Arte Agora

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ARTE AGORA

COLEÇÃO  LEITURAS  DO  CORPO


Direção:  Christine  Greiner

Os   últimos   vinte   anos   testemunharam   um   verdadeiro   curto-­circuito   nas   dis-­


cussões  do  “corpo”.  As  abordagens  deixaram  de  ser  enclausuradas  em  discipli-­
nas  específicas  e  em  mitos  recorrentes  como  os  da  universalidade,  da  tabula  rasa  
e  do  fantasma  na  máquina.  Com  perfil  nômade  e  crítico,  os  estudos  passaram  a  
se  organizar  em  rede,  desafiando  estatutos  estáveis  de  centros  hegemônicos  do  
saber.  Em  vez  disso,  apontam  saídas  e  entradas  ainda  não  exploradas.  A  coleção  
Leituras  do  Corpo  busca  desbravar  essas  trilhas.  Apresenta-­se  como  uma  ação  
descentralizadora   (e   antropofágica)   para   traduzir   autores   irreverentes,   não   ra-­
ramente   pouco   conhecidos   no   Brasil,   e   sobretudo   apresentar   pesquisadores  
brasileiros  que,  sintonizados  neste  perfil,  fertilizam  o  debate,  geram  inquietações  
e  abrem  novos  campos  de  pesquisa  trans  e  indisciplinares.

Conheça  os  títulos  desta  coleção  no  final  do  livro.

D O C O R P O
CHRISTINE GREINER
SOFIA NEUPARTH
(orgs.)

ARTE AGORA
Infothes Informação e Tesauro

I26 Igarashi, Yoshikuni.


Corpos da memória: narrativas do pós-guerra na cultura japonesa (1945 -1970). / Yoshikuni
Igarashi. Tradução de Marco Souza e Marcela Canizo. Apresentação por Christine Greiner. – São
Paulo: Annablume, 2011.
536 p. ; 14 x 21 cm

Título original: Bodies of Memory: Narratives of War in Postwar Japanese Culture,


1945-1970. Princeton: Princeton University Press, 2000.

ISBN 978-85-391-0230-3

1. Linguagem do Corpo. 2. Comunicação. 3. Comunicação Não Verbal. 4. Corpomídia.


5. Japão. 6. Cultura Japonesa. 7. Arte Japonesa. 8. Arte e Corpo. 9. Narrativas do Pós-Guerra na Cul-
tura Japonesa. 10. Repensando a guerra e a história a partir do corpo. I. Título. II. Greiner, Christine.
III. Souza, Marco, Tradutor. IV. Canizo, Marcela, Tradutora.

CDU 800.95
CDD 301.21

Catalogação elaborada por Wanda Lucia Schmidt – CRB-8-1922

ARTE AGORA

Coordenação de produção: Ivan Antunes


Diagramação: Rai Lopes
Capa: Carlos Clémen
Finalização: Catarina Consentino

Conselho Editorial
Eduardo Peñuela Cañizal
Norval Baitello junior
Maria Odila Leite da Silva Dias
Celia Maria Marinho de Azevedo
Gustavo Bernardo Krause
Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam)
Pedro Roberto Jacobi
Lucrécia D’Alessio Ferrara

1ª edição: maio de 2011

© Christine Greiner | Sofia Neuparth

ANNABLUME editora . comunicação


Rua M.M.D.C., 217. Butantã
05510-021 . São Paulo . SP . Brasil
Tel. e Fax. (011) 3812-6764 – Televendas 3031-1754
www.annablume.com.br
Sumário

Antes de começar... 00

Sobre a organização do livro 00

Parte 1
Sobre ser e poder
Que corpo é este? Que arte é esta? 00
Sofia Neuparth
Indivíduo e potência 00
Peter Pal Pelbart

Parte 2
Sobre dizer e fazer
Como o corpo permite estes textos os quatro formas
de dizer a mesma coisa que não consigo dizer 00
Margarida Agostinho
Projeto-processo-produto: uma proposta
evolucionista para rever o projeto artístico 00
Helena Kalz

Parte 3
Sobre estar e ocupar
Texto sem nome às voltas do corpo na cidade 00
Paula Petreca
Ciência, arte e o conceito de Umwelt 00
Jorge de Albuquerque Vieira
Considerações sobre uma arte fora do mercado 00
Marta Traquino
Não sei se as galinhas vão ter dentes, mas sei que as
palavras vão ter de criar músculos 00
Graça Passos

Parte 4
Sobre viver e conviver
Arte e soberania 00
José A. Bragança de Miranda
Arte e civilidade 00
Christine Greiner
Uma conversa com Maria Filomena Molder
Antes de começar...

Há perguntas que têm uma urgência teimosa para


serem lançadas ao ar. Só assim largadas podem expressar
as suas danças, afinar-se, ganhar densidade, encontrar
pertinências, construir mudanças.
‘‘Arte Agora” foi nascendo assim, alimentado por
inquietações insistentes. A forma que hoje é livro foi-se
criando a partir do convite a quem na verdade sempre
se sentiu convidado; ou por estar implicado na própria
gestação contínua do que vamos sendo, ou por desenhar
clareza no contorno daquilo que fazemos, ou por cruzar
os conteúdos da investigação artística que nutre o ser e o
fazer.
Há quatro anos o grupo de estudos do corpo do
c.e.m-centro em movimento encontrou alguns pesquisa-
dores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
pela mão de Christine Greiner, e desde então temos vin-
do a praticar pensar-dançando lado a lado a partir da ex-
8 Arte Agora

periênciação de concretizações artísticas do c.e.m. como o


Festival Urbano Pedras d’Água, um acontecimento anual
que agrega a criação emergente do estar-com as pessoas e
os lugares da região central de Lisboa.
Permitir que estes textos trepidem lado a lado é uma
aventura que só o poisar e desassossegar dos próprios es-
critos no encontro com quem os vai lendo poderá fazer
aparecer.
Sofia Neuparth
Sobre a organização do livro...

Os textos nascem aos pares ou em pequenos grupos


se enredando uns aos outros a partir de linguagens dife-
rentes (ensaios acadêmicos, artigos, depoimentos, con-
versas e fluxos de pensamento poético).
E cada qual, a seu modo, indaga:
Como fortalecer a potência do indivíduo e do gru-
po?
Como traduzir palavra, pensamento e movimento?
Como ocupar os lugares na cidade, nos campos de
conhecimento, na rede das políticas culturais?
Como sobreviver, assim como estamos, mergulha-
dos nos dispositivos politicos, sem correr o risco de per-
der a delicadeza, a civilidade e o respeito pelo outro?
É disso que se trata o livro.
É disso que se trata o festival.
É disso que se trata o c.e.m.
De enxergar e ouvir. De perceber a partir do entre.
10 Arte Agora

E de seguir adiante, sem deixar de olhar a si mesmo, ao


outro e ao tempo… seja este o vento profundo e invisí-
vel de uma respiração ou a ventania caótica que arranca
a tudo e a todos de seus lugares seguros. Criando sempre
em movimento. Ou se movimentando sempre em estado
de criação.
Se o livro escapa aos padrões habituais das coletâne-
as, é porque nada é típico neste processo. A dinâmica dos
festivais de arte e, especificamente dos festivais de dança,
não costuma variar muito. Um ou mais curadores fazem
a programação, escolhendo obras de acordo com a pro-
posta do evento. Para tanto, costumam frequentar outros
festivais e/ou analisar materiais de divulgação de grupos
e artistas.
Há nichos de mercado que favorecem a escolha de
alguns nomes, em certos momentos, e estes passam a in-
tegrar circuitos que muitas vezes atravessam continentes
e repetem a si mesmos, incansavelmente.
Há também diferentes deslocamentos envolvidos
neste processo. As obras são criadas em certos locais e ao
serem convidadas para os festivais precisam ocupar no-
vos espaços. Assim, a obra ganha outro contexto, fora
de onde foi criada e, na nova hospedagem, encontra (ou
não) suas estratégias de adaptação.
O Festival Pedras D’Água tem apresentado uma ou-
tra possibilidade, absolutamente excepcional em termos
de cultura-mundo e hipermodernidade, para usar os ter-
mos de Gilles Lipovetsky. Isso porque, ao invés de entrar
na rede mundializada que norteia boa parte da arte con-
temporânea, atua localizadamente na cidade de Lisboa,
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em bairros determinados e em locais específicos (uma


escadaria, um beco, a casa de alguém e assim por diante).
Não há convites para quem já não esteja envolvido
na pesquisa – em grande medida coletiva e cúmplice dos
modos de sentir a conexão arte-vida proposta.
Não se trata, evidentemente, de nenhum tipo de
segmentarismo. A razão que fundamenta os pontos de
partida deste processo tão particular é sempre conceitual
e afetiva.
Em outras palavras, trata-se de um festival que é, ao
mesmo tempo, um projeto de vida e de compartilhamen-
to de saberes. Assim como o livro e o c.e.m, um escorren-
do para dentro do outro, entendendo criação, pesquisa e
reflexão, sempre em movimento.

Christine Greiner
Parte 1
Sobre ser e poder
Que corpo é este?
Que arte é esta?

Sofia Neuparth

Contextualização

a arte é conhecimento.
o fazer e fruir artístico abrem-me o desdobramento de
possibilidades de relação e, assim, de reflexão e acção. so-
mos seres relacionais e os laços e afectos que tecemos ao
longo da vida não se restringem ao universo humano, des-
de o princípio do desenvolvimento embrionário, quando
o zigoto se lança no caminho ao longo do útero materno,
já entramos em contacto com o acontecimento que tan-
tos têm identificado como ser o não ser. o mesmo agrega-
do de células em movimento dá origem ao humano e ao
seu ambiente imediato…

o afastamento da experiência quotidiana dos ofícios, da


delicadeza ou brutalidade do trabalho manual, do cheiro
da terra, da construção de um conhecimento experiencial
16 Arte Agora

que implica o corpo em movimento pode ter-nos afasta-


do do ritmo tremente que caracteriza a vida. a importân-
cia do entendimento das diferenças-semelhanças pode
ter-nos afastado da capacidade de percepcionar a passa-
gem entre universos sem o reforço do estilhaço, da seg-
mentação, no entanto…não nos impermeabilizou com-
pletamente o sentir. de vez em quando um de nós inclina
um pouco a cabeça, franze as sobrancelhas, contorce-se de
espanto e abre-se a desconfiança de que estes hábitos que
criam formas de vida têm outras configurações possíveis.

parece-me que os últimos 200 anos glorificaram a acção


repetida, desengajada, do que move o gesto. podemos cul-
par o legado da revolução industrial, do afastamento das
mãos na terra, da anonimização do ensino, da entrada do
"todos" no lugar dos encontros um a um, da massa abs-
tracta, do ter em lugar do ser, as convulsões permanentes
entre o acompanhar o presente no presente, a armadilha
de justificar o "de" e prever o "para" ou o pavor de não
saber...assim aparece o controlo, a clonagem, a cópia sem
a criação no interior da cópia, sem o tempo de "estar com"
o emergir de algo.

o corpo contemporâneo vai reportando esses procedi-


mentos através de deformações diversas que conhecemos
como doenças, embora já não estejamos apenas a lidar
com pragas vindas do exterior para o interior..

convidamos o cancro como um sinal de não saber morrer,


da ausência de relação com o não eu, de ouvir multiplica-
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ção no lugar de criação. entra a acumulação. a aridez de


acumular reforça a separação. o equívoco que faz da espe-
cialização o esquecer do antes onde és tudo o que não és.
movo-me pela falta de algo para suprir a lacuna, para ta-
par o buraco e angustio-me constatando que esse medo é
o jardineiro da ferida. confundo solidão com isolamento,
esqueço-me de tocar e ser tocada.

aparece mais uma doença contemporânea, o alzheimer,


um misto do castigo da fixação em prolongar a vida para
lá da vibração da existência com a destruição das ligações,
dos encontros. acreditamos que o ambiente te faz a ti e
que tu só tens que sofrer aquilo que já lá está. é fado.

procuro o ponto do início e dou comigo desesperada


no avançar de início em início ou de fim em fim sem
lhe reconhecer o movimento. o ladrão é um ladrão en-
quanto é um ladrão, o corvo é um corvo enquanto é um
corvo. o que ele vai sendo envolve-se numa bruma de
desconhecido que não se move no ciclo entupido do
controlo.

a incapacidade de escuta do outro no outro (seja huma-


no, árvore, bicho, pedra), a incapacidade de reconhecer o
invisível, a incapacidade de deixar chegar a complexidade
das diversas configurações de vida naquilo que elas são,
abre a porta dos multiculturalismos, dos pluridisciplina-
rismos, do corpo-soma-de-partes, enfim dos agregados de
pedaços prontos à ginástica análise-síntese como se o dis-
secar a rã não a matasse…
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pôr o alfinete na borboleta não guarda ou eterniza a be-


leza, perpetua apenas determinados sinais que identifico
como belo….a vibração da vida não é evidentemente um
deles. parar para perceber só traz estagnação.

de um braço ao outro vai um metro, mas de um braço ao


outro vai também uma relação e não uma representação
de uma medida.

de um corpo estilhaçado, de um mundo fragmentado, pou-


co mais se espera que o ajuntar ou separar de partes, uma
tarefa tão penosa, gigantesca e permanente que nos vemos
tentados a desimplicar-nos de estar presentes na nossa
mesma existência delegando no outro a acção, adiando.

um outro corpo, uma outra terra, as outras formas de vida,


que sempre existiram e que agora reivindicam uma con-
sideração urgente, movem-se pulsando em mancha, mas-
sa, nuvem, visco, respeitando o brilho de cada gota que as
constitui. o movimento de cada gota reconfigura toda a
nuvem, reconheço infinitos corpos. assim eu possa conti-
nuar a mover-me para lá dos sinais, da reacção imediata.
aceito a necessidade de contextualizar seja o que for mas
não posso deixar de sentir que as contextualizações fre-
quentemente reduzem o acontecimento. se eu colocar
um rosa vermelha junto a um sofá vermelho, uma pessoa
vestida de vermelho, um tapete vermelho, uma almofada
vermelha, muito provavelmente a leitura da cor sobressai
de tal maneira que me esqueço do cheiro, da textura, do
peso e de tantas outras qualidades da rosa. o que me pare-
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ce mais perigoso é que nem aceito que me esqueço e passo


a replicar rosas sem perfume sem maciez e sem picos…

– que corpo é este? que arte é esta?

um dia vi a distinção entre criatividade e criação. clarifi-


cou-se-me que a criatividade consiste num jogo regrado
de possibilidades a partir de matérias previamente iden-
tificadas e que a criação é o movimento de emergência,
do nascer.

que a criatividade desloca o conhecido e a criação se con-


figura no desconhecido.

que o movimento no desconhecido me traz a impossibili-


dade, a incapacidade, e que é urgente que o escute sem lhe
pedir à partida que me interesse ou me embale. clarificou-
se-me até que no começo, provavelmente, esse movimento
nem me pode interessar pois nem consigo reconhecer si-
nais que provoquem o meu afastamento ou aproximação.

que a investigação artística, enquanto prática contínua


não sujeita a um ponto de partida ou de chegada, detec-
ta e reconhece essas linhas/manchas, essas configurações
efémeras que são a potência da criação, trabalha-as, ma-
nuseia-as, e permite o aparecer da forma comunicável a
que chamamos a obra.

esse fazer exige-me não saber, exige-me uma errância onde


só eu própria posso caminhar. uma solidão onde acolho a
20 Arte Agora

companhia de outros caminhantes mas não me construo


a partir deles. crio-me com eles, fio a fio, diariamente. não
tenho que destruir para criar, antes abro mais os olhos, a
pele, cruzo a destruição na construção e continuo. quan-
do um movimento perde a pertinência acompanho-o na
morte, faço-lhe o luto, isso conheço, a memória da dor.

é difícil identificar a justeza de determinada forma. con-


fundo, mais vezes do que gostaria, continuar com esticar
uma possibilidade para lá da sua vibração e largar com
abandonar um movimento que me dificulta permanecer
em liberdade.

não identificar o contorno do território por onde passeio


não significa não encontrar lugares conhecidos, lugares
com nome, obriga-me antes a não parar aí. nem sei o que é
mais assustador, não encontrar referências na caminhada
ou ver-me armadilhada no poder que elas exercem sobre
mim.

esse fazer que a investigação artística tonifica aceita que a


forma/obra é parte de um processo de transito entre um
antes que acontece sempre no agora e um depois que den-
sifica a possibilidade de existência do antes.

o corpo, assim não o impossibilitemos, permite abrir a


duração do enquanto.

abro a porta e entro, fecho a porta. abro a porta e saio, fe-


cho a porta. reconheço que nesse atravessar, quando abro
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a porta, não sou só eu que passo. a existência que aparece


no atravessar ensina-me sobre ser o que não sou, sobre a
elasticidade do corpo que existe, a vibração, a trepidação.
só nua posso atravessar, só morrendo posso entrar e sair,
só escutando esse enquanto, esse durante, em que o corpo
existência me aparece sendo o não ser, não sendo o ser,
posso acompanhar o desdobramento que é dança. a inter-
mitência da presença.

tenho que ver a deformação, tenho que me ver na defor-


mação, tenho que aceitar a devassidão que não controlo
do que é ter a porta aberta.

posso nunca estar preparada para morrer mas a morte


acontece com ou sem preparo.

trazer ao visível, ao tangível, a matéria da criação implica


reconhecer-lhe uma forma. reconheço que o osso é assim
um documento vibrante do movimento que o potencia.
o osso não existe para eu me movimentar, existe no trazer
à forma o movimento, o osso cria-se nessa convulsão de
trânsitos, de empurrar e puxar, de encolher e esticar nos
movimentos de vida, movimentos/práticas que são vida.

se esse movimento da configuração da forma é esquecido


dando lugar ao congelamento de uma série de sinais, se o
entendimento da fixação da representação da forma toma
o lugar da escuta ao movimento que a potencia, então ela
despe-se de criação, perde vibração e passa a ocupar um
espaço que suga a vida, que amachuca a mobilidade.
22 Arte Agora

a forma torna-se exclusivamente sólida. seria então um


osso-coisa-estática, à qual se agarrariam os tecidos elásti-
cos que a minha vontade faz mexer. seria um osso-concei-
to-morto, desprovido ele próprio de vontade.
quando nós no c.e.m começámos a trabalhar a questão da
documentação na arte-agora pudemos perceber que se a
forma/obra se permite aparecer vibrante da criação que a
configurou, se a documentação dessa forma/obra não se
apressar em reduzir a força de vida, se trabalhar o “estar
com” e não o “estar para” ou “estar porque” é possível o
aparecimento de um documento que transporta e integra
a vibração da criação.

então o corpo/existência, tanto do artista como do do-


cumentador, permitiram-se acompanhar essa trepidação
durante o fazer.

da experiência quotidiana tenho reconhecido que só pos-


so ser eu realmente enquanto tu és tu. muitas vezes não
consigo distinguir se sou eu que estou a recuar de ser ou
se és tu que não te permites ser. parece-me difícil ir en-
contrando a justeza ente a ânsia de inscrever um contor-
no de mim e a confiança em determinado estado de ser
que me permite a afinação comigo própria, mesmo que
eu não possa nomear o que me move. quando me oiço
dizer “eu” talvez possa já começar a considerar o respei-
to pelo não eu, pelo tu que lês isto agora, pela liberdade
de ser, pela urgência de ser-com. no entanto não posso
deixar de reforçar as lacunas que esta consideração do
corpo-acontecimento ainda tem em mim e o quanto me
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 23

vejo escorregar pelos extremos do desfoque, a vaidade, a


insegurança de ser ou não acolhida pelo tu, a fragilidade
de acreditar num nós que desdobra o eu. enquanto par-
tilho experiências da dança falo muitas vezes de mim na
terceira pessoa ou oscilo entre eu e nós. parece-me que
esta estranheza nasce no acompanhar do gesto, flutuando
em formas diversas de mim que não conheço mas descon-
fio que estão ali.

que corpo é esse? onde encontro de novo o perigo do des-


colamento? no corpo do conferencista que é filósofo, no
do escritor que lança o livro, no da criança que traz ra-
diante a sua invenção no papel, no da bailarina que arrisca
o gesto no espaço? que corpo é esse que comunica? entre
mostrar, transportar, expressar, acompanhar a chegada da
forma, o que acontece no (des)acompanhar da comunica-
ção que não respeita a criação? onde me ausentei de mim
mesma priorizando a “mensagem” como quem lança só
um braço para a dança em lugar do corpo todo? como se
o cantor ou a lua pudessem ter só um lado…

sei que o fazer artístico exige um labor demorado e que


essa criatura em que me vou transformando em cada cria-
ção tece uma película em torno de si própria que terá que
romper no atravessar da porta aberta. mas terei que su-
cumbir aos movimentos que chegam de fora para dentro?
se todo o trabalho de criação me fala de encolher e esticar,
de ir e vir, de pulsar…onde perco a confiança nessa escuta?
então essa membrana era, afinal, apenas uma protecção?
não era o reconhecimento de uma pertinência que precisa
24 Arte Agora

agora que eu acredite, que acredite que existe, que existo?


desde a caminhada no desconhecido,

no nada que não é ausência,

ao emergir do movimento no meu sentir,

ao reconhecer,

atravessando a complexidade de agarrar, largar, apertar,


empurrar, puxar, entrar, escorregar, deslizar, sair,

à comunicação da forma/obra,

ao silêncio do espaço que se abre em torno do acontecer,


à chegada das ondas de retorno,

ao deixar,

ao continuar caminhando quase a mesma mas sempre li-


geiramente diferente

…durante todo este percurso que é o acontecer da criação,


deparo-me com hiatos, saltos, rompimentos, mortes.

a expansão-concentração do corpo co-existe e não pode


fazer-se forma de vida sem o salto. reconhecer a presença
do corpo que dança implica ouvir-lhe a intermitência.
é essa intermitência que permite o brilho.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 25

– sobre comunicação, encontro um-a-um no seio de


outros encontros um-a-um (a partir de uma prática de
encontros concretizados num mesmo espaço físico, no
âmbito da investigação artística, para partilha verbal e
dançada de questões emergentes do processo de criação).

na comunicação um-a-um reconheço que a primeira ca-


mada de entendimento é que o encontro implica não só o
meu movimento mas o do outro.

reconheço, já noutra profundidade, o que descobri dan-


çando no ano passado: o encontro implica o movimento
de todas as partículas envolvidas no acontecimento. a
dança de chegar e deixar chegar vai criando a possibilida-
de do encontro.

se eu considero que tenho que mostrar algo ao outro, que


tenho uma mensagem que ele precisa receber e decifrar,
a dança turva-se. fico presa nos jogos de poder, de per-
tença, perco soberania. aparece o susto, a desconfiança, a
expectativa, a necessidade de me defender de um ataque
eminente.

volto ao exercício de atravessar:

abro a porta, trago comigo uma caneta, atravesso, entro,


fecho a porta.

se a minha presença se escoa na necessidade de transportar


a caneta de um lado para o outro é impossível esse atraves-
26 Arte Agora

sar. deixa de ser uma comunicação, o estabelecimento de


uma relação, de um laço de afinidade entre os lugares, para
se tornar o esvaziamento de mim para que os sinais que
constituem a representação de caneta possam ser lidos por
ti que estás nesse outro lugar. é isso que tu acolhes então:
uma representação, um conjunto de sinais que ocupam
espaço e que te forçam a fazer alguma coisa: arrumá-los,
transformá-los, comê-los, ignorá-los, matá-los.

mas o amor de atravessar, em mim, quando tomei a caneta


na mão para te oferecer, desapareceu. se a morte acontece
no piscar da vida, na intermitência da presença, então não
morri, esvaziei-me.

abro a porta, trago comigo uma caneta, atravesso, entro,


fecho a porta. considero o meu acontecer corpocaneta
enquanto atravesso. não isolo os sinais caneta, não me de-
simplico.

atravesso sem matar o amor que gero em mim quando


tomo a caneta para te oferecer.

sei que a linguagem não existe para fazer passar uma men-
sagem, que não me posso ausentar no transporte da ca-
neta.

o encontro um-a-um permite a dança mas não a garante,


a dança é possível se não a impossibilitarmos. reconheço
no encontro um-a-um a sensação do princípio do namo-
ro onde ainda me deixo oscilar, aceitar a oscilação. onde
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 27

ainda me permito não perceber a oscilação do outro.


permito-me escutar essa vibração sem a comparar com
a minha.

vejo a chegada do beijo como um acontecimento que


já está a acontecer pela ampliação do meu corpo à dis-
ponibilidade do encontro. esta ampliação é avassala-
dora e sobre ela não consigo ainda dizer mais nada.
danço.

a cristalização das formas de comunicação tem impossi-


bilitado a qualidade da presença do corpo-só em comu-
nicação com o corpo-muitos. no entanto a ruptura não
está na forma.

onde abstratizo eu os outros? onde opacifico a membra-


na? onde impossibilito o atravessar?

uma vez ouvi certo comunicador brilhante numa confe-


rência. o auditório estava cheio, principalmente de pes-
soas que vinham ouvir a representação dele. falavam ao
telemóvel, remexiam-se nas cadeiras enquanto ele comu-
nicava com um tradutor todo pendurado que o interrom-
pia vezes sem conta. não tive dúvidas que ele falou comigo
e eu com ele. na altura não tive a capacidade de conside-
rar a importância dessa ligação entre mim e ele naquele
contexto em que eu fazia parte da massa anónima, nem
percebi se esse encontro acontecia enquanto outras afini-
dades se criavam, outros encontros um-a-um no interior
de uma forma um-para-muitos.
28 Arte Agora

não me lembro de nada do que ele disse. nem tentei ouvi-


lo. não me esqueço do movimento da sua presença que se
movia para mim enquanto eu me movia para ele.

quando convido uma plateia formal faço eventualmen-


te o convite a que cada um se abstratize, se anonimize,
enquanto público. no entanto, mais uma vez não está na
forma a possibilidade da possibilidade. digamos que a pla-
teia formal facilita a abstratização, a impossibilidade do
um-a-um, também o projector nos meus olhos, também
a distância e tantos outros sinais de separação. mas é isso,
são sinais, não são o movimento em si.

tornam-se estratégias de exclusão da existência, formas


onde me sinto com o direito de não existir. de apelar à
minha moleza, a minha desistência, a minha submissão.

sinto-me com o direito de não ouvir a expansão do acon-


tecimento. como se me privasse do luto.

danço então que os rituais de passagem são exercícios des-


sa expansão do acontecimento. que a consideração dessa
ampliação do corpoexistência é fundamental para que
possa haver passagem, não a passagem de algo a algo mas
o próprio movimento da passagem-comunicação.

– corpopedra corpo-pedra (diário de práticas de dança)

andava com uma pedra na mão já desde o sol nascer. mer-


gulhei no mar com ela, passeei pelo areal com ela, estava
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 29

um misto de mist e tempo aberto, as nuvens ainda esta-


vam a dormir na praia e eu naquele caminhar que tam-
bém não vai muito desperto, até a aragem fria me parecia
uma história que me acompanhava mas não me exigia re-
acção, só alvorecer.

pedra. pedra. pedra. qual é o tempo da pedra?

uma pedra grande, redonda, pedra com memória de já ter


rolado no mar quando o mar ainda rolava por aqui. poiso
a minha mão sobre a pedra, pauso a minha mão com a
pedra. ela convida-me a esperar. sinto algo muito familiar
no movimento da pedra. uma antiguidade. não desliza
nem ondula como os tecidos do corpo, pelo menos não
da mesma maneira.

parece-me antes pulsar. mistério. o mist. nada de novo e


no entanto completamente desconhecido, para dentro,
para fora. ajuntando-se e dispersando-se num tempo mais
lento do que posso perceber à primeira chegada.

vão-me chegando histórias vividas e contadas da criança


que não larga o boneco, da outra que só quer aquela cadei-
ra, do outro que não troca de camisa.

extensões.

é preciso estar pronto para largar a extensão.

também me parece importante acarinhá-la.


30 Arte Agora

para aprender a caminhar o bebé vai trazendo o espaço


consigo, do chão à vertical, recolhendo, comendo, puxan-
do, chupando.

o abraço da mãe, do pai, de outro corpo ajuda-o a perce-


ber e a reforçar esse ajuntamento e convida-o a empurrar,
para fora, cuspir, esticar, atirar para longe.

a resposta está sempre na pergunta. não sabes como sair


daí? entra mais.

o andré meu filho tem momentos em que nem a roupa


lhe pode tocar, o corpo excessivo, a abrir. noutras alturas
vem ao aperto, ao ninho, ao aconchego, ao ajuntar.

se me faço nuvem mancha e me deixo aceitar o ajuntar


e afastar das partículas de mim, sem membrana, ganho a
disponibilidade de saborear a gestação dessa película que
me envolve, que envolve a árvore, a pedra, a mesa, o livro.

o tempo que o avô mário levava a fazer bengalas de cana,


ou papagaios de papel. não havia estranheza entre ele e a
bengala, eram continuações um do outro. a película que
aconchega as partículas do corpo do meu avô não conside-
ra o corte quando se encosta á película que envolve a cana.
empatia molecular. como a osga a subir pelo muro. há uma
empatia, não uma fusão que indistingue o corpo-pedra.

enquanto ela passa a ferro também a camisa se ajeita e ali-


sa oferecendo os lugares que quer ver desenrugados.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 31

se o corpo está em si próprio está ligado, está em relação,


não há bloqueio entre o toque e o objecto. se o corpo está
em si próprio está com o espaço, o espaço continua-se no
corpo, o corpo continua-se no espaço.

o guerreiro continua-se na espada, a costureira continua-


se no vestido, o violinista continua-se no violino e a ma-
deira faz-se bochecha.

a bolha de percepção do ar que me envolve integra agora


toda a vibração do objecto.

caminho com um pau de 4 metros pela mouraria. o pau


não é um assunto.

o corpo lembra-se daquilo que sempre foi e é antes da


membrana lhe aconchegar a nuvem. ajuntar e afastar de
partículas, grãos, gotas, sonhos.

também o pau se lembra.

encosto o pau no meu peito e na outra extremidade em-


purro a parede.

o pau é uma continuação do meu peito na parede. Um


movimento muito simples, familiar. a parede entra em
mim. tem alturas em que o pau se aninha no topo da mi-
nha cabeça. conversa com o vento num equilíbrio frágil.
como o andar é. os tecidos do meu corpo ouvem a oscila-
ção e dançam também sem susto. Se eu tento equilibrar o
32 Arte Agora

pau na cabeça ele cai. é sempre um encontro a meio cami-


nho. não sou eu que imponho o movimento ao objecto,
considero a minha continuação nele.

vai de cântaro na cabeça ondulando a água que o corpo


também é. a cabeça também é mão. O cérebro também
quer embalar.
Indivíduo e potência

Peter Pelbart

Eu gostaria de partir de uma teorização que nada


tem a ver com a estética, muito menos com o dança, ela-
borada por um pensador dos anos 60 chamado Gilbert
Simondon. Não é uma teoria sobre o real, mas um pen-
samento operatório, digamos assim, que nos serve para
construir problemas, mais do que para indicar soluções.
Todo seu trabalho, escrito numa linguagem muito pró-
pria, se debruça sobre uma questão que remonta aos pri-
mórdios da filosofia, e não é o caso de rastreá-lo aqui – a
saber, o problema da individuação. Quero apenas trazer
um pequeno filão dessa discussão que poderia servir-nos
no contexto deste livro. Para pensar o que quer que seja,
diz Simondon, não se pode partir dos indivíduos dados,
tal como eles nos aparecem empiricamente, nem das for-
mas constituídas, tal como elas se nos apresentam na ex-
periência, diz Simondon. É preciso pensá-las à luz da sua
gênese, remontar do indivíduo ao processo de individu-
34 Arte Agora

ação, remontar das formas dadas às forças que as engen-


draram. Pois bem, qual é a tese de Simondon, em total
sintonia com a física quântica com a qual ele era muitís-
simo familiarizado? Que tudo aquilo que tem uma forma
delimitada, provém de um campo de tensões, ou de uma
matéria ilimitada. Anaximandro dava a essa matéria o
nome de Apeiron, Ilimitado. Portanto, seria preciso par-
tir desse Ilimitado, anterior aos indivíduos e suas formas,
que Simondon chamou de pré-individual, constituído de
potências, tensões, intensidades, singularidades. É um do-
mínio esquisito, esse, pois ele não tem uma coerência con-
sigo mesmo, não coincide consigo, se excede, transborda
a si mesmo. Não é estável nem instável, mas metaestável,
isto é, contém o mais alto grau de energia potencial, é a
potência ela mesmo, ou o que outros chamariam de vir-
tualidade. Um sistema físico está em equilíbrio metaes-
tável quando algumas variações podem desencadear uma
rutpura do equilíbrio, produzindo "uma brusca alteração,
conduzindo a uma nova estruturação igualmente metaes-
tável" (IPC, 49). Em termos filosóficos, diríamos que esse
ser original deveria ser pensado em termos de potenciais,
mais do que de estruturas, é feito de supersaturação e in-
determinação; trata-se, em suma, de um feixe de relações
quânticas, de limiares de intensidade. É a partir de um
tal ilimitado quântico que se processa uma individua-
ção, uma formatação, uma delimitação. Mas justamente,
o indivíduo dotado de forma que daí emerge e se separa
desse fundo, numa certa medida há de carregar consigo
esse fundo do qual ele se separa, ele há de carregar consigo
esse ilimitado, esse apeiron, essa placenta, que funcionará
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 35

para ele como um reservatório de possíveis, que lhe per-


mitirão renovações incessantes de seu próprio contorno,
de sua forma. O indivíduo, portanto, é ele mesmo, seu
contorno, sua forma, mais esse pedaço de pré-individual
informe de onde ele provém. Ele é o limite que o define,
mais essa carga de ilimitado que ele arrasta consigo. Por
isso, o sujeito é de certa forma cindido, ele é ele e não ele, e
mais profundamente, ele é incompatível consigo mesmo,
transbordando-se a si, tendendo para fora de si, e assim
comunicando com os outros, assim como as malhas de
uma rede que se ultrapassam cada uma em direção a ou-
tra malha. Mesmo um grupo poderia ser pensado assim,
a partir da carga de realidade pré-individual que cada um
carrega e que se conecta com a carga pré-individual de
cada outro, constituindo o que ele chama de transindi-
vidual.. Um grupo não é uma soma de indivíduos, mas
da carga pré-individual que cada qual carrega... Mesmo
quando se pensa na destruição de um indivíduo, não se
deveria pensar simplesmente num desaparecimento, mas
numa nova individuação eventual. Tudo aqui deveria ser
meditado, pois é uma outra lógica que está em jogo, uma
dinâmica metaestável, um jogo reversível entre dissolu-
ção e recomposição, desdiferenciação e rediferenciação.
Por isso, quando no interior de um domínio dado ocorre
uma desadaptação, uma incongruência, uma incompa-
tibilidade interna, não necessariamente esse desconfor-
to deveria ser assimilado a uma degradação. Essa desdi-
ferenciação pode ser o germe para uma nova diferença,
pode ser a condição, diz Simondon, para a tomada de
uma nova forma.
36 Arte Agora

Simondon defendeu que, assim como a ciência este-


ve mais atenta à instabilidade, também a ciência humana
deveria estar mais atenta à instabilidade psico-social, e
que mesmo os grupos sociais deveriam ser considerados
a partir de seu lado metaestével, isto é, nos momentos em
que "eles não podem conservar sua estrutura" e "se tor-
nam incompatíveis em relação a si mesmos, [...] se disdi-
ferenciando e se supersaturando"1. "Poderíamos dizer que
uma das condições necessárias para a invenção de uma
solução revolucionária suscetível de amplificar e integrar
os novos potenciais trazidos por um estado metaestável
é precisamente o de desfazer os antigos liames, afirmar
a diferença no coração do social. Se há uma subjetivida-
de 'revolucionária', ela está ligada a essa contraefetuação
da metaestabilidade no interior do grupo, que visa abrir
novos potenciais, novos germes, novas estruturações". O
que interessa a esse intérpret, e assim chegamos mais per-
to do que nos interessa aqui, é a disparação de um cam-
po metaestável, a invenção de uma nova configuração a
partir de uma energética, e não de uma dialética, mesmo
quando se tangencia o que o autor chama de "catástrofe
da liberação". Pois pode muito bem ocorrer que quando
uma forma de individuação se desfaça, seja a nível indivi-
dual ou coletivo, físico ou psíquico, e por que não acres-
centar perceptivo ou estético, beira-se uma catástrofe – e
no entanto, apenas nesse ponto que se abre um campo de
possibilidades antes represado, ou impensável. É só quan-
do a supersaturação de um campo dissolve os contornos

