Saber-Realidade Das Prescrições Aos Desejos de Constituir Docências Na Educação Matemática Contemporânea DISSERTA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE CIÊNCIAS BÁSICAS DA SAÚDE


DEPARTAMENTO DE BIOQUÍMICA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS:
QUÍMICA DA VIDA E SAÚDE

SABER-REALIDADE: DAS PRESCRIÇÕES AOS DESEJOS DE


CONSTITUIR DOCÊNCIAS NA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
CONTEMPORÂNEA

Gilberto Silva dos Santos

Porto Alegre, 2016


Gilberto Silva dos Santos

SABER-REALIDADE: DAS PRESCRIÇÕES AOS DESEJOS DE


CONSTITUIR DOCÊNCIAS NA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA
CONTEMPORÂNEA

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa


de Pós-Graduação em Educação em Ciências:
Química da Vida e Saúde, da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Educação em
Ciências pela linha de pesquisa Educação científica:
implicações das práticas científicas na constituição
dos sujeitos.

Orientador: Prof. Dr. Samuel Edmundo Lopez Bello.

Banca Examinadora:
Profa. Dra. Rochele de Quadros Loguercio –
PPGQVS/UFRGS
Profa. Dra. Luciane Uberti – UFRGS
Prof. Dr. Cláudio José de Oliveira –
PPGEdu/UNISC

Porto Alegre, 2016


DA AUSÊNCIA

[Pela ausência da “cozinha” que me constitui docente...]

[Aos meus amados - mãe e pai - pelo insistente exercício de (a)creditar (nos) meus

sonhos...]
ALGUMAS PRESENÇAS

Acredito que as palavras me impossibilitam de agradecer a cada um que


contribuiu para essa conquista. Dessa forma, seleciono alguns agradecimentos
necessários, mas que não se esgotam nas palavras escolhidas...

Ao meu orientador, Prof. Dr. Samuel Edmundo Lopez Bello, por acreditar no meu
potencial e contribuir com meus estudos;

À Prof. Dra. Rochele de Quadros Loguercio pelo desafio de ser banca e relatora da
dissertação;

À Prof. Dra. Luciane Uberti e ao Prof. Dr. Claudio José de Oliveira pelas contribuições
a partir da leitura do trabalho;

À Prof. Dra. Luciane Magalhães Corte Real pelas oportunidades de pesquisa durante a
graduação;

À zumbizada querida: Wagner, Grace, Renata, Suelen, Karin, obrigado pela parceria e
pelas aprendizagens;

A CAPES, pela concessão da bolsa de mestrado;

Ao meu amigo Wagner pela leitura atenciosa da dissertação;

Aos meus colegas da Escola Municipal de Ensino Fundamental Lidovino Fanton:


obrigado por respeitarem minhas ausências;

Aos amigos Alessandro, Tainã, Paula, Paloma, Mariana, Susana, Juliana e Rildo:
obrigado por me receberem tão bem no grupo de pesquisa;

À Patrícia Christiano por ser minha família porto-alegrense;

Ao meu irmão, minha cunhada e meus amados afilhados –Lorenzo e Bernardo – por me
ensinarem sobre a vida. A Luiza vem aí;

Aos meus pais por transformarem os meus em nossos sonhos.

Aos demais amigos, desejo (re)encontros para que eu possa dizer muito obrigado!
RESUMO

Saber-realidade: das prescrições aos desejos de constituir docências na


Educação Matemática Contemporânea é uma dissertação de mestrado que trata da
docência. Sua analítica - pautada nos escritos de Michel Foucault, com pinceladas de
Friedrich Nietzsche - aponta para um efeito de verdade no contemporâneo: o uso
pedagógico da realidade. No percurso analítico de nosso trabalho, tencionamos o
aparecimento desse uso como um saber sobre a docência. Para tal exercício, analisamos
excertos da etnomatemática, principalmente os produzidos a partir dos estudos de
educador matemático Ubiratan D’Ambrósio para pensarmos o surgimento do discurso
da realidade no campo educacional da matemática como uma verdade, apontando,
assim, para o que denominamos de saber-realidade. No momento seguinte, nos
debruçamos no material que denominamos de documentos oficiais para pensarmos as
prescrições das práticas que já estão sendo realizadas nas instituições de ensino e que
normatizam os modos de ser e agir dos docentes contemporâneos. Como último
percurso, tomamos como material analítico os anais do X e do XI Encontro Gaúcho de
Educação Matemática (EGEM) para tencionarmos identidades docentes que estão sendo
produzidas à medida que se usa pedagogicamente a realidade. Dessa forma, acreditamos
que o presente estudo traz a discussão do uso pedagógico da realidade que
denominamos de saber-realidade para apontar o quanto ainda engessamos,
enclausuramos os modos de ser e agir do docente contemporâneo.

PALAVRAS-CHAVES: Saber-realidade; Verdade; Uso pedagógico da realidade;


Identidades docentes.
ABSTRACT

Know-reality: from the prescriptions to the desires to constitute teaching in


Contemporary Mathematics Education is a master's thesis that deals with teaching.
His analysis - based on the writings of Michel Foucault, with the brushstrokes of
Friedrich Nietzsche - points to a real effect in the contemporary: the pedagogical use of
reality. In the analytical course of our work, we intend the emergence of this use as a
know about teaching. For this exercise, we analyze excerpts from ethnomathematics,
especially those produced from the studies of mathematical educator Ubiratan
D'Ambrósio to think about the emergence of the discourse of reality in the educational
field of mathematics as a truth, thus pointing to what we call know -reality. The next
moment, we look at the material we call official documents to think about the
prescriptions of practices that are already being carried out in educational institutions
and that regulate the ways of being and acting of contemporary teachers. As a last step,
we take as analytical material the annals of the X and XI Gaucho Mathematics
Education Meeting (EGEM) to consider teaching identities that are being produced as
the reality is used pedagogically. Thus, we believe that the present study brings the
discussion of the pedagogical use of the reality that we call know-reality to point out
how much we still plaster, we enclose the ways of being and acting of the contemporary
teacher.

KEYWORDS: Know-reality. Truth. Pedagogical use of reality. Teaching identities.


Sumário
0. ORGANIZAÇÃO DA DISSERTAÇÃO _________________________ 9
1. SOBRE NOSSA ESCOLA, SOBRE O SABER-REALIDADE...___ 10
2 – COMPONDO O SABER-REALIDADE _______________________ 13
ARTIGO 1 _______________________________________________________________ 14
2.1 – VERDADE E SABER-REALIDADE: PRESENÇAS NA EDUCAÇÃO MATEMÁTICA 14

3. O SABER-REALIDADE E SUAS PRESCRIÇÕES: SOBRE


PROMESSAS, PRÁTICAS DOCENTES, ... ______________________ 51
ARTIGO 2 _______________________________________________________________ 52
3.1 - O USO PEDAGÓGICO DA REALIDADE NOS CURRÍCULOS ESCOLARES DE
MATEMÁTICA: PRESCREVENDO NORMATIVIDADES PARA A DOCÊNCIA__________ 52

4 – O SABER-REALIDADE E SUAS NARATIVAS:


PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES DOCENTES __________ 82
ARTIGO 3 _______________________________________________________________ 83

4.1 – O SABER-REALIDADE E A CONSTITUIÇÃO DE IDENTIDADES DOCENTES


________________________________________________________________________ 83

5. (IN)CONCLUSÕES. PELO EXERCÍCIO DE FINALIZAR... ____ 111


6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS __________________________ 120
0. ORGANIZAÇÃO DA DISSERTAÇÃO

Escrever é mais do que jogar palavras em uma folha branca. Escrever é mais do
que apresentar, (d)escrever, significar coisas, objetos. Escrever talvez seja, como nos
diria Nietzsche, um insistente ruminar. Não podemos esquecer que o ruminar é um
processo para o interpretar criativo. Interpretar que cria, fabrica, constitui. Interpretar
que instaurar/produz verdades provisórias, nunca fixas. Essa provisoriedade dá conta da
perspectiva.

Assim, a perspectiva, pensada com Nietzsche, nos convoca a interpretar e


constituir nossas verdades provisórias a partir de nossa escrita. Escrever no desejo de
ruminar leituras e escritas. São as interpretações/escritas singulares do autor e de seu
orientador que constituem a dissertação que se segue.

Segundo orientações do Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências:


Química da Vida e Saúde (PPGQVS), a dissertação deve ser organizada a partir de
artigos científicos compostos pela questão de pesquisa e o estudo realizado ao longo do
curso de mestrado acadêmico. Portanto, as sessões dessa dissertação estão organizadas a
partir de três artigos que constituem o tema central da pesquisa: o Saber-Realidade
enquanto constituinte e constituído das/pelas práticas pedagógicas da Educação
Matemática.

Gostaríamos de orientar os leitores que, por alguns instantes, algumas discussões


podem aparecer repetidamente. Salientamos que os três artigos podem ser lidos
separados e de forma aleatória ou em conjunto. Dessa forma, cada um deles deverá dar
conta de sua discussão, de sua proposta. Convidamos os leitores a pensar nossa
perspectiva - ruminando nossas escritas – no singelo desejo de – juntos – (re)pensar
algumas das formas-aceitas de ser docente na contemporaneidade.

9
1. SOBRE NOSSA ESCOLA, SOBRE O SABER-REALIDADE...

Era uma vez uma escola, situada em uma pequena cidade brasileira. Seus alunos
chegavam cedo para acompanhar as aulas. Todas sobre matemática. Cada uma delas
discutia um assunto. A aula mais procurada era a da contextualização. Dentre a grade de
ofertas, a escola disponibilizava aulas de interdisciplinarização, estatística, resolução de
problemas, usos de tecnologias, modelagem matemática, uso de projetos, materiais
concretos, história da matemática, entre outras.

A escola é organizada da seguinte forma: a primeira instância é constituída pelos


diretores da instituição. Eles são os professores que emergiram com as primeiras
problematizações do uso pedagógico da realidade instituindo o saber-realidade.
Investindo em pesquisa, em produções científicas emergiram com os primeiros
entendimentos a respeito do conceito de realidade no campo da Educação Matemática.
Assim analisamos produções no campo referido a partir de dois materiais: artigos
científicos e livros que problematizam o discurso etnomatemático. Por que
etnomatemática?

Conforme elaboração do pesquisador/professor Ubiratan D’Ambrosio, a partir


de 1976, a etnomatemática vem sendo constituída como arte ou técnica de explicar,
entender a realidade em distintos sistemas culturais. A etnomatemática é a área, inserida
na Educação Matemática, que visa estudar as distintas formas de matematizar. Por fim,
por mais que outras produções pensando o uso pedagógico da realidade, como nos
mostra Duarte (2009) foram pensadas anteriormente ao termo etnomatemática, ele se
faz importante e nosso objeto de análise por constituir um espaço no campo na
Educação Matemática que problematiza outras formas de se pensar a matemática que
não sejam as velhas e tradicionais formas ocidentais de matematizar e que convocam,
prescrevem, prometem formas de pensar a docência contemporânea.

Retomando a escola, sua segunda instância é composta pelos coordenadores


pedagógicos. Eles orientam, prescrevem, normatizam as formas com as quais – no
contemporâneo – os docentes pensam suas ações a partir do uso pedagógico da
realidade. No presente trabalhos eles são denominados de documentos e servem como
espécie de reguladores, controladores, vigilantes das maneiras de ser docente no
contemporâneo. Por estarem na posição de documentos vão assumindo o lugar de
verdade e instituindo efeitos de verdade nas constituições docentes. Suas orientações

10
indicam, prescrevem os usos que devem ser feitos nas práticas pedagógicas para que se
institua uma docência que contextualiza, que percebe a matemática em tudo, que seja
lúdica, entre outras formas...

A terceira instância dessa escola é um lugar amplo. Enriquecido de prescrições e


narrativas. Fabulativo. Inventivo. Produtivo. Espaço de troca na medida em que se
ocupa um lugar ou outro. Anunciamos a aula como a terceira instância da escola. É
durante a aula que os professores revezam seus saberes, anseios, angústias, medos e
suas certezas. Quanto ao revezamento entende-se que os professores – e aqui, encontra-
se o autor do trabalho – ora aprendem, mas oram ditam, versam, rascunham, esboçam
suas representações docentes. Ora são incitados a falar sobre suas docências; ora estão
no lugar de alunos a ouvir as prescrições, as promessas das formas-aceitas de ser
professor. Nesta última instância da escola – a aula – pesquisamos os anais da X e XI
edição do Encontro Gaúcho de Educação Matemática (EGEM), respectivamente, nos
anos de 2009 e 2012. Ao emergir nesses escritos, fomos mapeando, procurando como
os docentes – nessa mistura de aluno/professor – narram suas experiências e convocam
os saberes para pensar o uso pedagógico da realidade.

Ao conversarmos com os diretores, os coordenadores pedagógicos e os


professores/alunos percebemos que a escola possui uma filosofia proposta por uma
questão – que por fins acadêmicos, denominamos de questão de pesquisa -: de que
maneira o saber-realidade, constituído e constituinte pelas/das práticas
pedagógicas em Educação Matemática, prescreve e normatiza modos de ser na
contemporaneidade? A partir de sua filosofia, surgem três
entendimentos/problematizações que organizam os trimestres letivos da escola. São
eles:

Entendimento 1: O saber-realidade constituído e constituinte pelas/das práticas


pedagógicas em Educação Matemática, constituindo o primeiro trimestre letivo – que
denominamos de artigo 1;

Entendimento 2: De que maneira o saber-realidade através do uso pedagógico da


realidade prescreve e regula às práticas pedagógicas em Educação Matemática – a partir
dos documentos enviados pela mantenedora da escola, constituindo o segundo trimestre
letivo – que nomeamos de artigo 2;

11
Entendimento 3: De que maneira o saber-realidade institucionaliza modos de ser e agir
do professor de Matemática – a partir da feira de ciências da escola em que os
professores/alunos apresentam suas identidades docentes -, constituindo o terceiro
trimestre letivo – que rotulamos de artigo 3.

Esclarecemos que em ambos os instantes – trimestres letivos -, a teorização está


pautada nos estudos de Michel Foucault. Para cada um dos instantes – ou artigos –
analisamos excertos que foram (re)organizados a partir de suas familiaridades, suas
semelhanças. Com isso, elaboramos entendimentos e categorias de análise que serão
apresentadas em cada um dos instantes da escola.

Nessa análise buscamos entender – por isso elaboramos os três instantes – de


que formas, sob que cuidados e quais as condições que permitiram que nós- docentes
contemporâneos – pudéssemos pensar práticas pedagógicas a partir do uso pedagógico
da realidade na Educação Matemática. Quando nos remetemos ao uso pedagógico da
realidade é por entender que a noção de realidade que será discutida ao longo dos três
instantes é a produzida discursivamente pela Educação Matemática e não uma realidade
transcendente, da coisa em si ou de uma experiência. Logo, não tratamos de uma
realidade a priori, mas de um entendimento de realidade – que denominamos de uso
pedagógico – que é constituído na medida em que se incita, se problematiza a falar
sobre a realidade.

Assim, gostaríamos de anunciar o nome da escola. A escolha/criação do nome


foi se constituindo à medida que analisávamos os materiais estudados para tencionar
como a realidade disse, diz e ainda tem a dizer sobre a docência. Com isso, a escola que
insiste em narrar, compor, descrever e fabricar formas-sujeito-docente é denominada de
saber-realidade. São sobre esses saberes, suas condições de emergência e suas
atualizações que versam as páginas a seguir.

12
2 – COMPONDO O SABER-REALIDADE

Eu não construo novos ídolos; os velhos que aprendam o que significa ter
pés de barro. Derrubar ídolos (minha palavra para “ideais”) – isto sim é
meu ofício. A realidade foi despojada do seu valor, seu sentido, sua
veracidade, na medida em que se forjou um mundo ideal... O “mundo
verdadeiro” e o “mundo aparente” – leia-se: o mundo forjado e a
realidade... A mentira do ideal foi até agora a maldição sobre a realidade,
através dela a humanidade mesma tornou-se mendaz e falsa até seus
instintos mais básicos [...] (NIETZSCHE, 2008, p. 15-16, itálico e aspas
do autor)1.

1
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. – São
Paulo: Companhia das letras, 2008.

13
ARTIGO 1

2.1 – VERDADE E SABER-REALIDADE: PRESENÇAS NA


EDUCAÇÃO MATEMÁTICA

Gilberto Silva dos Santos


Samuel Edmundo Lopez Bello

RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar nosso entendimento acerca do saber-
realidade. A partir do viés pós-estruturalista, pensamos os conceitos de verdade e
conhecimento fortemente pautados em autores como Nietzsche e Foucault. Dessa
maneira, discorremos a discussão entre vontade de verdade e vontade de saber
apontando para o conhecimento enquanto vontade de conhecer. Por fim,
problematizamos as produções no âmbito da etnomatemática que constituem práticas
pedagógicas contemporâneas em torno do uso pedagógico da realidade para a Educação
Matemática, nos permitindo cunhar o termo saber-realidade.

PALAVRAS-CHAVE: Saber-realidade. Verdade. Conhecimento. Educação


Matemática. Etnomatemática.

DO PRIMEIRO MOVIMENTO: MATEMÁTICA E REALIDADE?

Recorrentemente, percebemos enunciações sobre o uso pedagógico da realidade


na Educação Matemática. Suas aparições estão nas revistas especializadas, nos trabalhos
científicos, nos documentos oficiais que orientam as instituições educacionais, nas
formações de professores, nas avaliações de larga escala. Contudo, acreditamos que
esses aparecimentos, convocações pelo uso da realidade não são resultados apenas de
descobertas ou constatações. Há todo um investimento em pesquisas, toda uma
produção de saber para que ela possa circular no âmbito das práticas docentes. Nesse
sentido, o que pretendemos discutir neste artigo é de que maneira o uso da realidade
torna-se um saber constituído e constituinte pelas/das práticas pedagógicas em
Educação Matemática. Para Machado (2013, p. 9), por exemplo, a matemática
“constitui juntamente com a Língua Materna, um sistema de expressão e de
compreensão da realidade, em seus múltiplos aspectos, o que inclui as dimensões lúdica
e estética”. Nesse sentido, em diversos contextos cria-se um binarismo em relação à
matemática: o primeiro versando sobre a técnica acessível aos especialistas e o segundo,
14
a “prática-utilitária, inevitável no dia a dia do cidadão comum” - (MACHADO, 2013, p.
10). Por mais que ambos os olhares estejam equivocados, segundo o autor, o processo
pela busca da aplicabilidade pode conduzir a desvios, pois prolifera a distinção entre
matemática institucionalizada (essa dos especialistas) e a do dia-a-dia.

Mesmo assim, vem sendo cobrado o utilitarismo do professor de matemática,


pois

[...] sempre que o professor de Matemática anuncia o estudo de um novo tema,


surgem questões como “para que serve isso?”, “qual a utilidade prática?”, “onde eu
vou usar este conhecimento?” Não há professor que não tenha logrado escapar de
perguntas desse tipo. E por essa via, a febre do utilitarismo costuma eivar o ensino
de Matemática (ibid., p. 11).
Esse utilitarismo está estritamente relacionado com questões que incitam a
procurar a matemática pelo mundo, em todos os lugares. Nesse sentindo, não é raro
ouvir de um professor que “a educação matemática precisa abordar a realidade”;
“contextualizar é a forma de convidar o aluno a pensar sobre matemática”; “trazer o dia-
a-dia do aluno para o ensino de matemática conduz para uma prática significativa". Os
exemplos acabam não apenas enunciando saberes, mas ditando os olhares que a
Educação Matemática deve seguir não apenas para se legitimar, mas para constituir
formas de ser docente. Com isso, e seguindo questões já enunciadas por Bello e Regnier
(2014), buscamos tencionar o que se denomina de realidade na Educação Matemática.
Para tanto, propomo-nos a pensar e descentrar o lugar de verdade disso que se costuma
enunciar como o uso da realidade para a Matemática e seu ensino. O movimento
filosófico cunhado de pós-estruturalismo, principalmente aquele gestado por Michel
Foucault a partir da leitura de Nietzsche, constitui a perspectiva analítica de artigo.

O LUGAR DA VERDADE E DO CONHECIMENTO: UMA VISÃO PÓS-


ESTRUTURALISTA

O “pós-estruturalismo, em particular, deve ser visto como uma resposta


filosófica específica [...] contra as pretensões científicas do estruturalismo” (PETERS,
2000, p.9), bem como “um modo de pensamento, um estilo de filosofar e uma forma de
escrita” (ibid., p.28). Com isso, propomo-nos a tomar o pós-estruturalismo como “um
movimento de pensamento”; “uma complexa rede de pensamento – que corporifica
diferentes formas de prática crítica” (ibid., p. 29).

15
Na esteira dessa discussão, VEIGA-NETO (2007, p. 23) propõe que devemos
“[...] desconfiar das bases sobre as quais se assentam as promessas e as esperanças nas
quais nos ensinaram a acreditar. Tudo indica que deveremos sair dessas bases para, de
fora, examiná-las e criticá-las”. E é esse o nosso exercício com o uso, a mobilização da
noção de realidade na Educação Matemática e suas práticas instituídas: sair dessas bases
aceitas de realidade e dos seus efeitos de verdade que acabam instauram formas-aceitas
de ser docente na contemporaneidade.

Segundo Peters (2000) a emergência do pós-estruturalismo está relacionada com


a leitura francesa das obras de Nietzsche,

Em particular, com sua crítica da verdade e sua ênfase na pluralidade de


interpretação; com a centralidade que ele concede à questão de estilo, visto
como crucial, tanto filosófica quanto esteticamente, para que cada um se
supere a si próprio [...] com a importância dada ao conceito de vontade de
potência e suas manifestações como vontade de verdade e vontade de saber
(ibid, p. 32, grifo do autor).
Portanto, emersos no viés pós-estruturalista, pensando, principalmente, com
Nietzsche e Foucault vamos problematizar a verdade e o conhecimento apontando
nossos entendimentos acerca da vontade de verdade e de saber.

VERDADE E VONTADE DE VERDADE

Em Platão, a verdade estaria num lugar perfeito. “Por trás do brilho das
aparências, do jogo cambiante das sensações, das relações desiguais e flutuantes do
poder e da dominação, ele percebeu a existência de outra ordem – estável, fixa, livre dos
apetites, das meras simpatias e das relações de força” (DROIT, 2012, p. 29). E é esse
lugar perfeito, sem as aparências, sem os desejos que Platão vai denominar de mundo
das ideias, de mundo metafísico. Dessa forma, o mundo das ideias, para Platão, é o
“único mundo real” (ibid., p. 31). Assim, o mundo das ideias seria o mundo verdadeiro,
o real enquanto que o nosso mundo seria o das representações; o mundo das cópias.

Com Aristóteles, a verdade é problematizada no próprio mundo. Basta observá-


lo e submetê-lo à reflexão para encontrarmos “as chaves do conhecimento”. Conforme
Droit (2012, p.43), “em vez de virar às costas à realidade, em vez de fugir de sua
diversidade desconcertante, ele procura examinar, classificar, comparar, raciocinar”,
propondo uma relação entre observação e pensamento. Para Aristóteles, “o que não se
pode pensar não pode existir” (ibid., p. 45), ou seja, a verdade está no mundo e não
supostamente em um mundo perfeito, ideal.

16
Para Nietzsche, a verdade é um perspectivismo, uma interpretação, pois “o que
se chama verdade é uma obrigação que a sociedade impõe como condição de sua
própria existência” [...] (MACHADO, 2009, p. 101). Assim, a verdade é vista menos
como um resultado e mais como uma produção de um combate; uma luta entre forças
que visam fabricar sentidos para as coisas. O encontro entre realidade e verdade está na
produção de sentido como forma de identidade.

Segundo Abbagnano, realidade indica “o modo de ser das coisas existentes fora
da mente humana ou independentemente dela” (2007, p. 831). Ou seja, o problema da
realidade está na noção de existência (como supondo que algo exista) e no modo de ser
específico das coisas (como cada coisa é). O modo como cada coisa é vai instituindo sua
verdade. Na filosofia mais recente o problema da realidade praticamente deixou de ser
problema da “existência” das coisas para tornar-se cada vez mais problema do modo de
ser específico das coisas (id., p. 832). Em nossa perspectiva, quando se é atribuído um
significado, ele não é algo “[...] extraído das coisas ou dos objetos, mas é um
componente que atribui significado”. Por fim, o que acreditamos ser a identificação do
objeto “é apenas a consequência de nossa própria linguagem” (BELLO, REGNIER,
2014, p.326).

A partir de Nietzsche, a vontade de verdade vai instaurando uma “designação


uniformemente válida e impositiva das coisas, sendo que a legislação da linguagem2
fornece também as primeiras leis da verdade” (NIETZSCHE, 2008, p. 29). Na
fabricação da linguagem, o homem que deseja a verdade vai buscando “as
consequências agradáveis” dela, “que conservam a vida” (ibid., p. 30). O homem que
deseja a verdade, se organiza, elabora sua sociedade na forma de um rebanho onde se
excluem as singularidades em detrimento da coletividade, silenciando as potencias de
cada um em prol dessa vontade coletiva (NIETZSCHE, 2008, 2010, 2011, 2012).

Dessa maneira, Nietzsche discute que o “criador da linguagem” (2008) bem


como a palavra, não possui uma relação com a verdade, pois “ele designa apenas as
relações das coisas com os homens e, para expressá-las, serve-se da ajuda das mais
ousadas metáforas” (NIETZCHE, 2008, p. 31). A relação da “coisa em si” está fora da

2
Nietzsche, em A genealogia da moral, ao discutir a criação dos juízos morais – em especial o bem e o
mal – argumenta que “o direito senhorial de dar nomes vai tão longe que nos permitiríamos conceber a
própria origem da linguagem como expressão de poder dos senhores: eles dizem ‘isto é isto’, marcam
cada coisa e acontecimento com um som, como que apropriando-se assim das coisas” (NIETZSCHE,
2010, p. 17, aspas do autor).

17
linguagem, pois “ela seria precisamente a pura verdade sem quaisquer consequências”
e, segundo o autor, impossibilitaria a existência de tantas línguas. Com isso, Nietzsche
vai desconstituindo a verdade da coisa em si a partir da linguagem, de sua descrição,
dos seus usos, pois ela nada tem a dizer sobre a essência das coisas, não carrega a
verdadeira conceituação do que seja a coisa. Falar da coisa em si não constitui a verdade
dela, mas apenas as suas relações com o homem.

Ao usar o exemplo da folha, Nietzsche m(2008, p. 35) discorre sobre as


possíveis singularidades que são aparadas do conceito para que a mesma tenda ao
universal, e que, por fim, siga o caminho da verdade. Assim, “por meio de uma
arbitrária abstração dessas diferenças individuais, por um esquecer-se do diferenciável”,
o homem vai despertando a representação, tentando imitar o que supostamente existiria
na natureza.

A partir dos usos, “da folha como causa das folhas” que formulamos uma
“qualitas occulta” para inserir – nesse suposto lugar neutro, inalcançável e natural – a
verdade das coisas. Observa-se, então, um somatório das “relações humanas que foram
realçadas poética e retoricamente, transpostas e adornadas” (ibid., 35-36) de certa forma
que o uso – seu insistente uso – tornou-se – para um povo – consolidações;
canonizações; obrigações.

Nietzsche vai argumentando que a verdade é uma construção, uma invenção,


pois

[...] o homem como um formidável gênio da construção, capaz de erguer


sobre fundamentos instáveis e como que sobre água corrente um domo de
conceitos infinitamente complicado; por certo, a fim de manter-se
firmemente em pé sobre tais fundamentos, cumpre ser uma construção como
que feita com teias de aranha, suficientemente delicada que possa ser levada
pelas ondas e firme o bastante para não ser despedaçada pelo sopro do vento
(2008, p. 39).
Essa fabricação de fundamentos vai se constituindo como “uma matéria muito
mais delicada dos conceitos, que [o homem] precisa fabricar a partir de si mesmo”
(ibid., p. 39). Nietzsche, ironicamente, afirma que chegamos ao ponto de admirar o
homem “não somente por causa de seu impulso à verdade, ao conhecimento puro das
coisas”, mas pela invenção, pela mensuração e, principalmente, por encontrar suas
verdades ali onde elas foram escondidas. Num exemplo nietzschiano, o homem cria o
conceito de mamífero e ao estudar um cachorro, se orgulha de classificá-lo como um
mamífero, estando ele certo de que acabou de descobrir algo que estava escondido; que

18
esperava seu olhar para anunciar uma verdade (NIETZSCHE, 2008). A partir dessa
primeira classificação, vão se constituindo características específicas dessa espécie que
vão tornando-se a verdade dos mamíferos numa constituição de um edifício de
conceitos que vão elaborando o que seja um mamífero. “[...] é assim que se dá com o
procurar e encontrar da ‘verdade’ no interior do domínio da razão”.

O exercício de alto admiração por encontrar a verdade das coisas – que foi
criada por ele mesmo – vai instaurando, no homem, a vontade de verdade. Uma teia vai
se costurando e amarrando os indivíduos de tal maneira que todos seguem o mesmo
caminho como se fossem um rebanho. Vale destacar que o pastor desse rebanho
denomina-se verdade. Suas palavras de ordem: desejem-me; busquem a mim. Instaura-
se, assim, uma moral que privilegia a verdade das coisas. Pois é somente através da
verdade que se conquista a moral do rebanho.

Se Nietzsche pensa a verdade enquanto produto da moral é porque a prática, os


conhecimentos que não pertencem à moral não são valorizados e acabam assumindo o
lugar de não verdade. Ou seja, a moral vai agregando normativas, formas de estar em
3
sociedade, uma vez que “esse fundo de mentira” vai constituindo a “questão da
verdade no estado de sociedade” (MACHADO, 1999). As verdades vão produzindo o
que se pode chamar no contemporâneo de legitimidades e, portanto, elas vão se
conduzindo também como morais. Observa-se que tais morais são crenças ou, nas
palavras de Nietzsche, vontades fracas.

