Schiavon Nery Cardozo Feloniuk Silveira Patrimnio em Perspectivas
Schiavon Nery Cardozo Feloniuk Silveira Patrimnio em Perspectivas
Schiavon Nery Cardozo Feloniuk Silveira Patrimnio em Perspectivas
Todos os direitos reservados e protegidos pela lei nº 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem
autorização prévia por escrito da editora ou do(s) autor(es), poderá ser reproduzida ou transmitida, sejam
quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.
Importante: as opiniões expressas neste livro, que não sejam as escritas pelos organizadores em seus
capítulos, não representam ideia(s) destes. Cabe, assim, a cada autor a responsabilidade por seus escritos.
Fotografia da capa:
Olivia Silva Nery
Revisão:
Dos autores
Editor:
Marcelo França de Oliveira
719 p.
Bibliografia.
ISBN: 978-65-86625-34-9
EDITORA CASALETRAS
R. Gen. Lima e Silva, 881/304 - Cidade Baixa
Porto Alegre - RS - Brasil CEP 90050-103
+55 51 3013-1407 - [email protected]
www.casaletras.com
3
APRESENTAÇÃO......................................................................................................... 10
APRESENTAÇÃO
Os anos de 2020 e 2021 ficarão para sempre marcados na história, pois a pandemia
de Covid-19 alterou profundamente a forma como nos relacionamos uns com os outros,
com o nosso meio e com o nosso tempo. Dentre essas transformações, em meio as
diversas perdas que sofremos, o patrimônio cultural, nas suas mais diferentes formas,
tipologias e expressões, atuou como espaço de reflexão, de reconstruição de vínculos e
identidades.
Ao longo desses dois anos, o patrimônio cultural não deixou de estar nas pautas
das notícias nacionais e mundiais, discutindo poder, representação e os usos políticos do
passado. Confinados em casa, sem poder viver as cidades, os espaços urbanos e rurais,
sem visitar amigos e familiares, também nos aproximamos da ideia de patrimônio, através
daquilo que o antropólogo José Reginaldo Gonçalves tão bem retratou: a perda.
Parafraseando Mário Chagas, quando ele menciona que os museus são bons para
pensar e agir, complementa-se que assim como os museus, o patrimônio cultural também
desempenha esta função. Ao longo deste livro, estão listados exemplos disso, em
perspectivas que abrangem diversos lugares do Brasil. Nesta direção, na primeira parte
11
Nessa esteira, a presente obra busca contribuir para os estudos e para a preservação
do patrimônio cultural, com reflexões contemporâneas a partir de abordagens práticas,
teóricas e conceituais a partir de um diálogo interdisciplinar, como é da natureza do
campo do patrimônio, permitindo conectar não somente as mais diversas regiões do Brasil
como, também algumas experiências internacionais.
12
Introdução
Os museus regionalizados e interioranos são contemplados por uma política de estudos
e investimentos museais em grande parte nula, especialmente alguns museus do estado de
Minas Gerais que possui no centro da relevância das pesquisas e desenvolvimentos nesta área
as cidades históricas, como Ouro Preto, Mariana, Tiradentes e outras, que representam “o que
é ser mineiro” nessa concepção “globalizada” e “popularizada” do termo aplicado ao
patrimônio histórico e cultural do estado.
Apresento esta reflexão porque o museu objeto de estudo deste ensaio, assim como
outros tantos, participa dessa parcela de museus interiorizados que não possuem visibilidade
histórica ou científica, sendo alvo apenas da visibilidade política que pode ser positiva ou
negativa de acordo com os interesses da gestão governamental que rege as políticas de incentivo
à preservação e salvaguarda dos bens patrimoniais presentes nos museus, bem como as
narrativas aplicadas a eles.
No que concerne a este estudo, as indagações estão fundamentadas em reflexões quanto
à museologia social, tendo como base a participação comunitária ou mesmo a representação
destas comunidades nos espaços museológicos regionais, a partir do enquadramento da
memória, conceito este abordado por Michael Pollack (1989) que contribui na reflexão acerca
da construção da lembrança que se quer preservar em um espaço ou objeto de guarda de
memória, vinculado ao sentido dado às narrativas sociais através das exposições das peças
salvaguardadas, atribuídas neste caso aos espaços museológicos.
O objeto de estudo deste ensaio é o MUSAI – Museu Antropológico de Ituiutaba. O
município de Ituiutaba é o quinto agrupamento urbanizado mais populoso do Triângulo
Mineiro, sendo a cidade polo entre cinco municípios de menor proporção seja em números
populacionais ou em estrutura administrativa e funcional. Essa importância dada a este
município reflete-se também nos espaços de memória, tendo em vista que comporta o único
museu municipal e regional, que recebe e salvaguarda peças que refletem a historicidade dessas
comunidades localizadas no espaço geográfico desse polo governamental.
1
Historiadora pelo Instituto de Ciências Humanas do Pontal da Universidade Federal de Uberlândia – ICH/UFU.
Participa da linha de pesquisa “História Indígena e Etnoarqueologia” do LAPAMI – Laboratório de Pesquisa em
Patrimônio, Memória e Identidade. Atua como professora de História na educação básica e como pesquisadora da
área de antropologia social. Contato: [email protected]
14
2
Ver: PORTA, Paula. Política de preservação do patrimônio cultural no Brasil: diretrizes, linhas de ação e
resultados: 2000/2010. Brasília, DF: Iphan/Monumenta, 2012, p. 15.
15
história e da memória que surgiu em uma escala macro/nacional e repercutiu em uma escola
micro/regional3.
Como resultado desse novo campo de discussão, Ituiutaba constitui a Lei Municipal de
nº 3.806 de 27 de junho de 2006, que “estabelece normas de Proteção do Patrimônio Cultural
de Ituiutaba”. Nesse contexto, surgem novas interpretações em relação ao reconhecimento da
produção local, seja ela artística, cultural ou que envolva qualquer modo de expressão que
represente a população ituiutabana ou mesmo grupos que já pertenceram ao espaço geográfico
onde se encontra o município na contemporaneidade.
É nesse cenário que o Museu da Imagem e do Som é reformulado, tendo a intenção de
se criar um museu que representasse a história do homem “tijucano4”, objetivando compreender
a sociedade ituiutabana através de sua história ao longo do espaço/tempo. Assim é estabelecida
a proposta de um museu antropológico, visando à investigação, o estudo e a representação dos
aspectos culturais da sociedade, instituindo-se assim o MUSAI com novas diretrizes e
finalidades.
As pesquisas para o desenvolvimento deste ensaio tiveram como metodologia a análise
da gestão pública do museu através da documentação oficial, bem como a base dos dispositivos
de leis acerca da institucionalização da preservação da história, através da manutenção dos bens
históricos, artísticos e culturais, associados à análise das narrativas das coleções dos grupos
sociais retratados no espaço do museu, através dos objetos que compõem o acervo da
instituição.
Tendo como fundamento estes estudos, objetiva-se compreender o papel da organização
do museu na função de rememorar proposto à partir da seleção e organização das coleções, bem
como do enquadramento da memória aplicado a estas narrativas dispostas no espaço
museológico. Nesse sentido, estabelece uma reflexão quanto à responsabilidade, à função, à
representação, e por fim, à contextualização desta memória por parte da gestão política e
governamental dos órgãos responsáveis pela gestão deste espaço, neste caso, a FCI e a
Prefeitura Municipal.
Reitero que este é um ensaio ainda não esgotado e que faz parte de uma série de outros
estudos que objetivam compreender estas instituições museológicas, bem como suas gestões,
tencionando contribuir com novas perspectivas acerca do patrimônio destas comunidades, de
suas instituições museológicas e acima de tudo, das identidades representadas nestes espaços.
3
Ver: ESPADA LIMA, Henrique. A micro-história italiana: escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2006.
4
Gentílico usado para identificar os moradores da cidade de Ituiutaba.
16
Desdobramentos
Os temas norteadores utilizados para composição deste estudo estão relacionados à
compreensão da função social do museu e de sua relação com a comunidade a quem este
pertence, sobretudo refletindo a partir dos interesses políticos estabelecidos através da memória
salvaguardada e contextualizada no espaço do museu. Esses interesses políticos em grande
maioria pretendem criar e ressignificar as narrativas dos grupos pertencentes à comunidade,
visando uma propensão na manutenção de sua própria memória – memória elitista – em
detrimento de determinados agentes ou grupos sociais.
Para as reflexões acerca do MUSAI é necessário conhecer e especificar seu acervo, bem
como as identidades representadas pelas narrativas e objetos pertencentes a este espaço. O
acervo que compõe o MUSAI possui tipologia antropológica, etnográfica, arqueológica, e
temas como cultura, ciência, tecnologia, imagem e som.
As coleções temáticas do MUSAI são divididas em narrativas acerca dos grupos e das
histórias dos indivíduos desta comunidade, incluindo seus modos de vida, trabalho e cultura,
que estão subdivididos em cinco salas de exposições, sendo quatro de longa duração e uma de
exposição temporária.
A exposição temporária é elaborada com diferentes temas ao longo do ano, entre eles,
tecnologia, profissões, arte, história da cidade, e em alguns casos a expansão de temas de
alguma coleção já montada no museu como, por exemplo, a congada que é uma festividade
atribuída à comunidade negra local.
A primeira exposição de longa duração intitulada “Sistema Construtivo” é composta por
uma pequena sala onde o espaço do subsolo é mantido aberto para observação da arquitetura
do prédio com construção datada de 1913, tombado como patrimônio histórico municipal.
As duas seguintes exposições de longa duração – dispostas nas maiores salas de
exposições de longa duração do museu – são intituladas “Impressões e Lembranças do Meio
Rural” e “Vida no Campo”. Os temas e as narrativas destas exposições são muito semelhantes
e retratam as experiências do trabalho e vivências no ambiente rural, que representa a maior
atividade de concentração financeira e comercial da região. Entre os objetos que compõem estas
exposições estão peças como moedores, torradores de alimentos, panelas de ferro, batedores de
manteiga, ferros a brasas, ferraduras, esporas, berrantes, entre outros.
A quarta exposição de longa duração intitulada “Memória e Tradição” é destinada a
compor objetos que representam as narrativas da comunidade negra local e os povos indígenas
17
que já ocuparam anteriormente o espaço geográfico onde se localiza o município e região5. Esta
exposição, além das demais, propicia um conjunto de análise acerca da disputa de memória
presente no espaço do MUSAI.
O formato atribuído à exposição “Memória e Tradição” apresenta um único espaço de
exibição para diferentes coleções que retratam diferentes grupos e narrativas, reafirmando o
enquadramento de uma única percepção de identificação a estes grupos que acabam sendo
apresentados em paridade, mesmo tendo diferentes culturas e significados.
É importante ressaltar que está a menor sala de exposição que comporta coleções de
longa duração, e que além dos objetos destes dois grupos, coexistem nesse ambiente objetos
que remetem a indivíduos considerados como agentes influentes socialmente para o município.
Entre estes objetos estão livros de escritores locais, fotografias de momentos de lazer de figuras
políticas, títulos concedidos pela câmara municipal de cidadão honorário, medalhas, armas,
quadros com brasões familiares, entre outros.
Para além das exposições “Impressões e Lembranças do Meio Rural” e “Vida no
Campo” que embora apresentem essas vivências rurais, trazem objetos e narrativas que
remetem aos casarões e ao patrimônio de grupos familiares que compõem a elite financeira do
agronegócio da região e que mantém também em grande parte o domínio político, a exposição
“Memória e Tradição” que deveria representar os grupos subalternizados, acaba também por
apresentar a narrativa dos indivíduos pertencentes à essa elite política e financeira local.
Nesse sentido, as narrativas aplicadas à memória destes diferentes grupos pertencentes
a esta comunidade são vinculadas em maior parte a estes indivíduos considerados como
importantes para a comunidade, que acabam por representar o elitismo aplicado a estas
memórias que coexistem em conjunto com a memória dos grupos subalternizados pelo
enquadramento aplicado à memória preservada e retratada no museu.
Estes apontamentos possibilitam refletir acerca das influências do enquadramento da
memória e sua relação com a percepção cultural dos indivíduos e dos grupos sociais
representados no espaço do museu. Surgem a partir destas considerações diferentes questões
para reflexão quanto os usos políticos/elitistas/sociais atribuídos aos museus regionais, tais
como: qual espaço se aplica às diferentes memórias comunitárias e sociais representadas nos
espaços museológicos regionalizados? Como os grupos culturais estão sendo retratados através
dos objetos que estão presentes no museu? Quais são estes grupos? Qual a relação da gestão
5
Ver Asnis, G. Z. P. & Mano, M. Continuidades e descontinuidades: a Arqueologia Aratu-Sapucaí e a história
indígena ‘Cayapó’. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, nº 34, p. 154-173, 2020.
18
que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua
complementariedade, mas também as oposições irredutíveis. (POLLACK,
1989)
Referências
AUGUSTIN, Raquel F. Garcia. Políticas de gestão de acervos, instrumentos auxiliares na
tomada de decisão: análises de documentos disponibilizados por museus brasileiros na web.
