A Paz Perpétua - Immanuel Kant
A Paz Perpétua - Immanuel Kant
A Paz Perpétua - Immanuel Kant
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Introdução
Pode deixar-se em suspenso se esta inscrição satírica na
tabuleta de uma pousada holandesa, em que estava
pintado um cemitério, interessa em geral aos homens, ou
em particular aos chefes de Estado que nunca chegam a
saciar-se da guerra, ou tão-só aos filósofos que se
entregam a esse doce sonho. Mas o autor do presente
ensaio estipula o seguinte: visto que o político prático está
em bons termos com o teórico e com grande
autocomplacência o olha de cima como a um sábio
acadêmico que, com as suas ideias ocas, nenhum perigo
traz ao Estado – este deve antes partir dos princípios da
experiência – e a quem se pode permitir arremessar de
uma só vez os onze paus, sem que o estadista, conhecedor
do mundo, com isso se preocupe, no caso de um conflito
com o teórico, ele deve proceder de um modo consequente
e não farejar perigo algum para o Estado por detrás das
suas opiniões, aventadas ao acaso e publicamente
manifestadas – com esta clausula salvatoria quer o autor
saber-se a salvo expressamente e da melhor forma contra
toda a interpretação maliciosa.
Primeira Secção: Que Contém os
Artigos Preliminares
1. Não deve considerar-se como válido nenhum tratado
de paz que se tenha feito com a reserva secreta de
elementos para uma guerra futura.
Seria então, pois, apenas um simples armistício, um
adiamento das hostilidades e não a paz, que significa o fim
de todas as hostilidades, e juntar-lhe o epíteto eterna é já
um pleonasmo suspeitoso. As causas existentes para uma
guerra futura, embora talvez não conhecidas agora nem
sequer pelos negociadores, aniquilam-se no seu conjunto
pelo tratado de paz, por muito que se possam extrair dos
documentos de arquivo mediante um escrutínio
penetrante. – A restrição (reservatio mentalis) sobre velhas
pretensões a que, no momento, nenhuma das partes faz
menção porque ambas estão demasiado esgotadas para
prosseguir a guerra, com a perversa vontade de, no futuro,
aproveitar para este fim a primeira oportunidade, pertence
à casuística jesuítica e não corresponde à dignidade dos
governantes, do mesmo modo que também não
corresponde à dignidade de um ministro a complacência
em tais deduções, se o assunto se julgar tal como é em si
mesmo.
Se, pelo contrário, a verdadeira honra do Estado se
colocar, segundo os conceitos ilustrados da prudência
política, no contínuo incremento do poder seja por que
meios for, então aquele juízo afigurar-se-á como escolar e
pedante.
2. Nenhum Estado independente (grande ou pequeno,
aqui tanto faz) poderá ser adquirido por outro mediante
herança, troca, compra ou doação.
Um Estado não é patrimônio (patrimonium) (como, por
exemplo, o solo em que ele tem a sua sede). É uma
sociedade de homens sobre a qual mais ninguém a não ser
ele próprio tem de mandar e dispor. Enxertá-lo noutro
Estado, a ele que como tronco tem a sua própria raiz,
significa eliminar a sua existência como pessoa moral e
fazer desta última uma coisa, contradizendo, por
conseguinte, a ideia do contrato originário, sem a qual é
impossível pensar direito algum sobre um povo1). Todos
sabem a que perigo induziu a Europa até aos tempos mais
recentes o preconceito deste modo de aquisição, pois as
outras partes do mundo jamais o conheceram, isto é, de os
próprios Estados poderem entre si contrair matrimônio;
este modo de aquisição é, em parte, um novo gênero de
artifício para se tomar muito poderoso mediante alianças
de família sem dispêndio de forças e, em parte também,
serve para assim ampliar as possessões territoriais. – Deve
também aqui incluir-se o serviço das tropas de um Estado
noutro contra um inimigo não comum, pois em tal caso
usa-se e abusa-se dos súbditos à vontade, como se fossem
coisas de uso.