A moral não é a manifestação de uma vontade forte, que excede, de uma


"virtude que dá", mas a manifestação de uma vontade fraca que deseja uma
potência que não tem, uma potência imaginária, uma representação
(MACHADO, 1999, p. 70, aspas do autor).

Se a verdade é necessária para se viver em sociedade, ela nasce justamente dessa


organização social. Seu nascimento, antes de ser algo encontrado, descoberto, é da
ordem de uma produção que anseia por organizar a população em forma de rebanho.

3
A mentira descrita aqui diz respeito às normativas tomadas como verdade. Pois, as normas da sociedade
- suas regras - não estão apenas na linguagem e são usadas para oprimir os instintos mais potentes
(NIETZSCHE, 2009) – a vontade de potência. O interessante é pensar que as normas e as regras são
elaborações humanas de acordo com crenças anteriores. Dessa forma, as normativas não compõem, assim
como, isoladamente não são verdades universais e totalizantes, pois essa lógica de organizar as
sociedades está inserida em um determinado tempo e, portanto, é composta por elementos e crenças que
alteram/conservam o tempo anterior. Dito de outra forma, as normativas da sociedade vão
(trans)formando-se e agregando/descontando elementos antigos/novos de acordo com o pensamento de
sua época, de sua sociedade.

19
Uma vez organizada a sociedade, não apenas nasce à vontade de verdade, mas instaura-
se a moral como forma legítima de conviver no coletivo, pois

[...] a questão da verdade nasce para Nietzsche no bojo da moral; este é o seu
aspecto mais essencial, a ponto de não se poder escapar da moral sem se libertar da
vontade de verdade (MACHADO, 1999, p. 60).
A sociedade começa a disseminar a vontade de verdade bem como sua moral.
Mas uma moral não é natural e precisa ser fabricada, talvez, seja por isso que ela deseja
estar próxima – ocupar o mesmo espaço – que a verdade. Se para Nietzsche, a vontade
de potência é algo forte ou sua forma de estar no mundo (VATTIMO, 2010), a vontade
de verdade é esse desejo ao nada, ao coletivo, a moral, ao niilismo4.

A vontade vazia é a luta nietzschiana às ideias platônicas de que deus é a


verdade e que existe enquanto universal. Elas aproximam o problema da moral às
questões religiosas, pois as doutrinas religiosas advogam para si essa vontade de
verdade, essa universalização das maneiras de estar no mundo.

Por fim, cabe destacar que Nietzsche, em sua filosofia, esgota, esvazia a verdade
como forma de conhecer a coisa em si, de entender o homem e o mundo. Porém, a
sociedade segue produzindo não a verdade universal das coisas, das relações, mas
conjecturando normativas, regularidades que, por sua vez, produzem efeitos de verdade.
Ou seja, a partir de Nietzsche, não estamos mais presos à verdade universal, mas ainda
produzimos prescrições com efeitos de verdade. São esses efeitos que amarram as
discussões entre conhecimento e vontade de saber.

CONHECIMENTO E VONTADE DE SABER

O conhecimento, segundo nossa perspectiva analítica, é produzido a partir de


uma prática. Isso que denominamos de ciência é resultado de uma prática científica e
que, acaba produzindo, certo conhecimento. A ciência, o racionalismo vão fabulando,
fabricando maneiras de estar no mundo e de interpretá-lo. O valor metafísico que se
atribui à verdade está relacionado na base da vontade de saber que estrutura a ciência.
Ciência que é expressão do niilismo, do ideal ascético5.

4
Termo pensado com Nietzsche que versa sobre uma vontade vazia, uma vontade ao nada. Se a vontade
de potência é o movimento das forças ativas, das forças criadoras, o niilismo pode ser pensado como o
movimento das forças fracas, das forças reativas. (Cf. Deleuze, 1976).
5
Ideal ascético como uma meta, como algo a cumprir ou atingir. Uma promessa humana. O exercício
humano de prometer um porvir. “O ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que
degenera, a qual busca manter-se por todos os meios, e luta por sua existência; indica uma parcial inibição
e exaustão fisiológica, que os instintos de vida mais profundos, permanecidos intactos, incessantemente

20
Quando Nietzsche traz a discussão para o âmbito do homem do conhecimento,
percebe-se que a verdade universal torna-se insustentável. Assim, mais uma vez, o
homem da verdade – ou o homem da moral – precisa assegurar – com todas as suas
forças – uma outra maneira de produzir verdade. Por isso, ele vai constituindo a vontade
de saber – a partir do conhecimento – como forma de obter efeitos de verdade, dos quais
ele pode estar seguro e confiante.

Não existe, a rigor, uma ciência “sem pressupostos”, o pensamento de uma tal
ciência é impensável, paralógico: deve haver antes uma filosofia, uma “fé”, para que
a ciência dela extraia uma direção, um sentido, um limite, um método, um direito à
existência (NIETZSCHE, 2009, p. 130).
Assim, Foucault (2014, p. 17) chamaria de conhecimento, “o sistema que
permite dar uma unidade preliminar, um pertencimento recíproco e uma conaturalidade
ao desejo e ao saber”.
A ciência foi promovida nos últimos séculos, em parte porque com ela e mediante
ela se esperava compreender melhor a bondade e a sabedoria divinas [...] em partes
porque se acreditava na absoluta utilidade do conhecimento, sobretudo na íntima
ligação da moral, saber e felicidade [...], em parte porque na ciência pensava-se ter e
amar algo desinteressado, inócuo, bastante a si mesmo, verdadeiramente inocente,
no qual os impulsos maus dos homens não teriam participação [...] (Ibid., p. 79).
Vem se (a)creditando que a verdade seja a supremacia, a metafísica, o maior
grau de ascensão não só de conhecimento, mas de moral, de forma de vida. O
conhecimento e a ciência enquanto produtos da linguagem são expostos, a partir da
crítica de Nietzsche, como arbitrariedades à medida que o autor discute a valoração dos
valores, pois é ali onde colocamos nossos pesos e nossas medidas que denunciamos por
quais valores, por quais conhecimentos (re)atualizaremos nossas práticas, nossas
vontades e por quais conhecimentos já não suportamos mais valorizar, já não dizem
sobre nossas ações, nossas morais, nossas condutas6. Assim, a ciência vai
(trans)formando-se em efeito de verdade que quer não apenas trazer as coisas boas dos
indivíduos, mas garantir a permanência dos mesmos, pois

combatem com novos meios e invenções. O ideal ascético é um tal meio: ocorre, portanto, exatamente o
contrário do que acreditam os adoradores desse ideal – a vida luta nele e através dele com a morte, contra
a morte, o ideal ascético é um artifício para a preservação da vida” (NIETZSCHE, 2009, p. 101).
6
É interessante pensar que a discussão da condução das condutas está próxima da análise dos preceitos
morais que Nietzsche desenvolve, principalmente, no livro Genealogia da Moral. É nessa obra, que o
autor problematiza, com demasiada ênfase, as formas, as maneiras, os lugares ocupados por aqueles
homens que puderam, em seu tempo, fabricar os valores bons e os ruins. O elo dessa discussão vem sendo
(re)atualizado quando Foucault traz não apenas a Ordem do Discurso, mas principalmente a Microfísica
do Poder para destacar o poder no seu caráter local; nas suas relações de forças. Assim, não apenas esses
títulos, mas outros de ambos os autores nos incitam a pensar o caráter normativo, prescritivo e, por fim,
prático dessas condutas, dessas morais que produzem – em seus tempos – os entendimentos que dão conta
de instituir formas de ser sujeito.

21
por mais importante que seja conhecer os motivos que realmente guiaram a conduta
humana até hoje, talvez a crença neste ou naquele motivo, isto é, o que a
humanidade presumiu e imaginou ser o autêntico motor do seu agir até agora, seja
algo ainda mais essencial para o homem do conhecimento. (NIETZSCHE, 2012, p.
83).
A ciência busca ser a criadora de si (NIETZSCHE, 2012). Essa criação só se fez
possível a partir das práticas, das normatividades que advogaram para si, que se
autodenominam de científicas, pois ela é “essencialmente discurso, um conjunto de
proposições articuladas sistematicamente” (MACHADO, 2007, p. 18).

O que não se afirma é que a ciência seria uma reprodutora de verdade, mas sim
que ela produza efeitos de verdade. Não se pode esquecer que “a ciência tem uma
história. Ciência é processo, devir” (MACHADO, 2007, p. 27). Desse processo
emergem movimentos, fronteiras, lutas para pensar a ciência. Movimentos que acabam
por compor uma cultura científica que não apenas valida e legitima, mas que convoca,
prescreve modos de pensar a existência, o mundo.

Já num exercício Nietzschiano, Foucault (2013, p. 376) pensa com Bachelard e


Canguilhem, que, talvez, a história da ciência possa ser a história dos “discursos
verídicos, ou seja, com os discursos que se retificam, se corrigem e que operam em si
mesmos todo um trabalho de elaboração finalizado pela tarefa do dizer verdadeiro”.
Com isso, a ciência tem um rol de (des)construções para não apenas legitimar, mas para
tornar verdade seus saberes, suas problemáticas. Nessa percepção, o erro não seria
eliminado pela força de uma verdade, mas por uma nova forma do dizer verdadeiro.

Para Foucault (2013, p. 32),

O conhecimento é um efeito ou um acontecimento que pode ser colocado sob


o signo do conhecer. O conhecimento não é uma faculdade, nem uma
estrutura universal. Mesmo quando utiliza um certo número de elementos que
podem passar por universais, esse conhecimento será apenas da ordem do
resultado, do acontecimento, do efeito.
Com isso, Foucault vai pensando – a partir dos estudos de Nietzsche – que não
há um conhecimento natural, que não há uma natureza do conhecimento, mas apenas
produções, investimentos, regimes de verdades que possibilitam, ancoram, solidificam o
conhecimento como efeito de alguma verdade e que a produção dos saberes são
resultados de práticas não apenas científicas que vão regulando, normatizando as formas
de se dizer e ver no contemporâneo.

Gostaríamos de destacar que Nietzsche e Foucault problematizam que “tanto a


linguagem quanto os discursos forjam, inventam, constroem, produzem a realidade”

22
(BELLO, 2010, p. 549). Assim, a realidade, linguisticamente instituída, está nos modos
de pensar que essa instituição provoca e não na base material ou factual que a sustenta
(ibid., p. 550).

Por fim, apontar que o entendimento clássico da verdade e da realidade – em


Platão e Aristóteles – bem como os entendimentos com Nietzsche e Foucault da vontade
de verdade e vontade de saber nos apontaram rupturas, deslocamentos. Acreditamos que
são esses desníveis que nos permitem pensar da maneira que pensamos no
contemporâneo e, portanto, criaram as condições para cunharmos o saber-realidade
como efeito de uma verdade7.

A PRODUÇAO DO SABER-REALIDADE NA EDUCAÇAO MATEMÁTICA:


ALGUMAS PISTAS

Os discursos, em Foucault, perpassam os entendimentos linguísticos. Para ele,


pensar o discurso refere-se ao estudo das práticas sociais. Nesse aspecto, é interessante
o olhar que captura, enuncia as regras que efetivamente orientam, conduzem, governam,
significam os modos de ser e agir.

Os discursos engendram os entendimentos entre o que pode ser dito e o que se


está autorizado a dizer instituindo funções de existência. Segundo Bello (2010, p. 562),
“ao referirmos o enunciado como unidade mínima do discurso, estabelecemos com ele
um caráter normativo e regulador no interior das instituições, campos de saber,
situações sociais, operando na organização do real [...]”. As enunciações vão apontando
as normas, as regularidades que compõem o discurso. Mais do que isso, elas vão
produzindo saberes, estratégias, práticas e, portanto, os discursos vão carregando um
caráter normativo e regulador. É através do caráter regrado e normativo dos discursos
que Foucault vai tomá-los enquanto prática, pois “[...] é no entendimento das regras de
existência, da ordem das correlações, de posições, de funcionamentos que se busca
entender a operação, o modo de funcionar, as propriedades e nunca a unidade ou a lei

7
Cabe destacar que não estamos problematizando causa e efeito. Como se o uso pedagógico da realidade
fosse à causa do saber-realidade e, por isso, que o saber-realidade seria o efeito desse uso. Antes disso,
estamos pensando que as práticas pedagógicas que advogam o uso da realidade na Educação Matemática
instauram-se como verdades a partir de investimentos, de produções que solicitam, vendem, ofertam
entendimentos em prol da realidade, produzindo discursos que constituem nosso entendimento do que
seja a realidade. Dessa maneira, o docente que é assujeitado por esses enunciados – como a matemática
está em tudo – procura, de alguma maneira, inserir-se na ordem discursiva que coloca a realidade como a
verdade contemporânea da Educação Matemática. Vemos aquilo que Nietzsche chama de rebanho sendo
instaurado: a sociedade matemática, ao proliferar esse uso, cria modos de ser professor. São para esses
modos que olharemos como os efeitos de verdade do uso pedagógico da realidade.

23
funcional” (BELLO, 2010, p. 563). Logo, o que entendemos como prática discursiva, a
partir de Foucault, é a força com que o discurso produz, inventa, (re)atualiza e mantém
aquilo que pode ser dito bem como quem pode dizer.

De outra forma, não é apenas aquilo que pode ser dito, mas toda a instituição, a
organização social que constitui o que ainda pode ser dito. Em suma, o caráter
excludente da ordem discursiva que se apoia em regras, normatividades das instituições
(como a escola, a família, etc.). Um exemplo do discurso enquanto prática é o
entendimento da realidade como uma produção no e pelo discurso pedagógico da
Educação Matemática. Ao anunciar a realidade, a Educação Matemática produz o que
ela entende por realidade. Assim, não olhamos a realidade da coisa em si ou de uma
verdade, mas olhamos as produções, os desdobramentos nos discursos do campo
referido que constituem o uso da realidade como um saber sobre o contemporâneo.

Com o exposto até o momento, nos é pertinente pensar que “a suposição, por
exemplo, de que os discursos pedagógicos e alguns outros fabricam determinados tipos
de práticas e estas, enquanto práticas sociais produzam subjetivações, identidades,
regras institucionais, assujeitamentos “[...] nos incitam a “tratar a prática pedagógica
como prática discursiva” (ibid., p. 564). “Os discursos da inovação curricular, da
educação matemática contextualizada, das verdades da matemática escolar e, ainda, das
verdades da experiência escolar dos sujeitos são os que constituem essas práticas” (ibid.,
p. 565). Por fim, os discursos que convocam o uso da realidade são vistos como práticas
pedagógicas que orientam, regulam, normatizam, assujeitam e produzem identidades em
relação às ações docentes. São para essas práticas pedagógicas que vamos direcionar
nossa analítica na produção do que denominamos de saber-realidade.

O SABER-REALIDADE

Cunhamos nossa escrita com hífen8 por entendermos que o termo saber-
realidade não opera uma sobreposição e nem um complemento entre ambos. Não
tratamos de termos idênticos e que, por isso, podem ser escritos nessa união permitindo
pensarmos a potência do termo para tencionar como determinadas produções de saberes
sobre a docência contemporânea na Educação Matemática convocaram – e ainda

8
Autores como Uberti e Bello (2013) utilizam a escrita do hífen no conceito docência-pesquisa
problematizando que tal uso não implica compreender ambos os termos como “elementos que, mesmo
imbricados, sejam possíveis de oposição”. (p.24). O hífen, ao invés de propor binarismos, nos permite
estabelecer o encontro de ambos na constituição de um imbricamento – entre saber e realidade.

24
convocam - o uso da realidade. Ou ainda, como as práticas pedagógicas produzem os
entendimentos da realidade enquanto instrumento regulador, orientador na Educação
Matemática.

Saber-realidade – com hífen – discute os movimentos, as produções docentes


que legitimam entendimentos sobre o uso pedagógico da realidade a partir de pesquisas
no campo referido. Com isso, para que pudéssemos cunhar o termo, procuramos em
livros e artigos científicos – constituindo nosso material analítico - como alguns autores
instituíram práticas pedagógicas em torno do uso da realidade proporcionando um saber
sobre a docência.

Para Foucault (2014, p. 18), temos o termo conhecimento como“[...] o sistema


que permite dar uma unidade preliminar, um pertencimento recíproco e uma
conaturalidade ao desejo e ao saber”. Esse encontro entre desejo e saber, essa
sistematicidade que produz e constitui o conhecimento e a vontade de conhecer pode ser
pensada - em nosso tempo - como a realidade, pois o seu uso pedagógico destaca o
desejo contemporâneo de pensar as práticas pedagógicas e, ao mesmo tempo, a inserção
desse uso como um saber, como uma normatividade, uma regularidade que prescreve e
orienta modos de ser e agir.

O saber pensado como “aquilo que é preciso arrancar da interioridade do


conhecimento para ali recuperar o objeto de um querer, o fim de um desejo, o
instrumento de uma dominação, a meta de uma luta” (idem). Para observar o caráter
regrado, normativo, regulador de um saber. Em outras palavras, para denunciar as
dominações, as relações de forças que produzem e mantêm visíveis certos saberes e
outros não. É nesse exercício do uso da realidade enquanto um desejo e um saber e, do
mesmo modo, no intuito de denunciar suas dominações, suas regularidades que
pretendemos discutir o saber-realidade.

Durante a análise do saber-realidade nas práticas pedagógicas em Educação


Matemática, percebemos duas categorias: uma que versa sobre a discussão cultural e a
outra, de viés epistemológico. Ambas, antes de produzirem um dualismo, constituem os
entendimentos sobre o uso pedagógico da realidade. Sendo assim, vamos iniciar nossa
análise a partir das produções acerca da noção cultural que produz o saber-realidade.
Por fim, analisaremos aquelas práticas pedagógicas que instituem o saber-realidade por
um viés epistemológico.

25
SABER-REALIDADE: VIÉS CULTURAL

A Educação Matemática vai constituindo o uso pedagógico da realidade como


forma de entender as diferentes culturas. A diferenciação vai elaborando distintos
entendimentos de culturas e características singulares de cada região à medida que se
estuda ou se constitui um saber sobre as formas de pensar e problematizar a matemática
em cada cultura.

O uso da realidade vai legitimando-se como instrumento capaz de afirmar e


produzir matemáticas singulares dentro das culturas e vai adquirindo o lugar de verdade
passando a descrever, inventar, produzir o que cerca os indivíduos e as maneiras de
interagir no/pelo mundo. Se o uso da realidade é produzido como uma universalização9
– por acreditar que sua materialidade é inquestionável – as discrepâncias entre
realidades podem ser descritas como “grupos culturalmente diferenciados”. As
“diferenças vão além de mera utilização de técnicas, habilidades e práticas distintas,
mas refletem posturas conceituais distintas [...]” (D’AMBROSIO, 1990, p. 6). Destarte,
pensar a realidade enquanto produto das inúmeras formas de cultura produz como efeito
a noção do seu uso como caráter universal, pois as supostas variações de suas
conceituações são resultado das diversas maneiras de estar no mundo.

“Se, por realidade, se entende tudo o que existe, abre-se a delicada questão da
existência. Dizer que se trata de realidade no sentido físico [...] abre a questão
da materialidade, mais interessante, mas não menos delicada. Se realidade é
simplesmente tudo, então o conceito se esvazia, ou seja, a realidade é nada”
(BALDINO, 1996, p. 7-8).
Não é somente por estar no cotidiano ou pelo seu uso recorrente que é validado e
justificado o pensamento que advoga para si uma matemática naturalizada e
onipresente. E preciso que haja todo um investimento para que ela esteja tudo, presente
no cotidiano, pertencente à realidade de cada um e de todos; seja valorada quanto à
própria matemática dita científica.

Sobre a discussão das diferenças entre as culturas e as práticas distintas,


D’Ambrosio (1997, p. 10) discute que o conhecimento fragmentado

[...] dificilmente poderá dar a seus detentores a capacidade de reconhecer e


enfrentar as situações novas, que emergem de um mundo a cuja

9
Quando referimos a produção do uso da realidade a uma universalização não estamos apontando para
uma verdade universal. Apenas destacando que, discursivamente, cada cultura tem uma forma peculiar de
viver, de se organizar, de pensar e se relacionar com a matemática. Assim, a universalização é tomada
como a forma peculiar de cada cultura. Ou seja, que cada cultura tem suas condutas, seus modos de ser e
agir.

26
complexidade natural acrescenta-se a complexidade resultante desse próprio
conhecimento [...].
Se os conhecimentos forem fragmentados, as ações possibilitadas a partir do
encontro do conhecimento com a complexidade do mundo acabarão por não incorporar
“novos fatos à realidade” (D’AMBROSIO, 1997, p. 10). Assim, “[...] em todas as
culturas encontramos manifestações relacionadas - até mesmo identificadas – com o que
hoje se chama matemática” (ibid., p. 17). Frente a isso, torna-se legitimo o uso da
realidade enquanto instrumento não apenas para pensar, mas como produto das práticas
pedagógicas, pois as diferenças, todas as possíveis realidades formam uma totalidade
que é valoriza como verdade pelos discursos que a constituem.

Pode-se tomar como referência à produção de uma matemática étnica a partir de


pesquisas desenvolvidas por D’Ambrosio e o seu conceito de etnomatemática. Para esse
autor, “[...] todas as culturas têm desenvolvido artes ou técnicas de manejar a realidade,
para sobreviver e para transcender, explicando, entendendo e criando”. Dessa maneira,
pode-se chamar de “[...] matema essa força para explicar, entender, criar e manejar a
realidade. Também é fácil identificar tica com ‘arte e técnica’, e etno com ‘em distintos
sistemas culturais’” (D’AMBRÓSIO, 1997, p. 120-121). É interessante destacar que a
realidade produzida aqui não é aquela clássica que dá conta da coisa em si bem como
comprova a existência de certa materialidade. Ela é produzida como os modos de vida
de cada sujeito. Assim, não dá conta de provar uma existência, mas aponta as condições
de possibilidade que constituem uma cultura.

Assim, o esforço é para entender a etnomatemática não como uma matemática


inferior, simples ou menos formal, mas para pensar que não é tomando a matemática
ocidental como norma que se deseja identificar o quanto os usos de diferentes
procedimentos nas distintas culturas aproximam-se ou não do entendimento sobre
matemática. Para tal compreensão, analisaremos a produção de autores não apenas
sobre a etnomatemática, mas principalmente a partir dela entendendo que a emergência
do referido programa de pesquisa consagrou o uso da realidade no campo estudado.

Anterior à produção do programa etnomatemática, os estudos de D’Ambrosio10,


apresentam indícios sobre a emergência das discussões que produzem um pensar a

10
O autor traz um levantamento indicando as produções e o surgimento das discussões sobre a inserção
das questões sociopolíticas tanto no Ensino, quanto na Educação Matemática presentes em eventos
internacionais, do campo referido, a partir da segunda metade da década de 60 (Cf. D’AMBROSIO,
1990).

27
matemática enquanto parte da constituição sócio-histórico-política de um povo, de uma
cultura e, portanto, inserida em uma realidade. Conforme destaca o autor,

“[...] a conferência sobre ‘Matemática e o mundo real’, organizada por M.


Niss e B. Booss na Universidade de Roskilde, Dinamarca, em julho de 1978,
imediatamente precedendo o Congresso Internacional de Matemática de
Helsinki, Finlândia, onde teve lugar uma sessão sem precedentes na história
dos congressos internacionais de matemática, denominada ‘Matemática e
sociedade’” (1990, p. 12),
apontando à emergência das discussões em que o social vai invadindo as pesquisas em
Educação Matemática. Percebe-se uma trajetória de discussões que vão não apenas
possibilitando elos entre matemática e sociedade, mas que produzem lugares, efeitos das
práticas pedagógicas. Logo, o uso da realidade vai se instituindo como efeito das
práticas dos pesquisadores, docentes que se reuniram em congressos a fim de pensar a
Educação Matemática.

Porém, inclusive o valor da etnomatemática enquanto efeito de verdade pode ser


apresentado à luz dos investimentos necessários para que esse saber instituísse seu lugar
de poder e pudesse ser tomado como elemento da Educação Matemática. O fator, a
força da realidade se consolida a partir das discussões culturais e vai se imbricando as
práticas pedagógicas, o que nos leva a propor o uso pedagógico da realidade, pois
acreditamos que à medida que a realidade vai sendo instituída nas discussões
educacionais, produções em torno do seu uso pedagógico vão sendo legitimados para
que a realidade esteja presente nas aulas de matemática.

D'Ambrosio traz que a educação "[...] responde às necessidades mais imediatas,


a resolver problemas presentes do dia-a-dia" (1997, p. 64). Não obstante a resolver
problemas diários, o autor discute sobre a problemática do estruturalismo ao tomar as
variações individuais e intraculturais como algo linear, estável e contínuo. O autor
apresenta que as novas concepções sobre a elaboração de saberes proporcionam outras
formas de pensar o conhecimento isolado dos movimentos socioculturais. Dessa forma,
"[...] a prática pedagógica resultante da etnomatemática, da etnociência e das outras
etnodisciplinas [...]" (ibid., p. 67) podem proporcionar um processo de difusão do
conhecimento a partir de contextualizações culturais.

Corroborando com D’Ambrosio, Oliveira (2002, p. 79) traz que o


desenvolvimento da matemática na escola proporciona “[...] algumas crenças que
acabam fazendo parte de como as pessoas entendem a matemática. Algumas destas
crenças dizem que a matemática é aprendida na escola e, por consequência, as pessoas

28
que não foram à escola não sabem matemática”. Instaurando a matemática escolar como
uma matemática distinta e suprema em relação às demais produções que estariam a
margem da escola. Assim, possibilitando um encontro entre matemática e produções
culturais, os autores referidos, inserem suas produções no campo do étnico instigando
formas de desenvolver uma matemática menos universal, que seja constituída nas/pelas
práticas das distintas culturas.

Nesse olhar, a matemática vai constituindo-se como parte integrante do mundo.


Como forma de diminuir as desigualdades sociais, como possibilidade de constituição
integral do cidadão e como ascensão não apenas econômica, mas social. Desse percurso,
o que antes era prescrição agora vai tornando-se desejo: o sujeito cidadão passa a
desejar e querer encontrar a matemática em sua realidade. Dessa vontade de olhar a
matemática nos diversos contextos sociais (des)construindo a ideia de uma matemática
hegemônica, que os investimentos na busca pela matemática de cunho étnico adquirem
espaço na constituição da Educação Matemática.

Knijnik ao pensar a etnomatemática, traz que nos processos educativos

“[...] as inter-relações entre os saberes populares e os acadêmicos foram


qualificados, possibilitando que os adultos e jovens que dele participavam,
concomitantemente compreendessem de modo mais aprofundado sua própria
cultura e tivessem também acesso à produção científica e tecnológica
contemporânea” (2003, p. 106).
Com isso, afirma-se o discurso que reverbera o uso da realidade, do contexto
histórico-social na constituição da Educação Matemática. E, dessa maneira, o
contextualizar é visto de forma positiva pelos alunos, pelos participantes do projeto que
envolve uma matemática relacionada às práticas ditas cotidianas.

Problematizar a Educação Matemática como capaz de constituir um cidadão


transformador da realidade supõe que ela seja “[...] visibilizada por uma matemática a
qual vem se constituindo como a base de tudo; como um saber que está presente na
cultura de todos; no cotidiano; por meio de uma matemática crítica; de uma matemática
popular; de uma matemática falada pela natureza” (D’AMBROSIO, 1997 p. 68). A
matemática presente nas culturas, nos modos de vida, ligada à realidade, em relação
com o mundo é um modo de instaurar “[...] um saber que abarque não somente
problemas epistemológicos, mas também sociais, culturais e políticos” (ibid., p. 69).
Desse entendimento, pode-se propor uma “pedagogia” transformadora da realidade.

29
Para elaborar tal pedagogia, precisamos pensar como ficam as ações docentes nesse
âmbito de uma matemática étnica.

É pertinente pensar que a constituição da realidade elabora uma ideia de


pertencimento. Ao indicar a realidade de um indivíduo, se está localizando,
prescrevendo sua cultura. Percebe-se a produção de uma identidade. Por mais que a
matemática possa ser pensada como “uma manifestação cultural”, tais conhecimentos se
apresentam como universais, totalizando não apenas as culturas, mas essas formas
outras de pensar matematicamente. Mais do que isso, desejam o universal, pois,
conforme, D’Ambrosio (1990, p. 10), “enquanto nenhuma religião se universalizou,
nenhuma língua se universalizou [...], a matemática se universalizou”.

O saber sobre a realidade apresenta-se a partir dos investimentos, dos lugares, do


acreditar e mais do que isso, do produzir, do esforçar-se para constituir um encontro
entre a matemática e o desejo do social enquanto condição se não a priori, próxima da
materialidade do indivíduo, a saber, a realidade. Portanto, nos aproximamos de um
primeiro argumento para o saber-realidade como essa economia, esse esforço; como
desejo, trabalho, investimento de problematizar, de olhar a Educação Matemática
rompendo sua formação neutra e universal para pensá-la como uma produção cultural.
Assim, tomando o saber-realidade como efeito de práticas pedagógicas que convocaram
para si aproximações entre a matemática e as constituições sociais.

D’Ambrosio (1990, P. 17) vai argumentando que “cada grupo cultural tem suas
formas de matematizar”. São essas distintas formas de matematizar que vão
legitimando, constituindo a etnomatemática não como uma aproximação da matemática
ocidental, mas a partir de estratégias, raciocínios outros, peculiares, singulares que nos
indicam – inclusive – sobre que cultura estamos falando. Precisamos estar atentos para
não excluir o entendimento de organização global do mundo contemporâneo
entendendo que a matemática – principalmente a financeira- precisa estabelecer relações
com uma quantidade, uma mensuração padrão que permita que o intercâmbio entre as
distintas formas de vida sejam possibilitadas. Antes disso, quando nos referimos as
diferentes produções culturais de matematizar, são as lógicas, os usos, as estratégias que
cada povo tem para se relacionar com o mundo e que possa ser tomado ou aproximado
disso que insistimos em identificar como matemática.

