Saber-Realidade Das Prescrições Aos Desejos de Constituir Docências Na Educação Matemática Contemporânea DISSERTA
Saber-Realidade Das Prescrições Aos Desejos de Constituir Docências Na Educação Matemática Contemporânea DISSERTA
Saber-Realidade Das Prescrições Aos Desejos de Constituir Docências Na Educação Matemática Contemporânea DISSERTA
Banca Examinadora:
Profa. Dra. Rochele de Quadros Loguercio –
PPGQVS/UFRGS
Profa. Dra. Luciane Uberti – UFRGS
Prof. Dr. Cláudio José de Oliveira –
PPGEdu/UNISC
[Aos meus amados - mãe e pai - pelo insistente exercício de (a)creditar (nos) meus
sonhos...]
ALGUMAS PRESENÇAS
Ao meu orientador, Prof. Dr. Samuel Edmundo Lopez Bello, por acreditar no meu
potencial e contribuir com meus estudos;
À Prof. Dra. Rochele de Quadros Loguercio pelo desafio de ser banca e relatora da
dissertação;
À Prof. Dra. Luciane Uberti e ao Prof. Dr. Claudio José de Oliveira pelas contribuições
a partir da leitura do trabalho;
À Prof. Dra. Luciane Magalhães Corte Real pelas oportunidades de pesquisa durante a
graduação;
À zumbizada querida: Wagner, Grace, Renata, Suelen, Karin, obrigado pela parceria e
pelas aprendizagens;
Aos amigos Alessandro, Tainã, Paula, Paloma, Mariana, Susana, Juliana e Rildo:
obrigado por me receberem tão bem no grupo de pesquisa;
Ao meu irmão, minha cunhada e meus amados afilhados –Lorenzo e Bernardo – por me
ensinarem sobre a vida. A Luiza vem aí;
Aos demais amigos, desejo (re)encontros para que eu possa dizer muito obrigado!
RESUMO
Escrever é mais do que jogar palavras em uma folha branca. Escrever é mais do
que apresentar, (d)escrever, significar coisas, objetos. Escrever talvez seja, como nos
diria Nietzsche, um insistente ruminar. Não podemos esquecer que o ruminar é um
processo para o interpretar criativo. Interpretar que cria, fabrica, constitui. Interpretar
que instaurar/produz verdades provisórias, nunca fixas. Essa provisoriedade dá conta da
perspectiva.
9
1. SOBRE NOSSA ESCOLA, SOBRE O SABER-REALIDADE...
Era uma vez uma escola, situada em uma pequena cidade brasileira. Seus alunos
chegavam cedo para acompanhar as aulas. Todas sobre matemática. Cada uma delas
discutia um assunto. A aula mais procurada era a da contextualização. Dentre a grade de
ofertas, a escola disponibilizava aulas de interdisciplinarização, estatística, resolução de
problemas, usos de tecnologias, modelagem matemática, uso de projetos, materiais
concretos, história da matemática, entre outras.
10
indicam, prescrevem os usos que devem ser feitos nas práticas pedagógicas para que se
institua uma docência que contextualiza, que percebe a matemática em tudo, que seja
lúdica, entre outras formas...
11
Entendimento 3: De que maneira o saber-realidade institucionaliza modos de ser e agir
do professor de Matemática – a partir da feira de ciências da escola em que os
professores/alunos apresentam suas identidades docentes -, constituindo o terceiro
trimestre letivo – que rotulamos de artigo 3.
12
2 – COMPONDO O SABER-REALIDADE
Eu não construo novos ídolos; os velhos que aprendam o que significa ter
pés de barro. Derrubar ídolos (minha palavra para “ideais”) – isto sim é
meu ofício. A realidade foi despojada do seu valor, seu sentido, sua
veracidade, na medida em que se forjou um mundo ideal... O “mundo
verdadeiro” e o “mundo aparente” – leia-se: o mundo forjado e a
realidade... A mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade,
através dela a humanidade mesma tornou-se mendaz e falsa até seus
instintos mais básicos [...] (NIETZSCHE, 2008, p. 15-16, itálico e aspas
do autor)1.
1
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. – São
Paulo: Companhia das letras, 2008.
13
ARTIGO 1
RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar nosso entendimento acerca do saber-
realidade. A partir do viés pós-estruturalista, pensamos os conceitos de verdade e
conhecimento fortemente pautados em autores como Nietzsche e Foucault. Dessa
maneira, discorremos a discussão entre vontade de verdade e vontade de saber
apontando para o conhecimento enquanto vontade de conhecer. Por fim,
problematizamos as produções no âmbito da etnomatemática que constituem práticas
pedagógicas contemporâneas em torno do uso pedagógico da realidade para a Educação
Matemática, nos permitindo cunhar o termo saber-realidade.
15
Na esteira dessa discussão, VEIGA-NETO (2007, p. 23) propõe que devemos
“[...] desconfiar das bases sobre as quais se assentam as promessas e as esperanças nas
quais nos ensinaram a acreditar. Tudo indica que deveremos sair dessas bases para, de
fora, examiná-las e criticá-las”. E é esse o nosso exercício com o uso, a mobilização da
noção de realidade na Educação Matemática e suas práticas instituídas: sair dessas bases
aceitas de realidade e dos seus efeitos de verdade que acabam instauram formas-aceitas
de ser docente na contemporaneidade.
Em Platão, a verdade estaria num lugar perfeito. “Por trás do brilho das
aparências, do jogo cambiante das sensações, das relações desiguais e flutuantes do
poder e da dominação, ele percebeu a existência de outra ordem – estável, fixa, livre dos
apetites, das meras simpatias e das relações de força” (DROIT, 2012, p. 29). E é esse
lugar perfeito, sem as aparências, sem os desejos que Platão vai denominar de mundo
das ideias, de mundo metafísico. Dessa forma, o mundo das ideias, para Platão, é o
“único mundo real” (ibid., p. 31). Assim, o mundo das ideias seria o mundo verdadeiro,
o real enquanto que o nosso mundo seria o das representações; o mundo das cópias.
16
Para Nietzsche, a verdade é um perspectivismo, uma interpretação, pois “o que
se chama verdade é uma obrigação que a sociedade impõe como condição de sua
própria existência” [...] (MACHADO, 2009, p. 101). Assim, a verdade é vista menos
como um resultado e mais como uma produção de um combate; uma luta entre forças
que visam fabricar sentidos para as coisas. O encontro entre realidade e verdade está na
produção de sentido como forma de identidade.
Segundo Abbagnano, realidade indica “o modo de ser das coisas existentes fora
da mente humana ou independentemente dela” (2007, p. 831). Ou seja, o problema da
realidade está na noção de existência (como supondo que algo exista) e no modo de ser
específico das coisas (como cada coisa é). O modo como cada coisa é vai instituindo sua
verdade. Na filosofia mais recente o problema da realidade praticamente deixou de ser
problema da “existência” das coisas para tornar-se cada vez mais problema do modo de
ser específico das coisas (id., p. 832). Em nossa perspectiva, quando se é atribuído um
significado, ele não é algo “[...] extraído das coisas ou dos objetos, mas é um
componente que atribui significado”. Por fim, o que acreditamos ser a identificação do
objeto “é apenas a consequência de nossa própria linguagem” (BELLO, REGNIER,
2014, p.326).
2
Nietzsche, em A genealogia da moral, ao discutir a criação dos juízos morais – em especial o bem e o
mal – argumenta que “o direito senhorial de dar nomes vai tão longe que nos permitiríamos conceber a
própria origem da linguagem como expressão de poder dos senhores: eles dizem ‘isto é isto’, marcam
cada coisa e acontecimento com um som, como que apropriando-se assim das coisas” (NIETZSCHE,
2010, p. 17, aspas do autor).
17
linguagem, pois “ela seria precisamente a pura verdade sem quaisquer consequências”
e, segundo o autor, impossibilitaria a existência de tantas línguas. Com isso, Nietzsche
vai desconstituindo a verdade da coisa em si a partir da linguagem, de sua descrição,
dos seus usos, pois ela nada tem a dizer sobre a essência das coisas, não carrega a
verdadeira conceituação do que seja a coisa. Falar da coisa em si não constitui a verdade
dela, mas apenas as suas relações com o homem.
A partir dos usos, “da folha como causa das folhas” que formulamos uma
“qualitas occulta” para inserir – nesse suposto lugar neutro, inalcançável e natural – a
verdade das coisas. Observa-se, então, um somatório das “relações humanas que foram
realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas” (ibid., 35-36) de certa forma
que o uso – seu insistente uso – tornou-se – para um povo – consolidações;
canonizações; obrigações.
18
esperava seu olhar para anunciar uma verdade (NIETZSCHE, 2008). A partir dessa
primeira classificação, vão se constituindo características específicas dessa espécie que
vão tornando-se a verdade dos mamíferos numa constituição de um edifício de
conceitos que vão elaborando o que seja um mamífero. “[...] é assim que se dá com o
procurar e encontrar da ‘verdade’ no interior do domínio da razão”.
O exercício de alto admiração por encontrar a verdade das coisas – que foi
criada por ele mesmo – vai instaurando, no homem, a vontade de verdade. Uma teia vai
se costurando e amarrando os indivíduos de tal maneira que todos seguem o mesmo
caminho como se fossem um rebanho. Vale destacar que o pastor desse rebanho
denomina-se verdade. Suas palavras de ordem: desejem-me; busquem a mim. Instaura-
se, assim, uma moral que privilegia a verdade das coisas. Pois é somente através da
verdade que se conquista a moral do rebanho.
3
A mentira descrita aqui diz respeito às normativas tomadas como verdade. Pois, as normas da sociedade
- suas regras - não estão apenas na linguagem e são usadas para oprimir os instintos mais potentes
(NIETZSCHE, 2009) – a vontade de potência. O interessante é pensar que as normas e as regras são
elaborações humanas de acordo com crenças anteriores. Dessa forma, as normativas não compõem, assim
como, isoladamente não são verdades universais e totalizantes, pois essa lógica de organizar as
sociedades está inserida em um determinado tempo e, portanto, é composta por elementos e crenças que
alteram/conservam o tempo anterior. Dito de outra forma, as normativas da sociedade vão
(trans)formando-se e agregando/descontando elementos antigos/novos de acordo com o pensamento de
sua época, de sua sociedade.
19
Uma vez organizada a sociedade, não apenas nasce à vontade de verdade, mas instaura-
se a moral como forma legítima de conviver no coletivo, pois
[...] a questão da verdade nasce para Nietzsche no bojo da moral; este é o seu
aspecto mais essencial, a ponto de não se poder escapar da moral sem se libertar da
vontade de verdade (MACHADO, 1999, p. 60).
A sociedade começa a disseminar a vontade de verdade bem como sua moral.
Mas uma moral não é natural e precisa ser fabricada, talvez, seja por isso que ela deseja
estar próxima – ocupar o mesmo espaço – que a verdade. Se para Nietzsche, a vontade
de potência é algo forte ou sua forma de estar no mundo (VATTIMO, 2010), a vontade
de verdade é esse desejo ao nada, ao coletivo, a moral, ao niilismo4.
Por fim, cabe destacar que Nietzsche, em sua filosofia, esgota, esvazia a verdade
como forma de conhecer a coisa em si, de entender o homem e o mundo. Porém, a
sociedade segue produzindo não a verdade universal das coisas, das relações, mas
conjecturando normativas, regularidades que, por sua vez, produzem efeitos de verdade.
Ou seja, a partir de Nietzsche, não estamos mais presos à verdade universal, mas ainda
produzimos prescrições com efeitos de verdade. São esses efeitos que amarram as
discussões entre conhecimento e vontade de saber.
4
Termo pensado com Nietzsche que versa sobre uma vontade vazia, uma vontade ao nada. Se a vontade
de potência é o movimento das forças ativas, das forças criadoras, o niilismo pode ser pensado como o
movimento das forças fracas, das forças reativas. (Cf. Deleuze, 1976).