1. Simondon, L´individuation psychique et collective, Paris, Aubier, 1989, 63-4.


C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 37

determinados, desindividuando, desdifirenciando, que


outros potenciais e energias, outros germes estruturan-
tes, por transduções sucessivas, poderiam fazer emergir
novas configurações, com desfechos imprevistos. Apenas
o medo e a representação catastrófica dessa metamorfose
podem interromper esse processo de desindividuação – e
isso não nos falta, estejamos certos..
A tentativa mais geral de Simondon é mostrar que
a própria forma depende de forças que atravessam a ma-
téria, portanto, é preciso pensar a partir de um campo de
forças, de uma metaestabilidade desse campo, dos vetores
que o constituem e atravessam, das tensões, desse conjun-
to energético que é o miolo desse processo de tomada de
forma. Assim, todo o problema de Simondon ao tratar
da individuação é a questão da forma, onde ele se contra-
põe a uma tradição chamada hilemórfica, em que se pensa
em termos dicotômicos: por um lado a forma, por outro
a matéria, como dois planos distintos, extrínsecos, com
um absoluto privilégio do primeiro sobre o segundo. A
noção de forma, em todas as doutrinas, desempenha um
papel diretor ou organizador, imprimindo a uma matéria
inerte sua marca. O privilégio da forma advém do fato de
que ela tem uma unidade, constitui uma totalidade, pos-
sui uma coerência. Imanente ou transcendente, anterior
à tomada de forma ou contemporânea a essa operação,
ela conserva seu privilégio e superioridade em relação à
matéria ou aos elementos. Há uma assimetria qualitativa,
funcional e hierárquica da Forma e do que toma forma.
Em contraposição a essa tradição, Simondon prefere pen-
sar em termos de campo metaestável, e de germe que se
38 Arte Agora

propaga nesse meio propício, assim como uma solução


supersaturada se cristaliza a partir de um germe cristalino
minúsculo. Mais do que uma moldagem, trata-se de uma
modulação. Em última análise, é a matéria que permite
à estrutura, ou à forma, avançar, já que os potenciais re-
sidem na matéria.. Há toda uma solidariedade histórica
e filosófica entre a idéia de forma, estrutura, estabilida-
de, equilíbrio, perfeição, beleza.. A boa forma, a melhor
forma, os direitos da boa forma.. Em contrapartida, Si-
mondon pretende pensar uma teoria energética da forma,
aplicada aos campos de metaestabilidade.. Ao invés de
pensar uma forma arquetípica que domina a totalidade
e reina sobre ela, como um arquétipo platônico, o desafio
consistiria em pensar em termos de propagação progres-
siva, pedaço por pedaço, de um germe minimíssimo, que
assim se alastra e varia.. Não há privilégio das formas es-
táveis, o que importa é a tomada de forma, e como, num
campo metaestável, criam-se as configurações. Tomemos
o belo exemplo do estado prérevolucionario, um estado
de supersaturação, de ebulição, de multipotencialidade,
uma miríade de potenciais coexistem, e ali, num certo
sentido, ainda tudo é possível, nada está dado e tudo é
possível, não há uma forma ainda que se sobrepôs ao con-
junto, mas um acontecimento está prestes a advir, uma
estrutura prestes a jorrar, basta que um germe estrutural,
ou o acaso, ou uma idéia proveniente de outro lugar "pe-
gue" e se dissemine, sofrendo as variações que o campo
lhe impõe. Todo o escopo do autor está em subverter o
privilégio atribuído à estabilidade, e pensar na dimensão
criadora dos estados de incompatibilidade, até mesmo de
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 39

dissolução ou de catástrofe.. Ele recorre até à alquimia, ao


dizer que o Opus Magnum começa dissolvendo tudo no
mercúrio, ou reduzindo tudo ao estado de carvão – onde
já não se distingue nada, as substancias perdem seu limite
e sua individualidade, seu isolamento – depois dessa crise
e desse sacrifício vem uma nova diferenciação, o Albefac-
tio, depois o Cauda pavonis, que faz surgirem objetos da
noite confusa, como a aurora que os distingue pela cor...
Função produtiva da Liquefactio ou da Nigrefactio...Mas
não é uma alquimia misteriosa, tudo é ao rés do mundo,
da sua dinâmica, das virtualidades nele embutidas..
Mas afinal, de que seria constituído esse campo me-
taestável de que nos fala Simondon? Resposta: de singula-
ridades pré-individuais. Não são átomos, nem partículas
infinitesimais, são antes intensidades, campo energético,
formigamento de quantas, de diferenças, de heteroge-
neidade, de dissimetria... que no entanto se agregam, se
agenciam, se compõem, em séries, em rizomas, com sua
flexibilidade, aberta a todas as torções e variações, ou se
dissociam, dispersam.. Uma singularidade, em todo caso,
poderia ser definida como aquilo que ocasiona uma rup-
tura de um equilíbrio.
Quando Deleuze lê Simondon e se deslumbra com
sua teorização tão rica e precisa, e percebe a fecundidade
filosófica e operatória desse pensamento, seu pensamento
sobre a estética se vê permeada por esse vetor flexível, mo-
dulável, poroso...Talvez por isso Deleuze prefere pensar
em termos de linhas, mais do que de formas... Pois uma
linha é mais móvel, mais flexível, mais dobrável, mais mo-
dulável.. uma linha vem de um fora, leva para um fora.. é
40 Arte Agora

um fora informal.. Talvez a forma seja isso, a dobragem


de uma linha do fora.. Num certo sentido, há em Deleu-
ze essa obsessão: ir aquém ou além da forma, em direção
à força, à intensidade, ao molecular, aos devires, ao afor-
mal.. Talvez dali se possa agenciar multiplicidades, susci-
tar acontecimentos.. novas correlações de movimento e
repouso, de velocidade e lentidão, como diria Espinosa.
Ou criar uma hecceidade, como diriam os medievais... A
hecceidade não é uma forma, mas um rizoma, uma linha
que contém, reúne e distingue por seu traçado elementos
heterogêneos2. A hecceidade é um agenciamento, inde-
pendente das formas ou dos sujeitos.. Assim, os elemen-
tos conectados não são considerados em sua dimensão
habitual de forma ou de sujeito, mas são tomados como
forças, potencias de afecto, partículas e fluxos que se agre-
gam ou desfazem ao sabor de uma linha movente que os
agencia.. Espaço povoado de forças e de fluxos, fluido,
movente, sem pontos fixos, sem marcas que não sejam
efêmeras, como o deserto, como o Saara. Variação con-
tínua de suas orientações.. Fazer ver as forças para além
das formas.. Esposá-las.. encontrar os fluxos, liberar as
forças que nos povoam e povoam o mundo, imergir nelas,
para ao final ser não mais do que uma linha que se do-
bra, que se conecta, uma linha que se torna.. Construir,
dobrar o pensamento ou a matéria, para alcançar o de-
vir que advém àquele que constrói: como ele devém pe-
las dobras que ele marca e que se marcam nele, quais são
esses movimentos ou seus processos e os acontecimentos

2. Sahara, 65.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 41

que o afetam.. Assim, a arte, a escrita, o cinema, não serão


julgadas por uma apreciação estetizante, mas à luz de sua
potência de desterritorialização, de sua capacidade de tra-
çar linhas de vida (como, com qual força, a obra carrega
aquele que a produz e que a recebe?) Em outros termos,
um empreendimento nao será considerado por seus efei-
tos, o resultado cristalizado de seu ato, mas antes pelo ato
mesmo apreendido como uma aventura vital. Primado da
produção sobre o produto, do fluxo sobre a forma, das
forças, da vida, das intensidades, dos acontecimentos – é
o vitalismo de Deleuze. Nada disso pode ser normativo,
nem em termos éticos nem estéticos. Trata-se de uma
perspectiva, com sua singularidade, em meio a tantas ou-
tras, e sem privilégio algum. Mas se me for permitido jus-
tificar um pouco essa escolha teórica, eu diria que ela tem
a ver com uma constatação que a filosofia se encarregou
de levar adiante, nos seus limites próprios, e talvez tam-
bém a arte, com seus elementos próprios. Diz Deleuze
em seu prólogo ao Diferença e Repetição: "o pensamento
moderno nasce da falência da representação, assim como
da perda das identidades, e da descoberta de todas as for-
ças que agem sob a representação do idêntico". E mais
adiante, mostrando sua insatisfação com o modo em que
a filosofia acompanha essa mutação, ele diz: "Aproxima-
se o tempo em que já não será possível escrever um livro
de Filosofia como há muito tempo se faz: "Ah! O velho
estilo.." A pesquisa de novos meios de expressão filosófica
foi inaugurada por Nietzsche e deve prosseguir, hoje, rela-
cionada à renovação de outras artes, como, por exemplo,
o teatro ou o cinema." E por fim sua afirmação em relação
42 Arte Agora

às artes: não se trata, para elas, de reproduzir ou inventar


formas, mas de captar forças, nem que seja, como em Ka-
fka, as potências diabólicas do futuro que batem à porta3.
Remontar das formas aos movimentos, dos movimentos
às forças. Tudo isso pode ser desmesurado, ou violento,
e requer meios específicos, obviamente. Lawrence tem
um belo texto sobre Cézanne, em que nota sua luta obs-
tinada contra os clichês que o rondavam, que pairavam
sobre sua tela, dos quais ele teve que se desvencilhar para
conseguir, ao final, pintar uma maçã, ou um vaso ou dois.
"a luta contra o clichê é o que mais transparece em suas
pinturas". Pois bem, comenta Deleuze, desde então não
nos livramos dos clichês, ao contrário, eles se multiplicam
a cada passo, em nossas cabeças e ao nosso redor, e contra
os clichês formam-se novos clichês, sensacionais, dramá-
ticos, histriônicos, que por vezes é preciso até adentrar
histericamente para explodí-los, ou ensejar uma catástofe
para traçar uma linha de fuga para diante...
Extrapolando o campo da arte, talvez nos tenhamos
dado conta, como diz Deleuze, que vivíamos grudados
em clichês, talvez pensássemos segundo clichês, sentísse-
mos segundo clichês, nos indignássemos segundo clichês,
clichês que foram veiculados também pelo teatro, pelo ci-
nema, pela mídia, pelas celebridades, por toda uma cultu-
ra da mercadoria e uma mercantilização da cultura. Mas
chegou um momento em que os clichês nos apareceram
como clichês, em que eles já não nos convenciam, em que
já não acreditávamos mais neles, em que sua pregnância

3. Francis Bacon, Lógica da Sensação, Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, p. 66.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 43

se desfez. E já não nos reconhecemos na vida que é a nos-


sa. Temos dificuldade em acreditar no que nos acontece,
pois já nada parece poder acontecer-nos. Nossas reações
diante do mundo, sejam de luta, de compaixão, de indig-
nação, de reivindicação, se tornaram intoleráveis. ‘‘Nos-
sas relações ordinárias com o mundo se revelam conven-
ções arbitrárias, que nos protegem do mundo e o tornam
tolerável: e é aí que reside o intolerável compromisso,
com a miséria de toda natureza e com os poderes que o
entretêm e o propagam’’’’4. Pois bem, desmoronados os
clichês, olhamos à nossa volta e nos sentimos cansados.
Como o sublinhou um autor recentemente no seu livro
intitulado justamente "O cansaço de ser si". Estamos can-
sados de sermos nós mesmos, pois os clichês já não fun-
cionam e nos exigimos uma invenção de nós mesmos para
a qual não dispomos de força nem de recurso. Eu diria, de
maneira um tanto lapidar, e parafraseando Deleuze: Es-
tamos esgotados. Isso significa que algo se esgotou. O que
é mesmo que se esgotou, para nós, ao redor de nós mes-
mos, e no fundo de nós mesmos? Justamente, os clichês.
Não é por isso que tudo nos soa como déjà vu, já visto, já
ouvido, já vivido, já pensado, já feito? De fato, é como se
o campo do possível tivesse se esgotado, como se tudo já
tivesse sido tentado, como se tivéssemos esgotado nossas
possibilidades. O desinvestimento de tudo isso, mesmo
se aparece como um nada de vontade, como uma passi-
vidade, seria o signo de uma resistência. Portanto, mais
do que ver no desmoronamento daquilo que antes nos

4. idem, p. 351 fr.


44 Arte Agora

ligava ao mundo um desfecho ruinoso, a explicitação dos


clichês enquanto tais nos obrigaria a um encontro outro
com esse mundo do qual nos desapossaram. Por isso, os
fenômenos de vidência de dentro desse esgotamento não
poderiam nos advir sem que esses clichês tenham antes
inteiramente despencado, mesmo se isso soasse como per-
da do mundo e de toda possibilidade. Quando algo apare-
ce subitamente intolerável – já não suportamos o que nos
parecia trivial. Ao mesmo tempo, outra possibilidade se
fez ver e desejar. Como o diz Zourabichvili: guiados pela
exploração afetiva, a criação traça um novo agenciamento
espaço-temporal. O intelorável e o desejável redesenham
suas fronteiras. É uma questão, não de consciência, mas
de percepção. É, portanto, a própria percepção que se
torna uma questão política – que vai determinar o que já
não toleramos, inclusive quais clichês já não aguentamos,
e em contrapartida, o que desejamos.
Sei que parece vago, isso que tento contar de
maneira canhestra. Talvez eu possa acrescentar um
exemplo muito concreto, que é apenas um fragmento
minúsculo e nada representativo, mas que me é mui-
to próximo. Há três anos atrás Alejandra Riera, uma
artista argentina exilada na França, tinha proposto a
nosso grupo de teatro, constituído na sua maioria por
usuários de saúde mental, uma experiência na cidade de
São Paulo intitulado "Enquete sobre o nosso entorno".
Nossos atores deviam escolher lugares na cidade e in-
terrogar livremente os pedestres, passantes, desconhe-
cidos. Essas horas de encontros e fricções na rua foram
registradas e cruzadas com textos, fotos, outros pedaços
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 45

de documentários, sendo que o conjunto acabou sendo


apresentado na Documenta XII de Kassel, onde o gru-
po foi convidado a retomar o dispositivo dessa interven-
ção-pesquisa. A situação aparentemente jornalística das
entrevistas na rua rapidamente deslizava para o mal-en-
tendido, entre entrevistadores e entrevistados, criando
deslocamentos de sentido, inversões, fazendo girar os
lugares de enunciação e produzindo um verdadeiro des-
carrilhamento do discurso. A inquietante estranheza da
dita normalidade que nos rodeia, como dizia Alejandra
Riera, se deixava atravessar pelas situações que arruina-
vam as condições oridinárias da percepção. Deleuze o
dizia a propósito de Kurosawa: ele retoma o método de
Dostoievsky, ele nos mostra personagens que não ces-
sam de buscar quais são os dados de um problema ainda
mais profundo que a situação em que estão enredados.
Ele ultrapassa assim os limites do saber, mas também as
condições da ação. Ele atinge um mundo ótico e sonoro
puro onde se trata de ser um vidente, um perfeito Idio-
ta. No nosso caso, o resultado não é um documentário
piedoso sobre os normopatas urbanos a partir do olhar
iluminado ou estetizado dos loucos, segundo todos os
clichês miserabilistas, mas o que está em jogo é a dificul-
dade de dar a ver as eclosões em meio ao intolerável, ali
onde o niilismo já se instalou, no meio de um quadro
coletivo onde por vezes precisamente é a impossibnili-
dade de dar a ver que está em jogo. Merange o diz com
precisão: "O que parece faltar é a faculdade de perceber,
a capacidade de produzir a partir de um acontecimento
preciso uma petição de realidade. O que nos falta por-
46 Arte Agora

tanto, politicamente, hoje, é uma construção coletiva


das condições da percepção".5
Tomemos um episódio minúsculo. Estávamos dian-
te da Assembléia Legislativa em São Paulo, e conversá-
vamos com um vendedor de amendoim. Um de nossos
atores lhe pergunta qual é a magia desse lugar. O tipo não
compreende, ele pergunta se o entrevistador quer saber
quanto ele ganha. Nao, eu queria saber qual é sua felici-
dade, aqui. Não entendo, diz o outro. O ator, um pouco
exaltado pela surdez do ambulante, lhe lança à queima-
roupa: mas não, eu quero saber qual é o seu desejo, qual é
o sentido de sua vida.. Então tudo se interrompe, segue-
se um instante de suspensão, um longuíssimo silencio,
e vemos o homem afundar numa dimensão totalmente
outra.. e ele responde, bem baixinho, "o sofrimento".. É
o fundo sem fundo de toda a conversa, o desastre que já
ocorreu, o esgotamento que nao pode ser dito, é a an-
gústia e a solidão amarga de um homem acuado diante
de um edifício monumental que representa um poder
inabalável porém vazio, é tudo isso que só aparece sob o
modo de uma interrupção brusca desencadeada por uma
espécie de impaciência vital. Interrupção justamente vin-
da da parte daquele que supostamente estaria afundado
em seu abismo – o ator louco. E aí tudo bascula, e pode-
mos perguntar de que lado está a vida, e se essa pergun-
ta ainda tem algum sentido pois é todo um contexto de
miséria que emerge nesse diálogo incomum. "A miséria
é uma miséria dos afetos, cuja privatização acarreta uma

5. Valerie Mérange: Éthique et violence.


C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 47

desvalorização das possibilidades de vida.. O problema é


antes o bloqueio dos afetos e a inércia das afetações", diz
ainda Merange. Então eis o que faz irrupção: o fundo sem
fundo dos discursos que cada um carrega, a instabilida-
de psicossocial sobre a qual tudo repousa, e igualmente,
por momentos fugazes, os germes páticos que poderiam
abrir para outras individuações coletivas. Ao desencadear
uma certa esquizofrenização da situação, por um tempo
tem-se a impressão que tudo pode descarrilhar, fracas-
sar, inclusive o dispositivo. Mesmo se reencontramos o
que estava lá desde o início: o sofrimento, a resignação,
a impotência, assiste-se a fiapos de "fabulação", a devires
singulares que fazem fugir uma dita normalidade e seus
encadeamentos, índices de outros liames possíveis com
o mundo. No que concerne à imagem disso tudo: como
dizia Deleuze, não basta, para vencer, parodiar o clichê,
nem mesmo esburacá-lo ou esvaziá-lo. É preciso juntar
à imagem ótico-sonora forças imensas que não são as de
uma consciência simplesmente intelectual, nem mesmo
social, porém as de uma profunda intuição vital.. É todo
um agenciamento, técnico-social-vital.
Bem, chegados a esse ponto, vocês têm todo o direi-
to de perguntar o que tudo isso tem a ver com a dança.
Não sei. Eu esqueci de advertí-los, no início, de que não
sou especialista em teatro, que não entendo nada do as-
sunto, que minha ignorância no campo das artes plásticas
e das artes em geral é a mais completa, e que por isso me
sinto muito pouco qualificado para estar nesta mesa. E no
entanto, uma vez convidado, trouxe apenas o que me foi
possível carregar no meu modesto camiãozinho, a partir
48 Arte Agora

dessa tematização da forma e da experiência. Para resumí-


lo em duas palavras, nas condições contemporâneas, eu
pensaria em termos de agenciamentos e acontecimentos.
Em que medida um agenciamento, composto de elemen-
tos muito heterogêneos, fluxos materiais e imateriais dís-
pares, funciona, cria um território, e é capaz de produzir
um acontecimento. Mas também, em que medida esse
mesmo agenciamento coletivo, esse mesmo território,
uma vez produzido, é atravessado por pontas de dester-
ritorialização, linhas de fuga que o carregam para novas
criações.. Nada disso pode ser expressão de um sujeito, é
antes o sujeito que resulta disso, como um efeito..O autor
é o nome singular que se dá a um tipo de agenciamento..
O agenciamento Kleist, o agenciamento Kafka, o agen-
ciamento Beckett... Linhas que arrastam muita coisa.. Se
o que disse até aqui poderia ter alguma serventia ou ve-
rossimilhança, é porque condiz com um novo contexto,
científico, político, econômico, histórico, onde a dester-
ritorialização tornou-se central, onde os fluxos de toda
ordem correm soltos, onde a molecularização decompôs
as formas dadas e consagradas de subjetividade, onde di-
cotomias como sujeito e objeto, natureza e cultura, for-
ma e matéria, dentro e fora, como o mostrou Simondon,
são reviradas do avesso, e a própria noção de experiência
é transtornada, como o diz Deleuze ao partir em guerra
contra os clichês, e no entanto tudo isso é reaparelhado,
reterritorializado, monitorado, vampirizado pela nova
sociedade de controle, pelos mecanismos cada dia mais
capilares e infintesimais de modulação da vida e refor-
matação da existência, no atual contexto biopolítico. A
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 49

resposta só pode dar-se a partir desse mesmo campo de


imanência e de sua dinâmica.. A própria resistência já não
pode ser externa, defensiva, regressiva, encastelada – é
preciso usar a força do inimigo para derrubá-lo.
Parte 2
Sobre dizer e fazer
Como o corpo permite
estes textos ou quatro formas de
dizer a mesma coisa que
não consigo dizer

Peter Pelbart

Incapacidade

Um dia disse numa conversa uma coisa que uma


amiga fisicalizou... Disse que várias vezes na minha vida
tenho chegado à sensação que acedo a algo não apesar de
alguma incapacidade, mas por causa dela. As minhas pa-
lavras foram. "Não apesar disso, mas por isso." E a minha
amiga lembrou do peso inscrito na palavra apesar, como
algo que se suspende - que se projecta por cima do pro-
blema durante o tempo necessário para chegar à solução,
e que depois inevitavelmente cai, confrontando-me com
a incapacidade de permanecer no algo descoberto - e do
movimento inscrito na expressão por isso, no sentido do
atravessar da turbulência da incapacidade para por ela se
deparar com o possível.
A minha relação com a incapacidade é longa, é desde
sempre. Os limites que me levam a experimentá-la estão
54 Arte Agora

quase colados a mim. Quando me dirijo a alguma coisa


reconheço o aviso que não será possível, que mesmo que
seja possível, não durará; que mesmo que dure não po-
derá ser identificado... e então reconheço movimentações
que o meu corpo experimenta a partir da impossibilidade
com que se relaciona - instala-se uma espécie de urgência
sincopada... quando me deparo frente a frente com a im-
possibilidade caminho frequentemente para trás e para a
frente (na minha casa que é bem pequena conservo uma
diagonal desimpedida de coisas que me permita andar),
sacudo as pernas na cama contra os lençóis, embalo o cor-
po, e na insistência de o fazer há uma outra instância que
emerge. Uma possibilidade que não podia ter sido consi-
derada, num profundo respeito pelo impossível que con-
tinuo a sentir...
Lembro-me bem de quando percebi que era possível
levantar os braços sem esforço. Até aí para mim levantar
os braços era uma impossibilidade, porque para o fazer
tinha de gastar algo de mim e porque sabia que o fazia
inutilmente, pois dificilmente aguentaria o quer que fosse
nos braços com eles levantados. Este levantar de braços,
que era o único que conhecia, começava já reclamando
a ausência de capacidade da sua concretização, e por isso
tinha a sensação de gastar... porque tinha de compensar
gastando de mim o gesto de levantar os braços que trazia
desde o seu início a ausência de ser eu.
Quando percebi que podia levantar os braços sem
esforço, percebi que podia levantar os braços para nada,
e que esse nada era tudo, não era ausência, não precisava
de se justificar. E como se bastava a si próprio para recla-
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 55

mar a sua existência eu libertei-me de ter de compensar


com algo de mim a sua existência intrínseca. Não é que a
incapacidade tivesse sido ultrapassada ou destruída, é que
me consegui relacionar com ela a partir de um lugar mó-
vel, um lugar em que a entidade “Eu” não precisava de ser
alimentada por um emprego da minha energia em fazer
vibrar o que de facto é vibrante se não estiver a dete-lo.
Percebi assim que era possível não me gastar nesta
acção de levantar os braços - e antevi que esta possibilida-
de também seria potencialmente possível de se configu-
rar noutras situações. Neste possível com que começava a
relacionar-me a incapacidade estava lá, como esteve des-
de sempre... mas desta vez mostrando-me também que a
plenitude não chega (é por isso que é plena, porque na
sua própria acção de ser plena revela que não é plena de
si própria, ou a acção não se poderia concretizar) e que
então é a incapacidade que me ajuda a ser capaz, porque
percebo que é precisamente na compreensão da incapa-
cidade de poder chegar que a capacidade se revela. Que é
na percepção que sou mais plena do que eu própria algu-
ma vez poderei concretizar, que é nesse desequilíbrio de
dimensões que se cria a distância necessária à capacidade
justa para aquela compreensão. Esta distância necessária,
esta capacidade justa são medidas de mim mesma com as
quais me percebo a partir de dentro.
Tenho aprendido a amar o desencaixe, a despro-
porção, a incapacidade. Esse amor permite-me dançar a
distância que se revela, se conseguir não me deter na ne-
cessidade de gastar algo de mim para sustentar o que não
sou capaz, o que não posso. É desafiante mas sinto que
56 Arte Agora

às vezes o consigo fazer - atravesso a membrana da inca-


pacidade sem a rasgar e sem que ela me rasgue a mim e
encontro-me comigo mesma num outro lugar. Não ape-
sar dessa membrana, mas por ela.

Ponto Fixo

Tenho reparado nos indícios que me levam a sus-


peitar que muitas vezes, apesar de trabalhar na insistência
de me considerar no potencial de mim própria o faço a
partir de um ponto fixo. Um desses indícios é dirigir-me
às coisas e ter a expectativa que elas estão fora de mim...
não que estejam distantes no sentido de uma medida de
comprimento que se interpõe entre mim e elas (essa dis-
tância é dançável), mas no reconhecimento de que é pre-
ciso olhar para fora de mim para me dirigir a elas. Nos
anos que tenho passado a praticar junto da Sofia Neupar-
th trabalhando no c.e.m tenho percebido intimamente
que a pergunta que vale a pena fazer quando queremos
conhecer algo não é “o quê?” mas antes quem é que eu sou
enquanto pergunto aquele “o quê?” Mas também reparo
que esta pergunta só aparece com pertinência se eu me
considerar a partir de um ponto móvel, que pulsa, que se
caracteriza precisamente pelo aproximar e afastar das coi-
sas. E que essas coisas também não têm uma constância
que as identifique. Pulsam também. Aí torna-se evidente
que a pergunta a fazer é quem é que eu sou quando me
dirijo a algo, porque a necessidade de saber não se trata de
uma conquista (de um tomar pela força o que é desconhe-
cido para quebrar o selo do que me estava vedado), mas
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 57

do reconhecimento de um aproximar dos corpos que na


sua movimentação de existência se percebem como pró-
ximos. Neste sentido não tenho de ir para fora de mim
para perceber algo, essa necessidade torna-se intrínseca ao
próprio reconhecimento de mim própria. Apesar de ain-
da ser pouco estável em mim, esta acção que reconheço
parece-me essencial ser tida em conta enquanto conheci-
mento. A capacidade de conhecer algo sem impor delimi-
tações ao que pretende ser conhecido, sem o amputar do
que não considero permite-me interpelar o próprio acto
de conhecer e desconfiar que ele é algo mais do que a ac-
ção de possuir e conservar do que me é transmitido.
Ao movimento de reduzir para nomear e provar a
mim mesma que sei, é essencial o movimento de conside-
rar para deixar existir - duas formas de conhecimento que
são ao mesmo tempo uma, assim como numa mesma li-
nha de força o corpo se organiza para baixo e para cima ao
mesmo tempo. É preciso procurar o que quero conhecer
mais perto de nós, para honrar a continuidade do que é
discreto. Para navegar na especificidade de cada conheci-
mento que encontramos é preciso fazê-lo a partir de uma
concepção de mim que é contínua. Cada movimento de
apreensão da realidade que a priva da própria existência
na tentativa de nomear, tem de trazer ao mesmo tempo
a liberdade de a deixar ser. Esta capacidade de interpelar
o mundo, de me relacionar com o que não considero só
pode ser ginasticada em deslocação pois pressupõe o en-
tendimento das coisas e de mim mesma sem ser a partir de
pontos fixos. Para me considerar a partir de um lugar não
fixo é necessário experimentar a pulsação que se observa
58 Arte Agora

do diálogo entre as eternas reconfigurações do corpo e as


eternas solicitações do mundo, enquanto me entendo.
Qualquer tentativa de me entendermos sentada - retiran-
do o saber desta pulsação - arrisca-se a ser apenas uma jus-
taposição dos conhecimentos que julgo deter, aos quais
atribuo um sentido, e que me tende a pôr para o resto da
vida a defender a coerência do resultado.

As próprias medidas

Recentemente tenho a sensação de ter descoberto


algo... desde que um dia ao segurar um lenço na direcção
do chão na tentativa de me relacionar com a proposta das
conversões de Duchamp me surgiu a necessidade de to-
mar nas mãos o comprimento de uma coisa e a compreen-
são de que esse comprimento antes de ser uma medida é
uma relação entre o meu corpo e a coisa a que me dirijo. E
aí veio o metro... de fora para dentro... eu própria dizendo
a mim mesma (como alguém disse em tempos a outros
alguéns e a si próprio também...) "mas para poder expli-
car ao que me refiro, preciso de estabilizar aquilo com o
que me relaciono, para poder dizer alguma coisa que se
entenda preciso de nomear o que é que tomo nas mãos, e
assim quando digo um metro de tecido, o meu problema
fica resolvido. Sou compreendida!" Toda a gente sabe o
que é um metro, embora ninguém saiba realmente o que
é um metro. Quando as coisas são sobre as coisas descan-
samos porque achamos que estamos todos a compreen-
der. E não reparo que o esforço de explicar exige que me
desimplique. Que desista de mim... De uma maneira mais
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 59

fácil: Para poder comprar um tecido e garantir que com-


pro sempre o "mesmo" tecido tenho de substituir a minha
relação particular com aquele tecido (a minha braçada na
fazenda por exemplo) por uma medida - o metro - e assim
garanto que trago para casa a quantidade de tecido que
pedi, e que qualquer outro pode pedir pois aquilo a que
se refere não depende dele nem do objecto em causa... é
uma medida universal que toda a gente sabe o que é, em-
bora ninguém saiba o que é. E se peço o que toda a gente
pode pedir, então posso reclamar o meu lugar no mundo,
porque ao demonstrar essa habilidade estou a afirmar a
minha capacidade social de entender os códigos. Se tenho
o meu lugar no mundo descanso.
Reparo que tomamos por evidente e seguro que só
se pode pedir aquilo que se conhece, que se sabe o que
é... e que o outro sabe o que é, claro! pois eu tenho vindo
a descobrir que é mais importante pedir aquilo que não
se sabe o que é... e que é possível pedir-se aquilo que não
se sabe o que é e ser-se rigoroso nesse pedido. Confiar na
volta da afirmação - então se ninguém sabe o que é, é por-
que intimamente todos sabemos o que é. As coisas não
são sobre as coisas!
Há uma ligação entre estabilizar, explicar, ser com-
preendido e descansar que nunca nos deixa considerar o
que há antes de ser estabilizado... quando muito remete-
nos para o engano de que aquilo que já não lidamos por
ser instável e pouco eficaz na comunicação (posso sempre
medir um tecido com os braços), é da mesma natureza
do que o que foi estabilizado e posso comunicar. Tomar
umas coisas pelas outras é uma habillidade do pensamen-
60 Arte Agora

to abstracto que me permite chegar a considerações ina-


baláveis, mas que não se aplica quando se insiste e confia
na vibração de si próprio.

O uso

Lembro-me de me ter aproximado da expressão


“para nada” pela necessidade de estabilizar um modo de
estar que encontrava difícil de se sustentar sem nome,
sem reconhecimento próprio dadas as linhas inscritas que
determinam a necessidade da contextualização, da objec-
tividade, da construção de algo para chegar a outro algo.
Este para nada aconteceu-me como um frio na barriga,
uma sensação com alguma coisa de desagradável que é ne-
cessário atravessar porque temos a confiança que o que
iremos experimentar a seguir vale a pena (semelhante à
sensação de entrar no mar quando a água, nunca suficien-
temente quente nos molha a barriga pela primeira vez.)
Na altura chamei-lhe atravessar o nada, penso agora que
talvez porque na minha concepção das coisas não consi-
derava ainda que me dirigia para ele, era mais esse nada
que se dava a conhecer se eu continuasse a existir nesse
lugar. Atravessar o nada é uma acção que reconheço pre-
sente cada vez que alguma coisa inaugural floresce na mi-
nha vida.
A partir da insistência no reconhecimento de atra-
vessar o nada fui-me apercebendo que os espaços entre os
factos da minha vida vinham agora mais ao meu encon-
tro. Não era tanto o que tinha de fazer às dez ou às onze
que me mobilizava a atenção, era tudo o que acontecia
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 61

em mim até que estivesse pronta para fazer o que tinha de


fazer às dez ou às onze. Atravessar o nada passou a ter um
lugar privilegiado na forma como me dirijo às coisas, co-
locando todo o meu corpo à escuta desse tal friozinho na
barriga que também me passou a dizer: “É por aqui! É por
aqui!.” E quando a barriga já se habitua ao frio da água,
quando a água de dentro era também de alguma forma a
água de fora, então aparece o mergulho – não o mergulho
de quem rasga a água na posse da evidência de que dois
corpos não podem estar no mesmo tempo no mesmo lu-
gar, e o mais “fraco” terá de ceder - mas de quem mergu-
lha porque a água já mergulhou nele proporcionando-me
o prazer de reconhecer que o que está a acontecer, num
tempo que não é linear, já aconteceu.
Acho que é o prazer do reconhecimento que o que
está a acontecer pela primeira vez também já aconteceu
que me levou a dizer “para nada” em vez de atravessar o
nada. Perceber que o não saber para o que é que me dirijo
tem um grau de concretude tão evidente que me permite
realmente endereçar-me profundamente a esse nada que
desconheço.
É nesta práctica de jardinagem que tenho observado
uma alteração na acção de usar. É que do exercitar de me
dirigir ao nada considero sinceramente que o quer que
chegue a partir dessa intenção será sempre um encontro
a meio caminho, um estar com o que me chega, negando
por princípio qualquer poder sobre o que chega. Percebi-
me então na incapacidade de usar. Não uma incapacidade
de saber retirar do objecto a sua funcionalidade, mas uma
impossibilidade de ao fazer essa acção não estar intima-
62 Arte Agora

mente presente um convite a que esse objecto acorde co-


migo na concretização dessa função.
Reconheço então que não tenho as coisas ao meu
serviço, sem que com isso esteja a dizer que estou ao ser-
viço delas. No espaço entre abrem-se possibilidades que
a dicotomia desconhece e a objectividade torna inclaro.