O estudo de pesquisadores sobre técnicas ou habilidades práticas nas distintas


culturas – em especial nas que versam sobre a Educação Matemática – nos rementem às
30
pesquisas e produções desenvolvidas com as culturas indígenas. Sobre essas produções,
pesquisadores como Bello (1995, 1996, 2000), Ferreira (1994, 1996), D’Ambrosio
(199411,2001,) entre outros, problematizaram a Etnomatemática a partir de culturas
indígenas. Devido às diversas produções, selecionamos alguns trechos das pesquisas de
Ferreira a partir de sua obra: Com quantos paus se faz uma canoa: a matemática na
vida contemporânea e na experiência escolar indígena.

Nosso interesse por essa obra não está relacionado apenas pela discussão
Etnomatemática dos povos indígenas, mas por perceber os entendimentos de um estudo
distribuído pelo Ministério da Educação12 em parceria com a Coordenação Geral de
Apoio às Escolas Indígenas. Portanto, acreditando que os materiais não apenas foram
enviados para as escolas brasileiras, mas suas divulgações dizem mais do que a
matemática indígena: eles convocam, prescrevem outros professores brasileiros que
trabalham com matemática a pensar suas práticas a partir da Etnomatemática. São essas
produções que vão instaurando o que chamamos de economia da Educação Matemática
e que produzem maneiras de ver e dizer a docência contemporânea.
Uma das primeiras discussões da autora resaltam que alguns adultos, apesar de
analfabetos,
tinham bom desempenho em situações que exigiam o domínio de
conhecimentos matemáticos, como na venda de "artesanato", produtos
agrícolas e mel, ou na compra de bens industrializados e na divisão e
distribuição de mercadorias que chegavam ao Parque - gasolina, óleo diesel,
querosene, material de construção e gêneros alimentícios (FERREIRA, 1994,
p. 25).
Os raciocínios, as lógicas, que são familiares com nossos modos de matematizar,
eram conhecidas e praticadas por vários adultos que sequer haviam frequentado a escola
indígena. Mesmo assim, logo que a autora chegou à região, em 1980, os índios
solicitaram auxilio para interpretar extratos bancários, pois conceitos como os de
crédito, débito e saldo bloqueado, entre outros, não eram compreendidos o que produzia
certa desconfiança de estarem

11
É interessante obervar que Ubiratan D’Ambrosio ao publicar na revista Em Aberto, organizada pelo
INEP/MEC, é apresentado não apenas como professor titular da UNICAMP, mas como vice-presidente
do International Studies Group on Ethnomathematcs. Ou seja, destacando o que nos diria Foucault
(2012b) – como já referenciamos – que não é qualquer um que pode falar de qualquer coisa em qualquer
lugar.
12
Da mesma forma, destacamos que em 1993, o MEC lança as Diretrizes para a política nacional da
educação escolar indígena um ano antes da distribuição do livro de Ferreira (1994) nas escolas brasileiras.
Podemos perceber o quanto a economia do saber-realidade vai se constituindo a medida que tanto as
pesquisas quando a divulgação desses resultados incitam, prescrevem e desejam que seus saberes sejam
inseridos nos entendimentos contemporâneos da Educação (e) Matemática.

31
[...] sendo roubados, já que, segundo eles, quem tomava conta de seu dinheiro
em São Paulo eram funcionários não-índios do escritório do Parque, com
acesso a suas contas, assinando cheques, inclusive, em nome dos índios.
(FERREIRA, 1994, p. 25-26).
Desse aspecto, a autora começou a problematizar suas práticas docentes a partir
das necessidades locais. Ao fazer um levantamento sobre os interesses em aprender
matemática, percebeu-se certa recorrência de “[...] temas como as operações de compra
e venda, o dinheiro, as datas, os mapas e o consumo de combustível delimitou áreas de
interesse dos índios nas quais a Matemática deveria ser trabalhada” (FERREIRA, 1994,
p. 27).

A autora defende que trabalhar de maneira contextualizada trouxe a


possibilidade de observar que as discussões solicitados pelos estudantes não se limitava
aos saberes matemáticos. “A Matemática era mais um recurso para solucioná-los”.
Discutir situações que envolviam “transporte, comércio de ‘artesanato’, contas
bancárias, limites e áreas de um território” era uma forma de aliar “conhecimentos de
outras disciplinas como a Geografia, História, Língua portuguesa, Biologia” a
matemática e “investir em pesquisas etnográficas entre os diferentes povos, trazendo
para a escola etnoconhecimentos dos diversos povos participantes do processo escolar”
(FERREIRA, 1994, p 29, grifos e aspas da autora).

A autora discute que a forma como a matemática escolar constitui seus


problemas e suas soluções não possui a mesma estrutura que os problemas locais da
cultura indígena, pois

As dificuldades para resolver esses dilemas, evidenciada pela indecisão sobre


a operação aritmética a utilizar, é agravada pela busca de uma resposta única,
correta. Não condizia com o desempenho matemático dos alunos fora do
contexto escolar. A Matemática trabalhada em contextos informais, extra-
escolares, em vez de ter o objetivo de encontrar soluções corretas, visa chegar
a soluções viáveis, sob diferentes pontos de vista e de acordo com distintas
estratégias matemáticas (FERREIRA, 1994, p. 30).
Da mesma forma, a constituição de um problema matemático se dava de forma
diferenciada nas discussões escolares e nas não escolares. Enquanto que na organização
escolar o problema era organizado segundo uma ordem em que o enunciado iniciaria o
trabalho para, em seguida, operar a escolha dos instrumentos para produzir a solução,
nos problemas não escolares, a “própria construção do problema gerava a resolução,
criando articulações específicas entre dados, enunciados e vários conceitos e elementos
envolvidos no contexto que originou o dilema” (FERREIRA, 1994, p. 31).

32
Para a autora, “entender a matemática Palikur exige compreender a classificação
do universo Palikur. Não há como pensar exclusivamente em ‘números’ na língua
Palikur. Na prática, os numerais não existem fora da concepção de mundo”
(FERREIRA, 1998, p. 42, aspas da autora). Portanto, não é apenas a matemática Palikur
que está sendo vista, mas toda a interação com o mundo, toda a relação elaborada para
que a cultura Palikur consiga se relacionar, mas independente disso, a matemática
instituiu um conceito numérico, uma coleção de números que está em todas as culturas,
que é patrimônio do mundo.

Essa universalização que produzem frustrações na aula, pois, aparentemente,


transpor a matemática da horta para o papel – representar, atualizando um sonho
platônico – é fazer uma matemática que por mais fiel que possa ser é regrada, vigiada e
metricamente mensurada causando estranhamento e receio na hora não apenas de
escrever, mas de pensar sobre.

Portanto, o exercício de identificar vai legitimar a matemática enquanto saber


superior, como vai apontar para aquilo que vem se produzindo nas aldeias como
matemática. No entanto, não é para esse identificar que o saber-realidade pretende
olhar – em sua conceituação inicial – pois a discussão pretende observar “a maneira de
fazer a passagem da habilidade matemática13 desenvolvida no cotidiano à introdução de
conceitos matemáticos novos em sala de aula, partindo do pressuposto de que a
atividade matemática é parte integrante da cultura de cada sociedade” (FERREIRA,
1994, p. 53).

Logo, vai se constituindo um espaço para que o docente possa acrescentar as


suas formas normativas, neutras de problematizar a matemática, alguns aspectos do
contexto histórico-social ao quais seus estudantes integram. O prefixo etno vai tomando
espaço nas discussões educacionais. As produções de D’Ambrosio(1986, 1990, 1994,
1997, 2001 2002), Knijnik (1994, 2003, 2004), Bello (1995, 1996, 2000),
Halmenschlager (2001), Ferreira (1994, 1998), Oliveira (2002), entre outros, constituem
um espaço para que o prefixo referido adquira efeito de verdade. Efeitos que vão
conduzindo seus usos nas formas contemporâneas de pensar e problematizar as ações
docentes. Desse aspecto, outras formas docentes menos tradicionais, menos encerradas
em verdades universais e totalizadoras vão constituindo-se como maneiras de inventar a
docência. Mesmo que produções como as de Ferreira (1994, p. 56) que problematizam o
13
Quando trazemos habilidade matemática estamos nos referindo às distintas formas de matematizar.

33
pensamento matemático ao se desenvolver em diferentes culturas e emergindo “[...] hoje
como rica fonte de conhecimentos com os quais os professores podem trabalhar se
partirem dessa premissa fundamental e compartilharem, com os sujeitos envolvidos, o
processo coletivo e holístico da construção de conhecimentos”, o que nos parece estar
na ordem do discurso da Educação Matemática é a realidade enquanto verdade,
enquanto norma.

Conforme discutimos anteriormente, a verdade e a ciência constituem elos para


pensarmos os entendimentos acerca da realidade, uma vez que o real é tomado como
aquilo que existe, aquilo que é verdadeiro ou – com Aristóteles – aquilo que pode ser
pensado/produzido. Logo, convocar o uso pedagógico da realidade é tencionar outra
maneira de produzir discussões matemáticas nas distintas culturas esquartejando esse
desejo de cultural enquanto única forma de produzir/pensar a matemática, a saber, a dita
ocidental.

Destacamos que o uso pedagógico da realidade não discrimina ou diminui a


matemática ocidental, não é disso que se trata. Talvez, seu uso dê conta e convoque a
Educação Matemática a olhar para outras formas de matematizar. Menos num desejo
hierarquizado em prol de uma produção de um suposto pódio no qual viria primeiro a
matemática ocidental, mas sim no possível diálogo entre as matemáticas ditas com
sobrenome. Logo, propor uma forma que constitua redes que possam e sejam
atravessadas pelos mo(vi)mentos histórico-sociais, (des)construindo a noção de uma
matemática neutra, ocidental, idêntica para todos e cada um.

SABER-REALIDADE: VIÉS EPISTEMOLÓGICO

Ao pensar qual a matemática necessária para o século XXI, Lorenzato e Vila


(1993) apresentam, entre doze áreas14, a aplicação da matemática a situações da vida
cotidiana. O documento analisado pelos autores recomenda que

“[...] os estudantes sejam encorajados a representar matematicamente


situações da vida real através de gráficos, diagramas, tabelas e expressões
matemáticas, e processar matematicamente os dados representados, obtendo
resultados que deverão ser interpretados à luz da situação real dada”
(LORENZATO; VILA, 1993, p. 45-46).

14
As doze áreas são: resolução de problemas, comunicação de ideias matemáticas, raciocínio matemático,
aplicação da matemática a situações da vida cotidiana, atenção para a “razoabilidade” dos resultados,
estimação, habilidades apropriadas de cálculo, raciocínio algébrico, medidas, geometria, estatística e
probabilidade (LORENZATO; VILA, 1993).

34
E assim, uma das habilidades necessárias para a vida adulta é relacionada com a
forma de ler e interpretar o cotidiano matematicamente. Tomar decisões e optar pelas
melhores oportunidades está imbricado na maneira de pensar a vida através de subsídios
matemáticos. Essa habilidade coloca em discussão outra dimensão: o caso da
contextualização.

Sobre as discussões da contextualização da matemática, Knijnik aponta os


saberes matemáticos como ponte, instrumento para diminuir as desigualdades sociais.
Em especial, quando suas pesquisas (2003, 2004) discutem a matemática a partir dos
movimentos sociais15, a matemática vai se constituindo como uma importante
ferramenta “[..] no processo produtivo e mesmo nas atividades da vida cotidiana”
(KNIJNIK, 2004, p. 2). Assim, a indicação da “urgência histórica do acesso ao saber
matemático hegemônico reivindicado pelos movimentos sociais” vai adquirindo espaço
na Educação Matemática. “Portanto, como professores e professoras de Matemática
estamos inevitavelmente comprometidos em possibilitar, em favorecer, em facilitar o
acesso aos saberes matemáticos hegemônicos que operam na sociedade
contemporânea”.

O lugar de comprometimento em “possibilitar”, “favorecer” e “facilitar” vai


sendo constituído à medida que “os movimentos sociais apontam para a relevância nos
processos educativos de sua cultura, de seus modos de dar sentido a suas vidas
cotidianas, o que inclui seus modos de lidar matematicamente com o mundo” (ib., p. 3).
Concordando com Knijnik, Bampi (1999) traz a discussão entre o ensino de matemática
e a Educação Matemática. Enquanto o ensino versa sobre questões mais técnicas, os
modos de ensinar o conhecimento matemático, a segunda discorre sobre o olhar da
matemática no social, na constituição do sujeito e, portanto, num aspecto mais amplo da
matemática analisando sua constituição, bem como, a do sujeito.

A onipresença da Matemática – essa fantasia gerada pelo poder do discurso –


é que faz com que esse saber pareça dar conta de tudo, tudo explicar, sendo
um “importante instrumento para o exercício da cidadania”; estando
“naturalmente” nos currículos escolares de todo o mundo; fazendo com que
se deseje esse poder. Tais fantasias produzem a ideia de que o desejo se torne
uma realidade, uma verdade (BAMPI, 1999, p. 12, aspas da autora).
O discurso da Educação Matemática “tem pretensões de universalidade, de
totalidade e de constituir um saber, bem como um espaço pedagógico que objetive a
formação e a constituição” (ibid., p. 15) do sujeito. As pretensões de englobar, de estar

15
O movimento referido nas pesquisas estudadas diz respeito ao Movimento dos Sem-Terra (MST).

35
em tudo e de constituir o sujeito que possa estar em sociedade e não apenas conviver,
mas transformar a realidade compõe os entendimentos contemporâneos sobre
matemática – e constituindo a Educação Matemática - em todos os lugares. A partir das
pretensões, “o saber matemático proporcionará a chave para desvendar os segredos da
natureza, apresentando-o como um domínio da Matemática [...] trata-se de um
conhecimento, de uma unidade, de um saber que é próprio da realidade” (BAMPI, 1999,
p. 63) atualizando a discussão acerca de a matemática estar em todos os lugares, na
natureza, bastando ao homem, encontrá-la.

Assim, a autora, em sua pesquisa, vai apresentando a formação do campo da


Educação Matemática como um desejo totalizador, procurando “analisar e compreender
a produtividade da Educação Matemática, sua pretensão de totalização [...]” (ibid., p.
67). Entende-se que a realidade está sendo produzida nessa pretensão de totalização,
porém nem sempre se pensou assim.

D’Ambrosio discute que a realidade “informa o indivíduo que a processa e


executa uma ação que modifica a realidade que informa o indivíduo...” (1997, p. 27) no
movimento de inventar a realidade ou transformá-la a cada novo conhecimento. Porém
é o conhecimento já adquirido que dá suporte à elaboração de outros. A esse
movimento, o autor chama de ciclo vital.

Esse ciclo se dá mediante o processamento de informações retiradas da realidade


que é considerada, por ele, em sua “totalidade como um complexo de fatos naturais e
artificiais” (Ibid., p. 27). Outro aspecto do ciclo vital é o fazer/saber. O homem “faz
porque está sabendo e sabe por estar fazendo. Isto provoca efeitos na realidade, criando
novas interpretações e utilizações da realidade natural e artificial, modificando-a pela
introdução de novos fatos [...]”.

Uma vez que o conhecimento, segundo o autor referido, é o gerador de saber que
por sua vez vai interferir nas ações humanas e a prática, o fazer vão não apenas
constituindo novos conhecimentos, mas interferindo na realidade, pensando que “ao
longo da história, os indivíduos e as sociedades empreenderam esforços para lidar e
conviver com a realidade natural e sociocultural” (Ibid., p. 25). Assim, o autor defende
que o processo de adquirir conhecimento está sujeito a condições específicas tanto de
estímulo quanto de sujeição ao contexto social e cultural.

Embora haja uma vertente da Etnomatemática que busca identificar


manifestações matemáticas nas culturas periféricas tomando como referência

36
a Matemática ocidental, o Programa Etnomatemática tem como referências
categorias próprias de cada cultura, reconhecendo que é próprio da espécie
humana a satisfação de pulsões de sobrevivência e transcendência,
absolutamente integrados, como numa relação de simbiose (D’AMBROSIO,
2002, p. 13).
Bello traz que “[...] o professor reconheça e incorpore [n]o saber da sala de aula,
práticas e conhecimentos produzidos fora do contexto escolar”. Com isso, há a
necessidade da demanda de “[...] um entendimento da realidade dos alunos, da
comunidade como grande marco de referência da ação docente do qual ele deverá
apropriar-se” (2001, p. 3).

Assim, no âmbito da formação de professores, o pesquisador aponta que a


matemática “[...] passou a ser entendida como uma ‘matemática étnica’, isto é, uma
proposta que busca identificar e reconhecer a existência de práticas e conceitos
matemáticos associados ao contexto cultural que são produzidos”. (ib., p. 4, aspas do
autor).

Dessa forma,

“o trabalho desenvolvido junto aos professores [...] mostrou-me, de diferentes


maneiras16, como o uso e a manutenção de certas práticas sócio-culturais
permitem a participação do grupo no modelo econômico vigente, melhoram
as condições de vida bastante diminuídas por causa desse modelo e fazem do
processo de sobrevivência um espaço de resistência cultural” (BELLO,2001,
p. 5).
Esse falar sobre, o convidar a pensar a realidade vai compondo, discursivamente,
o que venha a ser a própria realidade (FOUCAULT, 2012b). Ou seja, discursivamente
ao falar/desejar o que possa ser a realidade, se está definindo, se está instaurando o que
ela é. Portanto, o pensar a realidade vai inclinando os olhares, as produções de pesquisa
para esse entendimento constituído discursivamente. Conforme D’Ambrosio (1990, p.
6), “[...] admitimos que toda atividade humana resulta de motivação proposta pela
realidade na qual se está inserido o indivíduo através de situações ou problemas que
essa realidade lhe propõe [...]”. Essa proposta é dita direta se for do próprio indivíduo e
é indireta se partir de outros indivíduos. Percebemos a produção da realidade não apenas
enquanto um olhar próprio, mas também na forma de outros olhares.

16
“[...]a predição do futuro direcionado à agricultura e o conhecimento climatológico são utilizados a fim
de orientar o cultivo e a colheita de bons e melhores produtos”. Assim como o uso constante de “[...]
plantas e ervas com caráter medicinal constitui-se num recurso desses grupos sociais para evitar gastos
financeiros com a compra de outro tipo de remédios [...]”. A prática de troca de mercadorias constitui-se
como forma que estimula a socialização de valores e conhecimento como, por exemplo, “[...] a troca de
três batatas-doces por um prato de batata seca” (BELLO, 2001, p.5).

37
A realidade vai se constituindo como uma maneira de motivar, de atrair, de
significar. Assim, cria-se um uso pedagógico que reverbera tanto que o próprio sujeito
pode pensar sua realidade como ela pode ser previamente pensada e apresentada de
forma que contemple as verdades naturais, os pertencimentos, as identidades daqueles
que pertencem à realidade descrita, sentindo-se contemplado, motivado por essa
descrição, por essa apresentação. E por isso, conforme o exposto segundo Bello, o
professor vai identificando a realidade a qual o aluno pertence. Dessa identificação é
preestabelecida uma motivação, uma vontade a mais para aprender matemática.

D’Ambrosio discute que a corrente epistemológica aceita e recorrente na


Educação Matemática é tomada como apriorística (1990). Bampi (1999) atualiza essa
discussão ao problematizar o desejo pela razão, pela iluminação a partir da matemática.
O elo entre essas discussões e a problematização do presente estudo perpassa os
(des)encontros entre o apriorismo almejado pela Educação Matemática de vertente
platônica-aristotélica com o olhar direcionado as questões sociais. A ruptura de um
saber desligado do ideal, do mundo perfeito, dos simulacros se dá, de alguma maneira,
pelos movimentos que apontamos a partir de D’Ambrosio em parceria com o conceito
de prática discursiva em Foucault para, enfim, pensarmos uma interpretação que desloca
a Educação Matemática do lugar intocável, racional, encerrado para outro lugar em que
suas sólidas verdades são aproximadas não de um centro único e universal, mas às
margens dos seus saberes para olhar de que forma - microscópica – os movimentos
histórico sociais são (des)mascarados para que a emergência dos acontecimentos que
possibilitam o aparecimento de certos discursos e não outros possam ser ditos, vistos,
ouvidos e (re)produzidos.

Defendendo a etnomatemática “[...] como alternativa ao currículo tradicional,


estamos implicitamente questionando a matemática como um sistema de codificação
que permite descrever, trabalhar, entender e controlar a realidade” (D’AMBROSIO,
1990, p. 34).

Com as “lentes” da Etnomatemática, a Educação Matemática passa a


valorizar, também, a produção da Matemática praticada por diferentes grupos
étnicos, profissionais ou comunitários. As tradições matemáticas de
diferentes grupos sociais são vistas também numa perspectiva cultural, e o
conhecimento matemático é visto como historicamente construído de forma
não linear, marcado por elementos da cultura dos diferentes grupos
(OLIVEIRA, 2002, p. 81).
[...] “o próprio aparecimento das disciplinas, talvez a invenção mais fundamental
e mais característica da ciência moderna, deu origem ao afastamento da realidade em

38
toda a sua plenitude” (D’AMBROSIO, 1990, p. 42-43). Se a constituição de cada
disciplina isolada discutindo uma área do conhecimento, foi tomada como verdade
totalizadora, então à medida que se apresentam as relações
inter/multi/pluri/transdisciplinar se deseja, de alguma maneira, problematizar outras
formas de pensar a organização disciplinar. Observa-se que o esforço realizado para
tornar a disciplina algo totalizador e pertencente a uma única área do conhecimento –
biologia, química, etc. - é reatualizado na medida em que se produz uma discussão, uma
legitimação em que se quer convocar os encontros, as formas não mais solitárias de
pensar as disciplinas.

Gostaríamos de destacar que em um de seus trabalhos, D’Ambrosio já


apresentava um saber que estava sendo inaugurado e que problematizaria uma
matemática menos abstrata e mais próxima das formas de vida, pois “[...] mudando
completamente a ênfase do conteúdo e da quantidade de conhecimentos que a criança
adquira, para uma ênfase na metodologia que desenvolva atitude, que desenvolva
capacidade de matematizar situações reais [...]” (D’AMBROSIO, 1986, p. 14). Dessa
percepção, o autor referido, produzia um entendimento que visava “a adoção de uma
forma de ensino mais dinâmica, mais realista e menos formal, mesmo no esquema de
disciplinas tradicionais, permitirá atingir objetivos mais adequados à realidade” (ibid.,
p. 25). No mesmo estudo, encontramos a discussão em torno da matemática como algo
marginalizado perante as outras formas de conhecimento.

“O estabelecimento da escola americana nos primeiros anos da colônia


reflete, em grande parte, o que acontecia no continente europeu. Ali a
aritmética aparece essencialmente como arte de contar e, igualmente como
acontecia na Europa, a educação em geral dava muito pouca importância à
Matemática, havendo mesmo relutância em adotá-la no conceito de uma
educação prática que foi característico do sistema americano. A matemática
foi minorizada e era ensinada irregularmente e muitas vezes por um professor
particular, visando essencialmente habilitar o jovem à vida prática, fora do
contexto da escola formal” (D’AMBROSIO, 1986, p. 31).

A pesquisa do autor vai denunciando as produções, os movimentos, as rupturas,


os entendimentos que permaneceram e os que foram se (trans)formando à medida em
que a Educação Matemática ia se constituindo. Outro entendimento do autor versa sobre
“[...] o fato da Matemática ser uma linguagem [...] que permite ao homem comunicar-se
sobre fenômenos naturais” (Ibid., p. 35) produz um entendimento de matemática como
efeito de uma época. Assim, o autor traz exemplos de épocas que produziram distintos
entendimentos sobre matemática como a matemática hindu, a matemática grega,

39
orientando para pensar a Educação Matemática tomada como produção de um povo, de
uma época e não como algo neutro e universal. Aqui, percebemos o desejo totalizante
denunciado, anteriormente, por Bampi (1999) em que a Educação Matemática é
produzida a partir do silenciamento dos investimentos necessários para que
determinados saberes pudessem ocupar o lugar de legítimos, de verdadeiros em
detrimento a outros.

[...] havia um conjunto de métodos de conhecimento popular, associados a


práticas sociais relevantes quanto à sua importância econômica e social na
área de subsistência e produção das pequenas propriedades do meio rural, em
especial, nos assentamentos (KNIJNIK, 1996, p. 30).

Assim, Knijnik e as produções em etnomatemática primam pelo não


silenciamento das produções culturais. Como um dos desafios do programa é visibilizar
os saberes populares que são vistos como inferiores perante o reinado da matemática
acadêmica. Conforme a autora pode perceber, esses saberes constituíam um
entendimento tão complexo quanto os saberes legitimados. A autora constitui sua
discussão apontando elementos que afirmam o uso pedagógico da realidade como um
item para pensar a Educação Matemática, em especial, a que diz respeito aos
assentamentos17. Os entendimentos sobre realidade vão atualizando-se, pois se antes
tínhamos que a realidade poderia contornar os saberes a respeito das diferentes culturas,
dentro de uma cultura específica, a realidade é tomada como as suas práticas, como as
necessidades emergentes para se viver. Com isso, as produções, os saberes “[...]
precisavam ser analisados no contexto onde eram produzidos, no qual tinham seu
significado. Não havia lugar ali para uma Matemática asséptica, neutra, desvinculada de
como as pessoas usam” (Ibid., p. 39).

Quando Knijnik inicia sua discussão sobre a etnomatemática, ela problematiza o


quanto se está olhando para as matemáticas. Ou seja, as produções matemáticas
escolares, “a Matemática presente nas brincadeiras infantis”, a “Matemática praticada
pelas mulheres e homens para atender às suas necessidades de sobrevivência” e –
inclusive – a Matemática “produzida unicamente pelas/os matemáticas/os” (Ibid., p. 74).

A autora vai designar a abordagem etnomatemática como

A investigação das tradições, práticas e concepções matemáticas de um grupo


social subordinado (quanto ao volume e composição de capital social,

17
Cf. Knijnik (1996, 2003, 2004).

40
cultural e econômico) e o trabalho pedagógico que se desenvolve como o
objetivo de que o grupo:

- interprete e decodifique seu conhecimento;

- adquira o conhecimento produzido pela Matemática acadêmica e estabeleça


comparações entre o seu conhecimento e o conhecimento acadêmico,
analisando as relações de poder envolvidas no uso destes dois saberes
(Knijnik, 1996, p. 88).
E com essa discussão, a autora segue problematizando a matemática acadêmica
enquanto o saber legitimado e produzido tanto pela comunidade matemática quanto
pelas instituições que validam tais saberes. De modo análogo, a autora vai pensar a
matemática popular como uma forma de “conceituação provisória de Matemática [...]
aplicada ao trabalho desenvolvido por outros grupos sociais [...]” que não os
matemáticos. Nessa discussão, a autora propõe que essa matemática popular seja vista e
aceita como a acadêmica, mas que não se transforme na acadêmica.

fora da sala de aula, percebíamos que os conhecimentos matemáticos que


supúnhamos ter dominado na escola não eram utilizados, o que nos levou a
duas suspeitas: ou não se estava aprendendo Matemática ou os
conhecimentos adquiridos não eram relevantes para os índios (FERREIRA,
1994, p. 11).
“A repercussão deste posicionamento, em termos de atividades pedagógicas,
consiste na valorização do saber popular, enquanto conhecimento prático do mundo,
portanto, na importância de seu resgate, decodificação e análise [...]” (KNIJNIK, 1996,
p. 109). Quando a autora traz a decodificação não se está pressupondo que o saber
popular precisa ser desconstituído para identificá-lo com os saberes acadêmicos, antes
disso, se está problematizando que tais saberes populares são marginalizados, ou seja,
que não foram legitimados para ocupar os espaços destinados aos saberes acadêmicos.
Além disso, enquanto uma produção cultural, constituída na e pela linguagem, esses
saberes possuem estruturas, formas, códigos da mesma maneira que a produção
ocidental, assim como relações próprias de sua cultura, de sua linguagem, de seu
entendimento acerca do mundo.

Quando pensamos o saber-realidade no campo da Educação Matemática,


constituímos nosso entendimento a partir do que Foucault (2012, p. 8) nos diz a respeito
da produção do discurso, que nas sociedades, nas formas de cultura ela é “controlada,
selecionada, organizada e redistribuída”. Ao mesmo tempo, “sabe-se bem que não se
tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em qualquer circunstância,
que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa” (ibid, p. 9). Nesse sentido, os
discursos escolhidos por nós para apresentar a constituição do saber-realidade seguem o

41
entendimento foucaultiano de que não é qualquer um que pode dizer qualquer coisa em
qualquer circunstância. As palavras são controladas, vigiadas, distribuídas. E é essa
distribuição que problematizamos nesse artigo, pois o que se fala sobre o uso
pedagógico da realidade na contemporaneidade só foi possível porque houve todo um
investimento, toda uma permissão ou uma construção de um espaço para que o que
pudesse ser dito hoje iniciasse seus procedimentos de aparecimento na ordem do
discurso educacional.

Podemos afirmar que a partir das discussões etnomatemáticas do autor


D’Ambrósio, outros pesquisadores constituíram seus entendimentos sobre uma
matemática etno, produzindo uma rede de saberes valorizando as diversas formas de
cultura e, portanto, o uso da realidade como ferramenta para constituir outras formas de
matematizar. Corroborando com essa discussão, Knijnik discute que a

[...] abordagem Etnomatemática, caracterizada, como a investigação das


tradições, práticas e concepções matemáticas de um grupo social subordinado
[...] e o trabalho pedagógico que se desenvolve com o objetivo de que o
grupo interprete e decodifique seu conhecimento; adquiria o conhecimento
produzido pela Matemática acadêmica, estabeleça comparações entre o seu
conhecimento e o conhecimento acadêmico, analisando as relações de poder
envolvidas no uso destes dois saberes (KNIJNIK, 1996, p. 109-110, grifo da
autora).
Os saberes práticos dos sujeitos, ligados às suas atividades cotidianas “foram
sendo descredenciados gradativamente” para que outras formas de conhecimento
ocupassem o lugar de verdade. São essas lutas, câmbios de lugares, marginalizações de
saberes que proporcionam a constituição do dualismo acadêmico-popular; científico-
senso comum. São dualismos que imperam e que, aliás, conduzem as discussões no
insistente exercício de inserir novos elementos, cada vez mais neutros e universais ao
grupo dos saberes científicos, proporcionando (re)atualizações que antes de questionar a
manutenção de certos saberes, apenas (re)classifica e direciona o status de legítimo ou
não para os conhecimentos (Ibid., p. 113).