2017. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) – Escola de Ciência da Informação,
Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017.
BRIGOLA, João Carlos. A Crise institucional e simbólica do museu nas sociedades
contemporâneas. 2008.
CHAGAS, Mario; PRIMO, Judite; ASSUNÇÃO, Paula; STORINO, Claudia Storino. A
museologia e a construção de sua dimensão social: olhares e caminhos. Cadernos de
Sociomuseologia, nº 11, vol. 55. 2018.
CHUVA, Márcia. Os arquitetos da Memória: sociogênese das práticas de preservação do
patrimônio cultural no Brasil (anos 1930-1940). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009. p. 167,
214, 216 e 217.
COSTA, Miguel Antonio da; SILVA, Francielle Correia Rodrigues. MUSAI – Museu
Antropológico de Ituiutaba: estrutura e acervo. Anais eletrônicos da V Semana de História
do Pontal / IV Encontro de Ensino de História. ISSN: 2179-5665. 2017.
21
Introdução
O virtual, que virou cotidiano mas também o algoz de nossos dias em isolamento
social, atravessou nossos lares com o home office, home school, misturando público e
privado, ditando a ordem do dia. O patrimônio também foi atravessado por esta solução,
possível através da intensificação de tours e exposições virtuais, para seduzir os internautas
a conhecerem seus acervos. A virtualidade passou a integrar não apenas nossas atividades de
trabalho e também de lazer.
Nesse sentido, mesmo quem não era muito adepto teve que se adaptar para conseguir
realizar seu trabalho e algumas atividades, como por exemplo, até mesmo compras de
supermercado e aulas de exercícios físicos pelas redes sociais. Em vista disso, passou-se mais
tempo no ambiente virtual, inclusive para hobbies, como ver uma exposição. Dessa forma, a
socidade e as relações entre as pessoas tiveram a vitualidade presente. Assim, as insituições
museais também tiveram que se adaptar para manterem suas relações com o público.
As vítimas da pandemia do novo Coronavírus não são só números, por trás de cada
uma delas há uma história, existem pessoas que merecem ser lembradas. Quando a ciência
ainda está aprendendo e conhecendo o vírus, e a sociedade se adaptando à nova realidade,
urge buscar entender como se dá o impacto nas questões patrimoniais.
O mundo teve que se adaptar a viver frente aos desafios de não poder ou evitar sair
de casa, logo passando a trabalhar e se divertir em casa. As pessoas foram forçadas a
desacelerar de uma rotina agitada a qual estavam acostumadas. Assim, ninguém estava
preparado para enfrentar esta epidemia e seus desdobramentos, principalmente, em relação
ao modo de se relacionar. A reinvenção diante de uma nova realidade mostra-se sempre como
um fator de transformação social.
Os instrumentos utilizados pelos espaços de memória também necessitam de estudos
urgentes, a fim de intensificar as ações em relação à coleta, salvaguarda e comunicação dos
acervos imateriais da pandemia.
6
Museólogo e Mestre, Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da
Universidade Federal de Pelotas. Contato [email protected]
7
Doutor em Sociologia (UFRGS) e Professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Contato:
[email protected]
23
O museu toma forma possível em cada sociedade sob a influência de seus valores e
representações, intrinsecamente vinculado às diferentes expressões do real (passado,
presente ou devir), do tempo (duração), da memória (processo) e do pensamento
humano (Homem como produtor de sentidos), como fenômeno o museu está sempre
em processo, revelando-se sob múltiplas e diferentes faces. E todas as formas
conhecidas de museu serão vistas como suportes, manifestações do fenômeno numa
dada realidade. (SCHEINER, 2005, p. 95)
Empatia Museal Humanizada
Diante deste acontecimto de isolamento, luto, e insertezas, o papel destes museus
virtuais com a temática da pandemia, vem trazendo alguns aspéctos dos museus se
relacionarem com seu público. O público se tornou um musealizador, a instituição recebe
acervo de forma colaborativa e espontanea, o museu se coloca em um papel de lugar, e através
25
A Cibermuseologia, segundo a autora, ainda precisa ser definida quanto à relação que
se estabelece no processo museu e virtualidade. Leshchenko levanta a questão de que os
conceitos mais abrangentes, tais como:
Na atualidade, o que se musealiza são as ideias, e sua fruição passa a ser o centro da
instituição, deixando de ser o público expectador, passando a ser participante ativo. O uso das
Tecnologias de Informação e Comunicação nos museus traz impactos no fazer social
museológico, pois os objetos deixam de ser o centro das atenções, conforme sempre foi
historicamente.
Para pensar na potencialidade dos museus virtuais é necessário considerar a
comunicação em museus e refletir sobre o potencial do uso de mídias sociais como ferramentas
de conexão entre o museu e o público a partir do objeto musealizado. Pensar a
Cibermusealização como um processo museal no ciberespaço, pensar o tempo e o espaço em
que está inserida esta museologia como um lugar e um novo olhar para este processo.
Os processos de musealização são definidos através da aquisição, preservação e
comunicação. Aquisição é o processo em que o objeto sai do seu meio de função na sociedade,
e passa a se tornar um objeto de museu, ou seja, desempenha a função de patrimônio; para isto
o objeto passa pela documentação, a fim de conhecê-lo e preservá-lo.
Nesse processo, as informações intrínsecas e extrínsecas serão documentadas, pois é
necessário esse conhecimento para o objeto se tornar fonte de comunicação. No museu, esse
objeto museológico passa a ser integrante de várias formas de comunicação, seja a partir da
exposição com suas narrativas, que proporciona diversas interpretações. Há outras formas de
comunicar, por exemplo, a comunicação pode ocorrer em site institucional e nas redes sociais.
27
Considerações finais
Este artigo vai deixar mais questionamentos do que considerações finais sobre
a reinvenção museal diante de uma pandemia pois ainda estamos com os museus fechados.
O processo museal com a temática da COVID-19 apresenta a cibermusealização como um
processo humanizador, através da criação de acervos em diferentes plataformas e redes
sociais. Humanizando as mais de
515,985, estes números apresentandos não são só números, são pessoas, que deixaram suas
familias, amigos, que muitos nem conseguiram se despetir Estas instituições apresentam esta
museologia humanizada que impulsionam estes movimentos de memória da COVID-19, e
que estes museus são além de um lugar para lembrar, são luragares de reflexão mas acima de
tudo de resistir e fazer com que estas vitmas tenham espaço para serem lembrados não como
números mas como pessoa.
As considerações acerva destas novas intituições museais, com a temática da COVID-
19, vai gerar novos olhores acerca destas intituições futuramente. A reflexão sobre o
armazenamento destes acervos que já nascem virutalmente. Este é um dos processos de
cibermusealização que vai merecer que a Museologia encare como um fato atual de
musealizar e que ainda não tem definido dentro da area. Não se sabe como será o papel desdes
museus pós-pandemia mas que estes regstros deste acontecimento de tanta dor, e resistencia
em que nos encontramos.
Museu não é lugar de “coisa velha”, velho são os pensamentos, Museu é lugar de
Resistir! Vacina para todos!
Referências
CHAVES, Rafael. Cibermusealização: estudo de caso do Museu Virtual das Coisas Banais
da Universidade Federal de Pelotas/RS. Dissertação de mestrado do programa de Pós-
Graduação em Museologia e Patrimônio. Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, 2020.
LESHCHENKO, Anna. Digital Dimensions of the Museum: Defining Cybermuseology’s
Subject of Study. ICOFOM Study Series, ISS, Paris, v. 43, p. 237- 241, 2015.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: ed.34. 1999. 264p.
SCHEINER, T. C. O museu como processo. Cadernos de Diretrizes Museológicas 2:
mediação em museu: curadorias, exposições, ação educativa. Belo Horizonte: Secretaria de
Estado da Cultura de Minas Gerais, Superintendência de Museus, 2008.
SCHEINER, Tereza. Museologia e pesquisa: perspectivas na atualidade. In: Museu de
Astronomia e Ciências Afins (Brasil). MAST Colloquia – Museu: Instituição de Pesquisa,
Rio de Janeiro, p. 85-100, 2005.
28
Aline Vargas8
Vanessa Aquino 9
Introdução
A questão da comunicação e do público sempre estiveram presentes nos museus e,
embora sob distintos aspectos ao longo dos séculos, ora voltado a públicos seletos, ora mais
democráticos e flexíveis, os museus chegam à segunda metade do século XX rodeados por
indagações e desafios a serem enfrentados. Assim, o passado decênio apresentou a incorporação
de uma diversidade de alternativas quanto à comunicação, fato que tem reflexos diretos no
diálogo entre museus e público, uma vez que estas variáveis se correlacionam.
No pós-guerra, com a criação do Conselho Internacional de Museus (ICOM), foi
proposto em âmbito internacional, repensar a função das instituições museológicas quanto a seu
caráter social. Anos mais tarde, no contexto da crítica social francesa em efervescência em maio
1968, os museus passaram a ser contestados pelos estudantes, artistas e pelos próprios
profissionais, como espaços passivos, elitizados e voltados à burguesia, que excluía a maior
parte dos cidadãos, e por consequência, que não representava a sociedade10.
Cabe pontuar, desta forma, que muitos pediam o fim dos museus, tamanha era a
insatisfação. Nesse contexto, nos Estados Unidos, o movimento encabeçado por artistas
renegava os museus e a arte tidos como ortodoxos, uma vez que com a emergência das novas
expressões artísticas, estes não se sentiam considerados e abarcados pelas instituições. À vista
disso, muitos passaram a apresentar seus trabalhos em espaços alternativos, aproximando-se do
que posteriormente ficou conhecido por antimuseu, e nessa esteira, de forma crescente, o
número de visitantes ficava cada vez mais escasso.
Tal momento, pode-se dizer, refletiu na percepção por parte das instituições sobre a
potência e influência da sociedade na tomada de decisão, sobre a urgência de firmar um diálogo
mais estreito com seus públicos, em um exercício de encontro que considerasse a multiplicidade
8
Museóloga e Mestranda no Programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimônio/ PPGMusPA pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Pesquisadora e estagiária docente na Graduação em Museologia da
mesma Universidade. Contato: [email protected].
9
Museóloga, Mestra e Doutora em Educação (UFPel). Professora do Curso de Bacharelado em Museologia e do
Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Vice-Líder do Grupo Sépia UFRGS/CNPq. Contato: [email protected].
10
O lema “A Monalisa no Metrô'', inclusive, traduziu a ideia democrática da cultura a qual buscavam: levar a arte
às ruas, ao povo, para além dos limites dos museus.
29
de sujeitos e suas demandas. Nessa perspectiva, outro aspecto significativo refere-se ao fato de
que as instituições museais, enquanto importantes aparatos de fomento e publicização de
conhecimento, seja ele científico, artístico ou cultural, são atravessadas por reivindicações
coletivas, emergindo, assim, como universo que não pode ser separado da sociedade, uma vez
que para além de influenciar o âmbito social, por ele são, igualmente, influenciados.
11
Para além da mera contemplação, um museu democrático significaria que os indivíduos poderiam esperar que
sua cultura fosse representada e apresentada, entretanto, partindo dessa aparente mudança, persistiam dois
problemas principais: a permanência dos mesmos sujeitos em posições de tomada de decisão e, por consequência,
a manutenção de cânones determinados pelas classes dominantes (CAMERON, 1971).
12
Mais conhecida posteriormente como Mesa Redonda de Santiago do Chile, tratou de forma precisa a urgência
da interdisciplinaridade, sendo considerada um marco nas discussões, reverberando posteriormente em efetivas
renovações para o campo. Vale salientar, entretanto, como abordado por Cândido (2007), em 1958, a questão do
público e do caráter educativo dos museus foi tema do Seminário Regional proposto pela UNESCO, que ocorreu
no Rio de Janeiro. Mais de uma década depois, em 1971, em Dijon (França), ocorreu a 9ª Conferência Geral do
ICOM, tendo a temática “Museu a serviço do Homem, hoje a amanhã” como norteadora das discussões
30
13
O que se apresentou na Mesa Redonda de Santiago do Chile foi retomado em eventos procedentes, como a
Declaração de Quebec em 1984, que foi base para a fundação, no ano seguinte, do Movimento Internacional para
uma Nova Museologia (MINOM), preconizando a integração das populações nos processos museológicos, de
maneira interdisciplinar, concentrando-se no desenvolvimento social.
14
Carla Padró (2003) aponta para a necessidade de transformar seus profissionais quanto à sua formação que é um
tanto estanque, voltada a uma cultura historicista, positivista e enciclopédia, que os formam como sujeitos que são
produzidos por esta cultura, e não para serem produtores e proponentes dela.
31
como questionador de si mesmo, uma vez que ao atuar como tal, reproduz suas hierarquias e
exclusões. Na mesma linha crítica, porém mais voltada à experimentação, a Museologia
Experimental, em emergência e constante ressignificação, vem desde a década de 1980
propondo outros pontos de partida para se pensar o patrimônio e os museus.