Lugares da Escrita

Na minha prática diária de escrever tenho encontra-


do, ao contrário do que seria de esperar, não a necessidade
de encontrar o significado específico das palavras para as
poder usar com mais autoridade, mas a evidência de que
existe um espaço interminável dentro de cada uma.
Nesta perspectiva tenho-me relacionado com a es-
crita de forma inaugural. Reconhecer a permeabilidade
das palavras permite-me dirigir para a escrita sem saber
o que ela é, e estranhamente esse movimento traz-me a
sensação de um íntimo respeito por ela...
Aparentemente numa escrita dessubjectivada das
coisas uma mesa é uma mesa e uma árvore é uma árvo-
re... pois eu atrevo-me a dizer que uma mesa nunca é uma
mesa nem uma árvore uma árvore: uma mesa é a mesa
que trago à comunicação a partir de determinado lugar
de mim própria que considera referir-se a mesa. Assim as
minhas palavras por mais concisas que sejam transportam
toda a infinidade de lugares de mim própria no momento
em são chamadas à acção por mim e ainda o lugar espe-
cífico de onde partiu esse dizer particular. Este reconhe-
cimento da imprecisão intrínseca das palavras tem-me
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 63

levado a apurar o ouvido sobre o lugar do outro de onde


estão a ser proferidas. E não é necessário que então as pa-
lavras para que sejam entendidas tenham de ser escuta-
das no momento em que jorram do seu “autor”. Tenho
notado que as palavras guardam o umbigo do seu nasci-
mento, mas são inteiras, e na sua inteireza trazem uma
presentificação que lhes permite romper a temporalidade
e tornar-se possível a relação com o lugar de si mesmo des-
se alguém que as ousou dizer... numa profunda conside-
ração pela palavra ela mesma. O lugar de si mesmo está
sempre lá predispondo-se a ser escutado, assim as palavras
não sejam tomadas como simples ferramentas de tradu-
ção estáveis de entidades objectivas.
Na tentativa de escutar o lugar do outro a partir
do qual as palavras se individualizam percebo que afino
igualmente os lugares de mim mesma onde essas palavras
se enraízam, que é onde a sua leitura pode efectivamente
ser feita. Neste sentido ler um texto é uma aventura que
envolve desbravar caminhos e considerar deformações
da percepção de mim mesma a partir da abertura desses
lugares onde em mim a leitura se pode realizar numa rela-
ção privilegiada (e num presente fora da linha temporal)
com o lugar aberto no outro pela proveniência das suas
palavras, dessa mesa, dessa árvore. Estes lugares não são
estáveis, pelo contrário revelam-se a si mesmos no mo-
mento de escrever/ler, tal como a onda ou partícula só se
configura numa forma no momento em que é vista... no
momento do encontro...
Esta prática tem-me permitido caminhar da objec-
tividade para a subjectividade sem me perder na auto re-
64 Arte Agora

ferenciação que trás consigo a impossibilidade de comu-


nicar o subjectivo. A sensação que tenho é que caminho
do objectivo para o subjectivo para encontrar o objectivo
mas a partir de uma outra consideração de objectivo...
não muito diferente da primeira mas desta vez não apoia-
da num conceito aprendido, mas ancorada numa experi-
ência real.
Afinar os lugares de mim mesma a partir dos quais
me dirijo ao mundo e ao mesmo tempo encontrar no
mundo a abertura de lugares desta natureza permite-me
um contacto íntimo com o que - se considerasse as coisas
em vez de os lugares - teria comigo apenas uma relação de
entendimento ou desentendimento, que uma vez etique-
tado passaria a ser guardado no meu arquivo para eventu-
almente reorganizar com outras situações.
Reparo que este labor de considerar os lugares de
mim própria que a escrita espantosamente me abre, pos-
sibilita formas de relacionamento que me retiram da ex-
pectativa de obter um significado para aquilo com que me
relaciono (jogo mental que me isola do real) e me abrem
uma infinidade de continuums possíveis entre mim e o
mundo. Parece-me uma prática útil para quem faz da arte
o seu ofício.
Projeto-processo-produto: uma
proposta evolucionista para rever
o projeto artístico

Helena Katz

Um campo científico se constrói na articulação en-


tre observação, levantamento de hipóteses, realização de
experimentos e compartilhamento de seus resultados.
Desse modo, produzem-se explicações que, mais adiante,
podem ser abandonadas em favor de outras, que as substi-
tuem. No processo de delimitação de saberes que vai sen-
do implantado com tais práticas, o projeto ocupa lugar
de destaque. Mais que isso: é o projeto que sustenta a es-
trutura hoje vigente nos diversos saberes. Ele é o que vem
antes, lançando para adiante, para o tempo chamado de
futuro, a realização do que propõe. Organiza-se em uma
lógica temporal sequencial e instaura-se como um agente
ordenador. Tal entendimento de projeto é hegemônico
e aqui se propõe identificar os comprometimentos dele
advindos, confrontando-o com uma concepção evolucio-
nista de projeto, de extração darwiniana e peirceana, que
questiona a lógica que o sustenta porque comprime a ab-
66 Arte Agora

dução a ponto de impedir que ela seja percebida como a


ignição para todas as descobertas. O objetivo é seguir na
direção de uma singularização do projeto artístico, liber-
tando-o de um modelo no qual não se abriga bem.
No mundo acadêmico, o projeto se constitui no fia-
dor da pesquisa, sendo tomado como o eixo legitimador
do conhecimento. O sucesso do seu modelo lógico pulou
os muros da Universidade e passou a pautar o viver em
sociedade, perpetuando um certo entendimento de tem-
po e de vida que vale a pena investigar. E a primeira ob-
servação a guiar o percurso que aqui se propõe é a de que
esse entendimento de projeto que hoje vigora pisoteia as
especificidades das áreas nas quais atua com um modelo
epistemológico ‘universalizado’ de existência, postulando
o que merece ser chamado de conhecimento. No mun-
do – e não somente no acadêmico – projetar é planejar.
O substantivo ‘projeto’ vem do verbo proicere, que, em
latim, quer dizer ‘jogar algo adiante’. O termo se compõe
de duas instâncias, agregando o prefixo ‘pro’ (algo que
precede no tempo) à ação indicada no resto da palavra
por ‘icere’ (que vem de outro verbo, iacere, e quer dizer
‘jogar’). Se a construção de um campo epistemológico
vem do projeto, que apoia-se na ação de planejar através
das regras que asseguram como ‘jogar algo adiante’, e essa
compreensão escorreu para a vida, cabe investigar quais as
implicações desse conceito de projeto nos papéis sociais
que dele derivam.
Lembremos que o projeto de pesquisa acadêmico
vincula três situações: o ato de planejar, a descrição do
ato de planejar e a realização do plano anunciado (ou a
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 67

explicação do(s) motivo(s) pelo(s) qual(is) ele não é re-


alizável). Em atividade de pesquisa, entende-se o projeto
como a ação indispensável para produzir aquele resultado
que está ‘jogado adiante’. Para atingí-lo, há que seguir as
etapas de uma estrutura lógica distribuída no tempo em
três momentos distinguidos e subsequentes. No primeiro
momento, vem a proposta do projeto; depois, a exploração
da(s) sua(s) hipótese(s), que serão testada(s), discutida(s),
confrontada(s), substituída(s), transformada(s) e, por
fim, comprovada(s) ou abandonada(s)/reproposta(s), de
modo a resultar(em) no que foi anunciado. Esses três mo-
mentos, que acontecem no tempo linear e sucessivo, são
nomeados de projeto, processo e produto.

Projeto é um empreendimento planejado que con-


siste num conjunto de atividades interrelacionadas
e coordenadas, com o fim de alcançar objetivos
específicos dentro dos limites de um orçamento e
de um período de tempo dados” (PROCHONW,
Schaffer, 1999 apud ONU, 1984).

Reduzido ao documento escrito que contém a re-


lação do conjunto de atividades a serem executadas e do
que se faz necessário para o seu desenvolvimento, o pro-
jeto circunscreve e contextualiza o que vai realizar, justi-
fica a sua necessidade/oportunidade, apresenta o corpus
teórico que ampara as suas proposições, descreve o(s)
seu(s) objetivo(s) e objeto(s), que meios serão utilizados,
quais os recursos necessários para atingí-los e como serão
obtidos, e também como se dará a avaliação do(s) seu(s)
resultado(s). Um projeto depende da correta identifica-
68 Arte Agora

ção do seu problema, do que ele envolve e do que o de-


limita. Muitas vezes, vem depois de um anteprojeto, um
estudo preparatório, da mesma família lógica do projeto.

“Entretanto, antes de redigir um projeto de pes-


quisa, alguns passos devem ser dados. Em primeiro
lugar, exigem-se estudos preliminares que permi-
tirão verificar o estado da questão que se pretende
desenvolver sob o aspecto teórico e de outros estu-
dos e pesquisas já elaborados. Tal esforço não será
desperdiçado, pois qualquer tema de pesquisa ne-
cessita de adequada integração na teoria existente e
a análise do material já disponível será incluída no
projeto sob o título de ‘revisão da bibliografia’. A
seguir, elabora-se um anteprojeto d pesquisa, cuja
finalidade é a integração dos diferentes elementos
em quadros teóricos e aspectos metodológicos ade-
quados, permitindo também ampliar e especificar
os quesitos do projeto, a ‘definição dos termos’.
Finalmente, prepara-se o projeto definitivo, mais
detalhado e apresentando rigor e precisão metodo-
lógicos” (MARCONI, Marina de A. e LAKATOS,
Eva M, 2006, pg.99).

A organização do projeto em um documento dis-


tribui o trabalho nas etapas a serem cumpridas, e torna
público o que se quer alcançar. Tal organiação permite:

a) identificar as principais deficiências que porven-


tura venham a ocorrer;
b) apontar possíveis falhas durante a execução das
atividades previstas;
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 69

c) superar tais entraves.

Não é aparente, mas já neste início de reflexão so-


bre o papel do projeto na sociedade, pode-se identificar
que as regras que determinam como deve ser estruturado
embutem ferramentas de controle bastante severas. A sua
divisão em etapas sequenciais e claramente descritas favo-
rece o exercício do controle, mas não somente o controle
da sua realização – que é como habitualmente as pensa-
mos. No centro desse controle encontra-se o conceito de
ordem atado aos de previsibilidade e de estabilidade. A
hipótese central aqui proposta é a de que foi esse concei-
to de ordem que passou a normatizar todo um modo de
viver em sociedade.
E quando se fala nesse tipo de ordem, é o momen-
to de lembrar que o físico austríaco Erwin Schrodinger
(1887-1961), Prêmio Nobel de 1933, disse (1967) que
a vida pode ser definida em função da segunda lei da ter-
modinâmica, aquela que diz que o mundo tende a um
estado mais desordenado porque a entropia (perda de or-
ganização) de qualquer sistema aumenta com o passar do
tempo. Numa tentativa de mostrar como a física quân-
tica pode ser usada para explicar a estabilidade da estru-
tura genética, escreveu What is Life? (O que é a vida?),
em 1944, tornando-se um dos precursores da biofísica.
Sugeriu que aquilo que os físicos nomeavam de salto, os
biólogos chamavam de mutação, e que, à luz da mecânica
quântica, seria legítimo admitir que um novo arranjo es-
trutural determinava o sucessivo desenvolvimento de um
organismo vivo.
70 Arte Agora

Apesar da descrição do nosso mundo como aquele


no qual a entropia aumenta com o tempo, a aparência das
coisas vivas continua a desafiar a perspectiva de que nos
encaminhamos para a morte térmica do Universo. Ou
seja, parece haver uma ordem se sobreimpondo à pers-
pectiva de sua perda. A vida parece escapar do aperto das
estatísticas.

“A flecha do tempo dada pela entropia – a perda


de organização, ou perda de diferenças de tempe-
ratura – é estatística e está sujeita a inversões locais
em pequena escala. O mais surpreendente: a vida é
uma inversão sistemática de entropia, e a inteligên-
cia cria estruturas e diferenças de energia contra a
suposta “morte” gradual por meio da entropia do
universo físico” (GREGORY, 1981, p.136)

O fato da vida conseguir surpreender nosso destino


termodinâmico colabora para se entender que o elo que
ata projeto e ordem deve ser questionado. Aqui será tra-
zida uma combinação entre o evolucionismo de extração
darwiniana e a semiótica peirceana para problematizar o
entendimento de projeto como instrumento da ordem
que objetiva o progresso do campo no qual se insere, seja
ele acadêmico, artístico ou civil e identificar os compro-
metimentos daí advindos.
A ordem representa um padrão, uma regularidade, e
o projeto, uma utilização desse padrão (a ordem) com um
propósito. Todo projeto trabalha com “limites relativa-
mente impenetráveis que coincidam com os limites epis-
têmicos de seus criadores” (DENNETT, 1998, p.223).
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 71

Uma vez que se organiza com as epistemologias praticadas


pelos seus autores, torna-se um poderoso instrumento da
sua disseminação. Não à toa, as regras que o ordenam se-
quencialmente nas partes que o constituem expõem, em
ponto aumentado, o que está consagrado como o saber no
qual se pode confiar. Ele deve ser fruto de uma lógica que
começa na descrição de um contexto, identifica nele um
problema, encontra um objeto no qual esse problema se
manifesta, formula uma hipótese a respeito do problema,
apresenta as razões pelas quais vale a pena resolvê-lo e diz
como o fará. Tudo isso, é claro, apoiado em pensadores
reconhecidos como autoridades confiáveis para lidar com
o tema da pesqusa. A característica que costura todas as
fases é a previsibilidade, o chão no qual se apoia este tipo
de sistema, mesmo quando abre espaço para situações não
inteiramente delimitadas e descritas. O que a experiência
vem demonstrando é que quando a situação não cabe no
projeto, faz-se outro, no mesmo molde.
Isto ocorre porque é a lógica causal que permeia
o modelo de projeto vencedor que sustenta a produção
bibliográfica sobre metodologia científica, e porque cada
projeto se insere em uma trilha composta por outros pro-
jetos já realizados, com um sentido de aperfeiçoamento
ou de superação, carregando a flecha do progresso. Mes-
mo a hopótese, não escapa dessa obediência.

“A hipótese é um enunciado geral de relações entre


variáveis (fatos, fenômenos), formulado como so-
lução provisória para determinado problema, apre-
sentando caráter explicativo ou preditivo, com-
patível com o conhecimento científico (coerência
72 Arte Agora

externa) e revelando consistência lógica (coerência


interna), sendo passível de verificação empírica em
suas consequências” (MARCONI, Marina de A. e
LAKATOS, Eva M, 2006, pg.161).

Compreendido o ambiente no qual o projeto vive,


torna-se possível identificar, na sua associação com o bi-
nômio ordem/progresso, um certo extrato lamarkista6.
Um acordo tácito no qual o projeto é uma espécie de
escada de aperfeiçoamento a ser galgada entre a hipótese
(um indicativo, uma idéia sobre, algo como uma sugestão
baseada em um diagnóstico) que soluciona provisoria-
mente o problema com o seu enunciado, até ser compro-
vada pelo produto que vier a apresentar.

“O projeto é uma das etapas componentes do pro-


cesso de elaboração, execução e apresentação da
pesquisa. Esta necessita ser planejada com extremo
rigor, caso contrário o investigador, em determina-
da altura, encontrar-se-á perdido num emaranhado
de dados colhidos, sem saber como dispor dos mes-
mos ou até desconhecendo seu significado e impor-
tância” (MARCONI, Marina de A. e LAKATOS,
Eva M, 2006, pg.99).

6. Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet, Chevalier de Lamarck (1744-1829),


naturalista francês, desenvolveu uma teoria da evolução que foi desacreditada
e vem passando por uma revisão, baseada em duas crenças: 1) a de que existe
uma tendência ao melhoramento constante, rumo à perfeição. Haveria uma
força externa agindo em linha contínua e progressiva, aumentando a com-
plexidade dos seres menos desenvolvidos até os mais desenvolvidos; 2) esta
tendência não atuaria sozinha na evolução, pois haveria também a lei do uso e
desuso que, conjugada com a transmissão dos caracteres adquiridos, provoca-
ria desvios na linha evolutiva.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 73

A hipótese é o que monta a escada para o processo que


resultará no produto. Ao ser formulada, formula junto o
processo necessário para o seu desenvolvimento. Tal afirma-
ção tem o propósito de explicitar que toda hipótese gera, a
partir de si mesma, o processo adequado para nele se abrigar.
Ou seja, o processo não vem depois, pois nasce junto com a
sua formulação. Para os que estranham, cabe destacar que
essa proposta depende do entendimento de passado-presen-
te-futuro em simultaneidade, fora da linearidade temporal-
sequencial que separa os três termos não somente em antes
e depois, mas sobretudo no antes que causa o depois. Para
quem não tem famiilaridade com essa simultaneidade soa
mesmo muito estranho dizer que o presente é o que o passa-
do e o futuro produziram até agora. Pode parecer estranho
atribuir ao futuro uma ação já aocntecida, manifesta no pre-
sente. Todavia, se a hipótese indica o modo como deve ser
realizada, isso quer dizer que o seu futuro desenvolvimento
se anuncia quando ela mesma se enuncia.

Epistemologias

A epistemologia foi popularizada por Bachelar nos


anos 30, mas vem de uma linhagem mais antiga. Episte-
mologia vem de episteme, termo grego que equivale, de
modo geral à ciência, embora Platão e Aristóteles desig-
nassem a ciência, que consideravam a forma mais elevada
de conhecimento, por theoria. Platão e Aristóteles consi-
deravam que a theoria era aquilo que descrevia a contem-
plação da realidade abstrata, ou seja, que a epistemologia
dizia respeito à metafísica.
74 Arte Agora

Um outro sentido de epistemologia vai surgir na


modernidade, e se refere à techné, ao conhecimento
produtivo, operacional, instrumental. Trata-se de uma
compreensão mais ampliada de epistemologia, que cobre
todos os saberes de interesses práticos, da mecânica à es-
cultura, à dança. É essa epistemologia distendida que está
sendo aqui considerada.
Em termos epistemológicos, podemos tratar o pro-
jeto como um modelo de entendimento de mundo que
consolida o racionalismo (quando baseados na dedução
como a lógica que traz novas descobertas) e o empirismo
(quando baseados na indução como a lógica que conduz
o particular para o geral). Com a escolha da dedução e da
indução como as formas de raciocínio confiáveis, o mode-
lo da ordem e do controle fica assegurado.
Além de ser necessário sublinhar a estrutura causal
que o projeto dissemina, vale lembrar também que não há
conhecimento separado dos atores sociais que o promo-
vem, e que diferentes modos de viver em sociedade pro-
duzem epistemologias distintas. Como se sabe, as relações
sociais são sempre culturais e políticas. Apesar disso, o que
continua a dominar a epistemologia é um entendimento
que não leva em consideração o contexto cultural e polí-
tico da produção e reprodução do conhecimento. Bem ao
contrário, vive em um mundo no qual todas as discussões
já realizadas em torno da ciência não ser a produtora do
conhecimento verdadeiro (e, portanto, universal) pare-
cem ainda não terem sido travadas.
Quando se lembra que todo corpo é corpomídia de
si mesmo (KATZ & GREINER) e que esse ‘si mesmo’ re-
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 75

fere-se a um corpo em fluxo contínuo de contaminações


com os ambientes por onde esteve e está7, compreende-se
o poder que este modelo de projeto tão disseminado tem
a aptidão de promover, em termos cognitivos, no corpo
que vive nos ambientes que deles nascem.

Lógica da abdução e processos de criação

O que tem movido o texto até aqui é o desejo de dei-


xar clara a existência de um certo modelo de projeto, cuja
acelerada disseminação em todos os campos profissionais
distribui um certo modo de pensar a vida que vem nos
pautando quando não estamos fazendo qualquer projeto.
Que esse modelo de projeto atua como um operador cog-
nitivo do mundo que ele representa.

“Modelos são parte de estratégias usadas para en-


tender estruturas e processos de evidências por
aproximações, através de descrições simplificadas
dessas evidências. Toda modelização envolve idea-
lização, simplificação, abstração e sistematização de
um fenômeno’’ (QUEIROZ, 2004, p.51)

O modelo de projeto aqui tratado apoia-se na de-


dução e na indução, mas ignora o primeiro termo da sua
tríade estruturadora. Pois é a abdução a chave que permi-
te o entendimento de projeto fora da ordenação sequen-

7. Para conhecer melhor a Teoria Corpomídia, consulte os textos de Katz &


Greiner em www.helenakatz.pro.br e os livros de Christine Greiner (2005,
2010) e Helena Katz (2005).
76 Arte Agora

cial-temporal que habitualmente o relaciona somente


à dedução ou indução. Com Peirce8, torna-se possível
compreender a abdução como uma ‘lógica da descober-
ta’, e isso se dá porque, além dela ser considerada também
uma forma de raciocínio, é tida como a única capaz de
produzir idéias novas. Apresentada como “o processo de
formar hipóteses explanatórias” (CP 5.171), a abdução é
conduzida por uma espécie de “instinto adivinhatório” e,
tratada como sendo uma estratégia de investigação.
Para os que levam em consideração a abdução, o mais
comum tem sido localizá-la somente na primeira etapa,
aquela responsável pela formulação da hipótese. Diferen-
ciando-se desse entendimento, o que aqui se pretende é
chamar a atenção para o fato de que a adbução faz parte
das três etapas do projeto (projeto-processo-produto),
com pesos e intensidades diferentes em cada uma delas.
Isso é possível quando se compreende que todas as formas
de raciocínio começam na abdução, sendo ela também
uma forma de raciocínio, e não aquilo que vai permitir
o raciocínio. A abdução está presente em todas as etapas
do projeto, pois é com ela que tateamos qualquer situação
ainda não descrita, ainda não formulada.
A adbução inicia o discernimento, uma habilidade
cognitiva que nos torna capazes de identificar, seja como
necessidade planejada ou como uma repentina reorgani-

8. Charles Sanders Peirce (1839-1914) formou-se em Harvard em fisica e mate-


mática. e em química na Lawrence Scientific School.. Deixou contribuições
em várias áreas do conhecimento: lógica, astronomia, geodésica, matemática,
teoria e história da ciência, econometria, psicologia, e especialmente semióti-
ca, sendo considerado o fundador da semiótica norteamericana.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 77

zação da experiência. O instante fugaz em que o discerni-


mento começa acontece em meio a uma grande quantida-
de de variáveis. E surge como um dentre inúmeros outros
possíveis jogos combinatórios.
O corpo está expostos a todo tipo de estímulos, em
um fluxo permanente que mistura o que vem de fora (fa-
tos do mundo, outros projetos…) com o que é corpo (a
coleção de informações que o constitui a cada momento).
Esse fluxo de estímulos produz as mais diversas contami-
nações, dentre as quais apenas uma nos encaminha em di-
reção ao produto que finalizará o projeto. O que nos car-
rega até ele é o cego “instinto adivinhatório” da abdução
e, como a maior parte dos estímulos casuais, esse também,
muito provavelmetne, ocorre em nosso inconsciente cog-
nitivo9. Não poucas vezes, não nos damos conta do que
exatamente nos conduziu ao resultado.

O projeto da evolução

A respeito da relação entre o projeto e o seu resulta-


do, Fodor descreve o tipo de situação que pode nos ajudar
a entender a proposta que está aqui sendo apresentada:

9. George Lakoff e Mark Johnson escreveram em 1999 Philosophy in the Flesh:


The Embodied Mind and Its Challenge To Western Thought, livro no qual
descrevem que as três maiores descobertas das ciências cognitivas são: a men-
te é corporificada, o pensamento é em parte inconsciente e os conceitos abs-
tratos são em parte metafóricos. O entendimento do inconsciente cognitivo
como parte constitutiva da consciência é fundamental para o processo de
construção do sistema conceitual mediado pela compreensão de mundo, no
qual a razão abstrata não é considerada separada do sistema sensóriomotor,
mas sim construída a partir da ação do corpo no mundo.
78 Arte Agora

“nada define onde termina a construção e começa o fun-


cionamento” (1987, p.103). Mas como acomodar a des-
crição de um fenômeno sem fronteiras completamente
delimitadas entre o planejamento da sua construção e o
início do seu funcionamento, com esse outro entendi-
mento de projeto, o de um roteiro ordenador de etapas
temporais subsequentes e responsáveis pela produção de
um resultado entendido como um novo tijolo na cons-
trução do progresso?

“Em uma pesquisa, nada se faz ao acaso. Desde a


escolha do tema, fixação dos objetivos, determina-
cão da metodologia, coleta de dados, sua análise e
interpretação para a elaboração do relatório
final, tudo é previsto no projeto de pesquisa. Este,
portanto, deve responder às clássicas questões: o
quê? por quê? para quê e para quem? onde? como,
com quê, quanto e quanto? quem? com quanto?”
(MARCONI, Marina de A. e LAKATOS, Eva M,
2006, pg.99).

Será possível manter o conceito de projeto para a si-


tuação no qual o acaso esteja estruturalmente incluído?
Lembremos que é a abdução que inicia os processos
de inferência que nos permitem caminhar pelo mundo. É
com a inferência abdutiva que não apenas iniciamos, mas
conduzimos um projeto. Os que entendem que o conhe-
cimento opera por um processo sempre provisório de va-
riação-seleção-adaptação, devem saber que a abdução não
se restringe somente a um primeiro e único momento,
mas que ela perspassa todas as etapas da sua formulação.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 79

Quando esse conhecimento é da natureza da descoberta,


aquilo a que Peirce chama de abdução infla a sua presen-
ça, embora participe também, em dose diferente, na for-
mulação dos outros tipos de conhecimento.

“O crescimento de nosso conhecimento é o resul-


tado de um processo bem semelhante ao que Da-
rwin chamou de ‘seleção natural’; ou seja, a seleção
natural de hipóteses: nosso conhecimento consiste,
a toda hora, nessas hipóteses que mostraram a sua
adequação (comparativa), sobrevivendo por muito
tempo em sua luta pela existência; uma luta com-
petitiva que elimina as hipóteses que são inadequa-
das” (POPPER, apud SIMONTON, 2002, pg.46)

Darwin explicou todos os frutos da evolução como


produtos de um processo algorítmico que nomeou de se-
leção natural, e o descreveu como um processo irracional
e mecânico. Essa idéia de Darwin

“fornece uma nova explicação para a origem, por


meio da acumulação gradual, de todos os Projetos
no universo. Desde Darwin, o ceticismo tem como
alvo a sua afirmação implícita de que os vários pro-
cessos de seleção natural, apesar da sua irraciona-
lidade básica, são suficientemente poderosos para
terem feito todo o trabalho de planejamento que se
manifesta no mundo” (DENNETT, 1998, pg.63).

É justamente esse tipo de planejamento ou projeto


que está sendo trazido aqui para dialogar com o projeto
ordenado na direção do progresso. Darwin nos oferece
80 Arte Agora

a explicação de que esse outro tipo de projeto está dis-


tribuído por toda a natureza, “sendo uma criação extre-
mamente única e insubstituível, que jamais poderia ser
exatamente duplicada em seus muitos detalhes” (DEN-
NETT, 1998, pg.546).

“O que é o trabalho do projeto? É esse maravilhoso


casamento de acaso e necessidade, acontecendo em
trilhões de lugares ao mesmo tempo, em trilhões de
níveis diferentes. E que milagre causou isso? Ne-
nhum. Simplesmente aconteceu, na plenitude do
tempo” (DENNETT, 1998, pg.546).

Charles Darwin propôs, em 1859, que um pro-


cesso cego, inconsciente e automático seria o responsá-
vel pela existência e pela forma de todos os seres vivos.
Como o processo não tinha mente, não possuía capaci-
dade de imaginar, não podia planejar nada com vistas
ao futuro. Se se pudesse pensar nesse processo como
sendo uma espécie de relojoeiro da natureza, ele seria
um relojoeiro cego. A seleção natural é o relojoeiro
cego que funciona por transformações graduais, passo
a passo, partindo de fenômenos suficientemente sim-
ples para terem surgido do acaso. (DAWKINS, 2001,
pg.23-24, 42).
Dawkins explica ainda que cada mundança sucessiva
no processo de transformação gradual que foi acontecen-
do, e que recebe o nome de evolução, também foi simples
o bastante, em relação à mudança anterior, para também
ter acontecido por acaso. O mais interessante nesse pro-
cesso, contudo, é que o fato desses passos cumulativos
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 81

terem sido produzidos ao acaso não significa que eles se


organizam em uma sequência aleatória.
A organização biológica é um bom exemplo de um
tipo de seleção cumulativa interessante para se pensar esse
outro tipo de projeto aqui proposto.

“Na seleção cumulativa, por sua vez, as entidades


“reproduzem-se” ou, de alguma outra maneira, os
resultados de um processo de peneiragem são inclu-
ídos na peneiragem seguinte, cujos resultados, por
sua vez, passam para a próxima, e assim por diante.
As entidades sujeitas à seleção ou classificação ao
longo de muitas gerações, sucessivamente. O pro-
duto final de uma geração de seleção é o ponto de
partida para a próxima geração de seleção, e assim
por muitas gerações” (DAWKINS, 2001, pg. 76-
77).

E aqui temos dois pontos a considerar com mais cui-


dado:

a) a distinção entre acaso e aleatoriedade, pois ela


nos remete ao fenômeno da abdução;
b) a seleção cumulativa, pois nos enreda, por uma
associação por semelhança na descrição de como ela se
processa, no fenômeno da semiose.

O fenômeno que o projeto está sistematizando com


a sua idealização, simplificação e abstração, é o fenôme-
no da semiose. Entendendo-se a semiose como a relação
entre os três termos necessários, suficientes e irredutíveis
82 Arte Agora

que, segundo Peirce, constituem o seu processo (signo é o


primeiro termo, objeto é o segundo, e o terceiro é o inter-
pretante), pode-se inferir que essa relação se faz em uma
relação triádica entre signo, objeto e interpretante que é
irredutível, no sentido de que não pode ser decomposta
em outra relação mais simples. Por ser processual, envolve
tempo, o que faz da semiose um processo irreversível.

“…por semiose quero dizer (…) uma ação, ou influ-


ência, que é, ou envolve, uma cooperação de três
instâncias, tais como o signo, seu objeto e seu inter-
pretante, uma influência trirrelativa que não pode,
de modo algum, ser resolvida na forma de ações en-
tre pares (CP 5.484).

Proceso irredutível entre signo-objeto-interpre-


tante, a semiose pode ser entendida como um processo
de significação. Para tal, é necessário primeiro esclarecer
porque semiose e informação podem ser associadas, e que
as noções de significado, informação e semiose se apro-
ximam e se distinguem, ao longo da obra de Peirce. A
semiose (informação) acontece nesse processo de depen-
dência triádica, sendo o processo através do qual um obje-
to é comunicado para um interpretante através da media-
ção de um signo que ocorre em determinado momento.
Antes de prosseguir, é necessário lembrar que, para
Peirce,

“(…) aquilo que é comunicado do objeto, através


do signo, para o interpretante, é uma Forma, o que
equivale a dizer:
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 83

não é nada como um existente, mas é um poder, é


o fato de que alguma coisa aconteceria sob certas condi-
ções” (MS793, 1-3, apud QUEIROZ, 1999, pg. 155).

E se é a semiose o que instancia as cadeias de tríades


aqui descritas, ela não pode ser pensada como uma tríade
em si mesma. Vale lembrar que “a ênfase de Peirce não
se dá sobre o conteúdo, a essência ou a substância, mas,
mais propriamente, nas relações dinâmicas” (MERRELL,
1995, pg. 78). Sendo um continuum, a semiose nos faz
perceber que a cadeia signo-objeto-interpretante não es-
tanca no interpretante, uma vez que cada interpretante
de uma cadeia participa também de uma outra cadeia.
Encadeamentos contínuos de cadeias.
A compreensão da semiose como um processo con-
tínuo de tríades nos impede de considerar que um pro-
jeto consitui um ponto zero em um processo investiga-
tivo. Quando projetamos, não estamos em uma origem.
Todo início de projeto pode ser lido como o momento
que inaugura um processo local em um fenômeno já exis-
tente. Essa inauguração se dá a partir de uma espécie de
“intuição lógica”, a abdução.

Projeto epistemologicamente evolucionista

A reação entre crenças consolidadas e novas enun-


ciações é, com frequência, a de rejeitar o que está fora
dos nossos hábitos perceptivos. Sempre que isso se dá,
instaura-se o pensamento religioso, aquele que se carac-
teriza por não rever a sua posição porque, ao ser fundado
84 Arte Agora

pela crença, nela permanece. O pensamento religioso nos


impede de perceber que a cada vez que algo é substituído
por outro algo, o que se ganha é, de imediato, uma melhor
compreensão do que foi substituído.
Além disso, o processo de substituição passa a ilu-
minar focos que permaneciam até então obscuros e que,
por terem sido iluminados, começam a estimular outros
experimentos e outras observações. Os resultados que daí
vão surgindo acomodam-se no movimento de trocas que
vai desenvolvendo o campo no qual a troca se deu.
Não se discorda hoje que a teoria da relatividade e
a mecânica quântica nos fizeram compreender com mais
profundidade a física newtoniana. Albert Einstein, à prin-
cípio, não aceitou a teoria quântica porque ela era pro-
babilística e não-local, características que violavam a sua
intuição a respeito do mundo. Mais adiante, contudo, de-
cidiu aceitá-la como provisória, por não se permitir igno-
rar os sucessos que a teoria quântica estava amealhando.
A proposta aqui inicialmente rascunhada ambicio-
na colaborar com o entendimento de que projeto pode
ser tratado um dispositivo cognitivo de características
evolucionistas, costurado pela abdução em todos os seus
momentos de realização. A diferença principal está na
questão temporal, uma vez que o projeto e seu resultado
acontecem juntos. O resultado está presente de partida,
já se encontra vislumbrado, delineado e ‘designado’ no
modos como é anunciado o projeto. É tão real como o
processo necessário para produzi-lo.
Projeto, processo e produto ocorrem em simultanei-
dade. O que pode ainda faltar quando o projeto se inicia,
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 85

é o tempo para que o real se torne existente. E na ação de


transformar o real em existente não de deve esquecer da
necessidade de preservar a diversidade epistemológica –
estratégia alternativa à subscrição subserviente de alguma
epistemologia dominante produzida pelas práticas colo-
niais que se consagraram no mundo acadêmico.

“A pluralidade epistemológica do mundo e, com


ela, o reconhecimento de conhecimentos rivais
dotados de critérios diferentes de validade tornam
visíveis e credíveis espectros muito mais amplos
de ações e de agentes sociais. Tal pluralidade não
implica o relativismo epistemológico ou cultural
mas certamente obriga a análises e avaliações mais
complexas dos diferentes tipos de interpretação e
de intervenção no mundo produzidos pelos dife-
rentes tipos de conhecimento. O reconhecimen-
to da diversidade epistemológica tem hoje lugar,
tanto no interior da ciência (a pluralidade interna
da ciência), como na relação entre ciência e outros
conhecimentos (apluralidade externa da ciência)”
(SANTOS, 2010, pgs.18-19).

