de 2009.
141
Entrevista ao Secretário de Bairro de Polana “B”, 29 de Outubro de 2008.
230
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
mais ocidentalizados, que se tem imposto em Maputo, sobretudo na sua zona central,
que Agadjanian classifica como a mais urbanizada e portugalizada (Agadjanian, 1999).
231
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
142
Entrevista a formador/mediador da OREC (Organização para a Resolução de Conflitos), 15 de Novembro
de 2008.
143
Entrevista ao Comandante da 7.ª esquadra de Maputo, 21 de fevereiro de 2009.
144
Dados do Conselho Municipal de Maputo, Perfil Estatístico do Município de Maputo 2004-2007.
232
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
manhã e vai meter o caso na esquadra, não vem para aqui. Agora, com os
outros já não. Mesmo que seja um assunto grave, quando acordam de
manhã, vêm para aqui. Ainda têm a cultura antiga! Não vão para a esquadra
antes de virem para aqui. Eles vêm para aqui. Agora, enquanto que os
outros já não. E deste lado não se chamam de feiticeiros, mas, deste lado,
da zona suburbana, heeee!, há muitos casos mesmo. O caso da feitiçaria
também é frequente”.145
145
Entrevista à Secretária do Bairro Malhangalene “B”, 20 de fevereiro de 1009.
233
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
como é que isso é aceite. Há um grupo que pensa que deve ser assim e
outro grupo… Esse é um comentário apenas que eu queria fazer”.146
146
Entrevista a oficial de programas e formador da organização Justa Paz, 5 de Novembro de 2008. Com
sede na capital da província de Maputo, a cidade da Matola, a Justa Paz, Centro de Estudo e Transformação
de conflitos, assume como missão “promover abordagens construtivas e cooperativas de transformação de
conflitos e de redução de violência aos níveis político, religioso, bem como nas comunidades de base”
(Plano Estratégico 2006-2010 da Justa Paz).
147
Entrevista à Secretária do Bairro Alto Maé “A” e à Presidente Distrital da AMETRAMO, 7 de janeiro de
2009.
148
O cartaz, que não encontrei exposto nos múltiplos espaços que percorri, faz parte de uma campanha
financiada pelo Ministério da Justiça, de iniciativa da Associação Moçambicana para a Defesa da Cidadania
(AMOPROC), uma organização moçambicana que tem como missão contribuir para o fortalecimento do
Estado Democrático de Direito e para o pleno exercício da cidadania. A campanha foi financiada pelo
Ministério da Justiça e pela Unidade Técnica de Reforma do Estado, recebendo cofinanciamento da
Diakonia, uma organização para o desenvolvimento baseada na Suécia, e da Action Aid, uma organização de
carater humanitário de origem inglesa.
149
A imagem poderia também representar um Gabinete de Atendimento à Mulher e Criança Vítimas de
Violência, mas, se fosse essa a intenção, o autor da imagem deveria ter escolhido a imagem de uma mulher
a conduzir o atendimento.
234
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
235
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
Figura n.º 5
236
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
150
Sobre os tribunais comunitários em outros locais, ver Gomes et. al. (2003); Araújo e José (2007); Araújo
S. (2008a, 2012).
237
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
238
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
151
Entrevista a Ex-Juiz Presidente do Tribunal Comunitário da Malhangalene “B”, 5 de maio de 2010.
239
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
152
Plano de Actividades do Conselho Municipal de Maputo para 2012.
153
Os indunas atuam como conselheiros do régulo.
240
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
ao régulo, porque os régulos é que têm a comunidade, mas quem trata toda
a burocracia da comunidade é a administração.154
154
Entrevista ao Régulo Punhuane, distrito da KaMavota, 23 de abril de 2010.
155
Entrevista à Vereadora do Distrito de KaMpfumo, 29 de janeiro de 2009.
241
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
156
Regulamento de Organização e Funcionamento das Estruturas Administrativas dos Bairros Municipais,
resolução n.º 71 /AM/2011, de 22 de Junho.
157
Ver Araújo S. (2008a, 2008c, 2012) e Araújo e José (2007).
158
Entrevista à Secretária do Bairro Alto Maé “A” e à Presidente Distrital da AMETRAMO, 7 de janeiro de
2009.
242
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
243
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
159
O trabalho desenvolvido por esta ONG será desenvolvido no capítulo VI.
244
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
160
Entrevista à Secretária do Bairro Alto Maé “A” e à Presidente Distrital da AMETRAMO, 7 de janeiro de
2009.
245
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
161
Entrevista ao Secretário de Bairro da COOP, 28 de janeiro de 2009.
162
Entrevista à Secretária de Bairro da Malhangalene “B”, 20 de fevereiro de 2009.
246
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
247
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
sobre o que tinham aprendido, dando respostas vagas ou desviando a conversa. A última
vez que coloquei uma questão sobre formação, a resposta foi ilustrativa dos efeitos da
presença do Estado heterogéneo em contexto de globalização, isto é, da forma como
escapa às instâncias superiores o trabalho desenvolvido ao nível local e como as
estruturas locais se adaptam às circunstâncias do seu trabalho, usando seletivamente
orientações nacionais e internacionais, muitas vezes desajustadas aos quotidianos. Neste
caso, o governo moçambicano terá importado uma formação portuguesa que veio dar
orientações sobre situações que há muito as secretarias do bairro tiveram que aprender a
resolver.
SA – Foi feita aqui no bairro uma formação sobre gestão de conflitos, em
outubro…
SB Malhangalene “B” – Sim, sim.
SA - Essa formação foi útil para a resolução de conflitos ou foi uma coisa
diferente?
SB Malhangalene “B” – A formação foi muito útil, só que [risos] são coisas
que nós já vivíamos dia-a-dia, já sabíamos gerir à nossa maneira [risos]. Só
que, bom, a formação também chegou na boa hora. Porque há que gerir o
conflito sem saber que é isto ou não é. Mas, quando chegou aquela
formação, chegou numa boa hora, porque passámos a ter abordagem de
que aquilo que estamos a fazer é aquilo mesmo que vem na formação.
Porque só estávamos a tentar apalpar, mas depois daquela formação
conseguimos ver que aquilo que nós fazemos é aquilo mesmo.163
163
Entrevista à Secretária de Bairro da Malhangalene “B”, 20 de fevereiro de 2009.
248
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
atuação que adquiriram a partir da sua experiência enquanto líderes comunitários e como
cidadãos e cidadãs.
164
Lei 10/92 de 31 de dezembro.
165
O conceito de “caso social” é usado em quase todas as instâncias comunitárias que conheci em
Moçambique. Trata-se de uma categoria de fronteiras fluídas, que envolve, em regra, conflitos que
decorrem de relações de vizinhança, familiares ou do mercado informal, que cabem na esfera de
competências das instâncias comunitárias. Pode acontecer que casos criminais, que envolvem agressões
249
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
entre os litigantes, com o oficial de permanência a atuar como elemento imparcial que
procura encontrar consenso entre as partes, abertura de um processo ou
encaminhamento do caso para outra instituição.166
Os casos que envolvem conflitos conjugais ou violência contra a mulher são
remetidos pela esquadra aos Gabinetes de Atendimento à Mulher e Criança Vítimas de
Violência (daqui para a frente “Gabinetes da Mulher” ou GAMCVV). À semelhança do que
acontece na esquadra, estes gabinetes criam condições para uma reunião entre os
litigantes, em que uma oficial de permanência assume o lugar de terceira parte. Os
Gabinetes da Mulher constituem uma instância intermédia entre a família e o Estado,
uma extensão da primeira, acrescentada com a autoridade do segundo. A atuação é
variável em função das agentes que conduzem o caso e as situações de interlegalidade
são múltiplas, assistindo-se ao cruzamento dos direitos humanos com as normas
processuais do Estado e as normas que regem a vida dos homens e das mulheres nos
espaços doméstico e da comunidade.
Os GAMCVV resultam dos esforços de convergência com a Declaração e Plataforma
de ação adotadas na Conferência das Mulheres em Pequim. Nos anos 1990, Moçambique
não dispunha de mecanismos ajustados para dar resposta aos casos de violência
doméstica contra as mulheres. Além de uma legislação desadequada, as denúncias nas
esquadras não ofereciam garantia de apoio. As queixas, além de sujeitas ao
desaparecimento no rol de casos considerados prioritários, sofriam os efeitos da
inexistência de formação específica para lidar com situações de uma violência
frequentemente considerada legítima. Assim, em vez de serem apoiadas, as vítimas
podiam ser olhadas com sobranceria e até ver-se reclassificadas como culpadas (Osório,
2004a). Num país com um elevado índice de violência no espaço doméstico, o empenho
em mudar esta realidade deu origem a um longo processo de criação, discussão e
promulgação de uma lei específica sobre a violência doméstica praticada contra a
físicas, sejam classificados como casos sociais, no caso de as agressões ocorrerem nos contextos acima
referidos.
166
A Esquadra de Polícia é uma das instâncias analisadas com maior profundidade no âmbito da segunda
fase da ecologia de justiças. Ver capítulo VI, ponto 1.
250
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
167
Lei sobre a Violência Doméstica praticada contra a Mulher, Lei n.º 29/2009 de 29 de setembro.
168
Entrevista à Chefe do Departamento de Atendimento à Mulher e Criança, Comando Geral da Polícia, 8 de
abril de 2010.
251
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
169
Este foi o número fornecido pela Chefe do Departamento de Atendimento à Mulher e Criança, Comando
Geral da Polícia, em 8 de abril de 2010. O Relatório da Ernest and Young para a UNICEF (2010), cujos dados
são anteriores àquela data, falava apenas de 15 gabinetes.
252
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
Como referi no ponto 1.3., o recente Estatuto Orgânico do IPAJ170 estabelece como
função uma prática que vinha sendo realizada, mas não estava especificada na lei, isto é,
a promoção do que designa por “resolução extrajudicial de conflitos”. Assim, na descrição
de funções, esta atividade aparece em segundo lugar logo após a prestação de assistência
jurídica e judiciária aos cidadãos. Os membros do IPAJ são técnicos ou assistentes
jurídicos. Os primeiros possuem licenciatura em direito ou equivalente e os segundos o
nível técnico-profissional ou equivalente (art. 7.º).171 Quando um caso dá entrada no IPAJ,
tratando-se de um caso laboral ou de natureza cível, sempre que possível, irá convocar-se
a outra parte, e o conflito é sujeito a uma tentativa de conciliação das partes. Não se trata
necessariamente de uma mediação no sentido clássico da resolução alternativa de
conflitos, na medida em que os membros do IPAJ, pelo menos até da entrada em vigor do
novo estatuto, embora passassem por cursos de capacitação, não recebiam qualquer
formação em mediação de conflitos ou formas de conciliação. Quando os casos não são
resolvidos nesta fase, o IPAJ encaminha-os para o tribunal, representando a parte que os
procurou.
170
Sobre a mudança do Estatuto Orgânico do IPAJ, ver ponto 1.2. do presente capítulo.
171
Diploma Ministerial n.º 75/2008 de 13 de agosto.
253
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
254
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
sim, está bem, mas se você é chefe, ela é dona. É o mesmo trabalho” (Araújo S., 2008a e
2008c).
O papel desenvolvido por estas organizações é incontornável numa ecologia de
justiças em Maputo. A associação Nós Por Exemplo será uma das instâncias a ser
trabalhada em maior profundidade no capítulo VI.
255
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
3.6. As igrejas
Muita da conflitualidade que ocorre ao nível das famílias em todo o país não chega a
assumir-se como litigação formal, sendo parte dela resolvida no seio da família.
Ampliando apenas ligeiramente o âmbito desta forma de resolução, os líderes das igrejas
ou os membros prestigiados de comunidades religiosas, em formatos quase sempre
informais, dão apoio à resolução desses conflitos, cujos intervenientes não pretendem vê-
los expandir-se para além dos seus espaços de intimidade. Esta situação verifica-se
também no distrito de KaMpfumo, onde está presente um leque muito alargado de
igrejas e comunidades religiosas. Entrevistei um número bastante significativo de líderes
256
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
172
Entrevista ao Vice-Presidente da Assembleia Geral Comunidade Hindu, 12 de fevereiro de 2009.
257
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
173
Entrevista a mulher jovem, licenciada, representante da comunidade hindu para as comunidades/grupos
inter-religiosos, 31 de outubro de 2008.
258
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
174
A informação aqui contida assenta sobretudo em duas entrevistas realizadas na Direção do Trabalho
(Inspetora do trabalho, 12 de março de 2009; Técnico do Departamento de Relações Profissionais,
mediador do Inspeção do Trabalho, 21 de abril de 2010) e na observação de sessões de mediação durante
um dia – 23 de abril de 2010).
175
“Centros De Mediação e Arbitragem Laboral receberam mais de 34 mil casos”, Sapo Notícias, 16 de
junho de 2014. Disponível em http://noticias.sapo.mz/aim/artigo/10192516062014181105.html [acedido
em julho de 2014].
259
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
176
Informação retirada de um panfleto informativo sobre o CACM.
260
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
261
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
no movimento RAL ocupam lugares diferentes no mapa, caso sejam de iniciativa privada
ou estatal. Essa classificação proporciona um ângulo de observação adicional que ajudará
a refletir sobre as hipóteses que envolvem a iniciativa de criação das instâncias,
nomeadamente a influência do Estado moderno ou do Estado heterogéneo, bem como as
iniciativas exteriores ao Estado.
Neste contexto, identifiquei quatro tipos de justiças comunitárias no distrito de
KaMpfumo: instâncias criadas no âmbito do Estado (heterogéneo); instâncias privadas
criadas na esfera do mercado ou da comunidade; instâncias tradicionais e instâncias
religiosas:
1) A categoria que integra maior número de justiças comunitárias é a das instâncias
criadas na esfera do Estado (heterogéneo). Dada a extrema heterogeneidade
estatal, esta categoria compreende instâncias cuja função de resolução de conflitos
foi oficialmente prevista pelo Estado e instâncias mais ou menos híbridas que,
situadas em zonas de contacto, desenvolveram o papel de resolução de conflitos
para responder às necessidades emergentes indo além do que o Estado central
legalmente prevê ou as estruturas municipais determinam. Esta categoria integra:
o o IPAJ, cuja resolução de conflitos extrajudicial foi definida por lei;
o o Centro de Mediação e Arbitragem Laboral (CEMAL);
o a clínicas jurídica que funciona no interior de uma universidade
estatal seguindo os termos da lei estatal e recorrendo a técnicos
jurídicos reconhecidos pelo IPAJ;
o as secretarias de bairro, extensão do Estado na comunidade, cuja
escassa regulamentação central e municipal abre espaço a formas de
atuação heterogéneas;
o os Gabinetes de Atendimento à Mulher e Criança Vítimas de
Violência, uma instância intermédia entre a família e o Estado,
formalização da primeira com a autoridade da segunda, onde a
interlegalidade é uma constante e assume formas variadas;
o e as esquadras de polícia, o mais intenso dos híbridos jurídicos, uma
estrutura de autoridade estatal onde se reproduzem formas de
262
As justiças comunitárias no Distrito de KaMpfumo
263
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo IV
264
Figura n.º 6
IPAJ
CACM
CEMAL
265
Secretarias de bairro
ONGs/associações
Gabinetes de de apoio jurídico e
Atendimento à resolução de AMETRAMO
Mulher e Criança litígios
Esquadras da PRM
(casos sociais) Igrejas e
comunidades
religiosas
MAPA DAS JUSTIÇAS COMUNITÁRIAS DO DISTRITO DE KAMPFUMO
Fi
CAPÍTULO V – AS JUSTIÇAS COMUNITÁRIAS NO MUNICÍPIO DE
LISBOA
Introdução
Apesar de uma longa história de país colonizador europeu e do lugar que ocupou
enquanto centro de um vasto império, Portugal nunca coube plenamente na categoria
moderna a que pertencem os países desenvolvidos. Ao mesmo tempo que a colonização
portuguesa desempenhou um papel na classificação e na desvalorização do “outro”,
Portugal foi classificado como nativo e selvagem por comerciantes e viajantes de outros
países colonizadores. O papel de relevo que desempenhou na expansão europeia nunca
teve tradução numa aproximação ao centro. Nesse contexto, o percurso português tem
constituído uma história de desenvolvimento semiperiférico, em que o país assume
características que o aproximam das sociedades centrais do Norte e outras partilhadas
com os países periféricos do Sul (Santos, 1997; Santos, 2011b).
No século XX, foi palco de uma ditadura que isolou o país e impôs a manutenção de
um império colonial quando os tempos eram de mudança. As quatro décadas de “Estado
Novo” marcaram Portugal pela inércia e estagnação e dificultaram o desenvolvimento de
classes médias assalariadas que acompanhassem o ritmo dos outros países ocidentais. A
industrialização, a urbanização e a relativa harmonização do país com os padrões
europeus teria que esperar pela democratização ocorrida a partir da segunda metade dos
anos 1970 (Estanque, 2012). Em 1986, Portugal aderiu à União Europeia e, a partir dos
anos 1990, assistiu-se a um conjunto de mudanças que convidavam o país a imaginar-se
ao centro, sem que tenha deixado de registar indicadores desviantes em relação à média
europeia e abandonado definitivamente a posição semiperiférica (Santos, 2011b). Os
fluxos de mobilidade social ascendente foram reais mas oscilantes e a classe média
portuguesa continua a possuir um peso escasso e uma duvidosa solidez quando
comparada com as sociedades europeias (Estanque, 2012). Quando, no final de 2008, na
sequência da falência do banco Lehman Brothers, o sistema financeiro internacional
colapsou, dando origem à maior crise económica internacional desde a Grande Depressão
267
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
dos anos 1930, os impactos foram sentidos de forma diferenciada, tendo afetado
particularmente a periferia da zona euro onde está incluída a economia portuguesa
(Abreu et al., 2013). Em 2011, foi anunciada uma grave situação de crise económica e o
governo português recorreu ao financiamento externo do Fundo Europeu de Estabilização
Financeira e do Fundo Monetário Internacional a troco da aplicação de um conjunto de
receitas de austeridade.
Se, como mostrei, a sociedade moçambicana configura um palimpsesto de culturas
jurídicas e políticas, também em Portugal as grandes transformações comportaram
processos de rutura e continuidade, sendo criadas expetativas que nem sempre foram
concretizadas. Na esfera do direito e da justiça, enquanto sociedade do Norte, Portugal
empenhou-se, desde muito cedo, num processo de modernização, que apostou na
centralização do direito e da justiça, que em muitos momentos envolveu concessões à
justiça local de conciliação. Chegado o século XXI, o acesso ao direito e à justiça
permanece altamente seletivo. A litigação aumentou exponencialmente nas últimas
décadas e assumiu o perfil das sociedades do Norte ao mesmo tempo que tribunais
judiciais respondem com ineficiência, inacessibilidade e morosidade (Santos et. al., 1996;
Pedroso, 2002; Santos, 2011b).
Depois do 25 de abril de 1974, com o fim da ditadura, houve umas tímidas
tentativas de introduzir elementos da justiça popular na administração da justiça, sem
que tenham trazido grandes mudanças efetivas. Na última década, o Estado vem dando
sinais de incentivo ao que na linguagem europeia se designa por resolução alternativa de
conflitos ou justiça extrajudicial. Esta aposta vai a favor dos ventos europeus, ainda que
chegue com algumas décadas de atraso. Se por um lado, o objetivo da democratização do
acesso ao direito e à justiça está presente, o esforço de Portugal se mostrar como país
eficiente e atrativo ao investimento não é alheio às novidades. Neste capítulo, cartografo
as justiças comunitárias que operam no concelho de Lisboa, procurando perceber como
se manifesta a recente aposta do Estado na capital do país e que tipo de instâncias
compõem a paisagem jurídica da cidade, sejam elas de iniciativa estatal, privadas ou
híbridas, viradas para o mercado ou para comunidade.
268
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
269
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
177
O conceito de caleidoscópio associado ao direito e à justiça é usado numa publicação organizada por
Boaventura de Sousa Santos e Maurício Garcia Villegas, como “caleidoscópio das justiças na Colômbia”
(Santos e Villegas, 2001) e numa obra de António Hespanha como “caleidoscópio do direito” (Hespanha,
2007).
270
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
271
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
(Hespanha, 1982: 111). Embora a centralização política tenha começado com D. Afonso
Henriques, foi reforçada nos reinados de D. Afonso III (1248-1279) e D. Dinis (1279-1325).
Com o Rei D. Fernando (1345-1383), a tendência intensificou-se correspondendo a uma
aspiração da burguesia comercial de impor uma justiça sem senhores (Meireles, 2010:
6128). No século XIV, foram introduzidos os juízes de fora, de nomeação régia,
juntamente com outras figuras centralizadoras como os corregedores ou os funcionários
encarregados pela inspeção das justiças locais (Cardona Ferreira, 2005a: 80; Meireles,
2010: 6127-8). Estas transformações visavam o desaparecimento dos juízes eleitos e dos
julgamentos comunitários, mas as novidades impostas foram acompanhadas por
descontentamento popular, obrigando a autoridade régia a fazer cedências, sem que
tenha sido alterado o rumo centralizador (Cardona Ferreira, 2005a: 82). António
Hespanha afirma que os juízes de fora tiveram um progresso difícil até ao século XVIII e
que as magistraturas populares se mantiveram até essa altura (Hespanha, 2005: 87, 88).
As Ordenações, coletâneas de legislação uniformizadoras que resultavam do esforço
centralizador do Estado na esfera do direito e enfraqueciam as normas consuetudinárias,
não impuseram o fim categórico das magistraturas populares. As Ordenações Afonsinas,
no século XV, integravam as ideias de conciliação e concórdia, tendência posteriormente
mantida nas Ordenações Manuelinas, no século XVI, e nas Filipinas, no século XVII. Estes
três momentos de compilação legislativa são atravessados pela ideia de que os litigantes
devem fazer um esforço de entendimento antes de iniciarem as acusações e promoverem
ódios e pela convicção de que a vitória unilateral da causa é sempre um resultado
duvidoso. Segundo Cardona Ferreira “não há uma explícita referência ao que, hoje,
chamamos meios alternativos ou sistemas extrajudiciais, como é natural, mas há uma
linha ancestral privilegiadora de acção jurisdicional conciliadora” (Cardona Ferreira,
2005a: 85, 86).
De acordo com Hespanha, as Ordenações estabelecem que onde não exista um juiz
de fora, nomeado pelo rei, a justiça ficará a cargo de juízes ordinários, escolhidos pelos
vizinhos. Introduzem, ainda, para as aldeias mais distantes, os juízes pedâneos ou de
vintena, juízes populares, eleitos pelos vizinhos, embora com uma jurisdição muito
modesta. Acrescentam, ainda, os juízes das honras, juízes não letrados dos domínios
272
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
273
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
são “os Julgados de Paz de tempos anteriores e posteriores” (Cardona Ferreira, 2005a:
74).
A criação da figura dos juízes de paz aconteceu pouco tempo depois com o art.º 129
da Carta Constitucional de 1826, onde se prescrevia que “sem se fazer constar que se tem
intentado o meio de reconciliação não se começará processo algum” e que “para este fim
haverá juízes de Paz, os quais serão electivos pelo mesmo tempo, e maneira, que se
elegem os Vereadores das Câmaras” (Cardona Ferreira, 2005a: 72-72; Cardona Ferreira,
2005b: 4; Pires, 2008: 62). O Decreto-lei de 15 de outubro de 1827 define a existência de
um juízo conciliatório presidido por um juiz de paz eletivo em cada freguesia ou capela
curada. A concretização da instituição aconteceu, em 1832, com Mouzinho da Silveira,
que criou distritos de paz em cada freguesia e reiterou que nenhuma questão ou
demanda deverá ser levada à primeira instância sem ter sido previamente apresentada
no juízo de conciliação (Pereira, 2005a: 19). A Constituição de 1838 confirmou a
existência de juízes de paz eleitos, mantendo a obrigatoriedade da tentativa conciliatória
antes do processo contencioso, mas acrescentando “salvo nos casos que a lei exceptuar”
(art. 124.º). No entender de Cardona Ferreira, “algo começava a não ficar tão claro”
(Cardona Ferreira, 2005a: 75).
Os anos seguintes foram marcados pela perda de entusiasmo com a justiça de paz.
Em Carta de Lei de 1840, os juízes de paz assistiram a restrições da sua competência,
vendo revogadas as atribuições orfanológicas que lhes haviam sido atribuídas pelo
decreto de 18 de Maio de 1832. No entanto, a Novíssima Reforma Judiciária de 21 de
Maio de 1841 afirma que os juízes de paz são eleitos pelo povo e compete-lhe conciliar as
partes em suas demandas e aquelas que lhes atribui o Código Comercial (artigo 134.º).
Estabelece ainda que “para conseguir a conciliação devem os juízes de paz empregar
todos os meios, que a prudência e a equidade lhes sugerir, fazendo ver às partes os
males, que lhes resultam das demandas, e abstendo-se de empregar algum meio violento
ou caviloso, sob pena de responsabilidade por perdas e danos, e por abuso do poder”
(artigo 135.º). Com a Carta de Lei de 27 de Junho de 1867, os juízes de paz passam a ser
nomeados pelo governo (Pereira, 2005a: 20),
274
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
275
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
276
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
178
Decreto-lei n.º 463/75, de 27 de agosto.
179
Sobre os Tribunais de Árbitros Avindores, (ver ponto 1.1. deste capítulo)
277
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
180
III Encontro Internacional de Magistrados, 1 e 2 de março de 1980, Fundação Calouste Gulbenkian,
Lisboa (Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, 1982).
278
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
A Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais de 1977 (LOTJ),181 apesar de excluir as CCJ,
veio instituir os juízes sociais e a possibilidade de criação de julgados de paz, visando,
desse modo aproximar a realidade da justiça portuguesa ao quadro de participação
popular previsto na Constituição. As alterações legislativas foram, no entanto, pouco
ousadas. Os juízes sociais intervêm em determinadas circunstâncias definidas na lei ao
lado do juiz de carreira singular ou do coletivo.182 O legislador define como objetivo
fundamental da institucionalização desta figura jurídica:
“trazer a opinião pública aos tribunais e levar os tribunais até à opinião pública:
já actuando contra a rotina dos juízes e sensibilizando-os em relação aos valores
sociais dominantes e suas prioridades, já estimulando os cidadãos à formação
de opiniões correctas a respeito da administração da justiça e ao reforço do seu
sentimento de legalidade”.183
181
Lei n.º 82/77, de 6 de dezembro.
182
A intervenção dos juízes sociais abrangia ações que tinham por objeto questões de arrendamento rural
(um dos juízes é recrutado de entre os senhorios e outro de entre os rendeiros) (artigo 58.º), alguns casos
de jurisdição de menores (artigo 64.º, n.º 2), e algumas questões do foro laboral (um dos juízes é recrutado
de entre entidades patronais e outro de entre trabalhadores assalariados ou, consoante a situação, um é
nomeado na qualidade de trabalhador independente e outro na qualidade de trabalhador assalariado
(artigo 68.º) (Lei n.º 82/77, de 6 de dezembro). Os juízes sociais, nomeados por períodos de dois anos para
uma das áreas acima designadas, são cidadãos entre os 25 e os 65 anos que sabem ler e escrever
português, estão no pleno gozo dos seus direitos civis e políticos e não estão pronunciados, nem sofreram
condenação por crime doloso (art. 1.º). As nomeações são feitas pelo Ministro da Justiça em conjunto com
o Ministro do Trabalho para os juízes da área laboral e com o Ministro da Agricultura e das pescas na área
do arrendamento rural com base em listas de candidaturas previamente apresentadas. Na área laboral, os
candidatos aos cargos de juiz social podem ser eleitos por cada organização representativa de entidades
patronais, de trabalhadores assalariados ou de trabalhadores independentes ou, ainda, por grupos com
pelo menos cinquenta entidades patronais ou duzentos trabalhadores (art. 14.º); na área do arrendamento
rural podem ser eleitos por cada organização representativa de senhorios (art. 25.º); no âmbito da
jurisdição de menores, a organização de candidaturas compete à câmara municipal e as listas são votadas
na assembleia municipal (arts. 33.º e 36.º) (Decreto-Lei n.º 156/78, de 30 de junho).
183
Decreto-Lei n.º 156/78, de 30 de junho - Regime de recrutamento e funções dos juízes socias.
279
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
Os Julgados de Paz são introduzidos pela LOTJ como mera possibilidade. A lei previa
que pudessem existir ao nível das freguesias e, nesse caso, funcionar como tribunais de
primeira instância (artigo 12.º, n.º 2). A decisão sobre a criação dos julgados de paz
competia às freguesias, a quem cabia, ainda, eleger em plenário ou assembleia o juiz de
paz. O juiz de paz podia ser escolhido entre os cidadãos portugueses alfabetizados com
mais de 25 anos, eleitores inscritos pela respetiva freguesia, em pleno gozo dos direitos
civis e políticos e que não tivessem sofrido condenações, nem estivessem pronunciados
por crime doloso. Competia-lhes exercer conciliação; preparar e julgar as transgressões e
contraversões de natureza cível de alçada não superior aos tribunais de comarca, quando
envolvessem apenas direitos e interesses de vizinhos e as partes estivessem de acordo
em fazê-las seguir no julgado de paz; e exercer outras atribuições que pudessem vir a ser-
lhes conferidas. Das suas decisões poderia recorrer-se para o tribunal de comarca (artigos
73.º e ss.).184
No decreto-lei que regula a organização e o funcionamento dos julgados de paz e
define os termos do processo a que estes tribunais devem obedecer pode ler-se que o
juiz de paz “não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adoptar em
cada caso, segundo critérios de equidade, a solução que julgue mais justa e conveniente,
com vista a obter o máximo de harmonia social” (artigo 12.º, n.º 1); o processo do julgado
de paz é informal (artigo 12.º, n.º 2); não é admissível, salvo em fase recurso, a
intervenção de advogado, candidato à advocacia ou solicitador (artigo 13.º, n.º 2) e os
processos no julgado de paz são isentos de custas (artigo 15.º). No preâmbulo admite-se
que, por todo o lado, vai sendo reconhecida “a necessidade e a conveniência de uma
intervenção mais directa e decisiva da comunidade na tarefa da aplicação da justiça”. Esta
afirmação é justificada com base nas vantagens que a justiça nestes moldes pode
apresentar na superação dos conflitos, pacificação e reconciliação, bem como na
readaptação social, ao inibir parte dos efeitos negativos estigmatizantes da justiça formal.
Reconhecidas as vantagens, é feita referência às possibilidades nesta matéria criadas com
o 25 de Abril de 1974, mas logo em seguida se mencionam os “passos que, com alguma
razão se poderão considerar excessivamente modestos, uma vez que se circunscrevem à
184
Lei n.º 82/77, de 6 de dezembro.
280
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
A partir da leitura dos programas de governo, João Pedroso conclui que é entre
meados da década de 1980 e finais da década de 1990 que os mecanismos de resolução
alternativa de litígios começam a destacar-se nas políticas de promoação do acesso ao
direito e à justiça. No entanto, esses mecanismos só viriam a assumir um papel mais
significativo a partir do final do século (Pedroso, 2011).
O caminho começou a ser percorrido na esfera da arbitragem com um decreto-lei
em 1984 a conferir enquadramento legal à arbitragem voluntária. No preâmbulo do
documento afirma-se como qualidades da arbitragem a celeridade e a equidade,
reconhece-se a fraca expansão da arbitragem em Portugal e a necessidade de ultrapassar
essa situação, estabelecendo-se como objetivo dar um passo importante para que a
arbitragem ocupe o lugar que lhe é devido.186 Dois anos depois, em 1986, a Assembleia da
185
Decreto-Lei n.º 539/79, de 31 de dezembro.
186
Decreto-Lei n.º 243/84, de 17 de julho.
281
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
República consagra a arbitragem voluntária numa lei que vigorou até 2011, ano em foi
revogada e aprovada a lei atual.187 No entanto, o Decreto-lei que regula o regime de
autorização da criação dos centros de arbitragem remonta a dezembro de 1986, estando
aí dispostos os procedimentos a ser respeitado pelas entidades que pretendam requerer
ao Ministério da Justiça autorização para a criação de centros institucionalizados de
arbitragem voluntária188
As primeiras experiências de mediação em Portugal institucionalmente consagradas
ocorreram no Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa, cujo
funcionamento envolve uma fase prévia de mediação (Pedroso, 2001; Cebola, 2008). Em
1993, foi criado o Instituto de Mediação Familiar e, em 1997, a Associação Nacional para
a Mediação Familiar. Ainda em 1997, foi assinado um protocolo entre o Ministério da
Justiça e a Ordem dos Advogados com vista à criação de um projeto designado “Mediação
familiar em conflito parental”. O objetivo era criar a título experimental um serviço de
mediação familiar em matérias de regulação do poder parental. Pouco depois, foi criado
um gabinete de mediação familiar, na dependência do Ministério da Justiça, que visava
assegurar um serviço público de mediação familiar em situações de separação e
divórcio.189 O Gabinete Público de Mediação Familiar, com sede em Lisboa, entrou em
funcionamento em 1999 no âmbito de uma colaboração entre o Ministério da Justiça e a
Ordem dos Advogados e com o apoio do Instituto de Reinserção Social e do Centro de
Estudos Judiciários (Pedroso et. al., 2003: 68).
A transição para o século XXI marca o início de uma nova fase, em que os programas
dos governos apostam na ideia de modernização da justiça e recorrem a palavras-chave
como “desjudicialização”, “desburocratização”, “simplificação” e “dematerialização”
(Pedroso, 2011). Logo no ano 2000, foi criada a Direção-Geral da Administração
Extrajudicial (DGAE) com o objetivo de dar “suporte ao desenvolvimento das acções de
187
A Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro substitui a Lei n.º 31/86, de 29 de agosto.
188
Decreto-Lei n.º 425/86, de 27 de dezembro.
189
Despacho n.º 12 368/97, de 9 de dezembro.
282
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
190
Ponto 5 do Preâmbulo do Decreto-lei n.º 146/2000, de 18 de julho.
191
Ver “Resenha Histórica”, Direção-Geral da Política de Justiça, http://www.dgpj.mj.pt/sections/sobre-
dgpj/anexos/sobre-a-dgpj/resenha-historica/ [acedido em setembro de 2013].
192
Note-se a opção pela designação “meios de resolução alternativa de conflitos” em substituição de
“meios extrajudiciais de resolução de conflitos”. No entanto, entre os operadores, existem diferentes
opiniões e a designação usada continua a não ser consensual.
193
Decreto-Lei n.º 127/2007, de 27 de abril.
194
Decreto-Lei n.º 123/2011, de 29 de dezembro.
195
Informação disponível na página web da DGPJ, http://www.dgpj.mj.pt/sections/gral/index/ [acedido em
dezembro de 2014].
283
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
196
Resolução do Conselho de Ministros n.º 175/2001, de 28 de dezembro.
197
Lei 78/2001, de 13 de julho.