Para Soares (2020), museus, em uma tentativa de definição primária, guardam
experiências. Nesse sentido, a Museologia Experimental é, cujo nome assim como a proposta,
flexível, variante e, sobretudo, baseada na experiência humana. O Museu essencial no presente
é, por consequência, aquele que cumpre sua função social, cria experiências e atua de forma a
potencializar aquelas vivências já existentes que acontecem ao seu redor. Com suas bases na
Museologia nova e Experimentação social (MNES)15, essa vertente tem o empírico como norte,
englobando a amplitude de agentes e engajando-se em uma postura crítica frente a valores
produzidos pelos museus, onde a mudança e processo apresentam-se como centrais às práticas
museológicas (SOARES, 2020). Dessa forma, ao emergir como meios de experimentação
social, os museus reafirmam-se no presente, demonstrando que, no decorrer dos séculos,
transformaram-se para atender à sociedade.
15
Criada em 1982, a associação antecessora do Movimento Internacional para a Nova Museologia (MINOM), foi
apresentada em forma de estatuto, em Marselha (França), por um grupo de profissionais da área da conservação.
Sendo resultado da ruptura com a Museologia tradicional possuía como foco “os públicos não habituados aos
museus, bem como as experiências regionais e locais” (SOARES, 2015, p. 215).
32
de efervescência no campo dos museus frente à sua missão, sua relação com o público e a arte.
Elaborado pelo então curador e crítico de arte do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro
(MAM), Frederico de Morais, que chamou a experiência de museu-liberdade16, inspirando-se,
inclusive, pela arquitetura17, a proposta foi norteada pela noção de uma instituição que
funcionasse contrariamente à “verticalização sociocultural inerente ao museu” (SMALL, 2011
apud GOGAN, 2017, p. 2).
Baseando-se na constatação do curador de que todos os indivíduos são criativos,
propunha a quebra simbólica de hierarquias comuns aos museus (MAIA, 2016), que separam o
sujeito-artista do sujeito-público, tendo como foco o processo, a experiência e as trocas
firmadas no ambiente público. À vista disso, os Domingos da Criação ocorreram em seis
domingos do segundo semestre de 1971, ocupando o espaço do vão livre do MAM, evocando
questões relativas ao trabalho e a vida e sua relação com o museu, estreitando a relação da arte
com o cotidiano.
Cada encontro, que ocorria das nove horas da manhã às sete horas da noite (GOGAN,
2017), promovia uma materialidade como propulsora das atividades e experimentações. O
primeiro deles foi o Domingo de Papel, que ocorreu na data de 24 de janeiro de 1971 e contou
com doações de materiais por indústrias. O Domingo por um Fio, na sequência, reuniu cerca de
mil pessoas que foram, a partir de fios de lã, cobre e tantos outros, estimuladas a criar e
experimentar. Já o terceiro evento, Domingo de Tecido, contou com quase duas toneladas do
material e o público, já ciente das propostas, passou a incluir turmas inteiras que visitavam o
espaço com seus professores (VALANSI; STRECKER, 2021).
O Domingo Terra a Terra, em 25 de abril de 1971, pela natureza do material, foi
considerado o mais radical. Areia, cimento, cascalhos, barro, pedra entre outros materiais
semelhantes foram depositados por caminhões e elucidaram, segundo Morais, a real natureza
do evento. A primeira proposição que não disponibilizou nenhuma materialidade ao público foi
o Som do Domingo: a ideia era produzir sons a partir de objetos trazidos pelos participantes,
incluindo sons a partir do movimento do próprio corpo. O último foi o Corpo a Corpo do
Domingo, que a partir da chamada “Leve seu corpo ao Museu de Arte Moderna”, convidou o
público para que no dia 29 de agosto, explorasse a expressão e dimensão corporal (VALANSI;
STRECKER, 2021).
16
Vale lembrar que o contexto político do Brasil, assim como muitos países da América Latina, era de ditadura
militar, o que torna a ação ainda mais significativa uma vez que propunha sobretudo, a liberdade.
17
Projetado a partir de inspirações modernistas em 1952 pelo arquiteto Affonso Eduardo Reidy, segundo Cogan
(2017), foi pensado para que dialogasse diretamente com a paisagem do entorno, convidando os visitantes a
dialogarem com a vista do entorno.
33
Assim, Frederico Morais, com sua ação, buscava romper com a linearidade desses
espaços palacianos, templos que por muito mantiveram visíveis somente as histórias e
narrativas de grupos privilegiados, desconsiderando que é no cotidiano e nas relações que a
potência do museu e da arte se nota de forma mais clara. A partir deste exemplo, o museu fórum
alcança outro patamar, para além da comunicação ampla: através do contato com os sujeitos,
produz novas memórias, novas apropriações do espaço público e, a partir disso, torna-se
propulsor, experimental e um espaço de laboratório.
A comunicação com os públicos, visando a democratização de experiências e
conhecimento, se dá através de diferentes maneiras. No caso dos Domingos da Criação, a
proposta foi explorar através da experiência, diálogos múltiplos com o museu, a arte e os
processos artísticos, contudo, outras formas de ampliar o acesso e fomentar a inclusão são
encontradas na mesma década, como é o caso do Projeto Extramuros, também chamado de
Museu Extramuros, realizado em Porto Alegre/RS.
O Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (MARGS) foi criado18 com
intuito de inserir o estado na cena artística nacional e internacional e, desde seus primeiros
momentos, procurou firmar laços entre artistas e a comunidade frequentadora do museu, a partir
da oferta de palestras temáticas, visitas e demais ações referentes ao campo artístico. Prestes a
se alocar em sua última e atual sede, o projeto de Luiz Inácio Medeiros trazia ares inovadores
ao MARGS, pois desde que assumiu o cargo de diretor, em 1975, Medeiros propôs ampliar a
democratização da arte e do museu19.
Medeiros, em um dos boletins20 do MARGS, apresenta suas motivações para a
realização da proposta. Para ele, a privação do contato com ambientes culturais, aliada a
aspectos econômicos, era um dos principais motivadores do elitismo na arte contemporânea, o
que resultou no afastamento expressivo da população com espaços culturais, tais como os
museus (MEDEIROS, 1977).
Partindo disso, o exercício de ir ao encontro destes públicos em seus diferentes
contextos, propunha mais do que atrair pessoas, mais que elevar os números: intentava ofertar
e ampliar, a partir da arte e das discussões por ela atravessadas, o acesso à educação que,
18
Criado pela lei n° 2345, de 29 de janeiro de 1954, a instituição possui em seu acervo mais de cinco mil obras de
renomados artistas, como Arthur Timótheo da Costa, Di Cavalcanti e Vera Chaves Barcellos. Seu enfoque se
direciona às produções de meados do século XIX até os dias atuais, abrangendo pintura, escultura, xilografia, arte
digital, fotografia entre outros.
19
O projeto contou com auxílio da jornalista e Museóloga Teniza Spinelli.
20
Nas palavras de Teniza Spinelli (2005, p.98), os boletins foram criados em 1975, como “célula inicial de um
futuro editorial” e consistiam em um meio de publicizar as ações propostas pelo museu.
34
conforme apontou Pedrosa, é uma das potências da arte (GOGAN, 2017). Ao tornar o acervo
acessível, ao aproximá-lo do público, tinha-se como intuito ampliar a percepção destes sobre a
arte e, de certa forma, formando-os enquanto apreciadores da arte.
Assim, cabe citar aqui os estudos propostos por Pierre Bourdieu e Alain Darbel na
década de 1960 em museus de arte europeus. Segundo a pesquisa 21feita pelos autores, o acesso
à arte é, sobretudo, voltado àqueles segmentos sociais inseridos em uma classe dominante, seja
por questões sociais, econômicas ou intelectuais. Partindo desta constatação, o estudo considera
necessário que exista o estímulo e o contato direto com a arte, a fim de que os sujeitos se
apropriem de seus signos (BOURDIEU; DARBEL, 2003) e, assim, possam usufruir e
experienciar a arte de forma mais plena.
No caso do MARGS, nota-se que seus profissionais tomaram para si a responsabilidade
de fazer cumprir a função social dos museus discutida fortemente durante a Mesa Redonda de
Santiago do Chile em 1972, uma vez que, segundo Medeiros “é necessário que todos os agentes
envolvidos no processo de criação artística, professores, colecionadores, artistas [...]
conscientizem-se sobre a sociedade em que vivemos [...] colaborando com sua participação
direta” (MEDEIROS, 1977). O Projeto Extramuros encontra respaldo, ainda que sem
confirmação de ligação, com a proposta da Museologia Crítica, ao compreender que a
democratização é fundamental para as instituições. Verificando que o público da instituição era
segmentado, a equipe propôs implementar a ação para atingir um público que se reconhecesse
naqueles espaços, valorizasse a arte e, a partir disso, o frequentasse.
O projeto tido como ação educativa contemplava a itinerância em diferentes espaços,
porém, neste artigo serão apresentadas a ação voltada aos frequentadores do Hospital
Psiquiátrico São Pedro (HPSP), de Porto Alegre, em 1977, e a ação de 1978, direcionada à
indústrias localizadas em cidades do estado. Em parceria com a Secretaria da Saúde e com o
HPSP, o MARGS, desenvolveu conjuntamente ao Serviço de Praxiterapia22 do hospital o
“Encontros de criatividade”.
Visando englobar indivíduos que estavam em situação de exclusão23, a ação contou com
a participação do artista plástico e professor Wagner Dotto (ALMEIDA, 2005) e de alunas do
21
A publicação O amor pela Arte: Os museus de arte na Europa e seu público, foi resultado de pesquisas realizadas
em museus da França, Grécia, Polônia, Espanha e Holanda, durante o ano de 1966. Apesar da pesquisa se dar em
outro contexto temporal e local, é notório que aspectos sociais e culturais são significativos para se pensar as
instituições museais, independente do cenário.
22
A partir desta técnica psiquiátrica que consiste em utilizar trabalhos práticos como terapia, o HPSP oferecia
atividades ocupacionais visando estimular a criatividade e inclusão através da arte.
23
Cabe salientar que o museu propôs uma ação com a então Fundação Estadual para o Bem-estar do Menor
(FEBEM), atual Fundação CASA, que também contou com a participação de Wagner Dotto (ALMEIDA, 2005).
35
campo das Artes (MEDEIROS, 2019), que proporcionaram aos pacientes do HPSP um espaço
de encontro com a arte, exercitando a criatividade e a inclusão. Inserindo-se na proposta do
serviço oferecido pelo hospital, foram produzidos trabalhos como bordados, crochês, tricôs
além de peças em entalhe, cerâmica, metal, desenho e colagens. Com intuito de conscientizar o
público acerca das questões que envolvem a saúde mental e da potencialidade e necessidade de
socialização das pessoas mantidas à margem do convívio social, os trabalhos foram expostos
na sede do museu sendo vendidos e a verba arrecadada direcionada para a compra de materiais
para uso do setor (BOL. INF. MARGS, 1997).
É interessante refletir sobre como a ação não se esgotou em si mesma, transcendendo o
espaço em que se desenvolveu. Ao trazer o olhar e a expressividade de tais sujeitos para uma
instituição canônica, reconhecida e, ao mesmo tempo, segmentada, o projeto estimulou a
aproximação do público com realidades outras que nem sempre são consideradas e discutidas.
Ao adentrar, mesmo que simbolicamente através dessa produção artística no contexto do
museu, os pacientes-artistas são valorados, rompendo certos estereótipos historicamente
associados a eles.
A exposição, que ficou em cartaz entre 30 de agosto a 10 de setembro de 197724, no
Edifício Paraguay, então sede do MARGS, contou com uma palestra proferida pelo médico e
diretor do HPSP, Hans Ingomar Schreen, tendo como temática principal a arte terapia (BOL.
INF. MARGS, 1997). Medeiros, em entrevista concedida quase quarenta anos depois, comenta
que a ação não buscou criar artistas e sim, aproximá-los da vida da “cidade e de seus colegas”
(MEDEIROS, 2019).
Aliado às ações já existentes proporcionadas pelo setor de Praxiterapia, a instituição viu
o potencial e a importância de atuar voltando-se ao seu não-público, oportunizando a ampliação
do acesso à arte e a criatividade, fazendo jus ao seu caráter social enquanto espaço museológico.
Criar pontes, firmar aproximações entre distintos cenários e realidades é tarefa primordial aos
museus e a postura dos proponentes aponta o reconhecimento sobre tal papel, bem como, indica
aproximação às discussões e contestações que estavam acontecendo na época, em uma atitude
de renovação de dentro para fora.
Cabe traçar aqui, um paralelo com a Museologia Crítica, que como pontua Carla Padró
(2003), entende o museu como prática que se relaciona com outras práticas. Em um exercício
de troca e parceria com outros setores da sociedade, como foi a ação que já incluía a arte como
mecanismo de socialização entre os pacientes no hospital, o museu fez-se essencial.