5
Ideal ascético como uma meta, como algo a cumprir ou atingir. Uma promessa humana. O exercício
humano de prometer um porvir. “O ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que
degenera, a qual busca manter-se por todos os meios, e luta por sua existência; indica uma parcial inibição
e exaustão fisiológica, que os instintos de vida mais profundos, permanecidos intactos, incessantemente
20
Quando Nietzsche traz a discussão para o âmbito do homem do conhecimento,
percebe-se que a verdade universal torna-se insustentável. Assim, mais uma vez, o
homem da verdade – ou o homem da moral – precisa assegurar – com todas as suas
forças – uma outra maneira de produzir verdade. Por isso, ele vai constituindo a vontade
de saber – a partir do conhecimento – como forma de obter efeitos de verdade, dos quais
ele pode estar seguro e confiante.
Não existe, a rigor, uma ciência “sem pressupostos”, o pensamento de uma tal
ciência é impensável, paralógico: deve haver antes uma filosofia, uma “fé”, para que
a ciência dela extraia uma direção, um sentido, um limite, um método, um direito à
existência (NIETZSCHE, 2009, p. 130).
Assim, Foucault (2014, p. 17) chamaria de conhecimento, “o sistema que
permite dar uma unidade preliminar, um pertencimento recíproco e uma conaturalidade
ao desejo e ao saber”.
A ciência foi promovida nos últimos séculos, em parte porque com ela e mediante
ela se esperava compreender melhor a bondade e a sabedoria divinas [...] em partes
porque se acreditava na absoluta utilidade do conhecimento, sobretudo na íntima
ligação da moral, saber e felicidade [...], em parte porque na ciência pensava-se ter e
amar algo desinteressado, inócuo, bastante a si mesmo, verdadeiramente inocente,
no qual os impulsos maus dos homens não teriam participação [...] (Ibid., p. 79).
Vem se (a)creditando que a verdade seja a supremacia, a metafísica, o maior
grau de ascensão não só de conhecimento, mas de moral, de forma de vida. O
conhecimento e a ciência enquanto produtos da linguagem são expostos, a partir da
crítica de Nietzsche, como arbitrariedades à medida que o autor discute a valoração dos
valores, pois é ali onde colocamos nossos pesos e nossas medidas que denunciamos por
quais valores, por quais conhecimentos (re)atualizaremos nossas práticas, nossas
vontades e por quais conhecimentos já não suportamos mais valorizar, já não dizem
sobre nossas ações, nossas morais, nossas condutas6. Assim, a ciência vai
(trans)formando-se em efeito de verdade que quer não apenas trazer as coisas boas dos
indivíduos, mas garantir a permanência dos mesmos, pois
combatem com novos meios e invenções. O ideal ascético é um tal meio: ocorre, portanto, exatamente o
contrário do que acreditam os adoradores desse ideal – a vida luta nele e através dele com a morte, contra
a morte, o ideal ascético é um artifício para a preservação da vida” (NIETZSCHE, 2009, p. 101).
6
É interessante pensar que a discussão da condução das condutas está próxima da análise dos preceitos
morais que Nietzsche desenvolve, principalmente, no livro Genealogia da Moral. É nessa obra, que o
autor problematiza, com demasiada ênfase, as formas, as maneiras, os lugares ocupados por aqueles
homens que puderam, em seu tempo, fabricar os valores bons e os ruins. O elo dessa discussão vem sendo
(re)atualizado quando Foucault traz não apenas a Ordem do Discurso, mas principalmente a Microfísica
do Poder para destacar o poder no seu caráter local; nas suas relações de forças. Assim, não apenas esses
títulos, mas outros de ambos os autores nos incitam a pensar o caráter normativo, prescritivo e, por fim,
prático dessas condutas, dessas morais que produzem – em seus tempos – os entendimentos que dão conta
de instituir formas de ser sujeito.
21
por mais importante que seja conhecer os motivos que realmente guiaram a conduta
humana até hoje, talvez a crença neste ou naquele motivo, isto é, o que a
humanidade presumiu e imaginou ser o autêntico motor do seu agir até agora, seja
algo ainda mais essencial para o homem do conhecimento. (NIETZSCHE, 2012, p.
83).
A ciência busca ser a criadora de si (NIETZSCHE, 2012). Essa criação só se fez
possível a partir das práticas, das normatividades que advogaram para si, que se
autodenominam de científicas, pois ela é “essencialmente discurso, um conjunto de
proposições articuladas sistematicamente” (MACHADO, 2007, p. 18).
O que não se afirma é que a ciência seria uma reprodutora de verdade, mas sim
que ela produza efeitos de verdade. Não se pode esquecer que “a ciência tem uma
história. Ciência é processo, devir” (MACHADO, 2007, p. 27). Desse processo
emergem movimentos, fronteiras, lutas para pensar a ciência. Movimentos que acabam
por compor uma cultura científica que não apenas valida e legitima, mas que convoca,
prescreve modos de pensar a existência, o mundo.
22
(BELLO, 2010, p. 549). Assim, a realidade, linguisticamente instituída, está nos modos
de pensar que essa instituição provoca e não na base material ou factual que a sustenta
(ibid., p. 550).
7
Cabe destacar que não estamos problematizando causa e efeito. Como se o uso pedagógico da realidade
fosse à causa do saber-realidade e, por isso, que o saber-realidade seria o efeito desse uso. Antes disso,
estamos pensando que as práticas pedagógicas que advogam o uso da realidade na Educação Matemática
instauram-se como verdades a partir de investimentos, de produções que solicitam, vendem, ofertam
entendimentos em prol da realidade, produzindo discursos que constituem nosso entendimento do que
seja a realidade. Dessa maneira, o docente que é assujeitado por esses enunciados – como a matemática
está em tudo – procura, de alguma maneira, inserir-se na ordem discursiva que coloca a realidade como a
verdade contemporânea da Educação Matemática. Vemos aquilo que Nietzsche chama de rebanho sendo
instaurado: a sociedade matemática, ao proliferar esse uso, cria modos de ser professor. São para esses
modos que olharemos como os efeitos de verdade do uso pedagógico da realidade.
23
funcional” (BELLO, 2010, p. 563). Logo, o que entendemos como prática discursiva, a
partir de Foucault, é a força com que o discurso produz, inventa, (re)atualiza e mantém
aquilo que pode ser dito bem como quem pode dizer.
De outra forma, não é apenas aquilo que pode ser dito, mas toda a instituição, a
organização social que constitui o que ainda pode ser dito. Em suma, o caráter
excludente da ordem discursiva que se apoia em regras, normatividades das instituições
(como a escola, a família, etc.). Um exemplo do discurso enquanto prática é o
entendimento da realidade como uma produção no e pelo discurso pedagógico da
Educação Matemática. Ao anunciar a realidade, a Educação Matemática produz o que
ela entende por realidade. Assim, não olhamos a realidade da coisa em si ou de uma
verdade, mas olhamos as produções, os desdobramentos nos discursos do campo
referido que constituem o uso da realidade como um saber sobre o contemporâneo.
Com o exposto até o momento, nos é pertinente pensar que “a suposição, por
exemplo, de que os discursos pedagógicos e alguns outros fabricam determinados tipos
de práticas e estas, enquanto práticas sociais produzam subjetivações, identidades,
regras institucionais, assujeitamentos “[...] nos incitam a “tratar a prática pedagógica
como prática discursiva” (ibid., p. 564). “Os discursos da inovação curricular, da
educação matemática contextualizada, das verdades da matemática escolar e, ainda, das
verdades da experiência escolar dos sujeitos são os que constituem essas práticas” (ibid.,
p. 565). Por fim, os discursos que convocam o uso da realidade são vistos como práticas
pedagógicas que orientam, regulam, normatizam, assujeitam e produzem identidades em
relação às ações docentes. São para essas práticas pedagógicas que vamos direcionar
nossa analítica na produção do que denominamos de saber-realidade.
O SABER-REALIDADE
Cunhamos nossa escrita com hífen8 por entendermos que o termo saber-
realidade não opera uma sobreposição e nem um complemento entre ambos. Não
tratamos de termos idênticos e que, por isso, podem ser escritos nessa união permitindo
pensarmos a potência do termo para tencionar como determinadas produções de saberes
sobre a docência contemporânea na Educação Matemática convocaram – e ainda
8
Autores como Uberti e Bello (2013) utilizam a escrita do hífen no conceito docência-pesquisa
problematizando que tal uso não implica compreender ambos os termos como “elementos que, mesmo
imbricados, sejam possíveis de oposição”. (p.24). O hífen, ao invés de propor binarismos, nos permite
estabelecer o encontro de ambos na constituição de um imbricamento – entre saber e realidade.
24
convocam - o uso da realidade. Ou ainda, como as práticas pedagógicas produzem os
entendimentos da realidade enquanto instrumento regulador, orientador na Educação
Matemática.
25
SABER-REALIDADE: VIÉS CULTURAL
“Se, por realidade, se entende tudo o que existe, abre-se a delicada questão da
existência. Dizer que se trata de realidade no sentido físico [...] abre a questão
da materialidade, mais interessante, mas não menos delicada. Se realidade é
simplesmente tudo, então o conceito se esvazia, ou seja, a realidade é nada”
(BALDINO, 1996, p. 7-8).
Não é somente por estar no cotidiano ou pelo seu uso recorrente que é validado e
justificado o pensamento que advoga para si uma matemática naturalizada e
onipresente. E preciso que haja todo um investimento para que ela esteja tudo, presente
no cotidiano, pertencente à realidade de cada um e de todos; seja valorada quanto à
própria matemática dita científica.
9
Quando referimos a produção do uso da realidade a uma universalização não estamos apontando para
uma verdade universal. Apenas destacando que, discursivamente, cada cultura tem uma forma peculiar de
viver, de se organizar, de pensar e se relacionar com a matemática. Assim, a universalização é tomada
como a forma peculiar de cada cultura. Ou seja, que cada cultura tem suas condutas, seus modos de ser e
agir.
26
complexidade natural acrescenta-se a complexidade resultante desse próprio
conhecimento [...].
Se os conhecimentos forem fragmentados, as ações possibilitadas a partir do
encontro do conhecimento com a complexidade do mundo acabarão por não incorporar
“novos fatos à realidade” (D’AMBROSIO, 1997, p. 10). Assim, “[...] em todas as
culturas encontramos manifestações relacionadas - até mesmo identificadas – com o que
hoje se chama matemática” (ibid., p. 17). Frente a isso, torna-se legitimo o uso da
realidade enquanto instrumento não apenas para pensar, mas como produto das práticas
pedagógicas, pois as diferenças, todas as possíveis realidades formam uma totalidade
que é valoriza como verdade pelos discursos que a constituem.
10
O autor traz um levantamento indicando as produções e o surgimento das discussões sobre a inserção
das questões sociopolíticas tanto no Ensino, quanto na Educação Matemática presentes em eventos
internacionais, do campo referido, a partir da segunda metade da década de 60 (Cf. D’AMBROSIO,
1990).
27
matemática enquanto parte da constituição sócio-histórico-política de um povo, de uma
cultura e, portanto, inserida em uma realidade. Conforme destaca o autor,
28
que não foram à escola não sabem matemática”. Instaurando a matemática escolar como
uma matemática distinta e suprema em relação às demais produções que estariam a
margem da escola. Assim, possibilitando um encontro entre matemática e produções
culturais, os autores referidos, inserem suas produções no campo do étnico instigando
formas de desenvolver uma matemática menos universal, que seja constituída nas/pelas
práticas das distintas culturas.
29
Para elaborar tal pedagogia, precisamos pensar como ficam as ações docentes nesse
âmbito de uma matemática étnica.
D’Ambrosio (1990, P. 17) vai argumentando que “cada grupo cultural tem suas
formas de matematizar”. São essas distintas formas de matematizar que vão
legitimando, constituindo a etnomatemática não como uma aproximação da matemática
ocidental, mas a partir de estratégias, raciocínios outros, peculiares, singulares que nos
indicam – inclusive – sobre que cultura estamos falando. Precisamos estar atentos para
não excluir o entendimento de organização global do mundo contemporâneo
entendendo que a matemática – principalmente a financeira- precisa estabelecer relações
com uma quantidade, uma mensuração padrão que permita que o intercâmbio entre as
distintas formas de vida sejam possibilitadas. Antes disso, quando nos referimos as
diferentes produções culturais de matematizar, são as lógicas, os usos, as estratégias que
cada povo tem para se relacionar com o mundo e que possa ser tomado ou aproximado
disso que insistimos em identificar como matemática.