198
Os juizados especiais civis e criminais brasileiros foram pensados a partir da necessidade de tentar uma
resposta à crise do judicial nos anos 1980. À semelhança das opções dos países da Common Law, são
criados no interior do poder judicial, recorrendo a procedimentos e condutas específicas diferentes ao
orientar-se pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridado,
buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação. São constituidos por juizes, conciliadores e
juizes leigos. Procuram aproximar-se da população, chegando a funcionar em centros comerciais ou até de
forma itinerante em autocarros (Pedroso et. al., 2003; Pedroso e Trincão, 2004; Cunha, 2008). Os juizes de
paz italianos resolvem conflitos de natureza civil e penal. Não são juizes de carreira, mas magistrados
honorários selecionados para exercerem funções durante um período de quatro anos, entre cidadãos
italianos, licenciados em direito e com algum conhecimento básico sobre o direito e os problemas da
administração da justiça. Embora possam ser qualificados como juízes de equidade ou conciliação, e a partir
do ano 2000 tenha sido introduzida uma referência expressa às possibilidades de recurso à mediação, na
base da criação desta figura encontra-se a intenção de descongestionar a justiça, através de um processo
simples, rápido e barato (Pedroso e Trincão, 2004; Guidoni, 2006; Pires, 2008).
199
Entre muitas outras experiências, podem ser referidos os juízes de paz em Espanha (Deu, 2006; Pedroso
e Trincão, 2004), os County Courts britânicos, que lidam com casos cíveis via procedimentos simplificados
(‘small claims track’) ou serviços de mediação gratuitos, ou os também britânicos Magistrates' courts, que
recorrem a juízes de paz para resolver casos criminais e alguns conflitos civis (Deu, 2006; Baldwin, 1997).
284
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
285
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
200
O Conselho dos Julgados de Paz (anteriormente designado Conselho de Acompanhamento dos Julgados
de Paz) é presidido por uma personalidade designada pelo Presidente da Assembleia da República e
composto ainda por um representante de cada Grupo Parlamentar representado na Comissão de Assuntos
Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias da Assembleia da República; um representante do
Ministério da Justiça; um representante do Conselho Superior de Magistratura; e um representante da
Associação Nacional de Municípios Portugueses (art. 65.º, n.º 2). A recente alteração da lei acrescentou um
representante dos juízes de paz, eleito de entre estes (art. 65, n.º 2, alínea f).
201
Lei n.º 54/2013, de 31 de julho.
202
Lei n.º 54/2013, de 31 de julho.
203
Memorando de Entendimento entre o Governo Português e a Troika sobre as Condicionalidades de
Política Económica, 17 de maio de 2011, ponto 7.7.
286
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
declarando como alternativa a competência dos julgados de paz para apreciar e decidir as
ações previstas na lei relativamente aos tribunais judiciais de competência territorial
concorrente. No acórdão pode ler-se que os julgados de paz não são tribunais judiciais;
entre os julgados de paz e os tribunais da ordem judicial da primeira instância não há
qualquer relação de limitação de competência, pois o nexo é de paralelismo e de
concorrência; os julgados de paz são órgãos jurisdicionais de resolução alternativa de
litígios, integrando-se na categoria de tribunais de resolução de conflitos de existência
facultativa; o acionamento de uma ação num tribunal judicial ou num julgado de paz
exclui a possibilidade de acionamento no outro, sem prejuízo da transmutação das ações
dos julgados de paz para os tribunais da ordem judicial.204
Esta decisão uniformizou os procedimentos, mas não gerou consenso, sendo
criticada por quase todos os operadores do sistema dos julgados de paz e tendo sido
aprovada sem unanimidade, com uma declaração de voto pela Juíza Conselheira Maria
dos Prazeres Beleza cuja interpretação da lei aponta no sentido de que os julgados de paz
são exclusivamente competentes em razão da matéria para conhecer das ações previstas
no artigo 9.º da Lei n.º 78/2001, de 13 de julho.205 Um mês e meio depois da publicação
do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu
uma decisão em sentido contrário, rebatendo os argumentos do Supremo Tribunal de
Justiça e entendendo-o como inconstitucional.206 Como conclui Mariana França Gouveia,
“nem jurisprudência, nem doutrina conseguem alcançar um mínimo de consenso sobre
esta questão” (Gouveia, 2011).207 No relatório do Conselho dos Julgados de Paz referente
a 2012 é manifesta a discordância em relação ao acórdão. Para além de uma
interpretação diferente da lei, o Conselho argumenta que esta decisão
204
Acórdão do S. T. J. de 24 de maio de 2007, 11/2007, publicado no Diário da República de 25 de julho.
205
Declaração de voto da Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Beleza no Acórdão do S. T. J. de 24 de abril
de 2007.
206
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12 de julho de 2007, processo n.º 6403/200-7.
207
Para uma discussão mais detalhada sobre o debate em torno desta questão, ver Gouveia, 2011.
287
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
208
Decreto-Lei n.º 329/2001, de 20 de dezembro.
288
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
A rede de julgados de paz não cobre ainda a totalidade do território português, não
primando pela proximidade geográfica e não estando a acessível a todos e a todas. Em
2009, o então diretor do GRAL reconhecia esta situação, bem como como a dificuldade
em superá-la:
Portanto, o primeiro aspeto que vos queria dar conta é este: a justiça de
proximidade, do ponto de vista geográfico, nunca será - creio eu, nem acho
que seja do ponto de vista da conceção da estrutura do sistema - algo que
se queira significar por proximidade geográfica. Creio que a única rede que
talvez tenha uma apetência para isso e que provavelmente poderá
suplantar, a seu tempo, a própria rede de implantação dos tribunais
judiciais são os julgados de paz, pelo modelo como estão montados […]
mas, mesmo que seja possível, estamos ainda a muitos anos de conseguir
isso quer na rede de julgados de paz, quer na rede de centros de arbitragem
apoiados, digamos assim, de certo modo, pelo Ministério da Justiça.209
209
Domingos Soares Farinho, Diálogos Interdisciplinares sobre Justiça (Dijus): “Justiça de Proximidade: Uma
promessa de cidadania”, CES, Coimbra, 18 de maio de 2009.
210
Cardona Ferreira, J. O. entrevistado por Filomena Lança, Jornal de Negócios, 26 de setembro de 2011.
Disponível em http://www.apcolaco.com/wp-content/uploads/2011/09/Julgados-de-Paz-devem-poder-
resolver-crimes.pdf [acedido em agosto de 2013].
289
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
Por outro lado, o Presidente do Conselhos dos Julgados de Paz, o Juiz Conselheiro
Cardona Ferreira, considera valiosa a vertente autárquica dos julgados de paz:
211
Entrevista a Noronha do Nascimento, In Verbis. Revista Digital de Justiça e Sociedade, 11 de Novembro
de 2011. Disponível em http://www.inverbis.pt/2007-2011/tribunais/troika-acordo-reduzir-pendencias-
nao-possivel.html [acedido em agosto de 2013].
290
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
Como sabeis, estamos numa instituição cuja origem radica num acordo
entre o Estado e a Autarquia municipal. Ou seja, até nisto se respeita a
História dos Julgados de Paz e se vivencia uma clara perspectiva de
democraticidade.
Os Julgados de Paz não são impostos às comunidades. Decorrem de uma
localizada avaliação de interesses e de necessidades por aqueles que mais
próximos dos cidadãos se encontram: os representantes das suas
Autarquias. E, naturalmente, de uma consonante avaliação das
circunstâncias globais pelo Estado, porque é ao Estado que compete
viabilizar a prestação da Justiça (Cardona Ferreira, 2008).
212
Esta ideia é expressa quase nos mesmos termos pelo diretor do GRAL na entrevista de 2 de julho de
2009.
291
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
213
Entrevista ao Juiz Conselheiro Cardona Ferreira, Presidente do Conselho dos Julgados de Paz, 15 de julho
de 2009.
214
Entrevista ao Diretor do GRAL, Domingos Farinho, 2 de julho de 2009.
292
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
215
Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, substituída pela Lei n.º 54/2013, de 31 de julho.
216
Na lei em vigor, o artigo 53.º foi alterado por uma norma que remete para legislação recente sobre a
mediação: “Ao processo de mediação é aplicável o disposto na Lei da Mediação, aprovada pela Lei n.º
29/2013, de 19 de abril, com as especificidades previstas na presente lei” (Lei n.º 54/2013, de 31 de julho,
artigo 53.º).
293
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
Lei da Mediação, aprovada pela Lei n.º 29/2013, de 19 de abril, com as especificidades
previstas na presente lei” (Lei n.º 54/2013, de 31 de julho, artigo 53.º).
No período que se seguiu à criação dos julgados de paz, o Estado deu sinais de
entusiasmo continuado com a resolução alternativa de conflitos. Em 2004, a lei sobre o
acesso ao direito e à justiça menciona especificamente esses meios ao prever que o
regime de apoio judiciário se aplica “em todos os tribunais, qualquer que seja a forma do
processo, nos julgados de paz e noutras estruturas de resolução alternativa de litígios”.217
Quando esta lei foi revista, em 2007,218 não houve alterações nesta matéria e, na
discussão parlamentar, o então secretário de Estado da Justiça, João Tiago da Silveira,
afirmou que “julgados de paz, centros de arbitragem e novos sistemas de mediação cada
vez mais estão e estarão presentes no sistema de Justiça enquanto formas de composição
de litígios” e que “o sistema de proteção jurídica deve acompanhar este movimento de
crescimento de novos métodos de resolução de conflitos e adaptar-se a novos
mecanismos que possam, muitas vezes de forma mais adequada, solucionar litígios”.219
O impulso para a criação efetiva dos designados sistemas de mediação públicos
ocorreu na área laboral. Em 2006, foi celebrado um protocolo entre o Ministério da
Justiça e a Confederação da Indústria Portuguesa (CIP), a Confederação do Comércio e
Serviços de Portugal (CCP), a Confederação do Turismo Português (CTP), a Confederação
dos Agricultores de Portugal (CAP), a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses
– Intersindical Nacional (CGTP-IN) e a União Geral dos Trabalhadores (UGT) com vista a
criar um Sistema de Mediação Laboral, voluntário e de âmbito nacional, para a resolução
de litígios laborais quando não estão em causa direitos indisponíveis, nem resultam de
acidente de trabalho.220 O SML entraria em funcionamento a 19 de dezembro do mesmo
ano.221 No ano seguinte, foi criado o regime da mediação em processo penal222 que prevê
217
Lei n.º 34/2004, de 29 de julho (art. 17.º, n.º 1).
218
Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto.
219
Intervenção de João Tiago Silveira (XVII Governo Constitucional), qualidade: S.E. Da Justiça, reunião
plenária de 3 de maio de 2007.
220
Protocolo celebrado em 5 de maio de 2006.
221
De acordo com o Diretor do GRAL, o sistema de mediação laboral esteve um ano e meio em
experimentação como projeto-piloto e, em julho de 2009, estendeu-se a todo o território continental
(Entrevista ao Diretor do GRAL, 2 de julho de 2009).
222
Os primeiros passos em termos de mediação penal haviam sido dados em 2001 com a Lei Tutelar
Educativa que introduzia a mediação em matéria penal com menores (Costa S., 2012).
294
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
223
Lei n.º 21/2007, de 12 de junho.
224
Despacho n.º 18 778/2007, de 13 de julho.
225
Decreto-Lei n.º 206/2006, de 27 de outubro.
226
Portaria n.º 237/2010,de 29 de abril.
295
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
condições, digam respeito a litígio que possa ser objeto de mediação e para o qual a lei
não exija homologação judicial e em que tenha participado mediador de conflitos inscrito
na lista de mediadores de conflitos organizada pelo Ministério da justiça. 227 Assim, no
mesmo ano, o Ministério da Justiça promulgou uma portaria que define os requisitos de
inscrição na referida lista, entre os quais consta a frequência e o aproveitamento em
curso de mediação de conflitos.228 De acordo com a Lei da Medição constitui formação
especificamente orientada para o exercício da profissão de mediador de conflitos a
frequência e aproveitamento em cursos ministrados por entidades formadoras
certificadas pelo Ministério da Justiça.229
227
Lei n.º 29/2013, de 19 de abril.
228
Portaria n.º 344/2013, de 27 de novembro (art. 3.º).
229
Lei n.º 29/2013, de 19 de abril (art. 24.º).
230
“O que é a arbitragem”, página oficial da DGPJ, em http://www.dgpj.mj.pt/sections/gral/arbitragem.
[acedido em dezembro de 2013].
231
Memorando de Entendimento entre o Governo Português e a Troika sobre as Condicionalidades de
Política Económica, 17 de maio de 2011, ponto 7.6.
296
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
232
Exposição de motivo da Proposta de Lei n.º 22/XII, Presidência do Conselho de Ministros. Disponível em
http://www.oa.pt/upl/%7B13c2c717-6547-4f86-bdbd-ddd7ff69d5b4%7D.pdf [Acedida em julho de 2013].
233
Decreto-Lei n.º 60/2011, de 6 de maio.
297
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
234
Intervenção do Secretário de Estado da Justiça e da Modernização Judiciária, Dr. José Magalhães na
Sessão de Abertura da Conferência “A Resolução extrajudicial de Conflitos no Sec. XXI”, Lisboa, 17 de março
de 2011.
235
Sobre os conceitos de informalização e desjudicialização, ver ponto 2.2.2. do capítulo II.
236
Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de outubro.
298
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
237
Lei nº147/99 de 1 de Setembro, art. 12.º.
299
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
[…]
Por exemplo, quais são as vantagens dos julgados de paz? As vantagens
proclamadas: maior proximidade, mais barata, mais desformalizada. Muito
bem! Porque é que os tribunais não fazem isso? Porque é que não há uma
relação mais próxima entre os tribunais e as partes, e os cidadãos e os
interesses? Porque é que não é mais desformalizada, com aqueles
ritualismos inúteis e estéreis, que têm uma dimensão lúdica ou, muitas
vezes, paralela ao processo? Porque é que não é mais barata? Porque é que
o Estado está a investir milhões nos julgados de paz e não investe em novos
tribunais e na desformalização? E, portanto, porque é que os tribunais não
dão isso?238
O Presidente do Conselho dos Julgados de Paz afirma que existe alguma tendência
para desconfiar de inovações, mas que é necessário ter em atenção que os tempos
mudaram, há novas exigências, os litígios aumentaram, há sinais de crise. Afirma que é
urgente “inovar, encontrar novos caminhos, seguir por eles, naturalmente ainda que com
capacidade crítica, para ir aperfeiçoando o que possa e deva ser aperfeiçoado” (Cardona
Ferreira, 2001: 7). No relatório referente a 2012 dos julgados de paz faz-se referência à
resistência à novidade:
238
Entrevista a Marinho Pinto enquanto Bastonário da Ordem dos Advogados, 23 de julho de 2009.
300
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
301
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
pouco conclusivos para avaliar o caminho percorrido.239 Embora não considerem um dos
problemas mais consistentes dos RAL em Portugal, a invisibilidade, mostram que os
utentes do sistema de justiça que experimentam os meios RAL declaram forte intenção
de, em caso de necessidade, voltar a recorrer a estes serviços do Ministério da Justiça. No
entanto, nas parcas conclusões e recomendações, podemos ler que se recomenda “uma
avaliação da eficiência financeira destas soluções de resolução de conflitos entre os
cidadãos, que constituem mais um mecanismo de administração da Justiça o qual, como
se demonstra com o presente estudo, oferece níveis muito expressivos de satisfação por
parte dos respetivos utentes” (DGPJ e ISCTE, 2013).
Fica pouco claro em que consistirá a análise da eficiência financeira e que medidas
podem advir da mesma. Ainda que o discurso sobre os meios de resolução alternativa de
conflitos exalte a ideia de proximidade entre justiça e cidadãos ou cidadãs, as políticas de
RAL estão associadas a ideias de gestão eficiente de recursos e criação de estabilidade e
confiança para a economia. Veremos como todas estas políticas se refletem no mapa das
justiças comunitárias de Lisboa e se contribuem para a concretização de uma justiça mais
adequada ou para uma justiça de segunda classe.
239
Nestes inquéritos, os serviços de mediação tiveram um tratamento diferente dos restantes meios, tendo
sido realizada uma amostra de apenas 12 utentes, que, como se reconhece no estudo, proporciona
resultados apenas indicativos e não representativos. Nos centros de arbitragem foram realizados 337
inquéritos e nos julgados de paz 156 (DGPJ e ISCTE, 2013).
302
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
240
Até há pouco tempo, Lisboa era composta por cinquenta e três freguesias. Em 2012, na sequência de um
processo de reorganização, que envolveu redefinição de limites, fusão de freguesias e a criação da freguesia
do Parque das Nações, Lisboa passou a ser constituída pelas atuais 24 freguesias (Lei n.º 56/2012, de 8 de
novembro).
303
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
241
Informação consultada em “Lisboa”, In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2013 [Consult.
2013-08-30].
304
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
305
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
242
Entrevista ao Presidente do Conselho dos Julgados de Paz, 15 de julho de 2009.
306
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
243
O SMP está em funcionamento nas seguintes comarcas: Barreiro, Braga, Cascais, Coimbra, Loures, Moita,
Montijo, Porto, Santa Maria da Feira, Seixal, Setúbal e Vila Nova de Gaia e ainda nas comarcas-piloto de
Alentejo Litoral, Baixo Vouga e Grande Lisboa Noroeste.
244
Este portal é encontrado em http://www.dgpj.mj.pt/DGPJ/sections/home. Antes da sua integração na
DGPJ, o GRAL dispunha de um sítio próprio, cujo conteúdo foi parcialmente incluído no portal da DGPJ.
245
A página do Conselho dos Julgados de Paz pode ser encontrada em
http://www.conselhodosjulgadosdepaz.com.pt/.
307
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
vídeo ou áudio que pretenderam chegar ao grande público através das televisões e das
rádios e até um livro de banda desenhada sobre os meios de resolução de conflitos
portugueses. Navegando na internet, é ainda fácil aceder a arquivos de programas de
rádio e televisão, bem como artigos de jornais sobre esta realidade. Nas páginas de várias
associações é possível obter uma variedade imensa de informação sobre estruturas
particulares ou mecanismos de resolução alternativa de conflitos em geral.
Reconhecer esta situação é diferente de argumentar que a informação atinge o
público ou que subverteu a relação entre a pertença aos estratos sociais mais elevados e
o acesso à informação. Embora seja acessível quando os utentes mobilizam as tecnologias
da informação e sobretudo quando já estão conscientes das várias estruturas de
resolução de litígios, não está a ir ao encontro dos cidadãos que desconhecem
completamente os mecanismos de RAL.
Poucas serão as pessoas que se lembram dos anúncios de mediação de conflitos que
passaram na televisão e na rádio. De acordo com o ex-Diretor do GRAL, Domingos
Farinho, os anúncios passaram na RTP1 e na RTP2 e em estações de rádio durante dois
meses, mas é necessário continuar a apostar nos meios de comunicação tradicionais para
chegar aos cidadãos. O próprio admite que a questão da invisibilidade é um dos principais
problemas que afeta esta aposta do governo nos meios alternativos.
Diretor do GRAL - Há uma aposta clara. Não podemos negar. Abriram uma
série de julgados de paz, centros de arbitragem. Criaram-se os sistemas de
mediação. A divulgação ao cidadão, de facto, tem pecado um pouco por
isso. Mas, parece-me a mim, que eles também estão expectantes, eles
governantes. Vamos lá ver se isto pega. Porque se vamos jogar o ouro todo
e isto não resultar, é uma perda muito grande. São muitos e muitos milhões
de euros que temos aqui para investir. Eu penso que está a haver uma
política de gradualmente se ir investindo e penso que está a ser bem feito.
Na minha perspetiva está a ser bem feito, penso que está a ser bem
feito”[…] “A divulgação é boca-a-boca”.246
246
Entrevista ao Diretor do GRAL, 2 de julho de 2009.
308
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
cada vez mais cidadãos e empresas conheçam e utilizem estes meios, daí a
grande aposta em diversas formas de divulgação.247
247
Domingos Farinho, enquanto diretor do GRAL, em entrevista ao Grupo Algébrica n.º 280, fevereiro de
2009, disponível em http://www.algebrica.pt/Arquivo/Newsletters/eap/280/index.htm, acedida em 31 de
outubro de 2013.
309
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
248
Material disponível em “Campanhas de divulgação da Resolução Alternativa de Litígios”,
http://www.dgpj.mj.pt/sections/gral/campanhas-sobre [acedido em março de 2014].
310
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
Funcionário do CJP: […] a divulgação que é feita dos julgados de paz e das
mediações […] é feita de uma maneira que é panfletos. Ou seja, é
distribuído os panfletos como alguns que eu tenho ali nos julgados de paz.
[…].
Funcionário do CJP: Ora bem, os panfletos deviam estar nos cafés, deviam
estar nos cinemas, deviam estar nos, percebe? É a mesma coisa que nós
irmos a um Centro de Saúde, isto é um exemplo (não é?), e termos lá um
placard a dizer “Vacine-se não sei que mais”. Estes placards não deviam
estar no Centro de Saúde, deviam estar é no café ao pé do Centro de Saúde
ou…, percebe? […]250
249
Entrevista ao Juiz de Paz de Lisboa e Presidente da Associação dos Juízes de Paz, João Chumbinho, 20 de
janeiro de 2011.
250
Entrevista ao Dr. João Martins, Funcionário do Conselho dos Julgados de Paz, 18 de junho de 2009.
311
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
251
Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, art. 64.º.
252
Dada a extensão do Município de Lisboa, a abertura de um julgado de paz ou uma secção numa outra
parte de cidade facilitaria o acesso geográfico. Um funcionário do Conselho dos Julgados de Paz sugeriu em
entrevista que a abertura de uma secção no Bairro Alto seria uma boa ideia e não afetaria o fluxo de
cidadãos que se dirige a Telheiras (Entrevista a funcionário do CJP, 18 de junho de 2009).
312
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
253
Lei 54/2013, de 31 de julho, art. 9.º.
254
Lei 54/2013, de 31 de julho, art. 16.º.
313
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
arbitral, em que o juiz impõe uma decisão. O acordo da mediação é homologado pelo juiz.
Tal como a decisão arbitral tem valor de sentença. Caso um processo siga até julgamento,
os custos totais são €70. Esta taxa fica a cargo da parte vencida ou é repartida entre o
demandante e o demandado nos termos determinados pelo juiz de paz. Se o caso for
resolvido por mediação, a taxa é reduzida para €50.
O Julgado de Paz de Lisboa é uma das instâncias cujo modo de funcionamento será
analisado no capítulo VII com recurso à grelha analítica que defini no capítulo III.
255
Esta situação não existiu sempre. O SMF começou por ser implementado em Lisboa, estendendo-se
posteriormente a um conjunto restrito de municípios e só depois a todo o território nacional.
314
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
256
Sobre a lista pública de mediadores e a atual lei da mediação, ver ponto 1.3.2.2. do presente capítulo.
257
Código Europeu de Conduta de Mediadores, apresentado na Comissão Europeia no dia 2 de julho de
2004. Tradução portuguesa disponibilizada pela DGPJ aqui: http://www.dgpj.mj.pt/sections/gral/mediacao-
publica/mediacao-anexos/codigo-europeu-
de/downloadFile/file/Codigo_Europeu_de_Conduta_para_Mediadores_13.03.2014.pdf?nocache=13947079
97.85 [acedido em agosto de 2013].
315
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
o interesse dos mesmos. Nos casos resolvidos por mediação em que a lei não exige
expressamente a homologação judicial, os acordos assinados têm força executiva. A
utilização dos sistemas de mediação laboral e familiar envolve o pagamento de uma taxa
no valor de € 50 por cada uma das partes, independentemente do número de sessões,
que não é aplicada quando o processo é remetido pelo juiz ou quando é concedido apoio
judiciário a alguma das partes.
A DGJP e o GRAL apontam um conjunto de benefícios à mediação, como a
segurança, a confidencialidade, a informalidade, a eficácia, a rapidez e o custo reduzido.
No entanto, apesar dos discursos de valorização e do esforço que culminou com uma lei
homogeneizadora de 2013, não existem evidências de que o investimento esteja a seguir
uma rota definitivamente ascendente. Essa questão será abordada no capítulo VII, em
que o SMF será apresentado com maior profundidade no âmbito do segundo momento
da ecologia de justiças.
316
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
F i g u r a n . º 7 258
258
Diagramas incluídos nas brochuras de divulgação do SMF e do SML, disponíveis no website oficial da
DGPJ, em “Campanhas sobre a Resolução de Litígios”. Disponíveis em
http://www.dgpj.mj.pt/sections/gral/campanhas-sobre [acedido em agosto de 2013].
317
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
259
Entrevista a representante da APAV, 20 de agosto de 2009.
318
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
A sua competência é abrangente, integrando todo o tipo de conflitos que, por lei,
possam se submetidos à conciliação da associação. Os serviços de conciliação são
considerados particularmente adequados para casos em que “os custos, os riscos, a
inultrapassável demora por vários anos e o desgaste emocional inerentes a uma solução
judicial são demasiado elevados; o litígio é complexo e de resultado incerto; a solução do
litígio pode implicar a revelação entre as partes de elementos confidenciais”. O discurso
de divulgação da associação não menciona questões como proximidade, acesso ao direito
e à justiça ou baixos custos. Embora tenha colaborado com os sistemas públicos de
Mediação (Familiar, Laboral e Penal), escolheu especializar-se na conciliação financeira.261
260
Regulamento da Conciliação da CONCÓRDIA, art. 1.º.
261
Texto de Apresentação da CONCÓRDIA, 19 de novembro de 2008, disponível em
http://www.flad.pt/documentos/1227524137Q0hGH5up8Mb22TC0.pdf [acedido em outubro de 2013].
319
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
262
Entrevista ao Presidente e à Vice-Presidente da Direção da CONSULMED, 30 de julho de 2009.
320
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
263
Informação disponível no website da CONSULMED. Disponível em
http://www.consulmed.pt/index.php/layout [acedido em outubro de 2013].
321
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
264
Informação disponível no website da CONSULMED, em http://www.consulmed.pt/index.php/layout
[acedido em outubro de 2013].
322
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
323
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
265
Portaria n.º 312/2009, de 30 de março.
266
Ver informação disponível no website oficial da DGJP: http://www.dgpj.mj.pt/sections/gral.
324
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
325
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
Os acordos homologados pelo tribunal arbitral têm força executiva de uma decisão
do tribunal. O prazo legal para a duração dos processos é de 12 meses, mas nos Centros
de Arbitragem apoiados pelo Ministério da Justiça, de acordo com a informação
disponibilizada pelo GRAL, o tempo médio de resolução de um processo é de cerca de 3
meses. Esse período pode ser superior se as partes o convencionarem.267
F i g u r a n . º 8 268
267
Informação disponível no website oficial da DGJP: http://www.dgpj.mj.pt/sections/gral.
268
Imagem disponível no website oficial da DGPJ: http://www.dgpj.mj.pt/sections/gral/arbitragem/anexos-
arbitragem/centros-de-arbitragem/.
326
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
269
Entrevista ao Diretor do GRAL, 2 de julho de 2009.
270
Entrevista ao Diretor do GRAL, 2 de julho de 2009.
327
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
271
São sócios fundadores da associação a Câmara Municipal de Lisboa, a DECO e a União de Associações de
Comércio e Serviços.
272
Informação contida na brochura do Centro de Arbitragem de Resolução de Conflitos de Consumo de
Lisboa.
328
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
formulário disponível na página web do CACCL, que pode ser submetido online ou
enviado por correio.
O utente passa por um momento de informação jurídica ao qual é atribuída
considerável importância, visto definir a continuidade do processo, permitindo uma
triagem dos casos.273 Um vez informado, se entender que deve seguir em frente com uma
reclamação e o caso couber na jurisdição do centro, segue-se a fase de mediação, cujo
formato é bastante flexível. Cabendo ao jurista do processo, não é necessariamente
presencial, podendo ser dinamizada por telefone, correio físico, correio eletrónico ou fax.
Caso a mediação não termine em acordo, o processo segue para o Tribunal Arbitral, onde
uma tentativa de conciliação antecede a arbitragem. Para ser dado esse passo, é
fundamental que as partes formalizem a adesão ao sistema através de uma Convenção de
Arbitragem, que pode ser pontual, caso tenha por objeto o conflito presente, ou plena,
quando se refere a conflitos presentes e futuros. O tribunal arbitral é composto por um
único árbitro, um magistrado judicial, designado pelo Conselho Superior de Magistratura,
que “decide normalmente segundo o direito constituído, utilizando a equidade apenas
quando necessário e se autorizado pelas partes”.274 Em nenhum momento é obrigatória
a constituição de advogado, ainda que sejam bem-vindos.275 Todo o processo é gratuito,
com exceção de algumas peritagens. Se estas não puderem ser assumidas pela união dos
peritos de lisboa, as partes têm que suportar os custos.
O Centro de Arbitragem do Setor Automóvel (CASA), requerido pela Associação de
Arbitragem Voluntária de Litígios do Setor Automóvel, resulta da convergência de
vontades de associações que representam os interesses dos empresários do setor
automóvel e dos consumidores, bem como do Estado. Foi criada em 1993, tem sede em
Lisboa e âmbito nacional. Resolve conflitos de consumo ocorridos no setor automóvel
relacionados com a compra, venda, manutenção e utilização de veículos automóveis. 276 A
abertura do processo de reclamação envolve um pagamento de €10. A informação, a
273
A importância desta fase é enfatizada nas Entrevistas à Presidente e a uma das jurustas do CACCL, ambas
realizadas a 17 de junho de 2009.
274
Brochura do Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa.
275
A abertura do Centro à presença de advogados fica clara nas entrevistas à Presidente e a uma das
juristas do CACCL, ambas realizadas a 17 de junho de 2009, bem como nas sessões de arbitragem
observadas em 2009.
276
Página web: Website: http://www.centroarbitragemsectorauto.pt/site/index.php.
329
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
277
Website: http://www.cimpas.pt/index.html.
278
Para informações mais pormenorizadas sobre as custas, consultar o website do CAAD, em
http://www.caad.org.pt/administrativa.
330
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
279
Regulamento de Encargos Processuais, 3 de outubro de 2012, disponível no website do Centro de
Arbitragem, em https://www.arbitrare.pt/sub_regulamentos.php?id=47&sbid=26.
331
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
332
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
dos cidadãos e dos próprios advogados. Este problema foi apontado pelo Diretor do GRAL
e tende a ser mencionado por responsáveis de centros de arbitragem. Veja-se as
observações da Presidente do CACCL e do ARBITRARE:
280
Entrevista à Presidente do CACCL, 17 de junho de 2009.
281
Entrevista a Joana Borralho de Gouveia, presidente da Direção do ARBITRARE, Revista Negócios Portugal,
21 de setembro de 2009.
333
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
As instâncias comunitárias que operam na cidade de Lisboa não se esgotam nas que
fazem parte das propostas e dos debates no âmbito dos RAL. Como mostrei, o conceito é
mais amplo, estendendo-se a formas de resolução de conflitos que não cabem nas
definições estreitas de mediação, negociação, conciliação e arbitragem. Nesse sentido, as
Comissões de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) fazem parte do objeto de análise no
âmbito da ecologia de justiças, na medida em que são instituições oficiais não judiciárias,
com autonomia funcional, que visam promover os direitos das crianças e dos jovens e a
prevenção ou o termo (i. e. resolução) de situações suscetíveis de afetar a sua segurança,
saúde, formação, educação ou desenvolvimento integral.283 São, pois, instâncias de
resolução de conflitos relativas a “crianças em risco”, que resultam de uma parceria entre
o Estado central, as autarquias locais, e entidades associativas da comunidade, como
instituições particulares de solidariedade social ou outras associações que desenvolvam
atividades desportivas, culturais ou recreativas destinadas a crianças e jovens.
A CPCJ funciona em modalidade alargada ou restrita. A Comissão Alargada é
composta por representantes de um leque diverso e alargado de instituições do Estado e
da comunidade, competindo-lhe desenvolver ações de promoção dos direitos e de
prevenção das situações de perigo para a criança e jovem.284 A comissão restrita é
282
“O que é a APA – Associação Portuguesa de Arbitragem”, texto de apresentação disponível no website
da associação. Disponível em http://arbitragem.pt/apa/o-que-e/ [acedido em 22 de outubro de 2013].
283
Lei nº147/99 de 1 de Setembro, art. 12.º.
284
A Comissão alargada é composta por representantes de várias instituições, nomeadamente município ou
freguesias; Segurança Social; Ministério da Educação; serviços de saúde; instituições particulares de
solidariedade social ou de outras organizações não-governamentais destinadas a crianças e jovens;
associações de pais; associações ou outras organizações privadas que desenvolvam atividades desportivas,
culturais ou recreativas destinadas a crianças e jovens; associações de jovens ou serviços de juventude;
forças de segurança. Fazem ainda parte da Comissão Alargada quatro pessoas designadas pela assembleia
municipal ou pela assembleia de freguesia de entre os eleitores e técnicos com formação em serviço social,
psicologia, saúde ou direito, ou cidadãos com especial interesse pelos problemas da infância e juventude.
Lei nº 147/99 de 1 de Setembro, art. 17.º. As ações concretas a desenvolver pela comissão alargada são
definidas no n.º2 do art. 18.º.
334
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
composta por um número ímpar, nunca inferior a cinco, dos membros que integram a
comissão alargada, sendo membros por inerência o presidente e os representantes do
município e da Segurança Social, e intervém nas situações em que uma criança ou jovem
está em perigo, procedendo ao diagnóstico e instrução do processo, bem como ao
acompanhamento e revisão das medidas de promoção e proteção.285
Qualquer pessoa pode recorrer à CPCJ quanto toma conhecimento de uma situação
que ponha em perigo a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o
desenvolvimento da criança e do jovem. A CPCJ tem legitimidade para intervir quando
uma criança ou um jovem está em perigo e não é possível resolver o problema
recorrendo ao meio familiar habitual ou às entidades competentes em matéria de
infância ou juventude de 1ª linha de intervenção (serviços de solidariedade e segurança
social, IPSS, ONG, forças policiais, hospitais, escolas, entre outras).286 Quando recebe a
comunicação da situação ou depois de proceder a diligências sumárias que a confirmem,
tendo legitimidade para intervir, a CPCJ deve contactar a criança ou o jovem, os titulares
do poder paternal ou a pessoa com quem a criança ou o jovem residam, informando-os
da situação e ouvindo-os sobre ela. Deve ainda informá-los sobre a sua forma de
intervenção, das medidas que pode tomar, do direito de não autorizarem a intervenção e
suas possíveis consequências e do seu direito a fazerem-se acompanhar de advogado.287
Ao contrário do que acontece nos processos de mediação, as CPCJ não estão
sujeitas a compromissos de confidencialidade e os/as técnicos/as podem servir como
testemunhas caso o processo venha a seguir uma via judicial. De acordo com João
Pedroso (2011: 386), as CPCJ intervêm como um terceiro autónomo e independente na
defesa do superior interesse da criança e do jovem em perigo, decidindo sobre as
medidas aplicadas, os termos em que serão cumpridas e o prazo de duração, ainda que
para que as decisões tenham valor jurídico devam ter o acordo dos pais, representantes
legais ou guarda de facto da criança e da não oposição desta, se tiver mais de 12 anos (ou
285
Lei nº 147/99 de 1 de Setembro, arts. 20.º e 21.º. Ver Guia Pergunta-Resposta para as Comissões de
Proteção de Crianças e Jovens disponibilizado pela Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em
Risco, em http://www.cnpcjr.pt/preview_documentos.asp?r=60&m=PDF [acedido em julho de 2013].
286
Lei nº 147/99 de 1 de Setembro, art. 3º.