Portanto, a autora afirma que seus estudos etnomatemáticos proporcionam um


“trabalho pedagógico” que desenvolva o “resgate das práticas, tradições e concepções
matemáticas” inter-relacionando tanto a “Matemática dos livros” quanto às formas de
matematizar. Nessa interação, a autora afirma que não há uma sobrevalorização de um
saber sobre o outro, mas que o uso de ambos proporciona ferramentas para a

42
comparação entre os conhecimentos evidenciando “as relações de poder envolvidas no
uso destes dois saberes” (KNIJNIK, 1996, p. 114).

Logo ao olhar o saber-realidade e a etnomatemática – em especial – podemos


pensar que autores como D’Ambrosio e Knijnik não defendem a etnomatemática como
forma de pensar a matemática escolar. Talvez, se defenda a etnomatemática, enquanto
programa, enquanto abordagem como uma relação entre as formas de vida de uma
cultura e a matemática. Não se trata de observar a matemática dos índios e identificar
que eles produzem matemática tal como a entendemos, mas de perceber que existem
práticas outras que organizam, mensuram, quantificam, mas que não aparecem enquanto
efeito das práticas institucionalizadas como matemática.

Consoante, não estamos afirmando que devemos representar a matemática


indígena como outra matemática e nem colocá-la como subgrupo da matemática, mas,
talvez, observar quais os encontros entre a maneira como tais povos vivem, se
relacionam e entendem o mundo e os usos que fazem de raciocínios que podemos dizer
como matemáticos, mas não pela comparação entre a que usamos e sim por serem
maneiras das quais os mesmos identificam como seus modos de contar, medir,
organizar o tempo. Enfim, suas condutas constituem a maneira como eles se relacionam
com o mundo. Para cada uma dessas formas de se relacionar com o mundo, há uma
forma de matematizar.

Não é valorizar uma “matemática do livro”, mas problematizar as maneiras


culturais de matematizar. Esses modos distintos produzem matemáticas singulares. É
sobre essas matemáticas singulares que acreditamos ser o encontro entre o saber e a
realidade que aqui denominamos de saber-realidade. Assim, nos parece interessante
esquecer a noção de matemática enquanto representação – que visa representar,
descrever e pertencer ao mundo - para pensarmos uma matemática imanente que não
precisa de nenhum esforço, de nenhum investimento para estar no mundo, pois ela é
uma forma de estar no mundo. Consequentemente ela é imanente ao mundo e, portanto
rompe com a perspectiva representacional de procurá-la como algo que pertence e
descreve as formas como interagimos com o mundo.

Antes de finalizarmos nossa análise, temos duas considerações a fazer. A


primeira delas indica que mesmo ao problematizar a etnomatemática como um dos
campos da Educação Matemática capazes de tencionar as fronteiras da matemática e

43
convocar o uso pedagógico da realidade em suas discussões, ela apresentou – mesmo
que de forma tímida – indícios de que os saberes produzidos nos possibilitam pensar
práticas docentes que inscrevam os alunos a instigar seus lugares na sociedade e a
(des)construir o lugar de saber universal pretendido pela matemática ocidental.

Uma segunda consideração nos prepara para os próximos percursos de nosso


estudo. Se o saber-realidade na instância de sua produção, discutido nas linhas acima,
foi justamente para mostrar que falar sobre o uso pedagógico da realidade na Educação
Matemática não foi algo descoberto por um cientista/matemático como algo neutro,
natural e que sempre esteve à espera do homem. O saber-realidade não é uma verdade,
uma ciência como propõe o pensamento estruturalista. Houve todo um trabalho, um
investimento para que a realidade surgisse e ocupasse um lugar de saber, um lugar
verdadeiro na Educação Matemática e que, como tal, pudesse falar, descrever, incitar a
pensar as práticas pedagógicas desse campo. Mais do que isso, houve – e ainda há – um
investimento para que o uso pedagógico da realidade seja produzido discursivamente.
Consequentemente, a realidade não adquiriu lugar no discurso por um desejo universal
em se fazer presente nas práticas dos discentes, em estar em todos os lugares, mas ela
emergiu como efeito de diversos estudos, de verdades em prol de uma matemática
étnica, social e que convoca – para si - certo distanciamento da matemática totalizadora.

Não temos elementos suficientes para argumentar que a realidade vai se


instaurando como verdade e que, portanto, vão se apagando seus investimentos para que
ela ocupasse o lugar de saber. Com isso, o entendimento de que ela vem para distanciar
a matemática de um caráter universal se contradiz à medida que as práticas pedagógicas
em prol dela vão instaurando-se enquanto saber universal sobre a docência
contemporânea. No momento que as demais instâncias do saber-realidade forem se
apresentando, talvez tenhamos mais elementos para pensar essa possível contradição
entre o que se produziu a partir de sua emergência e o que vem se dizendo ser na
contemporaneidade. Em outras palavras, a atualização do saber-realidade vai
prescrever/prometer – como pretendemos mostrar – uma verdade, uma ciência, um
saber sobre a docência contemporânea.

O interessante é problematizar a valorização desse lugar na constituição docente


atual. Corroborando com Veiga-neto (2007, p.31) o que importa, então, “[...] não é
saber se existe ou não uma realidade real, mas sim, saber como se pensa essa realidade”.
Esse é o nosso investimento: tencionar os entendimentos do saber-realidade pensando

44
como - na contemporaneidade - seus discursos, suas promessas vão subjetivando os
docentes.

Isto posto, nos interessa, então, discutir quais os efeitos que o uso pedagógico da
realidade adquiriu a partir dessas produções. Assim, o próximo artigo apresenta os
saberes produzidos nos documentos oficiais, sobre Educação Matemática, para
tencionar como as produções sobre o uso pedagógico da realidade apresentadas até aqui
surgiram no material referido acreditando que o aparecimento da realidade nos
documentos só foi possibilitado pelo investimento, pela economia desses pesquisadores
em problematizar uma Educação Matemática em prol das distintas formas de
matematizar.

O QUE FAZER COM O SABER-REALIDADE: PELO QUE ESTÁ POR VIR...

Quando se toma a arte como uma forma subjetiva de olhar o mundo ou o


jornalismo que visa à descrição dos fatos, daquilo que acontece no mundo, não se está
propondo dualismos. Talvez, estejamos pensando distintas formas de olhar, outras
maneiras de estar no mundo. Dizer-se-á que a arte e o jornalismo são formas – bem
como produzem maneiras - de interpretar a realidade.

Não podemos esquecer que a ciência, a história e, em especial, a Educação


Matemática, produzem olhares sobre o mundo a partir de uma forma singular de suas
produções. Com isso, olhar o mundo de uma maneira é esboçar/inventar formas de
entender a realidade. Foram em algumas invenções entre realidade, conhecimento e
verdade que o primeiro artigo pretendeu se movimentar. Não está previsto que uma
forma única de estar e entender o mundo seja possível, mas múltiplas, caóticas e
singulares formas de desenhar, desejar, falar sobre o mundo, - em especial - sobre a
Educação Matemática.

Se trouxemos o lugar da verdade e do conhecimento na filosofia foi para


problematizar como os entendimentos acerca da realidade foram se modificando. Da
possibilidade de uma verdade universal a inexistência da coisa em si, Nietzsche e
Foucault apontaram para uma vontade de verdade – que se esvaziou – e uma vontade de
saber - que se constituiu na vontade de conhecer. Assim, a realidade no entendimento
filosófico clássico de apontar a verdade das coisas não é utilizada em nosso artigo.
Discutimos outra realidade. Em especial, outra maneira de entender a realidade.

45
Denominamos a realidade constituída na Educação Matemática como: uso
pedagógico da realidade. Assim, analisamos as convocações, as regularidades, as
normatividades em torno de um uso pedagógico, acreditando que a realidade que é
produzida discursivamente no campo referido solicita, convida, promete um uso que
seja significativo, que contextualize, que esteja em todos os lugares.

Precisamos esclarecer que o uso pedagógico da realidade é prescrito, regulado


pela rede discursiva da Educação Matemática enquanto que o saber-realidade é cunhado
por nós como os saberes, as economias, os investimentos, as produções que emergiram
com esse saber, mas que o regulam, atualizam, o colocam – a todo instante – na rede
discursiva em Educação Matemática. Com isso, fizemos uso dessas duas maneiras de
entender a realidade atentando para como se tem narrado, se tem regulado um uso que é
pedagógico e que solicita a realidade e o saber que instaura um plano de entendimentos
em torno do uso pedagógico da realidade. A saber: o saber-realidade.

Concomitantemente, o saber-realidade emergiu desse lugar filosófico da


verdade e do conhecimento. Entendemos que não apenas a verdade e o conhecimento,
bem como a ciência, mas o saber-realidade são efeitos de práticas discursivas. Em
especial, para nosso artigo, olhamos para as práticas pedagógicas de educadores
matemáticos tomados como referência para o campo que investiram em estudos para
pensar uma matemática que se destituísse dos seus formalismos, da academia e saísse –
em palavras nietzschianas – do “columbário romano” e pudesse circular por todas as
tribos, todas as etnias, todas as formas de matematizar.

Uma vez que não é nosso objetivo inserir valores – pois sua inserção conduziria
a uma verdade -, mas apenas (re)pensar o cenário da Educação Matemática
contemporânea por um viés filosófico que recusa tomar o saber como algo neutro,
natural, universal. Assumindo que não apenas a filosofia – e os autores escolhidos nesta
pesquisa – mas o saber-realidade criam maneiras de olhar, de interpretar e de estar no
mundo.

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49
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2013.

50
3. O SABER-REALIDADE E SUAS PRESCRIÇÕES:
SOBRE PROMESSAS, PRÁTICAS DOCENTES, ...

Todas as coisas que vivem durante muito tempo, a pouco e pouco se


impregnam de razão, a tal ponto, que a origem, proveniente da sem-razão,
se torna desse modo inverossímil. Não soará como paradoxal e injurioso
para o sentido toda vez que lhe mostrarmos a história fiel de uma origem?
No fundo, não se contradiz continuamente o bom historiador?
(NIETZSCHE, 2008, p. 17, grifo do autor)18.

18
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. Mário D. Ferreira
Santos - Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

51
ARTIGO 2

3.1 - O USO PEDAGÓGICO DA REALIDADE NOS CURRÍCULOS


ESCOLARES DE MATEMÁTICA: PRESCREVENDO
NORMATIVIDADES PARA A DOCÊNCIA

Gilberto Silva dos Santos

Samuel Edmundo Lopez Bello

RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar as prescrições, as normatividades do


uso pedagógico da realidade em seis documentos orientadores tanto na esfera nacional
quanto na regional. Ao analisarmos os documentos, escolhermos excertos semelhantes
que compuseram três prescrições: Buscar a contextualização da matemática; buscar a
matemática presente no cotidiano e realidade constituinte de práticas de ensino-
aprendizagem. São a partir dessas três prescrições que apontamos o caráter normativo e
regulador do insistente exercício de convocar o docente a usar pedagogicamente o
entendimento de realidade. Dessa maneira, constituímos uma analítica – a partir da
análise discursiva de Michel Foucault - que complementa os entendimentos do conceito
de saber-realidade não apenas enquanto forma de matematizar ou de olhar a matemática
pelas distintas culturas, mas como as regularidades, as prescrições, as promessas que o
discurso pedagógico da Educação Matemática investe, produz a partir do uso da
realidade.

PALAVRAS-CHAVE: Uso pedagógico da realidade. Prescrições. Normatividades.


Saber-realidade. Educação Matemática.

DOS MOVIMENTOS INICIAIS QUE CONSTITUIRAM A PESQUISA

Há todo um movimento prescritivo na Educação Matemática contemporânea e


nos currículos escolares a partir do saber-realidade. São práticas pedagógicas que
legitimam a pensá-lo pelo que está no mundo, pois na vida, “as situações que
enfrentamos são, muitas vezes, muito mais complexas do que os simples e precisos
exercícios de matemática que apresentamos a nossos alunos [...]” (MACHADO, 2013,
p. 13). Segundo Bello (2012), há todo um processo de escolarização da vida pela

52
matemática. Conforme Pinho (2013), tomar a escola como um desvio cultural é, de
alguma forma, pensá-la como um processo excluído do mundo. Dessa forma, se
apresenta uma discursividade que apela, prescreve, convoca, orienta formas de trabalhar
a Educação Matemática contemporânea pelo viés do que institucionalizou como
realidade.

O conceito de saber-realidade é cunhado a partir da análise dos investimentos,


das pesquisas realizadas no âmbito da Educação Matemática que produziram os
entendimentos acerca do uso pedagógico da realidade. Assim, ao analisarmos as
produções do discurso etnomatemático, observamos a construção discursiva do
entendimento de realidade a partir de duas formas: a primeira que convoca a pensá-la a
partir das distintas formas de culturas – que denominamos de viés cultural e a segunda,
que dá conta das diferentes formas de matematizar – por nós nomeada como viés
epistemológico. Seja pelo viés cultural ou epistemológico, os discursos
etnomatemáticos apresentaram, convocaram o uso pedagógico da realidade nas ações
docentes contemporâneas.

Portanto, o objetivo deste artigo é analisar de que maneira o uso pedagógico


da realidade prescreve as práticas pedagógicas em Educação Matemática
entendendo que ao falar, incitar, convocá-lo pelas práticas discursivas se está
produzindo, constituindo a prática pedagógica. Dizendo de outra maneira, como essas
prescrições ao ocuparem lugares específicos de poder vão dizer, produzir e valorar
maneiras de ser e agir da docência contemporânea.

De cunho pós-estruturalista, pensaremos com Michel Foucault e autores afins as


formas pelas quais o uso pedagógico da realidade é proposto nos documentos oficiais
entendendo que o uso da realidade não é algo dado, natural, mas que houve uma
produção para que o conceito pudesse ocupar um lugar de saber. Menos na tentativa de
fixar um lugar docente, menos na discussão acerca de como se é docente na
contemporaneidade e mais nas prescrições, convocações, vontades por ocupar o lugar
de docente que constitui o uso pedagógico da realidade em suas ações docentes.

A CONDIÇÃO NORMATIVA DO SABER: SABER-REALIDADE E AS


PRESCRIÇÕES

Para estudar os saberes que constituíram o homem moderno, Foucault analisou


toda uma época – tanto o modernismo quanto o período anterior a ele – que dava

53
condições para constituir o homem moderno (MACHADO, 2007). Nessa análise
emergem as condições, os cuidados e as formas sobre as quais se pode ou não falar
sobre o homem e, assim, produzir efeitos de verdade a partir das práticas discursivas.

Entendemos com Foucault, que o discurso enquanto prática regula, controla e


institui maneiras de pensar em detrimento a outras. Com isso, o discurso prescreve e
orienta as condutas e as formas de agir dos sujeitos que se inclinam a ele. Gostaríamos
de destacar que aquilo que é tomado como verdadeiro, que está na ordem discursiva da
contemporaneidade, só ocupa o lugar de verdade porque atrás de suas certezas existe um
plano de veridicção (SANTOS, BELLO, 2015) que vai constituindo-o como legítimo e
produzindo efeitos de verdade. Tais efeitos vão incidir nas condutas dos sujeitos e nas
formas aceitas de se narrar e se produzir.

Porém, quando pensamos com Foucault, o saber deixa de ter seu caráter neutro,
naturalizado sendo atravessamento pelas relações de poder. Assim, pode-se perceber
“[...] o balizamento dos mecanismos de poder no interior dos próprios discursos
científicos: à qual regra somos obrigados a obedecer, em uma certa época, quando se
quer ter um discurso científico sobre a vida, sobre a história natural, sobre a economia
política?” (FOUCAULT, 2012, p. 221). Ao pensar quais são as regras que devemos
seguir; quais os mecanismos que somos obrigados a obedecer para que tenhamos certa
produção científica, percebe-se o caráter regrado e normativo do saber. Engendrado nas
relações de poder, “[...] a que se deve obedecer, a que coação estamos submetidos,
como, de um discurso a outro, de um modo a outro, se produzem efeitos de poder?”
(Ibid., p. 221-222).

Percebemos que os efeitos de poder vão incidir sobre os corpos, sobre os


sujeitos. A maneira como somos obrigados, coagidos, regulados, normatizados
produzem as formas de ser e agir que narramos e produzimos. Assim, os saberes – em
sua relação com o poder – produzem e regulam as formas pelas quais nos inclinamos,
nos subjetivamos. Quando problematizamos um saber estamos emaranhados nas
relações de poder e, portanto, tentando analisar quais as regulações, as prescrições, as
normatividades que o saber produz e conduz inclinando-nos a certas subjetividades e
outras não. É sobre esse caráter normativo do saber – que aqui é pensando a partir do
uso pedagógico da realidade – que estamos dispostos a analisar no presente artigo. Com
outras palavras, quais as coações, as regulações, as prescrições, as orientações em
relação ao uso pedagógico da realidade? De que maneira as práticas pedagógicas estão

54
regulando e controlando as subjetividades docentes em relação ao uso pedagógico da
realidade.

SOBRE OS DOCUMENTOS ESCOLHIDOS

A Educação Matemática ao produzir entendimentos acerca do uso pedagógico


da realidade constituiu efeitos de verdade, pois vem prescrevendo esse uso como algo a
ser realizado. Logo, o docente vai se constituído, se inclinado, se assujeitado a pensar
sua prática pedagógica pelo uso da realidade.

Com as primeiras produções, convocações e – mais do que isso – permissões


para falar sobre a realidade enquanto discurso que produz efeitos de verdade para o
campo da matemática, elaboraram-se documentos, livros, teorias que vão inclinando os
docentes a enxergar o uso pedagógico da realidade em suas práticas. Sabemos que não
foi do nada que esse uso emergiu no campo discursivo da Educação Matemática. Uma
vez dada essa emergência, instaura-se um espaço que acolhe, divulga esse saber e,
enfim, produz efeitos que atingem àqueles que educam matematicamente.
Pesquisadores-professores da área da Educação Matemática são convidados a pensar e
produzir materiais que pudessem prescrever, orientar, dizer sobre as formas de pensar as
práticas pedagógicas contemporâneas. São para esses documentos, atentos a essas
prescrições que vamos direcionar nosso olhar.

Para desenvolver o artigo, escolhemos documentos a nível nacional e regional


produzidos a partir do início dos anos 2000 entendendo que o uso pedagógico da
realidade começa a ser produzido e visibilizado - principalmente - na última década do
século anterior. Assim, selecionamos seis documentos que apresentam prescrições sobre
a docência contemporânea e são eles:

1º - Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da Educação


Básica – MEC, 2001.

2º - PCN+ Ensino Médio: Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros


Curriculares Nacionais - MEC, 2002;

3º - As Orientações Curriculares Para o Ensino Médio – volume 2 – MEC, 2006;

4º - Matriz de Referência para o ENEM – MEC, 2009;

5º - As Lições do Rio Grande – SEDUC-RS, 2009;

55
6º - Proposta Pedagógica Para o Ensino Médio Politécnico e Educação Profissional
Integrada ao Ensino Médio – SEDUC-RS, 2011;

Os seis documentos analisados não são produções isoladas, mas constituem


juntamente com regimes de avaliações, formas de normatizar a docência na Educação
Matemática, assim como, conduzem as questões curriculares. Sobre as discussões em
relação às avaliações em larga escala, indicamos as discussões de Bello (2012). Por fim,
cabe destacar que não estamos privilegiando os documentos em relação às avaliações,
mas apenas problematizando que são eles que, inicialmente, vão prescrevendo e
inventando modelos, formas estanques, representações da vontade de constituir a
docência contemporânea através do uso pedagógico da realidade. Inclusive convocando
pesquisadores a falarem sobre esse material no desejo de ainda dizer, de mais uma vez
prescrever, de inventar alguma forma-modelo para as ações docentes. Feitas essas
considerações, apresentamos os seis materiais que constituem a materialidade do artigo.
As orientações curriculares para o Ensino Médio (2006) desenvolvido pelo
Ministério da Educação (MEC) vão tratar de três aspectos: a escolha de conteúdos; a
forma de trabalhar os conteúdos; o projeto pedagógico junto com a organização
curricular. Já as Lições do Rio Grande19, apresentadas em 2009 pela Secretaria de
Educação do Estado do Rio Grande do Sul (SEDUC/RS) visam prescrever os caminhos
para pensar o currículo da Educação Básica20 gaúcha.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de Professores da
Educação Básica (MEC, 2001) discutem as estruturas dos cursos de licenciatura,
pensando não apenas os currículos, mas o perfil docente na contemporaneidade.
A matriz de referência para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)
desenvolvido pelo MEC, 2009, não apenas discute o que será desenvolvido na prova,
mas dialogam com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+)21, por exemplo, para
legitimar encontros entre as áreas do conhecimento. Assim, a partir do novo ENEM
como instrumento para ingressar no Ensino Superior, as prescrições desse documento

19
O documento está dividido nas seguintes áreas: Linguagens Códigos e suas Tecnologias: Língua
Portuguesa, Literatura, Língua Estrangeira Moderna (Inglês e Espanhol), Educação Física e Arte;
Matemática e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias: Biologia, Física e Química;
Ciências Humanas e suas Tecnologias: História, Geografia, Sociologia e Filosofia.
20
Para essa pesquisa, denomina-se Educação Básica as séries/anos finais do Ensino Fundamental e o
Ensino Médio.
21
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+) a partir de agora serão utilizados na pesquisa apenas como
PCN+.

56
vão compondo e (re)estruturando as formas de pensar o currículo, as ações docentes e a
escola na esfera da Educação Básica22.
O Ensino Médio Politécnico “tem em sua concepção a base na dimensão
politécnica, constituindo-se no aprofundamento da articulação das áreas de
conhecimentos e suas tecnologias [...]” e com as dimensões de Trabalho, Tecnologia,
Cultura e Ciência entendendo que a “construção de conhecimento embasam e
promovem a inserção social da cidadania” (RIO GRANDE DO SUL, 2011, p. 10).
Por fim, os PCN+ desenvolvido pelo MEC no ano de 2002 trazem a discussão
acerca da reformulação do Ensino Médio. Entre as propostas de mudança, estão as
organizações das áreas do conhecimento, bem como suas articulações. Dessa forma,
será analisado o documento que versa sobre a Ciência da Natureza, Matemática e suas
tecnologias.

Ressaltamos que os documentos analisados tomam o uso pedagógico da


realidade como dado e partem dele para constituir suas prescrições. O convocar a
realidade seja ela pelo todo pensando o interdisciplinar; seja através da psicologia a
partir de situações da vida no dia-a-dia tomada como experiência; seja pela ação do
indivíduo no mundo, não se questiona a inserção desse uso como produção, criação ou
investimento de pesquisadores, mas simplesmente é naturalizado como constituindo a
norma da docência contemporânea. Assim, sem perceber, nos assujeitamos ao saber-
realidade sem tencionar os investimentos, a dedicação e todo o esforço necessário para
que o uso pedagógico da realidade ocupe um lugar de destaque na Educação
Matemática. Como consequência, os documentos fazem uso desse conhecimento
tomando-o como verdade. Uma vez feito isso, restam apenas os efeitos que essa verdade
vai produzindo à constituição docente.

O que o presente artigo, pretende então, é descrever como o saber-realidade –


através do uso pedagógico da realidade - prescreve, normatiza, regula as ações docentes
da Educação Matemática contemporânea através dos documentos analisados. Ao
direcionar o olhar de pesquisa para os documentos contemporâneos, percebemos
prescrições familiares a partir dos excertos selecionados. São orientações, maneiras de
propor, de identificar a docência que se aproximam. Através de nossa análise, surgiram

22
Aqui, percebe-se um movimento acerca da organização curricular em relação às políticas públicas. Ao
instituir o ENEM como acesso ao Ensino Superior, se legitima que suas orientações “ensinem” os
docentes da Educação Básica a organizar suas ações de acordo com as necessidades de uma prova. Num
insistente exercício de universalizar o ensino do país.

57
três prescrições que compõem os elementos centrais de nossa discussão e serão
apresentadas a seguir.

PRESCRIÇÃO 1: BUSCAR A CONTEXTUALIZAÇÃO DA MATEMÁTICA

[...] com a necessidade com que uma árvore tem seus frutos, nascem em nós
nossas ideias, nossos valores, nossos sins e nãos e ses e quês – todos relacionados
e relativos uns aos outros, e testemunhas de uma vontade, uma saúde, um terreno,
um sol. – Se vocês gostarão desses nossos frutos? – Mas que importa isso às
árvores! Que importa isso a nós, filósofos!...(NIETZSCHE, 2009, p.8)
Essa prescrição versa sobre a contextualização. São os dizeres, as formas que os
documentos apresentam aos docentes no intuito de constituir modos de ver e dizer,
maneiras de pensar as ações pedagógicas. Produzindo uma vontade por contextualizar...

Aprender Matemática de uma forma contextualizada, integrada e relacionada a outros


conhecimentos traz em si o desenvolvimento de competências e habilidades que são
essencialmente formadoras, à medida que instrumentalizam e estruturam o pensamento
do aluno, capacitando-o para compreender e interpretar situações, para se apropriar de
linguagens específicas, argumentar, analisar e avaliar, tirar conclusões próprias, tomar
decisões, generalizar [...] (BRASIL, 2002, p. 12).

A normatividade do uso pedagógico da realidade circula pelos documentos à


medida que não apenas o contextualizar, mas o exercício interdisciplinar de pensar a
matemática vai formulando, elaborando efeitos de verdade no âmbito das práticas
docentes. Mais do que isso, vai se instituindo um utilitarismo da Educação Matemática
propondo utilizá-la em todas as “ações necessárias à sua formação”.

Contextualizar vai surgindo para se desconstruir a forma tradicional de ser


professor. Os documentos não aceitam pensar a matemática pelo viés da abstração,
sendo desvinculada da vida oferecendo outro olhar para ela. Problematizando a vida de
todos e de cada um pelas ferramentas do seu conhecimento. Aqui – vale destacar que –
conhecer quer dizer estar preparado para instrumentalizar seus saberes matemáticos em
prol de suas ações cotidianas, modificando sua realidade. Em outras palavras,
transformando sua vida.

Foucault ao supor

58
[...] mas sem ter certeza, que não há sociedade onde não existam narrativas maiores
que se contam, se repetem e se fazem variar; fórmulas, textos, conjuntos ritualizados
de discursos que se narram, conforme circunstâncias bem determinadas; coisas ditas
uma vez e que se conservam, porque nelas se imagina haver algo como um segredo
ou uma riqueza (2012, p. 21),
nos possibilita pensar sobre as narrativas, que dizem, repetem e se fazem variar, mas
que produzem uma sensação de segredo, de riqueza no saber-realidade. Vão compondo-
se verdades e desejos para constituir uma docência que desenvolva essa noção de
procurar, explorar a matemática e seu ensino através da realidade, do mundo.

Assim, as prescrições em Educação Matemática conduzem a olhares,


conhecimentos, lugares em que a matemática está ou pode ser vista. Instâncias em que
ela aparece e como pode ser trabalhada. Na tentativa de levar o mundo para a escola,
para os estudos de matemática.

Representação e comunicação, que envolvem a leitura, a interpretação e a produção de


textos nas diversas linguagens e formas textuais características dessa área do
conhecimento;
Investigação e compreensão, competência marcada pela capacidade de enfrentamento e
resolução de situações-problema, utilização dos conceitos e procedimentos peculiares
do fazer e pensar das ciências;
Contextualização das ciências no âmbito sócio-cultural, na forma de análise crítica das
ideias e dos recursos da área e das questões do mundo que podem ser respondidas ou
transformadas por meio do pensar e do conhecimento científico (BRASIL, 2002, p.
113).

Os documentos prescrevem a forma como o contextualizar precisa ser elaborado.


Problemas como: Mariana tinha 20 melancias e comeu 10. Quantas melancias Mariana
ainda não comeu? Não estão na ordem do que pode ser dito e ser feito, pois conforme o
uso pedagógico da realidade, exercícios desse tipo apenas atentam para a identificação
de uma operação e menos para a discussão de como os saberes matemáticos instituem
modos de ser e agir na contemporaneidade. O que está sendo analisado nessas
convocações é a forma como o que pode ser dito constitui a prática pedagógica em
Educação Matemática. Assim, as orientações ditam, valorizam certas práticas em
detrimento a outras.

59
A contextualização não pode ser feita de maneira ingênua, visto que ela será
fundamental para as aprendizagens a serem realizadas – o professor precisa antecipar os
conteúdos que são objetos de aprendizagem. Em outras palavras, a contextualização
aparece não como uma forma de “ilustrar” o enunciado de um problema, mas como uma
maneira de dar sentido ao conhecimento matemático na escola (BRASIL, 2006, p. 83).

Assim, o problema apresentado acima não está na ordem do que os documentos


prescrevem por contextualizar. A maneira aceita de desenvolver a ação desejada
necessita de dois momentos: o primeiro que é antecipar os conteúdos que serão
desenvolvidos e o segundo que é buscar situações que façam sentido para o discente.
Mas os documentos versam sobre como o docente pode constituir, fabricar essas
situações que fazem sentido?

Mas, antes de tudo, deve ter como prioridade o estudo de um tema que seja de interesse
dos alunos [...] São situações a serem trabalhadas sob uma visão interdisciplinar,
procurando-se relacionar conteúdos escolares com assuntos do quotidiano dos
estudantes e enfatizar aspectos da comunidade, da escola, do meio ambiente, da
família, da etnia, pluriculturais, etc. (BRASIL, 2006, p. 85, grifo nosso).

Se for do interesse do aluno, a contextualização terá seu sentido legitimado. O


caminho descrito pelo material convoca o docente a interar-se no meio em que trabalha,
conhecendo e compondo sua ação a partir do que é feito, dito, tramado pela
comunidade, pelo social, pelo contexto da escola e principalmente, pelo que é
interessante, pelo que provoca, instiga o discente.