Nosso interesse por essa obra não está relacionado apenas pela discussão
Etnomatemática dos povos indígenas, mas por perceber os entendimentos de um estudo
distribuído pelo Ministério da Educação12 em parceria com a Coordenação Geral de
Apoio às Escolas Indígenas. Portanto, acreditando que os materiais não apenas foram
enviados para as escolas brasileiras, mas suas divulgações dizem mais do que a
matemática indígena: eles convocam, prescrevem outros professores brasileiros que
trabalham com matemática a pensar suas práticas a partir da Etnomatemática. São essas
produções que vão instaurando o que chamamos de economia da Educação Matemática
e que produzem maneiras de ver e dizer a docência contemporânea.
Uma das primeiras discussões da autora resaltam que alguns adultos, apesar de
analfabetos,
tinham bom desempenho em situações que exigiam o domínio de
conhecimentos matemáticos, como na venda de "artesanato", produtos
agrícolas e mel, ou na compra de bens industrializados e na divisão e
distribuição de mercadorias que chegavam ao Parque - gasolina, óleo diesel,
querosene, material de construção e gêneros alimentícios (FERREIRA, 1994,
p. 25).
Os raciocínios, as lógicas, que são familiares com nossos modos de matematizar,
eram conhecidas e praticadas por vários adultos que sequer haviam frequentado a escola
indígena. Mesmo assim, logo que a autora chegou à região, em 1980, os índios
solicitaram auxilio para interpretar extratos bancários, pois conceitos como os de
crédito, débito e saldo bloqueado, entre outros, não eram compreendidos o que produzia
certa desconfiança de estarem
11
É interessante obervar que Ubiratan D’Ambrosio ao publicar na revista Em Aberto, organizada pelo
INEP/MEC, é apresentado não apenas como professor titular da UNICAMP, mas como vice-presidente
do International Studies Group on Ethnomathematcs. Ou seja, destacando o que nos diria Foucault
(2012b) – como já referenciamos – que não é qualquer um que pode falar de qualquer coisa em qualquer
lugar.
12
Da mesma forma, destacamos que em 1993, o MEC lança as Diretrizes para a política nacional da
educação escolar indígena um ano antes da distribuição do livro de Ferreira (1994) nas escolas brasileiras.
Podemos perceber o quanto a economia do saber-realidade vai se constituindo a medida que tanto as
pesquisas quando a divulgação desses resultados incitam, prescrevem e desejam que seus saberes sejam
inseridos nos entendimentos contemporâneos da Educação (e) Matemática.
31
[...] sendo roubados, já que, segundo eles, quem tomava conta de seu dinheiro
em São Paulo eram funcionários não-índios do escritório do Parque, com
acesso a suas contas, assinando cheques, inclusive, em nome dos índios.
(FERREIRA, 1994, p. 25-26).
Desse aspecto, a autora começou a problematizar suas práticas docentes a partir
das necessidades locais. Ao fazer um levantamento sobre os interesses em aprender
matemática, percebeu-se certa recorrência de “[...] temas como as operações de compra
e venda, o dinheiro, as datas, os mapas e o consumo de combustível delimitou áreas de
interesse dos índios nas quais a Matemática deveria ser trabalhada” (FERREIRA, 1994,
p. 27).
32
Para a autora, “entender a matemática Palikur exige compreender a classificação
do universo Palikur. Não há como pensar exclusivamente em ‘números’ na língua
Palikur. Na prática, os numerais não existem fora da concepção de mundo”
(FERREIRA, 1998, p. 42, aspas da autora). Portanto, não é apenas a matemática Palikur
que está sendo vista, mas toda a interação com o mundo, toda a relação elaborada para
que a cultura Palikur consiga se relacionar, mas independente disso, a matemática
instituiu um conceito numérico, uma coleção de números que está em todas as culturas,
que é patrimônio do mundo.
33
pensamento matemático ao se desenvolver em diferentes culturas e emergindo “[...] hoje
como rica fonte de conhecimentos com os quais os professores podem trabalhar se
partirem dessa premissa fundamental e compartilharem, com os sujeitos envolvidos, o
processo coletivo e holístico da construção de conhecimentos”, o que nos parece estar
na ordem do discurso da Educação Matemática é a realidade enquanto verdade,
enquanto norma.
14
As doze áreas são: resolução de problemas, comunicação de ideias matemáticas, raciocínio matemático,
aplicação da matemática a situações da vida cotidiana, atenção para a “razoabilidade” dos resultados,
estimação, habilidades apropriadas de cálculo, raciocínio algébrico, medidas, geometria, estatística e
probabilidade (LORENZATO; VILA, 1993).
34
E assim, uma das habilidades necessárias para a vida adulta é relacionada com a
forma de ler e interpretar o cotidiano matematicamente. Tomar decisões e optar pelas
melhores oportunidades está imbricado na maneira de pensar a vida através de subsídios
matemáticos. Essa habilidade coloca em discussão outra dimensão: o caso da
contextualização.
15
O movimento referido nas pesquisas estudadas diz respeito ao Movimento dos Sem-Terra (MST).
35
em tudo e de constituir o sujeito que possa estar em sociedade e não apenas conviver,
mas transformar a realidade compõe os entendimentos contemporâneos sobre
matemática – e constituindo a Educação Matemática - em todos os lugares. A partir das
pretensões, “o saber matemático proporcionará a chave para desvendar os segredos da
natureza, apresentando-o como um domínio da Matemática [...] trata-se de um
conhecimento, de uma unidade, de um saber que é próprio da realidade” (BAMPI, 1999,
p. 63) atualizando a discussão acerca de a matemática estar em todos os lugares, na
natureza, bastando ao homem, encontrá-la.
Uma vez que o conhecimento, segundo o autor referido, é o gerador de saber que
por sua vez vai interferir nas ações humanas e a prática, o fazer vão não apenas
constituindo novos conhecimentos, mas interferindo na realidade, pensando que “ao
longo da história, os indivíduos e as sociedades empreenderam esforços para lidar e
conviver com a realidade natural e sociocultural” (Ibid., p. 25). Assim, o autor defende
que o processo de adquirir conhecimento está sujeito a condições específicas tanto de
estímulo quanto de sujeição ao contexto social e cultural.
36
a Matemática ocidental, o Programa Etnomatemática tem como referências
categorias próprias de cada cultura, reconhecendo que é próprio da espécie
humana a satisfação de pulsões de sobrevivência e transcendência,
absolutamente integrados, como numa relação de simbiose (D’AMBROSIO,
2002, p. 13).
Bello traz que “[...] o professor reconheça e incorpore [n]o saber da sala de aula,
práticas e conhecimentos produzidos fora do contexto escolar”. Com isso, há a
necessidade da demanda de “[...] um entendimento da realidade dos alunos, da
comunidade como grande marco de referência da ação docente do qual ele deverá
apropriar-se” (2001, p. 3).
Dessa forma,
16
“[...]a predição do futuro direcionado à agricultura e o conhecimento climatológico são utilizados a fim
de orientar o cultivo e a colheita de bons e melhores produtos”. Assim como o uso constante de “[...]
plantas e ervas com caráter medicinal constitui-se num recurso desses grupos sociais para evitar gastos
financeiros com a compra de outro tipo de remédios [...]”. A prática de troca de mercadorias constitui-se
como forma que estimula a socialização de valores e conhecimento como, por exemplo, “[...] a troca de
três batatas-doces por um prato de batata seca” (BELLO, 2001, p.5).
37
A realidade vai se constituindo como uma maneira de motivar, de atrair, de
significar. Assim, cria-se um uso pedagógico que reverbera tanto que o próprio sujeito
pode pensar sua realidade como ela pode ser previamente pensada e apresentada de
forma que contemple as verdades naturais, os pertencimentos, as identidades daqueles
que pertencem à realidade descrita, sentindo-se contemplado, motivado por essa
descrição, por essa apresentação. E por isso, conforme o exposto segundo Bello, o
professor vai identificando a realidade a qual o aluno pertence. Dessa identificação é
preestabelecida uma motivação, uma vontade a mais para aprender matemática.
38
toda a sua plenitude” (D’AMBROSIO, 1990, p. 42-43). Se a constituição de cada
disciplina isolada discutindo uma área do conhecimento, foi tomada como verdade
totalizadora, então à medida que se apresentam as relações
inter/multi/pluri/transdisciplinar se deseja, de alguma maneira, problematizar outras
formas de pensar a organização disciplinar. Observa-se que o esforço realizado para
tornar a disciplina algo totalizador e pertencente a uma única área do conhecimento –
biologia, química, etc. - é reatualizado na medida em que se produz uma discussão, uma
legitimação em que se quer convocar os encontros, as formas não mais solitárias de
pensar as disciplinas.
39
orientando para pensar a Educação Matemática tomada como produção de um povo, de
uma época e não como algo neutro e universal. Aqui, percebemos o desejo totalizante
denunciado, anteriormente, por Bampi (1999) em que a Educação Matemática é
produzida a partir do silenciamento dos investimentos necessários para que
determinados saberes pudessem ocupar o lugar de legítimos, de verdadeiros em
detrimento a outros.
17
Cf. Knijnik (1996, 2003, 2004).
40
cultural e econômico) e o trabalho pedagógico que se desenvolve como o
objetivo de que o grupo:
41
entendimento foucaultiano de que não é qualquer um que pode dizer qualquer coisa em
qualquer circunstância. As palavras são controladas, vigiadas, distribuídas. E é essa
distribuição que problematizamos nesse artigo, pois o que se fala sobre o uso
pedagógico da realidade na contemporaneidade só foi possível porque houve todo um
investimento, toda uma permissão ou uma construção de um espaço para que o que
pudesse ser dito hoje iniciasse seus procedimentos de aparecimento na ordem do
discurso educacional.
42
comparação entre os conhecimentos evidenciando “as relações de poder envolvidas no
uso destes dois saberes” (KNIJNIK, 1996, p. 114).
43
convocar o uso pedagógico da realidade em suas discussões, ela apresentou – mesmo
que de forma tímida – indícios de que os saberes produzidos nos possibilitam pensar
práticas docentes que inscrevam os alunos a instigar seus lugares na sociedade e a
(des)construir o lugar de saber universal pretendido pela matemática ocidental.
44
como - na contemporaneidade - seus discursos, suas promessas vão subjetivando os
docentes.
Isto posto, nos interessa, então, discutir quais os efeitos que o uso pedagógico da
realidade adquiriu a partir dessas produções. Assim, o próximo artigo apresenta os
saberes produzidos nos documentos oficiais, sobre Educação Matemática, para
tencionar como as produções sobre o uso pedagógico da realidade apresentadas até aqui
surgiram no material referido acreditando que o aparecimento da realidade nos
documentos só foi possibilitado pelo investimento, pela economia desses pesquisadores
em problematizar uma Educação Matemática em prol das distintas formas de
matematizar.
45
Denominamos a realidade constituída na Educação Matemática como: uso
pedagógico da realidade. Assim, analisamos as convocações, as regularidades, as
normatividades em torno de um uso pedagógico, acreditando que a realidade que é
produzida discursivamente no campo referido solicita, convida, promete um uso que
seja significativo, que contextualize, que esteja em todos os lugares.
Uma vez que não é nosso objetivo inserir valores – pois sua inserção conduziria
a uma verdade -, mas apenas (re)pensar o cenário da Educação Matemática
contemporânea por um viés filosófico que recusa tomar o saber como algo neutro,
natural, universal. Assumindo que não apenas a filosofia – e os autores escolhidos nesta
pesquisa – mas o saber-realidade criam maneiras de olhar, de interpretar e de estar no
mundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. 1ª ed. Alfredo Bossi; trad. Ivone
Castilho Benedetti. – 5 ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2007.