24
Segundo pesquisas documentais em jornal da época, nota-se que a chamada para a exposição permaneceu sendo
feita até 23 de setembro do mesmo ano, divergindo, assim, de outras fontes.
36
Já, no ano seguinte, em 1978, ainda motivados pela busca de dialogar com distintos
públicos em espaços alternativos que não a sede do museu, a primeira ação do projeto intitulado
“O Museu Vai à Indústria”25 teve como objetivo inserir-se no cotidiano dos funcionários de
indústrias, proporcionando o convívio mais próximo com as obras, a fim de sensibilizá-los e
motivá-los a ampliar seu repertório sobre as produções artísticas do momento. Para isso, além
da exposição de obras emprestadas, artistas como Alice Soares, Plinio Bernhart e Danúbio
Gonçalves, juntamente com mais vinte e três artistas foram convidados a participar de oficinas
e palestras (BOL. INF. MARGS, 1978).
Para Medeiros, aproximar a arte da vida era uma forma de valorizar aqueles
profissionais que forjam o aço, mostrando dimensões outras das possibilidades de trabalhar com
materiais comuns ao seu cotidiano. A partir de desenhos, xilogravuras, serigrafias e gravuras
em metal eles eram estimulados a ver o dia a dia sob outros aspectos, incentivados à criatividade
que pode passar despercebida em locais em que o trabalho é repetitivo. Medeiros afirmava:
“Somente as máquinas não sentem” (MEDEIROS apud BOL, INF. MARGS, 1978).
A exposição na primeira indústria, Aços Finos Piratini, consistia nas obras dispostas em
painéis brancos, colocados no espaço destinado ao refeitório da empresa. Sendo norteada pelo
caráter didático, objetos comuns a estes processos artísticos como matriz de xilogravura, pedras
litográficas, telas para serigrafia e modelos já prontos para exemplificar, estavam em exposição,
além disso, materiais de entalhe e legendas explicativas compunham a expografia. Os artistas
eram convidados a executar seus processos e conversar com o público, sendo inclusive,
convocados a oferecer uma aula para cerca de cento e quarenta alunos do sétimo e oitavo anos
de escolas da comunidade do entorno, que puderam manusear os materiais e conversar com os
profissionais envolvidos (BOL, INF. MARGS, 1978).
Ao descentralizar a arte, oportunizando exposições e contato com artistas, é notável que
não somente os frequentadores diretos do espaço passam a usufruir das possibilidades, como
também, a iniciativa acaba por propiciar que outros públicos sejam abarcados, potencializando
a proposta em diversos sentidos. Após a ação piloto, com duração de cerca de dez dias, o projeto
itinerou para a Cia. Souza Cruz, permanecendo lá de 17 a 26 de maio do mesmo ano, seguindo
posteriormente a outras indústrias do estado.
25
Participaram da ação as indústrias Aços Finos Piratini, Cia Souza Cruz, Cia. Brasileira de Telecomunicações
(EMBRATEL), Termolar, Cia. Carris Porto-alegrense, Bojunga Dias e RIOCEL.
37
Considerações finais
A relação entre Museologia e Arte e o posicionamento dos dois campos diante das
demandas e urgências contemporâneas voltadas aos museus são de suma importância para a
reformulação desses espaços. A Arte, a partir de movimentos de vanguarda, contesta a postura
enrijecida e hermética dos museus, não somente quanto ao aceite de suas produções inovadoras,
mas, sobretudo, em relação a seus públicos, sendo propulsora de significativas transformações.
A Museologia, por sua vez, vem debatendo sobre os museus e contribuindo para se pensar seu
caráter social, sobretudo, desde a década de 1960, onde os profissionais passaram a reavaliar
suas posturas e motivações, direcionando os museus a atuarem com foco nos públicos e seus
distintos contextos.
Ao trazer tais memórias que atravessam a história dos museus quanto às atividades para
além de seus muros, como os Domingos da Criação e o Projeto Extramuros, contribui-se para
fortalecer a perspectiva de que os museus são, por excelência, espaços experimentais. Ao
analisar as motivações e os agentes que rompem com certos paradigmas historicamente
construídos e comuns aos museus, fomenta-se cada vez mais atitudes democratizantes.
Enquanto espaços polissêmicos, tais instituições, ao se voltarem ao cotidiano, à vida e aos
diferentes cenários e indivíduos que nela se inserem, favorecem que seu caráter social seja
explorado de forma ampla.
A partir da relação com a sociedade, o museu se reconstrói. As experiências
apresentadas neste artigo lançam luz e problematizam as instituições que permanecem
ensimesmadas, mantendo características que persistem em excluir sujeitos e, dessa forma,
impossibilitando experiências múltiplas. A arte demanda do museu uma atitude que favoreça a
fruição, onde este se apresente como espaço no qual relações são firmadas, ou seja, assumindo
outros discursos e práticas, os museus devem fomentar a cidadania e a democracia, emergindo
como importantes agentes sociais e políticos. Por fim, cabe reiterar que trocas entre as áreas da
Museologia e das Artes enriquecem as discussões, contribuindo para que os museus se
legitimem cada vez mais como espaços democráticos e à serviço da sociedade.
Referências
ALMEIDA, Cristina Torres de. 50 anos de atividade de extensão. In: GOMES, Paulo Cesar
Ribeiro; GRECCO, Vera Regina Luz (orgs.). Memória do Museu. Porto Alegre: MARGS,
2005.
BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alain. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu
público. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixeira. 2ª Ed. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo; Porto Alegre: Zouk, 2003.
38
Introdução
As possibilidades que as salas de troféus, os memoriais e os museus de clubes de futebol
nos apresentam são únicas, como espaços de histórias, memórias e trajetórias de vidas.
Contudo, ainda são pouco exploradas pelo campo da Museologia e do Patrimônio Cultural.
Com o atual crescimento desses espaços, inúmeros temas transversais ao redor das quatro linhas
do jogo vão se delineando como passíveis de serem problematizados também nos espaços
museológicos clubísticos. As narrativas que essa cultura material nos estimula pedem passagem
para analisar presenças, mas, sobretudo, as ausências que se reproduzem nessa trajetória. Nesse
sentido, neste artigo iremos abordar, a partir da coleção do futebol feminino do Museu do
Grêmio – Hermínio Bittencourt, localizado em Porto Alegre, RS, as suas viabilidades de
interpretações e como esses artefatos nos conduzem a realizar, também, uma reflexão sobre as
estruturas normativas de gênero aliadas à representação do futebol de mulheres em museus de
clubes. Dessa maneira, o processo de musealização nesses ambientes se torna fundamental para
desvendarmos esses fragmentos, os quais representam histórias e sujeitos que vão se revelando
nessa construção e nesse ciclo de tratamento do objeto.
Deste modo, convém analisar alguns episódios do percurso da história social e cultural
do futebol no Brasil, pois esse movimento nos evidencia vestígios e causas às quais percebemos
até hoje os seus efeitos. Circunstâncias que ocorreram no final do século XIX e início do XX,
como a vinda de imigrantes e o retorno dos jovens brasileiros que estavam estudando na Europa,
na qual, trouxeram consigo, bolas e concepções de um modelo europeu de modernização,
urbanização, industrialização e um forte sentimento de nacionalismo para o território da jovem
República brasileira (FRANZINI, 2003). Essas influências coloniais em um país que
recentemente havia abolido a escravidão trarão novas estruturas que vão atuar sobremaneira no
campo simbólico das hierarquias sociais alicerçadas nas diferenças entre raça, classe e gênero.
Portanto, foi nesse cenário que o futebol se tornou um fenômeno sociocultural que se
espalhou pelo mundo, mais profundamente no Brasil. A configuração desse esporte, como
26
Museóloga do Museu do Grêmio Hermínio Bittencourt e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Museologia e Patrimônio (PPGMusPa – UFRGS). Contato: [email protected]
40
conhecemos hoje, está relacionada às elites burguesas inglesas do século XIX, entrelaçadas com
o desenvolvimento do capitalismo na Europa. Nesse contexto, o espaço urbano favoreceu
consideravelmente o desenvolvimento de inúmeras modalidades esportivas como forma de
cuidados com a saúde e normatização dos corpos, baseados em uma estrutura social da época
dominada pelo cientificismo, darwinismo social com ideais higienistas e eugenistas
impulsionado pelas instituições de ensino da época, como os Museus Etnográficos, o Instituto
Histórico e Geográfico, as faculdades de Direito, mas especialmente as faculdades de Medicina
(SCHWARCZ, 1993). Esses discursos se internalizaram de tal forma que ao longo dos anos se
naturalizaram, por esse motivo, tornou-se natural excluir certos corpos dos espaços de
socialização, seja pela sua cor, pela classe social ou pelo papel de gênero esperado para ser
desempenhado por homens e mulheres.
Todavia, a maioria dos esportes não era acessível às massas de trabalhadores. Assim, a
alternativa era praticar o futebol, no qual bastavam invenções artesanais improvisadas, desde
as bolas até os uniformes, incluindo o uso de terrenos baldios que se transformavam em
campinhos. Se erguiam cortiços, nasciam subúrbios, os imigrantes se reuniam em guetos e as
influências do esporte bretão se espalhavam. Por mais que as elites das primeiras agremiações
tenham imposto regras tanto escritas quanto veladas, não conseguiram vetar a popularização do
esporte que se transformou em um alento para uma diversidade de pessoas: “[...] o futebol e
operários são produtos e símbolos da modernidade, das sociedades urbanas e industriais, cujas
trajetórias se entrelaçam e se confundem” (STÉDILE, 2015, p. 19). Paulatinamente o futebol
se tornou um evento de massas, criando clubes de bairros, transformando espaços urbanos, se
profissionalizando e formando novos grupos identitários e outras relações de pertencimento,
produzindo, assim, complexidades e tensionalidades (ANTUNES, 1994; FRANZINI, 2003;
STÉDILE, 2015; SEVCENKO, 1994).
Percebendo a sua popularidade, o futebol vai ocupar um lugar relevante como
ferramenta de publicidade governamental, particularmente no Estado Novo (1937 – 1946) e -
de acordo com Drumond (2009, p. 214): “[...] no novo governo, a construção da pátria e de um
novo ideal de nacionalidade brasileira era o cerne do plano oficial para a cultura nacional”. Esse
cenário nos apresenta um breve contexto para entender que o futebol masculino se materializou
como um representante da identidade nacional concretizando o projeto Varguista de controle e
intervenção do Estado nos esportes, como veremos a seguir.
Em 1941, durante o governo de Getúlio Vargas, foi deliberado pelo presidente o decreto-
lei n. 3.199, que tinha o objetivo de regulamentar as práticas esportivas através da criação do
Conselho Nacional de Desportos, o qual era “destinado a orientar, fiscalizar e incentivar a
prática, dos desportos em todo o país” (BRASIL, 1941). Contudo, em um parágrafo no artigo
54, diz que “[...] às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as
condições de sua natureza”, (BRASIL, 1941), embora a lei não especifique que esportes seriam
estes. Somente em 1965, durante a ditadura militar, esses esportes foram citados, entre eles o
futebol praticado pelas mulheres (SILVA, 2015). Conforme as reportagens de jornais na época
apontam, o futebol praticado pelas mulheres foi um dos esportes perseguidos por discursos que
iam de encontro aos ideais eugênicos e positivo-evolucionistas que destacamos anteriormente,
e porque atingia diretamente o papel principal que era esperado das mulheres: gerarem filhos à
nação. O discurso foi disseminado principalmente por médicos da época, na qual “[...] observa-
se que certas práticas esportivas opunham-se completamente à construção social hegemônica
do que era ser mulher, isto é, ser delicada, bela, dedicada à família e a maternidade, reclusa no
espaço doméstico” (SILVA, 2015, p. 6). Nessa perspectiva, de acordo com a historiadora Mary
Del Priore (2013, p.50); “[...] durante o Estado Novo, Getúlio Vargas concedeu uma série de
favores à Igreja, e um “pacto moral” selou novo acordo entre Estado e Igreja”. O objetivo desse
acordo era obter o auxílio da igreja nos discursos de fortalecimento da família, do trabalho e,
por fim, da submissão ao Estado para o desempenho do papel social da mulher:
Portanto, é evidente qual é o lugar destinado aos corpos femininos. Sobre isso, Gollner
(2010, p. 73) nos diz “[...] o corpo não é algo que está dado a priori. Ele resulta de uma
construção cultural sobre a qual são conferidas diferentes marcas em diferentes tempos,
espaços, conjunturas econômicas, grupos sociais, étnicos etc”. Podemos perceber que a cultura
influencia diretamente quais corpos estão autorizados a ocupar certos espaços, às mulheres são
reservados os lugares ocultos, privados, de preferência no ambiente doméstico.