A verdade da contextualização vai sendo usada. Nos escritos foucaultianos, falar


do contexto, falar do espaço socio-cultural é, sobretudo, assumir uma microfísica do
poder23 (FOUCAULT, 2012a). A contextualização convoca o professor a olhar a
comunidade em que sua escola, sua instituição está inserida. Segundo os documentos, é
tarefa do docente em parceria com a escola, constituir essas informações, esses olhares
acerca do entorno da escola (re)fazendo suas práticas pedagógicas no desejo de dialogar
com o que extrapola os muros da escola.

23
Foucault (2012a), já num exercício genealógico, pensa o poder como relações. Relações que se dão no
corpo e que pertencem a um local, a uma cultura, a uma região. Assim, se um problema for emergente em
duas culturas distintas, então as soluções, os desafios, as lutas para pensá-lo serão diferentes, pois a forma
como cada grupo problematizará é local e está em dado momento histórico, por isso que em outro
momento histórico o pensar a docência em Educação Matemática – por exemplo – seria outro.

60
A contextualização é a abordagem para realizar a já mencionada, indispensável e difícil
tarefa de cruzar a lógica das competências com a lógica dos objetos de aprendizagem.
Para que o conhecimento constitua competência e seja mobilizado na compreensão de
uma situação ou na solução de um problema, é preciso que sua aprendizagem esteja
referida a fatos da vida do aluno, a seu mundo imediato, ao mundo remoto que a
comunicação tornou próximo ou ao mundo virtual cujos avatares têm existência real
para quem participa de sua lógica (RIO GRANDE DO SUL, 2009, p. 22, grifo nosso).

Prescrever o contexto como forma de pensar a docência contemporânea


contribui para efetivar a lógica das competências. Entendemos – a partir dos
documentos – que ser competente implica desenvolver habilidades, saber usar
ferramentas (no caso, os saberes matemáticos como utensílios necessários para
transformar a realidade) que não apenas capacitem, mas que contribuam com a vivência
de cada estudante. Que as habilidades e competências sejam utilizadas em seu futuro,
em suas funções profissionais.

Mas os documentos mais do que apresentar a contextualização, discutem


maneiras de pensar e agir o contextualizar nas ações docentes. Enquanto algumas
normativas versam sobre a resolução de problemas,

A contextualização pode ser feita por meio da resolução de problemas, mas aqui é
preciso estar atento aos problemas “fechados”, porque esses pouco incentivam o
desenvolvimento de habilidades (BRASIL, 2006, P. 83).

outras consideram o currículo como o lugar legítimo para constituir a contextualização,


prescrevendo que não é apenas no âmbito da docência que ela deve ocorrer, mas no
coletivo de práticas curriculares que constituem a escola.

[...] o currículo é concebido como o conjunto das relações desafiadoras das capacidades
de todos, que se propõe a resgatar o sentido da escola como espaço de desenvolvimento
e aprendizagem, dando sentido para o mundo real, concreto, percebido pelos alunos e
alunas. Conteúdos são organizados a partir da realidade vivida pelos alunos e alunas e
da necessidade de compreensão desta realidade, do entendimento do mundo (RIO
GRANDE DO SUL, 2011, p. 15).

Observa-se que ao mesmo tempo em que a contextualização aparece como


natural no campo da Educação Matemática, há uma prescrição que ensina, localiza,

61
viabiliza as maneiras de discutir e inseri-la na docência contemporânea. Os documentos
apresentam o currículo como instrumento composto dos elementos necessários à
contextualização. Assim, a escola vai elaborando os enredos que permitem convocar a
realidade do outro a entrar e permanecer na escola. Porém, observa-se que ao mesmo
tempo em que tais prescrições usam pedagogicamente a realidade não é a partir do
entendimento de formas distintas de matematizar, mas sim de identificar a matemática
nas práticas ditas não escolares.

[...] o currículo conecta a escola com o contexto, seja o imediato de seu entorno
sociocultural, seja o mais vasto do País e do mundo. Se currículo é cultura social,
científica, cultural, por mais árido que um conteúdo possa parecer à primeira vista,
sempre poderá ser conectado com um fato ou acontecimento significativo, passado
ou presente. Sempre poderá ser referido a um aspecto da realidade, próxima ou distante,
vivida pelo aluno (RIO GRANDE DO SUL, 2009, p. 13, grifo nosso).

Prescreve-se que o conhecimento possa se conectar com situações significativas.


Que elas sejam reconhecidas pelos estudantes, pela comunidade e que a matemática
pertença ao mundo. O investimento necessário para que o uso pedagógico da realidade
seja aceito e apareça nas discussões no campo da Educação Matemática é tão caro
quanto o investimento platônico/aristotélico de pensar a matemática como algo neutro,
universal. Acreditamos que o contemporâneo prescreve e normatiza uma matemática
que esteja no outro extremo de uma matemática tradicional: o extremo étnico, social,
das multiplicidades. Mas percebe-se um estranhamento, pois ao analisar os documentos
observamos um processo similar para esquecer, silenciar, apagar todas as produções
necessárias para que o saber-realidade fosse constituído. Aliás, continua-se instituindo
que o verdadeiro não tem sobrenome, sempre esteve a espera do homem que durante
toda a sua existência vem (des)cobrindo – apenas e insistentemente – as verdadeiras
verdades.

O currículo é um recorte da cultura científica, linguística e artística da sociedade, ou


seja, o currículo é cultura. Os frequentes esforços de sair da escola, buscando a
“verdadeira cultura”, têm efeitos devastadores: estiola e resseca o currículo, tira-lhe a
vitalidade, torna-o aborrecido e desmotivador, um verdadeiro “zumbi” pedagógico (RIO
GRANDE DO SUL, 2009, p. 18, grifo nosso).

62
A prescrição é clara: não precisamos sair da escola para (re)conhecê-la Aliás,
cuidado, pois a escola faz parte do mundo. E a matemática também. A ideia é
aproximar, convocar esses locais a dialogarem. Mundo, escola e matemática: a
contextualização está aí para vocês conversarem!

Por fim, o contextualizar vai convocando/afirmando a constituição do uso


pedagógico da realidade. Inserir um significado, sair do conhecimento abstrato e
procurar aplicações são normativas dos documentos. A vontade de contextualizar - ao
ponto do que e quem pode dizer – prescreve não apenas o que deve, mas como pode ser
feito, pois

A esse conjunto de elementos, formados de maneira regular por uma prática


discursiva e indispensável à constituição de uma ciência, apesar de não se
destinarem necessariamente a lhe dar lugar, pode-se chamar saber (FOUCAULT,
2014, p. 219).
São esses conjuntos de elementos que constituem práticas discursiva para
compor, constituir as formas de se pensar e dizer as ações docentes. Acreditamos que
esse conjunto de regularidades, de intenções, de possibilidades torna o contextualizar
um dos elementos que constituem um saber; esse que cunhamos de saber-realidade. Mas
não obstante ao dizer, os documentos investem em apresentar os lugares, as direções por
onde transita – se assim puder ser dita – a matemática no mundo.

PRESCRIÇÃO 2: BUSCAR A MATEMÁTICA PRESENTE NO COTIDIANO

Na medida em que sempre, desde que existem homens, houve também rebanhos de
homens [...] e sempre muitos que obedeceram, em relação ao pequeno número dos
que mandaram – considerando, portanto, que a obediência foi até agora a coisa
mais longamente exercitada e cultivada entre os homens, é justo supor que via de
regra é agora inata em cada um a necessidade de obedecer, como uma espécie de
consciência formal que diz: “você deve absolutamente fazer isso, e absolutamente
se abster daquilo”, em suma, “você deve” (NIETZSCHE, 2005, p. 85, aspas do
autor).
O movimento é pela busca. Instale o GPS e siga a multidão. Logo será a sua vez
de dizer, prescrever, comentar por onde ela está. Os lugares, os usos, as culturas, as
formas. Enfim, todos os percursos nos quais a matemática pode percorrer e estar
presente. Não só enquanto materialidade, mas enquanto leitura, interpretação, valoração.

63
A próxima prescrição apresenta algumas maneiras de percebê-la pelo dia-a-dia no
exercício – incessante – de procurá-la em todos os lugares.

Em nossa sociedade, o conhecimento matemático é necessário em uma grande


diversidade de situações, como apoio a outras áreas do conhecimento, como
instrumento para lidar com situações da vida cotidiana ou, ainda, como forma de
desenvolver habilidades de pensamento (BRASIL, 2002, p. 111).

A prescrição de pensar a matemática em situações diversas institui a convocação


por procurá-la em todos os lugares. É a atualização da “matemática está em tudo”. As
práticas discursivas vão tramando e sonhando com a identificação da matemática com
as situações ditas mundanas: fazer compras, negociar com amigos, utilizar
conscientemente os recursos naturais, interpretar tabelas e gráficos, etc. O conhecimento
matemático vai sendo apresentado como responsável e indispensável na
instrumentalização não apenas para as habilidades, mas as necessidades de se viver em
sociedade.

O convite vai orientando em que partes do mundo o docente pode buscar a


matemática. Observa-se que o exercício está posto, prescrito para o docente: é ele que
precisa enxergar a matemática em todos os lugares para, em seguida, constituir suas
práticas na tentativa de apresentar esses lugares para seus alunos. Assim, as orientações
convidam os docentes a problematizarem em que lugares, sob quais cuidados e de que
formas a matemática vai sendo apresentada em suas vidas, em suas escolas para compor
a vontade de contextualizar, a vontade de estar em todos os lugares.

Reconhecer e utilizar símbolos, códigos e nomenclaturas da linguagem matemática;


por exemplo, ao ler embalagens de produtos, manuais técnicos, textos de jornais ou
outras comunicações, compreender o significado de dados apresentados por meio de
porcentagens, escritas numéricas, potências de dez, variáveis em fórmulas (BRASIL,
2002, p. 114, grifo nosso).

A matemática vai sendo pensada enquanto linguagem não apenas para afirmar
que ela possui códigos e formas de uso específicos, mas para o entendimento de que
com ela é possível compreender e fazer leituras do mundo, bem como modificá-lo.
Assim, enquanto linguagem, os documentos legitimam uma matemática pertencente ao
mundo. Mais do que isso, é no âmbito da linguagem que se pode produzir o
entendimento de uma matemática étnica e social, pois cada grupo cria, fabula símbolos,

64
códigos e nomenclaturas para não apenas se relacionar, mas na vontade de se
identificar, se legitimar e constituir distintas formas de matematizar.

Com isso, podemos pensar que as promessas do uso pedagógico da realidade nos
documentos aproximam-se das discussões iniciais sobre a produção de uma matemática
étnica. Não podemos esquecer, porém, que mesmo que existam aproximações, os
documentos versam por prescrições claras e objetivas e, por fim, percebe-se que o
espaço para produzir outras formas de matematizar não é convocado no material uma
vez que a conceituação de sociedade, pelos documentos, convoca um modelo de
sociedade capitalista, ocidental. Logo, por mais que o étnico apareça no material
analisado, ele é pensado para dar conta das distintas formas ou estruturas inseridas no
mesmo modelo social. Portanto, não observamos espaços para – por exemplo – a
educação indígena nos documentos analisados.

Destacamos que o entendimento de realidade, produzido discursivamente,


pretende dar conta de todas as formas culturais, inclusive a indígena. Mas, acreditamos
que sua lógica ainda esteja pautada em um sonho platônico/aristotélico de tudo
descrever apontando para o uso da realidade como maneira de regular todos a
participarem de uma mesma escola, centrada no mesmo modelo, guiada pelo mesmo
currículo, vigiada pela mesma estrutura.

Outro elemento importante da comunicação é a multiplicidade de formas textuais a que


os alunos devem ser expostos. Gráficos, tabelas, esquemas, desenhos, fórmulas, textos
jornalísticos, manuais técnicos, rótulos de embalagens, mapas são, na escola e fora dela,
as diferentes linguagens e representações que o aluno deve compreender para
argumentar e se posicionar frente a novas informações (BRASIL, 2002, p. 130, grifo
nosso).

Os documentos versam também para as distintas formas de ler e interpretar em


matemática. Apresentam as maneiras de leitura: do texto ou gráfico, atentos para
procurar a matemática em todos os lugares, em todas as formas de leitura.

Utilizar conhecimentos matemáticos em defesa dos direitos individuais como a


aquisição e venda de bens ou no desenvolvimento da capacidade de interpretação ou
análise de manuais técnicos de aparelhos e equipamentos (RIO GRANDE DO SUL,
2009, p. 43).

65
Um saber também é “o campo de coordenação e de subordinação dos
enunciados em que os conceitos aparecem, se definem, se aplicam e se transformam
[...]” (FOUCAULT, 2014, p. 220). Com isso, o saber-realidade vai constituindo-se a
partir de suas aparições, de suas definições e aplicações. Ao tratar do aparecimento da
matemática nas questões da defesa dos direitos individuais, os documentos oficiais
orientam as maneiras como a matemática pode ser vista no/pelo mundo.

As próximas orientações descritas pelos documentos iniciam o movimento de


produzir algumas formas docentes em relação a outras. Os lugares, os dizeres, os
valores, o contextualizar, o localizar a matemática no cotidiano do aluno, o significar o
ensino, são descritos como o percurso para se iniciar as orientações sobre a docência. A
partir de agora, as prescrições que pontuam, desenham, fabricam os docentes entram na
ordem do discurso. Aparecem nos documentos e compõem com as prescrições
anteriores, uma vontade de verdade; uma prática pedagógica constituída e constituinte
do uso pedagógico da realidade.

PRESCRIÇÃO 3: REALIDADE CONSTITUINTE DE PRÁTICAS DE ENSINO-


APRENDIZAGEM

O voraz desejo de conhecer jamais será saciado, conceitos, abstrações e


organizações infinitas nunca satisfarão homem algum enquanto imperar o exclusivo
apreço pela realidade, pela ordem, pela verdade e abstração da educação, dos
costumes, dos corpos, do direito, do Estado... Perpetuamente faminto, o homem
ficará a escavar e resolver antigas e remotas supostas raízes enquanto não
reconhecer que o conhecimento nada mais é que um dos artifícios da vida, e que
essa é feita também pelos desvios do engano, pelos disfarces do incerto e que, por
isso mesmo, é impossível escapar de estar envolto por simulacros, equívocos e
ilusões (HEUSER, 2010, p. 60).
Na resolução de problemas, o tratamento de situações complexas e diversificadas
oferece ao aluno a oportunidade de pensar por si mesmo, construir estratégias de
resolução e argumentações, relacionar diferentes conhecimentos e, enfim, perseverar na
busca da solução. E, para isso, os desafios devem ser reais e fazer sentido (BRASIL,
2002, p. 113, grifo nosso).

66
Os documentos prescrevem e valorizam uma metodologia: a resolução de
problemas. Com ela, o docente produz situações para problematizar o real, os desafios
do cotidiano. Num enredo que desenha a docência, se escolhe um método – e não o
método - para colocá-lo em um lugar de poder. Ao eleger uma metodologia em
detrimento a outras, os documentos afirmam e inventam um lugar não apenas de saber,
mas de poder que insiste em convocar o docente para o caminho da docência pela
resolução de problemas. Não podemos esquecer que os primeiros investimentos do
saber-realidade convocam a pensar a resolução de problemas apontando que os
problemas que a comunidade resolve usam estratégias distintas daquelas apresentadas
pela escola.

Para alcançar os objetivos estabelecidos de promover as competências gerais e o


conhecimento de Matemática, a proposta dos PCNEM privilegia o tratamento de
situações problema, preferencialmente tomadas em contexto real (BRASIL, 2002, p.
129, grifo nosso).

O PCN traz a discussão da utilização do ensino por projetos24 nas aulas de


matemática bem como, dicas do que pode ser organizado na 1ª série/ano do Ensino
Médio. Ao organizar um material de levantamento de dados dos alunos da turma, o
professor de Matemática conseguiria conhecer, aprender as características, o que
interessa a cada estudante e o que pensam sobre o futuro. Consoante, o ensino por
projetos privilegia a resolução de problemas no rol não apenas da vivência dos
estudantes, mas da comunidade na qual o docente está inserido. Com isso, a resolução
de problemas dialoga com a vontade de contextualizar e procurar a matemática em
todos os lugares, pois é lá onde está a escola que surgem as reais necessidades de
(trans)formar a comunidade. E, portanto, o uso pedagógico da realidade vai sendo
convocado como uma forma de instituir ações docentes que produzam normatividades
em prol de uma matemática pelo mundo.

Acreditamos que o saber-realidade vai sendo constituindo não apenas no


percurso de (re)leituras, mas a partir dos entendimentos singulares dos educadores e
pesquisadores que escreveram os documentos analisados. Gostaríamos de pontuar o

24
Não podemos esquecer do Ensino Médio Politécnico proposto pela SEDUC/RS. Sua organização
privilegia espaços na escola para estudo e elaboração de projetos e, por isso, um ensino politécnico.
Percebe-se, outra vez, que os investimentos, as criações não são neutras, universais. Existem redes,
contornos, saberes, prescrições, desejos que vão organizando, disciplinando, fabulando ações; regimes de
verdade; subjetividades (FOUCAULT, 2013).

67
distanciamento que os primeiros entendimentos estão sendo (re)organizados para
compor o que os documentos orientam. Uma das esferas que não pode ser esquecida –
por nós – é a que versa por uma conduta, uma descrição nacional, no âmbito do governo
de todos e de cada um (FOUCAULT, 2014, 2010). Ou seja, saímos da lógica de um
governo provedor para um governo autorregulador.

A autorregulação vai dar conta da conduta dos corpos. Para isso, o governo em
suas inúmeras ações inventa, institui instrumentos, materiais, formas que vão não
apenas prescrever, mas regular a todos e a cada um no entendimento de um poder que
não é possuído, mas que se institui; que se ocupa (Foucault, 2012a). Os efeitos das
produções do governo dão conta de que todos e cada um possam regular e vigiar as
condutas. A lógica passa do governante ou das instituições que governam para o
governado: é na própria subjetividade que percebemos os regimes, os controles, os
disciplinamentos do poder tão invisível (DELEUZE, 2013), pois a contemporaneidade
mascara esses movimentos ao prescrever que somos nós – sujeitos – responsáveis por
todas essas condutas, essas possíveis formas de ser e agir.

Muito provavelmente, nessa primeira conversa, os alunos darão indícios sobre o que os
motiva, seus sonhos e expectativas em relação ao ensino médio. O professor pode
ampliar essa discussão incluindo aspectos que podem interessar à comunidade da
escola, como por exemplo: quais alunos trabalham? Em que profissões? Que profissões
buscam alcançar depois do ensino médio? O que fazem como lazer? Que esportes
praticam ou acompanham de perto? O que suas famílias esperam deles? Como tem sido
sua relação com a Matemática? O que gostam de ler? (BRASIL, 2002, p. 130, grifo
nosso).

Basta constituir um diagnóstico. Uma pesquisa conforme moldes do Instituto


Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresentando dados estatísticos, pois os
números constatam, comprovam e mensuram as verdades e são usados para governar a
todos e a cada um (BELLO; TRAVERSINI, 2011) – todos: os alunos; cada um: dos
professores -.

Não podemos esquecer que o discente vai criando suas verdades ao responder o
questionário, pois a escolha das palavras, a forma como o texto vai sendo apresentado já
inaugura o percurso composto entre aquilo que o aluno faz e aquilo que ele quer fazer e
mais do que isso, discursivamente, produz aquilo que se acredita ser.

68
Um saber é aquilo de que podemos falar em uma prática discursiva que se encontra
assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que irão adquirir
ou não um status científico (FOUCAULT, 2014, p. 219-220).
Assim, o saber-realidade vai se (re)constituindo com as formas, as
normatividades que os documentos trazem e as maneiras como eles fabricam as
docências em Educação Matemática. Essas maneiras orientam as escolhas docentes.

[...] os temas selecionados devem ter relevância científica e cultural. Isso significa que,
além das justificativas relativas às aplicações e à linguagem, sua importância está em
seu potencial explicativo, que permite ao aluno conhecer o mundo e desenvolver
sentidos estéticos e éticos em relação a fatos e questões desse mundo. (BRASIL, 2002,
p 120).

Há a prescrição para selecionar temas que possam ser justificados. Que sejam
úteis para a vida do aluno, que ele possa usá-lo como instrumento. Orienta-se o
professor a dizer como e em quais circunstâncias tais saberes serão utilizados. Por outro
lado, as escolhas devem privilegiar a vontade de compor sentidos (est)éticos pelo
estudante. Os documentos assumem que as formas como o discente vai compondo suas
relações com o mundo estão associadas às condições de interação mundo-matemática
proporcionadas pelo docente. Assim, segundo o documento, os sentidos (est)éticos dos
discentes serão compostos apenas quando o docente souber de que forma o estudante
possa compor algo para si a partir das intervenções não só da matemática, mas da
escola.

Talvez, possamos afirmar que a ética seja, enfim, mais voltada para o professor,
pois ele, enquanto profissional ético, precisa elaborar uma prática que seja estética não
apenas para si, mas para seus estudantes. Logo será (est)ético o conhecimento que puder
- de forma clara e objetiva - explicar, apresentar, representar, a verdade do mundo e por
assim dizer, ser instrumento para desenvolver sentidos "a fatos e questões do mundo".

Ao selecionar um tema, a forma de trabalho deve ser pensada de modo integrado à sua
escolha, evitando repetir o modelo curricular das listas de assuntos enfileirados. As
escolhas que serão feitas devem ter no horizonte o aluno de cada escola, daí a
necessidade de um olhar cuidadoso para esses jovens, indivíduos cognitivos, afetivos e
sociais, que possuem projetos de vida, histórias pessoais e escolares (Brasil, 2002, p.
120).

69
Aqui a prescrição convoca saberes de outros campos como a psicologia. O
documento solicita que os projetos de vida, que as maneiras como o discente percebe e
interage no mundo estejam não apenas compostos, mas conduzam, (trans)formem as
práticas docentes. E a vontade de verdade em colocar o docente no lugar de responsável
pelas interações mundo-matemática vão sendo conduzida pelos documentos. As
prescrições, as normas, as maneiras como a docência está sendo pensada no material de
análise, constituem maneiras de narrar, de convocar a docência.

Possivelmente não existem livros didáticos e laboratórios didáticos “perfeitamente


adequados” ou ideais que possam ser “adotados” para percursos tão variados, capazes
de atender a cada realidade escolar [...] até por isso, seria altamente recomendável que
cada escola produzisse novos materiais, com improvisações, com elementos de baixo
custo e, o que é mais fundamental, com a contribuição da comunidade escolar,
especialmente dos alunos (BRASIL, 2002, p. 136, grifo do documento).

Assim, cientes de que os materiais e os locais que a escola possui não


contemplam os arredores da escola, a contextualização sugerida pelos documentos
convidam os docentes a desenvolver instrumentos outros, de baixo custo, com a
participação da comunidade e dos alunos. Na vontade de configurar um material
singular, daquele local, daquela escola. Na tentativa de fazer o aluno enxergar-se nos
trabalhos, nos instrumentos da escola, os documentos convocam o professor a produzir
o seu material. Ao desenvolvê-lo, o docente estaria (re)atualizando as discussões
matemáticas num viés da comunidade escolar. Mas o professor aprendeu a elaborar esse
material? Segundo os documentos,

O professor não aprende a criar situações didáticas eficazes nas quais sua área de
conhecimento surja em contextos de interesse efetivo de seus estudantes. Sendo essa
herança histórica, não há dúvida de que tais deficiências estão hoje dificultando o
trabalho escolar e, portanto, demandam ações no próprio âmbito escolar, já que há
consenso de que a formação é mais eficaz quando inserida na realidade em que o
professor atua [...] (BRASIL, 2002, p. 140, grifo nosso).

Há consenso de que a formação é mais eficaz no local de trabalho do docente.


Aprendizagem local, diária, singular. Aqui surge a vontade pela composição docente,
pois ao mesmo tempo em que os documentos normatizam os modos de ser e agir do
docente, eles convocam o professor a ensaiar suas ações. A tentar, desenvolver,

70
desenhar maneiras de se constituir que são singulares, suas, múltiplas, mas que agregam
os sonhos, as histórias, os anseios e os medos dos seus discentes. Numa nítida vontade
de inventar uma docência a partir dos elementos que compõem a escola e que compõem
as orientações dos documentos oficiais.

Há um movimento. Há um espaço em que o docente pode se compor outro. Ao


mesmo tempo em que há apresentações, orientações, existem brechas, lugares em que
ele pode constituir sua docência como algo belo, estético para si (SANTOS; SANTOS,
2014).

Promover uma prática educativa que leve em conta as características dos alunos e de seu
meio social, seus temas e necessidades do mundo contemporâneo e os princípios,
prioridades e objetivos do projeto educativo e curricular (BRASIL, 2001, p. 42).

Ainda sobre a constituição docente, os documentos convocam e elegem


metodologias adequadas para aproximar a aprendizagem matemática do aluno, da
realidade dele e da escola. Da mesma forma que os PCN+ convocam para desenvolver a
Resolução de Problemas como metodologia, as Bases Curriculares para os Cursos de
Licenciatura prescrevem as situações-problema.

A aprendizagem deverá ser orientada pelo princípio metodológico geral, que pode ser
traduzido pela ação-reflexão-ação e que aponta a resolução de situações-problema como
uma das estratégias didáticas privilegiadas (BRASIL, 2001, p. 63).

Assim, a metodologia tanto adotada por um quanto pelo outro documento


privilegia o entendimento de acrescentar o uso pedagógico da realidade seja da escola,
do aluno às práticas docentes.

Em anos recentes, os estudos em educação matemática também têm posto em evidência,


como um caminho para se trabalhar a Matemática na escola, a idéia de modelagem
matemática, que pode ser entendida como a habilidade de transformar problemas da
realidade em problemas matemáticos e resolvê-los interpretando suas soluções na
linguagem do mundo real (BRASIL, 2006, p. 84).

A modelagem matemática também vai adquirindo espaço nos saberes docentes.


Os documentos apresentam seus entendimentos regulando essa metodologia às práticas
docentes. A modelagem também vai constituir uma discussão de uma situação-

71
problema, pois ela parte de um problema real para propor um modelo matemático que
possa descrever ou pensar formas para resolvê-lo.

O conceito de transposição didática25 também aparece intimamente ligado à idéia de


contextualização, e ajuda a compreender a dinâmica de produção e circulação dos
saberes que chegarão à escola e entrarão em nossas salas de aula. É na dinâmica de
contextualização/descontextualização que o aluno constrói conhecimento com
significado [...] (BRASIL, 2006, p. 83, grifos do documento).

A transposição didática é prescrita como um elemento capaz de articular


composições, pois ele é uma mescla entre o que pertence a escola e o que está fora dela.
Seria uma núpcia entre o exterior e o interior da escola. Nesse casamento, surge, então,
a vontade do exercício da plena cidadania por parte do aluno. Um direito constitucional
que vai reforçar o espaço que a contextualização adquire na Educação Matemática
contemporânea. A transposição seria uma forma de sair da sala de aula, de transpor os
conhecimentos da escola para o mundo. Diferente da resolução de problemas, a
transposição apenas leva a lógica da escola para fora dela.

[Ao desenvolver projetos, os professores] passarão a perceber a Matemática como uma


construção sócio-histórica, impregnada de valores que influenciam a vida humana,
aprenderão a valorizar o processo de criação do saber (BRASIL, 2006, p. 85).

Desenvolver as ações pedagógicas a partir de projetos vai adquirindo espaço nos


documentos. Com essa metodologia, o documento prescreve uma prática com olhares
outros que aproximam a matemática das demais áreas do conhecimento e acabam
produzindo narrativas que valorizam uma matemática que dialogue com todas as áreas;
que esteja em todos os lugares.

Cabe ao professor garantir a aprendizagem de seus alunos bem como a sua formação
como cidadãos capazes de atuar na realidade que os cerca, transformando-a (RIO
GRANDE DO SUL, 2009, p. 44).

As prescrições são legitimadas menos por serem postas como verdade e mais por
estarem ocupando um lugar distinto, de poder que produz um determinado saber. Por

25
O documento referido entende a transposição didática como uma associação entre a interna e a externa.
A primeira seriam as ações feitas dentro da escola, sejam as aulas, as práticas docentes, o currículo
constituído pela instituição. Já a externa seriam os livros didáticos, sites educativos e os próprios
documentos analisados que são as formas e as maneiras de pensar e legitimar as ações docentes que estão
externas à realidade escolar.

72
ocuparem um lugar nos documentos, (re)utilizam e produzem efeitos de verdade. Logo,
se as produções, as pesquisas no campo da Educação Matemática constituíram os
primeiros percursos do saber-realidade, os documentos ao prescreverem, servem como
manuais; como guias; como instrumentos capazes de validar o uso pedagógico da
realidade. Ao se constituir como um modelo, as orientações procuram instrumentalizar
o docente a propor e se sentir responsável por trazer discussões que convoquem o uso
pedagógico da realidade nas suas práticas pedagógicas.

[...] a arqueologia tem por objetivo descrever conceitualmente a formação dos


saberes, sejam eles científicos ou não, para estabelecer suas condições de existência,
e não de validade, considerando a verdade como uma produção histórica cuja análise
remete a suas regras de aparecimento, organização e transformação no nível do saber
(MACHADO, 2007, p. 166).
Assim, tanto a contextualização, como a busca da matemática pelo mundo e a
constituição docente pelos documentos apresentam a formação de um saber sobre a
docência. Ao prescrever, ditar e normatizar, o material constitui representações
docentes. Os documentos dão condições para fabricar subjetividades. Não está sendo
afirmado que as únicas formas de constituir a docência estão inseridas nesses
documentos, mas a força, o percurso da vontade de verdade sobre o uso pedagógico da
realidade está presente nos documentos analisados.

Compreender o desenvolvimento histórico da tecnologia associada a campos diversos


da Matemática, reconhecendo sua presença e implicações no mundo cotidiano, nas
relações sociais de cada época, nas transformações e na criação de novas necessidades,
nas condições de vida (BRASIL, 2002, p. 117-118).