46
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Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Faculdade de
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DROIT, Roger-Pol. Filosofia em cinco lições. Trad. Jorge Bastos. – Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 2012.
FERREIRA, Mariana Kawall Leal. Com quantos paus se faz uma canoa: a
Matemática na vida cotidiana e na experiência escolar indígena. Brasília:
MEC/Acessoria de Educação Escolar Indígena, 1994.
48
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assentamento do movimento sem terra. Currículo sem fronteiras, v.3, n.1, p.96-110,
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KNIJNIK, Gelsa. O que os movimentos sociais têm a dizer à Educação Matemática? In:
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NIETZSCHE, Friedrich. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. – São Paulo:
Companhia das Letras, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. – São
Paulo: Companhia das Letras, 2011a.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. – São
Paulo: Companhia das Letras, 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência. Trad. Mário Ferreira dos Santos. – Rio
de Janeiro: Vozes, 2011b.
OLIVEIRA. Claudio José de. Etnomatemática e educação: possibilidades e limites de
um processo pedagógico. Reflexão e ação, Santa Cruz do Sul, v. 10, n. 1, p. 77-91, jun.
2002.
49
UBERTI, Luciane. BELLO, Samuel Edmundo Lopez. A docência-pesquisa em
movimento no PIBID. In: Iniciação à docência: articulações entre ensino e pesquisa.
BELLO, Samuel Edmundo Lopez; UBERTI, Luciane (orgs.). São Leopoldo: Oikos,
2013.
50
3. O SABER-REALIDADE E SUAS PRESCRIÇÕES:
SOBRE PROMESSAS, PRÁTICAS DOCENTES, ...
18
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. Mário D. Ferreira
Santos - Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
51
ARTIGO 2
52
matemática. Conforme Pinho (2013), tomar a escola como um desvio cultural é, de
alguma forma, pensá-la como um processo excluído do mundo. Dessa forma, se
apresenta uma discursividade que apela, prescreve, convoca, orienta formas de trabalhar
a Educação Matemática contemporânea pelo viés do que institucionalizou como
realidade.
53
condições para constituir o homem moderno (MACHADO, 2007). Nessa análise
emergem as condições, os cuidados e as formas sobre as quais se pode ou não falar
sobre o homem e, assim, produzir efeitos de verdade a partir das práticas discursivas.
Porém, quando pensamos com Foucault, o saber deixa de ter seu caráter neutro,
naturalizado sendo atravessamento pelas relações de poder. Assim, pode-se perceber
“[...] o balizamento dos mecanismos de poder no interior dos próprios discursos
científicos: à qual regra somos obrigados a obedecer, em uma certa época, quando se
quer ter um discurso científico sobre a vida, sobre a história natural, sobre a economia
política?” (FOUCAULT, 2012, p. 221). Ao pensar quais são as regras que devemos
seguir; quais os mecanismos que somos obrigados a obedecer para que tenhamos certa
produção científica, percebe-se o caráter regrado e normativo do saber. Engendrado nas
relações de poder, “[...] a que se deve obedecer, a que coação estamos submetidos,
como, de um discurso a outro, de um modo a outro, se produzem efeitos de poder?”
(Ibid., p. 221-222).
54
regulando e controlando as subjetividades docentes em relação ao uso pedagógico da
realidade.
55
6º - Proposta Pedagógica Para o Ensino Médio Politécnico e Educação Profissional
Integrada ao Ensino Médio – SEDUC-RS, 2011;
19
O documento está dividido nas seguintes áreas: Linguagens Códigos e suas Tecnologias: Língua
Portuguesa, Literatura, Língua Estrangeira Moderna (Inglês e Espanhol), Educação Física e Arte;
Matemática e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias: Biologia, Física e Química;
Ciências Humanas e suas Tecnologias: História, Geografia, Sociologia e Filosofia.
20
Para essa pesquisa, denomina-se Educação Básica as séries/anos finais do Ensino Fundamental e o
Ensino Médio.
21
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+) a partir de agora serão utilizados na pesquisa apenas como
PCN+.
56
vão compondo e (re)estruturando as formas de pensar o currículo, as ações docentes e a
escola na esfera da Educação Básica22.
O Ensino Médio Politécnico “tem em sua concepção a base na dimensão
politécnica, constituindo-se no aprofundamento da articulação das áreas de
conhecimentos e suas tecnologias [...]” e com as dimensões de Trabalho, Tecnologia,
Cultura e Ciência entendendo que a “construção de conhecimento embasam e
promovem a inserção social da cidadania” (RIO GRANDE DO SUL, 2011, p. 10).
Por fim, os PCN+ desenvolvido pelo MEC no ano de 2002 trazem a discussão
acerca da reformulação do Ensino Médio. Entre as propostas de mudança, estão as
organizações das áreas do conhecimento, bem como suas articulações. Dessa forma,
será analisado o documento que versa sobre a Ciência da Natureza, Matemática e suas
tecnologias.
22
Aqui, percebe-se um movimento acerca da organização curricular em relação às políticas públicas. Ao
instituir o ENEM como acesso ao Ensino Superior, se legitima que suas orientações “ensinem” os
docentes da Educação Básica a organizar suas ações de acordo com as necessidades de uma prova. Num
insistente exercício de universalizar o ensino do país.
57
três prescrições que compõem os elementos centrais de nossa discussão e serão
apresentadas a seguir.
[...] com a necessidade com que uma árvore tem seus frutos, nascem em nós
nossas ideias, nossos valores, nossos sins e nãos e ses e quês – todos relacionados
e relativos uns aos outros, e testemunhas de uma vontade, uma saúde, um terreno,
um sol. – Se vocês gostarão desses nossos frutos? – Mas que importa isso às
árvores! Que importa isso a nós, filósofos!...(NIETZSCHE, 2009, p.8)
Essa prescrição versa sobre a contextualização. São os dizeres, as formas que os
documentos apresentam aos docentes no intuito de constituir modos de ver e dizer,
maneiras de pensar as ações pedagógicas. Produzindo uma vontade por contextualizar...
Foucault ao supor
58
[...] mas sem ter certeza, que não há sociedade onde não existam narrativas maiores
que se contam, se repetem e se fazem variar; fórmulas, textos, conjuntos ritualizados
de discursos que se narram, conforme circunstâncias bem determinadas; coisas ditas
uma vez e que se conservam, porque nelas se imagina haver algo como um segredo
ou uma riqueza (2012, p. 21),
nos possibilita pensar sobre as narrativas, que dizem, repetem e se fazem variar, mas
que produzem uma sensação de segredo, de riqueza no saber-realidade. Vão compondo-
se verdades e desejos para constituir uma docência que desenvolva essa noção de
procurar, explorar a matemática e seu ensino através da realidade, do mundo.
59
A contextualização não pode ser feita de maneira ingênua, visto que ela será
fundamental para as aprendizagens a serem realizadas – o professor precisa antecipar os
conteúdos que são objetos de aprendizagem. Em outras palavras, a contextualização
aparece não como uma forma de “ilustrar” o enunciado de um problema, mas como uma
maneira de dar sentido ao conhecimento matemático na escola (BRASIL, 2006, p. 83).
Mas, antes de tudo, deve ter como prioridade o estudo de um tema que seja de interesse
dos alunos [...] São situações a serem trabalhadas sob uma visão interdisciplinar,
procurando-se relacionar conteúdos escolares com assuntos do quotidiano dos
estudantes e enfatizar aspectos da comunidade, da escola, do meio ambiente, da
família, da etnia, pluriculturais, etc. (BRASIL, 2006, p. 85, grifo nosso).
23
Foucault (2012a), já num exercício genealógico, pensa o poder como relações. Relações que se dão no
corpo e que pertencem a um local, a uma cultura, a uma região. Assim, se um problema for emergente em
duas culturas distintas, então as soluções, os desafios, as lutas para pensá-lo serão diferentes, pois a forma
como cada grupo problematizará é local e está em dado momento histórico, por isso que em outro
momento histórico o pensar a docência em Educação Matemática – por exemplo – seria outro.
60
A contextualização é a abordagem para realizar a já mencionada, indispensável e difícil
tarefa de cruzar a lógica das competências com a lógica dos objetos de aprendizagem.
Para que o conhecimento constitua competência e seja mobilizado na compreensão de
uma situação ou na solução de um problema, é preciso que sua aprendizagem esteja
referida a fatos da vida do aluno, a seu mundo imediato, ao mundo remoto que a
comunicação tornou próximo ou ao mundo virtual cujos avatares têm existência real
para quem participa de sua lógica (RIO GRANDE DO SUL, 2009, p. 22, grifo nosso).
A contextualização pode ser feita por meio da resolução de problemas, mas aqui é
preciso estar atento aos problemas “fechados”, porque esses pouco incentivam o
desenvolvimento de habilidades (BRASIL, 2006, P. 83).
[...] o currículo é concebido como o conjunto das relações desafiadoras das capacidades
de todos, que se propõe a resgatar o sentido da escola como espaço de desenvolvimento
e aprendizagem, dando sentido para o mundo real, concreto, percebido pelos alunos e
alunas. Conteúdos são organizados a partir da realidade vivida pelos alunos e alunas e
da necessidade de compreensão desta realidade, do entendimento do mundo (RIO
GRANDE DO SUL, 2011, p. 15).
61
viabiliza as maneiras de discutir e inseri-la na docência contemporânea. Os documentos
apresentam o currículo como instrumento composto dos elementos necessários à
contextualização. Assim, a escola vai elaborando os enredos que permitem convocar a
realidade do outro a entrar e permanecer na escola. Porém, observa-se que ao mesmo
tempo em que tais prescrições usam pedagogicamente a realidade não é a partir do
entendimento de formas distintas de matematizar, mas sim de identificar a matemática
nas práticas ditas não escolares.
[...] o currículo conecta a escola com o contexto, seja o imediato de seu entorno
sociocultural, seja o mais vasto do País e do mundo. Se currículo é cultura social,
científica, cultural, por mais árido que um conteúdo possa parecer à primeira vista,
sempre poderá ser conectado com um fato ou acontecimento significativo, passado
ou presente. Sempre poderá ser referido a um aspecto da realidade, próxima ou distante,
vivida pelo aluno (RIO GRANDE DO SUL, 2009, p. 13, grifo nosso).
62
A prescrição é clara: não precisamos sair da escola para (re)conhecê-la Aliás,
cuidado, pois a escola faz parte do mundo. E a matemática também. A ideia é
aproximar, convocar esses locais a dialogarem. Mundo, escola e matemática: a
contextualização está aí para vocês conversarem!
Na medida em que sempre, desde que existem homens, houve também rebanhos de
homens [...] e sempre muitos que obedeceram, em relação ao pequeno número dos
que mandaram – considerando, portanto, que a obediência foi até agora a coisa
mais longamente exercitada e cultivada entre os homens, é justo supor que via de
regra é agora inata em cada um a necessidade de obedecer, como uma espécie de
consciência formal que diz: “você deve absolutamente fazer isso, e absolutamente
se abster daquilo”, em suma, “você deve” (NIETZSCHE, 2005, p. 85, aspas do
autor).
O movimento é pela busca. Instale o GPS e siga a multidão. Logo será a sua vez
de dizer, prescrever, comentar por onde ela está. Os lugares, os usos, as culturas, as
formas. Enfim, todos os percursos nos quais a matemática pode percorrer e estar
presente. Não só enquanto materialidade, mas enquanto leitura, interpretação, valoração.
63
A próxima prescrição apresenta algumas maneiras de percebê-la pelo dia-a-dia no
exercício – incessante – de procurá-la em todos os lugares.
A matemática vai sendo pensada enquanto linguagem não apenas para afirmar
que ela possui códigos e formas de uso específicos, mas para o entendimento de que
com ela é possível compreender e fazer leituras do mundo, bem como modificá-lo.