287
Ver Guia Pergunta-Resposta para as Comissões de Proteção de Crianças e Jovens disponibilizado pela
Comissão Nacional de Proteção de Crianças e Jovens em Risco, em
http://www.cnpcjr.pt/preview_documentos.asp?r=60&m=PDF [acedido em julho de 2013].
335
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
336
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
288
Entrevista a técnica da CPCJ Ocidental de Lisboa, 25 de julho de 2009.
289
Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de outubro.
290
As matérias referidas são a atribuição de alimentos a filhos maiores e da casa de morada da família; a
privação do direito ao uso dos apelidos do outro cônjuge; a autorização de uso dos apelidos do ex-cônjuge;
a conversão de separação judicial de pessoas e bens em divórcio (Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de
outubro, art. 5.º).
291
Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de outubro, art. 7.º.
337
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
292
Decreto-Lei n.º 272/2001, de 13 de outubro, art. 12.º a 14.º.
293
Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro (art. 1774.º).
338
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
339
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
340
As justiças comunitárias no Município de Lisboa
341
Ecologia de Justiças -1ª Fase
Capítulo V
ainda acompanhado por um conhecimento mais amplo dessa diversidade por parte de
quem procura justiça. De acordo com trabalhos anteriores, essa ausência de visibilidade
tende a ser minimizada com o aumento do nível de escolaridade ou, se quisermos, onde o
círculo da sociedade civil íntima e da sociedade civil estranha são maiores. No capítulo VII
analisarei mais profundamente a questão do acesso no âmbito das duas instâncias
selecionadas.
Não é minha intenção assegurar a inexistência de justiças comunitárias não
institucionalizadas em Lisboa ou de zonas estatais heterogéneas onde, à semelhança das
esquadras de Maputo, seja feita resolução de conflitos não regulamentada. Os mapas
foram construídos a partir da aplicação das metodologias que defino no capítulo III.
Assumi desde o início que não procurava padrões comuns, mas a diversidade que os
locais e as metodologias me oferecessem. Não teria sentido insistir nas zonas
heterogéneas das esquadras lisboetas ou trilhar o percurso de todas as igrejas para
perceber se, em algum contexto e em algum momento, ocorrem processos de
composição de litígios. Ao definir as justiças comunitárias, referi que têm um lastro de
organização. Não querendo dizer que têm que ser reconhecidas pelo Estado ou pela
população, não são classificadas como justiças comunitárias a partir de uma atividade
esporádica e ad hoc. Um individuo a ajudar dois amigos a organizar partilha de bens não
configura uma instância comunitária. Assim, ainda que nas igrejas, nas esquadras de
Lisboa ou em outras entidades possam ocorrer episódios de resolução de conflitos, o
trabalho de pesquisa desenvolvido nunca ofereceu pistas que indicassem que esse
trabalho pudesse existir ou ter um registo continuado e por isso não cabem no mapa tal
como o cartografei.
342
Figura n.º 9
SETOR PRIVADO
ESTADO
IPSS/ONGS/ASSOCIAÇÕES/ UNIVERSIDADES/ESCOLAS SUPERIORES/OUTRAS
COMUNIDADE
MERCADO
Julgado de
Paz
Centros de arbitragem Centros de arbitragem
reconhecidos e apoiados reconhecidos
SMF
GRAL
343
Sistemas de apoio ao Sistemas de apoio ao
sobreendividamento sobreendividamento não
SML credenciados credenciados
Associações de mediação e
Conservatórias do conciliação
Registo Civil
MAPA DAS JUSTIÇAS COMUNITÁRIAS DO MUNICÍPIO DE LISBOA
CPCJ Ocidental/Oriental/Norte/Centro
Figur
ECOLOGIA DE JUSTIÇAS/SEGUNDA FASE: O PLANO MICRO – AS ROTINAS
345
[Figura adaptada de desenho de Pedro Colaça]
CAPÍTULO VI – NARRATIVAS DE QUOTIDIANOS HÍBRIDOS. A
ESQUADRA, O GABINETE DA MULHER, A ASSOCIAÇÃO
Introdução
294
A observação decorreu entre meados de fevereiro e março de 2010 e foi realizada sobretudo nos
períodos de maior movimento da esquadra, entre as 7h30 e as 14h00.
347
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
295
A observação decorreu entre janeiro e fevereiro de 2010.
296
Sobre a LDH, ver José e Santos (2003); sobre a MULEIDE, ver Araújo S. (2008).
348
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
297
A observação da NPE foi feita em dois períodos. Teve início em dezembro de 2009 e foi retomada entre
janeiro e março de 2010. A observação centrou-se nas sessões de resolução de conflitos (terças e quintas a
partir as 14.30).
349
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
A porta da 7ª Esquadra, aberta 24 horas por dia, dá entrada direta à sala de triagem
com três balcões de atendimento, onde dificilmente é garantida a confidencialidade das
conversas. De acordo com as regras, é neste espaço que os/as queixosos/as são
ouvidos/as pela primeira vez.298 O oficial de permanência que recebe a queixa determina
se o caso é da competência da esquadra e, se assim for, procede à intimação do/a
acusado caso este seja identificável.
Num momento posterior, reunidas as partes, o caso continua no gabinete da
permanência. Tratando-se de um crime, é aberto um auto e prossegue-se de acordo com
os trâmites previstos na lei. Se a questão for classificada como “caso social”, o oficial de
permanência tenta conduzir as partes a um acordo. Como irei mostrar, a distinção entre
caso social e caso criminal é bastante fluída.299 O gabinete de permanência dispõe de uma
máquina de escrever e dos documentos necessários à abertura do processo-crime. Reúne
também as condições para a composição dos casos sociais com intervenção do oficial de
permanência: uma secretária à qual se senta o agente de serviço, duas cadeiras em frente
para as partes em conflito e várias cadeiras laterais para os acompanhantes, testemunhas
ou visitantes (como era o meu caso). Na prática, se houver pouco movimento, as queixas
são recebidas diretamente na sala de permanência e, se a afluência for elevada, vários
casos sociais podem ser tratados em simultâneo nos balcões da sala de triagem.
Os mobilizadores da instância são homens e mulheres de todas as idades, quase
sempre falantes de português, com diferentes profissões e, aparentemente, com origens
298
Na linguagem da esquadra é variável a terminologia corrente usada para os litigantes dos casos sociais,
usando-se “queixoso/queixado ou acusado”, “agressor”/”vítima ou ofendido”, entre outras. Opto aqui pela
utilização da terminologia “queixoso” e “acusado”, mais adequada aos casos sociais, certa de que poderia
usar outra.
299
Sobre o conceito de “caso social”, ver ponto 3.3 do capítulo IV.
350
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
socioeconómicas diversas.300 Podem residir no Alto Maé, noutro bairro ou mesmo num
distrito municipal diferente, desde que o conflito tenha ocorrido na área geográfica
coberta pela jurisdição da esquadra. O grupo de acusados/as apresenta a mesma
heterogeneidade. As equipas de permanência, funcionando em alternância, são
compostas por dois oficiais, podendo um terceiro prestar apoio no momento da triagem.
Na altura da realização do trabalho empírico, todos os oficiais de permanência eram
homens, apesar de a esquadra integrar agentes mulheres. Em regra, os casos são
atendidos individualmente por um dos agentes, podendo ocorrer situações que um
segundo está presente e intervém com uma questão pontual, sugestão ou pedido de
esclarecimento. De acordo com o Comandante, a maioria destes agentes não teve
formação da Academia de Ciências de Polícia (ACIPOL) e nenhum terá recebido formação
oficial em mediação de ou qualquer meio de resolução de conflitos.
300
Não existem dados que permitam aferir as origens socioeconómicas dos mobilizadores da instância. No
entanto, a observação dos casos e das narrativas dos litigantes permitiu identificar alguma diversidade,
ainda que não seja comum a mobilização da instância pelas elites socioeconómicas.
351
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
vínculo único, embora surjam litígios decorrentes de relações multiplexas, que envolvem
laços familiares, de amizade, de vizinhança ou laborais.
Tendo sido negado o acesso ao livro de ocorrências ou a qualquer registo escrito,
não foi possível produzir uma análise extensiva da conflitualidade inscrita. No entanto, as
várias semanas de observação direta na esquadra permitiram dar conta da elevada
afluência a esta instância e identificar o tipo de procura (registada e não registada). São
poucos os momentos em que a esquadra está vazia. Durante o período total de
observação, registei a entrada de 69 situações diferentes.
Os casos mais frequentes foram os litígios por não pagamento de dívidas (veja-se o
quadro n.º 8). Correspondendo a 24,6% das situações, estas dívidas foram contraídas no
mercado formal (instituições de crédito oficiais), no mercado informal (instituições de
crédito informais) ou na comunidade (entre amigos ou conhecidos), com ou sem recurso
à assinatura de declarações escritas. O valor envolvido variou entre os 30,00 Meticais
(valor inferior a €1) e os 2 000 dólares. Logo atrás dos casos de dívida, cobrindo 15,9% dos
conflitos, estiveram os casos que classifiquei como “conflitos de consumo/prestação de
serviços” e se prendem com queixas e cobranças relacionadas com o pagamento por
produtos ou serviços, nos mercados formal ou informal, que não corresponderam às
expectativas do cliente.
A participação de extravio de documentos ou carteira foi a terceira razão que
conduziu os cidadãos a procurarem a esquadra, com 10,1% dos casos, situação que não
se enquadra no objeto da investigação em causa, pois dá lugar apenas à abertura de um
auto e envio do caso para a Polícia de Investigação Criminal (PIC). O quarto lugar coube
aos conflitos de família e violência doméstica, todos eles encaminhados para o Gabinete
de Atendimento à Mulher e Criança, e aos conflitos por danos materiais, ambos a
corresponderem a 7,2% das razões de procura desta instância. Nas categorias de conflitos
por injúrias e acusações de furto ou tentativa de furto couberam 5,8% de situações. Os
problemas de convivência em espaços comuns e a participação de furto contra incertos
foram outras das causas que conduziram utentes à esquadra, cada uma ocupando 4,3%
das situações. Dois utentes recorreram à esquadra com acusações de burla.
352
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
As seguintes situações surgiram uma única vez: violência física (encaminhado para o
Gabinete de Atendimento à Mulher), conflito sobre a posse de uma habitação (cidadão
aconselhado a recorrer ao tribunal), conflito laboral (cidadão aconselhado a recorrer ao
tribunal) e assalto à mão armada. Houve, ainda, a situação de um pai que conduziu o filho
menor à esquadra por desconfiar de consumo de drogas e terminou com
aconselhamento do próprio Comandante ao menor301 e um caso de dois jovens acusados
de entrarem numa escola sem autorização.
Quadro n.º 8
TIPO DE CONFLITOS N %
Dívidas 17 24,6%
Conflitos de consumo/prestação de serviços 11 15,9%
Participação de extravio de documentos/carteira 7 10,1%
Conflitos de família/violência doméstica 5 7,2%
Danos materiais 5 7,2%
Injurias/Ofensas morais 4 5,8%
Acusação de furto ou tentativa de furto (identificada a parte acusada) 4 5,8%
Problemas de convivência em espaços comuns 3 4,3%
Participação de furto contra incertos 3 4,3%
Burla 2 2,9%
Violência física 1 1,4%
Habitação 1 1,4%
Laboral 1 1,4%
Assalto à mão armada 1 1,4%
Outros 2 2,9%
Não identificado 2 2,9%
Total 69 100,0%
O Comandante reconhece que a Esquadra recebe e resolve casos sociais, onde inclui
dívidas e pequenos conflitos entre vizinhos ou amigos, extravasando desse modo o que
seria uma visão restritiva das competências oficiais da instância. No entanto, justifica essa
301
Este caso, atendido informalmente e sem registo, poderia ter sido classificado como caso de família e
encaminhado para o Gabinete de Atendimento à Mulher e Criança Vítimas de Violência.
353
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
atitude com base na missão da polícia, permeando o discurso com argumentos jurídicos
assentes na função oficial de prevenção do crime:
Comandante – É preciso referenciar que já no primeiro momento em que
uma das pessoas ganha consciência em ir à Polícia, apresenta o caso e, no
entanto, ao se fazer a triagem, ouve-se a pessoa, pode-se dar uma
recomendação à pessoa para ir à instância apropriada para apresentar o tal
caso onde o caso poderá ser melhor encaminhado. Pode acontecer isso.
Mas, há situações que nós avaliamos que, de certa maneira, se nós não
atendê-las, não é?, pode representar uma certa perigosidade. Ou seja, dali
pode nascer um facto criminal.
O que é que eu quero dizer com isso? É a D. Joana que discute com a sua
vizinha […], uma simples discussão, porque, se calhar, os filhos da D. Joana
passam a vida a fazer barulho com música ou qualquer coisa assim ou, se
calhar, por causa de uma torneira que jorra água, porque ela quando
estende a roupa, enfim, vai deixando cair gotas, molha a roupa da outra.
Quando nós avaliamos que aqui há uma discussão, embora ainda não se
apresente nenhum facto criminal, mas que dali pode nascer um facto
criminal, nós notificamos a contraparte, necessariamente, para virmos dar
uma espécie de aconselhamento naquilo que são as relações. Estou a falar
do princípio de boa vizinhança, não é? Para que, no mínimo, as relações de
boa vizinhança prevaleçam. Nessa circunstância, não fazemos outra coisa se
não procurar um meio de conciliação. Portanto, fazemos com que as
diferenças entre as duas partes diminuam, sem dar necessariamente um
tratamento criminal ao caso?”302
302
Entrevista ao Comandante da 7ª Esquadra de Maputo, 21 e 24 de fevereiro de 2009.
303
Entrevista ao Comandante da 7ª Esquadra de Maputo, 21 e 24 de fevereiro de 2009.
354
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
Por outro lado, os casos criminais não são sempre tratados de acordo com os
trâmites estabelecidos na lei. Se o/a queixoso/ não desejar procedimento criminal, um
crime pode ser tratado nos termos dos casos sociais. Veja-se, uma vez mais, o discurso do
Comandante:
304
Entrevista ao Comandante da 7ª Esquadra de Maputo, 21 e 24 de fevereiro de 2009.
305
Entrevista ao Comandante da 7ª Esquadra de Maputo, 21 e 24 de fevereiro de 2009.
355
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
Queixoso – [narra que foi acusado de ter comportamentos impróprios com a filha dos patrões] Eu fui
totalmente humilhado, fui para casa. No dia seguinte, ouvi dizer que eles já queriam era outro
motorista. Falei com o marido […]. Ele já tinha o dinheiro na mão. Disse que não ia querer ver quem
tinha razão, que não dava para continuar a trabalhar. Deu o dinheiro. Depois, ele ligou-me, perguntou
“S., você foi deixar o caso na esquadra?”. Eu disse “Sim, sua mulher me ofendeu” […].
[…]
Acusada - Quinta-feira à tarde, às 14:00, minha filha estava a brincar […] Ela disse-me, assustada,
“Motorista está a chamar-me ‘minha mulher’, ‘minha mulher’ […]. Fui falar com o S. Chamei minha
empregada, ela disse “Sim, pode ser uma brincadeira”. Eu disse “Eu não admito brincarem assim com
minha criança” […] Essas coisas de ameaçar, isso não. Ninguém percebeu quando ele veio aqui. Eu
não estou a dizer que ele fez, pode ser uma brincadeira, mas eu não gosto dessa brincadeira. Se ele
pode admitir isso na filha dele, eu não. Minha filha veio dizer-me que não queria andar com esse
motorista. Eu não tenho segurança com ele. Eu nem disse “Vai-te embora daqui”, eu disse “S., não
admito essas brincadeiras” […]
[O caso é longamente discutido, as partes narram as suas versões dos factos. O marido da acusada
chega durante o processo de resolução e apresenta também a sua visão do problema.]
Oficial de Permanência (OP) – Eu acompanhei as declarações de todo o mundo. São coisas que
muitas vezes não entendemos. O facto de ele chamar a criança de “minha esposa, minha namorada”,
é razão para mandar embora? Isso não tratamos. É o Ministério do Trabalho. Agora, aqui no meio, há
injúrias, isso podemos abrir processo”.
[O caso veio a ser resolvido. Os patrões reconheceram que foram injustos nas acusações e o queixoso
não quis abrir o processo]
306
Observação na 7ª Esquadra da Cidade de Maputo, fevereiro de 2010.
356
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
307
Observação na 7ª Esquadra da Cidade de Maputo, março de 2010.
357
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
308
Entrevista ao Comandante da 7ª Esquadra da Cidade de Maputo, 21 e 24 de fevereiro de 2009.
309
Estes dois momentos estão definidos no art. 2.º da lei que criou os TCs: “1. Os tribunais comunitários
procurarão que em todas as questões que lhe sejam levadas ao seu conhecimento, as partes se reconciliem.
2. Não se conseguindo a reconciliação ou não sendo esta possível, o tribunal julgará de acordo com a
equidade, o bom senso e com a justiça” (Lei n.º 4/92, de 6 de maio).
358
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
310
O processo de notificação é naturalmente mais complicado quando a pessoa não é capaz de identificar a
localização do acusado. Nessas situações, o agente procura, juntamente com o queixoso ou a queixosa,
encontrar uma forma de fazer a notificação chegar ao destinatário, por exemplo, através dos serviços do
acusado ou por telefone. Caso este não seja mesmo localizável, regista-se o caso no livro de ocorrências,
para que a polícia dê inicio a uma investigação. Houve, ainda, uma situação em que o autor não sabia
identificar o nome do acusado e esse espaço foi deixado em branco para o queixoso preencher mais tarde.
311
Entrevista ao Comandante da 7ª Esquadra de Maputo, 21 e 24 de fevereiro de 2009.
359
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
Queixoso – Tenho um probleminha com uns moços que vendem calças na rua […].
OP – Onde é?
Queixoso – [Indica o local onde fez o negócio, é perto da esquadra.]
OP – E o moço está ali agora?
Queixoso – Quando eu passei estava.
[…]
OP [Chama colega] – Vai lá convidar essa pessoa até à esquadra, convidar com bons modos para vir
aqui.
OP – Como é a pessoa?
Queixoso – Baixinho.
OP – Vai lá com ele e venham para aqui.
[Queixoso e OP2 saem. Regressam três minutos depois com Acusado e procede-se à resolução
amigável do caso]
Queixoso – Ele não quer me receber porquê? Manda mensagem a dizer que vai-me pagar.
[…]
OP – Qual é o valor em causa?
Queixoso – Projeto paguei 1 700…
OP – Meticais?
Queixoso – Não, dólares. Mais carro, ir para […], 12 000,00 [Meticais]. Mais estadia, alojamento,
mais uns 5 000,00 de combustível.
OP – Então, 1 700,00 dólares mais 17 000,00 Meticais. Onde é que ele vive?
Queixoso – Eu nem conheço.
OP – O nome, conhece?
Queixoso – [diz o nome].
OP – Só que lá não é nossa área, mas vamos tentar coordenar.
Queixoso – Vocês também podem ligar para ele. Já fui falar com outros xehes. Se ele realmente é
muçulmano, porque é que não honra a palavra dele?
OP – Ele fala português?
Queixoso – Fala mal, mas entende.
OP – Vamos tentar entrar em contacto com ele.
Queixoso – Ele atende, só que diz que não conhece.
[OP aponta o número e liga para o xehe]
OP – Está aqui um senhor de Pemba que deseja encontrar-se com o senhor. Estamos a achar que o
sítio mais seguro é aqui na esquadra. Não sei se o senhor pode fazer-se presente?
[Fica marcado o encontro para esse dia às 14.30 horas. Pouco tempo depois, ainda antes das 14.30,
as partes reúnem-se na esquadra]
[…]
312
Observação na 7ª Esquadra da Cidade de Maputo, fevereiro de 2010.
313
Observação na 7ª Esquadra da Cidade de Maputo, fevereiro de 2010.
360
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
OP – Sr. A., apareceu este Sr. a contar esta história. Pedimos para contar, para ouvir. Para nós
Polícia, é mais prático quando uma pessoa vem na polícia. Queríamos notificar, mas o Sr. apareceu e
para tal agradeço bastante. Eu devia escrever notificação, mandar polícia entregar, mas ficava feio.
Por isso telefonei. Mas agradeço ao senhor.
314
Tal como acontece em todas as instâncias que analisei na cidade de Maputo (TCs, Secretários de Bairro,
etc.), à primeira e segunda falta de comparência, a instância reage com nova notificação. Só depois de três
notificações mal sucedidas, podem ser tomadas medidas diferentes. De acordo com os discursos, a regra
consiste na captura da pessoa. Em nenhum momento, durante todo o trabalho que realizei em
Moçambique, assisti a uma situação dessas. A parte notificada acaba quase sempre por aparecer, sendo
que muitas vezes o que sucede é a não comparência de ambas as partes por terem desistido ou alcançado
entendimento mesmo sem a presença da Polícia.
315
É possível que a minha presença tenha, algumas vezes, condicionado a escolha do português, embora
nunca tenha existido qualquer pressão ou pedido para que isso acontecesse.
316
No entanto, mesmo a ordem de intervenção das partes, uma regra enfatizada pelo Comandante e pelos
oficiais de permanência, teve exceções.
361
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
317
Conversa informal com um oficial de permanência da 7ª Esquadra da Cidade de Maputo, 2010.
318
Entrevista ao Comandante da 7ª Esquadra da Cidade de Maputo, 21 e 24 de fevereiro de 2009.
362
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
319
Sobre os conceitos de burocracia, retórica e violência, ver as teorias da pluralidade jurídica e o desafio à
monocultura do direito (ponto 3.2 do capítulo I).
320
Tratou-se de roubo numa escola em que um jovem (menor) foi apanhado em flagrante e conduzido à
esquadra. A polícia ordenou que fosse “chamboquado três vezes”. O pai foi chamado à esquadra e deu-se
seguimento ao processo.
363
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
321
Observação na 7ª Esquadra da Cidade de Maputo, fevereiro de 2010.
364
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
322
Observação na 7ª Esquadra da Cidade de Maputo, fevereiro de 2010.
365
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
[…]
Queixoso – Eu tinha um telefone. Tinha problema de teclado. Pedi a ele para arranjar. Ele disse
“Volto daqui a quinze minutos”. Fui a casa – eu moro ali ao pé do “Estrela”324 -, voltei depois de uns
vinte minutos. Vamos lá para minha casa. Passou noutra banca. Depois voltou à dele e pediu a um
amigo para trocar placa. Trocou placa, ficou bom, mas não voltou rede. Voltou a pôr outra placa,
mas não restabelece rede […]. Deixei telefone, ele não arranjou. Depois disse que não era
responsável, porque não abriu telefone. “Não abriste, mas disseste para outro abrir, és
responsável”. Discutimos muito. Foi quando decidi vir à autoridade mais próxima.
OP – Hum…
Acusado – Esse jovem tem vindo aí ao mercado e familiarizou-se comigo […] Disse que telefone
tinha problemas com teclado. Disse “Se for isso, resolve-se”. Disse que estava a fazer outro trabalho
e não tinha tempo. Pedi a outra pessoa. À minha volta [quando regressei], apresentou o problema
de não ter rede. O que é isso de telefone que muda de face e fica sem rede? Ele já tinha problema,
por isso ele queria vender […]. Eu não vou pagar seu telefone […]. Eu recusei-me a reparar.
OP – Quer dizer que o Sr. recebeu telefone só com rede temporária?
Acusado – Sim.
OP – Agora, se o Sr. recebeu com rede, não acha que ele tem razão?
Acusado – Eu também não vi nada, tenho que dizer. Ele apareceu e disse “Façam esse telefone
teclar”, enquanto ele ficou a assistir.
OP – Ele não tem razão?
Acusado – Eu também tenho minhas razões.
OP – Você recebeu o telefone, tem obrigação de ver se está tudo bem.
[…]
OP – Quando vocês ouvem as pessoas dizer que resolveram problema na esquadra é porque as
partes se entenderam. Eu não vou obrigar-te, não tenho martelo. Posso criar condições para irem
ver quem tem martelo. Isso só pode é dificultar vossa vida quando querem tirar carta de condução
[…]. Querem processo?
Queixoso – Eu quero.
OP – E você?
Acusado – Recebo ordens.
OP – Não está a receber ordens!
Acusado – Eu não tenho que dizer, ele está a acusar-me.
Queixoso – Eu acho que ele podia reparar telefone e resolver.
Acusado – Eu não sei porque estou aqui se não fui eu que mexi o telefone.
OP – Mas porque você não diz que repara o telefone? Se não tiver tempo agora, depois.
Acusado – Eu não mexi telefone, ele viu tudo!
OP – Aqui não precisa dizer que vamos ao curandeiro, nem esse sabe. Se você tivesse dito que ia
reparar ou pedir a alguém para reparar […]. Aqui temos dois casos, um é este que acabei de falar:
“Abre lá telefone…”, a responsabilidade continua a ser sua. Outra versão, “eu não tenho tempo,
vou-te apresentar um colega”, “senhor, te apresento esse cliente”. Aí você estava fora. Eu penso
assim, o juiz pensa assim. É uma cadeia de pensamento. A decisão vai depender do que escrever
323
Observação na 7ª Esquadra da Cidade de Maputo, março de 2010.
324
“Estrela Vermelha” é um dos maiores mercados da cidade de Maputo.
366
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
aqui. Pode vir PIC, etc. O juiz confia o que escrevemos. Agora, é para abrir auto? Não gosto de
começar a escrever e depois parar.
Queixoso – Vou processar.
OP – Não estou a lhe obrigar. Minha obrigação, quando não há entendimento, é lhe encaminhar. Só
vou escrever aqui. Tem a PIC que investiga, tribunal toma decisões. Enquanto falam, vou preparar a
máquina.
[Acusado tenta intervir]
OP – Eu saí de casa para fazer isto, despedi dos meus filhos para isto.
Acusado – Eu hei de ver o que se passa com telefone.
OP – Sou eu que estou a lhe obrigar?
Acusado – Não. Fez-me perceber que tenho quota parte.
[…]
OP – Quanto tempo acha que vai demorar?
Acusado – Duas semanas, reparar, ver condições, testes.
OP – Duas semanas, sentado a ver telefone?
Acusado – Carece de saber o que se passa. Mexer no PA, ver se há possibilidade de restaurar rede.
OP – Estão-lhe a dar duas semanas?
Queixoso – É muito. Ele arranja vários telefones em um dia.
OP – Tem algum documento seu?
[Acusado entrega um documento]
OP – Então, não há entendimento?
Queixoso – Não sei. Chefe está a antecipar, diz que não há entendimento.
OP – Eu é que estou a antecipar? Não ouviu o que ele disse? Não posso obrigar. Posso criar
condições. O mais importante é entender. Pensei que não temos problemas, quando temos
problemas. Tenho obrigação de fazer entender as pessoas o que está errado.
Acusado – Eu dei o tempo limite, se o chefe diz que não […].
OP – Quem diz que não? Ouviu-me dizer isso ou foi ele?
Acusado – O chefe disse que não há entendimento.
OP – E há entendimento? Entenderam-se?
[Queixoso e acusado falam diretamente entre si por alguns momentos]
OP – O telefone tinha rede, andou passos não deu. Mesmo agora, pode chegar lá ter rede ou reparar
ter rede. Ele vai ter que esperar 4/5 dias se for pessoa normal.
Acusado – Eu não sou pessoa normal?
OP – Há pessoas que falam aqui, basta sair e pronto! Só pensam quando estão atrás das grades. Eu
estou a dar chance.
Acusado – Mas há pessoas que são oportunistas, isso é oportunismo.
OP – Por isso lhe digo: abre-se auto. Vai-se saber lá à frente quem é oportunista. Já lhe disse que
não tenho martelo, não vou lhe chamboquear, não faço isso.
Queixoso – Hei de abrir o telefone, ver o que se passa lá dentro e ver a situação que está a
acontecer e ver se há possibilidade de restaurar ou não. Porque, de toda a vida que fiz reparação,
nunca vi situação igual.
OP – Situação de falta de rede?
Acusado – Abrir face e não ter rede. Aí tem duas coisas: placa de motor e plaquinha de teclados. Ele
trocou plaquinha.
OP – Não pode ter caído face?
Acusado – É isso que quero ver.
OP – Esse seu colega, ao abrir, pode ter caído peça e não se apercebeu.
Acusado – Vou ver.
OP – Você tem obrigação de se sentar de novo com ele e ver.
Acusado – Sim.
Queixoso – Ok, então prazo de quinze dias, porque eu preciso ver o que se passa com o telefone.
367
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
O âmbito da discussão não é rígido, podendo ser ampliado pelas partes ou pelo
próprio oficial de permanência. A questão da maleabilidade do objeto é, no entanto, mais
relevante quando estão em causa relações multiplexas. Como vimos, a maioria dos casos
envolve dívidas, reembolso por mau produto ou serviço ou restituição de valor referente
a dano material. Quando este tipo de conflitos ocorre no âmbito de relações de vínculo
único, muitas vezes o papel dos agentes consiste em ajudar os litigantes a acordarem
sobre um montante e uma forma exequível de pagamento. No entanto, nem sempre as
dívidas têm lugar no contexto de relações uniplexas e podem ser parte de conflitos
multidimensionais, que exigem uma abordagem mais global e aconselhamento.
[Conflito entre um vendedor e uma vendedora do mercado informal, que envolve 30,00 meticais
(pouco menos de 1 euro) e agressões físicas]
368
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
OP – Há quanto tempo?
Queixosa – Dois meses.
OP – Sr., 30,00 Meticais! É preciso fazer barulho por 30,00Mt?
Acusado – Senhor, eu até pensei que era brincadeira ela vir para aqui, somos amigos.
OP – Sua esposa também vende refrescos?
Acusado – Sim.
OP – Quanto dinheiro faz?
Acusado – 80,00Mt.
OP – Se tirar 30,00, fica o quê?
Acusado – 50,00Mt.
OP – Esse dinheiro dá para quê? O que é que tinha tomado?
Queixosa – Fiz ovos que pediu para eu fritar. Outro dia, pediu ovos, eu não cobrei dinheiro. Mas,
desta fez, tive que pedir.
OP [para acusado] – Era necessário chegar à esquadra por 30,00Mt? Aparecer no seu currículo que
no dia tal foi à esquadra? Tem filhos?
Acusado – Sim.
[…]
OP – Quer fazer sofrer a eles? […] Viu como é que ela está?
Acusado – Vi.
OP – Não pode respeitar a ela?
Queixoso – Pode. Respeitei.
OP – Nesse tempo que se empurraram e se acontecesse o pior?
Acusado – Eu nem peguei a ela.
Queixosa – Me pegou.
OP – Está bem. Por isso eu pergunto à Sra. o que é para fazer.
[Entra um outro agente para carimbar um documento]
[UM e Demandado conversam um com o outro]
Queixosa – Vamos lá deixar, Papá. Do lado deste senhor, eu não tenho problema. O meu problema é
com a mulher. Ela disse “Eu vou-te comer viva!”, porque ela é de Inhambane, não sei se as pessoas
de Inhambane comem pessoas […].
OP – Não são ciúmes, porque trabalham juntos?
[Queixosa continua a falar, a desabafar]
OP – paga lá o dinheiro dela.
[Demandado pega nos 30.00Mt]
OP – Quer ou não quer pagar?
Acusado – Quero.
OP – Eu não posso lhe obrigar a fazer isso. Eu não tenho martelo […]. Eu não gosto de ver pessoas a
sofrer. Lamento bastante. Sabe o que é processo?
Acusado – Sei.
OP – O Sr. tem quantos anos?
Acusado – 35.
OP – Você sabe que a partir do momento que vai acumulando processos, depois fica no registo
criminal. Precisa do registo criminal para carta de condução… […] E essa senhora veio à esquadra, fez
bem. Continue assim. É o sítio certo. Há pessoas que só vêm quando o caso é muito maior. Se não
tivesse vindo já, depois podia vir por outro motivo…
Acusada – Mais grande…
OP – Mais grande […]. Eu não abri processo, porque ela não quis, ela perdoou. Porque só ela pode
decidir, é ela que tem que seguir processo para tribunal.
Acusado – Obrigada.
OP – Fogo não se apaga com fogo, é água. Tenham essa mentalidade […].
369
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
[motorista coloca queixa contra patrões por ter sido acusado de ter comportamentos desadequados
com a filha] 325
Oficial de Permanência [para demandante] - O que aconteceu é falta de educação. Saber que os
meus patrões são indianos e segue essas tradições, tem que respeitar.
325
Observação na 7ª Esquadra da Cidade de Maputo, fevereiro de 2010.
326
Sobre o trabalho de Boaventura de Sousa Santos desenvolvido numa favela do Rio de Janeiro (Santos,
1988a: 19), ver capítulo I.
370
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
A questão das assimetrias de poder entre as partes não assume a relevância que
pode encontrar-se noutras instâncias. Por um lado, o peso simbólico da Polícia tende a
anular a alegada superioridade de alguma das partes. Por outro lado, não são muito
evidentes os desequilíbrios. É possível que, estando em causa desequilíbrios mais
acentuados, os conflitos não cheguem às esquadras porque a parte mais forte resolveu o
problema a seu favor ou porque o lado mais fraco receia apresentar queixa. As situações
de acusações de roubo são as situações em que o acusado fica mais fragilizado. Esses
casos foram pouco frequentes e, quase sempre, foi aberto um processo.
Em regra, os conflitos são resolvidos num período de tempo bastante curto. Depois
de apresentada a queixa, cabe ao queixoso escolher a data e a hora do encontro que deve
permitir uma notificação da outra parte com pelo menos 24 horas de antecedência. Como
vimos, houve situações em que essa regra não foi cumprida e o caso ficou resolvido no
próprio dia. A flexibilidade de procedimentos tende a permitir uma resolução bastante
célere dos processos. Pode ou não ter-se em atenção a escala de serviço e fazer coincidir
o encontro dos litigantes com uma data em que o oficial de permanência que recebeu a
queixa esteja de serviço. De qualquer forma, é sempre uma questão de poucos dias, que
não ultrapassará uma semana. Se o/a acusado/a não cumprir a notificação, o caso pode
ser arrastado por mais algum tempo.
Em regra, têm-se em atenção as razões, queixas e narrativas de ambas as partas,
procurando, quando possível, soluções mini-max. Nos casos de dívida, reembolso por um
mau produto ou serviço ou em casos que envolvem danos materiais, a resolução tende a
ser bastante rápida. A exequibilidade das soluções assume uma importância fundamental
que contribuirá para o cumprimento das mesmas. Os oficiais de permanência ajudam os
litigantes a acordarem sobre um valor e uma forma de pagamento viável, que ficarão
registados numa declaração oficial, redigida na esquadra, carimbada e assinada por
371
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
327
Conversa informal com oficial de permanência, 2010.
372
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
agente, está uniformizado, a pessoa pensa “eh, pá, este se calhar vai-me
prender”. É assim como as pessoas pensam.328
328
Entrevista ao Comandante da 7ª Esquadra de Maputo, 21 e 24 de fevereiro de 2009.
373
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
329
A autora assume não lhe ser totalmente claro o que justifica a diferença entre o grande movimento da
esquadra da Gorongosa e o fraco movimento de uma esquadra vizinha, apontando como possíveis razões a
presença do forte tribunal comunitário e de fortes estruturas tradicionais, bem como a maior necessidade
de manter laços sociais em comunidades mais pequenas (Jacobs, 2012)
330
Na investigação desenvolvida no distrito de Macossa, ficou evidente que a esquadra funciona sobretudo
como distribuidor de litígios e não como agente de resolução, isto é, quando procurada pelas partes, cabia
aos agentes encaminharem os cidadãos para a instância mais adequada (autoridades tradicionais,
AMETRAMO, tribunais comunitários, igrejas, etc.) (Araújo S., 2008a).