As mulheres foram proibidas de praticar o futebol durante 40 anos, de 1941 a 1979. Esse
episódio – ainda pouco conhecido da sociedade brasileira –, deixou marcas negativas que são
sentidas até hoje pelas mulheres que tem a “ousadia” de chutar uma bola profissionalmente,
influenciando desde a cultura do preconceito familiar; do medo das meninas serem expostas a
42
27
As informações sobre as mencionadas exposições e demais atividades dos museus dos clubes Sport Club
Corinthians Paulista e do Sport Club Internacional podem ser acessadas através de suas páginas digitais em redes
sociais como o Instagram. Disponível em: https://www.instagram.com/p/BrFvmxwA75c/ e
https://www.instagram.com/p/CPHAztYHSyq/. Acessados em Ago de 2021.
28
Informações sobre o Museu do Futebol podem ser acessadas em:
https://www.instagram.com/p/COORNYCrV8f/. Acesso em Ago de 2021.
44
apropriação desse lugar de memória que se abre para receber os sujeitos e lhes concede lugar
de fala. Como foram as exposições “Visibilidade para o Futebol Feminino, 2015”; “Contra-
ataque, 2019” e “Museu do Impedimento, 2020”. Nesse aspecto, podemos concordar com
Mário Chagas quando menciona como o espaço museológico não é neutro nem apolítico, mas
sim uma “arena de disputas”, na qual:
O museu que abraça esta vereda não está interessado apenas em democratizar
o acesso aos bens culturais acumulados, mas, sobretudo, em democratizar a
própria produção de bens, serviços e informações culturais. O compromisso,
neste caso, não é tanto com o ter e preservar acervos, e sim com o ser espaço
de relação e estímulo às novas produções, sem procurar esconder o “seu sinal
de sangue”. (CHAGAS, 2015, p. 36).
Nesses episódios recorrentes no cotidiano dos museus como afirma CHAGAS, (2015),
podemos dizer que essas instituições culturais estão se abrindo para tematizar assuntos que
antes continuariam no esquecimento. Todavia, cabe analisarmos que as ausências podem ter
uma relação com a sociedade da época, já que observamos o presente pela ótica de uma
reinterpretação desse passado. Aqui podemos inferir a partir das próprias questões que Maria
Helena Versiani produz ao questionar as coleções pesquisadas por ela no Museu da República:
Essas questões são interessantes pois nos provocam a pensar acerca da trama de
complexidades que são os museus, imersos nesse jogo de decisões, negociações e disputas, pois
são espaços de poder e não de neutralidade. Reafirmar essa condição é importante, porque nos
faz lembrar o que Cury (2005) também observa: que o ato de expor é valorizar o objeto duas
vezes. No entanto, a exposição é parte de uma série de operações que são realizadas
anteriormente, que chamamos de musealização. Esse conceito é debatido no âmbito da
Museologia como um percurso pelo ciclo qual os objetos passam assim que são
institucionalizados em um museu: “[...] o ato da musealização desvia o museu da perspectiva
do templo para inscrevê-lo em um processo que o aproxima do laboratório” (DESVALLÉES;
MAIRESSE, 2013, p. 53). Ou seja, coloca as coleções e os objetos como passíveis de serem
questionados como um produto de pesquisa e produção de conhecimento. Sobre esse aspecto,
podemos afirmar que as instituições museológicas são lugares que evocam memórias e
45
a pesquisa histórica é a chave” (VERSIANI, 2018, p. 87). Nesse sentido, todo esse processo é
significativo, pois questiona o lugar das mulheres nos clubes de futebol que além das atletas
conta com torcedoras nas arquibancadas, jornalistas, arquivistas, museólogas, historiadoras,
executivas e algumas dirigentes e conselheiras nos conselhos deliberativos. Também pode nos
levar a questionar porque os alicerces do futebol estão relacionados somente às estruturas de
masculinidade. Impulsionados por essas dinâmicas descobrimos, além dos objetos, documentos
sobre o futebol feminino que ainda não haviam sido estudados, identificados ao longo do
processo de “escavação” na documentação desse acervo: caixas e mais caixas de jornais
emergiram, revelando camadas de histórias soterradas. Estava mais que claro do que nunca,
como argumenta Soares (2020, p. 3), que “[...] museus são o resultado de negociações do
próprio consenso sobre o valor, reproduzindo materialmente as hierarquias de poder”. Diante
de todo esse material, rostos e nomes começaram a surgir e dar forma, sentido e significado
para a coleção.
A constituição dessa coleção foi simbólica, pois não tínhamos um conhecimento de
quando houve essa modalidade no Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense anteriormente, mas foi
em 1983, logo após a liberação nacional para se praticar o esporte. No Grêmio, a criação do
primeiro time, ainda em 1982, está sustentada no protagonismo de Marianita da Silva
Nascimento, a primeira capitã gremista do futebol de mulheres do clube. Encontramos uma
medalha e, junto aos documentos em suporte papel encontramos posters de campeonatos com
as jogadoras campeãs e fotografias. Nenhum desses materiais estava catalogado ou tombado,
portanto, nem tudo que recuperamos possuía o contexto. Esse processo nos remete ao que
Soares (2020, p. 23), nos sinaliza que [..] “Musealizar é materializar, é dar matéria ao
pensamento, e produzir musealidade é uma prática política que implica a criação de uma
significação positiva, nas vitrines dos museus e nas sociedades que os concebem”.
Todo esse processo nos levou a uma outra etapa, o da busca por fontes orais através do
uso da metodologia da História Oral, portanto, estamos aos poucos realizando entrevistas com
ex-atletas do passado do clube e esse processo tem sido muito rico para preencher lacunas sobre
os objetos e os documentos. Essas trocas diretamente com os sujeitos históricos é um
movimento que acolhe e os sentimentos se misturam entre a museóloga e as entrevistadas. Os
resultados parciais vão se transformar em uma exposição em formato digital em uma plataforma
dedicada aos esportes que em breve será divulgada. Entre as conversas do projeto “Narrando
Histórias”, criado pela historiadora do museu Bárbara Lauxen, além das memórias, estamos
recebendo doações de objetos de jogadoras que se emocionam no ato de transmissão dos objetos
para a guarda do museu. Elas esperam em um momento próximo fazerem parte da história do
47
clube representadas no espaço museológico. Até o momento essa coleção específica é composta
por 30 troféus, 1 medalha, 1 faixa, 1 braçadeira, 3 quadros e 1 chuteira além das fotografias e
dos documentos.
Nesse sentido, o museu movimenta-se para cumprir seu papel social, talvez não ainda
da maneira ideal, mas estamos em um processo de reconstrução que se faz no presente e com
os olhares e demandas sociais contemporâneas. Vale destacar também que estamos encontrando
nessas mulheres histórias de resistência, que conseguinte, remeteu ao pensamento:
O museu é um ambiente de tensões e disputas por pautas e poder, nesse caso, claramente
os homens invisibilizaram o protagonismo feminino em todos setores do clube e isso também
está presente no museu, pois esse espaço de representação é um espelho que reflete a supressão
das mulheres na história do esporte e demarca papéis socialmente construídos e intolerâncias
ainda em vigência, resistir é preciso para investir na renovação do museu que se propõe a ser
um espaço plural e aberto ao diálogo com a sociedade.
Considerações finais
A coleção de futebol feminino do Museu do Grêmio – Hermínio Bittencourt contribuiu
para inspirar reflexões sobre como são fundamentais as etapas do processo de musealização de
uma coleção. Ao olhar esse espaço de memória percebemos que os museus de clubes de futebol
se configuram como locais ideais para fomentar debates sobre as desigualdades de gênero e as
estruturas raciais excludentes, sendo mais que necessária a construção de políticas culturais
nesse sentido. Cabe salientar que é o nosso olhar no presente que realiza ressignificações e
reinterpretações sobre o passado. Os museus também demonstram entre presenças e ausências
quais memórias são priorizadas para uma construção e manutenção de narrativas, por isso
também se apresenta como um local de poder que age diretamente como entendemos e
representamos os nossos imaginários simbólicos. Como local de disputa, eles estão em
constante negociação entre os sujeitos que também buscam um espaço de recordação para suas
histórias de vida, lutas e conquistas.
Dessa maneira, apresentamos dados parciais sobre o processo de musealização dessa
coleção documental e tridimensional, alguns projetos que estão sendo concebidos para sua
48
29
Luiza Helena Amorim Cavalcante
Introdução
Para refletir sobre o que é um museu, há várias perspectivas: para o senso comum pode
ser visto como um mero “depósito de coisas velhas”; Walter Benjamin encontrou neles espaços
suscitadores de sonhos. A mitologia grega contribui trazendo elementos interessantes: Museion
era filho de Orfeu e como o pai, era poeta portanto, “tinha o poder de ver a poesia das coisas
(ou como as coisas se relacionam no mundo poeticamente) e de resgatá-las em sua plenitude,
seja recolhendo-as, seja reordenando seu sentido poético” (CURY, 2005 p. 21-22). Tolentino
(2014, p. 14), alerta que eles podem ser também espaços de opressão e tirania, à serviço da
manutenção da hegemonia das classes dominantes, uma visão parecida com a de Chagas (1999)
para quem “há uma gota de sangue em cada museu”. Percebemos assim, como os acervos e
suas narrativas carregam um grande poder simbólico.
O Conselho Internacional de Museus (ICOM), organização não-governamental que
mantém relações formais com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e
a Cultura (UNESCO), define museu como sendo uma “instituição permanente sem fins
lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento”. Entre as ações realizadas, por
estre espaço, estavam as de adquirir, conservar, investigar, comunicar e expor o patrimônio
material e imaterial da humanidade, “com fins de educação, estudo e deleite”. Diante das novas
experiências museológicas surgidas e dos novos contextos, ela teria se tornado insuficiente?
Em 2019, durante a 25ª Conferência Geral do ICOM, realizada em Quioto no Japão, foi levada
para votação uma nova proposta de museu, contudo, não foi aprovada. Decidiu-se por adiar por
um ano a discussão, por trazer “implicações políticas a nível internacional”:
29
Mestranda em História Social (Universidade Federal do Ceará- UFC), Especialista em Teorias da Imagem e da
Comunicação (UFC) e graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo. Integra o Grupo de
Estudo e Pesquisa em Patrimônio e Memória (GEPPM-CNPq).
51
30
Os vinte termos escolhidos pelo ICOM Brasil: https://www.icom.org.br/?page_id=2249
52
apenas com o entorno, mas também com a cidade. Ao ler algum texto sobre o Minimuseu
Firmeza ou ainda visitar o site institucional, encontra-se a palavra afeto relacionada à
experiência oferecida aos visitantes, recepcionados por Nice e Estrigas. A frequência com que
o substantivo aparece leva ao questionamento: é possível dissociá-lo da afetividade?
teve a primeiras experiências de pintura. Contudo, por não ser adepta do método das cópias de
outras obras, foi muito incompreendida por sua inventividade.
A mudança para Fortaleza, com a família, possibilitou que ela tivesse encontro com a
arte, pois, foram morar em um apartamento no bairro Jacarecanga, e um dos vizinhos era o
pintor José Maria Siqueira. Certo dia, ele surpreendeu a jovem desenhando a saída dos
trabalhadores de uma fábrica e puxou assunto. Ele fazia parte da Sociedade Cearense de Artes
Plásticas (SCAP), e ao perceber o talento dela, convidou-a para matricular-se no Curso Livre
de Desenho e Pintura, que seria criado pela entidade. Ela foi a primeira mulher inscrita.
Escondida da família, foi em busca de emprego para financiar essa empreitada. Fez a seleção
do concurso para a empresa telefônica e foi chamada. Passou a assinar os primeiros quadros
como Nice e a participar de exposições. Ela era uma das poucas mulheres, dessa época,
reconhecida por ser artista visual. Entre as mulheres que fizeram parte da turma do Curso Livre
de Desenho e Pintura, na qual Nice participou, há registro de duas outras mulheres: Lisete e
Nilza, cujos sobrenomes não foram citados. Em outra sede, participaram: Míria, Ester Pimentel,
Lúcia Galeno, Cleusa, Dayse Montenegro e Heloísa Juaçaba31, que entre estas, foi a única que
se destacou no mundo das artes.
De acordo com Estrigas (1983), a SCAP32 representou a fase renovadora das artes no
estado, o modernismo. Havia um espaço físico com biblioteca e um ateliê coletivo, onde
31
Heloísa Juaçaba teve uma participação ativa na cena cultural da cidade, participou da Comissão Organizadora
do Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará, fundou o Centro de Artes Visuais - Casa de Cultura
Raimundo Cela e idealizou o Museu de Arte e Cultura Populares do Ceará. Desempenhou atividades no âmbito da
administração da cultura no Estado do Ceará: direção do Departamento Municipal de Cultura da Prefeitura de
Fortaleza; integrante do Conselho Estadual de Cultura; diretora do Centro de Artes Visuais Casa de Raimundo
Cela e organizadora das pinacotecas do Palácio da Abolição, sede do Governo do Estado do Ceará, e do Paço
Municipal de Fortaleza.