Espectros amplos da pluralidade são inspirações e


expirações indispensáveis a quem faz o conhecimento
avançar. Praticar a simultaneidade entre projeto-pro-
cesso-produto costurada pela abdução pode, quem sabe,
libertar os projetos artítiscos da moldura do modelo se-
quencial e causal de projeto que normatiza o conheci-
mento acadêmico, conferindo-lhes a singularidade hoje
tão ausente quanto necessária.
86 Arte Agora

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Parte 3
Sobre estar e ocupar
Texto sem nome às voltas do
corpo na cidade

Paula Petreca

Pensar o corpo na cidade não é uma tarefa que se


esgota em considerações borradas de aspectos sociais,
humanitários, políticos, filosóficos e até mesmo estéti-
cos, artísticos... Aproximar-se de um corpo e observá-lo
onde quer que ele esteja implica o desprendimento de
encontrar resoluções que dêem conta de explicar o que
não se compreende enquanto organização de formas ou
de conceitos. O corpo que atravessa a vida é trepidante e
vai oscilando entre trânsitos para dentro e para fora tão
complexos quanto a própria enunciação da Antropofá-
gica. A Antropofagia é um conceito fundado na arte bra-
sileira do período modernista por Oswald de Andrade
(1928). Sua teorização compreende um modelo de exis-
tência que ultrapassa a lógica da inclusão. Nesse âmbito,
aquilo que é percebido como exterior à experiência cor-
poral é também logo reconhecido em sua condição de
sujeito, isto é, como corpo. Desta forma, o processo de
92 Arte Agora

integração de uma natureza corporal externa à experiên-


cia de corpo que se compreende enquanto ser, demanda
um ato extremo de incorporação: a canibalização. Atra-
vés da canibalização o corpo alheio passa a integrar e exis-
tir no corpo do sujeito, tornando-se também ele próprio.
Os locais do um e do outro mostram-se então incontor-
náveis. Fluidos. Nosso encontro com o mundo acontece
em fluxo. Pouco interessa delinear sentidos quando os
caminhos se movem fora do alinhamento das direções.
No trânsito alinear das partículas às informações que nos
chegam desavisadamente e se aderem ao nosso corpo são
logo deglutidas, vomitadas, aderidas, transpiradas, neces-
sitadas, resistidas, embaralhadas... Integrar o mundo-em-
movimento a volta não é algo que simplesmente o corpo
faça, mas é algo do qual o corpo participa. E eis um local
de profunda incerteza: quando a participação é ação que
não nasce desrelacionada mas antes, emerge das próprias
circunstâncias articuladas com todo-o-resto (whatelses),
o corpo pode se atrapalhar todo, ver-se aflito, pôr-se em
guerra, colapsar... Embora instabilidade, transitoriedade
e processualidade sejam palavras tão cotidianas em toda
discursiva da pós-modernindade, a experiência encarnada
dessa complexidade na vida talvez confira lugares menos
etéreos ao corpo e um tanto mais em chaga. E falo disso
em voz própria.
Muitas vezes a percepção daquilo que estou a inte-
grar e do que estou a trazer para a integração são locais tão
permeáveis que configuram apreciações completamente
borradas. Não canso de posar minhas mãos espalmadas
sobre algum lugar de mim que calhe, e me surpreender
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 93

com a infinidade de idéias que uma de minhas mãos pode


ter em relação a um local outro da pele... Muitas vezes
confundíveis com as idéias que um trecho de pele qual-
quer pode ter da palma de uma das mãos... Às vezes um
canto de um dedo toca a curva de um braço e observo que
há fronteiras entre as minhas próprias peles, um espaço
entre o que eu sou e o que eu sou que é tão tênue e des-
conhecido quanto o espaço entre a pele do meu dorso e a
superfície do chão sobre qual estou deitada. A descoberta
deste espaço-entre anuncia uma protuberância na instân-
cia do desconhecido. Uma passagem na qual se parecem
aliviar os contrastes do que é o um... O outro... Ambos...
Todos... E até o que não se nomeia... O que não se agar-
ra... São paisagens que se fluidificam. Não é mais possível
ter os reconhecimentos em locais estanques, não ouvir
as paisagens que se interceccionam, estranhar as hélices
do DNA que se recombinam. O modo de ser do corpo
– uma organização em movimento - explicita que o trata-
mento das questões que concernem ao constante criar-se
de si próprio, tem uma elaboração relacional de partida. E
nesse agenciar de ser móvel, fluível, relacional e afetável o
corpo invariavelmente dança como forma de trazer à sua
carne essa experiência enredada do mundo.
Todas informações que nos cruzam implicam ad-
ministrações dotadas de princípios próprios de organiza-
ção e requerem-nos um sentido de percepção e conduta
abrangente. Esta consideração é fundamental para acep-
ção do constante transformar necessário à manutenção
da vida. E tratar de manutenção neste caso não signifi-
ca estancar uma matéria sem permitir-lhe se reorgani-
94 Arte Agora

zar, perecer, fazer-se outra. A insistência do perseverar


é obra dotada de movimento, é realização imparável, é
continuada revolução. No corpo atento a sua condição
de vivo, manter-se pulsando é militância. O corpo mili-
tante move-se em acordo com a expansão do presente, na
intranquilidade da persistência. Esta inquietação despida
de embate e afrontamento, tem modos de ação dispostos
ao concílio. E aqui também conciliar não implica acato
ou passividade, mas um posicionamento móvel que tenha
no deslocar e no repropor estratégias de ligação a alter-
nativas, a perspectivas tangenciais, a articulações inaugu-
rais... Operar deslocamentos habilita movimentos e pode
até ambientar revoluções. São gestos de flexibilidade. Ou
posturas maleáveis. Um bailarino sempre pronto para a
dança.
A dança pode surgir aqui como experiência para
pensarmos a implicação emancipada que estar no mun-
do constitui. Entre comprometer-se e agir com liberdade,
na dança talvez se torne possível perceber como é que no
corpo tais resoluções não se embatem. Pois dançar é práti-
ca de relação. Dançando o corpo conhece a si próprio, ao
outro, ao espaço, ao mundo. E as ações que este corpo re-
aliza enunciam claramente diferentes níveis destas com-
preensões. Tendo em conta que o ato de dançar é porta
para o conhecimento, para a reflexão, então é importante
perceber que àquilo que a dança faz – por exemplo em
seus gestos e deslocações - imprimem no espaço qualida-
des circunstanciais de relação com o mundo. A realiza-
ção dos movimentos que fisicalizamos enuncia escolhas
perante este mundo e a forma como o percebemos. E são
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 95

essas percepções que realizamos - os embodiments (“tor-


nares-corpo”) que possibilitamos serem observáveis em
nossos corpos - verdadeiras manifestações que mediam
às conformações de nosso estar e do organizar do mun-
do, numa perspectiva de implicação mútua. Ao trazemos
nossa atenção para os embodiments, para as informações
que cada corpo permite que sejam configuradas enquanto
pessoa, fica notável que todas as ações e gestos de nossos
corpos terão uma dimensão política. Uma vez que os mo-
vimentos que se realizam no nosso corpo provocam em
nós e em nosso entorno a realização de acontecimentos,
atos e gestos; como ignições que são potenciadores de
mudança.
Fosse possível mapear a configuração de um gesto fa-
zia-se claro que há um onde em que começa o movimento
- uma enunciação de uma vinculação com o que nos cerca
e com o local em que se está, indicando latências e poten-
ciais de relacionamento, de comunicação... Desta relação
com o local talvez se pudesse observar escolhas relativas a
rumos de deslocamento dos corpos; planos de direciona-
mento no espaço; quantificação de atividade envolvida em
cada ação; ligações corporais operando encontro; engaja-
mento presencial envolvido; uma série de circunstâncias
imprevisíveis e impossíveis de serem listadas, e entretanto,
implícitas, ou denunciáveis em cada nova interação... A
natureza de um gesto decorre de especializações inume-
ráveis mas que evidenciam princípios organizacionais que
comportam suas escolhas. Uma ética própria.
Numa perspectiva astronômica de observação essa
reflexão em torno das escolhas e posicionamentos éti-
96 Arte Agora

cos e políticos diante de nosso estar no mundo, poderia


ser contemplada por atitudes muito básicas de nossos
corpos, movimentos que se configuram em nós a tempo
todo: alinhar, atravessar, recuar, manter, mudar, subir,
descer... Atitudes destas que estabelecem qualidades de
relação com o espaço, trazendo um contexto ideológico
claramente relacionado ao ambiente que cooperam no
configurar. Os comportamentos que nos tomam nessa
operação são também cristalinos. Diante de um confron-
to eu me afasto ou avanço? Negocio ou desvio? A pró-
pria gestão espacial dos corpos é matéria efervescente de
reflexão no que diz respeito aos modelos que temos de
propriedade, de partilha e de noções comuns.
Nas cidades o lugar do corpo não é território ame-
no nem carnificina; por mais que o corpo urbano pareça
deambular vago – em suas rotas há imensa hipótese de
tanger tanto o desassossego dos trânsitos e dos percursos
incessantes quanto o desespero da ocupação e os cansaços
confinantes. Entre os ímpetos de assentar ou de mover há
dinâmicas complexas de aproximações e distanciamen-
tos que escancaram o modo como os afetos se criam... As
desligações operadas nas rotinas e os assolares de pânicos
ante aos deslocamentos contextuais que nos assaltam po-
dem representar sintomas de uma dessensibilização para
a capacidade afetiva de nossos corpos, de sermos de um
instante para o outro completamente arrebatados, trans-
formados. Mais perspicazes ou não às relevâncias que
cada informação que nos perpassa opera, vivenciamos
nitidamente estes atravessamentos, e uma documentação
possível desta experiência talvez seja o que se corporifica
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 97

em nossos gestos. Nos gestos há marcas que se imprimem


no espaço e descrevem acontecimentos, quer em ato ou
em latência.
Neste sentido, o corpo de cada cidadão pode se pro-
nunciar no que diz respeito a si mesmo, a sua família, a
sua rua, ao seu bairro, a sua comunidade, a sociedade em
que vive, ou ao sistema global que o comporta... O que o
corpo vai sendo é ato de mobilização, é ação de comuni-
car. E essa comunicação antes da expressão numa fala ou
num gesto já está manifesta (mesmo que indicialmente)
quer na organização da carne, quer no arsenal dos sinais
que essa organização imprime no espaço. Por exemplo,
o corpo que habita uma cidade revela em seus modos
de configuração as propriedades do entorno que o alo-
ja. Esses traços, entretanto, não emergenciam inscrições
forjadas insujeitadamente pelo espaço, pelo território ou
pela sociedade... Pois o corpo não é um território passivo
à mercê de cartografações aleatórias operadas por agentes
exteriores diversos que o encontrem. Para observarmos
os corpos em seus trânsitos e rotinas pelas cidades penso
ser preciso dispor de uma compreensão que já conceba
de partida a relação mutuamente constitutiva de corpo
e ambiente... Uma reflexão que parta do princípio do co.
Co (do lat. cum) é uma partícula etimológica de emprega-
ção habitualmente prefixa, que traz o sentido de com. Só
posso conceber uma hipótese de configuração de mundo
atenta para o caráter diáfano do corpo se predisposições
ao acompanhamento, à partilha e ao contato e encontro
forem possibilidades tangíveis, palpáveis; pois o corpo
não é dado circunscrito, não existe sem articulações, sem
98 Arte Agora

integrar relações, irradiações... Pernas e braços... A estre-


la. Ou o caracol.... No constante expandir e concentrar
do corpo é impossível não se afinar à pulsação do agre-
gamento sensível persistente mesmo no mais escapável
dos alcançares, como o movimento vertiginoso da fita de
Moebius a remeter a si próprio à mesma vazão que um dia
lançava sem retrocesso ou interropimento... Descobrir no
paradoxo a sombra onde mora o movimento.
É certo que em dada altura do urgir urbanístico, a
dinâmica espacial abafou os interconteres convertendo-
os em devir de análise, de setorização, dotando a ênfase
na especificidade. Nas acepções mais restritas e apura-
das... Entretanto tal exercício muitas vezes privou-se de
arejamento e de transformação. Em tanta rigidez muitas
distancias foram se criando. O corpo foi se partindo e se
inscrevendo como distância. Seus locais de estada foram
germinando travessias. A vida foi tornando-se saga. E a
sobrevivência desesperada luta... Os corpos e seus espa-
ços se fundamentaram como mediadores de tensão. As
oposições e incompatibilidades forjaram sensores mais
apurados. No panorama da caótica urbanidade, a cida-
de se instaurou como campo de extermínio. Como local
onde a segurança precisa ser buscada e agarrada. O corpo
dos trânsitos foi estancando, foi deixando de passear...
Em São Paulo as avenidas largas permitiam a circulação e
trânsito de pessoas instalando uma velocidade tão frené-
tica no ambiente que atravessar a cidade de uma ponta a
outra parecia ser um ímpeto impresso no ar... Entretanto,
com a acelerada concentração de pessoas no decorrer das
décadas, e seu conseqüente multiplicar na aquisição de
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 99

veículos automotivos, as avenidas de São Paulo parecem


ser cada vez mais um território absorvido pelos carros. Os
caminhantes têm seu espaço de rua restrito às margens
das calçadas, e aos espaços regularizados para a travessia.
Ainda assim, no direito adquirido de habitação das ruas
pelos carros, em algumas avenidas o corpo foi mesmo re-
tirado do asfalto, tem de cruzar as pistas pelas passarelas
suspensas no ar, ou pelos túneis cravados sob a terra. Os
trânsitos se intermediam de obstáculos. Não há hipóte-
se de contemplação de espaço sem a segmentação de um
abrir e fechar enquadrando cada travessia. Tal qual os
episódios de subida e descida que se dramatizam na con-
figuração dos degraus sucessivos de uma escada. Nos per-
cursos entrecortados superar o estresse da cisão demanda
imensa determinação. Na rua o corpo precisa de coragem.
O corpo instalado num ambiente elucida em si mes-
mo escolhas, que na relação intrínseca com este entorno
alteram-no, representando ações. À medida que estas
ações se tocam, mapeamentos espaciais e humanos tor-
nam-se evidentes e fica visível o comportamento que este
corpo descreve em relação a este espaço. O modo como
este compromisso se realiza é determinado pelo corpo,
que em suas propriedades, capacidades e aptidões realiza
procedimentos incessantes de tornar-corpo, de incorpo-
ração, de embodiment... Uma investigadora dos estudos
do corpo e do movimento, a senhora Bonie Brainbridge
Cohen nos anos 80 já dizia que através dos tornares-corpo
(embodiments) estamos a realizar seleções diretamente
ligadas às propriedades do sentir, isto é, do perceber o que
algo é no corpo. Neste sentido, quando conhecemos uma
100 Arte Agora

informação e a incorporamos nós precisamos saber tam-


bém o que é que não somos (e o que não incorporamos).
E assim vamos criando relações que vão transformando o
espaço abstrato em espaço vivido - um lugar qualificado
através da experiência. A experiência do espaço recon-
figura a apreciação genérica desse local para um âmbito
específico que se traduz num mapa pessoal de percepção.
No efetuar dessas reorganizações ocorre entretanto pro-
dução de sentido em rede, na qual o formular de decisões,
juízos perceptivos, seleções e categorizações, age em res-
posta ao que contata de modo relacional, se constituindo
na mútua interação corpo-ambiente.
O modo como os sentidos são produzidos na inte-
gração da informação envolve agenciamentos em multi-
perspectiva, enredados numa trama complexa que se es-
pecializa à medida que estabiliza formas de comunicação
com o entorno. Estas comunicações podem se fazer ma-
nifestar quer pelo estabelecimento de hábitos, quer pela
operacionalização de rotinas, ou por outros modos de
administração de vínculos cadenciados que se criam com
onde se está. O emergir de dispositivos como hábitos, pa-
drões, formatos e cartografias não é simples produto de
recorrências. Esse estabilizar de tendências apropriadas a
um modo de interação específico se reitera à medida que
repetições se intensificam, inscrevendo locais mais aptos
à visitação desde a facilidade de identificação de seus aces-
sos. Um corpo que por exemplo reduza suas experiências
de estar deitado aos atos de dormir, tomar banhos de sol,
ler ou ver televisão provavelmente terá reações de maior
espanto ao ter alinhados seu crânio, tórax e pélvis fora do
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 101

eixo vertical... Os hábitos que o corpo incorpora vão des-


de estas experiências mais orgânicas até às acepções mais
intelectuais. Às vezes quando estou na rua fico a tentar
apenas estar ali, percebendo o espaço sem estabelecer ló-
gicas de organização que façam sentido às dinâmicas dos
eventos. Mas me costuma ser difícil não coreografar os
pingos de chuva... Há organizações do espaço ao redor de
mim que minha presença no espaço co-produz, sem que
eu possa controlar. E sem que eu perceba, já me vejo a não
assustar pombos, a contar aviões, a alinhar com os postes
ou a sentar nas superfícies que mantenham minhas me-
ninges em paralelo com meu diafragma e chão pélvico…
Não realizo estes atos a cumprir tarefas. É da implicação
com onde estou que me engajo na sinfonia... Não exerço
comandos, mas lhes dou espaço.
Sinto que para comunicar (ou fazer arte..., ou dan-
ça..., ou continuar vivo...) é impossível não estar a criar
um corpo. E um corpo cria-se do que é, do que vive, do
que vai sendo... Do que vai temporariamente estabilizan-
do. Estas estabilizações são comportamentos que operam
aprendizados, e articulam o modo como estas experiências
viram corpo. As adaptações que a coexistência mobiliza e
as reações urgentes e menos previsíveis que se processam
no tornar-corpo, fisicalizam-se com maior visbilidade ou
não na realização de embodiment. O rigor do modo de
organização como esta experiência em nós se localiza é o
que determina então possibilidades de referir ou revelar
especificidades de relação entre corpo e lugar.
Mas nas diversas maneiras de o corpo manter se
vivo, relacionando-se com o espaço, e integrando as in-
102 Arte Agora

formações disponíveis, como é que se denotam as parti-


cularidade interativas que tornam possível singularizar
contextualizadamente a produção corporizada dessas
organizações? Como situamos um modo de conduta
específico à textura do lugar em que um modo de ser se
conformou?... Nas minhas práticas pedagógicas tenho
observado que o trabalho de corpo habilita escutas de
organizações do movimento intimamente relacionadas
com a percepção do corpo no espaço. Por isso, constan-
temente costumo propor alterações no ambiente de tra-
balho, e algumas vezes até deixamos o espaço privado do
estúdio e vamos para a rua testar as mesmas propostas e
observar que adaptações em nossa atenção, que alterações
em nossa presença e que transformação na configuração
de cada gesto podemos acompanhar em seu acontecimen-
to em nós. Esse reconstelamento de uma prática focada
à escuta de cada corpo relacionada com experiências co-
tidianas promove deslocamentos de percepção. Habilita
que relações mais abrangentes sejam feitas na escuta do
movimento, na pertinência da seleção de um gesto espe-
cífico para uma situação. Promove que a emancipação do
corpo se emergencie desde um contexto de exposição em
que as mediações são ainda mais inimagináveis. Às rela-
ções com as quais o corpo se sintoniza e as escolhas que
faz tornam claras à relação com a vida, ninguém irá correr
para debaixo de um carro a menos que saiba ser possível
administrar o tempo e o espaço ocupado para intervir na
rua e transformá-la sem fissuras. Penso que nesta escuta
do que é possível e ao mesmo tempo inaugural é o espaço
interstício onde tem nascimento a poética. Uma prática
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 103

afetiva que emerge do adequamento das escolhas, de um


carinho a um eleger que desloca ouvindo ainda todas as
relações potentes. Um ato de reorganização do possível.
Um gesto que ressoa.
Ciência, arte e conceito de
Umwelt

Jorge de Albuquerque Vieira

I - Introdução

Ciência e Arte são formas de conhecimento que par-


tilham um núcleo comum, aquele que envolve os atos de
criação. Tanto artistas quanto cientistas só conseguem
ser efetivamente produtivos quando o ato de criação li-
bera-se em meio à todas as dificuldades, que podem ser
externas, provocadas por perturbações no meio ambien-
te, ou internas, associadas ao perfil e história psicológi-
cos dos criadores. Essas formas de conhecimento diferem
basicamente na hipótese filosófica gnosiológica adotada,
consciente ou inconscientemente, pelos seus praticantes.
Em média, a maioria dos cientistas adota, como
ponto de partida, uma hipótese gnosiológica que pode
ser expressa como objetivismo realista crítico, ou a crença
em uma realidade externa que pode ser independente de
sistemas cognitivos nela imersa (Bunge, 1976: 319). Na
106 Arte Agora

busca da captura dessa realidade, a Ciência torna-se co-


nhecimento controlado e público, relativo à construção
de esquemas conceituais ou representações que reflitam
com alguma isomorfia aspectos da organização objeti-
va do mundo. O controle, ou a crítica, tenta minorar a
subjetividade carreada pelo relativismo individual, sendo
inicialmente exercido pelo indivíduo através do Método
Científico e, em uma fase posterior, pelo experimento in-
tersubjetivo que consiste na comunicação de seu trabalho
à comunidade e críticas que esta possa realizar.
Já o conhecimento artístico tem a maior liberdade
de explorar não somente a realidade, mas o que pode-
ríamos chamar de possibilidades do real. Sabemos que,
no caso da Ciência, a maior evidência a favor da hipó-
tese realista é a eficiência dessa forma de conhecimen-
to, que nos permite sobreviver e agir sobre a realidade.
Por outro lado, sabemos também que toda e qualquer
forma de conhecimento tem por base a necessidade de
sobrevivência do sistema cognitivo, ou, na linguagem da
Teoria Geral de Sistemas, a garantia da Permanência. Se
a ciência torna-se quase que otimizada pela busca da per-
manência, a Arte tem ampla atuação e valor, no sentido
de trabalhar alternativas quanto à realidades possíveis.
A estratégia de avaliar possibilidades da e na realidade
também é fundamental para a permanência do sistema
cognitivo.
Nesse caso, o que é sugerido é que a evolução do cé-
rebro, um produto dessa realidade, possa estar contendo
índices de traços da mesma, que se manifestam como es-
sas alternativas, possivelmente associados aos sistemas ce-
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 107

rebrais mais básicos. Nesse caso, o conhecimento artístico


seria efetivamente anterior àquele científico.
O que desejamos discutir neste momento é uma ou-
tra característica comum dessas atividades criativas, que
é a interface desenvolvida ao longo da evolução entre o
sistema cognitivo e a realidade. Uma interface que per-
mite adequar as diferenças que surgem na realidade ao
comportamento do sistema vivo, de modo que este últi-
mo possa manter um comportamento coerente com as
características do real e assim sobreviver ou permanecer.
Um sistema complexo adaptativo.
O que chamamos aqui de diferença é a base onto-
lógica do conceito de informação. Informação como
diferença, que pode ser entendida como objetiva e/ou
como aquela que é percebida e elaborada por um sistema
cognitivo, logo com um certo teor de subjetividade. Di-
ferenças podem estar associadas às distribuições espaciais
na organização de um sistema ou podem surgir ao longo
do tempo, na evolução de alguma propriedade do mesmo.
Nesse último caso constituem os sinais, sistemas também
organizados de alta temporalidade, que acabam gerando
os sistemas fenomênicos parcialmente percebidos por al-
gum sistema receptor.
É visível que a citada interface é responsável pela
adequada codificação das diferenças originadas na reali-
dade com a eficiência necessária para a sobrevivência: é o
domínio onde ocorre talvez a parte mais sofisticada das
produções sígnicas e dos processos de semiose. Trata-se
da Umwelt de uma espécie viva.
108 Arte Agora

II - O Conceito de Umwelt

Sistemas tendem a permanecer. Tendem a durar


no tempo e para isso têm que evoluir. Uma condição
fundamental para isso é que sejam sensíveis aos seus am-
bientes, porque as crises que podem comprometer suas
permanências vêm do ambiente e da posterior ressonân-
cia destas com crises internas aos sistemas. Não somente
sensíveis mas ainda com a capacidade de estocar informa-
ção gerada pelas diferenças provindas da realidade e de
elaborar, adequadamente, essa forma de memória. Sensi-
bilidade, memória e elaboração sígnica são os elementos
fundamentais para um sistema ser cognitivo.
A evolução dotou os sistemas cognitivos de formas
elaboradas de sensibilidade: quando o ambiente é pertur-
bado, essa perturbação chega ao sistema e é por ele per-
cebida, por meio de dispositivos sensíveis às mudanças
ou perturbações mais importantes para aquele sistema
específico. Essas interfaces dependem assim do que o am-
biente fornece e do estágio de complexidade em que se
encontra o sistema cognitivo. Os humanos desenvolve-
ram uma forma ótima de sensibilidade, a partir da visão.
Esta é possível a partir de dispositivos que constituem
nosso sistema visual, que são sensíveis à radiação eletro-
magnética refletida das coisas que compõem o ambiente
e então essa radiação captada é sucessivamente traduzida
em códigos sofisticados: uma primeira tradução converte
a intensidade dos fótons em sucessão chegando ao olho,
por meio de células especializadas chamadas cones e bas-
tonetes, em um código bioquímico, que por sua vez gera
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 109

um novo código na forma de “trens” de pulsos elétricos


que propagam-se pelos nervos e chegam à um setor cere-
bral, o centro visual, onde são de alguma maneira de novo
codificados em uma rede neuronal, o que nos dá a sensa-
ção e idéia de “ver” .
Outros transdutores são capazes de produzir vários
códigos coerentes a partir de sinais diferentes, ou seja, em
vez do fluxo de fótons, podemos ter moléculas em sus-
pensão gerando o olfato e a sensação de cheiro, uma ava-
liação química feita nas papilas linguais gerando o paladar
e a sensação de gosto, ondas mecânicas sonoras são per-
cebidas por uma membrana oscilante chamada tímpano
que fornece códigos que acarretam a audição e a sensação
de som, células especiais que percebem variações de pres-
são por contato e acabam por gerar o tato e a sensação de
textura, e possivelmente formas sutís de sensibilidade que
envolvem essas formas básicas. O domínio da percepção e
todas as suas implicações.
Sistemas vivos cognitivos diversos acabam por ter
formas de sensibilidades também diversas, função dos
ambientes e das histórias. Assim, peixes têm uma forma
de tato muito elaborada, graças à orgãos sensíveis à pe-
quenas variações de pressão na água, dispostos nas laterais
de seus corpos, que permitem que façam movimentos de
profunda coerência quando em cardume; ou ainda, co-
bras vêm a radiação infravermelha que nossos olhos não
percebem, morcegos sobrevivem basicamente emitindo e
captando sinais de ultrasom, radares naturais... a Nature-
za encontra-se farta desses exemplos de interação com o
seu ambiente complexo.
110 Arte Agora

Um biólogo, Jakob von Uexkull (Uexkull, 1992),


estudou essas formas de interação e imaginou que cada
espécie viva sobrevive como que envolvida por uma “bo-
lha” particular, que a acompanha aonde for, que é a sua
maneira particular de perceber a realidade e adaptar-se
à permanência. Essa interface, essa “bolha”, que começa
em processos puramente físicos (fotons atingindo células
materiais) e termina em processos altamente sofisticados
e sígnicos (conceitos, idéias, sistemas de idéias que são
teorias) é a chamada Umwelt, palavra que é aproxima-
damente traduzida como “o mundo à volta”, o “mundo
entorno” ou ainda o “mundo particular” . Alguns auto-
res a traduzem como o “mundo subjetivo” de uma espé-
cie viva. Não concordamos com isso, pois os objetos da
subjetividade já são o resultado das codificações e de ou-
tros fatores complexos como os sentimentos e emoções,
quando o conceito de Uexkull implica uma ponte objeti-
va com a realidade.
Como um exemplo, vemos que astronomos são sis-
temas cognitivos que têm uma Umwelt predominante-
mente visual, apoiado em um código de base eletromag-
nética, com ênfase em uma faixa de frequências chamada
“janela do visível”. É a partir dessa forma de filtragem
imposta por essa “bolha” específica que eles olham o Uni-
verso e tentam entende-lo e explicá-lo. Mas astrônomos
são humanos e representantes de uma espécie viva que
atingiu uma notável complexidade, para o bem ou para
o mal (por vezes parecendo mais para o mal...). Uma das
características dessa complexidade é a capacidade de criar
signos em seus sistemas cognitivos a partir daqueles, mais
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 111

básicos, gerados pela percepção. Conseguimos criar siste-


mas de signos, idéias, que explicam coisas além da nos-
sa mera percepção. Como resultado disso, percebemos
que nossa Umwelt biológica é limitada e que consegui-
mos criar dispositivos, extrasomatizações, que refinam e
expandem a ação dessa Umwelt. Astrônomos acabaram
assim criando telescópios e rádiotelescópios, como refina-
mentos de nossa capacidade visual, assim como detetores
de partículas e tentativas de deteção de ondas gravitacio-
nais, que são diversas em comportamento das eletromag-
néticas.
Somos capazes, os humanos, de refinar nossa
Umwelt. Da mesma forma, geofísicos trabalham com
sismógrafos que dilatam a sensibilidade do tato, quími-
cos têm dispositivos que avaliam com precisão elevada
a distribuição de moléculas suspensas no ambiente, etc.
A ciência tem seu sucesso quando se mostra eficiente em
refinar a Umwelt da espécie. Mas o que a evolução e con-
sequente permanência exigem é, além desse refinamento,
que a Umwelt seja dilatada.

III - A Dilatação da Umwelt

É preciso avaliar no contexto descrito o que signi-


fica o conhecimento humano e nele, os conhecimentos
científico e artístico. Presos em nossa “bolha” de Umwelt,
tentamos acessar uma realidade em princípio muito dis-
tante, que nos chega sempre parcialmente por meio de
uma sucessão de traduções ditas intersemióticas, ou seja,
entre vários sistemas de signos. Não deixa de ser notável
112 Arte Agora

que consigamos olhar para o céu e dizer que determinado


pontinho de luz, perdido no espaço e no tempo, é uma
esfera de gás muito aquecido, tão aquecido que nele os
processos eletromagnéticos competem e podem vencer os
puramente mecânicos, que essa esfera é tão quente e den-
sa em seu núcleo que isso provoca a ocorrência de reações
termonucleares que emitem radiação de dentro para fora
e que esta consegue equilibrar o empuxo gravitacional de
fora para dentro...
Não vemos nossa estrela, tão de perto quanto nosso
Sol, e muito menos campos eletromagnéticos ou gravi-
tacionais, ou ainda reações termonucleares... só vemos
luz, e mesmo assim de uma forma muito restrita... De
uma maneira ainda desconhecida, nosso cérebro tornou-
se tão complexo que é capaz de criar representações da
realidade oculta, tão brilhantes e estranhas que são ver-
dadeiras ficções. Se um astrofísico fala em “plasma co-
rotacional perturbado entorno da estrela de neutrons”,
qualquer pessoa não treinada nessa forma de pensar
não vai entender o que ele quer dizer nem com que di-
reito o faz. E no entanto, segundo filósofos como Hans
Vahinger, foi a evolução e nossa eterna necessidade de
permanência que nos obrigou ao desenvolvimentos dos
transdutores adequados aos ambientes específicos, às co-
dificações intersemióticas, à geração em nossos cérebros
de determinadas representações, que são ficcitícias sim,
mas são tão eficientes que permitem que nossa interação
com a realidade seja executada com sucesso. Ou seja, se
essa “ponte” não existisse, não estaríamos aqui discutin-
do o problema.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 113

Podemos dizer que o ser humano ou qualquer siste-


ma cognitivo cria o mundo mas não podemos esquecer
que essa é uma criação que tem que ser coerente com uma
realidade, para garantir nossa sobrevivência. Um ato de
criação que tem que “acertar” com aquilo que já existe e
está fora de nossas cabeças. É a busca do acerto ótimo e
eficiente que caracteriza a ciência. Mas nossa complexida-
de é grande, podemos criar alternativas diversas, das quais
só uma ou algumas terão a necessária coerência. Quando
estamos trabalhando com as possibilidades do real, então
fazemos Arte.
Toda ciência avançada, e isso inclui muitos tópicos
da Astrofísica, só avançam exatamente quando produzem
notáveis ficções. Essa é a fase chamada ciência represen-
tacional, posterior à fase fenomenológica (Bunge, 1976:
546). Aqueles que estudam essas formas sofisticadas de
conhecimento científico percebem como o cientista, nes-
se momento, é o artista em ação. Da mesma forma que
um artista, ele explora as possibilidades que podem levar
à uma coerência com a realidade “externa”.
As ficções então geradas, no sentido do ficcionalis-
mo de Vahinger (Vita, 1964: 94) têm que ser coerentes
com a realidade, o que é a garantia de sobrevivência. Mas
como acessar uma realidade complexa, mais complexa do
que aquela sugerida pelo nossa Umwelt particularizada
pelo jogo sempre inesperado das crises evolutivas? Como
manter o nível de coerência exigido?
O que temos conseguido fazer hoje em nossa fase
atual evolutiva é criar, projetar signos hipercomplexos
que representam sempre mais do que aquilo que é carrea-
114 Arte Agora

do pelos signos decorrentes da interação mais direta entre


nossa Umwelt e a realidade. Voltando ao exemplo da As-
tronomia, só podemos olhar de longe as estrelas. Mesmo
como os mais possantes telescópios, rádio telescópios e
os mais diversos detetores de radiação eletromagnética,
o que acessamos é alguma forma de luz, pontos lumino-
sos, dos quais só aqueles na chamada “janela do visível”
são acessíveis à nossa percepção mais biológica. Não nos
adianta tanta tecnologia: ela só refina nossa Umwelt. Ne-
cessitamos, para manter nossa complexidade atual viva,
dilatar essa interface.
E o conseguimos. Descobrimos (seja lá qual seja o
significado dessa palavra) que podemos construir um dia-
grama (um tipo de signo) bidimensional na forma de um
espaço com dois eixos ortogonais e marcamos nestes, res-
pectivamente, valores medidos de luminosidade e cores
estelares. Essas propriedades são conectadas à proprieda-
des mais internas às estrelas, como temperatura e tama-
nho. Os pares de medidas criam pontos nesse espaço (um
tipo de espaço de estados) que refletem a história evoluti-
va de um sistema de estrelas. Surgem regiões, nesse espa-
ço, ocupadas por estrelas em evolução “normal”, como o
Sol, estrelas nascendo, como as T Tauri, estrelas maduras,
como as gigantes vermelhas, estrelas morrendo, como as
colapsadas... manchas, ilhas de integralidade evolutiva-
mente demarcadas, permitindo inclusive o cálculo de ro-
tas de evolução e o tempo gasto nessas rotas. O diagrama
HR, da Astrofísica.
O importante nessa construção é que ela não pode
ser “lida” nos dados observacionais: o diagrama nasce do
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 115

ato de criação dos cientistas, em sua capacidade de lidar


as diferenças informacionais e elaborar sistemas signicos
complexos que mantêm coerência com a realidade. Na
verdade, a escolha e o projeto desses espaços de estados é
uma forma talentosa, artística, do fazer científico. E com
isso vemos além do que o permitido pela Umwelt bioló-
gica, mesmo aquele refinado pela tecnologia.

IV - Arte e Realidade

É comum que as pessoas concluam que só a ciência


preocupa-se com a realidade e que a arte é uma forma
livre de atuar, dentro de um domínio estético, como se
isso fosse algo fora de certas necessidades. Na verdade, em
certas situações, a arte costuma ser até considerada supér-
flua, uma espécie de luxo desnecessário e pessoas sempre
acabam por enfatizar os aspectos práticos do viver e a tec-
nologia que nos dá poder sobre o real.
Como consequência torna-se “justificado” desva-
lorizar o trabalho (e o salário) dos artistas, como se não
fossem tão necessários assim. No entanto, como dizia An-
toine de Saint-Exupéry (1982: 45),

“Insisto, mais uma vez, que são de desprezar estas


tribus que recitam os poemas de outrem e comem
o trigo de outrem ou mandam vir arquitetos para
lhes edificarem as cidades. Só merecem um nome:
sedentários. E não consigo descobrir ao redor deles,
semelhante a uma auréola, a pulverulência do trigo
que se malha”.
116 Arte Agora

E mais adiante:

“Eu ví dançarinas comporem suas danças. E a dan-


ça, uma vez criada e dançada, não serve para conver-
ter em provisões. Ninguem pode ficar com o fruto
desse trabalho. A dança passa como um incêndio.
E, no entanto, eu considero civilizado o povo que
compõe as suas danças, muito embora não haja para
as danças nem colheita nem celeiros. Ao passo que
chamo bruto ao povo que alinha nas prateleiras ob-
jetos nascidos do trabalho de outrem, por muito fi-
nos que sejam e por muita capacidade que esse povo
revele para se inebriar com a perfeição deles”.

A questão real é que arte é forma de conhecimento


e todo conhecimento é função vital, todo conhecimento
garante vida e complexidade. Desvalorizar o artístico é
matar, em altos níveis de complexidade, nossa Humani-
dade. Insistimos aqui: a Arte é o tipo de conhecimento
que explora as possibilidades do real. Não nos basta acre-
ditar em uma certa realidade, temos que aprender os ca-
minhos complexos para tentar atingí-la, e temos que fa-
zer isso para sobreviver, não só em corpo, mas nos signos
que já somos capazes de produzir e extrasomatizar, além
das necessidades biológicas.
Consideremos os trabalhos e a evolução dos mes-
mos em artistas como Dalí, Picasso, Miró e tantos outros.
Como Van Gogh e Mondrian. O que eles pintavam? Inu-
tilidades do ponto de vista da tecnologia, com um certo
valor muito subjetivo do que chamamos estética? Não.
Sabemos que eles faziam qualidade, e que essa qualidade
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 117

permite explorar e entender códigos visuais, básicos para


nosso entendimento da objetividade e que, muitas vezes,
tornam-se “descobertas” científicas. Consideremos ainda
o notável trabalhos de desenhistas registrando detalhes
de peças, em Antropologia, Arqueologia, Botânica e Zo-
ologia, etc, como formas mais redundantes e gramaticais
do que as fornecidas pela fotografia e filmagem, um no-
tável filtro de complexidade de que nosso corpo é capaz.
Da mesma forma, os músicos estudam a organiza-
ção temporal dos sons, com toda certeza desvendando
as sutilezas de códigos sonoros que nos acompanharam
desde primórdios evolutivos e do surgimento de nossas
formas de comunicação oral; os bailarinos exploram, até
hoje, configurações de espaço-tempo, processo que deve
ter sido iniciado desde nossa fase como bichinhos simples
e vivendo em um meio aquoso... todos os tipos de artistas
continuam explorando a realidade, o Universo.
Bem, com algo mais: com qualidade. Da mesma
forma, a boa ciência envolve a qualidade do ato criativo
científico. O belo modelo. A equação elegante. O experi-
mento sofisticado.
Acreditamos assim que o conhecimento artístico,
como aquele científico, também atua, talvez com mais
flexibilidade e vigor, embora não tão eficientemente, na
dilatação da Umwelt da espécie humana.

V - Considerações Finais

Arte e Ciência são formas de conhecimento produ-


zidas ao longo de todo um processo evolutivo. E como
118 Arte Agora

formas de conhecimento, têm a função de garantir a per-


manência dos sistemas, não só os humanos. Nesse senti-
do, a arte parece anteceder em muito a ciência podendo
estar associada às fases cerebrais anteriores ao surgimento
do complexo neocortical. A história da evolução humana
é uma história de evolução da arte.
Mas da mesma forma como os seres humanos fazem
arte e dependem dela, os animais e plantas também vi-
vem, de uma certa maneira, em um contexto estético, que
tem função importante nos processos biosemióticos típi-
cos da Etologia e da Ecologia. Acreditamos assim que o
domínio da estética não é só humano, encontrando raizes
na objetividade do real. Nesse sentido, justificar o estéti-
co objetivo seria um dos temas de uma Semiótica nitida-
mente peirceana, pela adoção de conceitos típicos dessa
linha, como Sinequismo (Ibri, 1992: 62).
A preocupação de Uexkull ao dimensionar o concei-
to de Umwelt era evitar falhas dos cientistas na aplicação
do método científico, basicamente o erro de interpretar
o comportamento de um animal a partir do comporta-
mento nitidamente humano. Um erro que seria cometi-
do por muitos antropólogos, ao avaliar um povo desco-
nhecido pelos costumes e valores de seu povo de origem.
Parece-nos claro que nossa complexidade já adicionou
uma Umwelt psicológica, social e cultural àquela biológi-
ca, pela expansão da chamada noosfera e todo nosso atual
arsenal comunicacional e semiótico. Nesse sentido, é im-
portante, como feito e proposto por Uexkull, que pense-
mos na possibilidade de uma diversidade de Umwelten
dentro de nossa espécie, com diferenciações que podem
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 119

estar presentes, inclusive, nas habilidades neurológicas


que caracterizam os cientistas e os artistas ou mesmo em
subclasses internas à esses segmentos. Estilos artísticos,
habilidades empíricas ou teóricas, etc., podem ser índices
dessas diferenciações.
Mas o que gostaríamos mais de enfatizar é a neces-
sidade de perceber os níveis de complexidade do real, já
que sem isso dificilmente poderemos sobreviver em uma
realidade complexa. E dentre esse mapa complexo enfati-
zamos que o papel do artista é de importância incontestá-
vel e que devemos evitar ou pelo menos estar preparados e
alertas para todos os mecanismos de desvalorização, sem-
pre usados para a dominação, que são utilizados contra
nossa complexidade e, em particular, contra esse papel.