Assim, enquanto linguagem, os documentos legitimam uma matemática pertencente ao
mundo. Mais do que isso, é no âmbito da linguagem que se pode produzir o
entendimento de uma matemática étnica e social, pois cada grupo cria, fabula símbolos,
64
códigos e nomenclaturas para não apenas se relacionar, mas na vontade de se
identificar, se legitimar e constituir distintas formas de matematizar.
Com isso, podemos pensar que as promessas do uso pedagógico da realidade nos
documentos aproximam-se das discussões iniciais sobre a produção de uma matemática
étnica. Não podemos esquecer, porém, que mesmo que existam aproximações, os
documentos versam por prescrições claras e objetivas e, por fim, percebe-se que o
espaço para produzir outras formas de matematizar não é convocado no material uma
vez que a conceituação de sociedade, pelos documentos, convoca um modelo de
sociedade capitalista, ocidental. Logo, por mais que o étnico apareça no material
analisado, ele é pensado para dar conta das distintas formas ou estruturas inseridas no
mesmo modelo social. Portanto, não observamos espaços para – por exemplo – a
educação indígena nos documentos analisados.
65
Um saber também é “o campo de coordenação e de subordinação dos
enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam
[...]” (FOUCAULT, 2014, p. 220). Com isso, o saber-realidade vai constituindo-se a
partir de suas aparições, de suas definições e aplicações. Ao tratar do aparecimento da
matemática nas questões da defesa dos direitos individuais, os documentos oficiais
orientam as maneiras como a matemática pode ser vista no/pelo mundo.
66
Os documentos prescrevem e valorizam uma metodologia: a resolução de
problemas. Com ela, o docente produz situações para problematizar o real, os desafios
do cotidiano. Num enredo que desenha a docência, se escolhe um método – e não o
método - para colocá-lo em um lugar de poder. Ao eleger uma metodologia em
detrimento a outras, os documentos afirmam e inventam um lugar não apenas de saber,
mas de poder que insiste em convocar o docente para o caminho da docência pela
resolução de problemas. Não podemos esquecer que os primeiros investimentos do
saber-realidade convocam a pensar a resolução de problemas apontando que os
problemas que a comunidade resolve usam estratégias distintas daquelas apresentadas
pela escola.
24
Não podemos esquecer do Ensino Médio Politécnico proposto pela SEDUC/RS. Sua organização
privilegia espaços na escola para estudo e elaboração de projetos e, por isso, um ensino politécnico.
Percebe-se, outra vez, que os investimentos, as criações não são neutras, universais. Existem redes,
contornos, saberes, prescrições, desejos que vão organizando, disciplinando, fabulando ações; regimes de
verdade; subjetividades (FOUCAULT, 2013).
67
distanciamento que os primeiros entendimentos estão sendo (re)organizados para
compor o que os documentos orientam. Uma das esferas que não pode ser esquecida –
por nós – é a que versa por uma conduta, uma descrição nacional, no âmbito do governo
de todos e de cada um (FOUCAULT, 2014, 2010). Ou seja, saímos da lógica de um
governo provedor para um governo autorregulador.
A autorregulação vai dar conta da conduta dos corpos. Para isso, o governo em
suas inúmeras ações inventa, institui instrumentos, materiais, formas que vão não
apenas prescrever, mas regular a todos e a cada um no entendimento de um poder que
não é possuído, mas que se institui; que se ocupa (Foucault, 2012a). Os efeitos das
produções do governo dão conta de que todos e cada um possam regular e vigiar as
condutas. A lógica passa do governante ou das instituições que governam para o
governado: é na própria subjetividade que percebemos os regimes, os controles, os
disciplinamentos do poder tão invisível (DELEUZE, 2013), pois a contemporaneidade
mascara esses movimentos ao prescrever que somos nós – sujeitos – responsáveis por
todas essas condutas, essas possíveis formas de ser e agir.
Muito provavelmente, nessa primeira conversa, os alunos darão indícios sobre o que os
motiva, seus sonhos e expectativas em relação ao ensino médio. O professor pode
ampliar essa discussão incluindo aspectos que podem interessar à comunidade da
escola, como por exemplo: quais alunos trabalham? Em que profissões? Que profissões
buscam alcançar depois do ensino médio? O que fazem como lazer? Que esportes
praticam ou acompanham de perto? O que suas famílias esperam deles? Como tem sido
sua relação com a Matemática? O que gostam de ler? (BRASIL, 2002, p. 130, grifo
nosso).
Não podemos esquecer que o discente vai criando suas verdades ao responder o
questionário, pois a escolha das palavras, a forma como o texto vai sendo apresentado já
inaugura o percurso composto entre aquilo que o aluno faz e aquilo que ele quer fazer e
mais do que isso, discursivamente, produz aquilo que se acredita ser.
68
Um saber é aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva que se encontra
assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir
ou não um status científico (FOUCAULT, 2014, p. 219-220).
Assim, o saber-realidade vai se (re)constituindo com as formas, as
normatividades que os documentos trazem e as maneiras como eles fabricam as
docências em Educação Matemática. Essas maneiras orientam as escolhas docentes.
[...] os temas selecionados devem ter relevância científica e cultural. Isso significa que,
além das justificativas relativas às aplicações e à linguagem, sua importância está em
seu potencial explicativo, que permite ao aluno conhecer o mundo e desenvolver
sentidos estéticos e éticos em relação a fatos e questões desse mundo. (BRASIL, 2002,
p 120).
Há a prescrição para selecionar temas que possam ser justificados. Que sejam
úteis para a vida do aluno, que ele possa usá-lo como instrumento. Orienta-se o
professor a dizer como e em quais circunstâncias tais saberes serão utilizados. Por outro
lado, as escolhas devem privilegiar a vontade de compor sentidos (est)éticos pelo
estudante. Os documentos assumem que as formas como o discente vai compondo suas
relações com o mundo estão associadas às condições de interação mundo-matemática
proporcionadas pelo docente. Assim, segundo o documento, os sentidos (est)éticos dos
discentes serão compostos apenas quando o docente souber de que forma o estudante
possa compor algo para si a partir das intervenções não só da matemática, mas da
escola.
Talvez, possamos afirmar que a ética seja, enfim, mais voltada para o professor,
pois ele, enquanto profissional ético, precisa elaborar uma prática que seja estética não
apenas para si, mas para seus estudantes. Logo será (est)ético o conhecimento que puder
- de forma clara e objetiva - explicar, apresentar, representar, a verdade do mundo e por
assim dizer, ser instrumento para desenvolver sentidos "a fatos e questões do mundo".
Ao selecionar um tema, a forma de trabalho deve ser pensada de modo integrado à sua
escolha, evitando repetir o modelo curricular das listas de assuntos enfileirados. As
escolhas que serão feitas devem ter no horizonte o aluno de cada escola, daí a
necessidade de um olhar cuidadoso para esses jovens, indivíduos cognitivos, afetivos e
sociais, que possuem projetos de vida, histórias pessoais e escolares (Brasil, 2002, p.
120).
69
Aqui a prescrição convoca saberes de outros campos como a psicologia. O
documento solicita que os projetos de vida, que as maneiras como o discente percebe e
interage no mundo estejam não apenas compostos, mas conduzam, (trans)formem as
práticas docentes. E a vontade de verdade em colocar o docente no lugar de responsável
pelas interações mundo-matemática vão sendo conduzida pelos documentos. As
prescrições, as normas, as maneiras como a docência está sendo pensada no material de
análise, constituem maneiras de narrar, de convocar a docência.
O professor não aprende a criar situações didáticas eficazes nas quais sua área de
conhecimento surja em contextos de interesse efetivo de seus estudantes. Sendo essa
herança histórica, não há dúvida de que tais deficiências estão hoje dificultando o
trabalho escolar e, portanto, demandam ações no próprio âmbito escolar, já que há
consenso de que a formação é mais eficaz quando inserida na realidade em que o
professor atua [...] (BRASIL, 2002, p. 140, grifo nosso).
70
desenhar maneiras de se constituir que são singulares, suas, múltiplas, mas que agregam
os sonhos, as histórias, os anseios e os medos dos seus discentes. Numa nítida vontade
de inventar uma docência a partir dos elementos que compõem a escola e que compõem
as orientações dos documentos oficiais.
Promover uma prática educativa que leve em conta as características dos alunos e de seu
meio social, seus temas e necessidades do mundo contemporâneo e os princípios,
prioridades e objetivos do projeto educativo e curricular (BRASIL, 2001, p. 42).
A aprendizagem deverá ser orientada pelo princípio metodológico geral, que pode ser
traduzido pela ação-reflexão-ação e que aponta a resolução de situações-problema como
uma das estratégias didáticas privilegiadas (BRASIL, 2001, p. 63).
71
problema, pois ela parte de um problema real para propor um modelo matemático que
possa descrever ou pensar formas para resolvê-lo.
Cabe ao professor garantir a aprendizagem de seus alunos bem como a sua formação
como cidadãos capazes de atuar na realidade que os cerca, transformando-a (RIO
GRANDE DO SUL, 2009, p. 44).
As prescrições são legitimadas menos por serem postas como verdade e mais por
estarem ocupando um lugar distinto, de poder que produz um determinado saber. Por
25
O documento referido entende a transposição didática como uma associação entre a interna e a externa.
A primeira seriam as ações feitas dentro da escola, sejam as aulas, as práticas docentes, o currículo
constituído pela instituição. Já a externa seriam os livros didáticos, sites educativos e os próprios
documentos analisados que são as formas e as maneiras de pensar e legitimar as ações docentes que estão
externas à realidade escolar.
72
ocuparem um lugar nos documentos, (re)utilizam e produzem efeitos de verdade. Logo,
se as produções, as pesquisas no campo da Educação Matemática constituíram os
primeiros percursos do saber-realidade, os documentos ao prescreverem, servem como
manuais; como guias; como instrumentos capazes de validar o uso pedagógico da
realidade. Ao se constituir como um modelo, as orientações procuram instrumentalizar
o docente a propor e se sentir responsável por trazer discussões que convoquem o uso
pedagógico da realidade nas suas práticas pedagógicas.
73
matemática aos laboratórios, à escola, à ciência. No exercício de enxergá-la por todos os
lugares em que os discentes e os docentes possam ocupar. Uma matemática da e pela
vida. A vontade de enxergá-la por toda a parte.
Promover situações que contribuam para a melhoria das condições de vida da cidade
onde vive ou da preservação responsável do ambiente. Utilizar as ferramentas
matemáticas para analisar situações de seu entorno real e propor soluções, por exemplo,
analisando as dificuldades de transporte coletivo em seu bairro por meio de
levantamento estatístico, manuais técnicos de aparelhos e equipamentos, ou a
melhor forma de plantio de lavoura para subsistência de uma comunidade
(BRASIL, 2002, p. 119, grifo nosso).
74
que o contemporâneo interpreta em relação ao uso pedagógico da realidade Dessa
maneira, podemos perceber que nos documentos a realidade é pensada como a vida de
cada aluno; como as situações cotidianas; como o local em que a escola está inserida.
75
A prática não se reduz a ações observáveis, experiências de laboratório ou elaboração de
objetos materiais. A prática comparece sempre que um conhecimento pode ser
mobilizado para entender fatos da realidade social ou física, sempre que um
conhecimento passa do plano das abstrações conceituais para o da relação com a
realidade (RIO GRANDE DO SUL, 2009, p. 23).
A prática não é o concreto como afirma o documento. Ela é uma relação. Ela se
constitui entre os movimentos de cunho sociais e físicos à medida que uns
conhecimentos fogem de sua lógica abstrata para constitui elos com o mundo. O
docente precisa observar se seus estudantes estão rompendo com as lógicas abstratas e
constituindo, produzindo relações com o que os cercam. O professor precisa estar atento
e – antes de qualquer coisa – usar um breve questionário validado – como referenciamos
anteriormente – para constatar que seus discentes estão produzindo significados.