374
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
375
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
O Gabinete está aberto 24 horas por dia,331 funcionando com equipas permanentes
de duas ou três pessoas. A receção das queixas e o atendimento são quase sempre
realizados individualmente por agentes mulheres, embora seja possível encontrar
agentes homens a fazê-lo em alturas particularmente movimentadas. De acordo com o
relatório de avaliação dos Gabinetes “Modelo” (Ernest and Young para a UNICEF, 2010:
12), o Gabinete de Maputo dispõe de um efetivo total de 16 agentes, todos com
formação para fazer atendimento. A formação por que passaram as/os agentes centrou-
se em direitos humanos, género e violência, mas também nos procedimentos do próprio
atendimento. Todas as agentes podem consultar a Chefe do Gabinete, uma pessoa
bastante experiente, quando têm questões sobre o tratamento dos casos e podem
entregar-lhe a resolução das situações mais complexas. A própria Chefe do Departamento
de Atendimento à Mulher e Criança admitia em 2010 a existência de um caminho ia
sendo percorrido sem que tivesse sido alcançada a meta. Como veremos nos próximos
pontos, em concordância com uma das fragilidades reconhecidas, nem sempre era
cumprida a expetativa de encontrar no Gabinete um espaço de ajuda sem julgamento.
331
Este horário não é geral. A maioria das secções de atendimento funciona apenas entre as 7.30 e as
15.30.
376
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
formação cá. Mas, este ano nós iremos a Portugal para fazer uma formação
de formadores, de modo a que sejamos nós a dar continuidade.332
332
Entrevista à Chefe do Departamento de Atendimento à Mulher e Criança, Comando Geral da Polícia, 8 de
abril de 2010.
333
Nesta instância, as partes são identificadas como vítima ou denunciante e agressor. Estas designações,
presentes nos autos de denúncia e nos registos não contemplam o largo espetro de casos que efetivamente
são recebidos ou a forma como são vistas as partes. Opto por usar as designações abrangentes que usei na
esquadra (queixoso/a e acusado/a), que por vezes também são usadas no discurso quotidiano da instância.
377
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
334
Veja-se a observação de uma das agentes depois de ter reencaminhado para a secção de atendimento
da Matola uma mulher da Matola (Província de Maputo) que viera colocar uma queixa contra o marido:
“Não vamos resolver, porque não é nossa área de jurisdição. Podemos resolver, mas, às vezes, os
agressores complicam, diz que não é a sua zona – ‘Porque é que vieste para aqui? Porque estás com acordo
com estes polícias?’ (Conversa informal com agente do Gabinete de Atendimento “Modelo”, Maputo,
2010).
335
Observação no Gabinete de Atendimento “Modelo”, Maputo, fevereiro de 2010.
378
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
379
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
Quadro n.º 9
TIPO DE CONFLITOS (janeiro de 2010) – Gabinete Modelo N %
Agressão física/ofensas corporais voluntarias qualificadas/maus tratos 96 37,6%
Ofensas morais/injúrias/ofensas psicológicas 46 18,0%
Falta de assistência/abandono de menor 36 14,1%
Expulsão de lar 28 11,0%
Abandono de lar 13 5,1%
Disputa de menor 10 3,9%
Disputa de património 4 1,6%
Abuso sexual de menores 4 1,6%
Ameaça ou tentativa de homicídio 3 1,2%
Furto 3 1,2%
Violação 2 0,8%
Difamação 2 0,8%
Ameaças 2 0,8%
Reconhecimento de paternidade 2 0,8%
Danos materiais 1 0,4%
Rapto 1 0,4%
Arrombamento 1 0,4%
Atentado ao pudor 1 0,4%
255 100,0%
336
Em Moçambique, a segunda esposa ou a mulher com quem se disputa um homem é designada
comummente por rival.
380
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
Quadro n.º 10
Os litígios são muitas vezes complexos e podem envolver mais do que um tipo de
agressão ou vários tipos de conflito. Por exemplo, embora nenhum caso seja apresentado
como “conflito de feitiçaria”, acusações de lançamento de feitiço ou envenenamento com
recurso à medicina tradicional atravessam alguns litígios e podem ser trazidas à discussão
do caso. Por vezes, na descrição dos problemas, percebe-se que há múltiplas situações de
violência e até múltiplos agressores, nem sempre considerados no processo de
aconselhamento.
Os mais de dez anos que passaram desde a criação do primeiro gabinete piloto
permitiram a circulação de informação por via dos que vivem experiências nestas
instâncias. As organizações da cidade Maputo que lutam pelos direitos das mulheres têm
promovido múltiplas campanhas de esclarecimento contra a violência doméstica em que
divulgam as instâncias onde as vítimas podem procurar ajuda. Os próprios gabinetes têm
realizado ações de contacto direto com cidadãs e cidadãos, nomeadamente em mercados
381
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
382
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
337
Conversa informal, agente do Gabinete de Atendimento “Modelo”, Maputo, fevereiro de 2010.
383
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
observação, ficou claro nenhuma dessas condições é assegurada. Como já foi mostrado, a
premissa essencialista de que as agentes mulheres são necessariamente mais solidárias
com outras mulheres em situação de violência não é real (MacDowell Santos, 2010: 158).
A flexibilidade dos procedimentos pode refletir-se em proximidade ou ambiente de
insegurança. Por vezes significa empatia, mas também arbitrariedade na definição do que
é violência, na informação transmitida e no espaço concedido à expressão da vontade e
dos anseios das mulheres. Podem, ainda, ocorrer episódios pontuais em que as agentes
assumem uma postura particularmente formal e autoritária. O caso mais evidente
aconteceu quando uma agente criticou uma jovem queixosa por estar vestida com um
top de alças.
Abaixo pretendo ilustrar como o apoio que este gabinete proporciona está
dependente de leituras individuais e mostro que nem sempre são consideradas as
preocupações das mulheres que o procuram ou as várias violências contidas nos conflitos.
No primeiro caso, um conflito entre namorados, a agente não tem em conta os receios da
queixosa, discursa sobre a própria vida e, pretendendo ser educativa, assume um registo
de superioridade ainda que não autoritário. No segundo caso, é ignorada a agressão física
associada numa discussão sobre pensão de alimentos. Por fim, verifica-se uma situação
não só de absoluta ausência de empatia, como de recusa em apoiar uma mulher
seropositiva, com um filho bebé e vítima de abusos continuados ao longo da vida.
[Caso de violência entre namorados, queixosa tem 21 anos e acusado tem 26 anos. A insegurança da
jovem não é levada em consideração. O caso é tratado como aconselhamento a casal depois da
jovem afirmar várias vezes que já não são e dizer que ele a agrediu repetidamente]338
Queixosa – Eu estava na praia, ele veio ficar comigo, me espancou, ninguém fez nada! Saí de lá, não
tinha dinheiro de chapa, minha família já tinha ido embora. Não é a primeira vez, já estou cansada,
estou cheia de hematomas, cicatrizes…
[…]
Agente – Não há nada que justifique a violência, principalmente quando se trata de violência na via
pública. Se tu [para o acusado] desconfiaste do ato dela, devias, antes de mais nada, conversar com
ela, procurar saber o que ela teria. Segundo, aproxima a uma esquadra também, não é proibido!
Terceiro, não há relação sem confiança. Se ela mete a mão no bolso e pensas logo que está a
roubar…
[Queixosa e acusado discutem os fatos que conduziram à agressão]
338
Observação no Gabinete “Modelo”, Maputo, fevereiro de 2010.
384
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
Agente – Vamos diretos ao assunto. Vocês tinham ficado de conversar acerca da mesada. Como não
conversaram, o que é que o senhor pensou?
[Acusado justifica porque não conversou com ela. Afirma que tentou, mas que ela não atende o
telefone, nem abre a porta]
Queixosa – Tenho medo, não vou mentir.
Agente – Você sabia que vinha aqui, o caso já estava aqui, não ia fazer nada.
Queixosa – Eu tenho medo, ele é muito agressivo [chora].
339
Observação no Gabinete “Modelo”, Maputo, fevereiro de 2010.
385
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
[Apresentação de uma queixa por parte de uma mulher vítima de repetidas situações de violência. O
caso é recusado]341
Queixosa – Irmão de meu pai…
Agente – Teu tio…
Queixosa – Sim.
Agente – Fez o quê?
Queixosa –É uma história de há muito tempo: 2001/2002. […] Chegou certo tempo, esse irmão do
meu pai chegou a me bater, batia ao meu filho, mandava embora. Fui ficando quando a poeira
abaixou. Comecei a dançar ali na FACIM. Ele começou a me seguir para o banho, quando me vestia.
Eu saía, ia dançar, na volta, ele me batia. Proibia de dançar! Fiquei. No outro dia, me viu com um
moço, bateu naquele moço, abriu a sobrancelha. Fomos queixar na esquadra. Um dia me bateu,
disse que ia me matar. Fujo para a cozinha, queria me bater, queria fazer sexo comigo, queria me
violar. Tentou tirar-me a calcinha, mas eu não deixei. Tirei faca da cozinha, piquei aqui [costas]. Fugi.
Veio minha avó, começaram a brigar. Mandou-me embora de casa. Conheci um moço. Quando
conheci, por não ter sítio para viver, comecei a me meter com ele. Fiquei grávida. Não estava bem,
me batia, mesmo grávida! Quando fui fazer teste, era positiva. Conheci um moço que trabalha no
tribunal administrativo: “Tenho outra família, mas vou tentar-te ajudar”. Tivemos uma pequena
briga, foi quando conheci o pai do meu filho no hospital militar. Ele também fazia tratamentos ali.
Ele disse que ia tentar resolver meu problema. Combinámos conversar minha avó, para me lobolar,
pagar aquela dívida do meu pai […]. Engravidou-me em dezembro de 2007. No dia 9 de abril, ele
suicida-se […]. Sabe como é família de marido: ou te quer ou te manda embora. Saí de casa dele.
Quando chega à hora de ter o bebé, volto para casa do meu pai. Mas não posso estar com o meu
pai: eu, com esta idade, ele me oferece porrada, é uma pessoa nervosa. No dia 24 de dezembro de
2008, meu filho tinha três meses, conversei com esse moço, que voltei a encontrar. Eu precisava de
comprar medicamento de bebé. […] Quando encontrei o moço, ele me deu o valor. Quando cheguei
a casa, era tarde. Não aquela hora das 20:00, mas aquela hora das 18:00. Quando meu pai voltou, eu
não estava. Quando cheguei, meu pai estava zangado. Como conheço ele, fiquei com medo. Fiquei
lá fora. Como o bebé era pequeno, entrei. Ele não tinha como me bater, porque eu fiz neneca de
bebé. Fugi de casa! Fui para casa da minha madrasta, a que me criou junto com a minha avó,
segunda mulher do meu pai. Ela me acolheu por uns dias […]. Quando passaram festas “Está a fazer
o quê aqui?”. Qualquer coisa que apanhasse meu tio batia: copo, cerveja… Já me deu com um
340
“Xima” é o nome de um bar/restaurante muito conhecido no centro de Maputo.
341
Observação no Gabinete “Modelo”, Maputo, fevereiro de 2010.
386
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
martelo no pé, andei com gesso. Fui à esquadra, mas disseram “É irmão do teu pai, como vais meter
queixa?”. Fui para casa de uma senhora que cuidava de mim como se fosse sua filha, de meu filho
como se fosse seu neto, mas o meu tio, sempre que podia, fazia confusão. Arranjei emprego aqui no
Estrela, vendia comida. O emprego acabou, procurei uma casa para alugar, de caniço. Esse moço
que falei cuidava de mim, de meu filho. Fiquei de baixa, queimei a perna, minha avó levou esta
criança. Ela carregava para a machamba, para vender, porque meu pai não ele em casa. Eu não
tenho sítio para viver.
Agente – E família dessa criança?
UM – Nem vale a pena. O meu marido trabalhou por conta própria, casa era de família.
[…]
Agente – Afinal queixa-se contra o seu tio e não contra o seu pai porquê?
Acusada- Meu pai não manda embora. Eu é que não gosto.
Agente – Você tem que viver com seu pai, não com seu tio. Eu não estou a ver culpa de seu tio, ele
não é seu pai.
Queixosa – Ele me mandou embora de casa da minha avó!
Agente– Vives onde?
Queixosa – De momento, não tenho sítio fixo.
Agente– Lá onde está seu tio…
Queixosa – Maxaquene.
Agente– Lá na 12ª Esquadra foi?
Queixosa – Fui, mas não resolvem, porque dizem que eles são irmãos. Meu tio é da autoridade, ele é
polícia de trânsito.
Agente– O que faz seu tio lhe mandar embora? Você fala amigos, muitos amigos… Vai ali na 12ª
Esquadra e procura saber onde é Gabinete de Atendimento à Mulher e Criança. Vai no círculo, é lá
onde funciona o Gabinete.
342
Sobre o processo de elaboração da Lei da Violência Doméstica contra as mulheres e o papel das ONGs
moçambicanas na deslegitimação da violência contra a mulher, ver Andrade (2009), Arthur (2009) e Loforte
(2009).
343
Uma exceção aconteceu num caso resolvido pela chefe do Gabinete em que refere que a violência
doméstica é um crime público.
387
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
344
Lei sobre a Violência Doméstica praticada contra a Mulher, Lei n.º 29/2009.
345
A OMM, Organização da Mulher Moçambicana, é uma estrutura do partido FRELIMO. Em muitos locais,
a OMM trabalha junto do Secretário de Bairro e dos chefes de quarteirão apoiando na resolução dos
conflitos ocorridos no espaço doméstico. Nas entrevistas realizadas a membros da OMM do distrito de
KaMpfumo, ficou claro que no centro da cidade a instituição não está a funcionar nesses moldes, daí que
não tenha sido mencionada. A única vez que ouvi falar da associação entre a OMM e os Gabinetes foi
durante esta entrevista.
346
Entrevista à Chefe do Departamento de Atendimento à Mulher e Criança, Comando Geral da Polícia, 8 de
abril de 2010.
388
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
O tipo de intervenção do Gabinete não cabe na classificação dos meios RAL. Não se
pretende que as agentes assumam uma postura neutra ou se limitem a conduzir o diálogo
entre as partes. Oficialmente, o Gabinete da Mulher foi pensado como um híbrido entre o
formal e o informal em que se promove aconselhamento a partir dos modelos das justiças
comunitárias, sem a reprodução das desigualdades e o julgamento moral das mulheres.
Não existem contudo diretivas concretas sobre procedimentos e estes acabam reféns não
só de dinâmicas coletivas mas do perfil individual das agentes.
Os gabinetes foram criados para subverter as hierarquias da esfera doméstica que
invadiam o contexto das esquadras e essa realidade ainda não foi plenamente alterada.
Como afirma Conceição Osório, “as práticas na gestão de conflitos revelam, pois, a
convivência de representações contraditórias: de um lado existe uma perceção de que a
violência contra as mulheres é resultado de uma desigualdade que estrutura as relações
389
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
entre homens e mulheres e, por outro lado, reproduz-se na acção essa mesma
desigualdade” (Osório, 2004b). Ter-se-á percorrido um caminho importante desde 2003,
quando Conceição Osório realizou o estudo que a conduziu a esta observação. No
entanto, não sendo possível apresentar um relato unidimensional da intervenção dos
gabinetes, é facto evidente que o quotidiano não coincide sempre com os objetivos
delineados.
Tal como foi verificado na 7ª Esquadra as partes são convidadas a apresentar as
respetivas narrativas do conflito. Por vezes, estão acompanhadas por familiares, embora
recorrentemente as agentes peçam aos acompanhantes que esperem fora da sala, sendo
chamados apenas para testemunhar a decisão.347 A questão da privacidade e da
confidencialidade tende a ser uma preocupação bem maior do que na esquadra e quase
sempre é assegurada em relação aos outros utentes dada a separação entre as salas onde
é realizado o atendimento e a sala de espera. De acordo com o relatório de avaliação dos
gabinetes modelo “em geral, nota-se bastante profissionalismo e confidencialidade por
parte dos agentes que trabalham nos Gabinetes de Atendimento” (Ernest and Young para
a UNICEF, 2010: 34). No entanto, é relativamente comum que agentes alheias aos casos
entrem e saiam da sala durante o processo de resolução ou apresentação das queixas.
Houve ainda uma situação em que a agente forneceu informação sobre um caso anterior
do acusado que não era do conhecimento da queixosa, não manifestando qualquer
preocupação com a confidencialidade.
No decorrer da sessão, o objeto da queixa pode ser reconfigurado. Assim, uma
agressão deixar de assumir o papel principal na abordagem ao conflito sem que essa seja
necessariamente a vontade da queixosa, mas também podem discutir-se situações de
violência sem que tenham sido objeto principal de queixa. As agentes ouvem as partes de
forma mais ou menos demorada e vêem-se como conselheiras com a obrigação de
modelar comportamentos a partir de uma alegada visão correta da harmonia familiar,
uma perceção que emerge da interlegalidade entre os direitos humanos, o direito do
Estado, o direito doméstico e o direito da comunidade.
347
O gabinete é movimentado e existe sempre alguma pressão para não alongar demasiado a discussão dos
casos, o que em regra acontece quando estão familiares presentes
390
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
[Casal com filhos. A acusada queixa-se que o marido a expulsou de casa, lhe bateu, sai
permanentemente à noite com amigos solteiros e está com outras mulheres. A agente permite que
as partes se expressem livremente, concedendo-lhes espaço para narrarem pormenores da sua vida
comum e até intima, e empenha-se no aconselhamento ao homem, mostrando-lhe o
comportamento razoável de um homem casado. No entanto, a vontade da mulher é ignorada e a
violência nunca é perentoriamente condenada.] 348
Queixosa – Ele bateu-me e diz que para sair de casa agora. Temos dois filhos.
Agente – Estão juntos há quanto tempo?
Queixosa – Treze anos.
Agente – Estão na vossa casa?
Queixosa – Casa dos pais dele.
Agente – A sua preocupação é levar porrada ou sair de casa?
Queixosa – As duas coisas. Ele sabe que não posso levar porrada, porque tenho ataques de asma.
Bate-me de qualquer maneira.
Agente – A sua versão?
[acusado fala]
Queixosa – Posso falar?
Agente – Sim.
[Queixosa continua a explicar a história, enquanto a agente vai interrompendo com pequenas
questões de esclarecimento que ajudam a perceber melhor o que aconteceu.]
Agente - Quantos anos você tem?
Queixosa – 31, ele tem 27.
Agente – Você, casado, acha que está bem no meio de solteiros? Acha que é respeitar sua esposa?
Acusado - […]
Agente – A pessoa quando cresce, quando ganha responsabilidade, tem que mudar. Solteiro pode
chegar no dia seguinte, ninguém vai chatear. Você não vai poder ser feliz. […] Agora, mandou
embora, porquê?
Acusado – Eu não mandei embora, ela é que saiu!
Queixosa – […] Ele diz “Aqui não vais entrar, porque partiste o vidro do carro” […] Começa-me a dar
murros, o irmão a pedir “Deixa lá ela”.
Agente – Ainda precisa da sua mulher ou não?
Acusado – Ela está a inventar! Eu fiquei com as crianças, ela chegou de manhã! Se fosse mandada
embora, como entrava em minha casa?
Queixosa – [Continua a narrar a sua versão da história] Quando eu cheguei aqui, perguntaram: “Não
tem familiares aqui perto?” Fui dormir a casa da minha irmã. Quando contei à minha irmã, ela disse
“Eu já sabia que isso ia acontecer! Com essas companhias!...” […]
[…]
Agente – Eu preciso de saber se precisa da sua esposa, se vai mudar o comportamento!
Acusado – Isto nem precisava chegar à esquadra, eu conheço a mãe e o pai, podia ter falado com
eles.
Queixosa – É assim: uma vez brigámos, fui a casa da minha mãe. Fui à esquadra. Quando voltei a
casa, começa a me dar porrada. Chamei minha mãe, as irmãs dele começaram a bater minha mãe.
Agente – E os pais dele?
Queixosa – Minha sogra faleceu, o meu sogro não vive aqui.
Agente – E suas cunhadas se entendem?
Queixosa – Pouco…
Agente – Garante mudança de comportamento?
Acusado - [Justifica o seu comportamento, argumentando que sai com amigos que cresceram com
ele]
348
Observação no Gabinete “Modelo”, Maputo, fevereiro de 2010.
391
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
Queixosa – Esse aí, antes de ter carro, não tinha amigos, agora que tem carro… […]
Agente – Aceita mudar de comportamento ou não precisa mais dela?
Acusado – Aceitar, aceito, mas tenho que falar com a família dela. Acontece uma coisa, vêm à
esquadra!
Queixosa – E deixar levar porrada?
Agente – Nosso objetivo é aconselhar as pessoas. Nós aceitamos isso, dar esse tempo, falar com a
família. Depois de falar com a família, se não chegar a consenso, pode voltar.
Queixoso – Ele é muito agressivo, está sempre a me bater.
[…]
Agente [para ela] – O que acha? Perdoa enquanto espera essa reunião de família?
Queixosa – Eu vou-lhe perdoar pela última vez.
Agente – Entendeu isso? Respeitar sua esposa! Esses seus amigos solteiros não vão-lhe levar a bom
caminho! Eu não acredito que os seus amigos façam sexo no seu carro. Eu também não acredito
nisso!
[…]
Queixosa – Meu marido vai acabar me trazendo doenças e eu sentada em casa!
Agente – […] Você não pode continuar a ter só esses amigos solteiros. Respeitar sua mulher! Eu
também não posso me prolongar muito. Se ele diz que quer falar com sua família, vão lá! Mas, muda
de comportamento e assume que é casado. Não ser pai só porque tem dois filhos, ser pai exemplar!
Se não mudar de comportamento, volta!
Acusada – Quando voltar, posso falar com qualquer pessoa que encontre?
Agente – Sim.
349
Não deixa de ser interessante comparar este conflito com um caso semelhante que observei no Tribunal
Comunitário do Inguri (distrito de Angoche, província de Nampula, norte de Moçambique), em 2003, em
que a juíza-presidente, percebendo a falta de informação da queixosa, deu uma lição sobre sexualidade
para que a jovem pudesse saber quem poderia ser o pai da criança.
392
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
Agente – Diz a verdade! Não pode ter medo de mamã ou papá. Você não pode sofrer sozinha.
Precisamos do dono dessa gravidez. 16 anos, deixou de estudar, ir à escola, andou a brincar muito,
resultado está aí.
Estes argumentos não significam que a violência não seja censurada e apresentada
como algo errado e ato criminal. Também deve ficar claro que, em vários momentos, o
aconselhamento às mulheres envolve informação jurídica sobre as alternativas de que
dispõem, empatia e um aconselhamento que aborda o problema de forma mais global,
encorajando sem julgar.
350
Observação no Gabinete “Modelo”, Maputo, fevereiro de 2010.
351
Observação no Gabinete “Modelo”, Maputo, fevereiro de 2010.
393
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
[…]
Agente – Se isto for a tribunal, eles tiram diretamente da empresa. Nós não podemos fazer isso. Mas
o problema é que o tribunal anda cheio. Mas o tribunal ajuda, eles consultam o vencimento da
empresa e descontam via Banco. Assim, você há de conseguir estudar.
Queixosa – O meu tio arranjou-me um emprego a ganhar 2000 Mt.
Agente – Assim, você já pode ter a sua casa. Não arranja empregada, pede a uma pessoa para
espreitar. Volta a estudar. Você com 10ª classe pode ser polícia. É o emprego que até agora admite
mais gente. Pode ir para o IMAP. Não te deixes enganar outra vez pelos homens. Homem só é bom
quando não está contigo. Não rejeita esse que emprego que teu tio quer-te dar. É da Zambézia
esse? Esses da Zambézia, quando ama, ama de verdade; quando é bandido, é bandido de verdade.
Não vai ter com ele, se te chamar é só para te humilhar […] Tem muitas formas aí de evitar
engravidar, faz planeamento, usa preservativo. Você já pode entregar pessoalmente [notificação]?
Acho que ele não vai-te criar problemas
Queixosa – Sim.
Agente – Acho que não vai-te causar problemas.
Queixosa – Acho que não
[Disputa entre esposa e sogra, que passa a disputa de imóvel. Presentes: queixosa, acusada (sogra da
queixosa), pai da queixosa e irmão da acusada]352
Agente– Quem tem problema?
Queixosa – Nós duas.
Agente– E os outros quem são? [grupo grande de pessoas]
Queixosa – Familiares.
Pai da Queixosa – Sou pai dela.
Agente– Não podem ficar todos, nem tem cadeiras. Se arranjarem cadeiras podem ficar os dois
senhores. O que aconteceu?
352
Observação no Gabinete “Modelo”, Maputo, fevereiro de 2010.
394
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
[O caso é complicado, a conversa é confusa e difícil de acompanhar. Queixosa vivia com o seu marido
numa casa que este tinha herdado do pai. O pai não era marido da sua mãe. O marido da queixosa
abandonou a casa, desapareceu e a sogra apoderou-se da mesma estando presentemente a
arrendá-la. A queixosa e o seu filho passam a viver em casa do pai, mas este não aceitou bem a
situação e fala com a sogra da filha para que esta se responsabilize por arranjar casa à filha e ao
neto. A queixosa passa a viver com a sogra, mas têm problemas de convivência]
[…]
Agente– Agora, teu filho saiu, veio-te despedir, como não chamou a mulher?
Acusada – Estes aqui como marido e mulher não se dão. Eu defendo muito esta moça, bati uma
mulher que ele levou lá para casa, a lutar por ela. Qual a maldade que estou a fazer para ela?
Agente – A maldade é ter recebido a casa. Está a alugar. Devia ser herança dela.
Acusada – Aquela casa tem problemas. Fui chamada no Círculo. Aquela casa meu filho comprou,
mas não tem documentos. Estou a tentar resolver o problema do meu filho.
Irmão da Acusada – [Argumenta que a casa era do sobrinho e que queixosa já estava separada do
marido e não tem direito à casa]
Agente – Até voltar seu filho, devolve a chave, resolve em família. Ou manda chamar seu filho para
resolver.
Acusada – Eu não vou dar as chaves. Meu filho volta sexta-feira.
Agente – [Insiste que acusada não tem direito à casa].
Pai da Queixa – Posso falar?
Agente – Fala
Pai da Queixosa [fala longamente] […] Aquela criança, que é criança deste, quem é que vai assumir?
Na minha casa, não quero criança de outra pessoa.
Agente – Eu entendo, é por isso que eu disse “Ela tem que devolver a chave”. Nem era preciso falar.
[…]
Agente – Mamã, eu acho que não tenho outra solução. Aquela casa não é da Mamã. Não é a Mamã
que tem que comer daquela casa. Quem tem que comer daquela casa é o filho do seu filho.
[…]
Agente – É devolver a chave. Não é viúva do pai daquele moço. O herdeiro é o seu filho. O herdeiro
é o seu filho. É o seu filho que tem que decidir perante a família. Ele é que tem que dizer “Esta
senhora já não preciso, mas vou dar estas condições”.
Acusada – Só que aquele documento está no Círculo. Eu vou buscar, vou dar a vocês e vocês vão
resolver.
353
Observação no Gabinete “Modelo”, Maputo, fevereiro de 2010.
395
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
“Espera, tenho que arranjar algum dinheiro para convencer dono a segurar”. Ela quis vir para cá para
casa do irmão. Eu disse “Se vens para cá, eu não me responsabilizo”. Eu fui para lá, primeira coisa
que o irmão fez, foi me ameaçar. […] O que me revolta é que ela pega as coisas à força. Eu recebo,
mas tenho que dividir por isto, isto e isto […] Ela quando visse o que eu ganhava, achava muito, mas
sou espécie de empreiteiro. Carro a andar trinta dias, muito combustível, muita despesa […] Ela ligou
para a minha supervisora, a minha supervisora disse que aquilo não é sítio para fazer confusão.
Aquele mês que ela falou, eu tinha tido acidente. Dívida de cento e tal milhões. Eu ganho nove
milhões e tal. Eu consegui que dividissem em seis milhões, mas houve muitas despesas. Eu sei que
criança tem que comer, mas o problema era a forma de ela falar, confusão no meio da rua! Eu tenho
uma filha mais velha, isto não acontece! Falava comigo “Tua mãe é uma puta!”. Como vou ter
respeito por ela? Eu olho para ela como inimigo, não como mãe do meu filho.
Agente – É verdade ou mentira?
Queixosa – Umas coisas são mentira, outras são verdade […] Começou a me insultar: “Vai à merda”,
“Qualquer polícia que você procurar, eu vou comprar”. Me chamou de “puta”. Eu respondi “Me dói
muito quando você me chama de puta” […]. Zango porque criança não tinha que comer. Sempre que
eu falo com ele, ele me ameaça […].
[…]
Agente – Mas insultos?
Acusado – O problema é a linguagem. Ela não tem modos. Quando fala comigo, faz escândalo em
qualquer sítio.
Agente – Eu não estou a defender a ela, mas é uma falha mandar procurar terreno e não ter
resposta. Mas vamos deixar isso. Ainda precisa dela?
Acusado – Não […] Eu dava 3 000,00 […], mas tenho que reduzir.
Queixosa – Nunca deu 3 000,00.
[…]
Agente – Mas não procuraram conselhos nesses tios? Porque não é à primeira que vão separar…
Queixosa – Eu parei de trabalhar por causa dessa criança aqui.
Agente – Então?
Acusado – Eu sugiro que ela abra uma conta para eu depositar.
Agente – Quanto?
Acusado – 2 000,00 por mês.
Agente – Chega?
Queixosa – Não!
Acusado – Eu responsabilizo-me pela minha criança, não me responsabilizo por você.
Agente – Aceita ou não aceita?
Queixosa – Não.
Agente – Faz declaração a dizer quanto vai pagar. Eu vou fazer transferência para o tribunal. O
tribunal vai decidir. Até lá vai pagar esse valor. Depois o tribunal decide. Pode diminuir ou aumentar.
[Agente ausenta-se da sala. O casal fica discutir na presença da criança]
[Agente traz minuta da declaração]
396
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
híbrido, o pluralismo jurídico e a interlegalidade são uma constante, que, nas formas que
assumem, nem sempre dão resposta às expetativas das litigantes.
A Lei da Violência Doméstica foi promulgada para evitar a arbitrariedade do
atendimento e garantir a via judicial a todos os casos de violência doméstica. No entanto,
a ser rigorosamente aplicada pode conduzir a uma redução da procura por quem tem
expetativa de uma solução rápida, adaptável às necessidades e urgências concretas e não
necessariamente judicial. Da observação realizada ficou muito claro que, na grande
maioria dos casos, espera-se uma solução para um problema premente, seja a violência
física, as dificuldades em assegurar o bem-estar de menores ou um lugar para viver.354 O
desafio dos gabinetes é desconstruírem as desigualdades de poder ao mesmo tempo que
ouvem o que as queixosas têm a dizer, sem condescendência, mas com empatia e
sensibilidade em relação aos contextos onde surgem os problemas e às normas que
regem os espaços doméstico e da comunidade. Se a violência fosse perentoriamente
aceite pelo direito doméstico e da comunidade não haveria tantas queixas. O direito
doméstico é um direito vivo. A procura do Gabinete é um sinal de que as mulheres
pretendem negociar os papéis que lhes estão atribuídos. A criação dos gabinetes ajudou
desde logo a desconstruir a ideia da violência doméstica como violência legítima, mas a
via judicial pode não ser sempre a solução mais adequada. É preciso ouvir quem tem algo
a dizer sobre o assunto e as vítimas de violência terão certamente.
Num estudo sobre as Delegacias da Mulher no Brasil, Pasinato e MacDowell Santos
(2008) argumentam que os poucos estudos que chamaram a atenção para o
comportamento feminino e as expetativas das mulheres que prestam queixas na
delegacia da mulher indicam que o recurso das mulheres à polícia não significa uma
buscar de direitos ou criminalização da violência. Neste aspeto, o que se passa no
354
Entre as muitas dezenas de casos relacionados com pensão de alimentos que conheci nas várias
instâncias onde fiz trabalho de campo, dentro e fora de Maputo, identifiquei as mais diversas situações,
desde aquelas em que o homem não se sente obrigado a pagar, àquelas em que não tem condições para
pagar por situação de desemprego, porque o valor que ficou estabelecido é superior ao salário que aufere
no momento ou, ainda, porque a relação com a mulher impede que comuniquem de forma a
estabelecerem regras viáveis para as duas partes. Em nenhuma destas situações, a pena de privação da
liberdade constituiria uma medida que contribuísse para a resolução do problema e, em grande parte dos
casos, o homem não teria condições de poder pagar o dobro do que ficou estabelecido.
397
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
contexto brasileiro não se distancia do que pude ver e sentir no Gabinete da Mulher em
Maputo:
Embora não sejam avaliações dos serviços, estes estudos exprimem o que as
mulheres esperam da atuação policial. Trata-se de uma expectativa relacionada
a uma intervenção de caráter quer social, quer policial, embora as usuárias
tendam a identificar a função policial com o uso da autoridade e não com a
aplicação da lei; uma busca de auxílio terapêutico e de respostas jurídicas mais
relacionadas com questões de família do que com questões criminais; uma
busca de proteção ou de ameaça de prisão (um “susto”) através do uso da
autoridade policial para neutralizar a desigualdade de poder entre as partes;
um reconhecimento de direitos por uma vida em família ou comunitária sem
violência […](Pasinato e MacDowell Santos, 2008).
355
Este problema foi também mencionado pela equipa de avaliadores dos Gabinetes (Ernest and Young
para a UNICEF: 2010).
398
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
399
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
[Uma mulher com aproximadamente 25 anos apresenta contra o marido. Mudou-se para Maputo
para viver com ele, tiveram filhos e ela descobriu depois que ele já tinha uma família]356
Agente – Você veio para cá, trouxe-te para trabalhar tua tia. Você conhece esse homem, muda o
rumo da tua vida. Você não sabe que homem em Maputo é malandro? […] Ele tem família?
Queixosa – Tem tio.
Agente – Vai procurar esses tios dele, expor a situação, dizer que esteve neste Gabinete. Ele não tem
obrigação de estar contigo, mas tem obrigação de sustentar os filhos […] Vai fazer uma reunião
familiar. Se não houver resposta, então vens para aqui. Hoje é quarta, tenta reunir até sexta ou até
amanhã. Se não houver sucesso, então vens aqui.
[Queixosa sai]
Queixosa - Os meus filhos estão com a tia. Já não querem voltar para casa, porque têm medo. A
guerra é que ele quer que eu saia de casa, porque nós temos duas casas. Vamos nas esquadras,
dizem “vão lá para casa, vão conversar”. Não dá!
356
Observação no Gabinete de Atendimento “Modelo”, Maputo, fevereiro de 2010.
357
Observação na Associação Nós por Exemplo, fevereiro de 2010.
400
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
equipa constituída por uma técnica jurídica e dez estagiários, para prestarem informação
jurídica no Gabinete (Siueia, 2013).
401
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
A Associação Nós Por Exemplo (NPE) foi criada em 2008 por uma advogada com
experiência de trabalho numa ONG de defesa dos direitos da mulher e apoio jurídico.