VI - Bibliografia

Bunge, M. (1976). La Investigacion Cientifica. Barcelona: Edi-


torial Ariel.
Exupery, A. S. (1982). Cidadela. Rio de Janeiro: Ed. Nova
Fronteira.
Ibri, I. A. (1992). Kosmos Noetos. São Paulo: Ed. Perspectiva.
Uexkull, T. (1992). A Stroll Through the Worlds of Animals
and Men. Semiotica (Special Issue), Berlin, 89-4.
Vita, W. L. (1964). Introdução à Filosofia. São Paulo: Ed. Me-
lhoramentos.
Considerações sobre uma arte
fora do mercado

Marta Traquino

Uma arte fora do mercado será uma arte que não se


vende.
Será uma arte que se dá.
Toda a arte, qualquer que seja a sua expressão, dá-se
sempre de algum modo. Dá-se a ver, a ler, a ouvir, a expe-
rienciar. Enquanto objecto ou como quando mais desma-
terializada, no caso da dança, da performance ou da mú-
sica, por exemplo. Mas no considerar aqui o ‘dar-se’ por
diferenciação e desvio do ‘vender-se’ está em causa algo que
simultaneamente antecede e se estende para lá do modo de
apresentação em si. Algo que evolverá da tomada de de-
cisão do artista em fazer com a exclusiva intenção de dar.

(a pensar: o que significa ‘dar’?…)

O ‘dar’ no sentido de ‘lançar de si’ para ‘dar lugar a’.


Quando o artista abre uma via para a expressão que pro-
122 Arte Agora

porciona espaço aberto ao estar e agir de outros. Como


quando uma pessoa se dá a outra, abrindo em si espaço
para que esta nela tome lugar. Não deixando ambas de ser
quem são mas sendo através de uma visão que, por per-
correr as distâncias, se torna mais ampla. Como quando
se conversa, podendo até acontecer quando não se espera
que aconteça.
Proponho então que uma arte fora do mercado será
uma arte conversável. Não apresentará uma visão unilate-
ral mas antes disponibilizará espaço a um possível centro
de convergência, uma possível estação para a coexistência
do diverso. Assim, a imprevisibilidade será condição da
sua natureza. Característica que não é conveniente nem
desejável ao mercado da arte, pois a previsibilidade de
movimentos dos que nele se movem não está apta a lidar
com o que não espera. Uma conversa, se aqui tiver lugar,
será sempre entre parceiros.

(a pensar: o que significa ‘conversar’?…)

Pensando em centro de convergência lembro-me de


um dizer do filósofo Agostinho da Silva, numa das cartas
que dirigiu ao seu amigo José Flórido, sobre a necessidade
de tudo ter um centro e que quanto mais diversa e indi-
vidualizada for a periferia melhor será. Ideia em afinidade
com as reflexões sobre a virtude do vazio do filósofo Lao
Tse, onde escreveu que trinta raios convergem para o cen-
tro mas é o vazio do centro que faz avançar a roda.
Relaciono também a ideia de uma arte conversável
com a ideia de vida conversável a que Agostinho da Silva
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 123

se referia, defendendo a colocação do ‘e’ onde o ‘ou’ se


encontrasse. Falo então de uma prática na arte que será
espaço para o encontro de singularidades individuais. O
mesmo é dizer que será uma via para a comunicação.

(a pensar: o que significa ‘comunicar’?…)

Neste sentido, a arte conversável será uma arte sem


forma definível, porque nela muitas formas são potencial-
mente possíveis. Deriva de um certo modo de fazer que é
em si uma proposta de um caminho percorrível por quem
o quiser percorrer, sendo que entre caminho e caminhan-
te não haverá distinção. Como tal, não será possível cap-
tar um estilo desta arte, o que é conforme a uma posição
fora do mercado pois a vitalidade deste depende de apa-
rencias típicas localizáveis.
Nas vanguardas artísticas do século xx encontram-se
nos percursos da desmaterialização da obra de arte, do ob-
servador participante e da morte do autor, da exploração
criativa do acaso e do efémero (consequentes da procura
de fusão entre arte e vida, dando ênfase ao processo e à
experiência) exemplos de que mesmo de uma arte sem
forma permanente é possivel elaborar um estilo. A do-
cumentação intencional de propostas deste âmbito tor-
nou-se ela mesmo vendável, como é o caso da fotografia
de performances ou do registo vídeo de obras de carác-
ter processual, ou ainda do registo audio de instalações
ou eventos sonoros. A sua análise e interpretação podem
levar a identificar e construir um estilo. Assim, parado-
xalmente a documentação pode dar um corpo fixo à im-
124 Arte Agora

permanência desejada da forma. Mas para uma arte desta


natureza significará a venda da sua documentação que ela
própria é vendável?
Um estilo será sempre delimitado. A sua prática li-
mita a liberdade de movimentos. Uma arte conversável,
porque lhe é intrínseco o passar de lado a lado, não pode-
rá ser identificável por um estilo. Não representa, antes
propõe e acolhe. Revela-se enquanto acção e revela pelos
modos de acesso a si. Como arte que se dá, realiza-se pela
sua recepção. O dar e o receber são actos complementares.

(a pensar: o que significa ‘receber’?…)

Mas que espaços possíveis existem nas vidas de hoje,


sobretudo na cultura ocidental, onde possamos dar ou
receber o que é da ordem do imprevisível e da forma in-
definível?
Lembro-me aqui de algumas das reflexões do escri-
tor Junichiro Tanizaki no seu ensaio “Elogio da Som-
bra”, ao procurar entender as diferenças entre os olhares
ocidental e oriental pelo modo como cada um destes se
relaciona com a luz e com a sombra. No desenho de um
jardim, onde o primeiro priveligia um amplo relvado, o
segundo prefere um pequeno bosque sombrio. Nivela-
mento ou irregularidade. Imaginemos os efeitos do per-
curso da luz, com os seus jogos de sombras, em cada um
destes ambientes…
As ideias podem ser vendáveis mas não se pode ven-
der o exercício do pensamento. Assim como não se ven-
de o movimento do corpo, embora os corpos se possam
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 125

vender. Uma arte fora do mercado será uma arte que não
move dinheiro, será uma arte a mover pensamento livre
onde o momento em que o intraduzível acontece se pode
suster, assim como desejamos que aconteça quando senti-
mos o prazer de um encontro.

(a pensar: o que significa ‘encontro’?…)

Dar, conversar, comunicar, receber, encontro.


Uma arte fora do mercado será uma arte de persis-
tência que se pratica em estado de atenção.
Não sei se as galinhas vão ter
dentes, mas sei que as palavras
vão ter de criar músculos

Graça Passos

No início dos anos 60 o pensamento pós-moderno


investiu no questionamento da organização hierárquica
das companhias de dança e na democratização do corpo.
Esboroam-se as barreiras entre os bailarinos e não bailari-
nos e integram-se os movimentos do quotidiano. A dan-
ça aproxima-se da vida real e incorpora-a como material
de trabalho desinstitucionalizando o movimento. O cor-
po que dança deixa de ser moldado, deixa de ser passivo
para se tornar um corpo que pensa.
Esta mudança iniciou a proliferação de uma grande
diversidade de formas ecoando a diversidade dos corpos
dos seus criadores e desembocou , no final da década de
70, na Nova Dança Europeia - Francesa, Belga, Holan-
desa e Inglesa- que em Portugal se desenvolveu no final
dos anos 80(1). A Dança Contemporânea Portuguesa
nasceu pujante, fadada com os dons da curiosidade, di-
versidade, generosidade e lucidez. Engendrou uma gran-
128 Arte Agora

de diversidade de estruturas profissionais -macrocorpos


- para materializar as suas múltiplas invenções nas áreas
da criação, programação e formação(2) corporificando a
sua potência de vida. Estes macrocorpos polifuncionais e
transdisciplinares, muito eficientes , organizados à volta
de um artista tiveram a capacidade de partilhar recursos
com outros criadores e de criar um espaço próprio ampla-
mente reconhecido a nível nacional e internacional.
Nesta dinâmica surgiu o CENTA, um projecto atí-
pico vindo da produção cultural, para apoiar a criação
contemporânea através das residências artísticas. Esta
estrutura deu apoio aos projectos da geração de 80 e
das que se seguiram até ao seu encerramento, em 2009.
O meu envolvimento nesta estrutura, ao longo de vinte
anos, permitiu-me acompanhar e participar no pulsar
desta comunidade.
O estreitamento de relações entre macrocorpos
afins criou a generosidade e a energia necessárias à gesta-
ção de uma organização supra-associativa – a REDE - As-
sociação de Estruturas para a Dança Contemporânea(3) ,
em 2002 . Eis que este jovem tecido profissional gera um
megacorpo . Este salto de complexidade abre um imen-
so espaço de liberdade em que o fatalismo não tem porta
para entrar e os limites impostos pelos políticos sempre
cegos e prepotentes não têm concretude. A própria com-
plexificação cria outra realidade!
Paralelamente a estes acontecimentos o CENTA,
criado na expectativa de dar corpo a uma estrutura hori-
zontal com capacidade de amplificar a vibração da Vida
através do apoio à criação de outras realidades operada
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 129

pelos artistas, estava a transformar-se progressivamente, a


nível microscópico, numa estrutura hierárquica com uma
dinâmica cada vez mais similar à de um centro cultural.
A consciência deste lenta metamorfose colocou a
questão inevitável : provavelmente útil na construção de
uma relação mais próxima do público com a Cultura, com
tudo o que a utilidade transporta, seria o centro cultural
uma forma aceitável para ser parida por uma comunidade
prenhe de vitalidade?
Considerando que a parte interessante dos centros
culturais – o contacto com as obras e os artistas - é anulada
pela parte desinteressante. Os centros culturais estão para a
Arte como o alfinete para a borboleta - a Arte perde a vibra-
ção da Vida, perde soberania, é apeada das alturas para se ir
transformando em mais um bem de consumo cuja fruição
é apenas mais um escape para suportar a “vidinha” que “so-
mos obrigados” a viver. Ali, no centro cultural, a possibili-
dade da Arte ser um estímulo para fortalecer as nossas asas
e levantar voo para o Infinito está fora de questão.
Para além disso o hiato entre a intenção (palavras)
e a concretização (forma) conseguida ao longo de vinte
anos de trabalho fez com que a estrutura fosse deixando
de ser motor de criação de novas formas de vida para se
tornar, cada vez mais, motor de reprodução das dinâmi-
cas instaladas - hierarquia, perpetuação do poder, afirma-
ção da natureza elitista da Arte e da Cultura como sinal
de status, do consumismo, da fragmentação e da homoge-
neização, agentes, todos eles súbditos obedientes, ao ser-
viço do controlo e da quantidade - reis (quase absolutos)
a nível planetário.
130 Arte Agora

O CENTA, de instrumento operado, ameaçava


tornar-se operador de condicionamento em função da
“eficácia”, do profissionalismo, do acatar das regras ins-
titucionais, do investir na imagem, do estabelecer estra-
tégias para parecer “bem”, da rentabilização de meios, do
manter a credibilidade,… Esta estrutura transformou-se
num “morto-vivo”, morreu e ninguém deu conta!
Quando é que isto aconteceu? No exacto momen-
to em que a diversidade das possibilidades de “vir a ser”
foi cristalizada na forma hierárquica. O interesse destes
macrocorpos consiste na sua capacidade de trazer à con-
cretitude outras formas de vida. A possibilidade de se re-
duzirem a dispositivos de promoção pessoal, máquinas de
reprodução de poder, encerra o risco da sua auto-destrui-
ção arrastando consigo os níveis de complexidade a que
estão ligados
Estes “corpos” raros só conseguem desenvolver-se
na tensão continuada do desejo de alargar limites, de ace-
der a outras realidades, de expandir o real ad infinintum.
A história da metamorfose do CENTA é comum
a várias as estruturas culturais que não conseguem man-
ter a vibração do risco e a embriaguez da Vida. São estes
morto-vivos que nos seduzem para o saltitar, “em trânsito
permanente para parte nenhuma” (5).
O hiato entre a palavra e acção cristaliza a vida, ma-
tando-a. A palavra e a acção precisam de estar ligadas. As
palavras têm de criar músculos!
É isto que o c.e.m tem vindo a ensaiar, estando (ape-
nas) verdadeiramente onde está. Sediado na R. dos Fan-
queiros, no centro de Lisboa, trabalha ali com as pessoas
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 131

e os lugares, densificando redes de relações que se tornam


pontos de outras cartografias. Fazer caminho caminhan-
do, exercitar continuadamente o músculo da curiosidade
nascente e tornar estes movimentos tão vitais e naturais
como os da respiração. Aqui a selvajaria é a acção quoti-
diana, vinte e quatro horas por dia, de ser-se apenas o que
vai aparecendo. Tentar caber no que “deveria” ser está
fora de jogo. Nutrir o pensamento/corpo do seu entor-
no, tecendo continuamente a “ligação com”: quotidiano,
pedras, árvores, pessoas, ciência, filosofia, escrita, artes so-
noras, artes plásticas…, não dando “chão” às sementes da
fragmentação, sempre presentes. Este é o exercício diário
que alimenta encontros fortalecendo a singularidade de
cada um. A acção é o ponto de partida, é o lançamento
dos dados, não há pré-conceitos intelectuais, os concei-
tos organizam-se na caminhada. Há um questionamento
permanente, uma mutação contínua – não há fórmulas,
não há receitas, não há “parecer bem”.
Muito complexo, organizado em torno da investi-
gação artística, o c.e.m tem a flexibilidade conferida pela
consciência das suas relações com o mega, o macro e o
micro, conseguindo auto-gerar a sua energia. É pois um
corpo pleno de vida, potente, em que o “baixar os braços”
está fora de questão, não por uma postura heróica/revo-
lucionária, mas porque baixar os braços já é estar “morto”,
não faz parte da natureza da Vida. A intenção (palavras)
e a concretização (forma) caminham a par, sem hiatos,
sem tecidos mortos de permeio, sempre na tensão da per-
gunta, e é exactamente isto que o torna único no seio das
outras estruturas profissionais da Dança e Transdiscipli-
132 Arte Agora

nares em Portugal. O corpo que pensa é já um corpo total


ligado ao entorno, ligado ás pessoas e lugares que habita.
O salto de qualidade que urge acontecer neste início
do século XXI requer palavras musculadas proferidas por
um corpo total e elas já estão aí. - Será que as queremos
ouvir?
Parte 4
Sobre viver e conviver
Arte e soberania

José A. Bragança de Miranda

«Quando nem sequer a música é capaz de salvar-


nos, um punhal brilha nos nossos olhos; já nada
nos sustém, a não ser o fascínio pelo crime».
Cioran (Silogismos da Amargura)

I. Arte e política

Embora o séc. XX tenha dramatizado excessivamen-


te a relação entre a arte e a política, o que estava em causa
era decisivo, remetendo para a crise instaurada na moder-
nidade, que abalou a síntese da vida que vigorara desde
os gregos até à época da teologia política medieval. Por
ilusória que fosse, tal síntese era necessária10. Em contra-

10. De facto na história não existem «erros», pois nela impera a facticidade
do «acontecido», do efectuado. Como afirma Carl Einstein: « Once the
cement binding human beings to their environment—namely, God—had
136 Arte Agora

partida, a modernidade caracteriza-se pela dissonância,


pela fragmentação do agir em esferas relativamente autó-
nomas, como a política, a arte, a ciência, a ética, mais uma
infinidade de sectores, de subsectores e de segmentos que
partilham a rendibilidade geral da vida. De certo modo,
arte emerge dessa explosão, ao mesmo tempo como «art
world» específico, com as suas práticas, profissões e idea-
lizações, mas também multiplicando as «obras de arte».
Aliás, Victor Hugo mostra bem, num texto profético so-
bre a imprensa, que as artes surgiram da crise do regime
tectónico medieval, com a explosão da catedral medieval,
que constitui um paradigma: «… a partir do momento
em que a arquitectura é uma arte como outra qualquer,
desde que ela já não é a arte total, a arte soberana, a arte
tirana, já não tem força para reter as outras artes. Estas
emancipam-se, rompe com o jugo da arquitectura, e vão
cada uma para seu lado. … A escultura torna-se estatuária,
as imagens tornam-se pintura, o cânone torna-se música.
Dir-se-ia um império que se desmembra com a morte do
seu Alexandre e cujas províncias se transforma em rei-

crumbled, the chasm between psychological processes and their causal ex-
planation deepened and became the fundamental problem. God had func-
tioned as a mean, reconciling paradoxes and antinomies. Absorbed and
neutralized in God, they were thus removed from the immediate world. In
earlier times, cognition, logic, and dialectics were subject to the irrational
dominant that was God. The incongruous and the miraculous were consi-
dered to be the origin and the ground of being; the hallucinatory, mythic
origin of cognition was clearly apparent and retained its power. In this re-
gard, medieval thought was far more complex than modern thought, since
it encompassed logic’s irrational opposite». Cf. Carl Einstein, «Gestalt and
concept» in OCTOBER 107, winter 2004, pp. 172.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 137

nos»11. Para Hugo este facto é sinal de uma leveza acres-


cida, da entrada do humano na história da liberdade, mas
também sintoma de uma segunda «Babel», dada a imen-
sa profusão de fragmentos que circulam abundantemente
pelo real, produzidos pela imensa maquinaria da tipogra-
fia mecânica. À poesia caberia fazer a nova síntese…12
Certeiramente, Hugo está convencido de que esta
viragem altera a própria política, e não apenas as artes.
Trata-se de «política» num sentido mais extremo, cuja
natureza é visada por Mallarmé num pequeno, mas im-
portante artigo sobre Manet e os impressionistas13, esse
grupo de «intransigentes». O poeta tem consciência de
que estamos numa época «extrema» ou terminal. Aliás,
a partir da modernidade todas as «épocas» são extremas
ou estão no extremo14. O que se altera profundamente é
a forma-política do real, o seu «aspecto». Todo a crise
está na vinda à consciência do «aspecto». Reconhecer o
carácter artificial do aspecto é possível apenas a partir do
colapso das «épocas em que o sonho estava à frente da
realidade» (470). Até à modernidade a vida era suportá-
vel porque era «onírica»: a magia, a alquimia e todas as
transubstanciações aumentavam a nossa ilusão de poder e
tornavam suportável a morte, a violência, etc. De acordo

11. Victor Hugo, cf. O capítulo «Ceci tuera cela» in Notre-dame de Paris
(1831).
12. Começa assim a «soberania» do artista…
13. Stéphane Mallarmé, “Les Impressionnistes et Edouard Manet” (1876).
14. Cf. Hans Blumenberg, «The epochs of the concept of an epoch» in Hans
Blumenberg (1975), The Legitimacy of the Modern Age, Mass., MIT Press,
1985, pp.457ss.
138 Arte Agora

com Mallarmé o facto de termos chegado ao extremo tor-


na forçoso um recomeço, mas não o «começo real» (sic),
irretraçável e que não pode nem deve ser repetido — de
facto, houve demasiado sangue e crueldade na formação
histórica do «aspecto» do mundo, inseparável durante
demasiado tempo de actos sacrificais. Trata-se agora de
repetir o gesto que produz historicamente o aspecto, re-
cuperando a força do momento inicial em que a «arte»
nos separa da natureza15. Aí vigora «o olhar firme de uma
visão devolvida à sua mais simples perfeição» (sic). Mas
agora, entrado em crise o aspecto antigo, esse trabalho
já incide não sobre a «natureza», mas sobre «natureza
quotidiana», ou seja sobre a totalidade da existência, ao
mesmo tempo o trabalho sobre a physis e sobre a história.
Sinal de que tudo o que foi feito pelos humanos se tor-
nou problemático, se cristalizou, etc. O poder de refazer
o «aspecto» incumbe agora à arte16.
É por isso que o assunto é eminentemente político,
pois é a arte que deve dar forma ao real, delimitando o
espaço onde a política humana é possível. Como refere

15. É de sublinhar a similitude com a tese hegeliana do carácter historicamente


primeiro da arte. Cf. Sobre a estética hegeliana, Cf. William Desmond, Art
and the Absolute, Albany, SUNY Press, 1986.
16. Citemos Mallarmé: «Para satisfazer o meu desejo artístico de criação, o que
preservo não é a porção material que já existe, superior a qualquer represen-
tação simples que possa dela fazer, mas o prazer de ter recreado a natureza
pincelada a pincelada... [Trata-se] de reflectir no translúcido e durável espe-
lho da pintura aquilo que vive perpetuamente e que, todavia, morre a cada
instante, que existe apenas através da vontade da ideia, mas que constitui no
meu domínio o único mérito autêntico e seguro da natureza — o Aspecto».
(ib.)
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 139

Mallarmé noutra passagem, o «real» é sempre o efeito


do acrescento do «simulacro» e através deste do «as-
pecto», tal como a realidade e sempre uma subtracção do
aspecto17. O aspecto é uma tradução do «eidos» platóni-
co, remetendo em Mallarmé para o aspecto do mundo e
a própria possibilidade de fazer-mundo18. É neste sentido
que algo tão ínfimo como o aspecto é de ordem da polí-
tica – sabemos como Duchamp fez depender a arte do
infra-mince19 -, pois tem a ver com o «eidos» do mundo
humano, com a possibilidade de nele habitar, fora das ló-
gicas da rendibilidade, que repetem secularmente a polí-
tica arcaica do sagrado e do sacrificial.
A vinda à consciência do «aspecto» é, ao mesmo
tempo, sinal de crise, e uma maneira de fixar o destino da
arte na modernidade. Na sua forma mítica ou teológica o
aspecto determinou toda a história - era eficaz mas «in-

17. Alain Badiou tem insistido no papel crucial da subtracção na metafísica


de Mallarmé. E de facto, em La Musique et les Lettres, por exemplo, ele
define «l'association terrestre», a cidade e tudo o que contém, como uma
«miragem brutal», a que contrapõe : «Minez ces substractions, quand
l'obscurité en offense la perspective, non — alignez-y des lampions, pour
voir: il s'agit que vos pensées exigent du sol un simulacre». Neste sentido, o
que se considera a «realidade» é o efeito de uma subtracção, de um simu-
lacro congelado e invisível. Mas a esta subtracção segue-se a possibilidade
de uma «l'amplification à mille jois», que deve ser interpretada como o
carácter aditivo, ampliador da «arte». O real ampliado corresponde então
à chamada realidade mais o simulacro. Quanto a Badiou, cf. «La méthode
de Mallarmé : soustraction et isolement», Alain Badiou, Conditions, Paris,
Seuil, 1992, p. 108ss.
18. Nelson Goodman salta alegremente sobre o problema, que mal descortina.
19. Para uma recente análise das operações subjacentes ao infra-mince, Cf.
Thierry Davill, De l’Inframince: Brève Histoire de l’Imperceptible, de Mar-
cel Duchamp à nos Jours, Paris, Editions du Regard, 2010.
140 Arte Agora

consciente». O aspecto do mundo era produzido a partir


de uma imagem absoluta, a de Deus ou dos deuses. Tendo
colapsado - mas essa é uma condição de liberdade -, o as-
pecto só pode ser abordado directamente por ter entrado
em decomposição. Aliás, Hegel já tinha descrito os efeitos
de tal decomposição: «As estátuas são agora cadáveres de
que se escapou a alma vivificante, à semelhança dos hinos
[feitos] de palavras de que se escapou a fé; as mesas dos
deuses [estão] sem alimento nem beberagem espiritual
e, dos seus jogos e banquetes já não recolhe a consciên-
cia da jubilosa unidade de si com a essência. Às obras da
musa não assiste já a força do espírito que viu irromper do
desabamento de deuses e homens a certeza de si mesma.
Elas foram doravante o que são para nós —; belos fru-
tos separados da árvore»20. A dificuldade essencial para
Mallarmé reside em que nenhum artista pode refazer o
aspecto, conferindo ordem, potência e beleza ao mundo,
como Homero teria feito para a Grécia ou S. Paulo com
o cristianismo. Historicamente o «artista» é anónimo,
equivalendo ao trabalho de todos os humanos, e por isso
mesmo, numa relação à política21. Mas enquanto artista
ele participa na criação do aspecto do mundo, e é através
desta participação que a arte se relaciona com a política.
Muito depende de saber se tem sentido, ainda, a coloca-
ção mallarmeana, que oscila entre duas impossibilidades

20. Hegel (1807), Fenomenologia do Espírito, Vol. II, Trad. Paulo Menezes,
Petrópolis, 1992, p. 185.
21. Neste sentido, a idade média era política «inconscientemente», na medida
em que correspondia a um mundo unitário, apesar das divisões e das ordens
medievais, altamente hierárquicas.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 141

ou obstáculos: não é possível produzir nem consciente-


mente nem inconscientemente o «eidos» do mundo,
sendo, todavia, necessário22.
Na verdade, as afinidades de Mallarmé com o Hegel
são grandes. A antiga potência da arte torna-se impossível,
como refere a passagem anterior, e que se repetem uma
e outra vez na sua Estética, a qual Mallarmé terá lido23.
Num fragmento intitulado «Über Mythologie, Volks-
geist und Kunst», redescoberto não faz muito tempo,
escreve Hegel que «When in our time the living world
does not form the work of art within it, the artist must
place his imagination in a past world; he must dream a
world, but the character of dreaming, of not being alive,
of the past, is plainly stamped on his work»24. Percebe-
se melhor as consequências desta tese quando se observa
que anteriormente a arte, a «musa absoluta» (sic) «as-
sumes the aspect of presenting the externally perceivable,
seeable, and hearable forms of spirit. This Muse is the
generally expressed consciousness of a people. The work
of art of mythology propagates itself in living tradition.
As peoples grow in the liberation of their consciousness,

22. Neste aspecto, uma arte do aspecto que se pretenda política confunde-se
com uma «cosmética» generalizada. Sobre a crítica da «cosmética», cf.
Jacqueline Liechttenstein, «~De la toilette platonique» in La Couler Elo-
quente, Paris, Flammarion, 1989.
23. Trata-se de um assunto controverso. Cf. Reynolds, D. "Mallarmé and Hegel:
Speculation and Reflexivity." French Cultural Studies 2 (1991): pp.71-89.
24. Hegel, "Über Mythologie, Volksgeist und Kunst" (On mythology,"national
spirit," and art) in Donald Phillip Verene, Hegel's Recollection: A Study
of Images in the Phenomenology of Spirit, State University of New York
Press, 1985, p. 37.
142 Arte Agora

so the mythological work of art continuously grows and


clarifies and matures. This work of art is a general posses-
sion, the work of everyone….. So is the work of art the
work of all». Trata-se de um fragmento notável pelas
suas implicações. A obra de arte de todos constitui uma
única obra, confundindo-se com as formas do «real»,
notando-se a perda de potência da arte na rememoração
onírica, facilmente presa do grotesco, ou no seu retraça-
mento conceptual, como corresponde à «museologia»
hegeliana; concomitantemente, a obra de todos torna-se
individual, com autoria, e pulveriza-se numa infinidade
de objectos chamados obras de arte, que na prática dife-
rem ao dissimulam sua relação com a arte. O programa
especulativo procura conceptualizar aquilo que o não-
filósofo apenas pode sonhar ou delirar, o mundo como
«obra de arte viva».
Se o diagnóstico de Mallarmé e de Hegel se apro-
ximam a este ponto, diferem claramente na resposta ao
problema do «eidos» do mundo25, sobredeterminado
no segundo pelo conceito, que ao plasmar-se no real, se
encarna esteticamente, mas não enquanto arte; enquan-
to, no primeiro, todo o passado mais não foi de que um
lance de dados, tratando-se de mantê-lo a «rolar». Seria
o movimento livre do lançar que está a garantia política
da arte. Ora, esta é negada, tornando-se numa grotesca

25. Ou talvez não, se aceitarmos que a realização do especulativo ocupa todo o


tempo que resta, sendo finita no conceito e infindável na efectuação. Sobre
a temporalidade pós-histórica, cf. Catherine Malabou, L'avenir de Hegel:
plasticité, temporalité, dialectique, Paris, Vrin, 1996.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 143

cosmética transcendental e num infindável fluxo de «ob-


jectos» e de «estratégias» artísticas.
E de facto, estas duas versões paródicas de arte po-
lítica marcaram profundamente o século que findou. A
mais perigosa delas deriva nitidamente da ideia de obra
de arte total (Gesamtkunstwerk), que tão influente foi no
século XIX, e que ganhou foros de cidadania ao ser anun-
ciada por Richard Wagner no livro intitulado A Obra de
Arte do Futuro (1849): «Who, then, will be the Artist of
the Future? The poet? The performer? The musician? The
plastician? - Let us say it in one word: the Folk. That sel-
fsame Folk to whom we owe the only genuine Art-work,
still living even in our modern memory, however much
distorted by our restorations; to whom alone we owe all
Art itself»26. Mal ou bem, em Wagner alcança-se o máxi-
mo de consciência possível dentro do romantismo sobre
o problema da arte política. Mas é no wagnerianismo que
reside o problema. É presa demasiado fácil de agencia-
mentos absolutistas. Assim, Hitler via-se com um «gran-
de artista», um escultor da massa amorfa a que a moder-
nidade teria reduzido o povo alemão, preparando-se para
criar uma obra que durasse 1000 anos27; sem grande sur-
presa, Boris Groys mostrou como o estalinismo era tam-
bém indissociável de essa vontade de obra de arte total28.

26. E prossegue Wagner: « The Art-work of the Future is an associate work,


and only an associate demand can call it forth» in Richard Wagner - The
Art-Work of the Future (1849).
27. Sobre a arte no hitlerianismo, ver Eric Michaud, Un art de l'éternité. L'image
et le temps du national-socialisme, Paris, Gallimard, 1996.
28. Cf. Boris Groys, The total art of Stalinism : avant-garde, aesthetic dictator-
ship, and beyond, Princeton, Oxford, Princeton University Press, 1992.
144 Arte Agora

Com efeito, a tese wagneriana é sinal de uma tensão


que inevitavelmente marcou a arte contemporânea, her-
deira do programa especulativo ocidental e do seu desejo
de coesão do mundo, sem resíduo nem exterioridade29. O
dito de Paul Valéry de que «o mais profundo é a pele»,
aparentando inverter o especulativo, revela que (COR-
TAR jbm) o desejo de uma coincidência total do real
com o aspecto30. Daí que esta afecção esteja presente em
autores tão diversos como Proust, Schönberg, Rothko,
etc., como também nos pós-românticos, caso de forma-
listas, por exemplo de Mondrian, ou do construtivismo.
Por exemplo, Laszlo Moholy-Nagy e Gropius quando
afirmam que «une oeuvre d’art totale pût être séparée
du cours de la vie. C’est “la synthèse de tous les moments
de la vie” qui est l’oeuvre totale»31. Nesta afirmação está
já presente todo o programa de controlo do aspecto,
capaz de absorver a vida numa síntese perfeita. Todo o
problema está em querer produzir o aspecto de maneira

29. A dificuldade está em que essa é a base do programa de conceber e matema-


tizar integralmente o existente como se manifesta no processamento digital
da experiência.
30. A inversão de Valéry não é capaz de atacar a idealização do real sempre asso-
ciada à explicitação do consciencialização do aspecto. Bem mais radical é o
esforço de Georges Bataille num texto da revista Documents intitulado «Le
langage des fleurs», mostrando que a idealização do aspecto corresponde a
uma exorbitação metafórica da matéria, neste caso das flores. O idealismo
na botânica prefere a corola aos estames ou às raízes, a flor madura à nascen-
te ou em apodrecimento. Cf. Georges Bataille, «Le langage des fleurs» in
Oeuvres Complètes, Vol I, Paris, Gallimard, 1970, pp. 173ss.
31. Citado em Jean Gallard, L’Oeuvre d’Art Totale, Paris, Gallimard, 2003,
Intrd, p. 9.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 145

controlada e consciente32. Isto é evidente nas actuais ten-


tativas de produzir «sinestesia» virtual, criando uma Ge-
sammkunstwerk por meios puramente técnicos e digitais.
Sendo um efeito sintetizador, revela apenas a vontade de
abolir as diferenças e dissonâncias, como se depreende das
defesas da «interactividade» ou da vontade de abolir a
diferença entre entre artista, obra e espectador. Cronen-
berg no seu filme Existenz, permite pensar que o delírio
da técnica se alimenta desse velho programa de produzir
a vida através da imagem33.
Não é que o problema não seja real, mesmo politica-
mente, pois o desejo de absoluto é sintoma da guerra em
torno das diferenças, nomadamente entre o senhor e o
servo ou o império e as províncias, faz parte da guerra, ao
mesmo tempo que a impulsiona. Mas para além das ilu-
sões de controlo ou dos programas de produção cosméti-
ca do real, resiste uma tensão que tem de ser questionada
mais directamente. No fundo, está menos em causa o fac-
to de a política imitar a arte, ou da arte se pretender ime-
diatamente política, que a indiferenciação entre ambas.
Tudo se joga na sua comunicação secreta entre ambas, no
quadro de sua diferenciação. A discussão das relações en-
tre arte e soberania para aprofundar esta questão.

32. Sobre as formas que foi assumindo a noção de obra de arte total até à con-
temporaneidade, ver, por exemplo, Matthew Smith, The Total Work Of
Art, Routledge, 2007.
33. A influência do pensamento de Jean Baudrillard nos cineastas, como Cro-
nenberg, os irmãos Waschofski, etc., tem a ver com a possibilidade de tecni-
camente se poder «produzir» o aspecto, tornando-o absoluto. O que tem
pouco de inovador, bem vistas as coisas… Basta ver como o cinema, trabalho
os sentidos para que a obra ressalte, momentaneamente absoluta.
146 Arte Agora

II. Soberania

O problema político da arte sofreu uma importante


reformulação por Walter Benjamin34. Na sua conhecida
crítica do esteticismo moderno - ao «bloco» formado
por afecções, máquinas e dinheiro - Walter Benjamin
defendeu a necessidade de uma «arte política»35, pese
embora tenha deixado demasiado no vago quais seriam
os contornos dessa viragem anti-estética da arte e a sua re-
lação com a «política»36. Uma primeira condição tinha
sido desenvolvida pelo primeiro vanguardismo, acima de
tudo o Dadaísmo, os quais recusaram decididamente a es-
tética como critério ou fundamente da arte. Se o juízo e
a idealidade estética eram atacados, falhava um elemento
essencial, a maneira como as afecções se estavam a tornar
o material de base da política, da finança e das média au-
diovisuais. Não é por acaso que o esforço Benjaminiano, a
exemplo do que fará Duchamp, se baseia numa crítica ra-
dical da obra de arte e dos critérios que subentendia, mas
também na esteticização do real, tal como se plasmava na

34. Mas é com Marcel Duchamp que alcança a sua expressão máxima.
35. Diz Benjamin: «So steht es um die Ästhetisierung der Politik, welche der
Faschismus betreibt. Der Kommunismus antwortet ihm mit der Politisie-
rung der Kunst». (Zweite Auffassung)
36. Em princípio a solução benjaminiana passaria pelo «cinema»… essa arte co-
operativa, dinâmica e circulando por todo o planeta. Neste aspecto o cinema
confunde-se com a arte contemporânea, como se pode ler nos paralipóme-
na ao ensaio sobre a obra de arte. Cf. Walter Benjamin, ADENDA A “
A OBRA DE ARTE NA ÉPOCA DA SUA POSSIBILIDADE DE RE-
PRODUÇÃO TÉCNICA” in A Modernidade, ed. e trad. João Barrento,
Lisboa, Assírio & Alvim, p. 505.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 147

estetização da política, característica dos regimes totalitá-


rios e, em não menor grau, nos regimes banais da política,
que fazem o mesmo através do «espectáculo». De facto,
esteticismo e política comunicavam através de uma certa
definição estética da obra de arte, e na hierarquia que cris-
talizavam. Mas a inversão proposta por Benjamin já era
bem menos evidente. Com efeito, a «politização da esté-
tica», para não ser puramente negativa implica uma redi-
visão do processo de expansão da arte, capaz de afastar as
práticas artísticas da exorbitação da «obra de arte», vista
como uma «obra de arte total», que fazia das categorias
estéticas verdadeiros operadores políticos. O que pressu-
punha uma expansão da arte regida politicamente, e não
esteticamente. A vantagem inapreciável de Benjamin é de
ter tornado claro onde estava o problema e as condições
para o pensar.
Algo de essencial se passava nesta tentativa, o que
explica a sua omnipresença no século XX, e que não pode
ser «superada» sem ser confrontada directamente37. A
mínima reflexão sobre a arte política desenvolvida no sé-
culo XX, mostra que a relação directa entre arte e política
era demasiado periclitante, desembocando numa espécie
de auto-sacrifício da arte no altar de programas políticos,
de ideologias ou de problemas sociais.