[...] como alguém divinamente disperso e imerso em si, a quem os sinos acabam
de estrondear no ouvido as doze batidas do meio-dia, e súbito acorda e se
76
pergunta “o que foi que soou?”, também nós por vezes abrimos depois os ouvidos e
perguntamos, surpresos e perplexos inteiramente, “o que foi que vivemos?”, e
também “quem somos realmente?”, e em seguida contamos, depois, como disse, as
doze vibrantes batidas da nossa vivência, da nossa vida, nosso ser – ah! E
contamos errado... Pois continuamos necessariamente estranhos a nós mesmos, não
nos compreendemos, temos que nos mal-entender, a nós se aplicará para sempre a
frase: “Cada qual é o mais distante de si mesmo” – para nós mesmos somos
“homens do desconhecimento”... (NIETZSCHE, 2009, p. 7).
Nietzsche, em suas discussões críticas, mas poéticas problematiza como
atribuímos valores. Em outras palavras, como a moral foi desenhando-se. Assim, uma
de suas discussões versa sobre o estranhamento que temos de nós mesmos. Homens do
conhecimento que não nos conhecemos. Do desconhecimento de si, de sua docência,
que a presente pesquisa configurou-se.
Não obstante, temos que a convocação mais enfática “[...] e recorrente tem sido
o apelo à necessária integração entre teoria e prática, como maneira de se formar o
“bom professor” que poderá tratar, discutir e enfrentar os problemas educacionais do
cotidiano escolar” (UBERTI, BELLO, 2013, p. 17). Compondo, elaborando e, por isso,
prescrevendo elementos em prol da formação necessária do educador contemporâneo.
77
Produzindo, instaurando, (re)afirmando efeitos de verdades, práticas, condutas no rol de
regimes verdadeiros sobre ser docente em nosso tempo. Dessa maneira, os excertos
analisados apontam as produções, os esclarecimentos, os entendimentos, as promessas e
as crenças a partir do uso pedagógico da realidade que respaldam as ações docentes.
Mais do que isso, os documentos regulam e normatizam as práticas pedagógicas que já
estão sendo realizadas no âmbito da escola básica (re)afirmando e padronizando as
maneiras de ser e agir.
Para compor nosso artigo, percebemos três prescrições recorrentes nos excertos
analisados. A saber: Buscar a contextualização da matemática; Buscar a matemática
presente no cotidiano; Realidade constituinte de práticas de ensino-aprendizagem.
Buscar a contextualização da matemática apresentou as normatividades
contemporâneas de pensar a matemática pela contextualização. O movimento dos
documentos foi de validar, (re)afirmar a necessidade de falar sobre a aplicabilidade da
matemática. Convidando os docentes e (re)pensar suas ações pedagógicas pela vontade
de contextualizar, de aplicar a matemática, de torná-la parte do mundo e de estar em
todos os lugares.
78
prometem maneiras de usarmos pedagogicamente a realidade e as possibilidades para
constituirmos nossas ações docentes.
Podemos destacar que cada uma das duas práticas finais retomou a primeira:
Buscar a contextualização da matemática. A vontade de enxergá-la por todos os
lados não (re)afirma que ela não estava lá? Ou que alguma vez não esteve? Ou melhor,
que até a prescrição – ou a criação do saber-realidade – não havia investimentos; não
estava na ordem do que se poderia falar na Educação Matemática - que a matemática
estivesse pelo mundo? Que vontade platônica e, porque não, tão mais difícil de dizer
que se está em todo lugar? Seria isso uma atualização da superioridade da matemática?
Afinal, se prescreve uma matemática para todos e cada um ou para poucos e quase
nenhum?
Para responder a essas duas questões, propomos o próximo artigo que tentará
olhar como os docentes estão identificando-se com as prescrições, as formas legitimadas
de pensar a docência contemporânea. No intuito de olhar as interpretações, as
valorações, as tramas que possibilitam que os docentes apresentem suas identificações.
Em suma, observar quais são as identidades docentes no âmbito do uso pedagógico da
realidade que produzem maneiras de entendermos o saber-realidade.
26
UBERTI, Luciane. Parecer da dissertação de Gilberto Silva dos Santos, defendida em 24/02/2016 pelo
Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde/PPGQVS.
79
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 8 ed. –
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
HEUSER, Ester Maria Dreher. Fábula da existência seguida de notas sobre a fabulação.
In: Fantasias da escritura: filosofia, educação, literatura. Sandra Mara Corazza. –
Porto Alegre: Sulina, 2010, p. 51-66.
80
MACHADO, Nílson José. Matemática e realidade: das concepções às ações docentes.
8 ed. – São Paulo: Cortez, 2013.
NIETZSCHE, Friedrich. Vontade de potência. Trad. Mário Ferreira dos Santos. – Rio
de Janeiro: Vozes, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. – São
Paulo: Companhia das Letras, 2005.
81
4 – O SABER-REALIDADE E SUAS NARATIVAS:
PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES DOCENTES
27
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. Mário D. Ferreira
Santos - Rio de Janeiro: Vozes, 2008.
82
ARTIGO 3
RESUMO: Neste artigo, temos como objetivo analisar as narrativas docentes que fazem
uso pedagógico da realidade na Educação Matemática. Os excertos selecionados de um
congresso do campo referido foram organizados segundo suas semelhanças
possibilitando a constituição de identidades docentes que representam, controlam,
regulam o uso pedagógico da realidade. Apontamos, ainda, alguns assuntos que são
valorizados pelas narrativas docentes na vontade de usar a realidade de forma
pedagógica. Nosso viés teórico é pautado nos estudos de Michel Foucault. Assim,
atentos a essas representações, as produções da rede discursiva em Educação
Matemática, buscamos tensionar como o saber-realidade segue compondo os
entendimentos; segue regulando e orientando as ações docentes em prol de uma
matemática contextualizada, utilitarista, lúdica, significativa. Enfim, por uma
matemática que esteja em todos os lugares, que pertença a todos.
83
São os efeitos de verdade que o artigo pretende tencionar. Mas que efeitos de
verdade são esses? Da invenção do saber-realidade como maneira de normatizar a
docência na Educação Matemática contemporânea, surgem as prescrições, as
orientações, as condutas acerca das ações pedagógicas sobre o contextualizar, o
observar a matemática em tudo, a realidade do aluno, a constituição docente.
[...] quanto não precisou antes tornar-se ele próprio [o homem] confiável, constante,
necessário, também para si, na sua própria representação, para poder enfim, como
faz quem promete, responder por si como porvir! (NIETZSCHE, 2009, p. 44)
Analisar as identidades docentes é olhar para as formas como os docentes
representam suas práticas bem como se constituem como sujeitos – em especial ao se
inclinarem as práticas discursivas da Educação Matemática. Assim, a partir do uso
pedagógico da realidade tanto na produção dos pesquisadores da área quanto nos
documentos e nas políticas públicas voltadas à educação, os docentes vão se
84
subjetivando e narrando suas identidades que, muitas vezes, se confundem com
promessas num “responder por si como porvir”, nessa vontade de trazer para si a
identidade docente desejada em seu tempo. Desse movimento criam-se dualismos entre
a identidade professor que se quer e a que não se quer. Uma aceita e validada
(re)atualizada pelo uso pedagógico da realidade e outra, marginalizada, esquecida,
escondida, mas também produzida pelo mesmo uso, pois ao incitar uma identidade
como forma-aceita do professor ela vai fixando, prescrevendo, constituindo, idealizando
essa identidade e não outra.
Para apresentar essas identidades que são, por hora, efeitos de verdades
produzidas através da rede discursiva da Educação Matemática, estaremos analisando as
identidades docentes narradas pelos professores através da vontade de usar
pedagogicamente a realidade. Para isso, analisamos os anais do X e do XI Encontro
Gaúcho de Educação Matemática (EGEM), realizados, respectivamente, em 2009 e
2012.
85
maneiras de ser e agir, pois “[...] as imagens que o mundo, principalmente social,
apresenta, a rigor, ele não apresenta isentamente, isto é, é o olhar que botamos sobre as
coisas que, de certa maneira, as constitui” (VEIGA-NETO, 2007, p. 30). É para esses
olhares que constituem o sujeito-docente no/pelo uso pedagógico da realidade e dão
condições para pensarmos o saber-realidade que estamos atentos e gostaríamos de
tensionar a seguir.
87
O professor tem o papel de estimular e desenvolver habilidades, assim como preparar o
aluno para sua realidade. Para efetivar esta tarefa, o professor deverá mudar sua visão
com relação ao Ensino da Matemática, de maneira que, torne o aluno como centro do
processo educacional e enfatize o processo de construção do conhecimento
(LAZZARDI, LIMA, SCHULZ, 2012, p.661).
[...] o discurso pedagógico [como] um dos norteadores para produzir formas de ser
docente entre os professores. Dessa forma, nosso estudo busca percorrer alguns
discursos em educação matemática que evidenciam formas de ser docente assim
como, os usos e seus significados na constituição das práticas em educação
matemática possibilitando a produção de verdades (SANTOS; SANTOS, 2014, p.
2).
As produções de verdades vão se apresentando à medida que os docentes vão
convocando novos professores a pensar suas ações pedagógicas a partir da realidade. Se
o saber-realidade foi produzido e instituído como a forma prescrita para o docente
contemporâneo, então suas vontades instituem formas de pensar a docência e uma vez
que tais materiais assumem um lugar de verdade, os efeitos dessa verdade começam a
representar identidades docentes.
[...] devem ser trabalhadas atividades que despertem o interesse e a motivação dos
alunos, permitindo uma interação entre professor, aluno e saber matemático e
possibilitando a busca de significações dos conceitos a serem construídos (SELVA,
CAMARGO, 2009, p. 1).
A vontade por buscar significado, por encontrar e apresentar os lugares por onde
a matemática anda e está presente vão constituindo formas de pensar a docência. Com
isso, vão sendo representadas maneiras, condutas, normas que o docente precisa seguir
para constituir suas práticas pedagógicas. Logo, uma identidade docente produzida pelo
uso pedagógico da realidade dá conta de convocar o docente a produzir significados
auxiliando nas mais diversas atividades humanas. Logo, denominamos essa categoria de
identidade docente utilitarista/contextualizadora.
88
Com o intuito de contextualizar os conteúdos matemáticos e resgatar os diversos alunos
que veem a Matemática como uma disciplina complexa e sem aplicação, utilizamos a
sala de aula como um ambiente de Modelagem, com o intuito de aproximar alguns
conteúdos matemáticos à realidade dos alunos, fazendo-os refletir e posicionar-se diante
dos problemas apresentados (GOMES, VARGAS, 2012, p. 363).
[...] é importante que sejam pensadas atividades que integrem a matemática ao mundo
real, de modo que o aluno perceba que existem relações entre a matemática ensinada na
escola e a matemática da realidade, capacitando o educando a compreender e
representar matematicamente essas relações (PEREIRA; NEHRING, 2009, p. 2).
89
O que nós instiga é que o efeito de verdade deixa de ser questionável e se
advoga como verdadeiro por si só sem apresentar todas as suas lutas, suas batalhas e
seus esforços para se (trans)formar em algo naturalizado. Uma vez que ela ocupa esse
lugar, produz efeitos; produtos; instantes que vão desejar e inventar outras verdades. O
dualismo matemática mundo-escola vai afirmando-se na formação de um sujeito-
professor utilitarista/contextualizadora: aquele que procura o uso de cada conceito
matemático no mundo. Podemos – inclusive- tomá-la com a identidade guarda-chuva do
saber-realidade.
90
[...] queremos repensar a prática como o espaço de aprendizagem e de construção do
pensamento prático do professor, permitindo e provocando o desenvolvimento de
capacidades e competências sempre em diálogo com a situação real (BORJA et al,
2012, p. 441).
28
Não está sendo dito que tais movimentos são próprios, únicos do EGEM. Apenas faz-se referência a
ele, pois a materialidade dessa pesquisa está baseada nos anais do evento referido.
91
objetivo, são estabelecidas relações com situações do cotidiano que tornam o conteúdo
mais significativo [...] (RABAIOLLI et al, 2012, p. 507, grifos nossos)
As redes sobre como pensar sua docência vão sendo apresentadas. Os modos de
ser e agir do docente vão sendo mapeados, desenhados, costurados em torno do
significativo, do concreto, do real, da realidade. O desejo por elaborar diversas
metodologias que aproximem o discente do conhecimento estudado vai adquirindo
espaço no intuito de constituir outras maneiras de ser e agir a partir das práticas
pedagógicas de outros professores.