Funciona apenas na cidade de Maputo, usando como instalações uma casa arrendada no
bairro da Malhangalene “B”. A esfera de atuação da NPE foi estabelecida de forma ampla,
envolvendo “a eliminação do desequilíbrio de oportunidades de acesso ao progresso e
bem-estar socioeconómico entre o homem e a mulher, apoio na defesa dos direitos
referentes à vida, saúde, alimentação, educação, entre outros” (NPE, 2008). Na prática,
trata-se de uma associação com fronteiras de atuação flexíveis que pretende resolver
problemas e, em grande medida, faz depender a sua ação daquilo que são as expectativas
e necessidades das/os utentes e, naturalmente, dos recursos materiais e humanos de que
dispõe. De acordo com a Presidente, a NPE apresenta semelhanças com a organização em
que trabalhou anteriormente em termos de apoio jurídico. Argumenta, no entanto, que a
especificidade da NPE se encontra na forma global de atuar sobre os problemas:
358
Entrevista à Presidente da NPE, 2 de fevereiro de 2009.
402
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
quintas depois das 14.30. Apesar dos vários meses de observação na instância, optei por
recorrer aos processos disponíveis com vista a recolher dados sobre os mobilizadores da
instância e fazer uma análise extensiva sobre o tipo de conflitos. Embora a NPE conserve
registos escritos, não lhes atribuiu elevado valor e estes não se encontram ordenados de
forma organizada. A análise foi feita com base em todos os processos a que tive acesso
dos anos de 2008 e 2009, um total de 183.
À semelhança do que foi encontrado no Gabinete Modelo, a grande maioria dos
casos é colocada por mulheres. De acordo com a informação disponibilizada nos
processos, a percentagem de demandantes do sexo feminino é de 80%. As idades das/os
queixosos/as variaram entre os 14 e os 74 anos, sendo que a maioria tem entre 25 e 45
anos (55,2%). Um volume considerável de demandantes tem idade superior a 45 anos
(28,8%). Também à semelhança do perfil de mobilizadores do Gabinete, a mais larga
franja de procura vem de outros distritos da cidade de Maputo. Ainda assim, 25% dos/as
queixoso/as mora no distrito de KaMpfumo, com 20,3% a residirem nos bairros da
Malhangalene “A” e “B”.
A equipa de resolução de conflitos é constituída por quatro advogados/as. No
entanto, durante o período em que foi feita a observação, apenas uma advogada (a
presidente) e um advogado colaboravam numa base regular. Em 2010, um advogado
estagiário passou a dar apoio à NPE, embora a sua participação se centrasse sobretudo no
apoio à Presidente no âmbito da produção de documentos. Os/as advogados/as
colaboram numa lógica de voluntariado, disponibilizando-se para o trabalho da
associação finda a jornada nos respetivos empregos.359 Não dispõem de formação na área
da resolução de conflitos, desenvolvendo o seu trabalho com base na experiência
adquirida.
O edifício da organização dispõe de duas salas de atendimento.360 Os advogados
podem conduzir sessões em conjunto ou separadamente, dependendo do movimento da
organização. As sessões de resolução de conflitos são muitas vezes acompanhadas pela
359
A Presidente é funcionária do Ministério dos Negócios Estrangeiros e o advogado é Conservador dos
Registos e Notariado.
360
No final de 2010, foi referida a possibilidade da associação ter que mudar de instalações por razões
relacionadas com as condições do arrendamento.
403
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
Como foi referido, a NPE definiu os seus objetivos de forma ampla. No que diz
respeito ao aconselhamento jurídico, não são impostos limites de competência em razão
da matéria. Durante os vários meses de observação, não assisti à recusa de qualquer
conflito. A Associação chega a ser procurada para resolver casos que foram a tribunal,
mas cuja deliberação não foi aceite.362 A conflitualidade depende assim dos/as
mobilizadores/as da instância e os/as advogados/as incentivam a entrada de
conflitualidade variada.
Classifiquei os conflitos entrados a partir de 13 categorias, tal como apresentadas
no quadro n.º 11. A grande maioria dos litígios ocorre no espaço doméstico, onde cabem
as questões relacionadas com parentalidade (reconhecimento de paternidade, pensão de
alimentos e regulação do poder parental) (39%), os conflitos conjugais
(desentendimentos, divórcios, disputas de bens) (16%) e a violência doméstica (3%). As
disputas de imóveis (10%), os conflitos laborais (9%) e as questões de heranças (4%)
ocupam um lugar relativamente importante na litigação da associação. Mesmo quando os
conflitos ocorrem fora do espaço doméstico, a relação entre os litigantes raramente é de
vínculo único. Parte dos conflitos de imóveis ou até roubos envolvem litigantes com
relações multiplexas, opondo pessoas que convivem na mesma comunidade e são ou
foram, em algum momento, amigas.
361
A secretária de bairro frequenta a escola em horário pós-laboral (depois das 15.30).
362
Um destes casos é reproduzido adiante e diz respeito a uma disputa de heranças em que a família da
pessoa falecida se recusa a cumprir a deliberação do tribunal e a entregar a casa à mãe do filho menor.
404
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
Quadro n.º 11
A classificação da litigação tem sempre caráter instrumental, uma vez que grande
parte dos casos envolve várias categorias de conflitos. A violência doméstica raramente é
a causa da queixa, mas faz parte de grande parte dos litígios entre casais e de
parentalidade. Como acontece no Gabinete da Mulher, não são apresentados conflitos
classificados como “acusações de feitiçarias”, mas esta dimensão emerge com alguma
frequência no decorrer da discussão dos litígios. Conflitos entre pais e filhos podem estar
na origem de casos classificados como “pensão de alimentos”. Se a sobreposição de
categorias tende a perturbar a clareza de resultados da investigação, não representa um
problema para quem promove o trabalho de aconselhamento.
O volume de processos de 2009 é inferior ao de 2008. Isto poderá estar ligado ao
facto de o trabalho de divulgação ter sido realizado sobretudo no ano em que a
organização entrou em funcionamento (NPE, 2008). No entanto, a ausência de uma
organização sistemática dos registos escritos não garante que eu tenha acedido a todos
405
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
406
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
363
Na linguagem da associação evita-se sempre falar de queixoso/a ou acusado, vítima ou agressor,
promovendo-se a ideia da resolução conjunta e pacífica. Opto pelo uso de demandante e demandado.
Ainda que estes termos também não sejam usados, parecem-me ser os mais adequados para classificar o
papel das partes.
407
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
hipóteses mais comuns sejam impraticáveis, são pensadas outras soluções. Se o conflito
envolver várias partes ou se, no decorrer do processo de resolução, houver necessidade
de chamar outros envolvidos, discute-se quem é o elemento em melhores condições para
o fazer.
Quando as partes estão reunidas, por vezes na presença de familiares ou membros
de um auditório relevante mais alargado, dá-se início à sessão de “aconselhamento”.364 A
disposição da sala aproxima-se mais do que encontramos numa esquadra do que numa
sala de mediação, com os os/as advogados/as e as partes a ocuparem lugares
diferenciados e uma secretária a dividi-los. Todo o processo de discussão é familiar aos
utentes e próximo do que acontece noutras justiças comunitárias do país. As partes e o
auditório relevante têm oportunidade de se expressar e, em regra, feitas as primeiras
intervenções, todos podem apresentar argumentos de forma relativamente espontânea.
A terceira parte interrompe os utentes quando precisa de esclarecimento de factos,
testar a coerência do discurso ou quando os limites do que considera razoável estão a ser
transpostos e os intervenientes falam por cima uns dos outros. Há momentos que o/a
advogado/a reserva para o seu discurso, para o aconselhamento, não permitindo
interrupções.
Caso não se alcance uma solução consensual, o trabalho da Associação não fica
concluído. O/a advogado/a pode passar de terceira parte a representante do/a
demandante em tribunal. As fronteiras entre informação jurídica, mediação,
aconselhamento e representação estão completamente diluídas nesta organização, cujo
trabalho só deve ser concluído com a resolução do caso. Isto não significa a ausência de
um esforço consistente para promover soluções consensuais. Pelo contrário, a resolução
de conflitos, nomeadamente de divórcios, por via amigável, é altamente incentivada no
discurso e nas práticas da organização.
364
A expressão “auditório relevante” é usada por Boaventura de Sousa Santos no seu trabalho sobre o
discurso jurídico de Pasárgada para designar o conjunto de oradores que podem interferir na argumentação
(Santos, 1988).
408
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
[caso de divórcio cujas partes estão a ter dificuldade em fazer cedências e alcançar entendimento]365
Advogada – Vamos fazer o seguinte… Vocês levaram cinco anos a construir o problema, leva tempo
a resolver! Só vos peço que não vão a correr para o tribunal, porque o tribunal leva tempo e não vai
ser rápido. Só se comprarem o juiz… Nós trabalhamos todos com leis. Vamos fazer uma declaração
amigável. Vou-vos dar uma semana para me trazerem a lista de tudo. O Arsénio vai fazer a mesma
coisa. Pede ajuda a mãe, pai. Se vocês quiserem a presença da família, podemos convocar. Há quem
não queira! Vocês podem fazer um divórcio amigável! Vocês têm obrigatoriamente que ser amigos,
porque têm um filho. Essa coisa de discoteca… têm que resolver. Essa coisa do arranque do carro,
não podia, privou-lhe do uso do carro. Com o tempo, sairão daqui satisfeitos. Poderão ter separação
de cama e mesa, mas aquela miúda não tem que sofrer. Eu acho que, talvez uma semana, quinta-
feira… Esta semana é para consulta aos vossos amigos: “passou-se isto, a lei diz isto, o que faço?”.
Falem! Depois a família. Ver o que vai dizer… Vai lutar pelos bens.
[caso de divórcio – Advogada procura dissuadir as partes de irem para tribunal, procurando conduzi-
los a uma partilha de bens consensual] 366
Demandante – Sim… […] Eu, afinal de contas, preciso de saber como é que eu fico! […]
Demandado – Na minha opinião, não devíamos nos apegar… Na outra instituição, ficou bem claro
que ela apareceu como queixosa, mas podia ser eu o queixoso!
[…]
Demandado – Nós fomos a uma instituição do Estado e eles disseram que faziam encaminhamento.
Fomos ouvidos, eles queriam encaminhar para o tribunal…
Advogada – Foram onde?
Demandado – Gabinete de Atendimento à Mulher e Criança…
Advogado – Eles têm uma lacuna. Eles estão para apaziguar. Eles não têm componente jurídica […]
não têm advogado. Para encaminhar um assunto que nem o vosso, precisa de advogado.
Demandado – […] Eles trabalham com o IPAJ!
Advogada – Nós também somos membros do IPAJ. Quando ouve dizer “IPAJ”, nós somos membros
do IPAJ. Nós trabalhamos sempre em conjunto. Não é porque são do governo. Muitas vezes,
mandam para nós. Mas o que queríamos era marcar [nova sessão com a presença de advogados].
Fica para quando? Terça-feira?
365
Observação na NPE, fevereiro de 2010.
366
Idem.
409
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
Demandado – Sim.
Demandante – Sim.
Advogado – Eu disse logo que podia trazer cá o seu advogado. Porque isto é fácil de resolver. Vocês
concordam que os bens são vossos. Porque a casa não se pode rachar ao meio, vende-se.
A discussão dos casos tem uma cadência aproximada, quer estejam presentes um
ou dois advogados e estes se façam ou não acompanhar pela secretária de bairro. Um
traço marcante desta organização é a maleabilidade dos mecanismos usados, que se
adaptam ao tipo de problemas e condições concretas dos casos, às expetativas das partes
e ao histórico da sua ligação com a instituição. Os procedimentos foram descritos de
forma genérica acima, mas se a regra é convocar as duas partes, ouvi-las em conjunto e
promover uma solução, os advogados podem assumir um papel mais ou menos
367
Assisti a duas situações em que a advogada mencionou que a associação iria cobrar um valor acrescido:
caso de divórcio que envolvia a partilha de imóveis com valor elevado e um conflito que envolvia a
cobrança de 750,00USD. De acordo com a presidente da associação, os valores pagos pelos/as utentes
revertem sempre para a Associação e não para os advogados.
410
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
411
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
não legais e ouvem o que as partes pensam sobre as mesmas. Todos são incluídos: os
advogados, as partes, os acompanhantes e, quando está, a secretária de bairro. Os
resultados não são sempre óbvios com base em receitas pré-fabricadas.
[Regulação de poder parental. Mãe coloca o caso para pedir a guarda da criança que está com o pai
desde que se separou dele]
NPE - Então, porque é que convidámos o seu esposo?
Demandante (Mulher) – Para ficar comigo a criança antes de completar 18 anos.
[…]
NPE – O que é que acha o Sr. S. [pai]?
Demandado – Eu pretendo dar um acompanhamento… Eu tenho um horário especial, posso dar
acompanhamento. Prefiro ficar com ele, não lhe falta nada.
S.NPE – Mas deixa ver a mãe?
Demandado – Sim, mesmo os avós! Eu acho que só a pessoa mais indicada para acompanhar na
escola. É um menino que gosta de ler […]. Ele não tem a perder, só a ganhar. Se ele quer ir visitar a
mãe, vai. Ela não está só, está com o filho mais velho e outras crianças que são parentes. Eu quero
controlar a questão da escola. Ali, comigo, tem condições! Tem uma dúvida, pode perguntar, ou,
mesmo sozinho, pode fazer, pegar a enciclopédia, entrar no computador.
NPE – Na sua ausência, quem é que cuida deles?
Demandado – A tia, minha irmã.
[…]
NPE – Mas o miúdo vai normalmente a casa da mãe, quando quer?
Demandado – Sim.
NPE– A Sra. C. acha que o miúdo não está bem enquadrado, acompanhado ou o que lhe leva a
querer que o miúdo fique consigo?
Demandante – Ele trabalha. Eu não sei se, no tempo que ele não está, a criança tem quem cuide
dela. Ele não tem tempo.
NPE – Mas eu também só chego a casa à noite. Até o meu filho de 18 anos reclama. Hoje, também
as mulheres trabalham. Se tivéssemos um motivo… Mas, se o pai é professor, cuida da criança, não
sei se estaríamos a fazer mal. 11 anos, a lei já chama para perguntar. Se for o caso, podemos fazer,
mas é sempre embaraçoso para a criança ter que escolher o pai que gosta. Eu entendo a senhora.
Mãe quer ficar com os filhos, mas a senhora deixou esta situação, ele já está habituado…
[…]
NPE – Sr. S., qual é seu tempo.
[Demandado mostra o seu horário. É professor e tem bastante tempo livre]
NPE – E quem cozinha?
Demandado – Tem uma empregada, tem a minha irmã, mas eles próprios sabem fazer o seu chá.
NPE - Temos que olhar para o interesse da criança. Vivem os dois no Infulene… Sra. Sara [secretária
de bairro], o que é que acha?
SB – Há quanto tempo está com a criança?
Demandado – Dois anos.
SB – Dois anos é muito tempo. Se ele não gostasse da casa do pai, ia queixar-se quando fosse a casa
da mãe… […].
Demandado – […] Não falta caderno, não falta lápis, não sabe o que é exame, sempre passou! […] A
minha luta é que eles estudem. A minha irmã, eu levei para criar, já atingiu o nível médio, mis velho
também está no nível médio.
Demandante – Posso falar?
NPE – Sim.
Demandante – […] Se vamos falar de condições, eu talvez tenha mais condições que ele. Uma vez,
412
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
ele não conseguia comprar chinelo para a criança. Chinelo de 75,00/100,00 Meticais. Vamos falar de
condições ou vamos ver o que diz a lei […] Não vamos medir condições, vamos ao assunto do filho!
NPE – Está bom. A Sra. C. tem a sua razão, o Sr. S. tem razão. Vamos olhar para o interesse da
criança. Às vezes, nós as mulheres entendemos mal. Se a criança está a viver com o pai, isso não
impede que a mãe possa comprar um chinelo, uma camisa… Tomem conta para que o miúdo não vá
descalço […] Você pode levar um pratinho, uns bolos. É bom saber onde ele vive, quase obrigatório,
mesmo que não entre, não sabemos o nível da sua desavença. Sra. C., sem querer tomar uma
decisão, deixar passar uns dois anos e aí falar com ele. Talvez seja melhor parar um bocadinho,
deixar ele lá, ter contacto permanente com o miúdo, comprar livrinhos (daqueles que se vendem na
rua) para o miúdo, para ele sentir o seu carinhos […] Se insistir para retirarmos o miúdo, nós
fazemos, mas não é essa a nossa opinião. É cedo demais para perguntar a essa criança: “gosta mais
de quem?”. Não sei o que a Sra. C. acha. Essa é nossa opinião: vamos aguentar mais um bocadinho.
Sem fechar as portas quer para o lado dele, quer para sua casa. Há casos em que marcamos dias,
mas pela vossa conversa parece que vocês não têm esse problema.
[silêncio]
NPE – O que acha Sra. C.?
Demandante – Vou pensar, venho dar resposta.
NPE – Está bom, nós aguardamos. O Sr. S é acessível. Sempre que chamamos, está cá. Mas tente
pensar com carinho, pensa no seu filho. Mas nós estamos cá para apoiar. Claro que, quando as
relações acabam, os filhos é que pagam, não é bom para os miúdos. Mas vamos aguardar até que
diga alguma coisa. Mas eu pus aqui que vamos esperar dois anos. Em dois anos – passa num instante
– muita coisa acontece. Pode ser ele a dizer “Estou a fazer doutoramento, fica com a criança”.
Aguente, não sabe. Tem algum problema Sra. C.?
Demandante – Não.
NPE – Tem algum problema Sr. S.?
Demandante – Não.
As discussões podem ser longas e as partes podem exaltar-se. Por vezes são
introduzidos breves conselhos como instrumentos retóricos para moderar a tensão da
discussão, os “pacemakers do coração argumentativo” que Santos identificou em
Pasárgada (Santos, 1988). Mas o aconselhamento pode ir além dessa função e ter como
objetivo modelar o comportamento dos litigantes em função do que se considera um
comportamento razoável para restabelecer a harmonia. Por exemplo, ao mesmo tempo
que concedem informação jurídica, mostrando que o pai é obrigado a pagar pensão de
alimentos, a advogada pode ir mais longe, aconselhando sobre a relação entre pais e
filhos, independentemente das normas que regulam poder parental. Este tipo de
aconselhamento pode ser dirigido a qualquer pessoa do auditório relevante, isto é, não
apenas às partes, mas também aos seus familiares ou acompanhantes.
413
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
[Caso de pensão de alimentos, que pai deixou de pagar. A filha tem 16 anos e vem acompanhada
pela mãe. O pai é guarda numa escola e ganha pouco mais de 1000Mt.368].369
[Uma mulher traz um caso antigo, queixando-se que o ex-marido deixou de pagar a pensão da
criança por ela já ter outro marido] 370
368
1000,00Mt não chega a €30.
369
Observação na NPE, dezembro de 2009.
370
Observação na NPE, janeiro de 2010.
414
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
[…]
Demandado – Eu sei que 500,00Mt por mês até é pouco dinheiro para pagar à minha filha. Só que
eu não tenho estado a trabalhar, eu faço biscate.
NPE – Mas tem que arranjar maneira de não falhar.
Demandado – Mas se não aparece, como vou fazer?
NPE – Ele trabalha ou não trabalhar?
Demandante – Trabalha […]. [Queixosa narra um episódio em que a filha ficou doente e o pai não
ajudou]
NPE – Mas, desde que estivemos cá, em 2008, tem vindo a tirar?
Demandante – Sim. Mas tira este mês, não tira outro. Tenho tido muita paciência.
NPE – Tem que continuar a ter. E você tem que esforçar, porque o outro não tem que sustentar.
Pode até fazer mal à sua filha.
[Caso muito complexo de um casal, que envolve duas casas, violência entre ambos e acusações de
feitiçaria. O caso é longamente discutido e não se percebe o que o que as partes pretendem. Já foi
colocado em esquadras por ambos, passou depois pelos Gabinete Modelo e pela Liga dos Direitos
Humanos e não encontra solução. Tinha havido já uma primeira sessão, mas marcou-se a segunda,
porque a demandante estalava acompanhada por familiares e o demandado quis chamar os seus.
Estão presentes as partes, a advogada (NPE1) e o advogado (NPE2) da NPE e a secretária do bairro]
[NPE1 bate com a caneta na mesa]
NPE2 – Têm que dizer o que querem!
[todos discutem e narram episódios]
NPE1 – O que querem?
[…]
NPE2 – O que queremos é saber o que é que querem!
NPE1 – Quer aconselhamento? Quer deixá-lo? Se quer a ele, trabalhamos com ele. Se quer deixar o
lar, diga, não é crime! Veio pela pancadaria e problemas. Se o problema é bater, eu prometo que ele
para.
Demandante – Já não nos entendemos.
NPE2 – Às vezes as pessoas não dizem o que querem por má informação, pensam que vão perder as
crianças. Isso não é assim. A Sra. não perde por ser a primeira dizer. Tem que ser um de vocês ou os
dois a dizer. Ninguém perde nada, bens dividem-se.
NPE1 - Há um “mas”. Tenha a consciência tranquila, pense nos seus filhos. Não se deixe levar pela
família. Pense em você mesma, nos seus filhos. Pense sozinha. Essas coisas não se dizem num dia. Se
precisar de um tempo para pensar, damos o tempo que você precisar. Você sofre, porque ele bate.
Mas às vezes acontecem coisas, porque não se sabe bem que as coisas não se fazem. Ele pode parar
de bater […].
Demandante – Eu sei, para mim já não dá, temos que nos separar.
[Família tenta intervir]
NPE1 – A sua decisão é que não quer?
Demandante – Sim.
NPE1 – Não quer, porquê? Porque ele lhe bate?
Demandante – Porque, depois de tanto sofrimento, já chega!
MPE1 – O homem?
Demandado – Também.
NPE1 – Também, não? Tem que dizer!
Demandado – Eu também não quero.
NPE1 – Vai aguentar ficar sozinho?
Demandado – O tempo dirá. Se ela não quer, não posso insistir.
NPE1 – Mas você?
415
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
416
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
refletir um pouco, pensar sobre isto. Quando voltarem aqui, eu não quero discutir. Como disse a
Dra., estas pessoas ainda vão se precisar, porque têm as crianças. Nenhum pode ganhar tudo. Se eu
ganho tudo, o outro perde tudo. Vamos chegar a acordo. Quando vierem, vamos com mais calma.
Se não vierem com calma, vão ter que ir a tribunal, discutir roupa suja na frente dos outros.
Tia de Demandante – Isto acontece quando têm raiva, mas as pessoas não podem ser egoístas, têm
que entender.
NPE2 – Isso. Nós família não podemos aumentar o problema do casal.
Para a Presidente, nem todo o acordo é um bom acordo e a associação não aceita
qualquer consenso. No entanto, na lógica da NPE, o esforço de equilibrar o poder entre as
partes não significa seguir a via judicial ou optar unidimensionalmente pelo direito do
Estado. São várias as estratégias para evitar a reprodução das desigualdades: a
informação jurídica, que pode ser transmitida em tom mais ou menos ameaçador; a
desconstrução dos argumentos da parte mais forte e o aconselhamento sob forma de
pedido.
No caso da violência contra as mulheres, em regra, a Associação não encaminha os
casos para a polícia.371 O uso da violência pelo homem é considerado ilegítimo em
qualquer circunstância, mas a Presidente acredita que, face ao contexto cultural e às
instituições do país, o aconselhamento e a informação funcionam de forma mais ativa
nesta matéria, o que vai quase sempre ao encontro das expetativas das demandantes.
Isto não significa que as mulheres não sejam apoiadas na dissolução de relações,
violentas ou não, quando é essa a sua vontade.
Os/as advogados/as condenam perentoriamente as normas da comunidade
reprodutoras de desigualdades, como as de que a violência é problema só do casal, a
herança de um homem não pertence às viúvas e aos filhos e de que se mulher perde o
direito aos bens se sair de casa (Arthur e Mejia, 2006). No entanto, não se limitam a
sentenciar, procurando soluções negociadas que tenham condições para ser
implementadas. As situações são muito variadas e a criatividade e bom senso para as
resolver é fundamental.372 O direito estatal é usado de forma interligada com normas da
371
Note-se que o trabalho de campo foi realizado quando a lei ainda não o obrigava.
372
Há um caso específico de uma jovem cuja situação a NPE acompanha há algum tempo. Tem uma
condição mental não diagnosticada, que lhe cria alguma incapacidade para resistir a manipulação. A
primeira vez que se dirigiu à associação estava grávida de um homem bastante mais velho. O problema foi
resolvido, o pai da criança assumiu a paternidade e paga uma pensão mensal. A jovem engravidou uma
segunda vez, atribuindo a paternidade ao mesmo homem. Este foi chamado à Associação e nega a
417
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
Disputa sobre herança. Uma mulher dirigiu-se à Associação porque faleceu o pai do seu filho,
deixando de herança uma casa, atualmente arrendada, cuja gestão se encontra nas mãos de um
irmão. O caso esteve em tribunal, que estabeleceu que a gestão da casa compete à mãe da criança,
a demandante. A família do marido sente-se com direito à herança e recusa-se a cumprir a sentença.
A advogada pede que esqueçam a sentença por algum tempo e discute-se o caso. Na discussão
identifica-se um segundo herdeiro que até hoje não compareceu e continua sem receber a sua parte.
A advogada sugere que se marque uma nova sessão com a mãe desse herdeiro e, embora não sido
possível convocá-la e se tenha resolvido o caso, a advogada avisa que continuará a tentar contactar
a pessoa em causa. O homem falecido ajudava os pais, uma situação comum num contexto social
em que a maioria das pessoas não recebe reforma. A advogada sugere que no acordo sejam
protegidos os interesses dos pais e das crianças, estabelecendo-se que parte do valor da renda seja
canalizada para os pais e outra para as crianças. O caso foi longo e implicou a desconstrução da
ideia de que a família do marido é dona da herança e que resulta em muitas situações apropriação
indevida de bens. No entanto, é tida em consideração a subsistência dos pais. Foi ainda discutida a
ligação entre a família do falecido e as crianças que deixou.373
Advogada – Vamos tentar resolver o problema das mulheres e dos filhos que o seu irmão deixou.
Não interessa quem comprou a casa. A casa é dele. Se o dinheiro saiu de si, se saiu dele, se saiu dela,
não interessa aqui. Nós, constou-nos que a casa é do seu irmão falecido e o seu irmão falecido
deixou menores de idade, não é? Então, vamos falar disto.
Irmão do falecido – [começa a falar um pouco exaltado]
Advogada – É por isso que dizem que os africanos, quando os donos dos bens morrem, têm muitos
problemas. O Sr. vai ter a fala. Nós nem queríamos ouvir isso. As mulheres não estão em disputa,
quem foi primeira, quem foi segunda. É assim, esta senhora vocês conhecem como mãe do vosso
sobrinho?
[a discussão continua e o irmão permanece muito exaltado. A advogada deixa-o falar, vai-lhe
fazendo perguntas e depois retoma o controlo da discussão]
Advogada - Está bem […] Até aqui não temos problemas, é só uma questão de conversarmos e
chegarmos a um consenso. O valor tem que ser dividido por igual. E quando esses miúdos
crescerem, o direito é mesmo deles […]. A tutora desta criança, legalmente, é esta senhora. São os
documentos que tenho aqui do tribunal. É esta senhora. Ela foi considerada para cuidar do imóvel
para as duas senhoras, é ela a cabeça do casal. É esta senhora aqui? O documento que eu tenho aqui
do tribunal…
[…]
Advogada – Esta coisa de dividirmos pelos pais, porque o seu falecido esposo já tinha esse desejo,
nós vamos continuar com esse desejo. Um dia, nós podemos chamar os pais para saber se eles
paternidade do segundo filho. O caso terá que seguir para tribunal, mas a advogada está preocupada com o
sustento da criança até que o problema se resolva, acreditando que o pai da segunda criança será o pai da
primeira. Com essa preocupação, depois de ter sido procurada pela jovem já com a segunda filha, convoca
o alegado pai e, individualmente, sem a presença da mãe das crianças, pede-lhe que aumente o valor que
até agora paga à mãe da criança, uma vez mais oscilando entre o tom ameaçador e de pedido. Neste
mesmo caso, a advogada pede ainda que o pai da criança deixe na Associação um contacto de algum
familiar para o caso de haver algum dia dificuldade em contactá-lo.
373
Observação na NPE, dezembro de 2009.
418
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
usufruem mesmo ou não. Esse direito deles é enquanto eles estiverem vivos. Mortos perdem o
direito. O direito não passa para os filhos, passa para o seu filho e para o filho da senhora.
[…]
Advogada [para família do marido] – Não podem se apegar… Sabem qual é o grande problema
nosso? É apegarmo-nos a coisas que não são nossas. E, às vezes, arranjamos problemas, deixamos
de falar com uma pessoa que até podíamos falar, porque o bem mesmo é do falecido! E ele deixou
mãe, pai e dois filhos. Dividam esse valor por essas quatro pessoas, só isso! Vocês, pais dos menores,
têm que ter cuidado, para a família fazer uma declaração, porque pode haver um desvio do bem no
meio do andar do tempo. Tem que se fazer uma declaração por vocês a atribuir o poder aos miúdos.
Para conservar que nenhum de vocês venda o imóvel. Dividam por igual. Não devia ser por igual,
mas se vocês querem assim, dividam por igual. Dá uma parte a ela, dá uma parte a outra criança.
Não está a outra criança, depositem, abram uma conta, a criança vai crescer. Quando chegar a hora,
vai ter. É um direito que assiste a criança. Têm nada que estar nervosos.
[No seguinte caso de divórcio, estão envolvidos vários bens imobiliários, carros e dinheiro. A mulher
saiu de casa com a filha e ficou sem nada, nomeadamente sem o carro. Demandado argumenta que
os bens foram construídos com dinheiro da sua família e que a demandante saía à noite com outros
homens. Advogada informa-o sobre os direitos da demandante e desconstrói o que para o
demandado seria o argumento de peso contra o mulher, isto é, o facto de demandante não o
respeitar como marido] 374
NPE – […] Não interessa se este dinheiro foi trabalhado por mim, se recebo vinte e tu dez! Não
interessa de onde vem o dinheiro. A não ser que seja doação. A padaria, vamos ter que saber mais.
Imaginemos – vou dar um exemplo extremo – que você chega a casa e você vê ela em cima de um
homem ou você em cima de uma mulher. Isso só significa para o divórcio, não significa nada para os
bens. Tirando as doações, não interessa de onde vem o dinheiro. O que lhe foi oferecido, ninguém
lhe tira, é herança. A lei preocupa-se muito com as crianças […]
[Na medida em que o demandado não cede, pois insiste em aguardar por uma outra sessão onde o
seu advogado esteja presente, NPE e NPE2 procuram outra estratégia, mantendo um tom amigável,
abordando a questão sob a forma de pedido, em vez de exigência para tentar garantir que
Demandante terá um carro para transportar a criança, até que o conflito venha a ser sanado]
Demandado – O que eu sinto é que estamos à busca de uma solução, mas a ideia é a curto prazo!
[…]
NPE – Você pede o tempo que pede, mas libera transporte!
Demandado – Essa pergunta não vou responder.
NPE – Porquê?
Demandado – Estamos a caminho de uma solução, eu não vou responder.
NPE – Mas isto já é o caminho da solução.
Demandado – Do carro não vou falar!
NPE – Mas, assim, é difícil!
Demandado – […] Está-se a marcar uma segunda conversa. Eu disse que preciso de falar com o meu
advogado.
NPE – Ela diz que você pede tempo e ela está a passar mal com a miúda. Ou libera o carro ou diminui
o tempo.
Demandado – Essas nossas divergências começaram em Dezembro de 2008. No ano antepassado.
Neste momento, estamos…
Demandante – Ele está bem, a fazer a vida dele! Estou em casa da minha mãe, estou a com a minha
filha. O carro está parado. Como ele disse, já foram vários encontros. Se fosse eu não ter paciência,
374
Observação na NPE, fevereiro de 2010.
419
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
já tinha ido buscar à força. Eu só peço ele, para ter todo o tempo para se organizar, mas me dê
condições! A filha vai à escola de chapa, de táxi…
[NPE2 chegara entretanto com SB. Depois de terminarem o atendimento na sala ao lado, vieram
acompanhar esta sessão, quando já ia numa fase avançada da discussão]
NPE2 – Como diz a Dra., está a atingir a criança. O A. [Demandado] deve ter as suas razões para não
querer ceder o carro, mas a sua filha é que sente. Não estou a dizer para entregar o carro, para
ceder até resolver.
NPE – E se acontece alguma coisa a elas? Um carro é um bem! Abra mão de uma coisa: ou o carro ou
o tempo.
420
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
“Sr. X, esta é a terceira vez que convocamos para fala de assuntos do seu
interesse e não aparece. Não gostaríamos de usar outros meios para o
efeito”.375
Não existe uma relação forte com outras instituições. Como vimos, a NPE é
relativamente desconhecida do leque de instâncias comunitárias que compõem a
paisagem das justiças comunitárias de Maputo. A ideia que gostam de transmitir aos
litigantes é que o caso será resolvido ali. Pode ser a última instância a ser procurada, mas
não desistirá do caso até ter chegado ao fim.
375
A NPE pode ainda solicitar o apoio da esquadra para apoiar na notificação ou, em casos de disputa de
imóveis, para intervir no sentido de fazer cumprir o decidido, o que na prática, tende a não funcionar.
421
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
Conclusões parciais
422
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
classificados e tratados como casos sociais. Os litígios classificados como “casos sociais”
são, em regra, conflitos simples que resultam de relações uniplexas, não envolvem
violência continuada e demandam solução rápida. A resolução faz-se por aproximação ao
consenso, num registo compreensível aos litigantes. A resposta é rápida e eficiente e
assenta num registo próprio da conciliação. Os discursos da polícia são atravessados, em
maior ou menor grau, por formas subtis de coação, como a ameaça de abertura de
processo ou de prisão. Isto não significa que as partes tendam a aceitar soluções que lhes
são prejudiciais ou impostas em absoluto, mas que a ideia partilhada pelo Comandante e
pelos oficiais de permanência de que as soluções resultam de consensos é uma
aproximação idealizada às práticas. Por outro lado, a elevada procura da esquadra não se
explica apenas pelos meios de coação de que dispõe, mas pela combinação dessa
autoridade com o uso de mecanismos semelhantes aos das justiças comunitárias que
sofreram processos de erosão na cidade. As esquadras são procuradas como sucedâneos
de estruturas como os tribunais comunitários e as autoridades tradicionais quando estas
se extinguem ou, por diferentes razões, se desvirtuam.
O Gabinete Modelo usufrui de alguma da visibilidade da Esquadra e apresenta
quase sempre um movimento muito intenso. No entanto, o impacto da autoridade
policial na legitimação do Gabinete assume contornos diferentes: por um lado, alimenta
uma procura que espera da autoridade policial a força da neutralização da violência e, por
outro, descredibiliza a instância para tratar de problemas que pertencem à esfera
familiar. Nesse sentido, o Gabinete tende a ser considerado uma instância de recurso da
estrutura familiar, a que os litigantes só devem aceder depois de falhar a solução
procurada em família. Esta perceção é, com frequência, partilhada com as agentes que
devolvem grande parte dos casos à família, nem sempre correspondendo às expetativas
das queixosas ou garantindo a segurança e os direitos da mulher.