37. É certo que as artes de instalação parece escapar ao efeito inevitável da ex-
pansão da obra de arte, mas isso não ocorre sem ambiguidades, pois a maior
complexidade da instalação não impede que as obras se fragmentem e mo-
netarizem de outro modo, como ocorre, por exemplo, nas obras de Matthew
Barney ou Olaf Elliasson cujo gigantismo parece apelar a esta noção.
148 Arte Agora

Uma condição para pensar este problema, passa pelo


reconhecimento de que a mera expansão da arte por todos
os espaços possíveis, instalados sobre a terra já constitui
um fenómeno político38. Desde a crise da modernidade
estética, em curso desde finais do século XIX, o espaço da
arte tornou-se uma questão central. Mormente na altura
em que emerge o cubismo, foi metaforizado a partir das
geometrias não-euclidianas, que tinham sido desenvol-
vidas por Riemann e outros. A geometria serviu de base
para pensar esse tipo de espaço, nomeadamente a partir
da chamada quarta-dimensão, que originou uma série de
confusões39. As ironias de Le Corbusier acerca da ideia
cubista de representar a 4 D eram certeiras, mas a questão
está mais no significado da nova visão de espaço da arte40.
Este processo de alargamento que tem vindo a ocor-
rer em vagas sucessivas, torna-se claro a partir dos anos 60
e 70, descritos por Lucy Lippard como de «desmateria-

38. Como é evidente esta expansão não se confunde com a «globalização» da


arte, contrariamente ao que sustenta Hans Belting que, desde 2007, tem
vindo a organizar uma série de iniciativas em torno da «arte global», patro-
cinadas pela Dubai Art Fair. Ver Hans Belting e Andrea Buddensieg (Orgs),
Global Art World: Audiences, Markets and Museums, Hatje Cantz Verlag,
2009. Não é menos evidente de que a «globalização» da arte é, em si mes-
ma, um sintoma da expansão da arte, basicamente de ordem empírica.
39. Devido à influente teoria da relatividade de Einstein a 4 dimensão acabou
por ser definida pelo «tempo», mas o que procuravam os cubistas era bem
distinto. Sobre a transformação da noção de espaço nas artes, ver Linda Dal-
rymple Henderson, The Fourth Dimension and Non-Euclidean Geometry
in Modern Art, Princeton, Princeton University Press, 1983.
40. À nova importância do espaço da arte pode associar-se a crise da noção de
«obra de arte», que deixa de coincidir com o objecto material, como se ve-
rifica na instalação, por exemplo, e na indistinção crescente entre figura e
fundo, a que o cubismo analítico deu a máxima importância.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 149

lização da arte», significando na prática a sua expansão41.


Tendo a instalação e a land-art como pano de fundo, de
muitos lados vem a consciência deste alargamento, como é
o caso de Rosalind Krauss, aludindo a um «espaço expan-
dido» que se teria iniciado com o pós-modernismo e que
teria feito explodir as fronteiras estéticas colocadas pelo
modernismo: «a lógica disruptiva faz voar em pedaços as
fronteiras que circunscreviam o modernismo»42. Trata-se
de um «campo logicamente expandido» onde o sítio da
escultura ou da obra lhe é coextensivo, e que abole a «neu-
tralidade» do espaço moderno. Krauss esteve ao lado do
problema e deixa-o escapar, presa de categorias como a de
«pós-modernismo» e de «modernismo», que não se dão
conta de que o primitivismo e o cubismo de inícios do sécu-
lo XX implicavam um alargamento do espaço da arte, que
se radicalizou em finais do século passado. Aliás, basta pen-
sar na Spiral Jetty de Robert Smithson e o espaço que abre
nas artes contemporâneas, para se perceber que se trata de
algo mais radical. Está em causa a entrada da história no
horizonte da Terra, de que a arte é um sintoma decisivo43.
41. Como aliás se deduz das análises de Lippard, que afirma: «… Conceptualists
indicated that the most exciting "art" might still be buried in social energies not
yet recognized as art. The process of ex- tending the boundaries didn't stop with
Conceptual art: These energies are still out there, waiting for artists to plug into
them, potential fuel for the expansion of what " art" can mean». Cf. Lucy Li-
ppard (1973): «Escape attempts» in Six Years: The Dematerialization of the
Art Object, Berkeley, University of California Press, 1997, p. XXII .
42. Rosalind Krauss, «Sculpture in the Expanded Field» in October, Vol. 8,
1979, pp. 30-44.
43. Dir-se-ia que à medida que o ultracontemporâneo se perfila, retorna o mais
arcaico, a decisão sobre a tomada da terra e a gestão da «carne». Não por
acaso as artes contemporâneas estão centradas d modo quase absoluto no
«espaço» e no «corpo».
150 Arte Agora

Somente a arte pode pode expandir-se absolutamen-


te, sobrepassando as fronteiras em que foi explorada e as
fronteiras nacionais. A imensa proliferação de obras, indo
dos genes aos satélites, passando pelo corpo e a imagens,
nada deixa de fora. Esse processo de alargamento ocorreu
empiricamente e não idealmente, e este elemento é cru-
cial44. E o mesmo sucedeu com a política. Para além de to-
dos os cosmopolitismos oitocentistas, o mais saliente dos
actuais processos de globalização é que a política deixou
de coincidir com o espaço geo-histórico, espraiando-se
por toda a superfície da terra45. Tanto a arte como a polí-
tica se expandem empiricamente pela superfície da terra,
atravessando todos os limites e fronteiras transmitidos
pela história. Esta infinidade empírica que desconforta os
artistas e os políticos, mesmo os mais radicais, está sob o
assédio da memória da arte que produzia mundo e con-
sistência, ou da promessa histórica de abolir a servidão46.
Ora, a expansão da arte e da política sobre a superfície da
terra implica um conflito radical com as estruturas exis-
tentes, obrigando a recolocar a outra luz as relações entre
arte e política.

44. Trata-se de um efeito previsto pelo programa especulativo de Hegel. Embora


a arte seja apenas um primeiro momento, como que se abre a história, a sua
superação final pelo conceito implica que tal como este varre a totalidade do
real, a arte o faz também por efeito de arrastamento.
45. E concomitantemente, dos espaços materiais e imateriais suportados pela
terra.
46. As idealidades da história vagueiam fantasmaticamente no actual, incorpo-
rando-se e desincorporando-se incessantemente.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 151

É sintomática, deste ponto de vista, a tese de Joseph


Beuys de que «todos os homens são artistas», em que se
baseia a sua defesa da arte como «escultura social»47, pois
implica uma deslocação radical das relações entre arte e
política, focalizando-a em torno do problema da «so-
berania». Na versão de Beuys os problemas surgem em
catadupa. Serão todos os homens artistas? A arte é feita
por todos? Equivale a arte a uma «soberania absoluta»,
capaz de expressar o «absoluto», ao estilo de Schelling
e de todo o romantismo?48 Tudo perguntas de duvido-
so interesse, pois afigura-se bem mais prometedora a re-
orientação do questionamento das relações entre arte e
política para o problema da «soberania», onde está sem-
pre em causa o imperium sobre um território. O assunto
torna-se particularmente delicado quando o territorium
coincide com a Terra.
Sem mais delongas, postulemos aqui que por sobera-
nia se deve entender um conflito em torno da soberania
«política» e não de uma utópica soberania artística. Tra-
ta-se menos de saber se a arte é soberana ou deve sê-lo, do

47. Diz Beuys: «everything that concerns creativity is invisible, is a purely spi-
ritual substance. And this work, with this invisible substance, this is what I
call "social sculpture."». Para uma crítica da gesammtkunstwerke de Beuys,
cf. Eric Michaud, «The Ends of Art According to Beuys» in October, Vol.
45 (Summer, 1988), pp. 36-46
48. Este problema emerge filosoficamente no texto intitulado «Oldest Pro-
gramme for a System of German Idealism» (1796), atribuível a Hegel, mas
que poderá ser também de Holderlin ou Schelling. O desenvolvimento do
pensamento destes autores, foi levando a ponderações diferentes da estrutu-
ra enunciada no referido «programa». Cf. Bernstein, J. M. (ed.), Classical
and Romantic German Aesthetics, Cambridge University Press, 2003.
152 Arte Agora

que apreender a maneira como a arte afecta a soberania,


tal como historicamente se encontra instalada e distribu-
ída. Neste sentido, são desencaminhadoras as análises di-
rectas da soberania artística: a arte, esse soberano de outro
mundo, que deixa intocado aquele onde estamos todos49.
Christopher Menke procura salvar os efeitos escapistas
da soberania artística, apresentando uma versão eclécti-
ca da arte como negatividade e crítica da razão. Nas suas
palavras: «Aesthetic experience is sovereign insofar as it
does not take its place within the differentiated structure
of plural reason, but rather exceeds its bounds».50 Ape-
sar de tudo o problema mantém-se, pois o conceito de so-
berania, por ambíguo que seja, só ganha sentido a partir
da relação com a Lei e o Estado, realmente existentes.
É verdade que houve sempre uma tradição no inte-
rior da arte (e do pensamento) que caminhou subterra-
neamente ao longo da história ocidental. Ela detecta-se
um pouco por todo o lado, na parte selvagem da filosofia

49. É esta a opinião de Carl Einstein: « The European art work serves even now
to provide a sense of inner security and strength to the propertied class. It
offers the bourgeois a fiction of aestheticized revolt, in which every desire
for change can find a harmless “spiritual” outlet.» in «On primitive art»,
OCTOBER 105, Summer 2003, p. 124.
50. Num livro importante, Christoph Menke opõe ao modelo idealista de «au-
tonomia da arte», o modelo alargado, que define como soberano: «Where-
as the autonomy model confers relative validity upon aesthetic experience,
the sovereignty model grants it absolute validity, since its enactment dis-
rupts the successful functioning of nonaesthetic discourses. The sovereignty
model considers aesthetic experience a medium for the dissolution of the
rule of nonaesthetic reason, the vehicle for an experientially enacted criti-
que of reason». Cf. Christoph Menke (1988), The Sovereignty of Art: Aes-
thetic Negativity in Adorno and Derrida, Mass., MIT Press, 1999, p. IX.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 153

ocidental, ligada a Lucrécio, Bruno, La Mettrie ou Stirner


e manifesta-se como «crime», «imoralidade», etc. Essa
corrente é marcada pelo conflito, a crise, e a perseguição,
permitindo entrever um conflito com a soberania e em
torno da soberania. Ocorre de imediato à memória uma
das tragédias de Sófocles – a Antígona. Se existe texto
enigmático é este. Como se transmitisse algo em segre-
do, à espera de alguém para o escutar. Talvez seja essa a
razão por que tem sido indefinidamente apropriado ou
desviado, como se nessa obra se procurassem aliados para
as lutas do presente, ou para o combate de sempre. Se isso
já ocorrera nos princípios da modernidade com Goethe,
Hegel ou Hölderlin, a tragédia de Sófocles continua hoje
a ser palco de batalha política e metafísica entre as femi-
nistas como Judith Butler ou Luce Irigaray, mas também
é posto ao serviço para fortalecer ou anular o adversário
filosófico, como sucede com Heidegger, Lacan, e Badiou
ou Zizek. Mas a «Antígona» serve e resiste. Toda a di-
ficuldade, perante este texto e outros que sobrevivem à
época em que foram feitos, está em saber se é possível lê-
los, para além da época, mas acima de tudo, fora das apro-
priações de que tem sido alvo. Se podemos aproximar-nos
da tragédia com olhos límpidos e inocentes, como se fosse
a primeira vez. No caso de Antígona, está em causa um
desafio que transcende a oposição entre lei e dever, en-
tre política e moral, entre obedecer ou desobedecer. Na
sua Estética, Hegel sublinhara bem que no conflito entre
Creonte e Antígona estão em presença duas leis, a arcaica
ligada aos deuses e à piedade familiar e a Lei do Estado,
da Polis, considerando que a peça corresponde à demons-
154 Arte Agora

tração de que a exorbitação de qualquer destas leis leva à


desolação e à morte51. A Antígona parece suportar bem
uma leitura dialéctica, cuja síntese caberá ao êxodo final,
mas à custa de se anularem as outras personagens, que não
são menos significativas. É o caso de Ismena, a irmã, que
aceita a localização das mulheres fora da soberania da Po-
lis; ora, na figura de Ismena revela-se por simetria que An-
tígona, filha de soberanos, reivindica uma «soberania»
com consequências incalculáveis52. É certo que se tratava
de algo à procura do nome, e através desse nome, algo de
inaudito, que apenas emerge na modernidade como pos-
sibilidade política.
Contrariamente a leituras aparentemente radicais
como as de Giorgio Agamben que vê na «soberania» um
todo compacto e absoluto em que o Estado se fundamen-

51. Cf. G. W. F. Hegel, Aesthetics: Lectures on Fine Art, Trad. T. M. Knox,


Oxford, Clarendon Press, 1975, p. 1217.
52. Já Hegel refere en passant que Antígona é filha de soberanos, sem extrair
consequências deste facto. É certo que se pode ver, como sucede nas leitu-
ras feministas da peça, um conflito entre valores femininos e masculinos,
mas de facto debaixo do conflito dos géneros trata-se de uma competição
pela soberania como é permitido deduzir da interpretação de Charles Segal:
««The conflict between Creon and Antigone is not only between city and
house, but also between man and woman. Creon identifies his political au-
thority and his sexual identity. If this victory (krate*) rests with her without
punishment, then I am not the man, but she's the man. The word krate*,
victory, power, repeatedly describes his sovereign power in the state. He sees
Antigone, then, as a challenge to his most important values and his self-
image. A woman will not rule me (arxei) while I live, he says a little later,
again linking the conflict of the sexes with political power» . Cf. «Anti-
gone: Death and Love, Hades and Dionysus» in Charles Segal, Tragedy
and Civilization: An Interpretation of Sophocles, University of Oklahoma
Press, 1999, p. 183.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 155

ta53, no caso de Antígona e outros similares, encontramos


sinais de uma disputa com a soberania «política», que a
afecta desde o interior, disputando esse carácter compac-
to. É certo que este é um atributo essencial da noção de
soberania, que, desde Jean Bodin, é definida como «a po-
tência absoluta e perpétua de uma república»54. A ideia
de uma soberania que vem dos primórdios do Estado e
que atravessa a história é ambígua, pois não está atenta
ao facto de que apenas na modernidade é explicitamente
aduzida como fundamento da obrigação política de obe-
decer aos ditames do Estado. Não é por acaso que é com a
advenimento da modernidade política que a soberania se
torna num conceito fundador e problemático, desde Bo-
din a Hobbes, passando por Rousseau e culminando com
Carl Schmitt. A soberania enquanto conceito jurídico-
político ganha consistência final a partir do Tratado de
Westphalia (1648), onde vigora o princípio da soberania
estatal: «Ninguém superior no interior, e quanto muito
igual no exterior». A partir deste momento a soberania
justifica o poder interno e o poder internacional55. Apesar
da presença obsessiva deste conceito, existe alguma difi-

53. Agamben tem dedicado livros importantes ao problema da soberania, num


processo que se radicaliza desde a publicação de Giorgio Agamben (1995),
Homo sacer. Il potere sovrano e la nuda vita, Turim, Einaudi, 2005. A im-
plicação mais imediata desta definição compacta da soberania é o desapare-
cimento das diferenças entre as diversas formas de Estado.
54. Jean Bodin, Les Six livres de la République, Livro I, 1576.
55. Com a globalização insiste-se que a noção de soberania nacional estaria em
crise. Ver, por exemplo, Michael Keating, Plurinational Democracy: Sta-
teless Nations in a Post-Sovereignty Era, Oxford, Oxford University Press,
2002.
156 Arte Agora

culdade em estabilizá-lo, leva a que esta seja apenas pen-


sável a partir dos seus atributos; é absoluta, indivisível, in-
transferível, etc. É claro que os atributos apenas revelam
a complexidade da tentativa de fixá-la. Por exemplo, se é
indivisível é porque, na prática, está em fragmentação ou
é fragmentável56. O mesmo se dirá quanto aos restantes
atributos.
A tentativa de definir a arte como soberana erra,
assim, profundamente, pois o que está em causa é a sua
relação com a soberania tal como se constituiu histori-
camente, nomeadamente a disputa sobre os seus atribu-
tos e a forma como foram fixados historicamente. Por
razões que procuraremos esclarecer de imediato, a ques-
tão da transferência é decisiva. Desde sempre que a so-
berania está determinada pelo conceito de transferência.
O imperium romano era definido por Ulpiano como a
transferência do poder do povo para o imperador. Na
modernidade, Hobbes centra nela a origem do «contra-
to social» e, concomitantemente, da soberania: «Cedo e
transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este
homem, ou a esta assembleia de homens, com a condição
de transferires a ele teu direito, autorizando de maneira
semelhante todas as suas acções. Feito isto, à multidão
assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim
civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou an-
tes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus
Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa

56. No fundo, cada atributo equivale a uma forma de intensificar a «sobera-


nia», procurando fixá-la.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 157

paz e defesa. ... É nele que consiste a essência do Estado, a


qual pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos actos
uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns
com os outros, foi instituída por cada um como autora,
de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da
maneira que considerar conveniente, para assegurara paz
e a defesa comum. Àquele que é portador dessa pessoa se
chama soberano, e dele se diz que possui poder soberano.
Todos os restantes são súbditos»57. A instransferibilida-
de da soberania resulta, portanto, de uma transferência
generalizada do poder de cada um para o Estado, num
movimento irreversível, ou seja, sem ser possível a con-
tra-transferência e ou retomar dela58. Qualquer hesitação

57. Thomas Hobbes (1651), Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado


eclesiástico e civil, Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza
da Silva, Lisboa, Imprensa Nacional, 1995, p. 146.
58. Hobbes está consciente de que esta transferência e o próprio contrato é uma
ficção racional, um efeito da «arte»: «Do mesmo modo que tantas outras
coisas, a natureza (a arte mediante a qual Deus fez e governa o mundo) é
imitado pela arte dos homens também nisto: que lhe é possível fazer um
animal artificial. Pois vendo que a vida não é mais do que um movimento
dos membros, cujo início ocorre em alguma parte principal interna, por que
não poderíamos dizer que todos os autómatos (máquinas que se movem a si
mesmas por meio de molas, tal como um relógio) possuem uma vida artifi-
cial? Pois o que é o corarão, senão uma mola; e os nervos, senão outras tantas
cordas; e as juntas, senão outras tantas rodas, imprimindo movimento ao
corpo inteiro, tal como foi projetado pelo Artífice? E a arte vai mais longe
ainda, imitando aquela criatura racional, a mais excelente obra da natureza,
o Homem. Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã a que se chama
Estado, ou Cidade (em latim Civitas), que não é senão um homem artificial,
embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja prote-
ção e defesa foi projetado. E no qual a soberania é uma alma artificial, pois
dá vida e movimento ao corpo inteiro», Hobbes Ult. Cit, p. 23. O carácter
ficcional e artificial do Estado não impede, antes propicia, a criação desse
enorme «autómato» cuja «alma» é a«soberania», sustentando a ideia
158 Arte Agora

sobre a transferência torna-se imediatamente crítica. Di-


remos, assim, que só é política a arte que afecta e perturba
a transferência soberana e fragmenta os seus atributos.59
Neste sentido, não é pensável uma soberania da arte, ao
estilo schellingeano, mas práticas soberanas que passam
pela arte, ou que esta exibe e possibilita.
Não será casual que seja na modernidade - a época
do «indivíduo», por vago que isso seja -, que o conceito
de soberania surge e se torna dominante. Este mero facto
é sintomático. Dado que o desde sempre esteve presente
a ideia de um ultra-poder, pareceria um conceito desne-
cessário. Só pode haver conflito e guerra em torno da so-
berania quando esta deixa de se fundar teologicamente,
tornando a questão da obrigação política dos indivíduos
- da obediência -, algo que exige ser legitimado60. Se a so-
berania antiga, ainda sem nome nem conceito era indis-
cutível, a soberania moderna ao afirmar-se, mesmo como
indiscutível, torna-se problemática. No caso de Antígona
o conflito mantém-se secreto e inominado, entroncando
numa corrente mais ou menos subterrânea, que disputa-
va a soberania. Podemos considerar que, em alguns casos,

de que a transferência já ocorreu desde sempre, a não ser por falha grave ou
desarranjo do Estado. Sobre os limites do Leviatã, Cf. Susanne Sreedhar,
Hobbes on Resistance: Defying the Leviathan, Cambridge, Cambridge
University Press, 2010.
59. Claro que este jogo só se mantém enquanto existir Estado e propriedade.
Assenta aqui a razão da fragilidade das teses de Giorgio Agamben sobre a
soberania enquanto fundamento do Estado de excepção. De facto, a arte e
o crime restituem-nos outras formas de soberania, acima de tudo ao recusa-
rem, ou fingirem aceitar, a ideia de intrasferabilidade.
60. A obediência surge como o «mistério» da política, como afirma La Boétie.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 159

bem singulares, é com se essa corrente tivesse encontra-


do uma falha, irrompendo na superfície. É bem o caso do
Marquês de Sade, que num texto de uma ironia profunda,
uma verdadeira sátira do nova soberania - Français, enco-
re un effort si vous voulez être républicains ! -, vai dispu-
tar a soberania, disputando-lhe do direito de matar ou de
usar dos corpos dos homens (e das mulheres)61. Em frases
lapidares, Sade afirma que se Deus não existe, não aceita
nenhum poder acima do seu, sonhando nas suas longas
noites na prisão e no hospício com um acto tão tremendo
cujos efeitos nunca mais se apaguem62. É claro que para
Sade, a soberania é um conflito em torno de fundamen-
tação do poder absoluto – o de dispor da vida e da mor-
te -, que se funda de maneira abismal, quando lhe falta
o fundamento teológico. Neste aspecto, a soberania já é
um efeito da falta de fundamente, o que explica muito do
seu dramatismo na modernidade. Incomodou a muitos a

61. A questão das mulheres é essencial neste texto, que surge a, aliás, no livro La
Philosophie du Boudoir ou Les instituteurs immoraux (1795), um singular
simpósio, que «as mães deveriam dar a ler às filhas».
62. Trata-se, de facto, de uma frase de Clairwil em Juliette: «Je voudrais, dit
Clairwil, trouver un crime dont l’effet perpétuel agît, même quand je
n’agirais plus, en sorte qu’il n’y eût pas un seul instant de ma vie, ou même
en dormant, où je ne fusse cause d’un désordre quelconque, et que ce désor-
dre pût s’étendre au point qu’il entraînât une corruption générale, ou un
dérangement si formel, qu’au-delà même de ma vie l’effet s’en prolongeât
encore. (Cf. Le Brun and Pauvert (eds), Sade, Histoire de Juliette, ou les
Prospérités du vice, (Paris: Société Nouvelle des Éditions Pauvert, 1987),
Vol. 8, p. 541. É conhecida a dificuldade de separar Sade das suas persona-
gens, com as quais nunca se identifica plenamente. Mas a ideia de um acto
absoluto é claramente sadiana. Sobre este assunto, ver «Sade and Transcen-
dence» in John Phillips, Sade: The Libertine Novels, Londres, Pluto Press,
2001, pp. 156-157.
160 Arte Agora

defesa por Sade do crime, do assassinato, da prostituição,


em suma, a defesa das «paixões perigosas» que se tornam
inevitáveis na era da multidão63. Mas sabe-se que Sade le-
vava ao extremo uma experimentação literária e filosófica,
estando o seu escândalo mais na escrita do que nos actos.
Como mostra Blanchot, Sade escreve, e segundo um
princípio que se verifica insuportável: «Tout dire. Il faut
tout dire.»64. São estas justamente as últimas palavras
de Julliete, o imperativo de «dizer tudo». Não se trata
do «direito de expressão», juridicamente fundado, mas
uma radicalização absoluta desse direito, fora de qualquer
interdição65. Ora, a interdição é o efeito de uma partilha
separando que é possível ou proibido dizer. Numa outra

63. Na lei dos grandes números nenhuma posição ficará por frequentar, por ab-
surda ou bizarra que seja. Ora, a lei dos grandes números é a que determina,
estatisticamente, a entrada na história na era da multidão.
64. Maurice Blanchot,« L’Inconvenance majeure», suivi de Sade, Français,
encore un effort, Paris, Jean Jacques Pauvert, 1965, p. 20. O que era uma
paródia de uma fórmula de Saint-Just: « On méprise la vertu comme le
vice, on dit aux hommes: Soyez traîtres, parjures, scélérats si vous voulez,
vous n’avez point à redouter l’infamie, mais craignez le glaive et dites à vos
enfants de le craindre. Il faut tout dire, les lois qui règnent par les bourreaux
périssent par le sang et l’infamie, car il faut bien enfin qu’elles retombent sur
quelqu’un». Contra o antigo poder, e para instaurar o seu, Saint-Just pede
aos cidadãos que «digam tudo», para depois moderar o princípio, que Sade
radicalizará. Cf. Saint-Just , «L’esprit de la révolution et de la constitution
de la France» (1791).
65. Jacques Derrida insiste que se o direito para dizer tudo for apenas literário e
ficcional pode tornar-se conservador. A isso ele contrapõe um «democracia
por vir» ou vindoura. Na prática isso implica uma confiança excessiva no
texto e nos seus efeitos, quando o dizer tudo de Sade, passando-se dentro da
ficção é, por uma mediação complexa, imediatamente político. Sobre este
assunto, cf. Kevin Hart, «The Right to Say Everything» in The European
Legacy, Vol. 9, No. 1, 2004, pp. 7-17.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 161

obra, Blanchot insiste neste problema: «Sade é sempre


perseguido, e sempre devido à mesma exigencia: o im-
perativo de dizer tudo. Deve-se dizer tudo. A liberdade
é a liberdade de dizer tudo, um movimento sem limites
que é a tentação da razão, a sua promessa secreta, o seu
delírio»66. Neste aspecto o «dizer todo» é subversivo»
porque contínua um dizer quando a lei já o fechou, pois
instituir-se é instituir uma linha divisória. Mas a coisa é
mais radical, pois tudo se joga na experimentação de tudo
dizer numa situação concreta em que não se pode ou deve
fazê-lo. Se a possibilidade de tudo dizer suspende o dita-
me da lei, a sua prática concreta introduz-lhe uma tensão,
cujo desenlace é político. Sade abre o tempo da soberania,
a decisão sempre já tomada, impedindo a sua captura pela
soberania do Estado, onde tudo o que se pode dizer está
potencialmente dito.
Neste sentido, dizer tudo, tudo mostrar, tudo pen-
sar, corresponde a um excesso da arte sobre a política, que
instaura uma crise na soberania, fazendo comunicar arte

66. Maurice Blanchot (1969), The Infinite Conversation, Minneapolis, The


University of Minnesota Press, 1993, p.229. Jane Gallop refere que Sade
antecipa Hegel, com uma diferença fundamental. Enquanto Hegel creria
poder dizer tudo, é esse o projecto das Enciclopédia, Sade está marcado pela
tentativa de «dizer o que não foi dito»: «A locução “o que não é dito”
significa normalmente o que contingentemente não pode ser dito, o que não
é correcto dizer junto de pessoas de cerimómina: o que não é dito, no seio
da família. Dizer “o que não é dito” significa então escandalizar, criar um
desconforto. O sentido radical do “que náo é dito” é aquilo que não pode
dito de nenhuma maneira, que excede a linguagem, que torna a obrigação ou
compulsão filosófica de dizer tudo uma tentava fútil, eterna para apropriar
o inapropriável». Cf. Jane Gallop, Intersections, a reading of Sade with Ba-
taille, Blanchot, and Klossowski, The University of Nebraska Press, 1981,
p. 52.
162 Arte Agora

e política, neste exemplo, através do frágil corpo de Sade.


Ele não considera que exista uma soberania do artista, ou
da arte, embora na “sociedade dos amigos do crime” se-
jam conferidos ao artista alguns privilégios, mas apenas
por ser o inventor dos simulacros que alteram as relações
dos corpos, das palavras e das figuras. O artista é um pro-
fissional do aspecto. Se pratica actos soberanos é porque
não pode fazer de outro modo.
Aliás, o caso de Sade a impossibilidade de uma sobe-
rania da arte, mas também a inutilidade, senão mesmo o
perigo, pois ele paga duramente as suas ousadias de escri-
ta, de propor uma definição de soberania alternativa à da
modernidade política. É mesmo esse o grande óbice das
teorias da soberania de Jacques Derrida e outros, mas aci-
ma de tudo de Georges Bataille: a ideia de que é possível
criar livremente outras formas de soberania, por simples
abandono dos fundamentos da soberania do Estado re-
almente existente. Ora, como mostrámos, a soberania é
a forma de fundamento do poder quando não é possível
fundá-lo metafísica ou teologicamente; ou seja, quando
o poder se funda no poder67. Não se trata de mudar de
fundamento e, portanto, de formas da soberania, mas de
aproveitar a crise interna em que se abisma e os atributos
em que se cristaliza, para travar uma guerra que, sendo
política, passa através da arte. Isso não implica que não
seja necessário ler atentamente os textos de Bataille. Fi-

67. Sabe-se como, na República, Platão se indignava com a hipótese colocada


por Trasímaco de que o poder se funda no poder, mas na altura havia deuses,
nomos, a instalação de uma metafísica potente, etc.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 163

quemos apenas com o argumento de que não basta des-


locar o problema da soberania da política para a vida; ou
insistir, no luxo, no gasto e, portanto, numa espécie de
luxúria da morte; privilegiar a relação absoluta, directa
e indissolúvel entre o êxtase absoluto e o terror, entre a
morte e o prazer, etc.; e, fundamentalmente, a ideia de
que a soberania corresponde a um instante, um instan-
te que se define como sendo anti-utilitário e, dentro do
anti-utilitário, como gasto luxuoso68. Mas enquanto tal,
em última instância, isso implica propor novos funda-
mentos onde existe apenas a pressão letal do poder e o seu
domínio do território e da carne (ou mais pudicamente,
dos corpos). Se fosse possível uma outra soberania have-
ria perigo envolvido, se não representa perigo, é porque é
uma mera ilusão.
É necessária uma neutralização absoluta da estraté-
gia fundadora da soberania, que se funda nos seus atri-
butos essenciais69 - tornados em fundamentos do funda-
mento, mas que é atravessada por uma crise radical. As

68. Georges Bataille, La Souveraineté in Oeuvres Complètes, Vol. VIII, Paris,


Gallimard, 1976. É certo que a teoria da soberania de Bataille é um com-
plemento interessante da crítica da economia generalizada que procurou
delinear e que espera aprofundamentos.
69. Daí que só se possa fundar circularmente, como refere Jean-Luc Nancy: «
For the whole of our thinking, the End is in Sovereignty, and Sovereign-
ty is in the End. The absolute transcendence, or the abyss, or the mystery
of supreme ends that is found all throughout the tradition—for example,
the impossibility of determining the “content” of the Platonic Good or the
Kantian L a w — i s held firmly within this circle: that which is sovereign
is final, that which is final is sovereign». Cf. Nancy (1996), War, Right,
Sovereignty—Technê» in Being Singular Plural, Stanford U n i v e r s i t y
Press, 2000, p. 120.
164 Arte Agora

razões são várias. Por um lado, porque falar de soberania


é não dispor do poder absoluto; por outro, como refere
Walter Benjamin, porque a incorporação da soberania
abre lugar a falhas. Assim, sobre o soberano barroco afir-
ma: «… feature peculiar to the Trauerspiel which is, ho-
wever, only apparently a generic feature and which can be
illuminated only against the background of the theory of
sovereignty. This is the indecisiveness of the tyrant. The
prince, who is responsible for making the decision to pro-
claim the state of emergency, reveals, at the first opportu-
nity, that he is almost incapable of making a decision»70.
Com efeito, sobrepondo-se ao barroco, a indecisão ham-
letiana está inscrita na noção de soberania moderna, que
apenas se sustenta ao exercer-se como lei de emergência
ou, como mostra Carl Schmitt, ao decretar o estado de
excepção71. A única forma de cancelar dentro da lógica
da soberania essa hesitação, ou o círculo vicioso em que
se funda, passa por fazê-la coincidir com o estado de coi-
sas. E, na realidade, que durante o século passado se tenha
vindo a esbater a diferença entre urgente e normal, entre
excepção e generalidade, explica que a soberania se esteja
a tornar num cego automatismo judiciário do real72. Mas
a soberania, dissemo-la já, não é apreensível por nenhu-
ma definição, mesmo ainda pela ideia de excepção, mas

70. Walter Benjamin, The origin of German tragic drama, Londres, Verso, 1998.
71. Segundo Carl Schmitt, num livro que Benjamin leu cuidadosamente, «
Sovereign is he who decides on the exception». Cf. Carl Schmitt (1922),
Polical Theology, Mass., MIT Press, 1985, p. 30.
72. O mesmo se aplica a nível internacional, embora aí a definição de soberania
estatal ainda mantenha alguma parte da sua vigência clássica.
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por uma intensificação variável de atributos, como abso-


luto, impartilhável, intransferível, excepcional, etc. Ficar
apenas adstrito ao atributo da da excepção leva a conse-
quências deletérias Assim, numa das suas últimas obras,
Walter Benjamin afirma que «A tradição dos oprimidos
ensina-nos que o «estado de excepção» em que vivemos
é a regra. Temos de chegar a um conceito de história que
corresponda a esta ideia. Só então se perfilará diante dos
nossos olhos, como nossa tarefa, a necessidade de provo-
car o verdadeiro estado de excepção»73. Numa outra ima-
gem, Benjamin aludirá a «an alarm clock that in each mi-
nute rings for sixty seconds»74. O autor alemão radicaliza
a tese Schmittiana, segundo a qual: «The exception reve-
als most clearly the essence of the state’s authority. The
decision parts here from the legal norm, and (to formula-
te it paradoxically) authority proves that to produce law
it need not be based on law». Se o atributo da excepção
prova de que a soberania decide sempre que emerge um
caso grave ou intratável, operando portanto dentro e fora
da lei75, já a ideia de que tudo se baseia na excepção, seja
por definição (Agamben), seja por efeitos de crise históri-
ca (Benjamin), leva ao desaparecimento do caso. Ora, tal

73. Walter Benjamin, «Teses sobre o conceito de história» in O Anjo da His-


tória, selecção e tradução de João Barrento, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010,
p. 13.
74. Walter Benjamin (1929), «Surrealism: The Last Snapshot of the European
Intelligentsia» in Benjamin, Selected Writings, Vol II (1927-1934), Mass.,
Harvard University Press, 1999, p. 218.
75. É o que Giorgio Agamben denomina por «paradoxo da soberania». Cf.
Agamben, State of Exception, Chicago, The University of Chicago Press,
2005.
166 Arte Agora

como ocorre com outros atributos, insistir na excepção


significa, na prática, incapacidade de decidir onde está o
caso, e não necessariamente tratar todos os casos como
excepcionais76. Essa tese desqualificaria mesmo a possibi-
lidade de enunciá-la, sem perigo, i.e., fora da «semiótica
de sangue» referida por Nietzsche77. A própria impossi-
bilidade de distinguir o caso e a sua gravidade revela uma
fenda na na soberania política, que desde sempre foi ex-
plorada, de forma aberta ou subterrânea.
Exemplifiquemo-lo com Max Stirner. No seu caso
algo entreluz deste fundo secreto, nomeadamente no seu
livro Der Einzige und seine Eigentum (1847). Recusando
toda a hierarquia e posse, o «único» nega-se a aceitar a
soberania, mesmo na forma mitigada do contrato social,
que nunca assinou e ao qual não se sente vinculado. Mas
ao fazê-lo recupera a soberania que nunca transferiu, a

76. Schmitt nem considera esta hipótese, pois parte demasiado convictamente
da tese de Kierkegaard, apresentado no texto sobre a «repetição»: "The ex-
ception explains the general and itself. And if one wants to study the gene-
ral correctly, one only needs to look around for a true exception. It reveals
everything more clearly than does the general. Endless talk about the general
becomes boring; there are exceptions. If they cannot be explained, then the
general also cannot be explained. The difficulty is usually not noticed be-
cause the general is not thought about with passion but with a comfortable
superficiality. The exception, on the other hand, thinks the general with in-
tense passion." (Kierkegaard)
77. Apesar da crítica intensa ao uso do sangue pelo romantiamo, por Nietzsche
associada ao império do sacrifício na história, no Zaratrutra afirma que «
Of all that is written I love only that which one writes with his blood». Cf.
Friedrich Nietzsche (1883-1885) - Thus Spoke Zarathustra, editado por A.
Caro & R. Pippin, Cambridge, Cambridge University Press, 2006, p. 27.
Como é evidente, não se trata de usar o sangue dos outros, mas pôr-se em
risco a si próprio.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 167

não ser idealmente, e entra numa guerra, aparentemen-


te desigual. Não se trata de uma outra soberania, mas da
mesma, a única que existe, pois corresponde a uma legi-
timação da história e das suas divisões e hierarquias. No
caso de Stirner recuperar a soberania equivale a fracturar
o princípio da sua intransferibilidade, base essencial de
toda a soberania moderna. Neste caso, existe um jogo em
torno da transferência e do transferido, recuperando-se
o que nunca se cedeu. Na estratégia complexa de Stirner,
ao reassumir-se secretamente a soberania, esta começa a
esboroar-se, pois segundo atributo da indivisibilidade
(ou do impartilhável) não podem existir dois soberanos
no mesmo território. Mas paradoxalmente é o que suce-
de mal se opera a contra-transferência, esse dizer, pensar
e mostrar «tudo». A guerra instala-se de imediato, por
paródica e caricata possa parecer, dada a desigualdade das
forças.