O histórico não apenas da tecnologia, mas da matemática. Assim, assumindo que


a matemática está presente nas tecnologias e que os seus usos podem ser percebidos
pelos discentes, os documentos prescrevem que perceber a relação histórica das
tecnologias é, de alguma forma, observar a construção da matemática, suas nuances,
seus movimentos a partir da tecnologia que já seria uma aplicação diária de espaços
ocupados pela matemática.

Compreender a Matemática como parte integrante da cultura contemporânea, sendo


capaz de identificar sua presença nas manifestações artísticas ou literárias, teatrais ou
musicais, nas construções arquitetônicas ou na publicidade (BRASIL, 2002, p 118).

A prescrição, o cuidado de observar a matemática nos lugares em que


culturalmente ela não deveria estar. O movimento dos documentos é pela libertação da

73
matemática aos laboratórios, à escola, à ciência. No exercício de enxergá-la por todos os
lugares em que os discentes e os docentes possam ocupar. Uma matemática da e pela
vida. A vontade de enxergá-la por toda a parte.

Promover situações que contribuam para a melhoria das condições de vida da cidade
onde vive ou da preservação responsável do ambiente. Utilizar as ferramentas
matemáticas para analisar situações de seu entorno real e propor soluções, por exemplo,
analisando as dificuldades de transporte coletivo em seu bairro por meio de
levantamento estatístico, manuais técnicos de aparelhos e equipamentos, ou a
melhor forma de plantio de lavoura para subsistência de uma comunidade
(BRASIL, 2002, p. 119, grifo nosso).

A invenção da matemática como ferramenta na constituição de uma sociedade,


do viver coletivo. Através dos seus raciocínios, os parâmetros desejam que ela possa
servir para interferir, auxiliar na tomada de decisões em prol do coletivo, da sociedade
contemporânea. Que o discente seja atuante em sua comunidade e saiba aplicar os
estudos matemáticos aos problemas do seu entorno. Que a estatística sirva para perceber
– mensurar, constatar: matematicamente - as dificuldades, os déficits para que os
discentes possam interferir em suas comunidades auxiliando e constituindo formas de
solucionar problemas.

Se Foucault (2014, p. 220) pensa que “saber é, também, o espaço em que o


sujeito pode tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso”,
então os documentos ocupam esse lugar não apenas de falar, mas de proliferação dessa
fala. Da mesma forma, a realidade como objeto discursivo da Educação Matemática,
mais especificamente aqueles que versam sobre a docência. Assim, se constitui uma
forma científica de falar sobre o uso pedagógico da realidade.

Recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para elaboração de propostas de


intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a
diversidade sociocultural (BRASIL, 2009, p. 1).

Os usos estão “aquém de um conhecimento sistematizado” (VEIGA-NETO,


2011, p. 43). A noção de realidade que está sendo produzida discursivamente não está
na ordem de uma ciência ou sistematizada em um nível de conhecimento. Esses saberes
estão compondo, regulando normatividades à ação pedagógica em Educação
Matemática. Analogamente, essas normatividades estão produzindo os entendimentos

74
que o contemporâneo interpreta em relação ao uso pedagógico da realidade Dessa
maneira, podemos perceber que nos documentos a realidade é pensada como a vida de
cada aluno; como as situações cotidianas; como o local em que a escola está inserida.

[...] é a partir do conhecimento na sua forma mais contemporânea que se pode


compreender a realidade e a própria ciência no seu desenvolvimento histórico (RIO
GRANDE DO SUL, 2011, p. 17).

De tantas maneiras se pode falar em docência, mas o que os documentos


orientam, norteiam e , assim, valorizam é que a docência seja dita, constituída, fabricada
pelo uso pedagógico da realidade. Que a docência contemporânea valorize, invista,
acredite nos movimentos, nos modos, nas possibilidades de se constituir ações docentes
na e pela realidade.

Este é um tempo em que os meios de comunicação constroem sentidos e disputam a


atenção e a devoção da juventude, a escola precisa ser o lugar em que se aprende a
analisar, criticar, pesar argumentos e fazer escolhas. Isso requer que os conteúdos do
currículo sejam tratados de modo a fazer sentido para o aluno. Esse sentido nem sempre
depende da realidade imediata e cotidiana, pode e deve, também, ser referido à
realidade mais ampla, remota, virtual ou imaginária do mundo contemporâneo
(RIO GRANDE DO SUL, 2009, p. 17, grifo nosso).

O documento problematiza uma realidade peculiar, a do cotidiano e uma


realidade mais ampla, universal. Ou seja, que o uso pedagógico da realidade mesmo
constituído de diferentes realidades (materiais, sensíveis, virtuais) todas elas prescrevem
o sentido que o aluno precisa buscar em suas aprendizagens. Cabe ao professor,
diagnosticar esses significados produzidos pelas distintas realidades e que vão
produzindo formas de pensar a matemática na contemporaneidade. Podemos propor um
exemplo a partir da prescrição acima, pois o sentido pode ser produzido ao discutir não
apenas as medidas virtuais, como os consumos, gastos com navegação, bem como os
lugares constituídos como nuvem e, portanto, produzir sentido nessa realidade remota,
virtual, mas que faz parte dessa sua realidade material, sensível.

75
A prática não se reduz a ações observáveis, experiências de laboratório ou elaboração de
objetos materiais. A prática comparece sempre que um conhecimento pode ser
mobilizado para entender fatos da realidade social ou física, sempre que um
conhecimento passa do plano das abstrações conceituais para o da relação com a
realidade (RIO GRANDE DO SUL, 2009, p. 23).

A prática não é o concreto como afirma o documento. Ela é uma relação. Ela se
constitui entre os movimentos de cunho sociais e físicos à medida que uns
conhecimentos fogem de sua lógica abstrata para constitui elos com o mundo. O
docente precisa observar se seus estudantes estão rompendo com as lógicas abstratas e
constituindo, produzindo relações com o que os cercam. O professor precisa estar atento
e – antes de qualquer coisa – usar um breve questionário validado – como referenciamos
anteriormente – para constatar que seus discentes estão produzindo significados.

Por fim, o uso pedagógico da realidade na Educação Matemática trouxe as


prescrições, as regularidades, às promessas para pensar e constituir docências
contemporâneas. Dos primeiros entendimentos como formas outras de matematizar e
das distintas matemáticas culturais, surgem novas interpretações que tomam a escola e a
matemática científica como maneiras para pensar a matemática no mundo; como forma
de observar as distintas culturas. Logo, percebe-se que o entendimento do uso
pedagógico da realidade descrito nos documentos privilegia que o docente conheça a
realidade do aluno, mas assume a realidade como algo universal, totalizador e – antes
disso – como fundamental para seu trabalho.

É de sua inteira responsabilidade estar sensível para entender e diagnosticar


essas formas de estar no mundo. Com isso, instaura-se uma autorregulação da conduta
docente que convoca e inventa formas, metodologias, estratégias, diagnósticos e lugares
para observar, narrar, contar a matemática pelo mundo. Sendo assim, há um
deslocamento de produções distintas para uma realidade estanque e que universaliza
todos os lugares em prol de uma identificação, uma constatação local.

PELOS CAMINHOS QUE PRETENDEMOS SEGUIR: PISTAS PARA PRODUZIR


IDENTIDADES DOCENTES

[...] como alguém divinamente disperso e imerso em si, a quem os sinos acabam
de estrondear no ouvido as doze batidas do meio-dia, e súbito acorda e se

76
pergunta “o que foi que soou?”, também nós por vezes abrimos depois os ouvidos e
perguntamos, surpresos e perplexos inteiramente, “o que foi que vivemos?”, e
também “quem somos realmente?”, e em seguida contamos, depois, como disse, as
doze vibrantes batidas da nossa vivência, da nossa vida, nosso ser – ah! E
contamos errado... Pois continuamos necessariamente estranhos a nós mesmos, não
nos compreendemos, temos que nos mal-entender, a nós se aplicará para sempre a
frase: “Cada qual é o mais distante de si mesmo” – para nós mesmos somos
“homens do desconhecimento”... (NIETZSCHE, 2009, p. 7).
Nietzsche, em suas discussões críticas, mas poéticas problematiza como
atribuímos valores. Em outras palavras, como a moral foi desenhando-se. Assim, uma
de suas discussões versa sobre o estranhamento que temos de nós mesmos. Homens do
conhecimento que não nos conhecemos. Do desconhecimento de si, de sua docência,
que a presente pesquisa configurou-se.

Da necessidade de analisar como o docente constitui suas práticas pelo dizer


verdadeiro sobre a realidade (SANTOS, 2015), que iniciaram os percursos do presente
artigo. Assim, a escolha pelos documentos se fez da necessidade de entender como os
instrumentos que são desenvolvidos para apresentar, descrever e propor as ações
docentes constituintes e constituidoras pelo uso pedagógico da realidade estão
prescrevendo, normatizando esse uso.

Existem tramas, redes, emaranhados, desejos, formas outras tantas de validar


uma prática discursiva – em especial – o uso da realidade na Educação Matemática e,
dessa forma, entendendo que um saber vem acompanhado de um complemento, pois é
um saber sobre algo, sobre alguma coisa. Logo, afirmamos que o saber-realidade é
constituído não apenas pelas produções de pesquisadores no campo para constituir,
incitar os movimentos pelas distintas formas de matematizar, mas por esses
instrumentos que podem falar e que escolhem de que maneira vão prescrevendo as
formas, as condutas esperadas dos professores de matemática.

Não obstante, temos que a convocação mais enfática “[...] e recorrente tem sido
o apelo à necessária integração entre teoria e prática, como maneira de se formar o
“bom professor” que poderá tratar, discutir e enfrentar os problemas educacionais do
cotidiano escolar” (UBERTI, BELLO, 2013, p. 17). Compondo, elaborando e, por isso,
prescrevendo elementos em prol da formação necessária do educador contemporâneo.

77
Produzindo, instaurando, (re)afirmando efeitos de verdades, práticas, condutas no rol de
regimes verdadeiros sobre ser docente em nosso tempo. Dessa maneira, os excertos
analisados apontam as produções, os esclarecimentos, os entendimentos, as promessas e
as crenças a partir do uso pedagógico da realidade que respaldam as ações docentes.
Mais do que isso, os documentos regulam e normatizam as práticas pedagógicas que já
estão sendo realizadas no âmbito da escola básica (re)afirmando e padronizando as
maneiras de ser e agir.
Para compor nosso artigo, percebemos três prescrições recorrentes nos excertos
analisados. A saber: Buscar a contextualização da matemática; Buscar a matemática
presente no cotidiano; Realidade constituinte de práticas de ensino-aprendizagem.
Buscar a contextualização da matemática apresentou as normatividades
contemporâneas de pensar a matemática pela contextualização. O movimento dos
documentos foi de validar, (re)afirmar a necessidade de falar sobre a aplicabilidade da
matemática. Convidando os docentes e (re)pensar suas ações pedagógicas pela vontade
de contextualizar, de aplicar a matemática, de torná-la parte do mundo e de estar em
todos os lugares.

Buscar a matemática presente no cotidiano trouxe não apenas a prescrição,


mas o esforço de apresentar exemplos, lugares, situações em que a matemática está
presente. Na ânsia de constituir as ações pedagógica que apresentam, discutem,
normatizam uma matemática presente no cotidiano de todos e de cada um.

Realidade constituinte de práticas de ensino-aprendizagem trouxe as


prescrições acerca de como deve ser a organização docente a partir do uso pedagógico
da realidade. Os olhares docentes, as metodologias adequadas, as maneiras de pensar a
prática, os modos como a matemática pode ser articulada e proposta para que a ação
pedagógica legitime-se pelo uso da realidade na Educação Matemática e que, portanto,
convocassem os docentes a narrar suas aulas, suas práticas pelo contextualizar, pelas
metodologias apresentadas, pelo interdisciplinar. Enfim, pelo saber-realidade.

Todas as prescrições apresentadas neste artigo apontam as discursividade do uso


pedagógico da realidade. Além disso, todo esse material (re)atualiza as discussões em
torno do saber-realidade. Com isso, os documentos são apresentados como formas de
regular, prescrever, normatizar os usos que já estão sendo feitos na escola, durante as
aulas de matemática. Logo, eles não apresentam novidades, mas incitam, provocam,

78
prometem maneiras de usarmos pedagogicamente a realidade e as possibilidades para
constituirmos nossas ações docentes.

Percebemos que a economia do saber-realidade “está justamente no fato de


enunciar a Educação Matemática de um determinado modo e não de outro, tornando
possível um tipo de visibilidade e não outro, uma forma de enunciação, e não outra –
ainda que dispersas e não correspondentes” (UBERTI, 2016)26. O saber-realidade não
pretende (des)cobrir a verdade para denunciá-la. Estamos interessados em pensar de
que forma, sobre que cuidados nos assujeitamos às práticas pedagógicas que oferecem o
uso pedagógico da realidade como modo de pensar a docência contemporânea. Em
outras palavras, nos inclinamos para problematizar quais são as verdades do nosso
tempo; quais são as nossas formas de ser e agir na docência de nosso tempo. Como diria
Foucault, estamos interessados em produzir uma história do presente, de nosso tempo
(2012a).

Podemos destacar que cada uma das duas práticas finais retomou a primeira:
Buscar a contextualização da matemática. A vontade de enxergá-la por todos os
lados não (re)afirma que ela não estava lá? Ou que alguma vez não esteve? Ou melhor,
que até a prescrição – ou a criação do saber-realidade – não havia investimentos; não
estava na ordem do que se poderia falar na Educação Matemática - que a matemática
estivesse pelo mundo? Que vontade platônica e, porque não, tão mais difícil de dizer
que se está em todo lugar? Seria isso uma atualização da superioridade da matemática?
Afinal, se prescreve uma matemática para todos e cada um ou para poucos e quase
nenhum?

Mas há ainda uma necessidade. O saber-realidade e a constituição docente


contemporânea: como os docentes estão se subjetivando em relação ao uso pedagógico
da realidade? Que usos estão sendo feitos?

Para responder a essas duas questões, propomos o próximo artigo que tentará
olhar como os docentes estão identificando-se com as prescrições, as formas legitimadas
de pensar a docência contemporânea. No intuito de olhar as interpretações, as
valorações, as tramas que possibilitam que os docentes apresentem suas identificações.
Em suma, observar quais são as identidades docentes no âmbito do uso pedagógico da
realidade que produzem maneiras de entendermos o saber-realidade.

26
UBERTI, Luciane. Parecer da dissertação de Gilberto Silva dos Santos, defendida em 24/02/2016 pelo
Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde/PPGQVS.

79
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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80
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VEIGA-NETO, Alfredo. Foucault e a Educação. 3 ed. – Belo Horizonte: Autêntica


Editora, 2011.

81
4 – O SABER-REALIDADE E SUAS NARATIVAS:
PROBLEMATIZANDO AS IDENTIDADES DOCENTES

Os homens começaram por substituir por sua própria pessoa à natureza: em


toda parte viam a si próprios, viam seus semelhantes, quer dizer, viam seus
maus e caprichosos pensamentos, ocultos, de certo modo, entre as nuvens,
as tempestades, as bestas ferozes, as árvores e as plantas; então
inventaram a má natureza.

Depois disto veio outro tempo, em que quiseram diferenciar-se da natureza,


a época de Rousseau; estavam tão fartos de si mesmos, que quiseram possuir
um rincão onde não pudesse chegar o homem com sua miséria: então
inventaram a boa natureza (NIETZSCHE, 2008, p. 25)27.

27
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. Trad. Mário D. Ferreira
Santos - Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

82
ARTIGO 3

4.1 – O SABER-REALIDADE E A CONSTITUIÇÃO DE


IDENTIDADES DOCENTES

Gilberto Silva dos Santos

Samuel Edmundo Lopez Bello

RESUMO: Neste artigo, temos como objetivo analisar as narrativas docentes que fazem
uso pedagógico da realidade na Educação Matemática. Os excertos selecionados de um
congresso do campo referido foram organizados segundo suas semelhanças
possibilitando a constituição de identidades docentes que representam, controlam,
regulam o uso pedagógico da realidade. Apontamos, ainda, alguns assuntos que são
valorizados pelas narrativas docentes na vontade de usar a realidade de forma
pedagógica. Nosso viés teórico é pautado nos estudos de Michel Foucault. Assim,
atentos a essas representações, as produções da rede discursiva em Educação
Matemática, buscamos tensionar como o saber-realidade segue compondo os
entendimentos; segue regulando e orientando as ações docentes em prol de uma
matemática contextualizada, utilitarista, lúdica, significativa. Enfim, por uma
matemática que esteja em todos os lugares, que pertença a todos.

PALAVRAS-CHAVE: Saber-realidade. Identidades docentes. Verdade. Educação


Matemática.

A EMERGÊNCIA DAS (COM)POSIÇÕES

As diversas produções em Educação Matemática - como livros, revistas, artigos,


os cursos de formação inicial/continuada de professores, os documentos que
normatizam os currículos escolares, as conversas entre professores – constituem uma
rede discursiva. E é nessa rede discursiva que o uso pedagógico da realidade é
orientado, regulado na vontade de normatizar as identidades docentes. É através dessas
identidades que vemos o saber-realidade se constituir como um saber sobre a docência
contemporânea. As convocações na veemência de incitar, de falar sobre a docência,
produzem efeitos de verdade.

83
São os efeitos de verdade que o artigo pretende tencionar. Mas que efeitos de
verdade são esses? Da invenção do saber-realidade como maneira de normatizar a
docência na Educação Matemática contemporânea, surgem as prescrições, as
orientações, as condutas acerca das ações pedagógicas sobre o contextualizar, o
observar a matemática em tudo, a realidade do aluno, a constituição docente.

Segundo Foucault (2012), os discursos assujeitam, forjam, produzem, autorizam


as formas de se pensar e de se falar em detrimento a outras. Com isso, acreditamos que
a partir das prescrições, os docentes vão se subjetivando ao uso pedagógico da realidade
e narrando como suas as formas identitárias anunciadas na rede discursiva da Educação
Matemática. Com isso, esse artigo pretende analisar as narrativas de professores de
matemática na tentativa de apontar para a possibilidade de identidades docentes
prescritas através do uso pedagógico da realidade. Mas que identidades docentes seriam
essas?

Os problemas que estudei são os três problemas tradicionais. 1) Que relações


mantemos com a verdade através do saber científico, quais são as nossas relações
com esses “jogos de verdade” tão importantes na civilização, e nos quais somos
simultaneamente sujeitos e objetos? 2) Que relações mantemos com os outros,
através dessas estranhas estratégias e relações de poder? Por fim, 3) quais são as
relações entre verdade, poder e si mesmo? (FOUCAULT, 2012a, p. 293).
Com Foucault, as relações entre verdade, poder e si mesmo serão tencionados na
análise do artigo, pois ao se pensar esses três elementos, estar-se-á não apenas pensando
os problemas tradicionais, mas as formas contemporâneas de ser e agir. Essas formas
produzem e legitimam as docências em Educação Matemática. Assim, analisaremos de
que maneira o saber-realidade prescreve e institucionaliza modos de ser e agir do
professor de matemática. Por fim, mostraremos que ao falar sobre suas práticas
pedagógicas, os educadores matemáticos trazem para si identidades, formas de ser
sujeito-professor.

O QUE FALAM OS DOCENTES SOBRE SUAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

[...] quanto não precisou antes tornar-se ele próprio [o homem] confiável, constante,
necessário, também para si, na sua própria representação, para poder enfim, como
faz quem promete, responder por si como porvir! (NIETZSCHE, 2009, p. 44)
Analisar as identidades docentes é olhar para as formas como os docentes
representam suas práticas bem como se constituem como sujeitos – em especial ao se
inclinarem as práticas discursivas da Educação Matemática. Assim, a partir do uso
pedagógico da realidade tanto na produção dos pesquisadores da área quanto nos
documentos e nas políticas públicas voltadas à educação, os docentes vão se

84
subjetivando e narrando suas identidades que, muitas vezes, se confundem com
promessas num “responder por si como porvir”, nessa vontade de trazer para si a
identidade docente desejada em seu tempo. Desse movimento criam-se dualismos entre
a identidade professor que se quer e a que não se quer. Uma aceita e validada
(re)atualizada pelo uso pedagógico da realidade e outra, marginalizada, esquecida,
escondida, mas também produzida pelo mesmo uso, pois ao incitar uma identidade
como forma-aceita do professor ela vai fixando, prescrevendo, constituindo, idealizando
essa identidade e não outra.

Para apresentar essas identidades que são, por hora, efeitos de verdades
produzidas através da rede discursiva da Educação Matemática, estaremos analisando as
identidades docentes narradas pelos professores através da vontade de usar
pedagogicamente a realidade. Para isso, analisamos os anais do X e do XI Encontro
Gaúcho de Educação Matemática (EGEM), realizados, respectivamente, em 2009 e
2012.

A escolha do EGEM emergiu a partir da pesquisa anterior em que analisamos


documentos de caráter nacional e regional. Desse estudo, surgiu a necessidade de
tencionar como os docentes estão narrando suas ações pedagógicas. Assim, este artigo
se constitui a partir de excertos dos anais do EGEM que versam sobre o contextualizar,
o trabalhar com o cotidiano, com toda a produção que denominamos de saber-realidade.
Durante o desenvolvimento da análise dos excertos selecionados, percebemos
semelhanças, familiaridades e distanciamentos entre os excertos escolhidos. Através
dessas semelhanças, elaboramos as seguintes categorias de identidades docentes:
identidade docente utilitarista/contextualizadora; identidade docente lúdica; identidade
docente tecnológica; identidade docente metodológica dividida em duas categorias: por
projetos e por resolução de problemas e ainda apontamos alguns excertos que narram
alguns conteúdos específicos que podem ser trabalhos através do uso pedagógico da
realidade como a estatística e a educação ambiental.

O que nos instiga a problematizar o saber-realidade é como esses saberes vão se


atualizando de tal forma que acabam por constituírem-se enquanto verdades, enquanto
formas-aceitas de ser docente. Em especial, acreditamos que essas inúmeras repetições
das convocações, prescrições produzem normas que representam as docências em nosso
tempo. O saber-realidade vem anunciar que isso precisou de tempo, investimento, para
que ele pudesse ocupar o lugar de saber e pudesse – com tanta convicção – instituir

85
maneiras de ser e agir, pois “[...] as imagens que o mundo, principalmente social,
apresenta, a rigor, ele não apresenta isentamente, isto é, é o olhar que botamos sobre as
coisas que, de certa maneira, as constitui” (VEIGA-NETO, 2007, p. 30). É para esses
olhares que constituem o sujeito-docente no/pelo uso pedagógico da realidade e dão
condições para pensarmos o saber-realidade que estamos atentos e gostaríamos de
tensionar a seguir.

IDENTIDADE DOCENTE UTILITARISTA/CONTEXTUALIZADORA

Conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental (PCNEF), a


Matemática é uma ciência viva, caracterizada como “[...] uma forma de compreender e
atuar no mundo” (BRASIL, apud DESSBESEL, CURY, 2012, p. 117).

Dos documentos à escola. Da escola ao docente. O percurso está dado, mas os


usos, as maneiras que podem convocá-lo a pensar sua docência não. Há, ainda, o
retorno: e ao voltarem ao discurso de prescrever, de legitimar, o que dizem as formas de
ser docente? Ao utilizar os PCNEF, as autoras conduzem suas formas de pensar a
matemática através das normatividades nos documentos. Assim, se os convites foram
feitos, se as prescrições forem apresentadas, aqui surgem às maneiras pelas quais os
docentes não apenas se percebem, mas tentam narrar o que (a)creditam – ou esperam -
ser.

Conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais [do] Ensino Médio (PCNEM), a


Matemática tem o papel de contribuir com o desenvolvimento do pensamento, ou seja,
desenvolver a capacidade de resolver problemas e, também servir como uma ferramenta
que auxilia em quase toda a atividade humana (DESSBESEL, CURY, 2012, p. 118).

A constituição, o poder e o que falar foram legitimados pelos documentos.


Enxergar o papel da matemática “como ferramenta que auxilia em quase toda a
atividade humana” não apenas como o convite feito pelo documento, mas a afirmação, a
vontade de se constituir docente de acordo com as prescrições.

Se a rede discursiva da Educação Matemática vai produzindo efeitos de verdade,


então tais efeitos vão normatizando as maneiras de pensar a docência. Não está sendo
afirmado que tais formas não sejam adequadas em relação a outras ou vice-versa, o que
se está tentando problematizar é o movimento feito pelos docentes a partir do uso
pedagógico da realidade. Mais do que isso, é apontar para como o saber-realidade
perpassa toda a rede discursiva da Educação Matemática apontando as maneiras, as
86
formas como nós – educadores matemáticos – nos narramos, nos sujeitamos à vontade
de usar pedagogicamente a realidade.

Uma vez que as normatividades discursivas convocam os docentes a pensar suas


ações pedagógicas, eles vão se identificando, se constituindo. Se constituir docente hoje
é inclinar-se para os discursos que vão convocando, promovendo, localizando
(FOUCAULT 2012), inventando o docente no contemporâneo. Em especial, assujeitar-
se ao saber-realidade e, portanto, se identificar e se posicionar com essas formas-sujeito-
professor que estão dadas. Até aqui não temos nada contraditório, pelo contrário, os
modos de ser e agir são constituídos e constituintes pelo/do saber-realidade. Quando nos
propomos a pensar o saber-realidade tínhamos o intuito de entender de que maneira e
porque com tanta força o uso pedagógico da realidade adquiriu espaço na Educação
Matemática e como – a partir desse espaço – ela vem constituindo identidades docentes.

Conforme VEIGA-NETO (2007, p. 24), “[...] dou-me por satisfeito se puder


contribuir para que cada professor e cada professora não aceite automática e
silenciosamente, de modo não problemático, as grandes declarações [...]” que os
inclinam a pensar, a produzir suas docências. Enfim, que as promessas que surgem
como efeitos de verdades sejam tensionadas para que não se instaure uma docência
mesmice em que todos se subjetivem a mesma representação docente da rede discursiva
da Educação Matemática.

O saber-realidade adquiriu lugar, formou seu espaço: no primeiro instante, com


os pesquisadores do campo da Educação Matemática que desenvolveram pesquisas no
âmbito da etnomatemática. No segundo instante, após essa contribuição, analisamos
alguns documentos que prescrevem, legitimam, inventam, normatizam as ações
docentes a partir do uso pedagógico da realidade (re)afirmando que a matemática
precisa pertencer ao mundo. Percebemos que do primeiro instante para o segundo, o
entendimento de saber-realidade se modificou. Enquanto o primeiro pensava a realidade
como as distintas formas de organização das culturas e as distintas formas de
matematizar de um mesmo povo, a segunda instância traz como realidade as formas de
vida de cada sujeito, o local no qual a escola está inserida. Enfim, toma como realidade
as vivências que estão fora da escola. Neste terceiro instante de pesquisa, queremos
analisar como o saber-realidade – através do uso pedagógico da realidade - vem –enfim-
apresentar, prometer identidades docentes.

87
O professor tem o papel de estimular e desenvolver habilidades, assim como preparar o
aluno para sua realidade. Para efetivar esta tarefa, o professor deverá mudar sua visão
com relação ao Ensino da Matemática, de maneira que, torne o aluno como centro do
processo educacional e enfatize o processo de construção do conhecimento
(LAZZARDI, LIMA, SCHULZ, 2012, p.661).

O alerta para mudar as ações docentes é lançado. Cabe ao professor escolher,


optar por estratégias que agregam as suas ações pedagógicas o uso pedagógico da
realidade. Assim,

[...] o discurso pedagógico [como] um dos norteadores para produzir formas de ser
docente entre os professores. Dessa forma, nosso estudo busca percorrer alguns
discursos em educação matemática que evidenciam formas de ser docente assim
como, os usos e seus significados na constituição das práticas em educação
matemática possibilitando a produção de verdades (SANTOS; SANTOS, 2014, p.
2).
As produções de verdades vão se apresentando à medida que os docentes vão
convocando novos professores a pensar suas ações pedagógicas a partir da realidade. Se
o saber-realidade foi produzido e instituído como a forma prescrita para o docente
contemporâneo, então suas vontades instituem formas de pensar a docência e uma vez
que tais materiais assumem um lugar de verdade, os efeitos dessa verdade começam a
representar identidades docentes.

[...] devem ser trabalhadas atividades que despertem o interesse e a motivação dos
alunos, permitindo uma interação entre professor, aluno e saber matemático e
possibilitando a busca de significações dos conceitos a serem construídos (SELVA,
CAMARGO, 2009, p. 1).

A vontade por buscar significado, por encontrar e apresentar os lugares por onde
a matemática anda e está presente vão constituindo formas de pensar a docência. Com
isso, vão sendo representadas maneiras, condutas, normas que o docente precisa seguir
para constituir suas práticas pedagógicas. Logo, uma identidade docente produzida pelo
uso pedagógico da realidade dá conta de convocar o docente a produzir significados
auxiliando nas mais diversas atividades humanas. Logo, denominamos essa categoria de
identidade docente utilitarista/contextualizadora.

88
Com o intuito de contextualizar os conteúdos matemáticos e resgatar os diversos alunos
que veem a Matemática como uma disciplina complexa e sem aplicação, utilizamos a
sala de aula como um ambiente de Modelagem, com o intuito de aproximar alguns
conteúdos matemáticos à realidade dos alunos, fazendo-os refletir e posicionar-se diante
dos problemas apresentados (GOMES, VARGAS, 2012, p. 363).

A vontade de contextualizar. Percebe-se que o contextualizar quer apenas tirar a


matemática da aula – por alguns minutos – para apresentá-la na vida. Com isso,
reforçando o utilitarismo de uma matemática usual, aquela que estaria em todos os
lugares.

Em contrapartida, temos a Modelagem Matemática – metodologia de ensino que


modela fenômenos naturais a partir da matemática – aproximando os alunos de
problemas de sua realidade. Percebemos que esse aproximar não é – ou não nos parece
ser – formas de pensar como outras culturas produzem, instituem formas de
matematizar. Antes disso, a realidade que está em voga nessas formas-docentes é uma
só. Poderíamos inclusive denominar de realidade o coletivo de formas-docentes que
vem tentando olhar seus discentes e identificar, racionalizar suas formas de vida.