Os litígios que dão entrada nesta instância são muito mais complexos do que os que
são reportados à esquadra e requerem mais tempo, mais experiência, mais paciência,
mais criatividade, maior sensibilidade ao contexto e às especificidades e maior
mobilização de conhecimentos jurídicos. Nenhum destes fatores existe na proporção
adequada. Grande parte dos casos resulta de conflitos multidimensionais, violência
423
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
continuada e laços que não podem ser totalmente quebrados ou porque envolvem filhos
menores ou porque as partes pretendem mantê-los. Não existem normas sobre como
proceder ao aconselhamento e, face ao desconhecimento sobre o direito estatal, os
processos ficam entregues a dinâmicas individuais, em que o discurso do espaço
doméstico e da família se articula com um entendimento precário dos direitos humanos
num resultado legitimado pela autoridade do Estado. Assim, por exemplo, condena-se a
violência, ao mesmo tempo que se reproduzem julgamentos morais sobre mulheres
vítimas de abusos sexuais. Isto não significa ausência total de apoio na construção de
soluções que se querem urgentes, mas dificilmente são subvertidas as desigualdades e se
abre espaço para uma profunda renegociação dos papéis na sociedade.
A promulgação da lei contra a violência doméstica procura contrariar esta situação
ao criminalizar e judicializar todas as situações de violência. No entanto, não fica
garantido que sejam consideradas as várias dimensões da violência escondidas sob uma
única queixa e não é assegurado que as mulheres possam ser ouvidas na construção da
solução para as violências que sofrem sobre o seu corpo. Não é também credível que o
judiciário seja capaz de dar resposta a todos os casos que chegam aos gabinetes. O Estado
heterogéneo tenderá a reagir com soluções criativas que podem favorecer ou não as
mulheres. A construção do edifício do Gabinete Modelo pode ser usada como metáfora
da instituição que importa leis e modelos sem os articular com a realidade local. Foi
criado com o apoio da cooperação portuguesa, à imagem e semelhança das expetativas
europeias para este espaço. Apesar dos quartos para as vítimas, não há como assegurar a
alimentação ou o bem-estar físico e psicológico das mulheres que saem de casa com a
roupa do corpo e vivem em situações de extrema carência financeira. A sala de
atendimento à criança tem todas as condições para ser usada com exceção dos técnicos
especializados para ouvirem as crianças. Na prática, o espaço do Gabinete é usado
exatamente nos mesmos termos da esquadra, sendo ignoradas as especificidades das
situações que ali são tratadas.
A Associação Nós por Exemplo está fora das paredes do Estado e é a instância onde
a interlegalidade dá lugar a combinações mais criativas, isto é, acordos variados,
exequíveis, que transcendem o direito estatal e o direito dos espaços doméstico e da
424
Narrativas de quotidianos híbridos. a Esquadra, o Gabinete da Mulher, a Associação
comunidade, indo ao encontro das expetativas das partes. A flexibilidade está aqui de
mãos dadas com a empatia, as necessidades específicas dos casos, a vontade das partes
envolvidas, o contexto de ocorrência do conflito e os direitos assegurados pela lei. A
linguagem e os procedimentos são familiares às partes e, em cada momento, podem ser
dados esclarecimentos sobre as garantias asseguradas pelo direito estatal, bem como
sobre os procedimentos judiciais para o caso nem discussão. A equipa de resolução
demora-se nos conflitos, abordando-os na sua globalidade, procurando dar resposta às
várias dimensões que estão em causa. A violência doméstica é condenada de forma
veemente sem que seja procurada uma via judicial para a resolver. Ouvem-se os
envolvidos e estabelece-se empatia sem julgamentos morais. A NPE é recente e bastante
menos visível que as instâncias anteriores e apresenta uma procura substancialmente
inferior. No entanto, promove uma relação de continuidade com os utentes, insistindo na
ideia de acompanhamento dos casos após a resolução do conflito. A resolução definitiva
não é sempre objetivo principal, mas sim o estabelecimento de bases para um bom
entendimento entre as litigantes com relações multiplexas, cuja rutura poderá implicar
um regresso à instituição. As decisões são quase sempre mini-max, procurando-se
acordos que possam ser cumpridos. Isso é muito claro nas pensões de alimentos. Muito
mais do que no Gabinete de Atendimento à Mulher, estes casos são muito discutidos,
tendo-se em atenção os rendimentos do pai da crianças e o equilíbrio entre as exigências
da mãe e as disponibilidades financeiras.
As três justiças comunitárias abordadas fazem parte da rede de forum shopping de
KaMpfumo e, no uso seletivo que os cidadãos fazem das mesmas, contribuem para o
acesso ao direito e à justiça. Grande parte dos cidadãos que mobilizam esta rede tem
origem noutros distritos. Todas elas proporcionam uma justiça próxima dos cidadãos,
economicamente acessível, compreensível e assente em procedimentos flexíveis. No
entanto, a proximidade e a flexibilidade assumem significados diferentes. A esquadra
funciona como paliativo que dá respostas imediatas à procura suprimida, conflitos
ignorados pelas estruturas modernas (ou porque ocorrem no mercado informal ou
porque envolvem valores muito baixos ou porque não têm enquadramento jurídico),
ocorridos entre membros da sociedade civil incivil, numa sociedade atravessada por
425
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VI
enormes desigualdades económicas. Não significa que não resolva conflitos judiciáveis,
oferecendo soluções muito mais rápidas do que as dos tribunais, sem envolver qualquer
custo, mas não é aí que se encontra o núcleo central de procura. O Gabinete e a
Associação resolvem conflitos multidimensionais e complexos. Em ambos os casos, a
linguagem e os procedimentos são compreensíveis, mas a abordagem aos litígios é
diferente. O Gabinete trata os problemas sem profundidade e não dispõe de capacidade
para desafiar a lógica das relações patriarcais. Tratando-se de um espaço com potencial
para oferecer respostas rápidas, já que tem a força da autoridade policial, quase nunca
promove uma análise aprofundada dos conflitos nas suas várias dimensões. Por outro
lado, a Associação, com abordagens mais abrangentes e multidimensionais, promove
soluções criativas, extrapolando as fronteiras dos vários direitos, e apresenta uma maior
potencialidade para renegociar os papéis impostos pelo patriarcado.
426
CAPÍTULO VII - RETRATOS DA INFORMALIZAÇÃO E DA
DESJUDICIALIZAÇÃO. O JULGADO DE PAZ E O SISTEMA DE
MEDIAÇÃO FAMILIAR
Introdução
376
O trabalho de observação no julgado de paz de Lisboa decorreu nos meses de janeiro e julho de 2011 e
foi complementado por entrevistas aos juízes e funcionários, bem como por conversas informais com
mediadores.
427
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
impor limites. A opção acabou por pender para a mediação pública visto ser uma
inovação recente e pouco estudada e dada a desproporção entre o lugar relevante que
ocupa ao nível dos discursos sobre os RAL, a que se junta uma aparente satisfação dos
utentes, e a baixa mobilização da instância. Este fator relevou-se uma componente
importante para perceber o que determina a procura. A opção pela mediação familiar em
detrimento da mediação laboral assentou na expetativa de ser possível estabelecer
comparações com as justiças comunitárias estudadas em Maputo. O trabalho de campo
foi dificultado por alguns obstáculos que, não tendo impedido a investigação, desafiaram-
na a partir de um menor número de elementos do que noutras instâncias. A observação
de sessões de mediação esteve sujeita a múltiplos constrangimentos específicos. Em
primeiro lugar, o volume de mediações é reduzido. Em segundo lugar, o processo de
atendimento é quase sempre feito via telefone ou online. Não existe um espaço onde seja
fácil observar e compreender as rotinas de atendimento e se sucedam permanentemente
mediações, sendo necessário aguardar por informação sobre marcação de sessões, com
frequência canceladas no último momento por desistência das partes. Por fim, a
configuração intimista do espaço da mediação, onde a disposição do mobiliário e dos
presentes assume uma importância crucial, em nada beneficia de uma presença externa e
nem todos os/as mediadores/as autorizaram a minha participação. Nestas condições, a
análise dependeu sobretudo de entrevistas; múltiplas conversas informais com
mediadores/as, técnicas do GRAL e outros operadores; de documentação e dados
disponibilizados pelo GRAL e de um número reduzido de observações.377 É necessário
considerar que todo o tipo de constrangimentos de acesso à informação não deixaram de
funcionar como elementos relevantes para a análise sobre o funcionamento da mediação
familiar.
À semelhança da estrutura escolhida para o capítulo VI, o texto que se segue está
dividido em duas partes, que correspondem às duas instâncias, cada uma repartida em
subpontos que refletem os grupos de variáveis tal como organizados na grelha analítica
apresentada no capítulo III. Do mesmo modo, a descrição e os argumentos são
intercalados com excertos de entrevistas e dos casos observados.
377
As observações foram realizadas no mês de maio de 2011.
428
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
O Julgado de Paz de Lisboa faz parte do grupo dos quatro julgados previstos como
projetos experimentais na lei que introduziu os julgados de paz no ordenamento jurídico
português, em 2001.378 Instalado em 21 de janeiro de 2002 foi o primeiro julgado de paz a
ser inaugurado em Portugal. Como referi no capítulo IV, funciona em Telheiras, num R/C
tipicamente destinado ao comércio. Na sala de espera, juntam-se demandantes,
demandados, acompanhantes, advogados, visitantes e testemunhas. É nesse espaço que
deve aguardar quem vem apresentar uma queixa, participar numa sessão de pré-
mediação ou mediação, num julgamento ou numa leitura de sentença.
Os técnicos/as de atendimento dirigem-se frequentemente à sala de espera
perguntando quem está para atendimento, mediação, leitura de sentença ou julgamento.
Os utentes são, então, encaminhados para o espaço adequado: sala de atendimento,
salas de pré-mediação ou mediação, sala de audiências. Para além destas divisões, o
julgado de paz é composto, ainda, por uma sala de arquivo, duas salas para os técnicos e
um gabinete para cada um dos juízes. Uma das dificuldades apontadas internamente
prende-se com a precariedade do material informático, bastante arcaico, incompatível
com o conceito de instituição ágil. Esta situação poderá variar consideravelmente entre
julgados de paz, uma vez que o equipamento é da responsabilidade da Câmara Municipal.
No inquérito de satisfação aos utentes aplicado pelo Conselho dos Julgados de Paz em
2012, a nota mais baixa foi atribuída ao ambiente e instalações, o único item que ficou
abaixo dos 2 pontos num máximo de 3 (1,44) (Conselho de Acompanhamento dos
Julgados de Paz, 2013; Conselho dos Julgados de Paz, 2014).
378
Lei n.º 78/2001, de 13 de julho, art. 64.º.
429
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
Um juiz e uma juíza de paz partilham entre si os processos deste julgado. A instância
conta ainda com o trabalho de 14 funcionários e uma lista de mediadores habilitados a
desempenharem as funções de mediação necessárias. Os juízes de paz, como mostrei no
ponto 1.3.2.1 do capítulo V, são licenciados em direito e recrutados por concurso público
aberto para o efeito, mediante avaliação curricular e provas públicas. No caso concreto
de Lisboa, o juiz de paz, anteriormente advogado, foi selecionado no primeiro concurso
público, estando a desempenhar as atuais funções desde a inauguração do Julgado de Paz
de Lisboa. É também presidente da Associação dos Juízes de Paz. A juíza de paz começou
por trabalhar no julgado de paz de Oliveira do Bairro, mais um dos julgados de paz criados
como projetos experimentais. Os seus antecedentes curriculares são académicos, tendo
sido professora universitária.
Até ao momento, foram realizados dois concursos públicos para juízes de paz. Os
juízes selecionados no primeiro concurso tiveram uma formação bastante curta, que
incluiu algumas noções sobre a mediação. Esperava-se que os juízes de paz trilhassem o
seu caminho, ajudando a descobrir o papel que viriam a desempenhar. Os juízes
selecionados no âmbito do segundo concurso usufruíram de uma formação mais longa,
beneficiando da experiência dos juízes paz em exercício e de outros profissionais:
379
Entrevista a juíza de paz do Julgado de Paz de Lisboa, 27 de janeiro de 2011.
430
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
380
Lúcia Vargas não compara os dados dos utentes do Julgado de Paz de Lisboa com a distribuição geral por
nível de escolaridade, sendo difícil fazermos a comparação rigorosa dos dados que apresenta com os dos
sensos, uma vez que não são usadas as mesmas categorias.
431
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
A jurisdição do Julgado de Paz de Lisboa começou por cobrir três freguesias, tendo
sido ampliada para o total das freguesias de Lisboa quando terminou o período
experimental. Em consequência do alargamento da área geográfica, dos bons resultados
e do aumento gradual da visibilidade da instância, bem como da recente ampliação das
competências materiais do julgado de paz, existe uma tendência geral para o crescimento
do número de processos, distribuídos entre dois juízes que partilham uma única sala de
julgamentos. De 119 processos entrados em 2002, passou-se para 1401 em 2012 e, com
uma descida ligeira, para 1340 em 2013. O número de pendentes em 2012 era de 328
processos, ainda que o número de processos findos fosse superior ao número de
processos entrados (1401 processos entrados e 1402 processos findos). Em 2013, o
número de processos pendentes não aumentou substancialmente (363), mas o número
de processos findos foi inferior ao número de processos entrados (1340 processos
entrados e 1306 processos findos) (Conselho de Acompanhamento dos Julgados de Paz,
2013; Conselho dos Julgados de Paz, 2014).
381
Sobre estes estudos e a análise de Maria Manuel Leitão Marques, ver ponto 2.1. do capítulo V.
382
O objetivo do inquérito era perceber os julgados de paz da perspetiva dos destinatários. A aplicação,
levada a cabo nos primeiros meses de 2005 em parceria com a DGAE, não esteve imune a problemas
metodológicos, nomeadamente no âmbito da receção de respostas, que foi muito variável de julgado de
paz para julgado de paz.
383
Entrevista ao Juiz do Julgado de Paz de Lisboa, 20 de janeiro de 2011.
432
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
384
Entre 2002 e 2012 a procura cresceu sempre com exceção do ano de 2009 em que, à semelhança de
2013, se verificou uma ligeira queda do número de processos entrados (entraram menos 6% do que em
2008) (Conselho de Acompanhamento dos Julgados de Paz, 2013).
385
Entrevista ao Juiz do Julgado de Paz de Lisboa, 20 de janeiro de 2011.
386
Com a lei atual, a alçada dos Julgados de Paz vai até aos €15 000 euros (lei 54/2013, de 31 de julho).
433
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
Uma fatia substancial dos processos recebidos no Julgado de Paz de Lisboa diz
respeito a conflitos de condomínio. Este facto prende-se com o êxito da instância na
resolução deste tipo de litigação e, em grande medida, com a principal via de acesso ao
julgado de paz, isto é, a procura com base em experiências anteriores e o
aconselhamento ou a partilha de experiência entre amigos, conhecidos e vizinhos. O
sucesso nesta área foi de tal ordem que a própria comunicação social chegou a noticiá-la
contribuindo para a divulgação da situação.
Juiz de Paz - No primeiro ano do julgado de paz, os processos entravam por
ruas. Era a rua “X” ou… Às vezes, eu começo a pensar “já começámos nesta
rua, isto agora vai ser a rua toda”. Por exemplo, a Rua Morais Soares, em
Lisboa, ou… assim ruas mais conhecidas, Alexandre Herculano… quando
entra algum processo, nós sabemos… ou seja, daqui a uns tempos, a rua
toda está cá.
SA – Ou seja é um conhecimento que é transmitido…
JP – De boca em boca… Pelos bons resultados! Pelos bons resultados! A
nível de condomínio, então, o sucesso em termos de conciliação é uma
coisa… E coisas notáveis em termos humanos é… Mas o conhecimento era
por ruas. 388
387
Entrevista a juíza do Julgado de Paz de Lisboa, 27 de janeiro de 2011.
388
Entrevista a Juiz do Julgado de Paz de Lisboa, 20 de janeiro de 2011.
434
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
389
Diário de Notícias, “Julgado de Paz ajudou a colocar condomínio nos eixos” por Telma Roque, 12 de abril
de 2010.
390
Entrevista a Juíza do Julgado de Paz de Lisboa, 27 de janeiro de 2011.
435
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
Uma última tentativa de ressuscitar o juiz de paz, sempre sem toga, mas
com vestes jurisdicionais para julgar as questões entre vizinhos, não passou
do papel da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais de 1977. A morte jurídica do
julgado de paz mais não foi do que a constatação legal da sua morte
sociológica. Mas, agora, eis que se invocam as experiências recentes da
Itália (desde 1991) e do Brasil (desde 1995) e se prepara a reanimação do
cadáver. Será um juiz de paz com roupagem mais citadina, que não se
limitará a Trás-os-Montes e a outros povos do interior e ousará chegar a
Lisboa e ao Porto. Com clientela mais variada do que outrora, o juiz de paz
pretende ser um produto cosmopolita da época da globalização.391
391
Lebre de Freitas, Público, 29 de maio de 2000. Disponível em http://www.publico.pt/espaco-
publico/jornal/a-recriacao-dos-julgados-de-paz-144515 [acedido em 31 de outubro de 2013].
436
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
392
Sobre a polémica da “exclusividade versus alternatividade” ver ponto 1.3.2.1. do capítulo V.
393
Sobre as dimensões da proximidade (proximidade humana, proximidade geográfica e visibilidade), ver
ponto 2.2. do capítulo III.
394
http://www.conselhodosjulgadosdepaz.com.pt/index.asp.
437
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
sobretudo boca-a-boca. 395 O próprio edifício do Julgado de Paz de Lisboa não promove a
sua exposição. Situado, como descrevi, num espaço em regra destinado a lojas, sem uma
identificação exterior suficientemente visível, não é de reconhecimento imediato nem é
intuitiva a identificação da entrada.
Ora, reconhecer problemas de visibilidade é diferente de assumir que a justiça de
paz não cumpre os objetivos de proximidade humana, social ou cultural. O julgado de paz
é, de acordo com a lei, uma instituição vocacionada para a permitir a participação cívica
dos interessados e orienta-se por princípios de simplicidade, adequação, informalidade,
oralidade e absoluta economia processual.396 A flexibilidade e a proximidade não
significam improviso ou ausência de normas. O Julgado de Paz de Lisboa empenha-se
num equilíbrio entre o cumprimento das regras e as especificidades dos casos e dos
utentes. Na nota introdutória ao manual de procedimentos dos julgados de paz,
preparado pela Juíza de Paz do Seixal, Fernanda Carretas, pode ler-se:
JP - Porque os julgados de paz têm uma coisa que os tribunais judiciais têm
que aprender que tem a ver com versatilidade, flexibilidade, muita
flexibilidade. Agora, essa flexibilidade e essa versatilidade não pode colidir
com aquilo que são as garantias de defesa e garantias estruturantes daquilo
que é um processo. Isso é ponto assente. E eu não estou a dizer só isto…
Tenho a perfeita noção…397
395
Entrevista a técnica de atendimento do Julgado de Paz de Lisboa, 27 de julho de 2011, e entrevista a Juiz
do Julgado de Paz de Lisboa, 20 de janeiro de 2011.
396
Lei 78/2001, de 13 de julho, art. 2.º.
397
Entrevista a Juiz do Julgado de Paz de Lisboa, 20 de janeiro de 2011.
438
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
398
Nos termos da linguagem jurídica do Estado português, distingue-se citação (procedimento para chamar
o demandado para se defender) de notificação (ação pela qual se dá conhecimento a uma pessoa de um
facto de seu interesse). O processo de notificação é mais flexível, podendo ser realizado pessoalmente, por
telefone, telecópia ou via postal (Lei n.º 54/2013, de 31 de julho, art. 46.º).
439
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
399
Entrevista a Juiz do Julgado de Paz de Lisboa, 20 de janeiro de 2011.
400
Entrevista a Juíza do Julgado de Paz de Lisboa, 27 de janeiro de 2011.
440
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
401
Entrevista a técnica de atendimento do Jugado de Paz de Lisboa, 7 de julho de 2011.
402
Lei n.º 54/2013, de 31 de julho (arts. 43.º e 47.º).
441
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
cativo no topo da mesa. As partes sentam-se, como entenderem, do seu lado esquerdo
ou do seu lado direito. As testemunhas, quando estão a ser ouvidas, sentam-se ao fundo
da mesa, em frente ao juiz. Um conjunto de cadeiras encostadas à parede é reservado à
assistência, uma vez que as audiências são públicas. Depois de informadas que a
audiência vai começar, as partes dirigem-se à porta da sala de audiências, podendo entrar
antes ou depois do juiz e não lhes sendo imposta uma regra comportamental. Os juízes,
quando chegam, por norma, cumprimentam individualmente cada um/a dos/as
presentes.
O esclarecimento sobre os procedimentos e os objetivos do julgado de paz e a
utilização de linguagem simples e acessível assumem um papel muito importante desde o
início do processo, como pode ver-se abaixo na transcrição do discurso da técnica de
atendimento. O objetivo é contrariar o fosso de compreensão típico do judiciário que
separa cidadãos e justiça, procurando que, em cada momento, os utentes possam
compreendam o que está a acontecer.
403
Entrevista a técnica de atendimento do Jugado de Paz de Lisboa, 7 de julho de 2011.
404
Lei n.º 54/2013, de 31 de julho (art. 50.º).
442
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
das rotinas e uma aprendizagem coletiva, os mediadores são chamados a partir de uma
lista externa, mantendo uma relação mais distante com a instância.
Ainda assim, existem processos de aprendizagem coletiva e adaptações em função
das necessidades gerais dos cidadãos. Veja-se como exemplo o início de uma sessão de
mediação e como a advogada de uma das partes regista a diferença em relação a
experiências anteriores. A primeira formulação da lei dos julgados de paz previa que a
mediação coubesse a um mediador diferente do que conduzia a sessão de pré-mediação.
Esta limitação foi revogada com a lei n.º 54/2013 de 31 de julho. No entanto, antes disso,
já começara a ser praticada em benefício das partes e com base numa cultura de
flexibilidade que colocava o cidadão no centro. Para tal, as partes assinavam um
documento em que escolhiam para orientar a mediação o mesmo mediador que o que
conduzia a pré-mediação (Carreira, 2011).
405
Observação de sessão de mediação no julgado de paz de Lisboa, julho de 2011.
443
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
a lado nenhum, só não gosto de fechar portas. Estou absolutamente surpreendida. Só digo isto para
a minha constituinte perceber.
Mediadora – Eu espero que se sintam bem.
Advogado Demandante – Eu sinto-me muito bem. Estou verdadeiramente surpreendida de forma
positiva.
Mediadora – Há uma situação desajustada. Nós somos mediadores, passamos recibos verdes,
chamam-me de uma lista. Mediação exige muita prática […]. Dá-me a sensação que, às vezes, existe
falta de prática.
[Advogado da demandante continua a elogiar o trabalho da mediadora e a queixar-se da situação
em que se apanhou no ano passado, em que teve que se deslocar em vão durante período de férias]]
Durante os julgamentos, cabe aos juízes clarificarem uma vez mais os objetivos
dessa fase e a forma como se processa. Ainda que os dois profissionais se empenhem do
mesmo modo no sucesso da resolução por acordo, a sua forma de estar e conduzir as
sessões difere em função de características individuais. Um dos juízes atribui maior
formalidade ao momento de explicação, reproduzindo invariavelmente uma mensagem
no início de cada julgamento ou quando entra uma testemunha nova. Os litigantes são,
então, informados que na base dos julgados de paz está a participação cívica dos
interessados e que é possível e desejável resolverem o caso por acordo. Ouvem, ainda,
que embora o ambiente seja informal e a sala tenha aparência de uma sala de reuniões,
trata-se de uma sala de julgamento com validade de tribunal, devendo os intervenientes
jurar dizer a verdade. Ainda que a informação possa ser apresentada de forma mais ou
menos informal, em todas as circunstâncias os utentes são informados.
A flexibilidade e a proximidade não significam que exista sempre informalidade e
distância do judiciário. Implicam leituras permanentes das situações e das emoções, que
podem conduzir a uma certa mimetização do judiciário, por exemplo quando ambas as
partes estão acompanhadas por advogados e se lhes pede que apresentem breves
alegações finais, ou a uma postura de maior familiaridade, quando esta funciona como
concertadora de emoções.
Ainda que a rede de julgados de paz, como mostrei, não cubra todo o país e não se
destaque pela proximidade geográfica,406 na zona de jurisdição do Julgado de paz de
Lisboa, a distância física não constituirá um obstáculo ao acesso, uma vez que o município
é servido por uma rede de transportes públicos e o edifício do julgado se situa nas
406
Ver ponto 3.1 do capítulo V.
444
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
imediações de uma estação de metro. O horário dos julgados de paz é mais alargado do
que o da maioria das instituições públicas. Aberto de segunda a sexta entre 9h15 e as
19h30 e aos sábados das 10h15 às 13h30, a instância está acessível fora do horário
laboral comum. Assim, quando é ultrapassado o obstáculo da invisibilidade e a partir do
momento que os utentes se sentam com o/a técnico/a de atendimento, os julgados de
paz oferecem um serviço de proximidade.407
No que diz respeito à proximidade económica, pode afirmar-se que esta instância é
bastante mais acessível do que os tribunais judiciais. Não se trata, contudo, de um serviço
gratuito. Como mostrei, o valor é definido por lei. Se o caso passar pelas três fases, os
custos totais chegam aos €70. Esta taxa fica a cargo da parte vencida ou é repartida entre
o demandante e o demandado nos termos determinados pelo juiz de paz. Se o caso for
resolvido por mediação, a taxa, dividida pelas partes, é reduzida para €50.
A lei define que a atuação dos julgados de paz é vocacionada para permitir a
participação cívica dos interessados e estimular a justa composição dos litígios por acordo
das partes. Estabelece, ainda, que existe um serviço de mediação que tem como objetivo
estimular a resolução por acordo em fase anterior ao julgamento e que o juiz de paz deve
procurar conciliar as partes.408 O objetivo quer da mediação, quer da conciliação é
promover uma solução consensual que satisfaça os utentes. Entre as características que
distinguem a fase mediação encontram-se a voluntariedade, a confidencialidade, a
criação de condições para o diálogo e para o acordo e a ausência de propostas de solução
por parte do mediador. Se o caso chegar à fase de julgamento, o juiz como conciliador
407
Uma última barreira, ainda que menor, pode ser encontrada quando o utente entra, pela primeira vez,
no julgado de paz. Quem chega para atendimento deve tirar uma senha e sentar-se numa sala de espera a
aguardar que um dos técnicos de serviço ao atendimento venha perguntar-lhe o que desejam. Não existe à
entrada um balcão de informações onde os utentes possam dirigir-se ou informações claras sobre os
procedimentos. À primeira visita à instituição, é costume os utentes começarem por não perceber
exatamente como devem proceder até chegar um técnico de atendimento.
408
Lei n.º 54/2013, de 31 de julho (arts. 2.º, n.º 1; 16.º, n.ºs 1 e 2; 26.º, n.º 1).
445
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
Mediadora – Quer dizer o que a traz por cá, C.? Ou pode começar o Sr. J. O Sr. é representante?
Demandando – Sou sócio-gerente.
[Demandando conta a sua versão dos factos. Justifica o que se passou com a porta, explicando que a
demandante não terá entendido o que lhe foi explicado inicialmente, uma vez que o produto que
409
Observação de mediação no Julgado de Paz de Lisboa, julho de 2011.
446
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
colocaram foi o combinado. Não seria tecnicamente possível fazer o que a Demandante pretendia]
Mediadora – Os senhores conhecem-se?
Demandando e Demandante – Não!
Mediadora – Como foi o contacto?
Demandante – [Demandante explica que contactou várias empresas e aquela foi a que se
comprometeu a fazer aquilo que ela pretendia ao melhor preço. No entanto, a porta que lhe
colocaram não é aquilo que pretendia, nem aquilo que a empresa se tinha comprometido a colocar-
lhe] […] Quando escrevi a carta de reclamação, esperava diálogo e não! Disseram que eu tinha
manipulado as fotografias, que me iam pôr um processo por difamação!
[…]
Mediadora – É a primeira vez que contacta com o Sr. João?
Demandante – Sim […] [Demandante queixa-se de que a carta que recebeu da empresa foi bastante
caluniosa]
Mediadora [para Demandando] – Como é que esta situação chegou ao seu conhecimento?
Demandando – Estive sempre a par dela. Há aqui questões a esclarecer. A Sr. C. queixa-se do
tamanho, mas o problema não é da porta, é técnico. É o produto que a Sra. pediu. Em relação à
carta, as fotos são tiradas a meio da montagem. Quem vê aquelas fotos diz que são uma nojeira.
Depois, a senhora não aceitou uma chamada telefónica, diz que queria a resposta por escrito e
acabou o diálogo! A Sra. C. recorreu à DECO […]. Tudo o que é defeito está ao alcance da garantia.
[Demandando continua a contar a história, mas vai sendo interrompido. A narrativa acaba por ser
partilhada, com cada um a acrescentar pontos ou a corrigir o outro. Falam entre si, vão acabando
por preencher os vazios que o outro não conhecia dos acontecimentos. Aos poucos, começam a
elevar o tom, sem se exaltarem demasiado, argumentando, por exemplo “Mas, você na carta não
disse isso!”]
Mediadora - [A certa altura, a Mediadora interrompe o diálogo, porque a demandante não deixa o
demandado falar] Vamos ouvir sobre a parte técnica.
Demandando – [Reclama por a Demandante não o deixar completar o raciocínio]
Mediadora - Cada um fala na sua vez. Sr. J., a D. C. está incomodada, porque não era o que ela
queria. Explique-nos a sua visão técnica. Ninguém interrompe. As perguntas são no fim. Se alguém
quiser um papel para ir tomando notas, estão aí.
[Demandando apresenta as razões técnicas para explicar porque é que o que C. pretende não é
possível de fazer]
[Demandante interrompe, contra-argumenta]
Demandante – […] Não foi isso que me disseram!
Mediadora [para Demandando] – Mas, isso não está por escrito?
Demandando – Não.
Mediadora – Foi oral?
[Falam todos ao mesmo tempo]
Demandando – Assim não consigo acabar o raciocínio.
Mediadora – Fale, por favor.
[Demandando fala. Mediadora vai-lhe fazendo algumas perguntas para tentar perceber melhor o
que se passou]
Mediadora – Já que estas informações foram verbais [informações que foram dadas à Demandada
no início, quando a empresa se comprometeu a colocar a porta], será que alguma coisa poderá ter-
se perdido no meio da comunicação?
Demandando – É possível.
Mediadora – O que acha a D. C?
[…]
Mediadora – Mas o problema pode-se remediar com pladur?
Demandando – Não.
Mediadora – Como é que se pode remendar?
447
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
JP – Esta questão opõe o condomínio e a empresa [X] por causa de umas plantas que o Sr. Garcia…
[Interrupção da sessão pelo demandado para informar a juíza que pediu adiamento ontem. Juíza não
se perturba com a interrupção e esclarece a razão do não adiamento, bem como outras questões do
processo]
JP – A questão é que o senhor [Demandado] pôs plantas em parte comum […]
Demandado – Não pus plantas nenhumas!
JP – Calma! Vamos perceber… [juíza mostra-se sempre muito paciente com a falta de calma do
demandado, que tem uma idade já avançada].
[…]
JP – [Olhando para as fotografias anexas ao processo] - Quem pôs isto aqui, Sr. [Demandado]?
Demandado – Não fui eu, foi a escola. Isso é da escola.
JP – Não estamos a falar disso. Estamos a falar disto.
Demandado – Isso já está tirado. Eu vou dizer uma coisa…
410
Observação de audiência de julgamento no Julgado de Paz de Lisboa, janeiro de 2011.
448
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
JP – Calma, vai dizer tudo o que quiser… Está aqui uma nespereira.
Demandado – Eu não pus nenhuma nespereira. Se cresceu naturalmente…
JP – Pode acontecer! Então, pode-se tirar a nespereira?
Demandado – Sim. [Demandado narra a sua versão dos factos que originaram o conflito]
JP – O que pode estar aqui em causa…
[Demandado interrompe JP, não permitindo que acabe de falar]
JP – Mas, vamos lá ver uma coisa. Aqui é a floreira…
Demandado – Não é floreira, é canteiro…
JP – Qual é a diferença?
Demandado – Bom, eu não sei. A Sra. Juíza é que vai ver…
[Demandado interrompe permanentemente JP]
JP – Quando é que eu tenho direito de falar?
Demandado – Agora.
JP – Ah, muito agradecida!
[a discussão do caso continua]
JP – O que os demandantes dizem é que as árvores saem de lá. Primeira hipótese, o demandante
tira as árvores.
[Demandado interrompe]
JP – O Sr. G. tem muita dificuldade em ouvir! […]
[Continua a discutir-se o caso. JP conversa com demandado sobre as plantas que tem. Diz-lhe que
tem que retirar a planta de borracha]
JP – Eu sou galinha do campo, sei. Árvore de borracha é como cães pequenos que levamos para casa
e crescem.
Demandando – Mas pode ter-se no vaso.
JP – No vaso pode, em casa!
Demandado – Então, aqui é pior…
JP – Oh Sr. [demandado]…
Demandando - [argumenta com base nas as plantas que tem num piso intermédio]
JJ – Sr. [demandado], independentemente do piso intermédio, não pode ter arbustos. O efeito da
raiz não é proporcional ao tamanho de arbusto… Há arbustos deste tamanho [faz um gesto a indicar
que é um arbusto pequeno], que têm raízes destruidoras.
[JP entra na sala depois das partes estarem sentadas. Quando entra cumprimenta todos os presentes
com aperto de mão]
JP – Não sei se já conversaram, entraram em acordo […] Peço desculpa pelo atraso, mas o
julgamento anterior, em termos de produção de prova, foi muito complicado. Tentamos a
celeridade, mas nem sempre é possível.
[Partes expõem o caso]
[Demandado propõe a diminuição das multas para metade e demandante não aceita]
[Juiz permite que as partes conversem entre si, ouvindo-as sem intervir]
[Esposa de demandando também foi notificada, mas não está presente]
JP – Mas é obrigatória a presença das partes, mesmo com o advogado constituído. É fundamental
para a conciliação.
[Apesar desta observação, o caso continua]
[JP ouve todos os presentes quase sem intervir: demandante, demandado e respetivos advogados.
Está em causa o pagamento de multas sobre pagamentos em atraso. O demandado pagava
411
Observação de audiência de julgamento no Julgado de Paz de Lisboa, janeiro de 2011.
449
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
condomínio todos os meses, mas a administração de condomínio decidiu que o valor pago era
sempre referente aos meses anteriores e não ao mês atual. Assim, embora o demandado fizesse
pagamentos regulares, estava sempre a ser-lhe cobrada multa por atraso de pagamento]
Demandado – Eu pensei, se é assim, vou deixar de pagar para me meterem em tribunal. Se não, vou
pagar multas para o resto da vida. Os três últimos trimestres que não paguei, foi de propósito.
[Advogado do Demandando acrescenta que foi vedado ao demandado acesso à garagem]
[Demandante afirma que isso não teve nada a ver, explica que se tratou de uma avaria]
JP – Parte-se do princípio que está aqui toda a gente de boa-fé.