III. Crime

Estamos perante uma lógica profundamente dissi-


mulada, que trabalha a linha de fecho da soberania que
ocorre sempre em tono dos seus atributos78. Encontra-
mos sinais dela, desde sempre, na Antígona de Sófocles,
ou em Sade, que passa por Stirner, por Nietzsche, que já
deixara traços preocupados em Dostoievski, seu livro no
Crime e Castigo, onde pela primeira vez na literatura se

78. Em cada momento concreto um atributo da soberania torna-se essencial,


mas não todos ao mesmo tempo.
168 Arte Agora

apresenta a ideia de que não havendo qualquer limite ou


fundamento e não se aceitando uma soberania exterior ou
imposta, se recuperam todos os direitos soberanos. «Cri-
me», sintetiza Dostoievski. Numa lógica inexorável, Stir-
ner extraiu todas as consequências da crise da soberania,
ou da assunção da sua posta em crise ou de explicitação da
sua crise essencial. Numa passagem onde revela mais do
que pretensamente quereria - mas tal como Sade também
ele queria «dizer tudo» -, afirma a certo momento: «O
Estado exerce o seu “poder”, o indivíduo não o pode fa-
zer. O comportamento do Estado é o do poder violento:
a esse poder ele chama “direito”, ao do indivíduo chama-
lhe “crime”. O poder do indivíduo chama-se então crime,
e só pelo crime ele pode quebrar o poder do Estado, se for
de opinião que não é o Estado que está acima dele, mas ele
acima do Estado»79. Não se trata de uma defesa do crime,
por Stirner. Todo o acto que reassume ou contra-tranfere
a soberania só pode surgir como crime, ou é criminali-
zado. O facto deste aspecto ter sido mal compreendido
fez todo o escândalo do livro de Stirner, e a tentativa de
silenciá-lo.
Trata-se de uma consequência dupla. Por um lado,
todo o acto resultante da guerra de soberanias surge como
crime; por outro lado, a recusa dos limites, colocados pelo
direito e as normas efectivamente vigentes, não conse-
guem impedir o crime efectivo, como se torna límpido
no caso de Raskolnikov, o estudante nihilista descrito por

79. Cf. Max Stirner, O Único e a sua Propriedade, Tradução, glossário e notas
de João Barrento, Posfácio de José Bragança de Miranda, Lisboa, Antígona,
2004, p. 115.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 169

Dostoievski, que pratica o crime mais hediondo, desde as


antigas tábuas da Lei, o assassinato. A grande dificuldade
de abordar o problema da soberania, que fez com que ele
fosse sempre um problema subterrâneo, filosófica, estéti-
ca e politicamente tem a ver com o facto de a soberania,
em última instância, suscitar uma guerra permanente, im-
parável, implacável. De facto, historicamente, a soberania
acaba por ser o efeito de uma guerra que marcou todo
a humanidade, surgindo para a dissimular e legitimar o
estado de coisas, o regime de propriedade, a hierarquia
dos objectos e dos sujeitos. Na modernidade, a tentativa
de fundar a política na soberania parece remeter para a
crise da «energologia» profunda que atravessou toda a
história, crise essa que se torna clara no século XIX com
Marx80. Por outro lado, a soberania estatal legítima a geo-
política moderna, resultante da «tomada da Terra» pe-
los poderes históricos81. Este último aspecto é essencial.

80. Por energologia descreve-se o facto de que a construção da história, cida-


des e monumentos, obras e objectos, resultou do uso de energia humana
(e animal) , acumulada e gasta pelos senhores. Quando Marx descreve os
seus principais traços no século XIX, tinha entrado em crise profunda, por
duas razões: 1) juridicamente, porque o indivíduo passa a contra; 2) tecni-
camente, porque as energias e os motores mecânicos começaram a dispensar
a energia humana.
81. Carl Schmitt tende a naturalizar a «tomada da terra», sobredeterminada
pelos nomos, as leis da comunidade, mas lido a partir da crítica marxista à
propriedade percebe-se que a tomada da terra é o fundamento da geopolítica
histórica. Ver Carl Schmitt, Der Nomos der Erde im Völkerrecht des Jus
Publicum Europaeum, Duncker & Humblot, 2.ª edição, 1974. Para uma
crítica das posições de Schmitt, ver José Bragança de Miranda, « Geogra-
fias: Espaço e controlo da Terra » in Bragança de Miranda & Prado Coelho
(Orgs), Espaços, número temático da Revista de Comunicação e Lingua-
gens, Lisboa, 2005, nº 34/35.
170 Arte Agora

Na medida em que a soberania implica um soberano por


território, como está bem representado no frontispício
do Leviathan de Hobbes, e na própria ideia de transferên-
cia e intransferabilidade, o surgimento de outro sobera-
no, mesmo que incógnito, implica assumir os mesmos di-
reitos que o soberano histórico e instalado, quais sejam o
estabelecer leis, propô-las, alterá-las, executá-las; assumir
o direito de vida ou morte, de decretar a excepção, mobi-
lizar para a guerra, de pedir sacrifícios de todo o tipo, e de
sacrificar tudo e todos.
Em suma, atacar directamente o problema da sobe-
rania tem custo claros, como seja a guerra permanente e
a violência generalizada82. Acresce que se trata de uma
guerra desequilibrada e desigual, que leva necessariamen-
te a um desvio dentro do tudo dizer, mostrar, pensar.
Como afirma Stirner, mais uma vez ele, «se eu quisesse
agir de forma ridícula, avisar-vos-ia com as melhores in-
tenções no sentido de não promulgardes leis que possam
afectar o meu desenvolvimento, a minha actividade, a mi-
nha criação pessoal. Mas não dou tal conselho, porque,
se o seguísseis, seríeis pouco inteligentes, e eu ver-me-ia
privado de tudo o que ganhei. De vós eu não quero nada,
porque fosse o que fosse que eu exigisse, vós continuaríeis
a ser legisladores autoritários, e tendes de o ser, porque
um corvo não canta e um ladrão não vive sem roubar. Per-
gunto antes àqueles que querem ser egoístas o que acham
mais egoísta, se aceitar as leis que lhes dais e respeitá-las,

82. O problema desaparece se o acto for meramente teórico, ou baseado em va-


gas «profanações»…
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 171

ou exercer a rebeldia e mesmo a total desobediência»83.


Para além do estilo tonitruante que Marx tanto satirizou,
a questão não está, como pensava Marx num pobre D.
Quixote reduplicado de Sancho Pança, mas é um assunto
politicamente denso. Dado o desequilíbrio de poderes e
de forças, seria ridículo afirmar a soberania, sem imediata
aniquilação como «criminoso» ou «terrorista». Stir-
ner enuncia a possibilidade de poder dizer tudo, e fá-lo,
para retirar no mesmo gesto a frase dita a mais, aquela
que «avisa» da presença de outro soberano, disposto a
disputar o território e a propriedade. Deduz-se daí, que
nessa corrente de soberania que atravessou a história, o
verdadeiro soberano só o é dissimuladamente. Está na
guerra sem a ter declarado. É por isso que nunca poderá
ser reconhecido, apesar de estar em guerra total. Daí que
Stirner, que não era artista, mas um «louco», segundo a
censura alemã da época, se arriscasse um pouco, dissesse
um pouco a mais do que quereria dizer. Dostoievski pôde
anunciá-la e não teve problema porque estava no bom
lado da guerra da soberania; a primeira parte do livro era
o crime e a segunda era o castigo, o que regularizava a si-
tuação. Era possível anunciar uma tese tão extrema como
o direito do Raskolnikov a matar quem quisesse, quem
ele achasse inferior, – ele não tinha nenhuma regra a que
se vinculasse – porque na segunda parte, depois, ele sofria
a sua conversão cristã através do amor e tudo se resolvia.
Mas era enquanto artista, e dos grandes, que Dos-
toievski podia apresentar um caso tão extremo e tão pro-

83. Max Stirner, Ibidem, p. 115.


172 Arte Agora

blemático. Dado o poder de desinserção que tem toda a


leitura, quem garante que se chegue à segunda parte do
livro? Não foi a primeira que chegou a Nietzsche e o ater-
rou84? É que, mal-grado o cristianismo de Dostoievski, o
resultado a que se chega é paradoxal. O acto da soberania
ser assumida dissimuladamente, implica que se dissemi-
nou por todo lado, tornando todos «suspeitos», mas
antes de mais, irreconhecíveis ou inquietantes. Sabe-se
como Dom Sebastião esteve sempre a ser reconhecido,
pois era esperado, ou como a paranóia da Lei vê crimi-
nosos por todo o lado85. Assumir uma soberania secreta
por uma estranha contra-transferência, tem como efeito a
fracturação da indivisibilidade da soberania, um dos seus
atributos principais, mas também o campear da violência
e do sangue.

84. É conhecida a denegação nietzschena de Stirner, mas de facto, o nihilismo


resume-se na questão do ’crime» e, em última instância, no assassinato. A
teoria do «eterno retorno» é a solução para o problema,. De facto, a decisão
de dar curso a um acto extremo, a sua execução, no estado de coisas existente,
recai indefinidamente sobre todos os actos, passados, presentes e futuros. O
que parece implicar o reconhecimento do estado de cosias e da soberania
que o determina, dado que ela perseguirá indefinidamente o executante do
acto extremo. Mas não o pode impedir.
85. Criminoso que em contrapartida, tendem a ver-se como «soberanos».
Numa interpretação de Benjamin acerca do «grande criminoso», afirma
Jacques Derrida: «Benjamin dizia que o grande criminoso fascina as multi-
dões, mesmo quando se o condena e o executa, porque desafia, com a lei, a
soberania do Estado como monopólio da violência, ou o ser-fora-da-lei do
próprio soberano». Cf. Jacques Derrida, O Soberano Bem, Viseu, Palimage,
p. 61. Também não é casual que nas carta ditas da loucura, Nietzsche afir-
masse ser, além de Cristo ou Dionísio, Prado, um dos grandes criminosos
do século XIX.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 173

Eis então o paradoxo, essencial, que não tem solução


fora da arte. A exibição de uma segunda soberania leva à
guerra e à lógica do crime, envolvendo tudo num man-
to vermelho do sangue. Mas não a assumir implica ficar
prisioneiro da lógica do Estado, na sua máquina impa-
rável de destruição da vida e de retalhamento da terra…
de exaustão, se quisermos, das nossas possibilidades de
criarmos qualquer coisa em comum, seja lá o que for… se-
gundo aspectos inantecipáveis. Referiu-se já que um dos
seus paradoxos a soberania fractura-se e dissemina vagos
«soberanos» por todo o lado. E de facto, este problema
só tinha sentido político no século XX e não no nosso,
em que a arte e a política se expandem sobre a totalidade
da terra86. Tudo se radicaliza quando o que está em causa
é a totalidade da terra e numa situação em que cada caso
pode contar e ter peso, como vimos com Abu Grahib e
como não poderá deixar de ser, pois apenas a desobediên-
cia pode evitar o pior. As bombas do Enola Gay lançadas
em 14 de Agosto de 1945 sobre Hiroxima não teriam sido
lançadas por Sade, para isso estão sempre aí os pequenos
Eichmann e os seus chefes87.
É plausível, acreditamo-lo, que seja essa longa fileira
de soberanos disfarçados, desconhecidos e irreconhecí-
veis que deixam o mínimo de sinais possível, que alimen-

86. Neste sentido, se do ponto de vista da ocupação geopolítica e estatal do ter-


ritório, qualquer reassunção da soberania leva a uma guerra inevitável, de-
sembocando no «crime», pode prever-se que a soberania disputada através
da arte remete para um outro território, o do espaço humano que recobre
a totalidade da terra. Neste caso o senhor e o tirano são invasores e estão a
mais, perdendo qualquer privilégio.
87. Hannah Arendt tem razão, mas o assunto é outro….
174 Arte Agora

ta a parte mais virulenta e radical da arte, aquilo que a tor-


na em algo crucial do ponto de vista político. Ao mesmo
tempo exibir, propulsar e sustentar a lógica extrema da
guerra das soberanias, e a lógica do sangue e da guerra que
a alimenta, suspendendo essa violência, diferindo-a, sem
entregar essas energias à solta, num delírio de «outra»
soberania, às máquinas de dissipação estatal, financeiro
ou espectacular que pesam sobre a vida e a terra. Bastem
os exemplos de Sade, Dostoievski, mas também de Bau-
delaire, Rimbaud, ou Mallarmé que se definia como vi-
vendo «numa época onde o poeta está fora da lei»88.
É certo que as artes, e os artistas, no seu romantis-
mo negro89, estiveram desde sempre fascinadas pelo cri-
me, sem saber bem que fazer desse fascínio. E de facto,
usaram-no abundantemente, basta pensarmos no roman-
ce ou nos filmes, onde todas as paixões, perigosas ou não,
têm curso. Em boa medida, o cinema ou a televisão, todas
as artes acabaram subjugadas à rendibilidade geral que
estrutura a economia geral que nos dirige. É certo que o
assassinato em celulóide não faz sangue, mas não é menos
certo que é impolítico e anartístico. Como também a pura

88. Mallarmé, enquête par Jules Huret menée pour l’Echo de Paris (1891).
89. Existe uma soberania negra, que se opõe ao direito e que simula poder insti-
tuir direito, quando nega apenas o existente. Ela é um delírio da soberania
estatal, e é tão inevitável e duradoura como a outra. Sobre o romantismo ne-
gro, historicamente ligado ao gótico novecentista, ver Mário Praz (1930), La
carne, la morte e il diavolo nella letteratura romantica, Milão, Rizolli, 2008.
Relativamente à arte contemporânea, Jean-Michel Rabaté mostra bem o fas-
cínio da arte com o crime, num processo que vem de Thomas de Quincey, de
Edgar Allan Poe, até Marcel Duchamp e Man Ray. Cf. Jean-Michel Rabaté,
Etant donnés : 1° l’art, 2° le crime – La modernité comme scène du crime,
Dijon, Les Presses du Réel, 2010.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 175

defesa da violência não é solução. Por exemplo, Karlheinz


Stockhausen, um artista fundamental, descreve a queda
das Torres em Nova York como «a maior obra de arte
que alguma vez existiu», prosseguindo, «O facto de que
alguns espíritos realizem com um único acto algo com
que na música nem podemos sonhar, de que as pessoas
pratiquem durante dez anos, louca e fanaticamente, e de-
pois morram. Esta é a maior obra de arte de todo o cos-
mos»90. A estas palavras seguiu-se o escândalo, a censura
e percebe-se, pois não enquanto artista que Stockhausen
se exprimia, mas dentro de uma lógica de soberania que
não pode ser explicitada, que não seja através da arte. Ora,
nesta pode-se dizer tudo pela arte, tudo aquilo que não é
possível dizer pela política, sem cair no jogo da violência.
Apenas o recurso à ideia de que a arte fractura a soberania
em proveito de uma outra soberania, permite introduzir
uma diferenciação por ténue que seja. E é através de efeito
infra-mínimo que arte e política se cruzam e densificam
no entramamento do real.
A arte que se coloca ao serviço de uma cidadania
segunda tem como território todo o espaço da arte, que
coincide com a terra, que a recobre, longe agora da coesão
icónica medieval ou da tectónica grega. Neste sentido, é
um jogo em torno dos atributos absolutos da soberania
– o da Incondicionalidade, da indivisibilidade, da ins-
transferibilidade, da decisão excepcional, que trabalha

90. Karlheinz Stockhausen, Das Pressegespräch am 16. September 2001 im Se-


natszimmer des Hotel Atlantic in Hamburg in MusikTexte, 2002, n. 91,
pp.76–77.
176 Arte Agora

de modos diversos e plurais. Os casos mais interessantes


em arte vêm daqueles que conseguiram forjar novas for-
mas, procedimentos radicais, que avançaram com uma
série de tácticas plurais e livres, que se revelaram politi-
camente interessantes e artisticamente fortes. É o caso,
por exemplo, das conversões de Duchamp, a hiperden-
sificação grotesca de uma Cindy Sherman, de arcaização
da história pela terra em Robert Smithson, das tácticas
do baixo materialismo de Courbet a Bataille, etc., etc. Ou
entre nós, por exemplo, da interessante experimentação
de Sofia Neuparth no CEM, caso das «Práticas para ver
o invisível e guardar segredo», onde vários jovens artistas
redesenham artística e conceptualmente 5 locais da Gra-
ça, que prolongam e (re) dividem, procedendo a uma ver-
dadeira ocupação artística do território, com a conivência
profunda dos habitantes91.
Trata-se de nomes, de casos, de obras que irrompem
no real, fazendo comunicar arte e política. Dando uma
oportunidade a ambas. Trata-se de tácticas soberanas,
mas sem sangue, embora se faça arte com sangue - senão
veja-se Gina Pane ou os accionalistas de Viena -, uma
infinidade de tácticas que estão a caminho e que não te-
mos a mínima possibilidade de reconhecer como é que
comunicam, em que espaço é que comunicam, se chegam
verdadeiramente a criar uma comunidade… Isso só pode
ocorrer por inadvertência, sem programa, resistindo à so-

91. Estas «práticas» integram-se no Festival Pedras d’ Água ’10 (Lisboa, 16 a


24 de Julho de 2010). Ver http://www.c-e-m.org/?p=835 (acedido em 30
de Janeiro de 2011).
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 177

berania de outro modo, mas dentro do espaço aberta por


ela. Sobre este assunto, Derrida afirma: «Se tivesse que
propor aqui uma tese política, não seria a da oposição da
soberania e da não-soberania…, mas uma outra política de
partilha da soberania, a saber a partilha do impraticável e
a divisão do indivisível»92. Mas a ser possível essa parti-
lha ou divisão, um sonho democrático elogiável, já não
haveria soberania… mas outras formas de vida. O proble-
ma da arte e da política coloca-se apenas enquanto existir
Estado e o seu misterium tremendum – a soberania. Não
depois dele…

IV. Complô

Larvato prodeo – avanço mascarado - disse um pou-


co misteriosamente Descartes. Mas já o dizê-lo é sintomá-
tico. Se toda a assunção da soberania implica um disfarce,
a arte é a forma política desse disfarce. Ela permite dizer
tudo/ mostrar tudo / pensar tudo, sem fazer tudo. Re-
gressando ao caso da Antígona, a que já aludimos. Se do
estrito ponto de vista grego a soberania lhe está vedada,
por ser mulher, naquilo que esta tragédia tem de universal
detecta-se uma primeira forma da estratégia nietzschiana
do complô, ao menos na forma que lhe deu Pierre Klosso-
wski93. O complô é a reassunção de uma soberania secreta,
invisível e dissimulada, que se expressa apenas pelos seus
efeitos, na insegurança da sua presença real. Reassumir a

92. Derrida, ibidem, p. 17.


93. Ver Pierre Klossowski, Nietzsche et le cercle vicieux, Paris, Gallimard, 1975.
178 Arte Agora

soberania como faz Antígona, saindo do palácio onde lhe


estava destinado um lugar, é ir contra o Estado e o esta-
do de coisas, e o complô desenvolve-se na busca dos seus
próximos, dos aliados secretos, habitantes do espaço livre
dos humanos. Os deuses não são os aliados, mas os que
segregam a força onde se alimenta o desejo desmesurado
de Antígona. Recuperar a soberania de que o estado se
apropriou, simulando que vem de «nós», que lha demos
só por termos nascido - eis o dever a que Antígona se sa-
crifica. O coro horrorizado crítica a hybris de Antígona e
de Creonte, mas a arte pode aproximar-se e aproximar-
nos da hybris, sem sermos destruídos.
Na verdade, não saberemos nunca como comu-
nicam, ou se comunicam, Antígona e Sade, Lucrécio e
Shakespeare, Mallarmé ou Duchamp; não temos forma
de dizer se formam algo comum, ou não. Contra o deso-
lado isolamento de Stirner e dos soberanos disfarçados, a
única hipótese é que todos eles partilhem de um mesmo
complô. A dificuldade está no facto de que nos complôs
antigos todos tinham santo-e-senha, no complô onde se
joga o destino do humano nada disso existe. Pressentimos
que a enviarem sinais, esses sinais poderiam ser lidos. O
que é de certo modo impossível, pois como prescreve um
poema de Brecht, é preciso «apagar os sinais»94. Nestas

94. Trata-se de um poema dos anos 20 « Verwisch die Spuren», onde se pode
ler « Whatever you say, don’t say it twice / If you find your ideas in anyone
else, disown them. / The man who hasn’t signed anything, who has left no
picture / Who was not there, who said nothing:/How can they catch him?
/ Cover your tracks!-» . Cf. Bertolt Brecht, “Cover Your Tracks” in Brecht,
Poems 1913–1956, ed. Willett and Mannheim, trans. Frank Jones.
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 179

circunstâncias, tem de haver a possibilidade de um com-


plô onde ninguém se conheça nem reconheça, em que
todos estejam a actuar, deixando vagos sinais, que nem o
chegam a ser. A arte é a forma mais geral desse complô.
Quando algum acto consegue ligar arte e política, encon-
tramos uma forma de partilha e de divisão, em torno de
cuja linha podemos esperar que se encontrem os nossos
próximos, os nossos irmãos.
Arte e civilidade

Christine Greiner

Muitas pessoas ficaram intrigadas com as reporta-


gens que circularam pelo mundo mostrando as tragédias
(terremoto, tsunami e acidente nuclear) que acometeram
o Japão em 2011. Mas um dos detalhes que mais chamou
a atenção de todos foi o comportamento das pessoas. Gra-
vações na internet mostraram, por exemplo, jovens fun-
cionárias de uma loja de conveniência, segurando as gar-
rafas de vinho nas prateleiras para não quebrarem na hora
do forte tremor, ao invés de tentarem se proteger. Filas
foram organizadas para receber os auxílios de alimenta-
ção e fazer os exames médicos. Não houve saqueamentos
nas lojas ou nos mercados. Ninguém tentou empurrar os
vizinhos para passar na frente ou ser atendido primeiro.
Mas de onde vem essa civilidade para lidar com as
situações de risco? Trata-se de um hábito cognitivo de
obediência, um sentimento de coletividade ou a civilida-
de faz parte de uma percepção de vida vinculada a outros
182 Arte Agora

aspectos do cotidiano como o apreço à beleza, à arte e um


modo estético de estar no mundo?
Quando visitei o Japão pela primeira vez percebi
imediatamente que a viagem não dizia respeito apenas
ao estar em um lugar diferente, mas sim, ao experimentar
um outro modo de perceber a vida. Havia um cuidado in-
comum com detalhes estéticos. Um bom exemplo é o da
arte das embalagens e das amarrações. No Japão, alem dos
presentes, tudo pode (e deve) ser embalado: as comidas,
as maçanetas de portas, os livros (os vendedores das livra-
rias sempre perguntam se o freguês quer que eles encapem
os livros com papel), os vasos sanitários, os celulares etc
Os famosos lenços furoshiki estão em toda parte, amar-
rados em forma de bolsa e outros pacotes. Nos templos e
casas de chá tradicionais, o código para avisar que não se
pode pisar em determinado espaço é uma pequena pedra
amarrada que fica disposta no local a ser preservado.
Há muitos outros exemplos que demonstram um
cuidado e detalhamento ao qual não estamos habituados.
O chef de cozinha Jun Sakamoto me contou certa vez que
para montar corretamente um sushi, é preciso haver uma
pequena diferença de temperatura entre o arroz e o peixe,
que faz com que o sushi tenha vida e o sabor se prenuncie.
Se ambos estiverem gelados ou a temperatura ambiente, o
sushi está “morto”. O desenho delicado e dramático san-
bonashi (três pernas) que se costuma pintar na parte de
trás do pescoço das gueixas é também um exemplo de ges-
to minucioso. Ele deve dar a impressão de que se pode ver
a pele nua do pescoço através de minúsculos pontos num
contorno branco. A gueixa costuma deixar também uma
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 183

beiradinha de pele nua em torno da linha do couro ca-


beludo, deixando claro que a maquiagem é uma máscara
sobre o rosto. Esta estratégia de contraste da pele pintada
e da pele nua tem um efeito erótico extraordinário nos
homens japoneses, assim como as golas dos quimonos,
cuidadosamente abertas nas costas de modo a mostrar as
primeiras vértebras da coluna.
Tudo diz respeito ao entre ou ma. Na arquitetura,
na culinária, na maquiagem, na vestimenta e assim por
diante. O ma não é um conceito, mas uma percepção das
coisas, das pessoas, dos lugares e dos movimentos e é in-
dissociável da estética. A distancia exata entre um e outro,
de modo a conferir individualidade sem perder o sentido
da coletividade.

Um certo modo de perceber a beleza e seus


desdobramentos políticos

O primeiro escritor a ganhar o prêmio Nobel de li-


teratura no Japão foi Kawabata Yasunari. Quando este
novelista de estatura miúda fez seu agradecimento em
Estocolmo, em 1969, aproveitou a oportunidade para
declarar o seu comprometimento com a beleza. O seu
discurso “Japan, the Beautiful and Myself” virou um li-
vrinho que exprime a beleza poética da neve, da lua, das
flores e o comprometimento de Kawabata com a estética
tradicional japonesa.
Vinte e cinco anos depois, um outro escritor japo-
nês foi premiado com a mesma honraria e nomeou seu
discurso em tom de provocação a Kawabata: “Japan, the
184 Arte Agora

Ambiguos and Myself”. Isso porque, Oe havia concluído


que a tão festejada beleza da estética japonesa celebrada
por Kawabata hipervalorizou um certo modo ambíguo
de comunicação que provou ter sérias conseqüências no
Japão, inclusive para os modos como se pensa, até hoje,
democracia no pais.
Sem tomar partido de um ou de outro, uma coisa se
pode observar do ponto de vista estrangeiro: de um modo
ou de outro, o povo japonês incorpora de maneira bas-
tante fundamental a beleza na vida cotidiana e há impli-
cações diferentes. Na vida de alguns artistas, como o pró-
prio Kawabata e o escritor Mishima Yukio, com quem
trocou correspondências de 1945 a 1970, a apreciação
estética norteou um projeto pessoal finalizado em suicí-
dio. E entre os dois artistas teve significados diferentes.
O que interessava a Kawabata não era tanto a exploração
do corpo, mas a relação estranha de forças entre homem
e outros animais, como escreveu em seu romance Bestiá-
rio. O filósofo Martin Heidegger dizia que os animais em
geral cessam de viver, apenas o homem morre. Mas à Ka-
wabata interessava particularmente o fazimento e desfa-
zimento dos vínculos. Para ele, a beleza pode nos ligar aos
outros, em um desejo de compartilhamento e empatia. Já
em Mishima o seu desafio sempre esteve ligado à carne, à
beleza viril dos kamikazes, ao desejo de profanar e matar
a beleza “porque ela seria bela demais”. A estética parecia
indissociável do limiar entre vida e morte.
Para outros artistas e amadores, a socialização da es-
tética tornou-se um componente central de toda civilida-
de pré-moderna japonesa e se constituiu como uma esfera
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 185

cognitiva e espacial que Eiko Ikegami (2005) chamou de


“estética pública”. Foi no Shogunato Tokugawa (1603-
1867) que nasceu a estética japonesa que, desde essa épo-
ca passou a ter um papel inesperado na invenção de esti-
los de civilidade e identificação cultural. É provável que
alguns traços desta época tenham sobrevivido nos modos
de conviver que identificamos ainda hoje nas situações de
risco. A solidariedade, nestes casos, parece nos arrancar
da mesmice recuperando a nossa capacidade de espanto.
Mas no Japão a arte e a estética sempre foram mo-
dos de compartilhamento e uma espécie de tecnologia de
transformação na medida em que possibilitaram a orga-
nização de alianças horizontais (ikki) que se mostraram
muito vigorosas no período medieval. Isso porque elas se
tornaram uma rede de resistência diante das hierarquias
nacionais organizadas pelos samurais. Apesar de toda
dificuldade política, tinham grande vitalidade e estabe-
leceram modos de sociabilidade que sustentaram um
sentimento crescente de comunidade. Ikegami chega a re-
conhecer uma rede verdadeiramente revolucionária neste
período, o que contradiz o que observam outros historia-
dores que reconhecem a era Tokugawa como o momento
mais rígido da história do Japão, quando supostamente o
povo japonês ficou isolado do resto do mundo e submisso
às ordenações internas de poder.
O que me parece curioso é como essas alianças ho-
rizontais se organizavam. Ikegami explica que aprender
a escrever e recitar poemas, assim como outras formas de
arte como a dança e o teatro representavam o processo
de incorporar o conhecimento estético e não diziam res-
186 Arte Agora

peito apenas aos artistas profissionais. Neste momento é


concebida a imagem estética do Japão como resultado de
ações sociais entre cidadãos comuns. Esta imagem ficou
tão forte que foi revitalizada muitas vezes nos momen-
tos em que o Japão precisou repensar a sua identidade,
como no momento em que o governo abriu as suas portas
(oficiais) para o Ocidente durante a Restauração Meiji
(1868-1912) ou mesmo depois da II Grande Guerra com
a ocupação norte-americana no Japão.

O corpo na concepção estética da vida

Além da infiltração subversiva da arte na vida coti-


diana, o que colabora para entender a noção de civilidade
e estética no Japão é o modo como os japoneses percebem
o corpo.
Apesar de muito distintos entre si, os dois sistemas
que nortearam os primeiros entendimentos do corpo no
Japão foram o Budismo Mahayana e a Medicina Chi-
nesa. O primeiro, em certo sentido, serviu como veícu-
lo de transmissão das idéias do segundo e fez da noção
de corpo no Japão um tópico muito complexo e, desde
o início, culturalmente híbrido. De fato, a própria medi-
cina chinesa já estava organizada como uma combinação
de muitos sistemas terapêuticos que funcionavam como
correspondências sistemáticas.
No ocidente, um dos maiores estudiosos da medici-
na chinesa, Paul Unschuld (1985), explica que durante o
período de 3.500 anos que tem início no século 15 a.C.,
a medicina Chinesa constituiu-se a partir de diferentes
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 187

práticas como a terapia oracular, a medicina dos demô-


nios, o shamanismo religioso, terapias a partir do uso de
drogas, medicina budista e medicina de correspondência
sistemática. Foi apenas, mais recentemente, que absorveu
procedimentos da medicina moderna ocidental. Mas não
há uma sucessão linear no sentido de que os praticantes
tenham trocado sistemas antigos por novos. Ao invés
disso, a diversidade de conceitos foi mantida simultane-
amente, sem substituição das práticas.
O que Unschuld identifica como os dois tipos de pa-
radigmas conhecidos também em outras culturas e que,
de certa forma, permearam os modos de atuação da medi-
cina chinesa são: o da causa e efeito entre fenômenos cor-
respondentes e o da causa e efeito entre fenômenos não
correspondentes. O primeiro foi baseado no reconheci-
mento de que fenômenos visíveis e abstratos podem ser a
manifestação de um grande e variável número de princí-
pios. Um exemplo de correpondência mágica é o de uma
pessoa e uma boneca que se parece com ela. Sob certas
circunstâncias, acreditava-se que tudo que se fazia com
a boneca, a pessoa poderia sentir. O segundo paradigma
que seria o da causa e efeito entre fenômenos não corres-
pondentes, estaria baseado na observação de que os fenô-
menos, tangíveis ou não, coexistem independentemente
e podem, sob certas condições, exercer influências uns so-
bre os outros. Homens e espíritos partilham um mesmo
ambiente. Eles são fenômenos separados sem relações in-
trínsecas mas, sob certas circunstâncias, podem interferir
uns nos outros assim como os humanos estabelecem rela-
ções com o vento, com as comidas, com os germes e assim
188 Arte Agora

por diante. Estas relações são temporárias, recorrentes aos


encontros permanentes entre fenômenos individuais e a
soma de fenômenos que constituem o universo. No caso
das intervenções de fenômenos supranaturais haveria,
por exemplo, negociações com ancestrais, espíritos, de-
mônios e, em alguns casos, leis transcendentais. No caso
das causações com fenômenos naturais, estas poderiam
ser comidas e bebidas, ar e vento, neve e misturas, calor e
frio, influências sutis da matéria, parasitas, virus, bactérias
e outros.
Estes dois paradigmas da medicina chinesa são fun-
damentais para entender a ocorrência de doenças e todo
desenvolvimento de intervenções terapêuticas. Com-
preendendo a medicina na China como uma “história
de idéias”, Unschuld explica que não é possível separar
instâncias reconhecidas de fisicalidade (neve por exem-
plo) daquelas de natureza espiritual (ancestrais) ou social
(crise política). Esta aliança entre natureza e cultura é o
ponto de partida fundamental para o entendimento da
relação entre corpo e ambiente na China. A congruên-
cia entre doutrinas terapêuticas particulares e ideologias
sociopolíticas determinam o apelo das doutrinas teara-
pêuticas para indivíduos ou grupos. A validade básica dos
conceitos terapêuticos teria sido sempre primariamente
social (Unschuld, op.cit: 12). No caso da medicina chi-
nesa, as mudanças nos conceitos dominantes para a causa
das doenças acontece quando muda também a base socio-
política. Em certa medida, a reorganização social é sem-
pre refletida no pensamento médico. Neste sentido, há
um fluxo de informações entre esferas internas e externas,
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 189

referentes por exemplo ao corpo (dentro do corpo) e o


ambiente (entorno).
Um caso exemplar pode ser encontrado nos trata-
dos do vento. Kuriyama Shigehisa (1994) afirma que há
poucas coisas no mundo mais perigosas do que o vento na
Medicina Chinesa. Ele pode causar dores de cabeça, vô-
mitos, câimbras, tonturas, perda da fala e assim por dian-
te. “Ferido pelo vento” (shangfeng) um paciente pode
queimar em febre, “derrubado pelo vento” (zhongfeng)
entra em coma subitamente. O vento pode causar tam-
bém a loucura e a morte.
O vento tem tal importância na Medicina Chinesa
porque a sua imaginação permeou o entendimento das
aflições do corpo e os diferentes modos de compreender o
mundo, da medicina à meteorologia, orientando também
idéias de espaço e tempo, poesia e política, geografia e a
própria noção de si-mesmo. Kuriyama indaga qual seria
a relação entre os ventos do corpo e os ventos do tempo,
a poesia e o si-mesmo presentes em diversos manuscritos
antigos. De certa forma, a compreensão destas relações
pode ajudar a elucidar a ponte entre natureza e cultura
nos modos de entender e perceber o corpo tanto na Chi-
na, como na Índia e no Japão.
De certa forma, os ventos tornaram-se a expressão
primária de um espaço divinamente ordenado e dinâmi-
co capaz de governar o mundo e a sensitividade dos seres
vivos. Portanto, os ventos não assombravam a imagina-
ção apenas como um fenômeno meteorológico vago, mas
como ventos especificamente localizados no leste e no sul,
no oeste e no norte. Isto poderia orientar as ações mais
190 Arte Agora