Cabe ao educador adaptar as atividades, viabilizando desta forma as aprendizagens de


conteúdos matemáticos muitas vezes considerados sem significado (PERES,
MENEGAZZI, 2012, p. 231).

E ao educador, é lançado o desafio de procurar significados nas discussões


matemáticas que compõem sua ação pedagógica. Mais uma vez, a vontade, o pedido
para que as aulas de matemática não sejam meras reproduções de conteúdos e listagens
extensas de atividades, mas formas outras de pensar sua prática enxergando a
matemática pelo mundo. Esse movimento, esse convite legitima-se adquirindo lugar de
verdade instituindo o saber-realidade na Educação Matemática não apenas sobre as
condutas que devem ser seguidas, mas também pelas quais os docentes precisam se
afastar.

[...] é importante que sejam pensadas atividades que integrem a matemática ao mundo
real, de modo que o aluno perceba que existem relações entre a matemática ensinada na
escola e a matemática da realidade, capacitando o educando a compreender e
representar matematicamente essas relações (PEREIRA; NEHRING, 2009, p. 2).

89
O que nós instiga é que o efeito de verdade deixa de ser questionável e se
advoga como verdadeiro por si só sem apresentar todas as suas lutas, suas batalhas e
seus esforços para se (trans)formar em algo naturalizado. Uma vez que ela ocupa esse
lugar, produz efeitos; produtos; instantes que vão desejar e inventar outras verdades. O
dualismo matemática mundo-escola vai afirmando-se na formação de um sujeito-
professor utilitarista/contextualizadora: aquele que procura o uso de cada conceito
matemático no mundo. Podemos – inclusive- tomá-la com a identidade guarda-chuva do
saber-realidade.

É na vontade de entender, compreender, descrever, representar o mundo que


algumas verdades vão adquirindo esse lugar de poder. Na curiosidade, na dúvida, na
necessidade, o sujeito vai desenvolvendo suas análises a partir da matemática. Essa
prescrição docente, esse entendimento sobre a aplicabilidade da matemática em tudo
(re)atualiza a rede discursiva que apresenta a matemática como um estar no mundo a
todo instante. Basta estar sensível para encontrá-la. Esse é o desafio do docente
contemporâneo segundo tanto as formas que se posicionam nos anais do EGEM:
auxiliar o aluno a procurar, encontrar a matemática por todo lugar. Não basta só
encontrar, mas saber usá-la da melhor maneira possível auxiliando no bem estar comum
e coletivo.

Observamos que as condutas docentes apresentadas nos anais do EGEM


fabricam nosso entendimento das formas não aceitas de ser docente uma vez que os
discursos do uso pedagógico da realidade vão conduzindo e norteando formas-aceitas de
ser professor e, por mais que eles sejam apenas propostas, vão elaborando
autorregulações nas condutas dos professores que vão se subjetivando, se constituindo a
partir das promessas, dos convites ao uso pedagógico da realidade. Assim, se o referido
uso não convoca, se ele exclui uma forma docente que apenas listaria exercícios em
suas práticas é por entender que essa listagem de exercícios não dá conta de pensar e
problematizar a matemática pelo mundo. Logo, as instâncias do saber-realidade vão
normatizando suas formas aceitas e excluindo, limando aquelas que não afirmam os
convites em prol de um uso pedagógico da realidade.

90
[...] queremos repensar a prática como o espaço de aprendizagem e de construção do
pensamento prático do professor, permitindo e provocando o desenvolvimento de
capacidades e competências sempre em diálogo com a situação real (BORJA et al,
2012, p. 441).

As valorações são feitas. E são tantas! No movimento de (re)pensar a prática, os


docentes vão se identificando com a forma-aceita de narrar sua docência. E, com isso,
vão mais do que desejando, novamente prescrevendo, já as suas interpretações, sobre o
uso pedagógico da realidade, sobre essa forma-sujeito-professor de pensar sua prática
no âmbito do real, do verdadeiro.

A construção da identidade do educador começa a partir dos conhecimentos adquiridos


e das experiências vivenciadas durante a sua formação, pois são essenciais para que se
forme um profissional realmente qualificado na arte de ensinar. Em virtude disto, é
imprescindível que se tenha ciência do que está acontecendo na área educacional, assim
como também é importante acompanhar e estar aberto às novas ideias e tendências que
surgem na educação (ALMEIDA, SANTOS, 2012, p. 463).

O convite para o movimento de se atualizar no campo educacional. O pedido


para acompanhar e estar sempre buscando maneiras outras de pensar sua docência.
Perceber os percursos da área educacional e observar o que vem sendo dito. Enfim, se
assujeitar aos discursos que versam sobre sua formação. Escolher, optar, acreditar,
praticar. Há o movimento para inventar, interpretar sua docência pelo viés dos
documentos oficiais e pelos exercícios – com ares científicos – que emergem nos
discursos do EGEM28 advogando uma (re)leitura do uso pedagógico da realidade. O
desejo de atualizá-lo.

A partir da investigação dos conhecimentos prévios dos alunos, utilizamos diferentes


metodologias, como: jogos, desafios, tecnologias, leitura de textos que resgatam a
história evolutiva dos conceitos a serem trabalhados, questionamentos orais e escritos.
Além disso, relacionamos o conteúdo novo com o conhecimento anterior já adquirido.
Houve, também, referência a exposições orais, a revisões sistemáticas e à apresentação
de atividades inovadoras destinadas a despertar o interesse dos alunos. Com o mesmo

28
Não está sendo dito que tais movimentos são próprios, únicos do EGEM. Apenas faz-se referência a
ele, pois a materialidade dessa pesquisa está baseada nos anais do evento referido.

91
objetivo, são estabelecidas relações com situações do cotidiano que tornam o conteúdo
mais significativo [...] (RABAIOLLI et al, 2012, p. 507, grifos nossos)

As redes sobre como pensar sua docência vão sendo apresentadas. Os modos de
ser e agir do docente vão sendo mapeados, desenhados, costurados em torno do
significativo, do concreto, do real, da realidade. O desejo por elaborar diversas
metodologias que aproximem o discente do conhecimento estudado vai adquirindo
espaço no intuito de constituir outras maneiras de ser e agir a partir das práticas
pedagógicas de outros professores.

O percurso dos trabalhos apresentados no EGEM provoca o docente a


impulsionar-se pelos ares do uso pedagógico da realidade. Escolher, tentar, testar,
confirmar que o contexto é o desejo do contemporâneo, da Educação Matemática no
que tange as ações docentes e os pedidos, as interações dos alunos no exercício de
pensar a docência. Mais do que dos outros, que esse desejo pelo saber-realidade vai se
tornando seu desejo. O discurso vai tramando, criando redes, movimentos, espaços em
que o sujeito vai inclinando-se, escolhendo, optando por ser seu o discurso que está na
ordem das formas-aceitas, disso que pode ser dito na contemporaneidade.

IDENTIDADE DOCENTE LÚDICA

O excerto acima trouxe alguns itens que gostaríamos de destacar. Um deles


versa sobre metodologias diferenciadas, tais como os jogos na Educação Matemática.

À medida que surgem dificuldades no ensino ou na aprendizagem de conteúdos


matemáticos, manifesta-se também a necessidade de propostas pedagógicas e recursos
didáticos que auxiliem tanto os professores em sua prática docente quanto os alunos
na construção de conhecimentos matemáticos. Neste contexto, apresentam-se os
jogos matemáticos [...] (SELVA, CAMARGO, 2009, p. 3).

Jogo como forma lúdica de pensar a docência. Seria o sujeito-professor lúdico?


Aqui se instaura uma verdade sobre a infância: que toda criança gosta de brincar e que,
portanto, é da realidade dela brincar com jogos, com materiais concretos. Assim, o
entendimento de que ao brincar com jogos matemáticos, o estudante vai aprendendo de
uma forma familiar acaba adquirindo efeito de verdade no campo educacional. Os
estudos da psicologia vão reforçando, constituindo investimentos para que o lúdico, o
concreto invada a aula de matemática. Não se assuste professor! Você vai conseguir!

92
Pela realidade do aluno... E aí vão surgindo às novas – ou não tão novas – prescrições
ensinando como ser um sujeito-professor-lúdico.

Gostaríamos de destacar que a identidade docente lúdica não é uma categoria


exclusiva de nosso estudo. Ao analisar o portfólio de um curso de pedagogia, a autora
Santos (2009, p. 87) discute que

Algumas unidades que tentam dar sentido extralinguístico para a educação


matemática e, dessa forma, produzem posições identitárias de “ser” professor
no interior dessa rede discursiva, por exemplo: a ludicidade que visa um
ensino prazeroso da matemática, ao prazer que, neste caso, dá um sentido
para a matemática (destaque da autora).

[...] procurei desenvolver atividades utilizando jogos e a exploração de materiais


concretos, com o objetivo de tornar as aulas mais interessantes, atrativas, participativas
e principalmente significativas para os educandos (CEOLIN; NEHRING, 2009, p.1,
grifos nossos).

O lúdico prescrito, narrado como uma forma de significar a aprendizagem em


matemática. Ao tornar a aula mais interessante, o docente vai se confortando,
acreditando que usar pedagogicamente a realidade ajude-o a constituir significados,
sentidos, formas úteis de ensinar e aprender.

A vontade de contextualizar e tornar a matemática útil vai convocando


estratégias, metodologias pedagógicas que representam identidades docentes valoradas
pelo uso pedagógico da realidade.

IDENTIDADE DOCENTE TECNOLÓGICA

O currículo precisa, portanto, ser flexível para possibilitar a inserção de recursos


tecnológicos no planejamento dos professores e maior significância ao discente, pois
este terá a oportunidade de fazer com que o computador esteja presente no seu cotidiano
escolar e poderá “enxergar” que essa máquina é, também, uma fonte de informação que,
se bem utilizada e com apoio de um profissional, pode gerar conhecimento
(NICARETTA, 2012, p. 170).

Desenhos sobre o currículo vão sendo constituídos. Os convites são feitos na


tentativa de convocar pela proximidade. Porém, ao se dizer docente que trabalha com o
uso pedagógico da realidade, o professor não está apenas convocando outros colegas,
mas está posicionando-se, sujeitando-se frente ao discurso em voga. Assim, ele está
apresentando suas posições acerca dos saberes que convocam os docentes na

93
contemporaneidade. A posição que solicita a inserção das tecnologias no currículo e no
ensino de matemática adquire força e circula no desejo de convocar e apresentar
estratégias para que essas ferramentas sejam utilizadas e potencializadas na escola.

O avanço da tecnologia e a abundância de informações estão diretamente conectados


com os jovens de hoje. A cada dia, estes têm mais acesso a uma enorme quantidade de
informações advindas dos jornais, revistas, noticiários e internet. Neste contexto está o
ensino, em especial o ensino de Matemática e de Estatística, que tem o papel de auxiliar
a interpretação da realidade (DESSBESEL, CURY, 2012, p. 117).

Assumimos diferentes posições de sujeito dos discursos que nos fabricam. Somos
produto do discurso ou, ainda, seu efeito. Efeito inofensivo, diria eu, visto que
produz modos de pensar, de ser e de dizer (SANTOS, 2009, p. 17).
A rede discursiva da Educação Matemática vai fabricando os sujeitos docentes.
Seus efeitos inofensivos – em especial, os que versam sobre o uso pedagógico da
realidade – arrastam os docentes para se constituírem, se identificarem. Num
movimento de se enxergar sujeito de determinados lugares, de determinadas vozes, para
determinados “usos”. As maneiras como o uso pedagógico da realidade é (re)ofertados
pelos docentes versam sobre a tentativa de constituir uma docência verdadeira, uma
identidade docente em consonância com as prescrições, com os desejos convocados
pelos materiais. Portanto, instituindo modos de ser e agir. Atribuindo características,
funções, formas de pensar; enfim, instaurando um plano em que o sujeito docente possa
escolher elementos – mas não muitos e nem contraditórios – para formar sua docência.
Com isso, temos uma segunda identidade docente que normatiza e regula o uso das
tecnologias de informação como maneira de promover um ensino-aprendizagem
conduzido pelo saber-realidade. Podemos denominar de identidade docente
tecnológica.

Nossa capacidade de pensar, questionar, investigar, criar, recriar, criticar a


realidade que nos cerca, aliada aos avanços tecnológicos e alicerçada por ferramentas
como a Matemática, nos permite estabelecer modelos que expliquem os fatos que nos
rodeiam a fim de favorecer a tomada de decisões em todos os âmbitos da atividade
humana (MARTINS, 2012, p. 454).

O uso das ferramentas tecnológicas constituem modelos que vão permitindo com
que os docentes percebam a utilidade da matemática. Não apenas sua utilidade, mas
entender o quanto a matemática pode favorecer as escolhas, as decisões que podem

94
influenciar o contexto local –diretamente – e o contexto geral – indiretamente – de todos
os cidadãos.

“[...] os saberes se constituem com base em uma vontade de poder e acabam


funcionando como correrias transmissoras do próprio poder a que servem” (VEIGA-
NETO, 2009, p. 117). O saber-realidade e todos os seus elementos compostos pelas
produções de pesquisadores, pelos documentos, pelos anais dos X e XI EGEM, enfim,
pela rede de discursividade da Educação Matemática apresentam essa vontade de poder,
esse desejo de adquirir força, voz, visibilidade no campo referido.

As narrativas a seguir, tratam das metodologias que podem ser utilizadas na


vontade de usar pedagogicamente a realidade. Dessa maneira, numa categoria geral,
poderíamos denominá-las de identidade docente metodológica que versa sobre a
metodologia como maneira de ser um docente utilitarista, contextualizador, tecnológico
e porque não lúdico? Assim, vamos dividir os excertos a seguir segundo as
familiaridades metodológicas. Gostaríamos de destacar que, por exemplo, a identidade
docente tecnológica pode usar uma das metodologias a seguir em parceria com as
ferramentas tecnológicas, pois uma categoria não exclui a outra. O que queremos
destacar é a força, a vontade com que as metodologias narram formas de trabalhar com
o ensino-aprendizagem de matemática.

METODOLOGIA: PROJETOS

Os conteúdos em torno de projetos, como forma de desenvolver atividades de ensino e


aprendizagem, favorecem a compreensão da multiplicidade de aspectos que compõem a
realidade, uma vez que permite a articulação de contribuições de diversos campos de
conhecimento (DREHER; SEIBERT 2009, p. 3)

Desenvolver uma prática por projetos não apenas convoca a contextualização,


mas a interdisciplinarização. Constituindo, conforme os desejos das prescrições, que a
matemática seja vista em todos os lugares; que dialogue com todas as áreas. Da mesma
forma, trabalhar com resolução de problemas é importante,

METODOLOGIA: RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS

[...] pois os educandos foram instigados, bem como por si só sentiram-se desafiados a
encontrar a melhor solução para a situação em discussão, a partir de seus conhecimentos
prévios(MORAES; CURY, 2009, p.6).

95
Sendo instigados, os alunos vão se sentindo desafiados a resolver os problemas.
Mas não é qualquer problema ou história matemática; são os da realidade deles, do seu
contexto, esses do mundo. Logo, o contextualizar, o interdisciplinar vai constituindo-se
como efeito de verdade e como forma-aceita de praticar a docência, pois dessa forma o
discente começa a observar sentido em suas aprendizagens. O sentido – para nós –
(re)afirma a vontade de uma matemática útil, utilitarista. Aqui, parece que estamos
retomando as discussões curriculares tradicionais (SILVA, 2014) pensando que só
poderia estar no currículo aqueles saberes uteis para a constituição da sociedade.

Portanto é necessário que a escola, e também o professor na aula de matemática,


instigue e dê espaço ao aluno para desenvolver sua capacidade de reflexão e de tentar
relacionar o conteúdo de matemática com sua realidade fora da escola. Neste sentido
percebo que problemas reais são uma estratégia importante para as aulas de
matemática, pois em cada conteúdo podemos enfatizar um aspecto da vida e, assim,
surpreender os alunos com atividades novas (SOPPELSA; MILANI, 2009, p. 3).

Aqui, pedimos licença para usar uma pergunta que percorre as aulas de
matemática: Professor, mas para que eu vou usar isso na vida? Observa-se que tal
pergunta vem (re)afirmando uma prática docente: a do utilitarismo; a da
contextualização. A prática docente vem prescrevendo que o professor enxergue sua
disciplina, suas discussões pelo mundo. Logo, ele vai apresentando uma ação que busca
algumas aproximações com as vivências do aluno, mas quando as discussões vão
incluindo abstrações, os discentes solicitam a utilidade, tentando – desejando – que o
docente (re)signifique sua prática, (re)faça esse exercício de procurar a matemática em
todos os lugares.

Em 2009 o MEC apresentou a proposta de unificar o vestibular das universidades


federais utilizando um novo modelo de prova para o ENEM, argumentando a
necessidade de existência de um exame nacional unificado, desenvolvido com base em
competências, habilidades e conteúdos mais relevantes, passando a definir a política
educacional e o conteúdo a ser ensinado. O ENEM concentra-se nas competências e
habilidades que cada indivíduo tem de articular o saber adquirido em uma
situação problema do cotidiano (PEREIRA, KAIBER, 2012, p. 297, grifos nossos).

O desejo do MEC de unificar não apenas as provas e o ingresso nas


universidades, mas os conteúdos a serem desenvolvidos e, com isso, as ações docentes.

96
Inventam-se maneiras de ser professor, de compor docências a partir das competências e
habilidades legitimadas pelos documentos. Novamente podemos apontar uma
atualização das discussões tradicionais sobre o currículo, pois jogamos as habilidades e
as competências para os alunos. Assim, ranqueamos escolas e as formas-aceitas de ser
professor pelas notas alcançadas nessas avaliações. Logo, a estatística se faz necessária
não apenas para instruir o educando a ser competente e ter habilidade em leitura e
interpretação de informações, mas para avaliar suas aprendizagens, suas escolhas,
enfim, por organizá-lo e governá-lo pelos índices, por dados, pelos números.

Se as identidades docentes apresentadas anteriormente versam sobre as maneiras


como eles devem pensar sua prática, então falta discutir as maneiras como os conteúdos
específicos da área da Educação Matemática estão sendo prescritos a partir do uso
pedagógico da realidade. Assim, os próximos excertos apresentam os assuntos que
devem ser discutidos na vontade de representar a identidade docente
utilitarista/contextualizadora, tecnológica, lúdica, metodológica.

ALGUNS CONTEÚDOS NARRADOS PELOS PROFESSORES

A Estatística no Brasil entrou nos currículos das escolas com os Parâmetros


Curriculares Nacionais, que apontam a exploração desta no Ensino Fundamental e
Médio. No Ensino Fundamental, é sugerido que essa exploração seja feita por meio de
uma pesquisa de campo, usando Temas Transversais. No Ensino Médio, explicam que é
preciso aprimorar o que foi aprendido no Ensino Fundamental. Dessa forma, o uso da
tecnologia na construção de gráficos mais elaborados é uma importante aliada
(DESSBESEL, CURY, 2012, p. 124, negrito nosso).

Há um movimento. Uma inserção. A valoração da estatística como ferramenta,


como estudo, como assunto da escola só se fez necessária após as discussões, as
normatividades dos documentos, segundo as autoras acima. Sua aparição deve percorrer
a Educação Básica. Vontade que não apenas convoca seu ensino, mas solicita que o
docente pesquise, aprenda, acrescente esse assunto em suas ações pedagógicas. Junto
com esse convite, faz-se necessário a escolarização da estatística.

Para que o ensino de matemática seja desafiador, promovendo a construção de


conhecimentos pelos principais envolvidos neste processo, é necessário que o professor
utilize diferentes recursos, que proporcionem ao educando a percepção da matemática
como conhecimento necessário para compreensão do mundo, leitura e interpretação da

97
realidade, e ainda, ferramenta útil nas situações da vida social e profissional (PEREIRA;
NEHRING, 2009, p. 1).

Talvez a escolarização da estatística seja feita pela interdisciplinaridade, pelos


ecos do integrar, do trabalho coletivo, de uma docência colaborativa (SANTOS;
SANTOS, 2014). Os documentos, as prescrições, os instrumentos avaliativos29 se
entrecruzam para produzir formas de pensar a docência contemporânea.

De acordo com os PCN (BRASIL, 2001), o estudo da Estatística contribui para


desenvolver, nos indivíduos, uma visão crítica dos acontecimentos, ajudando-os a fazer
previsões e tomar decisões que influenciam sua vida pessoal e coletiva. Desse modo,
pode-se dizer que o ensino de Estatística ajuda a preparar o aluno para exercer a
cidadania, ou seja, para atuar conscientemente na sociedade em que está inserido
(MELO, GROENWALD, 2012, p. 373).

Estatística como o assunto contemporâneo para convocar o docente a pensar sua


ação pedagógica. Os movimentos pelo ingresso da estatística no material do professor,
nas discussões do aluno. Como ferramenta capaz de propor o olhar a exercer a
cidadania. Os convites são feitos. O uso pedagógico da realidade valoriza esse
conhecimento. A estatística não apenas inserida na rede discursiva da Educação
Matemática, mas como elo entre as outras áreas do conhecimento. Ela vai servindo de
instrumento na tentativa de contextualizar e interdisciplinar a matemática a partir temas,
assuntos emergente no contemporâneo.

A forma como a Educação Ambiental foi incluída nos PCN, reconhece que a escola
assume um papel fundamental na formação de cidadãos ativos e responsáveis,
resgatando valores essenciais como a ética, fraternidade e respeito da vida em geral
(MELO, GROENWALD, 2012, p. 373).

O uso pedagógico da realidade vai possibilitando um investimento, um desejo,


uma vontade de trazer o tema da educação ambiental – e suas problemáticas, suas
discussões – à escola. Segundo os documentos, os recursos estatísticos - anunciados
anteriormente – proporcionam certa confiança ao docente, pois uma vez que se assume
a estatística na escola, ela é capaz de organizar e apresentar estudos de distintas áreas.

29
Pesquisas de Bello e Traversini (2011); Traversini e Bello (2009) trazem as discussões a respeito da
estatística como tecnologia para governar. Assim, os autores discutem questões que relacionam as
políticas públicas, as avaliações nacionais e o saber estatístico no rol do que pode se chamar de saber
estatístico e sua curricularização (BELLO; TRAVERSINI, 2011).

98
Com isso, a estatística vai instituindo-se como a ferramenta capaz de inserir a
matemática em todos os lugares. Logo, vai se produzindo uma matemática está em tudo,
bem como uma matemática interdisciplinar. Com isso, usa-se da estatística para
apresentar uma matemática do mundo, uma matemática em todos os lugares.

Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN (1998) as dificuldades surgem


quando os alunos transferem para os Números Racionais os conhecimentos adquiridos
com os Naturais, como por exemplo: um Número Racional pode ser representado por
diferentes escritas fracionárias; a comparação entre os racionais parecerá contraditória,
pois estão acostumados a relação 3 > 2, e entre os Racionais 1/3 < 1/2 [...]
(MONTEIRO, GROENWALD, 2012, p. 408)

Narram-se as possíveis dificuldades, os desafios que o docente


enfrentará/enfrenta em aula na vontade de instigar o docente a buscar suas ações
justamente lá onde ele fabula e, ao mesmo tempo, institui: o uso pedagógico da
realidade. Mas e como os docentes podem amenizar essas dificuldades? Quais os
desafios que a Educação Matemática pode oferecer?

Concordando com o que preconizam as Orientações Educacionais Complementares aos


Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 2002), encontra-se na leitura o primeiro
passo no processo de interpretação, que vai muito além do domínio da Língua
Portuguesa (RIBEIRO, KAIBER, 2012a, p. 524).

A leitura como elemento da Educação Matemática. Criam-se núpcias que são


problematizadas com a ajuda de gráficos, tabelas, informações do cotidiano. Ou seja,
inserir a estatística em aula é uma forma de propor a leitura matemática. Assim, as
prescrições vão emaranhando-se num encontro em que o docente vai apenas
posicionando suas práticas no sonhar com a verdadeira forma de ser professor. Mais do
que isso, a matemática vai se constituindo como uma linguagem, bem como vão se
apresentando as leituras possibilitadas por ela.

O uso pedagógico da realidade vai instituindo lugares fixos em relação à


docência. O contextualizar que dá conta de procurar a matemática no mundo, mas ainda
sozinha. O interdisciplinar a partir da estatística – para não dizer apenas pela -. As
tecnologias como instrumentos organizados a partir de saberes matemáticos. As
resoluções de problemas, as situações-problema junto com a modelagem matemática
dão conta, ainda assim, somente da matemática. Logo, as prescrições, os desejos, as

99
narrativas docentes em prol desse estar em todos os lugares, vão apenas (re)afirmando
que a matemática não consegue aproximar-se das outras áreas do conhecimento se não
forem seguidos os restritos passos da estatística, das produções próprias à matemática.

Salientamos que não estamos valorizando a estatística em relação aos campos da


educação matemática, mas sim que o desejo de estar em tudo só está sendo possível a
partir de modos específicos. As formas-aceitas de ser docente não apresentaram, até
agora, outros pensamentos matemáticos – como geometria, equações, polinômios -.
Nenhum outro campo da Educação Matemática foi prescrito além da estatística pelos
materiais que compuseram nossa pesquisa. Portanto, só está sendo valorizada, segundo
nossa materialidade, a estatística30 como instrumento para pensar a matemática nos
distintos lugares, nas diversas formas de conhecimento.

[...] os alunos tiveram um pouco de resistência ao escrever, demonstrando-se bastantes


sucintos e objetivos. Para suprir esta lacuna de conclusão das atividades, passamos para
um momento de diálogo, considerando as diferentes formas que a matemática se
apresenta no cotidiano da vida das pessoas. Salientamos a importância da
matemática no dia-a-dia, vendo que ela se apresenta no trabalho, estudo, lazer,
família e etc (REIS; SILVA, 2009, p. 4).

O utilitarismo, mais uma vez, é convocado para constituir, produzir significados


naquilo que fazemos na escola. Nesse insistente dualismo entre a matemática do mundo
e a da escola, vamos percebendo que as convocações docentes vão anunciando, com
toda a força, práticas que buscam o utilitarismo como forma de pensar a matemática.

Destarte, a forma sujeito-professor utilitarista vai (re)afirmando-se nessas


condutas docentes. Percebemos que tal forma-sujeito herda da prescrição buscar a
contextualização da matemática; e da prescrição buscar a matemática presente no
cotidiano, força para convocar condutas a partir dessas maneiras utilitaristas de pensar a
docência. Com isso, o utilitarismo daria conta de produzir os significados que os

30
A valoração da estatística não se dá apenas no âmbito da docência, dos documentos , das identidades
docentes, enfim, do saber-realidade. As pesquisas do IBGE, por exemplo, utilizam dos recursos
estatísticos para divulgar as estatísticas do país. Não obstante, as formas de governar, de conduzir as
políticas públicas utilizam dos recursos estatísticos para a cientificidade de suas pesquisas, seus estudos.
Logo, acaba emergindo, como suposto lugar comum, o lugar da estatística como fonte de discutir,
trabalhar, descrever, mensurar, quantificar, qualificar, organizar, inferir qualquer discussão. Ou seja, os
demais professores da escola, que não os matemáticos, percebem a matemática está em tudo pela
estatística. Aliás, é a estatística que vem – com muita força – (re)atualizando uma matemática em todos os
lugares.

100
discentes solicitam para entender, se “motivarem” a estudar, a pesquisar, a pensar
na/pela matemática.

Desse modo, os convites para se dizer professor fabricam formas de


problematizar as discussões em aula no intuito de constituir uma identidade docente. Há
uma necessidade por enquadrar, por dizer o que se é; por optar.

O uso da história da Matemática na formação do professor, conforme os PCN (1997),


colabora na desmistificação da Matemática como sendo uma Ciência pronta e acabada,
ao mostrá-la como conhecimento em contínuo processo de evolução e adequações a
novas ideias (ALMEIDA, SANTOS, 2012, p. 466).

Escolha a Contextualização, escolha a história da matemática – e mostre as


rupturas -, escolha a tecnologia, use a estatística! Agora. Contemporâneo. Docente.
Recorte, costure, pinte, fabrique. Acredite nas prescrições e nas formas já constatadas
que o uso pedagógico da realidade é a salvação; a inovação; a melhor solução!

Todos os elementos que compõem o saber-realidade vendem seus produtos.


Oferecem – sob parcelas baixíssimas – condições imperdíveis e que “cabem no bolso”
de qualquer professor! Narrar a docência – no contemporâneo – é um insistente desafio
de escolher...

Queremos fazer a diferença na escola e concluímos que, apenas com o ensino voltado às
necessidades e à realidade dos estudantes, conseguiremos inseri-los no mundo e
transformá-los em pessoas críticas (RABAIOLLI et al, 20123, p. 512).

Mas a escolha já foi feita! E já está sendo distribuída. Viva, pois o docente não
precisa se preocupar com as possibilidades, já estão escolhidas algumas – poucas –, mas
eficazes maneiras de ser docente. Com isso, vão se fabulando as formas-sujeito-docente.
Todas através da vontade do uso pedagógico da realidade, instituindo o que
denominamos de saber-realidade. Logo, a docência – prescrita, normatizada
discursivamente - vai identificando-se apenas com aquilo que está no mundo do aluno;
no âmbito de suas vivências. A realidade vai constituindo-se como efeito de verdade
desses discentes, das experiências, do que está no mundo, das relações, de utilitarismos.

Percebemos que mesmo as prescrições denunciando que a matemática é uma


construção humana, constituída em determinados lugares, sob determinadas condições,
ainda podemos perceber três pontos sobre o saber-realidade: Um primeiro ponto

101
holístico, pois se deseja que a realidade seja determinada à medida que o docente
observa sua escola, seus discentes. Uma representação da realidade para conhecer seu
lugar de trabalho. Um segundo ponto traz a discussão psicológica por entender que a
realidade vai passar pela interação, pela experiência. Assim, o concreto vai adquirindo
espaço, pois ele vai compondo os entendimentos sobre o que seja o real. Como terceiro
ponto, podemos pensar a realidade no âmbito do mundo e, portanto, desejar o
contextualizar, o estar em tudo, o interdisciplinar. Logo, são esses três pontos que
vão compondo, (re)atualizando as discussões em torno do saber-realidade.