32
A SCAP foi fundada em 27 de agosto de 1944, agregava tanto pintores quanto jovens escritores e figuras de
outros setores “sensíveis aos problemas da arte procurando melhor situá-la, ao mesmo tempo em que se fazia
movimento conjunto de arte e literatura com o grupo CLÃ (Clube de Literatura e Arte), do qual vários elementos
faziam parte da SCAP e vice-versa” (ESTRIGAS, 1983, p. 22). Para Estrigas a SCAP representou uma fase heroica
artisticamente valiosa que levou o Ceará ao plano internacional da arte” (ESTRIGAS, 1983, p.10). Contudo,
encerrou suas atividades em 1958, por falta de apoio financeiro, e de acordo com o pesquisador, os artistas ficaram
54
participavam dos cursos, os mais experientes ensinavam os mais jovens, e tinham o costume de
uma crítica de arte, das obras uns dos outros. Nada era exposto sem antes passar por esse
processo. Realizam com frequência, os “picnicarte”, quando saíam para pintar ao ar livre. Foi
nesse espaço, onde Nice pode desenvolver-se enquanto artista e conheceu o companheiro
Estrigas.
Como artista-etc, Nice ia aprimorando-se e ocupando outras funções, além das pinturas
de tela de sua fase mais conhecida, classificada como naïf, devido ao estilo marcado pela
simplicidade e espontaneidade das cores e traços. Eles lhe renderam a participação em
exposições internacionais como o Brèsil Naïf (Marrocos, em 1986), o Salon Internacional d´Art
Naïf (França, 1986) e o 3ème Salon International d´Art Naïf (Paris). A artista unia o erudito ao
popular de maneira muito natural, mas nem por isso, simplista. O bordado teve uma grande
importância na sua obra: pintura em linha com motivos florais nas roupas, em uma explosão de
cores única, além das mandalas. Foi legitimada, pela Academia, ao ser citada, especialmente,
pelo pesquisador da cultura popular, o prof. Gilmar de Carvalho que defendia que o bordado de
Nice era considerado obra de arte, trazendo para o debate essa característica tão própria dela de
transitar com harmonia entre o erudito e o popular:
A vontade de bordar não contradiz a pintura, antes, podem ser vistas como
complementares. Correu o risco de ser chamada de bordadeira, como se fosse
depreciativa para a condição de artista (CARVALHO, 2007, p. 48).
durante muito tempo soltos, sem uma entidade que os representasse, e sem o ateliê coletivo tão importante para
suas práticas. Um grupo tentou retomar as atividades, contudo não houve entendimento. Quando o Minimuseu foi
fundado ele passa a ocupar esse espaço de reunião e produção artística.
55
de arte, criação, conversas com os fundadores e terminar na cozinha da dona da casa. Foi
nomeada Tesouro Vivo/Mestra da Cultura, em 2007, pela Secretaria de Cultura do Ceará, sendo
reconhecida pelo fazer gastronômico e artístico.
para a Universidade Federal do Ceará. Este material acabou perdido devido à ação dos cupins.
Paralelo a isso, Estrigas colecionava recortes de jornal, catálogos de exposições e outros
materiais, formando um importante arquivo disponibilizado no Centro de Documentação do
museu, sendo uma referência no estado.
De acordo com Ruoso (2020, p. 766), “Os trabalhos da memória nasceram da elaboração
de uma escuta sensível que foi resultado de uma ação coletiva nos mundos da arte”. O projeto
de guarda de memórias foi ganhando novos elementos. Em 1963, ele passa a ter uma coluna no
jornal Tribuna do Ceará, intitulada “Arte e artistas”, o que o motivou a coletar ainda mais
informações sobre o assunto. Não era difícil pois, ele convivia neste meio com muita
propriedade e recebia muitas visitas no sítio no Mondubim. Paralelo a isso, começa a entrevistar
esses amigos artistas.
Com tanta informação em mãos, Estrigas resolve publicar suas pesquisas. Os dois
primeiros livros foram lançados em 1969, com os títulos “Síntese da História das Artes Plásticas
no Ceará” (Plaqueta) e “Arte: aspectos pré-históricos no Ceará”, edição IOCE. Ao todo lançou
vinte e uma publicações, entre livros de arte e biografias de artistas. O intervalo entre os dois
primeiros lançamentos e o terceiro foi de treze anos, em seu diário ele registrou a dificuldade
de publicar livros sobre o assunto, no Ceará. Os originais de “A Fase Renovadora da Arte
Cearense”, ficaram dois anos na Imprensa Universitária, ligada à Universidade Federal do
Ceará, sem perspectiva de publicação. Ele classificou esse episódio como um descaso com as
artes no estado e sentenciou:
O livro foi impresso e lançado no ano seguinte, depois de muita insistência dele. “O
meu interesse com essa publicação é tão somente deixar documentada, antes que se apagasse
de todo, na memória histórica, essa fase da arte no Ceará”, escreveu em 03 de novembro de
1983. Os diários, foram publicados na forma de quatro livros – “Arte na Dimensão do
Momento”, volumes I e II; “Entre o Dia e a Noite e Diário Paralelo” e “Hoje e o Tempo Passado:
57
Considerações finais
Mais do que permitir a contemplação das obras, o Minimuseu Firmeza era um convite
à experimentação. Os visitantes poderiam integrar o acervo a partir de obras, muitas vezes,
criadas debaixo das mangueiras do sítio. Podiam ainda fazer pinturas, desenhos, intervenções
nas paredes externas da casa. Esse modo de ser e de compartilhar, por essa e outras
características o diferenciavam de um museu tradicional. Chagas (2013), no vídeo “Museologia
Afetiva”, afirma que é preciso pensar o museu como “espaço de convivência, espaço de relação,
como elemento de conexão entre o eu e o outro, entre o ontem e o hoje, o presente e o futuro”.
Assim era o Minimuseu e sua atual gerente, a sobrinha neta de Estrigas, Rachel Gadelha, vem
tentando manter essa mesma essência, apesar das dificuldades como a falta de apoio do poder
público, uma vez que mesmo sendo um museu particular, sempre serviu ao público recebendo
nem só artistas, mas pessoas interessadas e muitos grupos escolares.
Percebemos que o afeto perpassou e ainda atravessa a formação do acervo e a maneira
de organizar a expografia: Sala Arte & História cuja disposição das obras pretende traçar uma
cronologia das artes no Ceará, apresentando três fases da arte: pré-história, acadêmica e do
moderno ao contemporâneo; Sala Arte & Afeto que apresenta as obras doadas por amigos e
crianças que eram alunas de Nice; e como não poderia deixar de ter, a Sala Nice & Estrigas
com parte da produção do casal.
58
Referências
BASBAUM, Ricardo. Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013.
BECKER, Howard S. Mundos da Arte. Lisboa: Livros Horizonte, 2010.
CARVALHO, Francisco Gilmar Cavalcante de. O ponto do bordado. Revista Ângulo,
Lorena (SP), n° 109, p. 46-49, abr./jun. 2007.
CHAGAS, Mario. Imaginação museal: museu, memória e poder em Gustavo Barroso,
Gilberto Freyre e Darcy Ribeiro. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Programa de Pós-
graduação em Ciências Sociais, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2003.
CHAGAS, Mario. Imaginação museal e museologia social. In: Lugar Comum. Rio de
Janeiro, n. 56, dezembro de 2019. Disponível em:
https://revistas.ufrj.br/index.php/lc/article/view/41602
CURY, Marília Xavier. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo:
Annablume, 2005.
DELAMBRE, Dell. Museologia do Afeto: Memória da Declaração do Rio MINOM 2013.
Vídeo (22´40´´). Publicado no Canal Gol para o Planeta. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=6PZI0TM0KtM Acesso em: 20 de julho de 2021.
DESVALLÉES, André; MAIRESSE, François. Conceitos-chave de Museologia. Tradução:
Bruno Brulon Soares, Marília Xavier Cury. ICOM: São Paulo, 2013.
33
Site institucional: https://www.minimuseufirmeza.org/
34
O download do caderno está disponível no seguinte link:
https://drive.google.com/drive/folders/13c2PbSR6tEtAkZhxQtk9Ms_srRzax_cK
59
Introdução
Os conceitos que definem o que é museu foram recentemente repensados por meio do
Conselho Internacional de Museus/International Council of Museums (Icom) e atualizados com
uma definição que amplia o modo de pensar, sentir o museu, além de ressignificá-lo.
[...] Os museus são espaços democratizantes, inclusivos e polifônicos que
atuam para o diálogo crítico sobre os passados e os futuros. [...] a fim de
colecionar, preservar, investigar, interpretar, expor, e ampliar as
compreensões do mundo. (ICOM, 2017, p. 2).
35
Graduada em História pelo Centro Universitário Barão de Mauá de Rio Preto. Arte-educadora. Desenvolve
projetos de pesquisa e formação de professores nas áreas de Patrimônio Cultural; Membro do Instituto Paulista de
Cidades Criativas e Identidades Culturais (IPCCIC).
36
Doutora em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp)/ Franca. Professora do Centro Universitário
Barão de Mauá e do Centro de Estudos da Arquidiocese de Ribeirão Preto
37
Publicitária, Pedagoga, Pós-graduada em Administração e Organização de Eventos pelo Serviço Nacional do
Comércio (Senac)/Águas de São Pedro. Profissional de Museu no (MIS)/RP.
61
38
No texto vamos nos referir ao Museu da Imagem e do Som – Ribeirão Preto, pela abreviação MIS/RP.
62
térreo do Museu Histórico e de Ordem Geral “Plínio Travassos dos Santos”, em 4 de janeiro de
1984. O primeiro diretor, nomeado em 1990, foi Olívio Silvério Filho, conhecido pelo nome
artístico de Lúcio Mendes (ABDALA, 2020).
Nesse novo espaço, ainda provisório, além da continuidade de constituição de seu
acervo, o museu teve expandidas suas atividades de pesquisas, exposições, coletas de
depoimentos orais relacionados com a história do rádio na cidade, e depoimentos de pessoas
representativas da memória local, por meio de um programa de história oral denominado
Projeto Memória Oral – MIS. O primeiro diretor deixou registrado que: “continuo fazendo as
entrevistas, as gravações, muitos nomes que também fazem parte da história de Ribeirão Preto:
homens públicos, políticos, radialistas, jornalistas, gente que é gente” (MENDES, s/d).
Por essa ação, verifica-se uma peculiaridade de gestão durante a qual se inicia uma
política institucional que prevê a construção da memória presente, mediante a participação
compartilhada da comunidade, caracterizando o museu como espaço de mudanças sociais e
trazendo ares de contemporaneidade.
Em 20 de novembro do mesmo 1990, foi oficialmente inaugurado pelo então prefeito
Welson Gasparini. (ABDALA, 2020). Porém, o fato de o museu não ter sede própria e
submeter-se a salas inadequadas; sofrer muitas transferências de espaço físico; bem como
depender financeiramente de verbas orçamentárias, administradas pela Secretaria da Cultura,
acarretou prejuízos na trajetória da instituição.
Esses problemas administrativos enfrentados comprometeram o funcionamento geral de
suas atividades, dificultando o tratamento e a pesquisa das coleções; prejudicando o acesso de
usuários e pesquisadores; além da preservação de seu equipamento físico. Nessa fase, ficou
evidente que o museu necessitava de ter sua sede própria, a fim de institucionalizar o
desenvolvimento de suas ações museais e sistematizar a política de preservação do acervo.
Devido a essa constatação, em 1994, a administração pública, do prefeito Antônio
Pallocci Filho, alugou uma casa em tamanho que pudesse receber o acervo e as instalações do
museu, com projeto de adequação no imóvel.
A partir de então, o seu acervo constituiu-se como objetos principais das tipologias com
predominância de audiovisual, além de documentos que remetem à industrialização dos meios
de comunicação do século 20, entre os anos 1940 e 1950, nas seguintes tipologias: a) objetos
bidimensionais; b) objetos tridimensionais; c) acervo sonoro, acervo de áudio ou acervo
fonográfico; d) acervo videográfico; e) acervo cinematográfico e acervo fotográfico
(MENDONÇA, 2014).
63
piso superior da Casa da Cultura para o armazenamento, bem como para manter algumas ações
museológicas em atividade. Foram longos 14 anos – de 2005 a 2019.
Porém, o MIS/RP não “saiu de cena”. Durante esse período, manteve-se ativo,
conduzindo o programa de registros e catalogação do acervo. Além disso, constituiu parcerias
com instituições afins, desenvolvendo ações educativas, oficinas de conservação de acervo,
cursos, palestras, debates, exposições e concursos na área de fotografia e artes visuais, como:
grafite, histórias em quadrinhos e documentários sobre a história da cidade.
Integrou-se, ainda em projetos coordenados pelas Secretarias Municipais e Estaduais de
Educação e Cultura, investindo na qualificação dos funcionários que atuavam no Museu. O
atendimento ao público foi reduzido, mas não suspenso. Com agendamento de alunos e
pesquisadores, foi possível dar continuidade ao suporte educacional.