[Advogados de ambas as partes conversam e argumentam diretamente entre si. Juiz ouve-os,
intervindo esporadicamente para facilitar o entendimento e ajudar a esclarecer pontos que considera
relevantes]
[…]
[Advogado do demandado exalta-se]
JP – O Sr. Dr. coloca a questão, tem que deixar o Sr. responder. Faz a pergunta, nem conseguimos
ouvir a resposta.
[Advogado do demandado interrompe o juiz para argumentar]
JP – Sr. Dr., não me faça o mesmo a mim.
[JP faz um resumo dos argumentos que foram apresentados pelas partes, procura esclarecer os
factos e perceber bem as expectativas de ambos os lados]
JP [para o advogado do demandado] – O objetivo não é tirar confissão, isso é importante. Se está a
discutir com o pressuposto de obter confissão, contradição, isso vai limitar. O objetivo é conciliação.
Se se limita ao processo não é um bom pressuposto.
[…]
JP– Antes de se sentar. Já sei que é pai da S. Jura por sua honra dizer a verdade?
[…]
Testemunha – Primeiro, queria saber quem é a ilustre senhora do andar de baixo que não tenho o
prazer de conhecer…
JP – O senhor aqui não pergunta nada. Responde!
Testemunha – Certo. [Narra a sua versão dos factos] Se a senhora tem elevador é porque eu o
paguei. Andam há três anos para me pagar.
JP – Eu não quero saber nada disso, quero saber do teto.
[JP permite que a testemunha atual e anterior dialoguem diretamente, discutindo qual terá sido
efetivamente a causa do desabamento do teto. Não chegam a acordo, têm posições contrárias]
Testemunha – A mim não me vai ensinar o que são obras, sou empreiteiro há 55 anos.
[Testemunha fala alto e com arrogância]
JP – O senhor tem uma versão, os senhores têm outra. Eu tenho que ouvir os dois […]. Não é para vir
aqui apoucar as coisas e diminuir os outros ou dizer que o senhor tem mais experiência que os
outros. Este processo é para resolver este problema. Quem tem outro problema, vai ali, paga €35 e
abre processo.
[…]
[Testemunha atual e testemunha anterior continuam a falar diretamente uma com a outro e, a certa
altura, a testemunha atual exalta-se]
JP – Não falem entre vós. Não dialoguem!
412
Observação de sessão de julgamento no Julgado de Paz de Lisboa, janeiro de 2011.
450
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
413
Note, no entanto, que é admitido o litisconsórcio e a coligação de partes no momento da propositura da
ação (Lei n.º 54/2013, de 31 de julho).
451
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
lugar relevante, ainda que possam ser designados quando tal resulta da vontade das
partes, que devem responsabilizar-se pelos custos.
Apesar da ideia avançada pelo Ex-Bastonário da Ordem dos Advogados sobre a
subcultura de hostilidade contra os advogados, da observação e das entrevistas no
Julgado de Paz de Lisboa não resulta essa perceção. Ao contrário do que previa a
legislação da falhada tentativa de implementação dos julgados de paz em finais dos anos
1970, a lei atual estabelece que as partes podem fazer-se acompanhar por advogado,
advogado estagiário ou solicitador.414 Na prática, os advogados estão presentes em
grande parte das sessões de mediação e nos julgamentos. Equipa de atendimento,
mediadores, juízes e Conselho dos Julgados de Paz consideram-nos bem-vindos por
garantirem ao utente acesso à informação jurídica que mediadores e juízes de paz não
podem proporcionar. Durante as sessões participam sempre ao lado do/a cliente que
representam, aconselhando-o, questionando diretamente as testemunhas e intervindo
em todos os momentos, não impedindo que o utente (demandante ou demandado)
possa falar em nome próprio sempre que assim o entender. A este respeito veja-se,
ainda, excerto da entrevista Presidente do CJP onde se mostra favorável à participação
dos advogados:
Presidente do Conselho dos Julgados de Paz - Nunca em Portugal se pode
fechar a porta de um caso de mediação a um advogado […] Esta para mim é
uma questão fulcral. Repito-lhe o que disse há bocadinho: a advocacia é
bem-vinda nos julgados de paz. É desejável sinceramente porque as pessoas
estão muito mais à vontade se tiverem o seu advogado ao lado do que se
estiverem sozinhas e a experiência que nós temos é exatamente essa:
sempre que há advogadas as coisa correm melhor. Nós não temos tido, não
têm chegado ao Conselho nenhumas notícias de quaisquer dificuldades com
a advocacia, pelo contrário. Os casos que os juízes de paz relatam são
sempre isso: havendo advogados as coisas correm com mais equilíbrio.415
Todo o percurso dos processos é enquadrado pela lei que regula os julgados de paz
e as normas da mediação. O direito estatal assume, assim, um papel determinante na
configuração de toda a estrutura dos espaços de negociação, seja durante a mediação,
seja nos processos de conciliação ou nas decisões que, de acordo com a lei, podem ser
414
Lei n.º 54/2013, de 31 de julho, art. 38.º., n.º1.
415
Entrevista ao Presidente do Conselho dos Julgados de Paz, 15 de julho de 2009.
452
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
proferidas por equidade.416 No entanto, os juízes de paz não estão sujeitos a critérios de
legalidade estrita e no interior do espaço enquadrado pelo Estado, existe lugar, ainda que
limitado, para elementos jurídicos oriundos de outras esferas, sempre que os
intervenientes os pretenderem trazer para os espaços de negociação. Mesmo durante o
julgamento, demandantes e demandados ou os seus advogados podem usar argumentos
que vão além do que está definido na lei, invocando ideias de justiça que se alimentam
das normas da comunidade e configuram o que muitas vezes se designa por bom senso.
Neste contexto, é sobretudo da retórica que se alimentam os vários discursos. Por vezes,
os juízes usam dispositivos retóricos para construírem diálogos com algum dos litigantes
com o objetivo de o fazerem ver outro lado da questão. Abaixo, incluo mais um conjunto
de excertos de audiências de julgamento que pretende ilustrar a presença da retórica e
de elementos argumentativos que vão além do que está definido por lei:
[Trata-se de um conflito contra os CTT. O demandante é um cidadão russo. Com vista a nacionalizar-
se português, terá enviado uma carta registada para a Rússia, na qual solicitava a familiares que lhe
enviassem uma certidão de nascimento. A nacionalização portuguesa era condição para poder obter
um emprego no estrangeiro, em que iria ganhar €4800 por mês. A carta não terá chegado ao
destinatário e o cidadão recebeu a indemnização prevista, no valor de €36. O demandante pede uma
indemnização de €4800. As partes não chegaram a acordo]
JP – Brevíssimas alegações.
Advogado do demandante – […] São 36 euros que, no termos da lei, não são uma quantia justa […]
Não seriam razoáveis. Seriam contra todas as regras do bom senso […] Portanto, ele pede uma
indemnização de 4900 euros.
Advogado do demandado – Não tenho razões para não acreditar nos factos que o Sr. X trouxe aqui à
colação […]. Simplesmente, a legislação trata destas situações desta maneira […] A razão é uma que
está mais do que debatida, que é o interesse público […] Expedimos milhões de objetos por ano […]
Vossa Excelência decidirá.
JP - Em termos de leitura de sentença, fica agendada para o dia 11 de fevereiro às 13.30.
416
Lei n.º 54/2013, de 31 de julho, art. 26.º.
417
Observação de sessão de julgamento no Julgado de Paz de Lisboa, janeiro de 2011.
453
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
Na medida em que o discurso dos juízes pode oscilar até um registo mais formal na
gestão que fazem das discussões e das emoções, também marca presença a componente
estrutural da burocracia no âmbito das estratégias argumentativas que assentam em
demonstrações a partir dos padrões legais ou do poder do juiz atribuído por lei. Abaixo,
podem ser lidos dois curtos exemplos que demonstram este argumento:
JP – Eu quero que isto fique esclarecido. Se isto me aparecer aqui, vai de cumprimento coercivo
imediatamente!
Demandado – Não sei o que é isso. Tenho que falar com o meu advogado.
JP – Eu explico. Se no dia 24 não remover, se não cumprir, estes senhores vêm aqui no dia 25 e eu
defiro imediatamente
418
Observação de sessão de julgamento no Julgado de Paz de Lisboa, janeiro de 2011.
419
Observação de sessão de julgamento no Julgado de Paz de Lisboa, janeiro de 2011.
420
Observação de sessão de julgamento no Julgado de Paz de Lisboa, janeiro de 2011.
454
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
421
Observação de sessão de julgamento no Julgado de Paz de Lisboa, janeiro de 2011.
455
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
acordo.
[…]
JP – Há aqui uma questão. Não têm que chegar a acordo nenhum. Se as partes não têm capacidade
para resolver por acordo, está aqui o juiz para resolver.
Demandado – Se o valor que vão propor-me pagar é igual ao valor do processo, prefiro que seja o Sr.
Dr. a decidir.
Advogado do demandado – Eu explico a desvantagem. Se for para julgamento, este processo não
fica encerrado, porque ficam em falta esta dívida.
Demandante – Eu já disse ao colega. O que tem a ver com o que não está no pedido, para mim não
há, se não, temos que ir falar de outro assunto, o dos cartões.
JP – Porque é que não podem resolver aqui as dívidas que entretanto venceram?
[…]
Demandante – Quer que se faça acordo ou não?
JP – Se as partes quiserem, eu tenho que homologar se achar justo […]. Agora, as partes não têm
que chegar a acordo […]. Qual é a proposta do seu constituinte, objetivamente?
Advogado do demandado – Reduzir para metade.
JP – Concretamente, valor global.
[Demandado faz as contas e diz valor]
JP – Aceitam?
Demandante – Não
Os julgados de paz proporcionam uma solução rápida e eficaz para os conflitos, bem
como as garantias de qualquer decisão judicial e por isso chamaram-lhes “correio azul da
justiça”.422 De acordo com o Conselho dos Julgados de Paz, em 2013, os 1306 processos
findos foram concluídos por diferentes mecanismos na seguinte proporção: 20% por
mediação; 15% por conciliação; 33% por julgamento; 10% por transação jurisdicional;
10% por remessa e 21% de outra forma.423 Em média, cada caso demorou 82 dias a ser
resolvido, valor que baixa para 45 dias nos processos concluídos por mediação e 78 nos
que foram resolvidos por conciliação e sobe para 117 contabilizando apenas o que
chegaram a julgamento (Conselho dos Julgados de Paz, 2014). O maior entrave para a
rapidez dos julgados de paz prende-se com as dificuldades de citação.424
422
Esta expressão é usada em diferentes situações sem que lhe seja atribuída uma autoria. Ver, por ex.,
Pereira, 2005b.
423
Embora em nenhum momento seja especificado o que cabe nesta última categoria, incluirá as
transações jurisdicionais e as desistências.
424
Sobre a questão das citações, ouvir Chumbinho, João entrevistado por Mário Galego (2011) e ver
Cardona Ferreira entrevistado por entrevistado por Filomena Lança (2011).
456
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
Apesar dos julgados de paz serem uma instituição ainda pouco visível não têm tido
problemas em afirmar a sua legitimidade perante os utentes. De acordo com o inquérito
aos utentes aplicado pelo Conselho dos Julgados de Paz em 2012, os utilizadores da
instância mostram-se satisfeitos com a qualidade dos serviços, fazendo avaliações
positivas do profissionalismo, competência e rapidez no atendimento, dos
esclarecimentos prestados, da qualidade da pré-mediação e da mediação, do tempo de
resolução, da conciliação e do julgamento, e 84,21% voltaria a recorrer ao Julgado de Paz
(Conselho dos Julgados de Paz, 2014).
Os julgados de paz podem articular-se com outras instâncias para promover a sua
visibilidade, como aconteceu em Lisboa, onde, como referi, foram realizadas conferências
457
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
425
Lei n.º 54/2013, de 31 de julho, art. 62.º.
426
João Chumbinho deu exemplos de situações concretas, mas fê-lo em “off” para proteger a privacidade
dos/as utentes. Entrevista ao Juiz de Paz do Julgado de Paz de Lisboa, 20 de janeiro de 2011.
458
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
427
Despacho n.º 18 778/2007, art. 2.º, n.º2.
428
Despacho n.º 18 778/2007, art. 3.º.
459
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
429
Despacho n.º 18 778/2007 (art. 8.º), Lei n.º 29/2013 de 19 de abril (art. 24.º, n.º 1) e Portaria n.º
345/2013 de 27 de novembro (art. 14.º).
430
Lei n.º 29/2013 de 19 de abril (art. 38.º).
431
Sobre o Gabinete Público de Mediação Familiar, ver ponto 1.3.1 do capítulo V.
432
Entrevista a mediadoras do SMF e técnicas do GRAL, 10 de setembro de 2009.
460
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
realização da mediação familiar ou quando existe algum tipo de impedimento por parte
do mediador familiar.
Em 1999, ano em que foi criado o Gabinete Público de Mediação Familiar, uma
alteração à Organização Tutelar de Menores estabeleceu que “em qualquer estado da
causa e sempre que o entenda conveniente, designadamente em processo de regulação
do exercício do poder paternal, oficiosamente, com o consentimento dos interessados, ou
a requerimento destes, pode o juiz determinar a intervenção de serviços públicos ou
privados de mediação”.433 O Sistema de Mediação Familiar, criado em 2007, veio dar
resposta à necessidade de alargar territorialmente um serviço até então disponível em
Lisboa e comarcas limítrofes e ampliar as suas competências materiais.
Este alargamento dos serviços, por um lado, foi ao encontro de uma Recomendação
do Comité de Ministros do Conselho da Europa com quase dez anos, que propunha a
instituição ou o reforço da mediação familiar com base num conjunto de considerandos,
como o reconhecimento do número crescente de litígios familiares, particularmente dos
que resultam de separação ou divórcio, das consequências prejudiciais dos conflitos para
as famílias e do elevado custo social e económico para os Estados; da necessidade de
assegurar a proteção dos interesses superiores da criança; das características específicas
dos litígios familiares (envolvem relacionamentos que se vão prolongar no tempo, surgem
num contexto emocional penoso que os exacerba, têm impactos sobre todos os membros
da família) e de que o recurso à mediação familiar pode melhorar a comunicação entre os
membros da família, reduzir os conflitos entre as partes, conduzir a resoluções amigáveis,
assegurar a manutenção de relações pessoais entre os pais e os filhos, reduzir os custos
económicos e sociais da separação e do divórcio para as próprias partes e para os
Estados, reduzir o tempo para a solução.434
433
A lei n.º 133/99, de 28 de agosto, Quinta alteração do Decreto-Lei n.º 314/78, de 27 de Outubro, em
matéria de processos tutelares cíveis, artigo 147.º-D aditado.
434
Recomendação n.º R (98) 1 do Comité de Ministros do Conselho da Europa aos Estados Membros sobre
a Mediação Familiar (adotada pelo Comité de Ministros, em 21 de janeiro de 1998).
461
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
Por outro lado, a mudança veio responder a algumas necessidades sentidas pelo
Gabinete de Mediação. A limitação das competências aos conflitos de regulação do poder
parental condicionava os mediadores no tratamento global dos problemas que, com
frequência, envolviam outras dimensões que deviam ser abordadas conjuntamente.
435
Entrevista a mediadoras do SMF e técnicas do GRAL, 10 de setembro de 2009.
436
Despacho n.o 18 778/2007, art. 4.º.
462
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
conflitos aceites podem não caber nessas categorias tão específicas e ter origem noutro
tipo de relações familiares, podendo refletir novas realidades, sempre no contexto do
espaço doméstico e de relações que se prolongam no tempo. Exemplos disso são os
conflitos entre irmãos adultos no âmbito da partilha de responsabilidades sobre os pais
idosos que procuram o estabelecimento de um acordo sobre os cuidados prestados aos
pais ou os processos colocados por avós que pretendem acordos sobre as visitas aos
netos.437
O volume dos processos entrados no SMF é muito baixo em relação à abrangência
de competências do sistema, bem como aos recursos disponíveis. Como aprofundarei no
ponto seguinte, trata-se de uma instância com pouca visibilidade que ainda não tomou
um lugar no imaginário jurídico dos cidadãos e das cidadãs. Não existem ainda evidências
de uma tendência ascendente da procura. Em 2011, entraram no SMF, ao nível nacional,
426 casos, verificando-se um aumento de 14,5% em relação ao ano anterior. No entanto,
em 30 de outubro de 2012 verificava-se já uma diminuição da procura em relação a
2011.438 Esta realidade preocupa a DGPJ que, na altura da publicação destes dados,
afirmava a intenção de avaliar os sistemas de mediação familiar e laboral de forma
cuidada e criteriosa.439
Observando especificamente os dados relativos Lisboa, percebe-se que a
conflitualidade registada representa uma proporção bastante considerável do total do
país, mas, ainda assim, é baixa e não tem seguido uma linha contínua de crescimento
(140 em 2011, 128 em 2012 e 144 em 2013). A instância é procurada sobretudo para
conflitos que envolvem a regulação do exercício das responsabilidades parentais (RERP)
(ver quadro n.º 12).
437
Entrevista a mediadoras do SMF e técnicas do GRAL, 10 de setembro de 2009.
438
Dados da DGPJ enviados à Agência Lusa, publicados em: Diário de Notícias, 22 de novembro de 2012,
“170 famílias recorreram ao Sistema de Mediação Familiar”.
439
No referido Barómetro da Qualidade dos Centros de Arbitragem, Barómetro da Qualidade dos Julgados
de Paz e Barómetro da Qualidade da Mediação inquéritos, os sistemas de mediação tiveram um tratamento
diferente dos restantes meios, tendo sido realizada uma amostra de apenas 12 utentes, o que poderá, em
parte, estar relacionado com o pouco movimento destes serviços (DGPJ e ISCTE, 2013). Nos centros de
arbitragem a amostra foi constituída por 337 inquéritos e nos julgados de paz por 156 inquéritos.
463
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
Quadro n.º 12
TIPO DE CASOS – SMF Lisboa 2011 2012 2013 Totais %
Divórcio 23 18 26 67 16,3%
Divórcio com RERP 38 17 31 86 20,9%
RERP 34 42 45 121 29,4%
RERP - Alteração 20 32 19 71 17,2%
RERP - Incumprimento 16 19 13 48 11,7%
Outras Matérias 9 .. 10 19 4,6%
Total 140 128 144 412 100,0%
Dados estatísticos não oficiais recolhidos a partir dos dados fornecidos pela aplicação informática através
da qual são tramitados os processos de mediação e cedidos pela DGPJ em abril de 2014.
440
Despacho n.o 18 778/2007.
441
Despacho n.o 18 778/2007, art. 2.º, n.º 1.
464
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
A lei define que a mediação pode ser realizada em qualquer local que se revele
adequado para o efeito e tenha sido disponibilizado por entidades públicas ou privadas
ou pelas partes no conflito. Se por um lado, esta característica assenta na ideia de
flexibilidade e proximidade geográfica; por outro, resulta na inexistência de uma
estrutura física, facilmente identificável como instância de resolução de conflitos. O GRAL
deve assegurar o funcionamento do SMF a nível nacional, incumbindo-o do registo e da
triagem dos pedidos, da designação do mediador e do local das sessões de mediação.442
Assim, para acederem ao SMF, os utentes começam por dirigir ao GRAL um pedido de
mediação, podendo fazê-lo via telefone (número azul com custo e chamada local) ou
através do preenchimento e submissão de um formulário on-line via website da DGPJ.
Através do contacto telefónico, os utentes podem obter esclarecimentos sobre o serviço
e são orientados na sua utilização. Caso a linha não esteja disponível aquando da ligação,
os serviços devolvem a chamada ao utente. As dúvidas podem, ainda, ser colocadas
eletronicamente, através de um endereço criado para o efeito. Se os/as utentes optarem
pelo uso do formulário online, acedem a informação sistematizada e clara sobre os
serviços e são conduzidos a preencher um conjunto de informação que permitirá dar
início ao processo (Ver figura n.º 10).443
442
Despacho n.o 18 778/2007, art. 3.º, n.º 2.
443
O utilizador da plataforma online deve preencher um conjunto de campos sobre o conflito, o objeto de
mediação e a segunda parte envolvida. Os campos sobre a primeira parte e a segunda parte são muito
semelhantes: nome, sexo, residência, telefone, telemóvel, número de identificação civil, nacionalidade,
data de nascimento, e-mail, habilitações, situação laboral, profissão, estado civil, número de filhos, idade
dos filhos, modo conhecimento, apoio judiciário, representação por advogado. Sobre a segunda parte, não
existem os campos do modo de conhecimento e da representação por advogado (https://smf.mj.pt/).
465
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
Figura n.º 10
Disponível em https://smf.mj.pt/
444
Lei n.º 29/2013, de 19 de abril (art. 37.º).
445
Veja-se a lista: O que é a mediação? Mediação é conciliação? mediação é arbitragem? Mediação é
negociação? Os mediadores são advogados ou psicólogos? Posso ser mediador de conflitos? Quanto tempo
466
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
No entanto, tal como acontece com os julgados de paz, o maior bloqueio situa-se
precisamente na iniciativa de procura da informação, isto é, no âmbito da identificação da
mediação como mecanismo de resolução de conflitos e do SMF como um dos meios
disponibilizados pela administração da justiça portuguesa. No ponto 2.2. do capítulo V,
mostrei as dificuldades de divulgação dos meios RAL em Portugal e os parcos resultados
de iniciativas que não assumiram um registo continuado. Referi ainda que, com a
transformação da página do GRAL num dos separadores da página da DGPJ, não só
desapareceu um interface mais direto com o cidadão, como deixou de ser acessível uma
newsletter com informação mais técnica e alguns dados estatísticos nacionais da
mediação.
Existem algumas iniciativas, estatais ou não estatais, que procuram ir ao encontro
do cidadão e da cidadã que desconhece o SMF, todas elas centradas na divulgação via
internet. Um exemplo é a informação sobre a mediação familiar que pode ser acedida
quando alguém faz uma consulta sobre divórcio no Portal do Governo. Um outo caso, de
fora do Estado, é página da Associação Portuguesa pela Igualdade Parental e Direitos dos
Filhos, onde existe informação sobre a mediação no âmbito de um guia para pais e mães
separados.
A perceção generalizada é que a divulgação dos serviços decorre das experiências
partilhadas, o célebre “boca-a-boca” já referido. O discurso das mediadoras e técnicas do
dura um processo de mediação? Os mediadores podem, posteriormente, vir a ser testemunhas? As notas
que os mediadores possam tomar no decurso das sessões de mediação são juntas ao processo judicial? O
mediador vai dizer quem é que tem razão? Mas é o mediador quem vai dizer qual a solução para o caso? Há
quanto tempo existe mediação em Portugal? Quem pode utilizar a mediação como forma de solução do seu
problema? Quem participa na Mediação? Preciso levar advogado para a mediação? E posso levar um filho,
um amigo ou um vizinho? Se tiver um caso para mediação onde é que me posso dirigir? Se houver várias
questões relacionadas com o mesmo problema temos de chegar a acordo em todas na mediação? E se não
chegar a acordo? Então e no caso de se chegar a acordo nos casos de mediação que não podem seguir para
o juiz de paz qual é o seu valor? Mas qual é a garantia de que o acordo é cumprido? Qual é a mais valia que
a mediação me pode trazer em relação ao recurso aos tribunais clássicos como forma de resolução de
conflitos? Ao celebrar um contrato é possível prever, à partida, a possibilidade de resolver qualquer conflito
que venha a ter relação com o mesmo pelo recurso à mediação? E as questões de despejo também podem
ser tratadas por mediação? A Mediação pode utilizar-se para outros conflitos patrimoniais? As questões
familiares também podem ser resolvidas pela Mediação? As sociedades comerciais com dívidas para cobrar
podem recorrer aos Julgados de Paz? E aos Serviços de Mediação dos Julgados de Paz? Pode-se usar a
Mediação para os conflitos escolares? Que outros conflitos podem ser tratados em Mediação? Quem são os
mediadores da Associação de Mediadores de Conflitos? Que ajuda posso encontrar na Associação de
Mediadores de Conflitos? (Webpage da Associação de Mediadores de Conflitos, disponível em
http://mediadoresdeconflitos.pt/a-mediacao/perguntas-frequentes/ [acedido em outubro de 2013]).
467
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
SMF, que acompanham o trabalho da mediação familiar desde o anterior Gabinete, vai
precisamente nesse sentido:
CES1 – Então, como é agora? Como é que as pessoas chegam até aqui?
SMF2 – Temos de ter também muita arte, não é? Temos de divulgar, temos
feito as nossas sessões de esclarecimento, pelo país fora e que ainda vão
continuar, temos a campanha publicitária também, na televisão, na rádio,
nos jornais, mas foi pouco tempo.
CES2 – Mas notou-se algo?
SMF2 – Talvez na altura um bocadinho, mas não foi de facto…
SMF1 – Na altura, notou-se um bocadinho, mas estes bocadinhos tendem
sempre a dissolver-se com a passagem… e no entanto são investimentos
caríssimos, quer dizer, essa campanha, por exemplo, foi um esforço e
realmente aqui no GRAL tem havido uma sessão prioritária a nível da
divulgação. Depois temos…
[…]
SMF1 – Por exemplo, a própria situação de, ao longo dos últimos anos cada
vez existirem mais mediadores familiares, mais cursos de formação e mais
profissionais a tirarem esta formação, também acaba por ser uma forma de
divulgação, e o, por exemplo, existirem muitos advogados que também são
mediadores familiares, não é? Até nós, nas nossas listas temos mediadores
familiares que são advogados também, portanto, começa a haver uma
interpenetração. Mas isto é uma área muito difícil, eu acho que aqui
também há questões culturais, mesmo, que opõem resistência na própria
mentalidade. As mentalidades, as alterações e assim, vá, são coisas de
muito tempo, que a gente sente muito. Por exemplo, nos sete anos do
GMF, basicamente as pessoas que apareciam naquele serviço era boca a
boca, mas boca a boca até entre… às vezes ficávamos um bocadinho a
refletir, parecia uma coisa privada, ou seja, as pessoas apareciam porque
tinham lá prima, porque tinha estado lá, não sei quê ou uma amiga … Isso
foi assim durante quase sete anos, mas é um bom indicador da utilidade do
serviço. Mas também decorria do facto de ter sido a tal experiência por lei,
que acabou por se eternizar sem uma avaliação e um novo empurrão,
portanto, não houve nessa altura grande investimento em termos de
divulgação e… Agora, aqui no SMF não podemos dizer que não tem havido
um investimento, tem havido, mas parece que é sempre frustrante. E
depois, outra coisa também que pensamos que pode ajudar é, no
estabelecimento dos protocolos com as autarquias, tentarmos também ali
criar umas pontes com os próprios técnicos que trabalham nas autarquias,
com outros serviços… Mas isto é um trabalho imenso e cujos resultados são
difíceis.446
446
Entrevista a mediadoras do SMF e técnicas do GRAL, 10 de setembro de 2009.
468
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
primeiro contacto, seja por uma das partes ou por outra instância, o GRAL comunica com
os envolvidos para marcar uma sessão de mediação que deve realizar-se numa sala
adequada. Em Lisboa, como referi, as sessões de mediação são frequentemente
realizadas numa sala do edifício da DGPJ. Dentro da sala, partes e mediador/a, podem
optar por um dos espaços: os sofás colocados em círculo em redor de uma pequena mesa
ou uma mesa oval de reuniões. Qualquer dos espaços tende a diluir perceções de
hierarquia entre partes e mediador e convida a um registo de informalidade e
tranquilidade.
As sessões seguem um conjunto de regras bem definidas que visam assegurar a
flexibilidade sem colocar em causa as garantias dos cidadãos e das cidadãs. A Lei n.º
29/2013 de 19 de abril veio sistematizar e clarificar os princípios gerais aplicáveis à
mediação realizada em Portugal. O primeiro encontro consiste numa sessão de pré-
mediação em que as partes são esclarecidas sobre o funcionamento da mediação e suas
regras. A mediação ocorre apenas quando as partes concordam e assinam um protocolo
de mediação. A lei deixa muito claro o princípio da voluntariedade, bem como a
necessidade de obter o consentimento esclarecido e informado das partes para a
realização da mediação. Ainda que assinem o protocolo, durante o procedimento de
mediação, as partes podem, em qualquer momento, conjunta ou unilateralmente,
desistir da mediação.447 Dentro do possível, os horários das sessões de mediação tendem
a ser ajustados às necessidades dos litigantes.
Os problemas e as emoções são abordados num registo familiar com linguagem
acessível. A mediação tende, pois, a funcionar como extensão do espaço doméstico,
contornando ou atenuando, em alguma medida, a violência da juridificação das emoções.
A relevância desta questão ficou muito clara, por exemplo, num processo por
incumprimento do acordo de regulação de poder parental em que o pai assume o
desconforto sentido ao ver a sua relação com a filha traduzida em “visitas”.
Os custos reduzidos configuram uma das vantagens frequentemente apontadas à
mediação. No entanto, o serviço não é gratuito e é mais caro que nos julgados de paz.
Está prevista uma taxa, cujo pagamento deve ser comprovado na altura da assinatura do
447
Lei n.º 29/2013 de 19 de abril, artigos 16.º e 4.º.
469
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
448
Nos termos da Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais (Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto).
449
Despacho n.º 18 778/2007, art. 6.º, n.º 2.
450
Sessão de pré-mediação e mediação do SMF, maio de 2011.
470
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
aqui enquanto quiserem, embora eu, como mediadora, tenha autoridade para dizer que o processo
fica por aqui; 2 – tudo o que se passa aqui é confidencial; 3 – respeito, comunicação, colaboração.
Não se deseja que saia daqui um vencedor e um perdedor, isso é no tribunal, mas que ganhem os
dois. Podem falar mais alto, exaltar-se, isso é normal […].
Mãe – Eu posso chorar, sou muito chorona.
Mediadora – […] Respeito e escuta ativa.
Pai – Concordo com tudo o que disse, mas não se pode entrar em cedências por cedências.
Mediadora – Sim […]
[…]
[Partes assinam o documento que lhes permite seguir para mediação]
[Um casal discute a divisão de bens pós-divórcio. Estão em causa um conjunto de imóveis no valor de
€1.700.000]451
[O Mediador é informado ao telefone que as partes já chegaram e pede que sejam encaminhadas
até à sala de mediação. Quando as partes chegam, pergunta-lhe onde preferem sentar-se, se na
mesa oval de reuniões ou nos sofás. Partes preferem a mesa]
Homem – O Sr. Dr. é jurista?
Mediador – Não sou nada. Pode tratar-me por [diz o nome próprio] […]. Esta primeira sessão é para
explicar o que é que passa […]. Destas sessões não sai nada. É importante que isso fique bem
explicitado. Vocês vêm do tribunal. Imagino que tenham advogados…
Mulher – Dos quais nos queremos livrar!
Mediador – Mas eu queria dizer que os advogados também são parte, mas não são os principais. Os
principais são as partes. Se em qualquer momento quiserem interromper para consultar o advogado
ou outro especialista, podem e devem fazê-lo.
Mulher – A história é esta…
Mediador – Deixe-me só acabar, porque caso queiramos prosseguir, já temos que assinar o termo
de consentimento […]. O mediador é imparcial, só no caso de haver menores é que o mediador […].
Homem – [exaltado] Eu queria dizer que, se não chegarmos a acordo hoje, não vale a pena
prosseguir.
Mediador – [fala em tom tranquilo e pede às partes que o deixem fazer aquilo que ele sabe fazer.]
Qual é a vossa disponibilidade para ficarmos um bocado à conversa?
[Partes estão disponíveis. X pergunta às partes como gostam de ser tratadas e informa-as que
poderão, se quiserem, trazer outra pessoa]
[O termo de consentimento é lido em voz alta e assinado pelas partes. Prossegue-se para a
mediação.]
451
Sessão de pré-mediação e mediação do SMF, maio de 2011.
471
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
452
Lei n.º 29/2013 de 19 de abril. Sobre a promulgação da lei e seu conteúdo, ver também ponto 1.3.2.2 do
capítulo V.
453
Código Europeu de Conduta para Mediadores.
472
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
454
Sessão de pré-mediação e mediação do SMF, maio de 2011.
473
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
apercebe-se.
Mãe – Eu fiz queixa, mas não gostei do comportamento, porque eu podia ter inventado. Eles deviam
ter ido a minha casa e não foram [M refere que H consome haxixe].
Mediadora – Mas, fumar um charro, desde que não seja ao pé da menor… Pensem que um dia a
vossa filha pode ir a uma secretaria de tribunal pedir o processo. Lembrei-me que há fugas de
informação e nas escolas as crianças são terríveis.
[Cada uma das partes narra a sua versão dos factos e dos problemas que levaram ao conflito. Falam
tranquilamente, de forma demorada, sem serem apressados pela mediadora]
Mediadora – Quero que estabeleça aqui um compromisso comigo. Até se chegar aqui a um acordo,
não vai discutir este caso com o Z. [padrasto]. A filha é vossa e apesar de ter uma relação com o seu
companheiro, tem uma relação para a vida com o seu ex. Que é para não minar! Tem que vir
imaculada.
[As partes ficaram de refletir sobre tudo o que foi dito, no que ouviram da mediadora e do outro. Na
marcação da sessão seguinte, discutiu-se o problema do local. H vem do Montijo, gasta €10 em
transportes. Mediadora explica que não pode ir até ao Montijo, porque não lhe pagam as
deslocações. Marca um dia e uma hora para a mediação que é mais conveniente para H que vem de
mais longe e não pode perder um dia de trabalho (marca-se a mediação para o início da manhã)]
[A mediadora faz a marcação da mediação mas, quando desce, apercebe-se que já há uma
marcação para esse dia e essa hora. Uma vez que existe apenas uma sala, a mediadora refere que
irá ligar às partes para ver quando terão disponibilidade]
474
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
e aos efeitos que elas poderão ter na situação das partes na negociação e examinar se,
nessas circunstâncias o processo de mediação é apropriado”. A Lei portuguesa não
menciona esta questão. De qualquer forma, fica sempre ao critério do mediador saber se
deve ou não continuar a mediação quando percebe que há violência envolvida ou se deve
encaminhá-lo para uma instância mais adequada para lidar com esse tipo de situação.