Analisando as respostas dadas pelos alunos no texto Copa, verificou-se que o


desempenho foi satisfatório na leitura, interpretação dos gráficos e análise de dados
propostos na atividade. Atribui-se a facilidade apresentada pelos estudantes ao fato
deste tipo de texto (jornalístico) estar presente no dia a dia do aluno, além do tema do
texto ser um assunto que desperta interesse do aluno como futebol, viagens e cidades
turísticas (RIBEIRO, KAIBER, 2012a, p. 530).

Vá aos lugares certos! Procure os materiais adequados! Vire à esquerda. Um


passo mais a direita. Suba outro degrau... Intermináveis, desejáveis, violentas, fortes:
prescrições. Palavras de ordem. Vontade coletiva, compartilhada, oferecida,
distribuída... Legitimada: o uso pedagógico da realidade na aula. Professor, nem pense
em dizer não, pois...

Outras características presentes nos problemas fechados são de não estarem


relacionados à realidade do educando e de sua resolução ser realizada de forma simples,
o que leva o educando a uma atitude de dependência ou de memorização do
conhecimento. O professor neste caso considera que o discente aprende por meio da
reprodução, ou seja, resolvendo exercícios repetitivos e com estratégias idênticas
(LAZZARDI, LIMA, SCHULZ, 2012, p.663).

Não volte! Aprenda as regras do jogo! Saiba jogar a matemática da escola, do


aluno, da vida! Não se esqueça de inovar, melhorar, (d)escrever, partilhar,
(com)partilhar, atualizar, computar, tabular, desenhar, historicizar...

Fala-se demasiadamente sobre a importância de trabalhar com a realidade do educando,


correndo-se o risco de estar limitando o pensamento do aluno ao mundo por ele
percebido, mas os problemas são a própria realidade, ou melhor dizendo, são “as

102
realidades”, que muitas vezes são deixadas de lado para se trabalhar com fórmulas e
“receitas matemáticas” [...] (FIOR, LOUREURO, 2012, p. 744, aspas das autoras).

Fala-se demasiadamente... Mas insiste-se em falar! Talvez, o calar já esteja


sendo um efeito do falar – demasiadamente – sobre esse exercício, essa vontade, esse
efeito, essa força de pensar a Educação Matemática na e pelo uso pedagógico da
realidade.

“E não somos traídos por tudo aquilo que achamos importante? É o que mostra
onde colocamos nossos pesos e para que coisas não possuímos pesos” (NIETZSCHE,
2012, p. 109). E talvez, seja o instante de perguntar: como inventamos os pesos que –
humano demasiadamente humano – precisamos carregar ao ocupar a docência?

As correntes são tão fortes, prendem e seguram com tamanha potência que por
uma fração de segundos, tende-se a esquecer das invenções. Das repetições, das
prescrições ditas, lidas, interpretadas, valoradas que constituem formas fixas, precisas,
mas convidativas de pensar a docência. As narrativas docentes quase violentaram a
escrita, a discussão ao passo de talvez apagar a vontade – nossa- de não estacionar. As
análises anteriores compuseram o último percurso para constituir um plano sobre o
saber-realidade: a vontade, a identificação, a representação de formas docentes na
Educação Matemática.

OS ECOS DO SABER-REALIDADE

O que fazer com tudo isso agora? Respirar! Inspirar! (A)creditar! O artigo
trouxe discursos recorrentes sobre as formas contemporâneas de ser docente. Ao
observar os anais dos X e XI EGEM, percebemos as convocações em prol do saber-
realidade. Mais do que isso, observamos as narrativas que convocam, identificam-se
com o uso pedagógico da realidade.

A recorrência discursiva que incita, prescreve o uso pedagógico da realidade é –


insistentemente – apresentada que seu uso vai (re)afirmando-se e legitimando seu
aparecimento, assim como, constituindo formas-aceitas de pensar a docência por essas
recorrências. Ou seja, a existência da luta, o investimento para que o uso pedagógico da
realidade ocupe o lugar de saber vai sendo esquecido à medida que o discurso vai
(re)aparecendo e (re)apresentando as formas de ser docente. Percebe-se, entretanto, que
as primeiras convocações para pensar os modos distintos de matematizar, o olhar para
as distintas culturas e formas de estar no mundo são interpretadas de outra maneira à

103
medida que a rede discursiva da Educação Matemática prescreve o uso pedagógico da
realidade. Assim, percebe-se que o entendimento pedagógico da realidade vai
constituindo-se como efeito de verdade de um lugar, dos alunos, de uma experiência, de
uma vivência, de uma contextualização, de uma interdisciplinarização.

Ao longo do texto oferecemos algumas categorias docentes: identidade docente


utilitarista/contextualizadora, identidade docente lúdica, identidade docente
tecnológica, identidade docente metodológica e alguns assuntos específicos que
podem ser abordados através do uso pedagógico da realidade.

A identidade docente utilitarista/contextualizadora narrou a vontade de


contextualizar, de produzir uma matemática que seja útil para cada cidadão. Na
representação de uma forma docente que busca, que procura a matemática em todos os
lugares a partir do uso pedagógico da realidade.

A identidade docente lúdica trouxe um saber da psicologia e da infância


proporcionando o entendimento de que ao interagir com o jogo – ou com material
lúdico – o estudante produzirá significado a sua aprendizagem. Assim, narrando a
vontade de significar não apenas as aprendizagens, mas a matemática, (re)afirmando a
identidade utilitarista.

Por sua vez, a identidade docente tecnológica narrou as representações que


convocam, prescrevem o uso das tecnologias como maneira de pensar a docência
contemporânea. O uso pedagógico da realidade vai sendo prescrito na medida em que se
institui o uso da tecnologia como ferramenta para aproximar, significar, produzir
SENTIDO às aprendizagens em matemática.

A identidade docente metodológica apontou para metodologias como


RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS, PROJETOS sendo algumas das metodologias
apontadas como modos de usar pedagogicamente a realidade. Durante a análise dos
excertos, percebemos convocação – indireta – do uso da MODELAGEM
MATEMÁTICA – que ficou mais evidente no segundo artigo desta dissertação – e as
HISTÓRIAS MATEMÁTICAS também como ferramentas para contextualizar, para
significar as aprendizagens em matemática.

Ainda trouxemos alguns assuntos que são valorizados pelas narrativas docentes:
estatística como forma de contextualizar; como uma maneira de perceber a matemática
nas diversas áreas do conhecimento e, assim, em todos os lugares. Apontamos, também,

104
a educação ambiental como forma de diálogo com a matemática. Vimos às narrativas
que prescreveram a escrita e leitura em matemática como outra forma de percebê-la em
todos os lugares. Por fim, apontamos algumas dificuldades que poderão ser
identificadas pelos docentes ao longo de suas ações pedagógicas, mas que com o uso
pedagógico da realidade essas lacunas podem ser resolvidas ou amenizadas.

Seja pela ciência, pela verdade, pelo cotidiano, pela resolução de problemas,
pela estatística, pela história matemática, pela vida, por escolhas éticas, pelas questões
ambientais, foram apresentadas, listadas e validadas formas que regulam, normatizam,
representam os modos de ser docente no campo da Educação Matemática
contemporânea. Além disso, essas formas vão constituindo entendimentos do que seja a
matemática hoje: algo real, contextualizado, interdisciplinar, dinâmico, concreto, útil,
que está em todos os lugares...

Se os discursos recorrentes convocaram e compuseram maneiras de ser docente,


eles também alertaram para as maneiras pelas quais o docente não terá bons resultados.
A prescrição não disse que existem formas inviáveis de ser docente, mas o aviso estava
na ordem de se distanciar de ações pedagógicas que não versam sobre o uso pedagógico
da realidade.

Desejar, prescrever, convocar: esses foram os anúncios que os anais dos X e XI


EGEM trouxeram, denunciando: que o saber-realidade está na ordem da verdade
contemporânea. Que não se instigam mais suas produções, suas invenções, suas
emergências. Que ela – a realidade produzida discursivamente – inclusive sobre nova
(re)leitura insiste em dizer algo para e sobre a docência. Insiste em identificar,
representar maneiras de ser e agir no contemporâneo.

A matemática deseja estar na realidade, deseja ser verdadeira, mas não deseja
desconstituir seu papel de deusa do conhecimento: a verdadeira verdade. Tentamos,
enfim, esquartejar essas deusas do saber-realidade para entender como nos percebemos
docentes que constituímos nossas práticas por esse movimento. Esquecemos-nos de
refletir, de problematizar esses espaços; esquecemos-nos de voltar às produções iniciais.
Simplesmente esquecemos... Até quando a matemática vai esquecer suas produções,
suas rupturas, suas constituições em prol de uma vontade de verdade que modela,
concretiza e fixa maneiras de entendê-la, de ser professor? Através dessas formas fixas,
vamos tentando sobreviver com o que ainda é possível de constituir seja pelo saber-
realidade, seja por essas formas tão perfeitas e ideais de ser-professor-qualquer-coisa.
105
Não obstante, acreditamos que o uso pedagógico da realidade entra na ordem de
rebanho – pensando com Nietzsche – descrevendo um ideal ascético (NIETZSCHE,
2009), ou seja, desejando esse uso mais por pensá-la no coletivo, por ouví-lo
frequentemente do que por acreditar que as distintas formas de organização possam
produzir e constituir outros modos de matematizar31. Enfim, que o uso pedagógico da
realidade perde sua força e torna-se um conceito vazio, uma mesmice em que apenas
está na ordem do que pode ser dito na Educação Matemática. Assim, basta nos
subjetivarmos ao discurso do uso pedagógico da realidade que, enfim, seremos docentes
contemporâneos.

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https://www.univates.br/media/egem/XI_EGEM.pdf> Acesso em 26 mai. 2015.

31
Gostaríamos de destacar que os primeiros entendimentos acerca do saber-realidade não estão sendo
tomados como verdadeiros. Apenas estamos apontando para os entendimentos diversos. O que
percebemos – no contemporâneo- é que as práticas pedagógicas em torno do saber-realidade tomam esse
conceito como algo aceito e pronto. Por isso, problematizamos a discussão pensando com o rebanho
nietzschiano. Acreditamos que é tão recorrente o uso, a prescrição, a condução, a normatividade do saber-
realidade que ele acaba instaurando efeitos de verdades inquestionáveis à Educação Matemática. São para
essas identidades, essas representações universais que problematizamos neste artigo tentando entender os
percursos pelos quais ainda nos inclinamos a essas representações, esses efeitos de verdade.

106
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110
5. (IN)CONCLUSÕES. PELO EXERCÍCIO DE FINALIZAR...

(IN)CONCLUSÕES: ARTIGO 1

Quando se toma a arte como uma forma subjetiva de olhar o mundo ou o


jornalismo que visa à descrição dos fatos, daquilo que acontece no mundo, não se está
propondo dualismos. Talvez, estejamos pensando distintas formas de olhar, outras
maneiras de estar no mundo. Dizer-se-á que a arte e o jornalismo são formas – bem
como produzem maneiras - de interpretar a realidade.

Não podemos esquecer que a ciência, a história e, em especial, a Educação


Matemática, produzem olhares sobre o mundo a partir de uma forma singular de suas
produções. Com isso, olhar o mundo de uma maneira é esboçar/inventar formas de
entender a realidade. Foram em algumas invenções entre realidade, conhecimento e
verdade que o primeiro artigo pretendeu se movimentar. Não está previsto que uma
forma única de estar e entender o mundo seja possível, mas múltiplas, caóticas e
singulares formas de desenhar, desejar, falar sobre o mundo, - em especial - sobre a
Educação Matemática.

Se trouxemos o lugar da verdade e do conhecimento na filosofia foi para


problematizar como os entendimentos acerca da realidade foram se modificando. Da
possibilidade de uma verdade universal a inexistência da coisa em si, Nietzsche e
Foucault apontaram para uma vontade de verdade – que se esvaziou – e uma vontade de
saber - que se constituiu na vontade de conhecer. Assim, a realidade no entendimento
filosófico clássico de apontar a verdade das coisas não é utilizada em nosso artigo.
Discutimos outra realidade. Em especial, outra maneira de entender a realidade.

Denominamos a realidade constituída na Educação Matemática como: uso


pedagógico da realidade. Assim, analisamos as convocações, as regularidades, as
normatividades em torno de um uso pedagógico, acreditando que a realidade que é
produzida discursivamente no campo referido solicita, convida, promete um uso que
seja significativo, que contextualize, que esteja em todos os lugares.

Precisamos esclarecer que o uso pedagógico da realidade é prescrito, regulado


pela rede discursiva da Educação Matemática enquanto que o saber-realidade é cunhado
por nós como os saberes, as economias, os investimentos, as produções que emergiram
com esse saber, mas que o regulam, atualizam, o colocam – a todo instante – na rede

111
discursiva em Educação Matemática. Com isso, fizemos uso dessas duas maneiras de
entender a realidade atentando para como se tem narrado, se tem regulado um uso que é
pedagógico e que solicita a realidade e o saber que instaura um plano de entendimentos
em torno do uso pedagógico da realidade. A saber: o saber-realidade.

Concomitantemente, o saber-realidade emergiu desse lugar filosófico da


verdade e do conhecimento. Entendemos que não apenas a verdade e o conhecimento,
bem como a ciência, mas o saber-realidade são efeitos de práticas discursivas. Em
especial, para nosso artigo, olhamos para as práticas pedagógicas de educadores
matemáticos tomados como referência para o campo que investiram em estudos para
pensar uma matemática que se destituísse dos seus formalismos, da academia e saísse –
em palavras nietzschianas – do “columbário romano” e pudesse circular por todas as
tribos, todas as etnias, todas as formas de matematizar.

Uma vez que não é nosso objetivo inserir valores – pois sua inserção conduziria
a uma verdade -, mas apenas (re)pensar o cenário da Educação Matemática
contemporânea por um viés filosófico que recusa tomar o saber como algo neutro,
natural, universal. Assumindo que não apenas a filosofia – e os autores escolhidos nesta
pesquisa – mas o saber-realidade criam maneiras de olhar, de interpretar e de estar no
mundo.

(IN)CONCLUSÕES: ARTIGO 2

[...] como alguém divinamente disperso e imerso em si, a quem os sinos acabam
de estrondear no ouvido as doze batidas do meio-dia, e súbito acorda e se
pergunta “o que foi que soou?”, também nós por vezes abrimos depois os ouvidos e
perguntamos, surpresos e perplexos inteiramente, “o que foi que vivemos?”, e
também “quem somos realmente?”, e em seguida contamos, depois, como disse, as
doze vibrantes batidas da nossa vivência, da nossa vida, nosso ser – ah! E
contamos errado... Pois continuamos necessariamente estranhos a nós mesmos, não
nos compreendemos, temos que nos mal-entender, a nós se aplicará para sempre a
frase: “Cada qual é o mais distante de si mesmo” – para nós mesmos somos
“homens do desconhecimento”... (NIETZSCHE, 2009, p. 7).
Nietzsche, em suas discussões críticas, mas poéticas problematiza como
atribuímos valores. Em outras palavras, como a moral foi desenhando-se. Assim, uma

112
de suas discussões versa sobre o estranhamento que temos de nós mesmos. Homens do
conhecimento que não nos conhecemos. Do desconhecimento de si, de sua docência,
que a presente pesquisa configurou-se.

Da necessidade de analisar como o docente constitui suas práticas pelo dizer


verdadeiro sobre a realidade (SANTOS, 2015), que iniciaram os percursos do presente
artigo. Assim, a escolha pelos documentos se fez da necessidade de entender como os
instrumentos que são desenvolvidos para apresentar, descrever e propor as ações
docentes constituintes e constituidoras pelo uso pedagógico da realidade estão
prescrevendo, normatizando esse uso.

Existem tramas, redes, emaranhados, desejos, formas outras tantas de validar


uma prática discursiva – em especial – o uso da realidade na Educação Matemática e,
dessa forma, entendendo que um saber vem acompanhado de um complemento, pois é
um saber sobre algo, sobre alguma coisa. Logo, afirmamos que o saber-realidade é
constituído não apenas pelas produções de pesquisadores no campo para constituir,
incitar os movimentos pelas distintas formas de matematizar, mas por esses
instrumentos que podem falar e que escolhem de que maneira vão prescrevendo as
formas, as condutas esperadas dos professores de matemática.

Não obstante, temos que a convocação mais enfática “[...] e recorrente tem sido
o apelo à necessária integração entre teoria e prática, como maneira de se formar o
“bom professor” que poderá tratar, discutir e enfrentar os problemas educacionais do
cotidiano escolar” (UBERTI, BELLO, 2013, p. 17). Compondo, elaborando e, por isso,
prescrevendo elementos em prol da formação necessária do educador contemporâneo.
Produzindo, instaurando, (re)afirmando efeitos de verdades, práticas, condutas no rol de
regimes verdadeiros sobre ser docente em nosso tempo. Dessa maneira, os excertos
analisados apontam as produções, os esclarecimentos, os entendimentos, as promessas e
as crenças a partir do uso pedagógico da realidade que respaldam as ações docentes.
Mais do que isso, os documentos regulam e normatizam as práticas pedagógicas que já
estão sendo realizadas no âmbito da escola básica (re)afirmando e padronizando as
maneiras de ser e agir.
Para compor nosso artigo, percebemos três prescrições recorrentes nos excertos
analisados. A saber: Buscar a contextualização da matemática; Buscar a matemática
presente no cotidiano; Realidade constituinte de práticas de ensino-aprendizagem.

113
Buscar a contextualização da matemática apresentou as normatividades
contemporâneas de pensar a matemática pela contextualização. O movimento dos
documentos foi de validar, (re)afirmar a necessidade de falar sobre a aplicabilidade da
matemática. Convidando os docentes e (re)pensar suas ações pedagógicas pela vontade
de contextualizar, de aplicar a matemática, de torná-la parte do mundo e de estar em
todos os lugares.

Buscar a matemática presente no cotidiano trouxe não apenas a prescrição,


mas o esforço de apresentar exemplos, lugares, situações em que a matemática está
presente. Na ânsia de constituir as ações pedagógica que apresentam, discutem,
normatizam uma matemática presente no cotidiano de todos e de cada um.

Realidade constituinte de práticas de ensino-aprendizagem trouxe as


prescrições acerca de como deve ser a organização docente a partir do uso pedagógico
da realidade. Os olhares docentes, as metodologias adequadas, as maneiras de pensar a
prática, os modos como a matemática pode ser articulada e proposta para que a ação
pedagógica legitime-se pelo uso da realidade na Educação Matemática e que, portanto,
convocassem os docentes a narrar suas aulas, suas práticas pelo contextualizar, pelas
metodologias apresentadas, pelo interdisciplinar. Enfim, pelo saber-realidade.

Todas as prescrições apresentadas neste artigo apontam as discursividade do uso


pedagógico da realidade. Além disso, todo esse material (re)atualiza as discussões em
torno do saber-realidade. Com isso, os documentos são apresentados como formas de
regular, prescrever, normatizar os usos que já estão sendo feitos na escola, durante as
aulas de matemática. Logo, eles não apresentam novidades, mas incitam, provocam,
prometem maneiras de usarmos pedagogicamente a realidade e as possibilidades para
constituirmos nossas ações docentes.

Percebemos que a economia do saber-realidade “está justamente no fato de


enunciar a Educação Matemática de um determinado modo e não de outro, tornando
possível um tipo de visibilidade e não outro, uma forma de enunciação, e não outra –
ainda que dispersas e não correspondentes” (UBERTI, 2016)32. O saber-realidade não
pretende (des)cobrir a verdade para denunciá-la. Estamos interessados em pensar de
que forma, sobre que cuidados nos assujeitamos às práticas pedagógicas que oferecem o
uso pedagógico da realidade como modo de pensar a docência contemporânea. Em

32
UBERTI, Luciane. Parecer da dissertação de Gilberto Silva dos Santos, defendida em 24/02/2016 pelo
Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências: Química da Vida e Saúde/PPGQVS.

114
outras palavras, nos inclinamos para problematizar quais são as verdades do nosso
tempo; quais são as nossas formas de ser e agir na docência de nosso tempo. Como diria
Foucault, estamos interessados em produzir uma história do presente, de nosso tempo
(2012a).

Podemos destacar que cada uma das duas práticas finais retomou a primeira:
Buscar a contextualização da matemática. A vontade de enxergá-la por todos os
lados não (re)afirma que ela não estava lá? Ou que alguma vez não esteve? Ou melhor,
que até a prescrição – ou a criação do saber-realidade – não havia investimentos; não
estava na ordem do que se poderia falar na Educação Matemática - que a matemática
estivesse pelo mundo? Que vontade platônica e, porque não, tão mais difícil de dizer
que se está em todo lugar? Seria isso uma atualização da superioridade da matemática?
Afinal, se prescreve uma matemática para todos e cada um ou para poucos e quase
nenhum?

Mas há ainda uma necessidade. O saber-realidade e a constituição docente


contemporânea: como os docentes estão se subjetivando em relação ao uso pedagógico
da realidade? Que usos estão sendo feitos?

Para responder a essas duas questões, propomos o próximo artigo que tentará
olhar como os docentes estão identificando-se com as prescrições, as formas legitimadas
de pensar a docência contemporânea. No intuito de olhar as interpretações, as
valorações, as tramas que possibilitam que os docentes apresentem suas identificações.
Em suma, observar quais são as identidades docentes no âmbito do uso pedagógico da
realidade que produzem maneiras de entendermos o saber-realidade.

(IN)CONCLUSÕES: ARTIGO 3

que fazer com tudo isso agora? Respirar! Inspirar! (A)creditar! O artigo trouxe
discursos recorrentes sobre as formas contemporâneas de ser docente. Ao observar os
anais dos X e XI EGEM, percebemos as convocações em prol do saber-realidade. Mais
do que isso, observamos as narrativas que convocam, identificam-se com o uso
pedagógico da realidade.

A recorrência discursiva que incita, prescreve o uso pedagógico da realidade é –


insistentemente – apresentada que seu uso vai (re)afirmando-se e legitimando seu
aparecimento, assim como, constituindo formas-aceitas de pensar a docência por essas
recorrências. Ou seja, a existência da luta, o investimento para que o uso pedagógico da

115
realidade ocupe o lugar de saber vai sendo esquecido à medida que o discurso vai
(re)aparecendo e (re)apresentando as formas de ser docente. Percebe-se, entretanto, que
as primeiras convocações para pensar os modos distintos de matematizar, o olhar para
as distintas culturas e formas de estar no mundo são interpretadas de outra maneira à
medida que a rede discursiva da Educação Matemática prescreve o uso pedagógico da
realidade. Assim, percebe-se que o entendimento pedagógico da realidade vai
constituindo-se como efeito de verdade de um lugar, dos alunos, de uma experiência, de
uma vivência, de uma contextualização, de uma interdisciplinarização.

Ao longo do texto oferecemos algumas categorias docentes: identidade docente


utilitarista/contextualizadora, identidade docente lúdica, identidade docente
tecnológica, identidade docente metodológica e alguns assuntos específicos que
podem ser abordados através do uso pedagógico da realidade.

A identidade docente utilitarista/contextualizadora narrou a vontade de


contextualizar, de produzir uma matemática que seja útil para cada cidadão. Na
representação de uma forma docente que busca, que procura a matemática em todos os
lugares a partir do uso pedagógico da realidade.

A identidade docente lúdica trouxe um saber da psicologia e da infância


proporcionando o entendimento de que ao interagir com o jogo – ou com material
lúdico – o estudante produzirá significado a sua aprendizagem. Assim, narrando a
vontade de significar não apenas as aprendizagens, mas a matemática, (re)afirmando a
identidade utilitarista.

Por sua vez, a identidade docente tecnológica narrou as representações que


convocam, prescrevem o uso das tecnologias como maneira de pensar a docência
contemporânea. O uso pedagógico da realidade vai sendo prescrito na medida em que se
institui o uso da tecnologia como ferramenta para aproximar, significar, produzir
SENTIDO às aprendizagens em matemática.

A identidade docente metodológica apontou para metodologias como


RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS, PROJETOS sendo algumas das metodologias
apontadas como modos de usar pedagogicamente a realidade. Durante a análise dos
excertos, percebemos convocação – indireta – do uso da MODELAGEM
MATEMÁTICA – que ficou mais evidente no segundo artigo desta dissertação – e as

116
HISTÓRIAS MATEMÁTICAS também como ferramentas para contextualizar, para
significar as aprendizagens em matemática.

Ainda trouxemos alguns assuntos que são valorizados pelas narrativas docentes:
estatística como forma de contextualizar; como uma maneira de perceber a matemática
nas diversas áreas do conhecimento e, assim, em todos os lugares. Apontamos, também,
a educação ambiental como forma de diálogo com a matemática. Vimos às narrativas
que prescreveram a escrita e leitura em matemática como outra forma de percebê-la em
todos os lugares. Por fim, apontamos algumas dificuldades que poderão ser
identificadas pelos docentes ao longo de suas ações pedagógicas, mas que com o uso
pedagógico da realidade essas lacunas podem ser resolvidas ou amenizadas.

Seja pela ciência, pela verdade, pelo cotidiano, pela resolução de problemas,
pela estatística, pela história matemática, pela vida, por escolhas éticas, pelas questões
ambientais, foram apresentadas, listadas e validadas formas que regulam, normatizam,
representam os modos de ser docente no campo da Educação Matemática
contemporânea. Além disso, essas formas vão constituindo entendimentos do que seja a
matemática hoje: algo real, contextualizado, interdisciplinar, dinâmico, concreto, útil,
que está em todos os lugares...

Se os discursos recorrentes convocaram e compuseram maneiras de ser docente,


eles também alertaram para as maneiras pelas quais o docente não terá bons resultados.
A prescrição não disse que existem formas inviáveis de ser docente, mas o aviso estava
na ordem de se distanciar de ações pedagógicas que não versam sobre o uso pedagógico
da realidade.

Desejar, prescrever, convocar: esses foram os anúncios que os anais dos X e XI


EGEM trouxeram, denunciando: que o saber-realidade está na ordem da verdade
contemporânea. Que não se instigam mais suas produções, suas invenções, suas
emergências. Que ela – a realidade produzida discursivamente – inclusive sobre nova
(re)leitura insiste em dizer algo para e sobre a docência. Insiste em identificar,
representar maneiras de ser e agir no contemporâneo.

A matemática deseja estar na realidade, deseja ser verdadeira, mas não deseja
desconstituir seu papel de deusa do conhecimento: a verdadeira verdade. Tentamos,
enfim, esquartejar essas deusas do saber-realidade para entender como nos percebemos
docentes que constituímos nossas práticas por esse movimento. Esquecemos-nos de

117
refletir, de problematizar esses espaços; esquecemos-nos de voltar às produções iniciais.
Simplesmente esquecemos... Até quando a matemática vai esquecer suas produções,
suas rupturas, suas constituições em prol de uma vontade de verdade que modela,
concretiza e fixa maneiras de entendê-la, de ser professor? Através dessas formas fixas,
vamos tentando sobreviver com o que ainda é possível de constituir seja pelo saber-
realidade, seja por essas formas tão perfeitas e ideais de ser-professor-qualquer-coisa.

Não obstante, acreditamos que o uso pedagógico da realidade entra na ordem de


rebanho – pensando com Nietzsche – descrevendo um ideal ascético (NIETZSCHE,
2009), ou seja, desejando esse uso mais por pensá-la no coletivo, por ouví-lo
frequentemente do que por acreditar que as distintas formas de organização possam
produzir e constituir outros modos de matematizar33. Enfim, que o uso pedagógico da
realidade perde sua força e torna-se um conceito vazio, uma mesmice em que apenas
está na ordem do que pode ser dito na Educação Matemática. Assim, basta nos
subjetivarmos ao discurso do uso pedagógico da realidade que, enfim, seremos docentes
contemporâneos.

Alertamos, por fim, que nós, educadores matemáticos, não percebemos a força
com que o saber-realidade é solicitado, prescrito, normatizado. Apenas, usamos esses
saberes. Talvez, esse uso venha da vontade de tentar ensinar uma disciplina, um
conhecimento que, por um bom tempo, foi prescrito como algo superior, a parte do
mundo. As arestas que aparamos ao longo do tempo nos fizeram acreditar no uso
pedagógico da realidade como a maneira de – no contemporâneo – reduzir as arestas – e
as distâncias – entre a matemática e a vida do dia-a-dia, o cotidiano.

Assim, finalizamos essa dissertação com a vontade de continuar. O saber-


realidade que anuncia, dita, orienta, regula um plano sobre o uso pedagógico da
realidade, ainda pode ser tencionado. À medida que nos deparamos com a força, à
violência do saber-realidade, será que podemos constituir outros modos com tudo isso
que nos é ofertado? Será que ainda existem espaços que constituem maneiras, modos de
pensar singulares? Estamos tão presos ao saber-realidade que não conseguimos

33
Gostaríamos de destacar que os primeiros entendimentos acerca do saber-realidade não estão sendo
tomados como verdadeiros. Apenas estamos apontando para os entendimentos diversos. O que
percebemos – no contemporâneo- é que as práticas pedagógicas em torno do saber-realidade tomam esse
conceito como algo aceito e pronto. Por isso, propomos uma discussão pensando com o rebanho
nietzschiano. Acreditamos que é tão recorrente o uso, o convite, a normatividade do saber-realidade que
ele acaba sendo valorado como verdadeiro perante a Educação Matemática. Analisamos as identidades, as
representações universais tentando entender os percursos pelos quais ainda nos inclinamos a essas
representações.

118
constituir outros modos de existência? Por hora, podemos responder a todas essas
perguntas com um: sigamos! Que a vontade de potência nos permita não desistir de
entender e tencionar as maneiras pelas quais nos subjetivamos no contemporâneo.

119
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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