Desde então, vem organizando exposições com parceiros, como a Biblioteca Sinhá
Junqueira, e lives alusivas a datas comemorativas, como o Dia Internacional da Mulher; o
aniversário dos 43 anos do MIS/RP; possibilitando atividades de pesquisa e formação.
A Universidade no Museu
O papel das universidades em equipamentos culturais trouxe para o debate a importância
de unir a teoria com a prática, num contexto de grandes mudanças no fazer museal e a
compreensão da sua importância para o ensino e a pesquisa no campo da História.
Com enfoque na atuação dos discentes de um curso de História e na relação com o papel
dos museus em uma comunidade que, em 2004, foi instituído um estágio obrigatório para os
alunos do curso de licenciatura em História, do Centro Universitário Barão de Mauá – Ribeirão
Preto/SP.
O projeto, cujo nome é “Mauá no Museu”, está atrelado à disciplina Instituições
Culturais e de Memória: Trabalho do Prof. de História e consiste em um estágio a ser
desenvolvido em qualquer equipamento de cultura de uma cidade. O objetivo do estágio é
colocar o discente aplicando na prática a teoria estudada no curso de História. Para tanto, no
final, o aluno elabora e coloca em prática um projeto pedagógico a ser desenvolvido dentro do
equipamento cultural.
O estágio em si foi dividido em duas etapas: uma de aprendizado em qualquer função
dentro de um equipamento de cultura; e, a segunda etapa, a aplicação do projeto pedagógico no
local do estágio. Para compor o estágio, é necessário que o discente identifique qual é o papel
do profissional de História nesses equipamentos.
Um referencial teórico abarcando os diferentes conceitos de museu; arquivo; cultura;
memória; patrimônio cultural; identidade; educação em suas múltiplas formas; é estudado em
sala, preparando o discente para a vida futura. O estágio compõe apenas um momento, dentro
dessa trajetória do curso de História, que vem se somar aos outros estágios; projetos de
pesquisa; visitas guiadas; palestras; seminários; entre outros, que fazem parte da vida
acadêmica. A pesquisadora Waldisia Guarnieri, ao falar do conhecimento museológico aponta
que:
Considerações finais
A falta de investimento nas áreas de cultura e memória, no país, tem levado ao abandono
e fechamento dos espaços culturais. As parcerias, portanto, tornam-se fundamentais para a
manutenção e preservação desses bens. Nesse sentido, objetiva-se compreender que o papel
desempenhado pela sociedade civil, por meio da ONG Vivacidade, para o fortalecimento
institucional e a fiscalização das ações do poder público, em relação a seus espaços de memória,
permitiu a salvaguarda do acervo e a reabertura do MIS/RP.
A abertura da nova sede possibilitou a construção de novas parcerias, como a do Centro
Universitário Barão de Mauá. Os discentes, ao adentrarem esse universo museal, por meio do
preparo da exposição, pesquisaram a respeito do acervo; da história do museu; da historia do
prédio; aplicaram os conceitos estudados em aulas; e avançaram na reflexão a respeito do
complexo patrimônio cultural que compõe o acervo das instituições museais.
A atuação do profissional de História em museus agrega valores e concretiza a
multidisciplinaridade que deve compor o fazer dos profissionais de um museu para que adentre
o universo da Educação em suas múltiplas formas. Essa iniciativa tem o seu valor na formação
de novos profissionais para a preservação do nosso patrimônio e em sua qualificação para a
difusão dos conhecimentos obtidos no estágio a serem aplicados em sala de aula.
Apesar dos desafios enfrentados pelo MIS/RP acreditamos que um novo período se abre
a essa instituição, que reerguerá suas ações museais sob novas estratégias; manterá as parcerias
institucionais e educacionais existentes e conquistará outras, para que contribua com a
construção de conhecimentos; o resgate de suas ações compartilhadas e de apropriação cultural;
ressignifique seu acervo como instrumento necessário de guarda e preservação do patrimônio
material e imaterial, ocupando o seu lugar de cidadania e fonte referencial de consulta;
validando-se cotidianamente na comunicação com o presente e assim cooperando com o
desenvolvimento da sociedade.
Referências
ABDALA, S. R. F. História do MIS-RP. Ribeirão Preto, Arquivo do MIS-RP, nov. 2020.
Manuscrito.
GUARNIERI, W. R. C. Sistema da Museologia. In: BRUNO, M. C. de O. (orgs.). Waldisia
Russio Camargo Guarnieri: textos e contexto de uma trajetória profissional. São Paulo:
Pinacoteca do Estado: Secretaria de Est. da Cultura: Comitê Brasileiro do Conselho
Internacional de Museus, 2010, p. 127-136
ICOM. Pesquisa Icom Brasil. Nova definição de museu. Disponível em:
http://www.icom.org.br/wp-content/uploads/2021/02/Apresentacao.pdf, Acesso em: 19 jul.
2021.
69
MENDES, Dulce. Dulce Mendes, guardiã do acervo do MIS. s/d. Disponível em:
https://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/files/scultura/arqpublico/mis-dulce-20.mp3. Acesso em:
19 jul. 2021.
MENDONÇA, T. M. Q. A. de. Museus da imagem e do som: o desafio do processo de
musealização dos acervos audiovisuais no Brasil. Disponível em: http://www.museologia-
portugal.net/files/upload/doutoramentos/tania_mendonca.pdf. Acesso em: 18 jul. 2021.
SÃO PAULO (Estado). Ministério Público Do Estado De São Paulo. Ação Civil Pública n.
14.0156.000017/2018-9, 2018. Arquivo MIS/RP.
POULOT, D. Museu e museologia. Trad. Guilherme J. de F. Teixeira. Belo Horizonte:
Autêntica, 2013.
RIBEIRÃO PRETO (Cidade). Lei municipal n. 3.431/78. Cria o Museu da Imagem e do
Som de Ribeirão Preto. Disponível em:
https://publico.camararibeiraopreto.sp.gov.br/pysc/download_norma_pysc?cod_norma=3428
&texto_original=1. Acesso em: 8 jun. 2021.
RIBEIRÃO PRETO (Cidade). Lei municipal n. 3.515/78, Denomina de “Jose da Silva
Bueno” o Museu da Imagem e do Som de Ribeirão Preto. Disponível em:
https://publico.camararibeiraopreto.sp.gov.br/pysc/download_norma_pysc?cod_norma=3511
&texto_original=1. Acesso em: 8 jun. 2021.
70
Introdução
Este trabalho tem como propósito refletir sobre o processo de formação de acervos
artísticos em museus universitários, tendo como estudo de caso o acervo do Museu de Arte
Leopoldo Gotuzzo (MALG), vinculado à Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Pretende-
se, assim, pôr em discussão os pensamentos que subjazem os processos de aquisição das
coleções, de uma mirada que extrapola a dimensão cartorial da gestão e invade o campo dos
sentidos, dos processos de seleção e das mentalidades que engendram este processo.
A musealização é uma forma de operar e mobilizar o patrimônio. Este processo possui
variações semânticas consideráveis, a depender do tempo e do espaço que é analisado; pode
pendular entre características técnicas, semânticas ou mesmo híbridas. Para os propósitos deste
escrito, alinhamo-nos com a perspectiva de Bruno Soares (2018) e Mário Chagas (2009), que
designam a musealização como um processo em cadeia que se inicia com o deslocamento
(físico e/ou simbólico) de algo comum para o contexto museológico, sobre o qual são atribuídas
novas existências e sentidos. Processo esse que é intencional e articula instrumentos de
valoração, de preservação e de ativação da memória. Deste ponto, destacam-se as expressões
de legitimação e prestígio que orbitam a formação dos acervos artísticos, assim como deixam
evidente as dificuldades que envolvem os museus universitários e que, de alguma forma,
impactam na seleção e mobilização dos seus acervos.
Essa discussão leva em conta trabalhos que abordam a formação de acervos artísticos
em museus universitários, como o de Adriana Mortara Almeida (2001), Fernanda Albuquerque
e Marília Frozza (2019) e Cícero Almeida (2012). Volta-se especialmente a aspectos que são
percebidos na história do MALG e suas coleções, como a relação com o ensino/pesquisa, o
colecionismo e das relações de troca e distinção. Em um segundo momento são considerados
parte dos dados levantados no arquivo do MALG, acerca das formas de aquisição e das
instâncias e pessoas responsáveis por essa seleção. Nesse âmbito, foram pesquisadas atas de
39
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal
de Pelotas; Bacharela em Museologia e em História pela UFPel; Servidora Pública, Museóloga do Museu de Arte
Leopoldo Gotuzzo (CA/UFPel). Contato: [email protected].
40
Doutor em Arqueologia pelo Programa de Pós-Graduação em Arqueologia da Universidade de São Paulo e
Professor Adjunto do Curso de Museologia e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio
Cultural da UFPel. Contato: [email protected]
71
comissões de seleção, termos de doação e jornais que divulgam as doações, entre outros, acerca
das obras musealizadas.
41
Uma referência mais atual é a Plataforma Digital da rede Brasileira de Coleções e Museus Universitários”, da
Rede Brasileira de Museus universitários. A plataforma contabiliza 531 museus universitários, levando em conta
diversas fontes, entre elas a tese de Adriana Mortara Almeida, que identificou 129 museus em 2001 (REDE
BRASILEIRA DE MUSEUS UNIVERSITÁRIOS, 2021).
72
Frozza dialogam com essa ideia, colocando que há, assim, uma motivação “vinculada à busca
por outro tipo de legitimação, relacionada à distinção social que o capital simbólico cultural
pode gerar no campo da arte” (2019, p. 302).
Ainda sobre a desvalorização das coleções em relação ao ensino da arte, Adriana
Almeida (2001) atribuí sua causa à mudança de métodos e paradigmas de pesquisa, como a
substituição da prática de observação e cópia de obras (relacionada ao ensino da arte
acadêmica), por uma visão mais espontânea da aprendizagem da arte, que privilegia a
inspiração natural sem influências externas.
No Brasil, segundo Fernanda Albuquerque e Marília Frozza, (2019, p. 298) os primeiros
museus de arte universitários guardam lastro com o ensino da arte, em que se utilizava das obras
das coleções como referência e modelo. As autoras citam nesse sentido o caso do Museu Dom
João VI, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que foi formado a partir
da coleção da Academia Imperial de Belas Artes. Também é o caso da Pinacoteca Barão de
Santo Ângelo, atualmente ligada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mas
que teve origem em 1908 com o então Instituto Livre de Belas Artes (ALBUQUERQUE;
FROZZA, 2019).
Há que se destacar, ainda nesse ponto, que a doação dessas coleções para as
universidades ou instituições de ensino também está ligada ao desejo de construção da
posteridade do colecionador, o “desejo de museu”, a que se refere Cícero Almeida (2012). Seja
pelos objetos, que de certa forma irão aludir à sua permanência para além da morte de quem os
reuniu, seja como legado para a posteridade: “Sua obra/coleção garantirá o reconhecimento
perene de sua inteligência, de seu bom gosto, de sua riqueza e de sua generosidade”
(ALMEIDA, 2012, p. 185). Nesse sentido, esse “desejo de museu” seria como uma solução
contra o esquecimento; como uma estaca que se finca no tempo e no espaço, onde se fixa a
memória; como um epitáfio deliberadamente registrado em vida, para que a imagem dos
possuidores não esmaeça no turbilhão do tempo A transcendência da própria morte (ou de um
ente querido), parece ser um aspecto fundamental, se esta premissa permanecer válida. Mesmo
sendo uma relação de troca (ALMEIDA, 2012), na qual o colecionador evita a dispersão de sua
coleção e garante a sua memória em favor de uma ampliação ou melhoria para o museu – ou
mesmo universidade.
se assemelha a outros museus de arte universitários, como os já citados Museu Dom João VI e
a Pinacoteca Barão de Santo Ângelo. Essas coleções, atreladas a uma instituição de ensino
superior e marcadas pela figura de seus colecionadores, são o ponto de partida para um acervo
que continua crescendo. No mesmo compasso, a biografia das coleções confunde-se com a
biografia dos sujeitos que a formataram.
A formação do acervo começa mais precisamente em 1949, quando a Escola de Belas
Artes de Pelotas (EBA) inicia suas atividades e recebe a primeira doação uma obra de Leopoldo
Gotuzzo, a pintura “A Espanhola” (FIGURA 1). Nascido em Pelotas em 1887, Gotuzzo era
filho de um imigrante italiano que construiu sua fortuna com investimentos diversos e o luxuoso
Hotel Alliança. Depois de um período estudando na Europa (1909-1918), o artista ganha seus
primeiros prêmios e volta para o Brasil estabelecendo-se no Rio de Janeiro, onde já moravam
dois de seus irmãos. Embora tenha ficado toda sua vida na então capital federal, mantinha
contato com Pelotas, em visitas esporádicas aos parentes e amigos locais (SANTOS, 2018).