3. Os exércitos permanentes (miles perpetuus) devem,
com o tempo, de todo desaparecer.
Pois ameaçam incessantemente os outros Estados com a
guerra, devido à sua prontidão para aparecerem sempre
preparados para ela; os Estados incitam-se reciprocamente
a ultrapassar-se na quantidade dos mobilizados que não
conhece nenhum limite, e visto que a paz, em virtude dos
custos relacionados com o armamento, se torna finalmente
mais opressiva do que uma guerra curta, eles próprios são
a causa de guerras ofensivas para se libertarem de tal
fardo; acrescente-se que pôr-se a soldo para matar ou ser
morto parece implicar um uso dos homens como simples
máquinas e instrumentos na mão de outrem (do Estado),
uso que não se pode harmonizar bem com o direito da
humanidade na nossa própria pessoa. Algo de todo diverso
é defender-se a si e defender a Pátria dos ataques do
exterior com o exercício militar voluntário dos cidadãos
empreendido de forma periódica. – O mesmo se passaria
com a acumulação de um tesouro; considerado pelos
outros Estados como uma ameaça de guerra, forçá-los-ia a
um ataque antecipado, se a tal não se opusesse a
dificuldade de calcular a sua grandeza (pois dos três
poderes, o militar, o das alianças e o do dinheiro, este
último poderia decerto ser o mais seguro instrumento de
guerra).
4. Não se devem emitir dívidas públicas em relação aos
assuntos de política exterior.
Para fomentar a economia de um país (melhoria dos
caminhos, novas colonizações, criação de depósitos para
os anos maus de fornecimentos, etc.) fora ou dentro do
Estado, esta fonte de financiamento não levanta suspeitas.
Mas um sistema de crédito, como aparelho de oposição das
potências entre si, é um sistema que cresce
ilimitadamente, é sempre um poder financeiro perigoso
para a reclamação presente (porque certamente nem
todos os credores o farão ao mesmo tempo) das dívidas
garantidas – a engenhosa invenção de um povo de
comerciantes neste século – ou seja, é um tesouro para a
guerra, que supera os tesouros de todos os outros Estados
tomados em conjunto e que só se pode esgotar pela
eminente queda dos impostos (que, no entanto, se
manterão ainda durante muito tempo, graças à
revitalização do comércio por meio da retroação deste
sobre a indústria e a riqueza). Esta facilidade para fazer a
guerra, unida à tendência dos detentores do poder que
parece ser congênita à natureza humana, é, pois, um
grande obstáculo para a paz perpétua; para o debelar,
deveria, com maior razão, haver um artigo preliminar
porque, no fim, a inevitável bancarrota do Estado
envolverá vários outros Estados sem culpa – o que seria
uma lesão pública destes últimos. Por conseguinte, outros
Estados têm ao menos o direito de se aliar contra
semelhante Estado e as suas pretensões.
5. Nenhum Estado se deve imiscuir pela força na
constituição e no governo de outro Estado.
Que é que a tal o pode autorizar? Porventura o escândalo
que dá aos súbditos de outro Estado? Mas tal escândalo
pode antes servir de advertência mediante o exemplo do
grande mal que um povo atraiu sobre si em virtude da sua
ausência de leis; e, além disso, o mau exemplo que uma
pessoa livre dá a outra não é (enquanto scandalum
acceptum) nenhuma lesão. – Não se aplicaria, decerto, ao
caso em que um Estado se dividiu em duas partes devido a
discórdias internas e cada uma representa para si um
Estado particular com a pretensão de ser o todo; se um
terceiro Estado presta, então, ajuda a uma das partes não
se poderia considerar como ingerência na Constituição de
outro Estado (pois só existe anarquia). Mas enquanto essa
luta interna ainda não está decidida, a ingerência de
potências estrangeiras seria uma violação do direito de um
povo independente que combate a sua enfermidade
interna; seria, portanto, um escândalo, e poria em perigo a
autonomia de todos os Estados.