SMF1 – […] há escolas que liminarmente dizem, qualquer caso em que haja
violência não deve ser tratado em mediação. No entanto, há outras
perspetivas com uma visão um pouco diferente, de que até pode ter
interesse e ser útil em situações em que haja alguma problemática a esse
nível. Portanto, isto marca um bocadinho uma diferença, que também é
marcada pelo próprio mediador. Quer dizer, por exemplo, no nosso sistema
nós temos mediadores formados por entidades formadoras distintas, cuja
formação pode assumir também cores um bocadinho distintas, e o
mediador tem de estar sempre atento à sua forma de ser mediador. Pode
haver um mediador que consiga e que lhe faça sentido em que, por
exemplo, possa abrir alguma possibilidade de trabalhar um caso onde haja
uma problemática de mediação e outro… [….] Por exemplo, se temos um
casal com um padrão de violência estabelecido, que faz parte da relação
deles, realmente eu tendo a dizer que a generalidade dos mediadores não
vão fazer um trabalho de mediação com… no nosso sistema, penso que a
maioria dos colegas que temos, a formação que têm é no sentido de não…
Depois há aqui outras coisas, é assim, o mediador não pode permitir, por
exemplo, se numa sessão há violência, ou se as pessoas vêm para a sessão
tendo havido, durante o processo… isso não pode ser, não, aliás porque aí é
preciso garantir outro tipo de coisas como seja o direito da vítima de se
defender, a possibilidade da pessoa que foi agressora ter consequências
pelo… por exemplo, às vezes há situações em que temos queixas-crime,
pessoas que vêm para a mediação e têm processos judiciais a decorrer, com
queixas-crime em simultâneo, e por exemplo há mediadores que
consideram que, se existe queixas-crime, não devem fazer mediação
familiar. Há mediadores que consideram que se existir queixas-crime, isso
garante-lhes a possibilidade de fazer a mediação familiar. E quando digo
mediadores, digo escolas de mediação… Dentro do nosso sistema, os
mediadores são livres de irem desempenhando a sua atividade de acordo
com a sua especificidade técnica e as suas perspetivas.455
Outras pessoas relacionadas com o conflito podem intervir na discussão se for esse
o entendimento entre as partes e o mediador. Todos os intervenientes no procedimento
de mediação ficam sujeitos ao princípio da confidencialidade. Os presentes não devem
comprometer o equilíbrio de poder entre as partes. A lei garante aos litigantes a
possibilidade de estarem sempre acompanhados por advogados, embora seja
recomendável avaliar as situações em que apenas um dos litigantes está acompanhado
455
Entrevista a mediadoras do SMF e técnicas do GRAL, 10 de setembro de 2009.
475
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
por mandatário legal. Nesses casos, é importante informar a outra parte do direito de
constituir advogado e eventualmente suspender a sessão caso não esteja garantido o
equilíbrio de poder entre as partes.456 Por outro lado, é importante que os advogados
tenham consciência que a mediação se fundamente em princípios completamente
diferentes da cultura de litigação do judiciário. Veja-se os discursos das mediadoras e
funcionárias do GRAL a respeito da presença dos advogados:
SMF1 – É uma posição de abertura à vinda do advogado […]. Agora nós
temos não só o direito, mas o dever de velar para que aquilo que é feito, a
intervenção que é feita, respeite as suas características e as regras deste
procedimento. […] Se temos duas partes para uma primeira reunião
conjunta e uma vem acompanhada pelo seu mandatário, o mediador tem
de saber gerir essa situação com as partes, e neste sentido, sim senhor, o
advogado pode estar presente. No entanto, para avançarem para a reunião
é preciso que todas as pessoas intervenientes estejam concordantes com os
moldes em que se está a iniciar aquele trabalho. E portanto, é preciso ver
com a parte que está sem advogado, se concorda em avançar para a
reunião só com o advogado da outra pessoa, ou se também quer trazer o
seu advogado ou se não quer trazer o seu advogado, ou até pode nem ter
advogado, as situações podem ser várias, e portanto é preciso auscultar a
opinião da outra parte sobre se, se… e depois não só isso. É preciso o
mediador fazer uma avaliação … Por exemplo, se a parte diz que sim, não se
importa… o mediador tem de ponderar se isso por exemplo pode
desequilibrar o poder entre… por exemplo a vertente do poder entre
aquelas duas pessoas, no início e no desenrolar do trabalho, e portanto o
mediador também tem a sua possibilidade técnica de dizer que, na sua
perspetiva, não é boa ideia fazer o trabalho dessa forma, fica desequilibrado
e aí, o que pode acontecer é que não haja condições para iniciar o trabalho
de mediação. Não é dizer que o advogado não pode entrar, é dizer que não
vai haver condições, ou porque a outra parte não quer estar lá sem o seu
advogado ou... Ah, muitas vezes isto resolve-se, a outra parte diz que vai
falar com o seu advogado e combinamos para outro dia, não se faz a
reunião naquele dia e faz-se depois com os dois presentes. 457
SMF1 –É assim, não tenho nada a visão da prática que a presença dos
advogados seja um problema, porque, reparem, às vezes há situações em
que pode ser muito útil termos um advogado a acompanhar uma pessoa a
uma primeira reunião, porque obviamente às vezes as pessoas estão
assustadas e quietas, inseguras e portanto ter o advogado ao lado pode ser
uma coisa que ajude a pessoa a vir à mediação, assim como ter o advogado
ao longo do processo, portanto, falar com o seu advogado sobre as
questões que vão sendo ponderadas e clarificando os seus deveres e
direitos, e isso é uma enorme mais-valia, não é? Agora, também há
situações em que as coisas ficam menos fáceis, é preciso sempre também o
mediador ter o cuidado de uma forma delicada e acolhedora mas firme.
456
Lei n.º 29/2013, de 19 de abril, artigo 18.º.
457
Entrevista a mediadoras do SMF e técnicas do GRAL, 10 de setembro de 2009.
476
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
458
Entrevista a mediadoras do SMF e técnicas do GRAL, 10 de setembro de 2009.
477
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
Dos 198 casos concluídos no SMF ao nível nacional em 2013, apenas 41,9%
concluíram por acordo, sendo que em 33,8% dos casos não chegou a assinar-se o termo
de consentimento para dar início à mediação e em 24,2% dos casos não foi alcançado o
acordo. Avaliar a eficácia dos serviços pela percentagem de acordos seria extremamente
falacioso. Não cabe ao mediador a imposição de um falso consenso ou vencer as partes
pelo cansaço, mas ser capaz de avaliar quando o caso não pode ser resolvido através de
mediação, por exemplo quando identifica uma situação de violência reiterada e um
desequilíbrio de poder entre as partes que não consegue subverter ou percebe que o
459
Recomendação n.º R (98) 1 do Comité de Ministros do Conselho da Europa aos Estados Membros sobre
a Mediação Familiar (adotada pelo Comité de Ministros, em 21 de janeiro de 1998).
460
Sessão de pré-mediação e mediação do SMF, maio de 2011.
478
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
conflito terá tratamento mais adequado noutro tipo de instâncias, como aconselhamento
conjugal. Veja-se a este respeito o que diz o Código Europeu de Conduta para Mediadores
e a Recomendação do Conselho da Europa sobre a Mediação Familiar.
Caso considere oportuno, o mediador deve informar as partes que pode
terminar a mediação se:
Tendo em conta as circunstâncias do caso concreto e a competência do
próprio mediador, o acordo que está a ser determinado for, do seu ponto
de vista, ilegal ou impossível de ser executado,
Considerar que a prossecução da mediação não resultará em qualquer
acordo.
461
Recomendação n.º R (98) 1 do Comité de Ministros do Conselho da Europa aos Estados Membros sobre
a Mediação Familiar (adotada pelo Comité de Ministros, em 21 de janeiro de 1998).
462
Conversa a mediadora do SMF, 5 de maio de 2011.
479
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
aqueles que são as batatas quentes e que não têm solução, logo esses se
calhar fazem com que a taxa desça, de acordos.463
463
Entrevista a mediadoras do SMF e técnicas do GRAL, 10 de setembro de 2009.
464
Lei n.º 29/2013, de 19 de abril, artigo 9.º.
465
Lei n.º 29/2013, de 19 de abril, art. 34.º.
466
Despacho n.º 18 778/2007, art. 6.º.
480
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
mediação familiar (Santos et. al., 2010). No entanto, a relação do judiciário com a
mediação não é dinâmica, nem próxima e a articulação faz-se de forma muito precária.
De acordo com o Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, um ano depois da
entrada em vigor do regime jurídico do divórcio e três anos passados sobre a criação do
SMF, a mediação familiar continuava “apartada da generalidade dos litígios familiares que
chegam ao tribunal e da vivência dos profissionais do direito não passando de uma
inovação meramente formal” (Santos et. al., 2010).
Daqui não decorre que os operadores da justiça não atribuem importância à
mediação. Em teoria, é considerada uma via com potencialidade, mas o SMF é entendido
como “perda de tempo”. Um conjunto de fatores é apontado como bloqueio
à concretização de uma articulação mais bem-sucedida, entre os quais, a impossibilidade
de informar os cônjuges sobre a existência de serviços de mediação antes da propositura
da ação, uma vez que o litígio só chega ao conhecimento dos operadores depois de o
processo ter sido iniciado, e a inexistência de um serviço de mediação devidamente
organizado, eficaz e de fácil acesso aos potenciais mobilizadores e a qualidade duvidosa
do desempenho dos técnicos e dos mediadores (Santos et. al., 2010). Esta ideia vai ao
encontro da posição Procurador Coordenador do Tribunal de Família e Menores de Lisboa
manifestada em entrevista:
Procurador Coordenador do Tribunal de Família e Menores de Lisboa: Por
exemplo, eu acho que nós aqui devíamos recorrer com muitíssima
frequência à mediação, sobretudo na área dos procedimentos cíveis. Muitas
das vezes, o que nós temos ali, não é o problema, é a emanação de um
problema. O problema é outro. Há duas pessoas adultas que não se
relacionam por um conjunto de circunstâncias, que não comunicam (por
acaso até podem-se não entender, mas não comunicam) e daí resulta um
processo. Ora se nós não resolvermos um problema, se apenas abordarmos
a emanação de um problema, vamos ter mais processos. Portanto, o
problema só se resolveria se as pessoas comunicassem. Eu não estou a dizer
que se amassem, mas que comunicassem. Ora bom, para estabelecer esta
comunicação não é o Procurador e o Magistrado os interlocutores
adequados. Embora que muitas vezes façam isto. Nós fazemos isso com
muita frequência. Damos aqui vários sermões, digamos assim, ou vários,
coisas a dizer, então mas o senhor também vê que vocês e tal, vocês já não
fazem birras…. Então fazemos aqui umas….
[…]
Eu já várias vezes, eu agora não tenho secção, não tenho julgamentos. Mas
quando tinha julgamentos, no princípio quando vim para cá, promovi três
ou quatro vezes a suspensão das conferências de regulação do poder
paternal (que era assim que se chamava na altura) com vista que as pessoas
481
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
467
Entrevista ao Procurador Coordenador do Tribunal de Família e Menores de Lisboa, 24 de julho de 2009.
482
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
SMF2 – […] A mediação não é ainda uma coisa que está interiorizada, no
judicial, acho que não interiorizaram, acho que têm um método de trabalho
tradicional, em que as coisas vão ao tribunal, não saem do tribunal… eles
não lhes perdem o rasto e com este funcionamento do SMF, eles… claro
que o processo vai, faz parte resolver, e pode já voltar resolvido, se calhar.
Então há ali de facto uma forma diferente de funcionar que ainda não é
muito… que não é fácil de interiorizar, de facto não é esse o método, a
forma como funcionam com um processo, que está em tribunal por
exemplo não é esse. Mas já existe uma grande abertura, agora, às vezes
nem sempre na melhor altura, não é? Se calhar ainda não existe abertura,
ou um conhecimento, ou seja, interiorização da mediação familiar ao ponto
de perceberem que não é para os casos em que eles não sabem o que lhes
hão de fazer, mas sim para os casos que começam, e antes de avançar se
calhar convinha irem à mediação familiar, e acho que às vezes acontece um
bocadinho aquela coisa de ter de ir para um processo que já não sei o que
lhe hei de fazer, e então vão à mediação familiar e pode ser que resolva.
[…]
SMF1 – Sendo que os que vêm do tribunal deveriam ter mais conhecimento,
isso é uma das coisas que não está ainda bem conseguida na articulação
com os próprios tribunais, porque se as pessoas vêm através do tribunal é
porque à partida disseram perante o tribunal que, sim senhor, queremos ir
à mediação familiar, e ao fazerem-no, é suposto terem sido esclarecidas
sobre o que é que é isso da mediação familiar, e efetivamente, isto muitas
vezes não se verifica. Mas isso já no GMF acontecia. Isto é, houve uma
altura, no início do funcionamento do gabinete, em que se tinha feito um
desenho em que os casos que vinham do tribunal entravam diretamente
para a fase de mediação, sem entrarem naquela fase da pré-mediação.
Depois, começamos a ver na prática, que isso não era boa ideia, porque
muitas vezes os casos que vinham do tribunal vinham às vezes, também
muitíssimo pouco esclarecidos e depois, também há outros fatores. Há,
digamos, razões para a vinda de uma ordem um bocadinho distinta da
própria decisão pessoal da pessoa de recorrer aquele serviço ou não, sei lá,
por exemplo situações em que as pessoas são aconselhadas pelo advogado.
Perante um magistrado a sugerir que vão à mediação familiar, as pessoas
podem não estar com o melhor contexto de liberdade para decidirem se
querem ou não querem. Podem sentir uma opressão, podem estar a sentir
que não querem estar a opor-se aquela sugestão, ou…
CES1 - Mas sentem que as pessoas vêm um pouco contrariadas, ainda que
seja um processo facultativo, mas vêm contrariadas…
SMF1 – Por isso passámos a fazer a pré-mediação. E no caso de o
fechamento não se abrir minimamente, o que acontece é que não se inicia
o processo, e portanto volta para trás, para o tribunal, porque efetivamente
uma daquelas pessoas, ou ambas, não queriam.468
468
Entrevista a mediadoras do SMF e técnicas do GRAL, 10 de setembro de 2009.
483
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
mediação familiar, bastante rentáveis, que tendem a reproduzir-se com muita facilidade.
Não é clara a direção que o Estado pretende seguir. Se, por um lado, introduz inovações
na resolução alternativa de litígios; por outro, demonstra timidez na divulgação. Os meios
de resolução alternativa de litígios surgem num contexto de crise económica e de crise da
justiça, seguindo as diretivas europeias, mas com muitos anos de atraso em relação a
outros países europeus. A redução dos custos para os cidadãos e sobretudo para o Estado
constituem condições fundamentais para uma aposta nos processos de flexibilização. O
impacto da mediação familiar na economia será muito menos evidente do que o dos
centros de arbitragem. Talvez por isso mesmo seja aqui mais claro o descompasso estatal.
484
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
Conclusões parciais
485
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
informação disponível nos websites da DGPJ e do CJP, a fraca visibilidade das instâncias
estudadas, entendida aqui como a fraca probabilidade um cidadão ou uma cidadã
identificarem o julgado de paz e o SMF como instâncias que podem ser acionadas para
resolução de litígios, constitui um dos principais entraves à proximidade dos designados
meios de resolução alternativa de litígios em Portugal. São escassas as iniciativas de
divulgação que vão diretamente ao encontro dos cidadãos. O conhecimento e
reconhecimento resulta, em grande medida, da partilha pessoal de experiencias. É
possível que uma difusão mais abrangente resultasse sobretudo no aumento da procura
suprimida e não na diminuição do volume de processos judiciais. Não existem dados
sobre os utilizadores deste serviço que comprovem a hipótese de serem procurados
sobretudo pelas classes mais altas, seja pela sociedade civil íntima ou pela sociedade civil
incivil. No que diz respeito aos julgados de paz, um estudo relativamente recente mostra
que a composição dos utentes tende a ser semelhante à composição do município, não
parecendo haver ligação causal entre a posição socioeconómica e o recurso à instância
(Vargas, 2006). No entanto, qualquer das instâncias estudadas tem muito mais procura
em Lisboa, cuja composição aponta um círculo maior da sociedade civil íntima, do que no
restante território. Essa procura pode ser contudo ser também explicada pelo facto de
Lisboa funcionar como laboratório português de experiências de RAL e as instâncias
estarem mais enraizada.
Ainda que a centralização política e jurídica em Portugal seja uma construção
moderna e os juízes de paz tenham raízes na tradição portuguesa mais remota, não
sobreviveram reconstituindo-se e impondo-se ao Estado moderno, como aconteceu com
as autoridades tradicionais moçambicanas. São, pois, uma novidade do Estado na senda
das diretrizes europeias e apoiada pela Troika no contexto de crise económica e
financeira e incapacidade do judiciário para dar resposta aos pequenos processos de
cobrança. Existem diferentes experiências ao nível do país, uma vez que os julgados de
paz resultam de uma parceria entre o Ministério da justiça e o CJP com as Câmaras
Municipais. O Julgado de Paz de Lisboa foi o primeiro julgado de paz instituído em
Portugal e pode ser considerada uma experiência bem-sucedida. Apesar dos problemas
de divulgação, nos anos que passaram desde a sua instalação em 2001, a procura
486
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
487
Ecologia de Justiças - 2ª Fase
Capítulo VII
sentenças que saem do tribunal têm o mesmo valor que as sentenças proferidas num
tribunal judicial.
Todos os procedimentos são enquadrados pelo direito estatal, mas este determina
espaços de maleabilidade, nomeadamente no julgamento cuja decisão não está sujeita a
critérios de legalidade estrita, havendo espaço para proferir decisões de acordo com a
equidade uma fez falhada a tentativa de conciliar as partes. Assim, há lugar ao bom senso
e a retórica é o elemento estrutural com maior presença nos discursos jurídicos.
Demandantes, demandados, advogados e juízes podem invocar ideias de justiça que
assentam bom senso e em normas da comunidade desde que não estejam em oposição
com o direito estatal. O conceito de pluralismo jurídico assume, nesse contexto, uma
posição muito pouco relevante.
Os conflitos ocorrem com frequência no âmbito de relações multiplexas e os casos
de condomínio são os mais frequentes. Num momento em que a crise económica afeta o
orçamento das famílias, o estabelecimento de planos de pagamento é altamente
frequente. Neste sentido, à semelhança do que encontrei na esquadra de Maputo, o
Julgado de Paz, mais do que contribuir para a transformação social, funciona como um
paliativo importante para minimizar alguns dos efeitos da crise económica. Dito isto,
enfatizo que o julgado de paz desempenha um papel importante enquanto espaço
pacificador, promovendo uma justiça conciliadora, barata e de proximidade.
O SMF é um serviço na dependência exclusiva do Estado central, concretamente do
GRAL, agora integrado na DGPJ. Criado em 2007, é uma aposta recente, com baixa
procura e ainda muito ausente do imaginário jurídico dos cidadãos e dos operadores da
justiça. Embora a lei preveja que a mediação pode ser solicitada pelas partes, pelo
tribunal, pelo Ministério Público ou por Conservatória do Registo Civil e o regime de
divórcio incumba os tribunais e as conservatórias de informarem as partes sobre a
existência de serviços de mediação antes de darem início aos processos, a articulação
com o judiciário e com as conservatórias não funciona de forma harmoniosa. Do lado do
judiciário são apontadas críticas relacionadas com a organização, a qualidade e a eficácia.
Do lado do SMF, aponta-se o imaginário litigante do judiciário e o desconhecimento da
mediação.
488
Retratos da informalização e da desjudicialização. O Julgado de Paz e o Sistema de Mediação Familiar
489
CONCLUSÕES GERAIS – BALANÇO, RESULTADOS E EXPETATIVAS DA
ECOLOGIA DE JUSTIÇAS
491
Conclusões gerais
492
Balanço, resultados e expetativas da ecologia de justiças
493
Conclusões gerais
(Santos entrevistado por Jerónimo e Neves, 2012), aponta para uma reflexão sobre os
conceitos escolhidos e as definições usadas para compreender a realidade. Ainda que
“escutar” remeta a um exercício óbvio à investigação sociológica, frequentemente a
rigidez dos conceitos e as expetativas dos cientistas e das cientistas obriga a comprimir os
debates nos horizontes de possibilidades dos quadros teóricos, deixando de fora parte da
realidade. Sem ilusão de eliminar a parcialidade de qualquer processo de conhecimento,
procurei alargar os meus horizontes de possibilidades ao definir um campo de
investigação lato não nomeando a priori as instâncias com que iria trabalhar ou o tipo de
conflitos, pensando-o como palcos de lutas quotidianas, onde os cidadãos reivindicam
direitos ou soluções na presença de um terceiro imparcial, expondo problemas
eventualmente classificados exteriormente como pequenos litígios, mas com grande
dimensão no mundo de quem os vive. Foi no âmbito desse exercício que introduzi o
conceito de justiças comunitárias e o defini de forma ampla e flexível para “escutar” o
terreno mais livre de preconceitos, evitar a exclusão de formas de justiça apenas por não
encaixarem numa definição fechada e ter a possibilidade de dar conta de uma paisagem
móvel e diversificada, nem sempre previsível. Não procurei o exótico, o tradicional ou o
informal, mas cartografar novas e velhas formas de direito e de justiça, lugares esperados
e inesperados, bem como mundos híbridos que emergem em zonas de contacto diversas.
As justiças comunitárias são instâncias de resolução de conflitos, reconhecidos
como tal por quem lhes acede, com um lastro de organização e institucionalização, em
que uma terceira parte imparcial, externa ao poder judicial, promove uma solução,
podendo atuar segundo critérios diversos e agir como facilitador ou de modo impositivo.
Podem assumir formas altamente diversificadas; resolver litígios variados; apelar a
diversas ordens jurídicas, a princípios de equidade ou outros e ser mais ou menos
permeáveis à influência do direito e dos mecanismos do Estado. Podem ser ou não
reconhecidas pelo Estado e resultar da iniciativa estatal, da comunidade, de grupos
privados com interesses lucrativos diretos ou indiretos ou de qualquer outra iniciativa e
parcerias não antecipáveis. A resolução de conflitos pode ser exercida como atividade
exclusiva ou constituir uma entre outras funções da instância. Se quisermos refletir a
partir da metáfora da pirâmide litigiosidade, cuja forma hierarquizada não é a mais
494
Balanço, resultados e expetativas da ecologia de justiças
495
Conclusões gerais
adulteradas como associadas a uma lógica de apartheid, uma justiça bifurcada que
segregava os indígenas. Ainda assim, em muitas situações, a resistência assumiu formas
subtis e a legitimidade das autoridades tradicionais foi mantida. A paisagem jurídica
contemporânea é partilhada entre autoridades tradicionais e uma multiplicidade de
outras instâncias, apresentando-se de tal forma complexa que é difícil antecipar um
terreno feito de diferentes camadas estratigráficas jurídicas e políticas (Moore, 1986). A
importância das várias estruturas assume uma tal relevância que instituições
internacionais como o Banco Mundial ou as Nações Unidas, sem porem em causa as
hierarquias estabelecidas pelo direito moderno, têm vindo a reconhecer o valor de
autoridades tradicionais e outras estruturas e a defender a necessidade de integrar a
pluralidade nos projetos de reforma da justiça e nos programas de desenvolvimento.
No contexto Europeu, a história das justiças comunitárias apresenta uma diferente
trajetória. Apesar do reconhecimento da ubiquidade do pluralismo jurídico, a Europa foi
marcada por vários séculos de modernização do direito e o plano de sobreposição entre
Estado e direito moderno foi bastante bem sucedido. No entanto, a partir dos anos 1970,
a Europa acompanhou o movimento norte-americano de informalização da justiça e de
criação estatal de instâncias alternativas de resolução de litígios. Por um lado, procurava-
se uma justiça mais próxima dos cidadãos, mais flexível, mais barata, mais adequada à
continuidade das relações; por outro, a motivação assentava na necessidade de aliviar os
tribunais judiciais da sobrecarga de litigação e de construir de um sistema de justiça que
garantisse o ambiente de segurança imprescindível ao sistema capitalista.
O papel das justiças comunitárias foi e ainda é objeto de discussões inflamadas e
importantes. Ainda que as justiças comunitárias, a Norte e a Sul, componham paisagens
jurídicas muito diversas, quando refletimos sobre a sua atuação e estudamos os debates,
emerge um conjunto de questões transversais que assumem localmente características
específicas. Interessou-me conhecer as problematizações a Norte e a Sul nesta matéria e
perceber quais as vantagens e desvantagens que têm sido apontadas às várias justiças
comunitárias (que assumem designações muito diversas consoante os autores e os
contextos) com vista a construir uma grelha de leitura. A um conjunto amplo de razões
para encarar com otimismo o trabalho das justiças comunitárias, junta-se um igualmente
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Lisboa, como capital, concentra grande parte das instituições estatais e apresenta
indicadores socioeconómicos mais elevados do que no restante território, sendo maior o
círculo da sociedade civil íntima. Uma vez que as justiças comunitárias em Portugal
assentam sobretudo na informalização controlada pelo Estado, o mapa de Lisboa tende a
ser mais preenchido do que nos outros municípios, visto quase sempre funcionar como
laboratório de experiências de RAL. Ainda que as experiências de resolução alternativa de
conflitos sejam alvo de controvérsias entre os operadores da justiça e a relação com o
judiciário não esteja isenta de contrariedades, um grupo de responsáveis, profissionais ou
peritos ligados de alguma forma ao GRAL, aos julgados de paz ou aos centros de
arbitragem tem procurado promover a visibilidade das apostas do GRAL. Nesse sentido,
apesar de alguns limites na divulgação, estão acessíveis publicações várias sobre esta
matéria, assim como estudos académicos. Se em Maputo, os discursos dos entrevistados
insistia muitas vezes no argumento de que a vida da cidade relativiza a importância das
justiças comunitárias, em Lisboa, o discurso de responsáveis e peritos dos mecanismos de
RAL vai no sentido de que, se as velhas formas de resolução de conflitos tendem a
desaparecer, há que promover o entusiasmo por novas formas, inspiradas nos modelos
anteriores.
Classifiquei as justiças comunitárias de Lisboa em cinco grupos, onde o Estado tem
quase sempre presença. Num primeiro grupo, cabem as apostas do GRAL, integralmente
de responsabilidade estatal, onde estão o Julgado de Paz de Lisboa, que conta com o
apoio da Câmara Municipal e do Conselho dos Julgados de Paz, e os Sistemas de
Mediação Laboral e Familiar. No segundo, coloco as instâncias com apoio do GRAL que
partiram de iniciativas exteriores ao Estado e apresentam objetivos heterogéneos
(dirigidos à procura suprimida e vinculados a uma lógica de comunidade ou criados no
horizonte do bom ambiente de negócios), onde cabem os centros de arbitragem a que
chamei híbridos institucionalizados. No terceiro, agreguei instâncias com reconhecimento
do GRAL e apoio periférico, a que pertencem os centros de arbitragem institucionalizada
e os sistemas de apoio ao sobreendividamento. No quarto, estão as justiças comunitárias
de iniciativa estatal (isolada ou em parceria) fora da alçada do GRAL, de que fazem parte
as CPCJ, instituições oficiais não judiciárias altamente híbridas na medida em que
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Conclusões gerais
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Balanço, resultados e expetativas da ecologia de justiças
população, não são classificadas como justiças comunitárias a partir de uma atividade
esporádica e ad hoc. Um individuo a ajudar dois amigos a organizar partilha de bens não
configura uma instância comunitária. Assim, ainda que nas igrejas, nas esquadras de
Lisboa ou em outras entidades possam ocorrer episódios de resolução de conflitos, o
trabalho de pesquisa desenvolvido nunca identificou pistas que indicassem que esse
trabalho pudesse existir ou ter um registo continuado e por isso não cabem no mapa tal
como o cartografei.
Concluído o processo cartográfico e definidos os dois mapas, para a segunda fase da
ecologia de justiças, em face de condicionantes temporais e de recursos, bem como dos
limites de extensão do tipo de investigação realizada, impôs-se a seleção de um grupo de
restrito de instâncias. A partir de um conjunto de critérios expostos foram escolhidas para
esta fase de análise micro as seguintes estruturas: a 7º Esquadra da Cidade de Maputo, o
Gabinete Modelo de Atendimento à Mulher e Criança Vítimas de Violência e a Associação
Nós por Exemplo (Maputo); o Julgado de Paz de Lisboa e o Sistema de Mediação Familiar
(Portugal). As três instâncias de KaMpfumo situam-se em zonas de contacto que
decorrem do cruzamento de diferentes mundos e ordenamentos jurídicos. As duas
instâncias de Lisboa configuram duas grandes apostas do GRAL, a primeira numa parceria
com o Conselho de Julgados de Paz e o Município e a segunda completamente
centralizada.
No contexto de KaMpfumo, as instâncias escolhidas fazem parte da rede de forum
shopping que é mobilizada seletivamente por cidadãos deste e de outros distritos. Todas
elas proporcionam uma justiça economicamente acessível, compreensível e assente em
procedimentos flexíveis. No entanto, configuram três formas de hibridismo que resultam
em justiças comunitárias com perfis diferentes. A esquadra da PRM enquanto justiça
comunitária é uma instância nascida do Estado heterogéneo com ampla visibilidade, cuja
legitimidade tem origem na articulação da autoridade que o Estado moderno lhe atribui
com a rapidez, a flexibilidade e a proximidade humana próprias de justiças comunitárias
como os tribunais comunitários ou as autoridades tradicionais. O Gabinete Modelo de
Atendimento à Mulher e Criança Vítimas de Violência é parte de uma iniciativa estatal,
nascida no contexto de convenções e discussões internacionais, para deslegitimar e
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Conclusões gerais
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Conclusões gerais
solução para as violências que sofrem sobre o seu corpo. Não é também credível que o
judiciário seja capaz de dar resposta a todos os casos que chegam aos gabinetes. O Estado
heterogéneo tenderá a reagir com soluções criativas que podem favorecer ou não as
mulheres. A construção do edifício do Gabinete Modelo pode ser usada como metáfora
da instituição que importa leis e modelos sem os articular com a realidade local. Foi
criado com o apoio da cooperação portuguesa, à imagem e semelhança das expetativas
europeias para este espaço. Apesar dos quartos para as vítimas, não há como assegurar a
alimentação ou o bem-estar físico e psicológico das mulheres que saem de casa com a
roupa do corpo e vivem em situações de extrema carência financeira. A sala de
atendimento à criança tem todas as condições para ser usada com exceção dos técnicos
especializados para ouvirem as crianças. Na prática, o espaço do Gabinete é usado
exatamente nos mesmos termos da esquadra, sendo ignoradas as especificidades das
situações que ali são tratadas.
A Associação Nós por Exemplo está fora das paredes do Estado e é a instância onde
a interlegalidade dá lugar a combinações mais criativas, isto é, acordos variados,
exequíveis, que transcendem o direito estatal e o direito dos espaços doméstico e da
comunidade, indo ao encontro das expetativas das partes. A flexibilidade está aqui de
mãos dadas com a empatia, as necessidades específicas dos casos, a vontade das partes
envolvidas, o contexto de ocorrência do conflito e os direitos assegurados pela lei. A
linguagem e os procedimentos são familiares às partes e, em cada momento, podem ser
dados esclarecimentos sobre as garantias asseguradas pelo direito estatal, bem como
sobre os procedimentos judiciais para o caso nem discussão. A equipa de resolução
demora-se nos conflitos, abordando-os na sua globalidade, procurando dar resposta às
várias dimensões que estão em causa. A violência doméstica é condenada de forma
veemente sem que seja procurada uma via judicial para a resolver. Ouvem-se os
envolvidos e estabelece-se empatia sem julgamentos morais. A NPE é recente e bastante
menos visível que as instâncias anteriores e apresenta uma procura substancialmente
inferior. No entanto, promove uma relação de continuidade com os utentes, insistindo na
ideia de acompanhamento dos casos após a resolução do conflito. A resolução definitiva
não é sempre objetivo principal, mas sim o estabelecimento de bases para um bom
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Balanço, resultados e expetativas da ecologia de justiças
entendimento entre as litigantes com relações multiplexas, cuja rutura poderá implicar
um regresso à instituição. As decisões são quase sempre mini-max, procurando-se
acordos que possam ser cumpridos. Isso é muito claro nas pensões de alimentos. Muito
mais do que no Gabinete de Atendimento à Mulher, estes casos são muito discutidos,
tendo-se em atenção os rendimentos do pai da crianças e o equilíbrio entre as exigências
da mãe e as disponibilidades financeiras.
As duas instâncias estudadas no contexto de Lisboa resultam dos processos de
desjudicialização. No entanto, a transferência de competências do judiciário assenta
numa lógica de sobreposição e até de competitividade, ficando nas mãos do cidadão a
opção entre os tribunais e o SMF ou o Julgado de Paz ou a inação perante um conflito.
Embora exista muita informação disponível nos websites da DGPJ e do CJP, a fraca
visibilidade das instâncias estudadas, entendida aqui como a fraca probabilidade um
cidadão ou uma cidadã identificarem o julgado de paz e o SMF como instâncias que
podem ser acionadas para resolução de litígios, constitui um dos principais entraves à
proximidade dos designados meios de resolução alternativa de litígios em Portugal. São
escassas as iniciativas de divulgação que vão diretamente ao encontro dos cidadãos. O
conhecimento e o reconhecimento resultam, em grande medida, da partilha pessoal de
experiencias. É possível que uma difusão mais abrangente resultasse sobretudo no
aumento da procura suprimida e não na diminuição do volume de processos judiciais.
Não existem dados sobre os utilizadores deste serviço que comprovem a hipótese de
serem procurados sobretudo pelas classes mais altas, seja pela sociedade civil íntima ou
pela sociedade civil incivil. No que diz respeito aos julgados de paz, um estudo
relativamente recente mostra que a composição dos utentes tende a ser semelhante à
composição do município, não parecendo haver ligação causal entre a posição
socioeconómica e o recurso à instância (Vargas, 2006). No entanto, qualquer das
instâncias estudadas tem muito mais procura em Lisboa, cuja composição aponta um
círculo maior da sociedade civil íntima, do que no restante território. Essa procura pode
ser também explicada pelo facto de Lisboa funcionar como laboratório português de
experiências de RAL e as instâncias estarem mais enraizadas.
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excesso de litigação dos tribunais judiciais, mas discutidas, observadas nas duas
diferenças, e sujeitas à crítica séria com o objetivo de exponenciar as suas potencialidades
em função dos contextos onde existem.
Enquanto palcos de lutas quotidianas onde cidadãos e cidadãs negoceiam normas e
relações de poder desiguais, as instâncias analisadas apresentam indicadores diferentes
sobre o papel que desempenham na transformação das sociedades. Não analiso a
questão em termos de reformismo, isto é, mudança social normal acompanhada pela
transformação do direito estatal, nem tão pouco da revolução, que rompe com as
estruturas do Estado, transformando-as e transformando o direito. O exercício desta
resposta é arriscado porque extrapola os termos da pergunta sobre se pode o direito ser
emancipatório (Santos, 2003). A ideia foi perceber se existem zonas de invisibilidade, para
lá do que o Estado e o direito moderno reconhecem (seja por inclusão, seja reagindo
contra), que permitam desafiar as formas de opressão do capitalismo, do colonialismo e
do patriarcado.
Ao contribuírem para a paz social, as instâncias que lidam com conflitos da esfera do
mercado (formal ou informal) tendem a atenuar alguns dos efeitos danosos do sistema
capitalista sem desafiarem o modelo capitalista e de alguma forma contribuindo para a
sua reprodução. Nesse sentido, a 7ª Esquadra funciona como paliativo que, enquanto
estrutura do Estado heterogéneo, dá respostas imediatas à procura suprimida, conflitos
ignorados pelas estruturas modernas (ou porque ocorrem no mercado informal ou
porque envolvem valores muito baixos ou porque não têm enquadramento jurídico),
ocorridos entre membros da sociedade civil incivil, numa sociedade atravessada por
enormes desigualdades económicas. O Julgado de Paz de Lisboa desempenha um papel
muito importante enquanto espaço pacificador, promovendo uma justiça conciliadora,
barata e de proximidade na resolução de conflitos que ocorrem num registo formal. No
entanto, mais do que contribuir para a transformação social, funciona também enquanto
paliativo minimizador de alguns dos efeitos da crise económica, como a incapacidade dos
cidadãos para cumprirem alguns dos seus compromissos como o pagamento das quotas
de condomínio.
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Conclusões gerais
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