92
Pela realidade do aluno... E aí vão surgindo às novas – ou não tão novas – prescrições
ensinando como ser um sujeito-professor-lúdico.
93
contemporaneidade. A posição que solicita a inserção das tecnologias no currículo e no
ensino de matemática adquire força e circula no desejo de convocar e apresentar
estratégias para que essas ferramentas sejam utilizadas e potencializadas na escola.
Assumimos diferentes posições de sujeito dos discursos que nos fabricam. Somos
produto do discurso ou, ainda, seu efeito. Efeito inofensivo, diria eu, visto que
produz modos de pensar, de ser e de dizer (SANTOS, 2009, p. 17).
A rede discursiva da Educação Matemática vai fabricando os sujeitos docentes.
Seus efeitos inofensivos – em especial, os que versam sobre o uso pedagógico da
realidade – arrastam os docentes para se constituírem, se identificarem. Num
movimento de se enxergar sujeito de determinados lugares, de determinadas vozes, para
determinados “usos”. As maneiras como o uso pedagógico da realidade é (re)ofertados
pelos docentes versam sobre a tentativa de constituir uma docência verdadeira, uma
identidade docente em consonância com as prescrições, com os desejos convocados
pelos materiais. Portanto, instituindo modos de ser e agir. Atribuindo características,
funções, formas de pensar; enfim, instaurando um plano em que o sujeito docente possa
escolher elementos – mas não muitos e nem contraditórios – para formar sua docência.
Com isso, temos uma segunda identidade docente que normatiza e regula o uso das
tecnologias de informação como maneira de promover um ensino-aprendizagem
conduzido pelo saber-realidade. Podemos denominar de identidade docente
tecnológica.
O uso das ferramentas tecnológicas constituem modelos que vão permitindo com
que os docentes percebam a utilidade da matemática. Não apenas sua utilidade, mas
entender o quanto a matemática pode favorecer as escolhas, as decisões que podem
94
influenciar o contexto local –diretamente – e o contexto geral – indiretamente – de todos
os cidadãos.
METODOLOGIA: PROJETOS
[...] pois os educandos foram instigados, bem como por si só sentiram-se desafiados a
encontrar a melhor solução para a situação em discussão, a partir de seus conhecimentos
prévios(MORAES; CURY, 2009, p.6).
95
Sendo instigados, os alunos vão se sentindo desafiados a resolver os problemas.
Mas não é qualquer problema ou história matemática; são os da realidade deles, do seu
contexto, esses do mundo. Logo, o contextualizar, o interdisciplinar vai constituindo-se
como efeito de verdade e como forma-aceita de praticar a docência, pois dessa forma o
discente começa a observar sentido em suas aprendizagens. O sentido – para nós –
(re)afirma a vontade de uma matemática útil, utilitarista. Aqui, parece que estamos
retomando as discussões curriculares tradicionais (SILVA, 2014) pensando que só
poderia estar no currículo aqueles saberes uteis para a constituição da sociedade.
Aqui, pedimos licença para usar uma pergunta que percorre as aulas de
matemática: Professor, mas para que eu vou usar isso na vida? Observa-se que tal
pergunta vem (re)afirmando uma prática docente: a do utilitarismo; a da
contextualização. A prática docente vem prescrevendo que o professor enxergue sua
disciplina, suas discussões pelo mundo. Logo, ele vai apresentando uma ação que busca
algumas aproximações com as vivências do aluno, mas quando as discussões vão
incluindo abstrações, os discentes solicitam a utilidade, tentando – desejando – que o
docente (re)signifique sua prática, (re)faça esse exercício de procurar a matemática em
todos os lugares.
96
Inventam-se maneiras de ser professor, de compor docências a partir das competências e
habilidades legitimadas pelos documentos. Novamente podemos apontar uma
atualização das discussões tradicionais sobre o currículo, pois jogamos as habilidades e
as competências para os alunos. Assim, ranqueamos escolas e as formas-aceitas de ser
professor pelas notas alcançadas nessas avaliações. Logo, a estatística se faz necessária
não apenas para instruir o educando a ser competente e ter habilidade em leitura e
interpretação de informações, mas para avaliar suas aprendizagens, suas escolhas,
enfim, por organizá-lo e governá-lo pelos índices, por dados, pelos números.
97
realidade, e ainda, ferramenta útil nas situações da vida social e profissional (PEREIRA;
NEHRING, 2009, p. 1).
A forma como a Educação Ambiental foi incluída nos PCN, reconhece que a escola
assume um papel fundamental na formação de cidadãos ativos e responsáveis,
resgatando valores essenciais como a ética, fraternidade e respeito da vida em geral
(MELO, GROENWALD, 2012, p. 373).
29
Pesquisas de Bello e Traversini (2011); Traversini e Bello (2009) trazem as discussões a respeito da
estatística como tecnologia para governar. Assim, os autores discutem questões que relacionam as
políticas públicas, as avaliações nacionais e o saber estatístico no rol do que pode se chamar de saber
estatístico e sua curricularização (BELLO; TRAVERSINI, 2011).
98
Com isso, a estatística vai instituindo-se como a ferramenta capaz de inserir a
matemática em todos os lugares. Logo, vai se produzindo uma matemática está em tudo,
bem como uma matemática interdisciplinar. Com isso, usa-se da estatística para
apresentar uma matemática do mundo, uma matemática em todos os lugares.
99
narrativas docentes em prol desse estar em todos os lugares, vão apenas (re)afirmando
que a matemática não consegue aproximar-se das outras áreas do conhecimento se não
forem seguidos os restritos passos da estatística, das produções próprias à matemática.
30
A valoração da estatística não se dá apenas no âmbito da docência, dos documentos , das identidades
docentes, enfim, do saber-realidade. As pesquisas do IBGE, por exemplo, utilizam dos recursos
estatísticos para divulgar as estatísticas do país. Não obstante, as formas de governar, de conduzir as
políticas públicas utilizam dos recursos estatísticos para a cientificidade de suas pesquisas, seus estudos.
Logo, acaba emergindo, como suposto lugar comum, o lugar da estatística como fonte de discutir,
trabalhar, descrever, mensurar, quantificar, qualificar, organizar, inferir qualquer discussão. Ou seja, os
demais professores da escola, que não os matemáticos, percebem a matemática está em tudo pela
estatística. Aliás, é a estatística que vem – com muita força – (re)atualizando uma matemática em todos os
lugares.
100
discentes solicitam para entender, se “motivarem” a estudar, a pesquisar, a pensar
na/pela matemática.
Queremos fazer a diferença na escola e concluímos que, apenas com o ensino voltado às
necessidades e à realidade dos estudantes, conseguiremos inseri-los no mundo e
transformá-los em pessoas críticas (RABAIOLLI et al, 20123, p. 512).
Mas a escolha já foi feita! E já está sendo distribuída. Viva, pois o docente não
precisa se preocupar com as possibilidades, já estão escolhidas algumas – poucas –, mas
eficazes maneiras de ser docente. Com isso, vão se fabulando as formas-sujeito-docente.
Todas através da vontade do uso pedagógico da realidade, instituindo o que
denominamos de saber-realidade. Logo, a docência – prescrita, normatizada
discursivamente - vai identificando-se apenas com aquilo que está no mundo do aluno;
no âmbito de suas vivências. A realidade vai constituindo-se como efeito de verdade
desses discentes, das experiências, do que está no mundo, das relações, de utilitarismos.
101
holístico, pois se deseja que a realidade seja determinada à medida que o docente
observa sua escola, seus discentes. Uma representação da realidade para conhecer seu
lugar de trabalho. Um segundo ponto traz a discussão psicológica por entender que a
realidade vai passar pela interação, pela experiência. Assim, o concreto vai adquirindo
espaço, pois ele vai compondo os entendimentos sobre o que seja o real. Como terceiro
ponto, podemos pensar a realidade no âmbito do mundo e, portanto, desejar o
contextualizar, o estar em tudo, o interdisciplinar. Logo, são esses três pontos que
vão compondo, (re)atualizando as discussões em torno do saber-realidade.
102
realidades”, que muitas vezes são deixadas de lado para se trabalhar com fórmulas e
“receitas matemáticas” [...] (FIOR, LOUREURO, 2012, p. 744, aspas das autoras).
“E não somos traídos por tudo aquilo que achamos importante? É o que mostra
onde colocamos nossos pesos e para que coisas não possuímos pesos” (NIETZSCHE,
2012, p. 109). E talvez, seja o instante de perguntar: como inventamos os pesos que –
humano demasiadamente humano – precisamos carregar ao ocupar a docência?
As correntes são tão fortes, prendem e seguram com tamanha potência que por
uma fração de segundos, tende-se a esquecer das invenções. Das repetições, das
prescrições ditas, lidas, interpretadas, valoradas que constituem formas fixas, precisas,
mas convidativas de pensar a docência. As narrativas docentes quase violentaram a
escrita, a discussão ao passo de talvez apagar a vontade – nossa- de não estacionar. As
análises anteriores compuseram o último percurso para constituir um plano sobre o
saber-realidade: a vontade, a identificação, a representação de formas docentes na
Educação Matemática.
OS ECOS DO SABER-REALIDADE
O que fazer com tudo isso agora? Respirar! Inspirar! (A)creditar! O artigo
trouxe discursos recorrentes sobre as formas contemporâneas de ser docente. Ao
observar os anais dos X e XI EGEM, percebemos as convocações em prol do saber-
realidade. Mais do que isso, observamos as narrativas que convocam, identificam-se
com o uso pedagógico da realidade.
103
medida que a rede discursiva da Educação Matemática prescreve o uso pedagógico da
realidade. Assim, percebe-se que o entendimento pedagógico da realidade vai
constituindo-se como efeito de verdade de um lugar, dos alunos, de uma experiência, de
uma vivência, de uma contextualização, de uma interdisciplinarização.
Ainda trouxemos alguns assuntos que são valorizados pelas narrativas docentes:
estatística como forma de contextualizar; como uma maneira de perceber a matemática
nas diversas áreas do conhecimento e, assim, em todos os lugares. Apontamos, também,
104
a educação ambiental como forma de diálogo com a matemática. Vimos às narrativas
que prescreveram a escrita e leitura em matemática como outra forma de percebê-la em
todos os lugares. Por fim, apontamos algumas dificuldades que poderão ser
identificadas pelos docentes ao longo de suas ações pedagógicas, mas que com o uso
pedagógico da realidade essas lacunas podem ser resolvidas ou amenizadas.
Seja pela ciência, pela verdade, pelo cotidiano, pela resolução de problemas,
pela estatística, pela história matemática, pela vida, por escolhas éticas, pelas questões
ambientais, foram apresentadas, listadas e validadas formas que regulam, normatizam,
representam os modos de ser docente no campo da Educação Matemática
contemporânea. Além disso, essas formas vão constituindo entendimentos do que seja a
matemática hoje: algo real, contextualizado, interdisciplinar, dinâmico, concreto, útil,
que está em todos os lugares...
A matemática deseja estar na realidade, deseja ser verdadeira, mas não deseja
desconstituir seu papel de deusa do conhecimento: a verdadeira verdade. Tentamos,
enfim, esquartejar essas deusas do saber-realidade para entender como nos percebemos
docentes que constituímos nossas práticas por esse movimento. Esquecemos-nos de
refletir, de problematizar esses espaços; esquecemos-nos de voltar às produções iniciais.
Simplesmente esquecemos... Até quando a matemática vai esquecer suas produções,
suas rupturas, suas constituições em prol de uma vontade de verdade que modela,
concretiza e fixa maneiras de entendê-la, de ser professor? Através dessas formas fixas,
vamos tentando sobreviver com o que ainda é possível de constituir seja pelo saber-
realidade, seja por essas formas tão perfeitas e ideais de ser-professor-qualquer-coisa.