6. Nenhum Estado em guerra com outro deve permitir
tais hostilidades que tomem impossível a confiança mútua
na paz futura, como, por exemplo, o emprego no outro
Estado de assassinos (percussores), envenenadores
(venefici), a ruptura da capitulação, a instigação à traição
(perduellio), etc.
São estratagemas desonrosos; mesmo em plena guerra
deve ainda existir alguma confiança no modo de pensar do
inimigo já que, caso contrário, não se poderia negociar paz
alguma e as hostilidades resultariam numa guerra de
extermínio (bellum internecinum); a guerra é apenas o
meio necessário e lamentável no estado da natureza (em
que não existe nenhum tribunal que possa julgar, com a
força do direito), para afirmar pela força o seu direito; na
guerra, nenhuma das partes se pode declarar inimigo
injusto (porque isso pressupõe já uma sentença judicial).
Mas o seu desfecho (tal como nos chamados juízos de
Deus) é que decide de que lado se encontra o direito; entre
os Estados, porém, não se pode conceber nenhuma guerra
de punição (bellum punitivum) (pois entre eles não existe
nenhuma relação de superior a inferior). – Daqui se segue,
pois, que uma guerra de extermínio, na qual se pode
produzir o desaparecimento de ambas as partes e, por
conseguinte, também de todo o direito, só possibilitaria a
paz perpétua sobre o grande cemitério do gênero humano.
Logo, não se deve de modo algum permitir semelhante
guerra nem também o uso dos meios que a ela levam. –
Que os mencionados meios levam inevitavelmente a ela
depreende-se do facto de que essas artes infernais, em si
mesmas nunca convenientes, quando se põem em uso não
se mantêm por muito tempo dentro dos limites da guerra,
mas transferem-se também para a situação de paz como,
por exemplo, o uso de espias (uti exploratoribus), onde se
aproveita a indignidade de outros (que não pode erradicar-
se de uma só vez); e assim destruir-se-ia por completo o
propósito da paz.
***
Embora as leis aduzidas sejam simples leis
objetivamente proibitivas (leges prohibitivae), isto é, na
intenção dos que detêm o poder, há todavia algumas que
têm uma eficácia rígida, sem consideração pelas
circunstâncias (leges strictae), que obrigam imediatamente
a um não-fazer (como os números 1, 5, 6) Mas outras
(como os números 2, 3, 4), sem serem excepções à norma
jurídica, tendo porém em consideração as circunstâncias
na sua aplicação, ampliando subjectivamente a
competência (leges latae), contêm uma autorização para
adiar a execução sem, no entanto, se perder de vista o fim,
que permite, por exemplo, a demora na restituição da
liberdade subtraída a certos Estados, segundo o número 2,
não para o dia de S. Nunca à Tarde (ad calendas graecas,
como costumava prometer Augusto), portanto a sua não
restituição, mas só para que ela tenha lugar de um modo
apressado e assim contra a própria intenção. Pois a
proibição afeta aqui apenas o modo de aquisição, o qual
não deve valer para o futuro, mas não a possessão que,
embora desprovida do título jurídico requerido, foi todavia
considerada por todos os Estados no seu tempo (da
aquisição putativa) como conforme ao direito, segundo a
opinião pública da altura2.
Segunda Secção: Que Contém os
Artigos Definitivos
O estado de paz entre os homens que vivem juntos não é
um estado de natureza (status naturalis), o qual é antes
um estado de guerra, isto é, um estado em que, embora
não exista sempre uma explosão das hostilidades, há
sempre todavia uma ameaça constante. Deve, pois,
instaurar-se o estado de paz; a omissão de hostilidades não
é ainda a garantia de paz e, se um vizinho não
proporcionar segurança a outro (o que só pode acontecer
num estado legal), cada um pode considerar como inimigo
a quem lhe exigiu tal segurança3.