propícias para quem precisava caçar ou para direcionar


como o rei deveria começar a sua caminhada num deter-
minado dia. Certas brisas sopravam os insetos que come-
çavam a se agitar. Cavalos e vacas acometidos pelo vento
eram estimulados à urgência do acasalamento.
Kuriyama conclui que refletir sobre o vento signifi-
cava contemplar o mistério da mudança. Este seria o tema
mais importante que atravessa a história da imaginação
chinesa do vento. Isso porque, os ventos não apenas cau-
sam as mudanças mas são, eles mesmos, as mudanças. O
dicionário Guangya afirma “vento é movimento” . Invisí-
vel mas ubíquo em sua influência, o vento inspira temor
mas também profunda admiração.
O estudo dos ventos está diretamente relacionado a
muitas doenças e não seria nada diferente do estudo dos
estados alterados do corpo, dando voz e intuição aos se-
gredos mais profundos da medicina que estavam no enig-
ma de como um estado de ser se transforma em outro.
Há contrastes entre os tratamentos. Os médicos da
era Shang investigavam os espíritos supernaturais, os da
era Han analisavam as forças da natureza, por isso há um
contraste em relação à medicina clássica. A medicina ar-
caica, muito anterior ao período pré-socrático ocidental,
não era uma ciência que observava ou manipulava o cor-
po humano. A negociação mais importante era com os
ancestrais. É só na medicina clássica que os estudos da do-
ença e do corpo tornam-se inseparáveis. Eles não despre-
zavam a influência do vento ou do frio, mas consideravam
que a pessoa só ficava predisposta à doença se o corpo es-
tivesse em alguma medida vulnerável. Assim, a medicina
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 191

clássica definiu as doenças e seus graus de seriedade não


apenas pelo grau de descompasso sazonal (por exemplo,
um pulso de inverno na primavera) mas na relação entre
paciente e tempo cósmico. A questão da individuação na
China Clássica não tem uma base ontológica. A natureza
do si-mesmo é a natureza mesma do ambiente. Por isso o
si-mesmo seria, em certo sentido, como o vento.
A pele seria dividida em respiração interior e ventos
externos. Através da pele as principais doenças atacavam
e através de seus poros penetravam no corpo. Poros fecha-
dos garantiam a vitalidade demarcando e salvaguardando
o si-mesmo interior do caos exterior. Nos textos medie-
vais dizia-se que haviam 84 mil poros na pele, mas os mais
estudados eram os escolhidos pela prática da acupuntura.
Eram conhecidos como xue (buraco ou caverna). Este
termo aparece relacionado aos mitos de origem dos ven-
tos nos buracos da terra. De acordo com uma lenda chi-
nesa, os ventos aparecem quando o pássaro feng emerge
da caverna (fengxue) onde vivem e se acalmam quando
ele retorna à caverna. Em outra versão, as quatro direções
foram colocadas do lado de fora por quatro cavernas das
quais se originaram os ventos cardeais. Como passagens
do vento, os xue eram sempre mediados pela respiração
pessoal e cósmica. Eles representavam a microestrutura
da conexão humana com o tempo do universo. Mais do
que outro modelo de Medicina Chinesa, a atenção ex-
traordinária devotada à pele e seus orifícios espelhavam
a interdependência entre a concepção chinesa de corpo e
a imaginação dos ventos. Não se trata de uma cristaliza-
ção da oposição entre fora e dentro do corpo, mas de uma
192 Arte Agora

consciência distinta do corpo que está sempre relaciona-


do, mas ao mesmo tempo distinto do mundo exterior.
Há uma tentação para tratar o vento como uma
simples metáfora, observa Kuriyama, sobretudo quan-
do se identifica vento com mudança e tempo. Mas a
atenção que os médicos chineses davam à pele e aos po-
ros mostra que se quisermos abordar o tema a partir de
metáforas, é importante compreender que se tratavam
o tempo todo de metáforas corporais. Isso porque, a
imaginação do vento vem de uma experiência concreta
de espaço orientado e lugar localizado. A respiração pes-
soal se harmoniza com a respiracão cósmica. Assim, a
característica de todos os ventos (interiores e exteriores
ao corpo) seria sempre aquela de reter uma contingên-
cia caótica: a possibilidade de soprar em novas e inespe-
radas direções.
Os modos como alguns destes entendimentos che-
gam ao Japão não é facilmente identificável porque sem-
pre houve uma grande diversidade de tendências impor-
tantes aplicadas em comunidades chinesas expatriadas
(como práticas shamânicas e exorcismos de demônios),
além de muitos sincretismos com a medicina ocidental
e outras culturas orientais. Ainda hoje há, por exemplo,
números espantosos da quantidade de curandeiros espa-
lhados por cidades como Tóquio e Quioto. Mary Picone
(1989) explica como a idéia de corpo no Japão é bastante
marcada por representações que derivam de interpreta-
ções leigas ou de curandeiros populares que, segundo a
pesquisadora, podem ser reconhecidas como fontes das
representações “autenticamente japonesas”, mesmo ten-
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 193

do sido importadas e, evidentemente, transformadas du-


rante o processo de migração.
No Ocidente, as primeiras tentativas de tradução
destas representações sugerem um conceito “holístico”
de corpo que se oporia ao dualismo cartesiano “corpo-
mente”. Diz-se que na Ásia (sobretudo India, China e
Japão) o corpo não é tratado separadamente da mente e
a saúde é condição tanto espiritual como orgânica. Mas
ao observar a medicina chinesa ou kanpô (a sua tradução
japonesa), Picone verifica que o holismo assume signifi-
cados diferentes. Isso porque, todos os aspectos ou partes
do corpo de uma pessoa são pensados como interrelacio-
nados e, por sua vez, o corpo também é pensado como
sendo apenas um elemento em um universo de entidades.
Assim, ao contrário do que tem sido repetido incansavel-
mente no senso comum ocidental, não se trata de uma
visão holística que busca a relação causal para estados cor-
porais a partir de fatores externos ou que se ampara na
idéia de que cada parte é o todo. A contextualização do
corpo se dá por diferentes estados simultâneos que, por
sua vez, operam representações distintas do corpo. Não
se trata de representações unívocas nem de laços causais
entre dentro e fora. Todos os aspectos ou partes do corpo
são pensados como interrrelacionados. Isso significa que
o corpo é apenas um elemento em um universo de inter-
relações. O médico reconhece um padrão de desequilíbrio
em um corpo mesmo que os componentes gerais deste
corpo estejam presentes refletindo o universo. Este corpo
não pode ser descrito como “feito” de certas substâncias,
mas a sua descrição está muito mais para atributos, fluxos
194 Arte Agora

e ações. As classificações são relacionais e não limitadas a


processos fisiológicos, mas extensivos a direcionamentos
do corpo no espaço, com respeito a estações, cores, tem-
po, estilos de governo, ambiente social etc. Portanto, in-
teressa a este estudo do corpo, uma ciência da metáfora
para a experiência proprioceptiva que diz respeito a como
um corpo se reconhece e é capaz de se estabilizar em um
ambiente. Neste sentido, não se trata da metáfora carte-
siana do “fantasma na máquina”, como formulou Gilbert
Ryle (1900-1976) a partir dos estudos de René Descartes.
O problema ontológico da relação entre corpo e mente
no Japão não pode ser reduzido à inserção de uma subs-
tância não extensa dentro de um corpo-máquina. A par-
tir de uma lógica analógica muito particular, diferentes
níveis de realidade atam-se uns aos outros.
Por isso, é importante compreender que o “holismo”
na China e depois no Japão, está mais próximo da cor-
respondência entre o universo físico, a ordem social e o
microcosmo do corpo humano. Diferentemente de algu-
mas versões do holismo ocidental que, muitas vezes, bus-
ca causas para os estados corporais em fatores externos, o
chinês procura o que se poderia traduzir como “contextu-
alização do corpo”. Mesmo nas longas relações entre pra-
ticantes de kanpô e pacientes, dificilmente há discussão
de problemas psicológicos. Existe, por outro lado, um re-
conhecimento de dificuldades de relacionamentos inter-
pessoais mas isso nunca será discutido e sim colocado em
termos puramente somáticos, ou seja, do funcionamento
do corpo explicado em relação ao mundo físico, embo-
ra este seja concebido de forma bastante extensiva e não
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 195

limitada. Não por acaso, o número de psicanalistas e psi-


cólogos no Japão ainda hoje é bastante limitado e talvez
a grande quantidade de curandeiros seja uma espécie de
contrapartida a isso, embora estes não costumem aceitar
pacientes supostamente insanos (kichigai).
Na medicina chinesa pré-moderna não havia ain-
da o reconhecimento do sistema nervoso. No entanto,
um desequilíbrio muito forte de uma das substâncias do
corpo (shen) poderia ser considerado loucura. Shen se-
ria mais do que corpo humano, vitalidade ou mente, uma
“deidade ou espírito”. No entanto, é importante observar
que mesmo o entendimento de “alma” não é único.

Outras palavras para outras coisas

François Jullien (1999) explica que a palavra-chave


para se compreender os modos de existência do corpo é qi
-- um termo geral e comum, sem grande significado filo-
sófico e que costuma ser uma fonte de confusão. Algumas
vezes os dicionários a definem como posição, circunstân-
cia, outra vez como poder ou potencial. Tradutores e in-
térpretes tendem a atribuir a confusão à insuficiência de
rigor do pensamento chinês e japonês, o que obviamente
é uma visão orientalista no seu sentido mais pejorativo.
Ocorre que não se trata de um conceito como aqueles
propostos pela filosofia grega que se preocupava com a
consistência dos conceitos apropriados. É justamente
a ambivalência do termo que parece mais interessante.
Além de migrar entre o estático e o dinâmico, o qi trafe-
ga entre diferentes níveis de descrição sem uma tradução
196 Arte Agora

unívoca. Mostra como o próprio pensamento chinês deve


ser percebido como uma realidade processual ou um pro-
cesso de transformação. Qi estaria para um tipo de po-
tencial que não se origina na iniciativa humana mas na
“disposição das coisas”. Ao invés de impor nosso desejo
por significados da realidade, para se aproximar do qi é
preciso estar aberto à uma força imanente pré-filosófica, a
uma compreensão pré-conceitual.
Esse termo nunca provocou uma análise geral e coe-
rente embora Wang Fuzhi no séc 17 tenha chegado perto
disso. É diferente de outros conceitos como o caminho
(tao).
Kristopher Schipper (1982) reconhece que a falta
de definição é uma marca da religião chinesa e também
o tao é indefinível em vários sentidos e só mesmo pode
ser apreendido em seus múltiplos aspectos. A tentativa
de tradução do tao como caminho está relacionada ao
seu significado primeiro: algo que permeia a mudança e a
transformacão de todos os seres e é mais do que um prin-
cípio, um processo espontâneo que regula o ciclo natural
do universo. É neste processo que o mundo como o ve-
mos encontra a sua unidade. Schipper explica que há dois
modos de ver o corpo e duas abordagens principais para
cada pessoa. A primeira é teológica e está atada à noção
de divindade e seus vários princípios de transcendência,
onde as múltiplas almas e espíritos representam energias
(ch’i) do corpo. Depende de teorias ontológicas e cosmo-
lógicas relacionadas a sistemas de correspondências da
teoria médica e dos rituais de estado bem conhecidos dos
estudiosos da medicina chinesa. A segunda abordagem é
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 197

empírica e origina as técnicas de acupuntura, medicina de


ervas, artes e ciências da China. Mas há ainda um terceiro
modo de ver o corpo que seria a visão simbólica, especi-
ficamente taoista. A partir desta abordagem, o corpo hu-
mano seria a imagem do país, representando uma relação
inseparável entre a visão taoista do mundo interior e os
exercícios físicos relacionados. Esta proposta aparece no
Chuang-tzu (sec 4 a.C)
O livro do Tao e o livro do Te (poder ou ação) fazem
parte do Tao-te ching e explicam um pouco mais acerca
deste tipo de conhecimento. O Tao-te ching seria anti-
intelectual e anti-militarista. O tipo de ação que propõe
é a não-ação e o termo que melhor o expressa seria “este
aqui”: uma percepção interior do momento.
O qi, por sua vez, também precisa de formas de reco-
nhecimento que vão da guerra para a política, da estética
para a caligrafia, da pintura para a teoria da literatura; e,
finalmente, da reflexão histórica para uma espécie de “pri-
meira filosofia”.
A noção de eficácia está em explorar a propensão
emanada de uma configuração particular da realidade
para um efeito possível. Ela compõe uma base comum
quando embebida na linguagem. O qi não é propriamen-
te o entendimento disto, mas permite que se detecte a sua
presença e o senso lógico que está por trás dele.
Arte ou sabedoria, do modo como foram concebidas
pelos chineses, dizem respeito a explorar estrategicamen-
te a propensão que emana de uma configuração particular
da realidade de modo a chegar no efeito máximo possível.
Esta seria a noção de eficácia.
198 Arte Agora

Na tradição ocidental, o filósofo Kant explicou que


a causalidade seria uma lei geral de entendimento que
deveria ser estabelecida a priori. No pensamento chinês,
este princípio não existe, nem mesmo nas interpretações
da natureza. Não se ignora a relação causal, mas ela sem-
pre se refere a uma estrutura de experiências que de fato
acontecem, com impacto imediato. Não há extrapolação
em relação a uma série de causas e efeitos extensivos a uma
razão oculta das coisas ou a um princípio que sublinhe a
realidade como um todo ou que se configure como uma
lei geral. Mais do que um canal de causas e efeitos, trata-
se de uma mudança na configuração diagramática do ser
no mundo. É isso que aponta uma disposição particular.
Mesmo quando a interpretação chinesa da realidade pa-
rece mais especulativa, nasce da disposição das coisas, da
implicação de tendências. A propensão dá a chave para a
sua atualização.

Cultivo e treino

Para compreender melhor a relação destes entendi-


mentos de corpo, a estética e a civilidade, o filósofo Yuasa
Yasuo, (1987, 99-109) explica que cultivo e treino, sempre
vieram juntos na arte japonesa, evidenciando uma longa
história dos estudos do corpo no Japão. A teoria do po-
ema waka é um bom exemplo. Descreve uma experiência
própria mas também uma produção ou composição para
passá-la aos outros. Historicamente, este estudo come-
ça com a prática da poesia mas será também investigado
por Zeami Motokiyo (1363-1443), mentor do teatro nô,
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 199

como a chamada “artisticidade do nô”. Segundo Zeami,


o primeiro passo para todo treino é clarear a mente, uma
vez que a forma do corpo deriva diretamente da mente,
não como o seu produto ou instrumento, mas como um
modo de implementação. A substancial profundidade
considerada o ideal da poesia waka, foi mais tarde cha-
mada de mistério profundo e obscuro (yûgen). Trata-se
de um estado que não pode ser capturado em um esforço
momentâneo consciente. Yûgen precisa ser construído e
internalizado para emergir. Por isso, quando alguém pas-
sa por um longo periodo de treino (keiko) esquecendo a
vontade deliberada de si-mesmo e mergulhando no ato de
escrever poemas, na ação teatral ou na dança; o seu modo
de artisticidade pode finalmente se “abrir”. É preciso exis-
tir uma correspondência entre corpo e treino artistico,
que seria diferente de qualquer outro treino, tendo em
vista as suas especificidades e a possibilidade de ser cul-
tivado (shugyô). Komparu Zenchiku (apud Thornhill,
op.cit: 74) define yûgen como uma atitude mental culti-
vada pelo performer. Neste caso, o treinamento tem a ver
com “o tornar-se a coisa ela mesma”, ao invés de focar em
movimentos específicos a serem performados. A mente
assume a forma interna do papel e o seu estado mental
será manifestado no palco produzindo o yûgen de não
dualidade entre mente e matéria (Komparu koden shûsei
250-251).
Nos tratados de Zeami, a idéia de treinamento ar-
tistico pode ser ainda traduzida como “cultivo pessoal”.
A mente ou consciência e o corpo exibem uma dicoto-
mia ambígua dentro do modo de existência do que se
200 Arte Agora

considera o “si-mesmo”. Assim, harmonizar a mente e


o corpo através do treino seria um modo de eliminar esta
ambiguidade na prática. Não se falaria mais em algo “ce-
rebralmente” entendido mas no fato de se aprender com
o corpo. Passa a interessar cada vez mais a mente que “pe-
netra e emerge do corpo”. Para Zeami, a arte só pode ser
adquirida através do treinamento corporal e não apenas a
partir de um entendimento conceitual.95
A discussão do treinamento corporal e das mudan-
ças são tratamentos propostos pela história da medicina e
também apontam para um aspecto abordado por Kuriya-
ma (1999) quando observa a impossibilidade de se pensar
em uma universalização da medicina e do corpo humano.
No senso comum, diz-se que em se tratando de corpo hu-
mano haveria uma espécie de “realidade universal”, todos
os corpos humanos funcionando da mesma forma. Na
apresentação à edição brasileira do livro O diálogo entre
culturas de François Jullien (2009), Danilo Marcondes
explica que “universal” é uma invenção do pensamento
grego, não apenas como conceito, mas como modo de ver
a realidade e mesmo como atitude. “Católico” é o termo
grego para “universal” e não faz parte, portanto, do voca-
bulário chinês e japonês. Ao se observar a figura huma-
na concebida por Hua Shou em 1341 e aquela proposta
por Andreas Vesalius em 1543, verifica-se que estas são
marcadamente distintas. Não há nada de universal nestas

95. As discussões mais recentes das Ciências Cognitivas demonstram que mes-
mo o entendimento conceitual nasce do movimento do corpo (Greiner
2010, parte 2).
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 201

representações. A musculatura parece uma chave funda-


mental para a imagem criada por Vesalius, enquanto na
ilustração chinesa não há nenhum tipo de representação
muscular e nem sequer uma palavra específica para mús-
culo. Neste caso, traços e pontos da acupuntura eram as
principais referências e, por sua vez, absolutamente in-
visíveis nos desenhos de Vesalius e outros anatomistas
ocidentais. Quando os europeus, no século 17 e 18 co-
meçaram a estudar os ensinamentos chineses, considera-
ram esses mapas anatômicos como lendas de uma “terra
imaginada”.
O que surpreende Kuriyama é como as percepções
de coisas tão básicas e intimas ao corpo podem diferir tan-
to. Mais do que sentimentos que distorcem, parece que
são diferentes modos de pensar e ângulos de visão. Que
tipo de distâncias separam os lugares na geografia da ima-
ginação?
Pode parecer curioso, em um livro como este, en-
contrar um artigo falando de modos, expressões e estudos
tão antigos e distantes. Mas às vezes é preciso criar deslo-
camentos para chegar mais perto.
Diante de meu computador, no centro de uma cida-
de turbulenta chamada São Paulo, penso nas articulações
entre arte e civilidade. Ao observar gravuras do Japão me-
dieval e, na mesma mesa, o programa do Festival Pedras
D’Água de Lisboa, experimento uma sensação incomum
e me pergunto:

Articular linguagens tão distintas em tempo e espa-


ço não seria como reconhecer a linguagem para expres-
202 Arte Agora

sar aquilo que rotineiramente ela não expressa? Usá-la


de um modo excepcional e incomum para devolver-lhe
as possibilidades de comoção e o poder que teria de di-
lacerar e manifestar realmente alguma coisa? Entender a
linguagem e a arte assim, como forma de encantamento,
seria uma estratégia possível para vitalizar a civilidade, o
comprometimento e, quem sabe, finalmente, enxergar o
outro?

Uma conversa com Maria Filomena


Molder

Cem – Onde se inscreve o fazer artístico do cem?


Como a expansão do acontecimento artístico que cria-
mos com as pessoas na rua, abre um entendimento que
não é sobre perceber, não é sobre sobrepor umas coisas
sobre outras mas que leva a um aproximar de si próprio,
que abre a trama de relações com tudo o resto.
Maria Filomena Molder – Vocês estão a pensar na-
quilo que fazem, e querem fazer uma espécie de um dese-
nho que não é realizado com a mão, que se está sempre a
mover, daquilo que fazem. Parece que é isso… Conside-
ram que aquilo que fazem é arte, mas ainda lhes faltam
determinações ou instrumentos para poderem, naquilo
que está disponível, com isso que está disponível, dese-
nhar o que sentem que fazem como arte
E talvez isso tenha a ver com a maneira como desen-
volvem o que fazem, o que fazem em princípio é dança,
mas o modo como fazem dança… implica sair do lugar
onde se exercitam para se dirigirem a outros lugares que
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 203

não são lugares quaisquer, lugares pelos quais as pessoas


passam, param e correm e fazem compras e despedem-se,
lugares que são ruas da cidade muito antigas em zonas
muito específicas e em muitos casos muito degradadas. E
isso exige da vossa parte qualquer coisa…. não é bem cha-
mar a atenção para aquele lugar…..é poderem encontrar
naquele lugar uma espécie de desafio, que é uma forma de
confirmação daquilo que fazem, que é dança, sendo que
essa dança não se passa em lugares específicos e treinados
para tal, programados para tal… Encontram um espaço,
um espaço de vida, que contem uma riqueza de formas
de vida, como diria o Wittgenstein, e inscrevem-se nesse
espaço auscultando essas formas de vida, tentando tradu-
zir, tentando também embeber-se disso que auscultam,
de modo a poder criar um efeito mimético em relação
àquilo que se passa, ao dia a dia das pessoa, uma coisa que
está entre a interrupção e a absorção.
Parece-me que isso acontece, convidando as pesso-
as sem as convidar programaticamente ou com desígnios
muito precisos relativamente ao convite, convidando as
pessoas a implicar-se nesse vosso duplo movimento, que
se revela como expressão.
Talvez haja dois elementos aqui, por um lado, o ex-
pressivo, qualquer coisa que procuram pôr à vista e, por
outro lado, a pretensão de um valor comunitário. Trata-
se de uma expressão que não depende de um programa
estético pré-estabelecido, pois o vosso fito é que a dança
se inclua na vida das pessoas e as transporte, no próprio
sítio onde elas passam e vivem, para um lugar que não é
exactamente igual àquele em que estão. Portanto, ao mes-
204 Arte Agora

mo tempo que querem absorver o lugar, interrompem


e transportam para outro lugar. É neste transporte que
a expressão aparece evidente. Não é um lugar habitável,
nesse lugar não se pode habitar, antes um lugar imaginá-
rio para onde temporariamente as pessoas podem saltar.
Soube há pouco tempo uma coisa terrível e extraor-
dinária, há certos casos de problemas de coração em que
há graves lesões em certas artérias, e para que essas arté-
rias sejam bem tratadas tira-se o sangue todo, acho que o
tratamento não poderá demorar mais de 40 minutos (e
é mais comum em crianças do que em jovens e adultos).
Cem – Mas congela-se a pessoa, baixa-se a tempera-
tura?
MFM – Tem de se baixar a temperatura, proces-
so que terá de ser muito lento. Baixa-se a temperatura
muito lentamente para que os operadores possam corri-
gir, assim já podem remendar. Convosco deverá passar-
se qualquer coisa como isto. Não é que esteja a arranjar
uma equivalência entre aquilo que fazem na rua e esta
técnica cirúrgica, mas parece-me que tem de haver qual-
quer coisa como isto. Tem de se baixar um bocadinho a
temperatura para poderem entrar no que se está a passar.
Ao entrarem na vida dos outros, a temperatura terá de
baixar um bocadinho, sem baixar totalmente, de modo
que já não se veja… os movimentos do coração a ficarem
horizontais… a expressão a desvanecer-se... Porém, e não
houver um elemento de frieza a expressividade corre o
risco de ser completamente mimética e de ser interventi-
va. Ora, vocês não estão a fazer nenhuma manifestação a
favor disto ou a favor daquilo, não têm um programa de
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acção pré-estabelecido, estão apenas a absorver qualquer


coisa e a criar um espaço imaginário onde a temperatura
vai baixar. Este exemplo é muito brutal e é um caso limi-
te, e, no entanto, o espaço imaginário também tem a ver
com esse baixar da temperatura, de modo a que se possa lá
estar algum tempo, temporariamente acompanhadas por
meio dessa operação imaginativa
Além disso, é em vista de nada no sentido objecti-
vo do termo. Para haver uma manutenção muito longa,
teria de se prever um ”em vista de qualquer coisa” que
não fosse só uma teia que estão a estabelecer sob a forma
de absorção, interrupção, chamamento do outro e criação
desse espaço imaginário, onde não se pode permanecer
muito tempo, expressivo.
Cem – E pode considerar isso um movimento de
arte?
Maria Filomena Molder – Sim, sim, posso conside-
rar um movimento de arte. Na verdade, há aqui na vossa
actividade uma proximidade com a vida muito grande.
Realizam os vossos gestos artísticos no meio da rua, não é
como um espectáculo que interrompe a vida e tem o seu
quadradinho, a sua protecção, sem que eu esteja a fazer
uma crítica disso evidentemente. Como vocês não fazem
essa interrupção formal, não há um quadradinho onde
se passa aquilo que estão a fazer, imiscuem-se e tentam
embeber-se daquilo que está a acontecer sem haver in-
terrupção formal onde a arte pode acontecer. Por outro
lado, ao misturarem-se e ao tentarem embeber-se naquilo
que se está a passar, não o fazem até se transformarem nas
pessoas que lá estão, porque então a confusão com a vida
206 Arte Agora

seria quase total. Também era uma hipótese, mas seria


uma experimentação de outra ordem, aí era talvez pôr à
prova ou averiguar até que ponto isso se pode manter, isto
é, imiscuir-se mesmo na vida das pessoas e transformar-
se nelas. Em qualquer dos casos, quer a vossa experiência
quer esta têm a ver com relações muito profundas – no
sentido de se afectarem reciprocamente – entre a vida e
a arte.
Não é possível estabelecer um critério fixo para se-
parar a vida e a arte, sobretudo em experiências de arte na
rua. Não se pode estabelecê-lo com rigor definitivo.
Por exemplo, em Kant, vemos o esforço de se esta-
belecer um critério para distinguir a arte da vida (fora de
qualquer consideração de uma experimentação artística,
como a vossa, claro). Esse critério chama-se náusea. Se nós
sentimos náusea diante de uma obra de arte, diz Kant, isso
quer dizer que, sem sabermos e sem teorizarmos, saímos
para fora da arte e estamos a experimentar qualquer coisa
que tem a ver com os condimentos de vida, ficámos ago-
niados, ficámos com vontade de vomitar. Considero que
a náusea pode fazer parte de uma expressão artística, não
é nenhum critério de distinção… mas há qualquer coisa
aqui em Kant que dá muito que pensar, porque a náusea
implica uma resistência nossa a qualquer coisa que se está
a passar e é, ao mesmo tempo, uma espécie de julgamento.
E se isso se persistir, tenho quase a certeza de que saímos
para um terreno equívoco, deu-se uma mistura tal entre a
arte e a vida que nós já não sabemos onde estamos, já per-
demos o norte (algumas instalações feitas com animais,
são alguns dos casos que posso evocar). Pode acontecer
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 207

que nas vossas experiências as pessoas não sintam que


estão a cruzar-se e a tomar parte num procedimento ar-
tístico, podem tentar imitar-vos, podem achar curioso, se
calhar podem fazer perguntas, mas não são elas que estão
em julgamento, são vocês .
O que elas fazem é a surpresa natural ou também
pode acontecer a previsão natural dos vossos próprios ges-
tos. Que aquilo que estão a fazer seja arte tem a ver com
a vossa expressividade e aquilo que a vossa expressividade
faz àquilo que encontra, a transformação que implica e os
seus efeitos, incluindo o que lhes acontece a eles. Isto é, a
tal expansão das vossas pretensões artísticas expressivas e
o refluir disso. Por outras palavras, em que é que isso atrai,
concentra e promove novas formas de expressividade. Só
aí é que se pode testar se é arte ou não.
Cem – Onde é que a Filomena vê a palavra expres-
sividade?
MFM – A expressividade, como a palavra diz, tem a
ver com o colocar na visibilidade e no exterior, uma ela-
boração que se pode considerar interior, admitindo que
o par interior/exterior faz todo o sentido na nossa vida.
Há graus de expressividade, graus de expressão, que não
são artísticos.
Todos os seres humanos se exprimem, todos os seres
humanos falam, todos os seres humanos se movimentam,
fazem gestos, e nem todos os seres humanos exprimindo-
se são artistas. A Louise Bourgeois diz isso, a expressão é
sagrada, a expressão faz parte da vida humana. Alguém
me toca e eu movo-me, volto para trás a cabeça ou fujo ou
mantenho-me quieta à espera do que vai acontecer a se-
208 Arte Agora

guir, por exemplo, voltar a ser tocada. A criança queima-


se, grita e tira as mãos, tive uma notícia triste e choro, isto
ainda não é arte embora sejam ambas expressões.
Uma expressão é a manifestação de uma afecção.
Para haver expressão é preciso afecção. Mas parece que há
expressões relativamente às quais nós não podemos iden-
tificar as afecções, não sabemos o que é que as provoca.
Talvez essas sejam artísticas, porque as afecções (que as há
senão não há expressão), as afecções têm que sofrer uma
grande volta, isto é, não se pode chorar logo, não se pode
tirar logo a mão.
Cem – Identifica esse lugar com o tal baixar da tem-
peratura?
MFM – Sem dúvida! Há um conceito que eu mui-
to prezo, apresentado por Jorge de Sena nos Sinais de
Fogo, o grande romance inacabado dele, a saber, “o ina-
bsorvível pela alma”, e eu estou a crer que a arte tem a
ver com o inabsorvível. Isto é, recebeu-se a afecção mas
ela não foi absorvida, por exemplo, não se chorou… e
a expressão dela fica em suspenso, de molho, às vezes
muito penosamente: nós sentimos a queimadura e não
conseguimos tirar a mão, está a ver? E a expressão tem
de aparecer, tem de aparecer, quer dizer, se a expressão
diferida, adiada, não aparecer, nós vamos ser massacra-
dos pela dor.
A essa expressão outra chama a Louise Bourgeois,
muito psicanaliticamente (embora não subscrevendo in-
teiramente Freud), sublimação. É uma transformação da
afecção, faz com que a expressão não seja uma resposta
directa à afecção.
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Se a luz se apaga, os meus olhos concentram-se


nas condições da visão nocturna ou da escuridão, espe-
ram que elas se dêem ... Quando há explosão de luz
contraímos os olhos, é uma expressão, como retirar a
mão de uma temperatura elevada ou chorar é uma ex-
pressão. Neste caso, relativa a uma notícia triste ou a
uma alegria profunda, aí é que as coisas começam-se
complicar-se. No momento em que essa expressividade
não é homogénea ou não é equivalente ao expectável.
Habitualmente a alegria não está associada chora, o
choro tem a ver com grandes dores ou grandes surpre-
sas difíceis, etc., mas a intensidade da afecção pode ter
sido tal que as duas expressões, que parecem incompa-
tíveis, se misturaram duas: grita-se de alegria e chora-se
ao mesmo tempo. Aí a coisa começa a complicar-se e
pode tornar-se fonte da imaginação artística, por exem-
plo provocando expressões paradoxais relativamente
a afecções que supostamente só dariam origem a uma
expressão simples.
Cem – O tal encontro a meio caminho…considera
isso como também um potenciador …de poderem haver
afecções que ainda não estão traduzidas
MFM – Exactamente. Afecções que ainda não fo-
ram experimentadas, provocá-las. Podem ser um incita-
mento a provocar, isso poderia chamar-se experimenta-
ção, a experimentação em arte
Cem – Estou a ver aqui o caminho até meio, até ao
encontro, o tal meio que não é uma distância…também
estou a considerar que as tais afecções que irão desenca-
dear a minha expressividade não são lineares.
210 Arte Agora

MFM – Não, não são lineares e se calhar não po-


dem ir até ao fim a não ser que queiram tornar-se como
eles. Se querem tornar-se como eles, se querem fundir-se
com eles, aparecer como se não existissem como qualquer
um, é outra forma... Mas isso também é provocar, no meu
entender ainda há o espaço imaginário, só que muito pro-
vavelmente os outros já não estão a dar por isso, estão no
vosso espaço mas já não estão no imaginário, quem está
no imaginário são vocês exclusivamente. Se se tornam
eles, claro, isso não é nenhum juízo…são hipóteses…
Cem – Nunca foi essa a nossa questão
MFM – No fundo, em arte parece-me que se tem de
guardar (coisa que não é mensurável) a expressão de uma
afecção, há sempre uma demora, um intervalo, em que se
joga tudo. Depois a expressão logo dirá se se jogou tudo
ou não… por exemplo, Goethe podia guardar durante de-
zenas de anos um motivo poético até o exprimir, aquilo
ficava a aboborar, como se diz em bom português
Cem – Mas há uma cadência….há um momento em
que tem que se exprimir.
MFM – …. e não há nenhum modelo, eu estou a
dar este exemplo de uma grande demora, mas pode haver
uma pequena demora….não há nenhuma regra… embora
não possa deixar de haver alguma, quer dizer, terá de ha-
ver alguma suspensão entre ser afectado e exprimir. Um
momento em que se não absorve a afecção.
Como ela não foi absorvida, fica suspensa ali a os-
cilar, faz-se qualquer coisa com ela ou não. Há pessoas
que têm um talento artístico muito profundo mas nunca
realizam, ficam sempre nessa fase de deixar amadurecer,
C h r i s t i n e G r e i n e r | S o f i a Ne u pa rt h ( o r g s . ) 211

deixam aboborar até deixar apodrecer, até apodrecer in-


teiramente. Há casos desses claramente, em que é adiada
a expressão. É adiada a expressão ou por medo ou por-
que (não voluntariamente ou conscientemente) se quer
aprofundar mais isso que poderá dar origem a uma ex-
pressão, adia-se pensando-se que está a enriquecer, mas
não, aquilo vai perdendo a energia, vai perdendo força…
está a apodrecer
Cem – Aí há um momento de confusão, um mo-
mento que pode também ter uma duração, em que o
“jardineiro” não esta a acompanhar a cadência da própria
criação
MFM – Sim, claro, e por isso são talentos incom-
pletos, não se exprimem, ou podem exprimir-se implici-
tamente noutras coisas, na maneira como agem na vida
(e, assim, não provocam o abaixamento da temperatura).
Cem – Transbordam
MFM – Para haver arte, tem de haver um limite.
Ainda bem que falou de transbordar, tem de haver um
limite, isto é, não se pode estar indefinidamente a reter a
expressão, pois a expressão não é simplesmente um trans-
bordar, a expressão tem de se submeter a uma forma qual-
quer, a expressão tem fronteiras.
Cem – Não acha que se quando se adia a expressão
eternamente já estamos a fugir do domínio do artístico…
MFM – Estamos claramente , quer dizer há uma im-
potência, há, por assim dizer um talento para ser afectado
– é preciso talento para se ser afectado com intensidade,
aquilo a que se chama uma pessoa sensível –, só que falta
moer a sensibilidade, um certo grau de elaboração e de
212 Arte Agora

adiamento, só possível pela tal frieza imaginativa. Pode


haver um grande talento, isto é, uma grande sensibilida-
de, uma pessoa ter umas antenas muito afinadas, muito
precisas, e isso não dar origem a nada de conformado...
mas pode dar origem a grandes prazeres de apreciação e
até a grandes incitamentos a outros, para outros poderem
criar.
Cem – … isso até pode ser uma capacidade até de um
cidadão comum…
MFM – Completamente, qualquer um, qualquer
um. Por exemplo, pessoas com sensibilidade musical
absolutamente estonteante, que não têm nenhuma for-
mação musical nem a vão ter e também nunca tentaram
compor, nunca foram à procura disso. Embora tenham
ouvido quase absoluto, uma capacidade de distinguir rit-
mos, harmonias, na música que ouvem e de a reprodu-
zirem quando querem, isso não faz dessas pessoas artis-
tas. Até porque para ser um artista há que ter, de vez em
quando, falhas de sensibilidade, momentos em branco.
Cem – Isso nós chamámos a intermitência
MFM – Sim, certamente, não estar sempre com as
antenas ligadas. Tem de se desligar…Tem de haver uma
espécie de… é o Benjamin que diz isso em relação ao Bau-
delaire, tem de haver uma espécie de distracção. Se se está
sempre concentrado não sai nada, está-se sempre a rece-
ber…
Cem – Mas neste movimento com a comunidade…
MFM – Isso é um factor muito importante para
vós, não para todos os artistas. Eu acho que a comunidade
como princípio, esteja ele transformado em conceito ou
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não, não deve ser possível afastar da arte. A arte é huma-


na e é exclusivamente humana e é impossível não supor
que há um princípio comunitário. É impossível! Mas isso
pode não estar tematizado, como se diz em filosofia, pode
não estar pensado como uma vocação e no vosso caso está
pensado assim, não é? E por isso é um pouco mais com-
plicado.
Cem – Muitas vezes tocamos pessoas que exacta-
mente não pensaram nisso como vocação, que nunca vão
ser artistas…
MFM – Sim, mas percebem que qualquer coisa as
liga a vós e que é qualquer coisa que prolonga mas inter-
rompe o quotidiano delas, que o expande! Sem ser uma
loja onde vão comprar não sei o quê, a casa onde elas ha-
bitam ou o grupo de amigos… é outra coisa… mais secreta
e mais leve.

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