105
Não obstante, acreditamos que o uso pedagógico da realidade entra na ordem de
rebanho – pensando com Nietzsche – descrevendo um ideal ascético (NIETZSCHE,
2009), ou seja, desejando esse uso mais por pensá-la no coletivo, por ouví-lo
frequentemente do que por acreditar que as distintas formas de organização possam
produzir e constituir outros modos de matematizar31. Enfim, que o uso pedagógico da
realidade perde sua força e torna-se um conceito vazio, uma mesmice em que apenas
está na ordem do que pode ser dito na Educação Matemática. Assim, basta nos
subjetivarmos ao discurso do uso pedagógico da realidade que, enfim, seremos docentes
contemporâneos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Anais do XI Encontro Gaúcho de Educação Matemática. Anais... Ed. da Univates -
Lajeado, RS, p.462-470, 2012. Disponível em: <
https://www.univates.br/media/egem/XI_EGEM.pdf> Acesso em 26 mai. 2015.
31
Gostaríamos de destacar que os primeiros entendimentos acerca do saber-realidade não estão sendo
tomados como verdadeiros. Apenas estamos apontando para os entendimentos diversos. O que
percebemos – no contemporâneo- é que as práticas pedagógicas em torno do saber-realidade tomam esse
conceito como algo aceito e pronto. Por isso, problematizamos a discussão pensando com o rebanho
nietzschiano. Acreditamos que é tão recorrente o uso, a prescrição, a condução, a normatividade do saber-
realidade que ele acaba instaurando efeitos de verdades inquestionáveis à Educação Matemática. São para
essas identidades, essas representações universais que problematizamos neste artigo tentando entender os
percursos pelos quais ainda nos inclinamos a essas representações, esses efeitos de verdade.
106
CEOLIN, Taíse; NEHRING, Cátia Maria. A experiência de uma futura professora com
alunos de 5ª série utilizando jogos matemáticos e materiais concretos. In: X Encontro
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107
Anais do XI Encontro Gaúcho de Educação Matemática. Anais... Ed. da Univates -
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MELO, Karine Machado Fraga de; GROENWALD, Claudia Lisete Oliveira. In: Anais
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110
5. (IN)CONCLUSÕES. PELO EXERCÍCIO DE FINALIZAR...
(IN)CONCLUSÕES: ARTIGO 1
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discursiva em Educação Matemática. Com isso, fizemos uso dessas duas maneiras de
entender a realidade atentando para como se tem narrado, se tem regulado um uso que é
pedagógico e que solicita a realidade e o saber que instaura um plano de entendimentos
em torno do uso pedagógico da realidade. A saber: o saber-realidade.
Uma vez que não é nosso objetivo inserir valores – pois sua inserção conduziria
a uma verdade -, mas apenas (re)pensar o cenário da Educação Matemática
contemporânea por um viés filosófico que recusa tomar o saber como algo neutro,
natural, universal. Assumindo que não apenas a filosofia – e os autores escolhidos nesta
pesquisa – mas o saber-realidade criam maneiras de olhar, de interpretar e de estar no
mundo.
(IN)CONCLUSÕES: ARTIGO 2
[...] como alguém divinamente disperso e imerso em si, a quem os sinos acabam
de estrondear no ouvido as doze batidas do meio-dia, e súbito acorda e se
pergunta “o que foi que soou?”, também nós por vezes abrimos depois os ouvidos e
perguntamos, surpresos e perplexos inteiramente, “o que foi que vivemos?”, e
também “quem somos realmente?”, e em seguida contamos, depois, como disse, as
doze vibrantes batidas da nossa vivência, da nossa vida, nosso ser – ah! E
contamos errado... Pois continuamos necessariamente estranhos a nós mesmos, não
nos compreendemos, temos que nos mal-entender, a nós se aplicará para sempre a
frase: “Cada qual é o mais distante de si mesmo” – para nós mesmos somos
“homens do desconhecimento”... (NIETZSCHE, 2009, p. 7).
Nietzsche, em suas discussões críticas, mas poéticas problematiza como
atribuímos valores. Em outras palavras, como a moral foi desenhando-se. Assim, uma
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de suas discussões versa sobre o estranhamento que temos de nós mesmos. Homens do
conhecimento que não nos conhecemos. Do desconhecimento de si, de sua docência,
que a presente pesquisa configurou-se.
Não obstante, temos que a convocação mais enfática “[...] e recorrente tem sido
o apelo à necessária integração entre teoria e prática, como maneira de se formar o
“bom professor” que poderá tratar, discutir e enfrentar os problemas educacionais do
cotidiano escolar” (UBERTI, BELLO, 2013, p. 17). Compondo, elaborando e, por isso,
prescrevendo elementos em prol da formação necessária do educador contemporâneo.
Produzindo, instaurando, (re)afirmando efeitos de verdades, práticas, condutas no rol de
regimes verdadeiros sobre ser docente em nosso tempo. Dessa maneira, os excertos
analisados apontam as produções, os esclarecimentos, os entendimentos, as promessas e
as crenças a partir do uso pedagógico da realidade que respaldam as ações docentes.
Mais do que isso, os documentos regulam e normatizam as práticas pedagógicas que já
estão sendo realizadas no âmbito da escola básica (re)afirmando e padronizando as
maneiras de ser e agir.
Para compor nosso artigo, percebemos três prescrições recorrentes nos excertos
analisados. A saber: Buscar a contextualização da matemática; Buscar a matemática
presente no cotidiano; Realidade constituinte de práticas de ensino-aprendizagem.
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Buscar a contextualização da matemática apresentou as normatividades
contemporâneas de pensar a matemática pela contextualização. O movimento dos
documentos foi de validar, (re)afirmar a necessidade de falar sobre a aplicabilidade da
matemática. Convidando os docentes e (re)pensar suas ações pedagógicas pela vontade
de contextualizar, de aplicar a matemática, de torná-la parte do mundo e de estar em
todos os lugares.
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UBERTI, Luciane. Parecer da dissertação de Gilberto Silva dos Santos, defendida em 24/02/2016 pelo
Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde/PPGQVS.
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outras palavras, nos inclinamos para problematizar quais são as verdades do nosso
tempo; quais são as nossas formas de ser e agir na docência de nosso tempo. Como diria
Foucault, estamos interessados em produzir uma história do presente, de nosso tempo
(2012a).
Podemos destacar que cada uma das duas práticas finais retomou a primeira:
Buscar a contextualização da matemática. A vontade de enxergá-la por todos os
lados não (re)afirma que ela não estava lá? Ou que alguma vez não esteve? Ou melhor,
que até a prescrição – ou a criação do saber-realidade – não havia investimentos; não
estava na ordem do que se poderia falar na Educação Matemática - que a matemática
estivesse pelo mundo? Que vontade platônica e, porque não, tão mais difícil de dizer
que se está em todo lugar? Seria isso uma atualização da superioridade da matemática?
Afinal, se prescreve uma matemática para todos e cada um ou para poucos e quase
nenhum?
Para responder a essas duas questões, propomos o próximo artigo que tentará
olhar como os docentes estão identificando-se com as prescrições, as formas legitimadas
de pensar a docência contemporânea. No intuito de olhar as interpretações, as
valorações, as tramas que possibilitam que os docentes apresentem suas identificações.
Em suma, observar quais são as identidades docentes no âmbito do uso pedagógico da
realidade que produzem maneiras de entendermos o saber-realidade.
(IN)CONCLUSÕES: ARTIGO 3
que fazer com tudo isso agora? Respirar! Inspirar! (A)creditar! O artigo trouxe
discursos recorrentes sobre as formas contemporâneas de ser docente. Ao observar os
anais dos X e XI EGEM, percebemos as convocações em prol do saber-realidade. Mais
do que isso, observamos as narrativas que convocam, identificam-se com o uso
pedagógico da realidade.
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realidade ocupe o lugar de saber vai sendo esquecido à medida que o discurso vai
(re)aparecendo e (re)apresentando as formas de ser docente. Percebe-se, entretanto, que
as primeiras convocações para pensar os modos distintos de matematizar, o olhar para
as distintas culturas e formas de estar no mundo são interpretadas de outra maneira à
medida que a rede discursiva da Educação Matemática prescreve o uso pedagógico da
realidade. Assim, percebe-se que o entendimento pedagógico da realidade vai
constituindo-se como efeito de verdade de um lugar, dos alunos, de uma experiência, de
uma vivência, de uma contextualização, de uma interdisciplinarização.
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HISTÓRIAS MATEMÁTICAS também como ferramentas para contextualizar, para
significar as aprendizagens em matemática.
Ainda trouxemos alguns assuntos que são valorizados pelas narrativas docentes:
estatística como forma de contextualizar; como uma maneira de perceber a matemática
nas diversas áreas do conhecimento e, assim, em todos os lugares. Apontamos, também,
a educação ambiental como forma de diálogo com a matemática. Vimos às narrativas
que prescreveram a escrita e leitura em matemática como outra forma de percebê-la em
todos os lugares. Por fim, apontamos algumas dificuldades que poderão ser
identificadas pelos docentes ao longo de suas ações pedagógicas, mas que com o uso
pedagógico da realidade essas lacunas podem ser resolvidas ou amenizadas.
Seja pela ciência, pela verdade, pelo cotidiano, pela resolução de problemas,
pela estatística, pela história matemática, pela vida, por escolhas éticas, pelas questões
ambientais, foram apresentadas, listadas e validadas formas que regulam, normatizam,
representam os modos de ser docente no campo da Educação Matemática
contemporânea. Além disso, essas formas vão constituindo entendimentos do que seja a
matemática hoje: algo real, contextualizado, interdisciplinar, dinâmico, concreto, útil,
que está em todos os lugares...
A matemática deseja estar na realidade, deseja ser verdadeira, mas não deseja
desconstituir seu papel de deusa do conhecimento: a verdadeira verdade. Tentamos,
enfim, esquartejar essas deusas do saber-realidade para entender como nos percebemos
docentes que constituímos nossas práticas por esse movimento. Esquecemos-nos de
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refletir, de problematizar esses espaços; esquecemos-nos de voltar às produções iniciais.
Simplesmente esquecemos... Até quando a matemática vai esquecer suas produções,
suas rupturas, suas constituições em prol de uma vontade de verdade que modela,
concretiza e fixa maneiras de entendê-la, de ser professor? Através dessas formas fixas,
vamos tentando sobreviver com o que ainda é possível de constituir seja pelo saber-
realidade, seja por essas formas tão perfeitas e ideais de ser-professor-qualquer-coisa.
Alertamos, por fim, que nós, educadores matemáticos, não percebemos a força
com que o saber-realidade é solicitado, prescrito, normatizado. Apenas, usamos esses
saberes. Talvez, esse uso venha da vontade de tentar ensinar uma disciplina, um
conhecimento que, por um bom tempo, foi prescrito como algo superior, a parte do
mundo. As arestas que aparamos ao longo do tempo nos fizeram acreditar no uso
pedagógico da realidade como a maneira de – no contemporâneo – reduzir as arestas – e
as distâncias – entre a matemática e a vida do dia-a-dia, o cotidiano.
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Gostaríamos de destacar que os primeiros entendimentos acerca do saber-realidade não estão sendo
tomados como verdadeiros. Apenas estamos apontando para os entendimentos diversos. O que
percebemos – no contemporâneo- é que as práticas pedagógicas em torno do saber-realidade tomam esse
conceito como algo aceito e pronto. Por isso, propomos uma discussão pensando com o rebanho
nietzschiano. Acreditamos que é tão recorrente o uso, o convite, a normatividade do saber-realidade que
ele acaba sendo valorado como verdadeiro perante a Educação Matemática. Analisamos as identidades, as
representações universais tentando entender os percursos pelos quais ainda nos inclinamos a essas
representações.
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constituir outros modos de existência? Por hora, podemos responder a todas essas
perguntas com um: sigamos! Que a vontade de potência nos permita não desistir de
entender e tencionar as maneiras pelas quais nos subjetivamos no contemporâneo.
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6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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