Uma dessas amizades era a da ex-colega e fundadora da Escola de Belas Artes. Marina de
Moraes Pires. Marina convidou Leopoldo para ser professor na nova Escola, mas ele declinou.
Mesmo assim foi homenageado como patrono, participando de algumas aulas e exposições ao
longo dos anos, além de iniciar o acervo artístico da instituição com suas doações
(MAGALHÃES, 2008).
FIGURA 1: Fotografia de Leopoldo Gotuzzo doando o quadro “A Espanhola” para a EBA, em 1949.
O pintor está sentado à frente da obra, em meio as alunas. Ao lado, imagem atual da obra.
Fonte: Arquivo Marina Moraes Pires/ Acervo MALG, reprodução Daniel Moura
Após a primeira obra, Gotuzzo faz uma doação de um conjunto de quadros de sua
autoria. Sua seleção revela obras representativas de momentos de sua vivência e carreira, cuja
natureza genuína é descrita em carta enviada para a fundadora e diretora da EBA, Marina de
Moraes Pires. Desde esse momento aventa-se a referência a um “Museu Leopoldo Gotuzzo”.
74
Ao falecer, em 1983, o artista deixa em doação as obras que ainda tinha em posse,
impulsionando a criação do museu na UFPel. Embora Gotuzzo não tenha preparado o museu
diretamente, ele o idealizou (SANTOS, 2018). De alguma sorte, seria possível dizer que o
artista gravou em pedra sua imortalidade, por intermédio da coleção que consubstanciaria o
futuro Museu. No mesmo compasso, deixou registrado nesta mesma coleção um determinado
modo de ser e viver na cidade.
Ao longo da existência da Escola, mais duas coleções artísticas foram doadas. As
coleções Faustino Trápaga e João Gomes de Mello Filho têm em comum a doação póstuma,
realizada pela viúva e filha, respectivamente, e com o manifestado desejo de que elas levassem
o nome de seus colecionadores. Além dessas, a EBA foi construindo seu próprio acervo, com
obras dos alunos e doações. Em 1967, Carmem Trápaga Simões doa o prédio de sua residência
para a escola, assim como um conjunto de obras42.
Embora se encontre na documentação a referência a um museu, percebe-se que as obras
doadas eram dispostas pelos vários espaços da escola, além de serem utilizadas nas aulas, como
referência e modelo para os alunos. Nesse aspecto, as coleções dialogavam com o tipo de ensino
preconizado pela Escola, que, em alguma medida, já vinha caducando em outros espaços
artísticos e universitários.
Ao se referir ao estilo adotado pela EBA, Carmem Diniz (2005) destaca sua ligação com
o academicismo, entendido como estilo ou expressão artística caracterizado por voltar-se a uma
composição clássica, de representação naturalista e concepção clássica da arte, inserido no meio
artístico brasileiro pela Academia Imperial de Belas Artes. Segundo ela, as artes plásticas em
Pelotas no século XX foram se desenvolvendo de forma oposta aos grandes centros, tendo
privilegiado o estilo acadêmico e enfrentado dificuldades em formar um sistema das artes.
Nesse sentido, o estilo acadêmico, que fora adotado pelas oligarquias rurais como um
modelo para as artes, teve suas primeiras manifestações no período de apogeu político,
econômico e cultural da cidade (ao menos para as classes dominantes), adquirindo assim, papel
relevante no imaginário da cidade. O estilo, de caráter “discriminatório, a serviço de uma
minoria, dava status a quem dele usufruísse” (DINIZ, 2005, p. 95). As coleções doadas por
Leopoldo Gotuzzo, Faustino Trápaga e João Gomes de Mello condizem tanto ao estilo como
ao grupo hegemônico a que Diniz se refere. Assim, a EBA, inspirada na Escola Nacional de
42
Carmem Trápaga Simões era irmã de Faustino Trápaga, esposa de Francisco Simões, que já havia sido membro
da diretoria da EBA. A coleção de quadros doados juntamente com a casa não é identificada na documentação da
Escola, mas possivelmente estão entre as obras que não foi possível identificar a procedência. Algumas obras
incorporadas da EBA não indicavam a forma de aquisição pela escola. Essas questões serão abordadas com mais
atenção na dissertação em produção.
75
Belas Artes do Rio de Janeiro, deu expansão à cultura acadêmica e aos anseios dessa parte
dominante da sociedade pelotense, um “Grupo que compartilhava do mesmo conceito de arte e
de gosto idêntico em relação ao estilo que deveria ser adotado na nova instituição de ensino”
(DINIZ, 2005, p. 98).
Com a fundação da UFPel, em 1969, a EBA torna-se sua agregada. Permanece assim
até 1972, quando é totalmente incorporada, sendo fundida com o Instituto de Artes (IA) na
estrutura universitária. Nesse processo, todo o acervo da Escola passou para a tutela da
Universidade, mas não teve um destino determinado. Pouco se encontrou de informações sobre
esse período, marcado ainda por aquisições da própria UFPel, com suas unidades adquirindo
obras de arte.
Na década de 1980 esse quadro começa a mudar com o empenho de uma professora do
Instituto de Artes, ex-aluna da EBA, de Marina e de Leopoldo Gotuzzo, que através de um
projeto de extensão começa a reunir o acervo artístico da UFPel e preparar a criação de um
museu de arte. Luciana Renck Reis, que à época coordenava o projeto Pinacoteca conseguiu
restaurar boa parte das obras incorporadas da EBA, além de adquirir a já referida segunda
doação de Leopoldo Gotuzzo, concretizada postumamente. É do Projeto Pinacoteca que vai
surgir o Museu de Arte Leopoldo Gotuzzo, ligado à Pró-reitora de extensão (PREC), em 1986
(LACERDA, 2015; SANTOS, 2018).
Após a criação do Museu, novas coleções foram formadas, com semelhanças e
diferenças mais ou menos profundas em relação às anteriores à instituição. Atuando sempre
com exposições temporárias, a principal forma de aquisição passa a ser a doação de artistas que
participam das mostras. Compõe o acervo, ainda, a Coleção L.C. Vinholes43, que dá nome ao
conjunto e cujas aquisições ocorrem desde 2011. A mais recente, foi instituída pela Comissão
de Acervo do Museu, a Coleção Antônio Caringi. Como uma forma de homenagem ao escultor
pelotense – que também foi professor da EBA -, a coleção reúne o acervo do artista presente no
Museu, fruto de diversas procedências.
Nos primeiros anos, a escolha tanto das exposições como do aceite de obras, ficou a
cargo da Chefia do Museu. Posteriormente, essa seleção ficou à cargo também das comissões
43
Embora única no período recente, a doação dessa coleção privada impactou consideravelmente o MALG. A
coleção L. C. Vinholes superou em total de itens o quantitativo de todas as outras coleções do museu. Além disso,
dada a variedade de técnicas e de origem das obras (que abrange vários países e culturas da Ásia, África e Américas
do Norte e Latina), a coleção é um desafio para o museu, no âmbito das funções técnicas. Ao mesmo tempo, é um
incentivo para novas pesquisas, de produção de conhecimento e comunicação com públicos mais amplos do que
aqueles comumente abrangidos pelo museu.
76
de seleção e curadoria44. Nesse caminho, é possível perceber alguns dos fatores de distinção e
mesmo legitimação que atravessam a incorporação dessas coleções e a formação do acervo.
Entre eles, a concentração das decisões em um grupo que apresenta ligações com a EBA, na
manutenção do interesse em coleções de origem privada, no interesse dos próprios artistas em
fazer parte do acervo do museu.
Isso pôde ser constatado na busca realizada nos arquivos do MALG, pelos processos de
seleção e quem participou dos mesmos. Embora ainda em andamento, a pesquisa já permite
apresentar algumas informações levantadas em: documentos normativos do Museu; na
documentação museológica - cruzamento de informações quanto à época, o tipo de aquisição e
a procedência -; atas das comissões de assessoria, seleção e curadoria; editais de exposições.
Desse levantamento foram destacadas algumas formas de aquisição, que podem ser
relacionadas com os diversos períodos de construção do acervo. Dadas as características de
formação do acervo do MALG já colocadas, optou-se por uma observação dos períodos
anteriores ao Museu45. Foram elencadas como formas de aquisição: as doações de artistas
(expondo no museu, espontâneas ou de outros artistas); as doações da comunidade; as doações
de coleções privadas ou de conjuntos de obras/documentos escritos; transferência ou
incorporação de outras unidades da UFPel e compras.
Foi possível perceber nesse arrolamento que nas fases anteriores à criação do Museu, as
aquisições se concentravam em coleções já formadas (que abrangem a maioria das obras), além
de poucas doações. Os episódios de compra, embora raros, foram relacionados a obras de
Leopoldo Gotuzzo e Antônio Caringi, dois artistas de forte ligação com a EBA e a já referida
preferência pelo gosto e conceito de arte de parte da sociedade pelotense46.
Com a criação do MALG, a tônica das aquisições passa a ser as doações dos próprios
artistas, e em menor quantidade, da comunidade em geral. Isso reflete a dinâmica adotada pelo
Museu, de exposições temporárias, boa parte delas com artistas locais47. Essas coleções
demonstram, por um lado, a ruptura com a arte acadêmica, contrastando com as coleções mais
44
O primeiro regimento do MALG foi criado apenas em 1993, quando o Museu já havia sido movido da estrutura
da PREC para o atual Centro de Artes da UFPel. Foi esse regimento que instituiu as comissões normativas e de
seleção. Já o regimento em vigor no MALG foi criado em 2013, alterando a composição da comissão de assessoria
– que se tornou Conselho do Museu, e instituindo uma comissão de acervo, entre outras alterações. É sob essas
normas que boa parte das coleções Século XX e Século XXI foram formadas.
45
Os períodos foram divididos de acordo com a instituição que recebia a maior parte das obras e o período no qual
foi predominante. Depois da fundação do museu, os períodos se referem à vinculação na estrutura universitária e
ao regimento vigente: EBA (1949-1972), UFPel (1970-1985), Projeto Pinacoteca (1982-1985); MALG PREC
(1986-1992); MALG ILA (1993-2013) e MALG CA (2014-2021).
46
É possível que obras tenham sido compradas no âmbito da EBA cujos registros ainda não foram localizados.
47
Até o momento foram identificadas 425 exposições entre 1986 e 2020, das quais foram doadas 95 obras (cerca
de 40% das Coleções Século XX e XXI).
77
antigas. De certa forma refletem a mudança ocorrida com a formação universitária que passou
a se voltar a referências mais contemporâneas. Artistas formados pela UFPel passaram a fazer
parte do acervo, seja pela participação nas mostras, seja pelas suas doações espontâneas. Por
outro lado, a seleção das obras e dos artistas participantes nas exposições seguiu sendo atrelada
às instancias de gestão do museu. Sob esses aspectos, é possível entender essas novas coleções
em um contexto diretamente relacionado com o ensino de artes na UFPel. Afinal, as comissões
de seleção e os gestores foram, com poucas exceções, professores do Centro de Artes.
Outro aspecto a se considerar quanto às doações realizadas por artistas, é o peso da
instituição museu no campo das artes. O museu de arte assume um papel significativo dentro
do chamado “sistema da arte”, definido por Maria Amélia Bulhões, como:
A autora ainda explica que a esse sistema impõe uma hierarquização que legitima
simbolicamente o poder político e econômico de seus integrantes, que definem o que pode ser
considerado artístico, dá um status superior às demais produções plásticas, que passam a ser
designadas como artesanato ou artes menores (BULHÕES, 2014, p. 19). A formação das
coleções século XX e XXI transparecem o interesse dos artistas em ter suas obras parte do
acervo. Tanto que após a criação dos MALG, os artistas são a principal fonte de aquisição de
obras do museu. Essas doações ocorriam na maioria das vezes pelo próprio autor da obra,
participante de exposição ou mesmo sem um motivo específico. Alguns artistas ainda fizeram
a doação de obras de outros artistas mais ou menos relacionados com sua atuação.
Quanto aos critérios de seleção do acervo, poucos puderam ser identificados. No
regimento que esteve em vigor entre 1993 e 2012 não há critérios específicos para a aquisição,
descarte ou seleção de acervo nem de exposições. Contudo, direciona a decisão para a Comissão
de Seleção e Curadoria, composta de professores do Instituto de Letras e Artes (ILA). A
Comissão de Assessoria, com caráter consultivo e normativo que deveria estabelecer os
critérios para uso das salas de exposição do Museu.
A partir do primeiro regimento, a formação do acervo e as atividades e exposições do
MALG, que num primeiro momento estiveram atreladas à figura do Chefe e do Pró-reitor de
extensão, passam a ficar sob a tutela de um grupo maior de pessoas, grupo esse quase que
exclusivamente formado por pessoas ligadas ao ILA. Isso pode ser constatado nas atas das
78
Ainda que tenha se avançado na discussão dos critérios e quanto ao descarte, as decisões
ainda se mantém no âmbito do Museu e do Centro de Artes. O desafio tem se mostrado no
aperfeiçoamento e publicização desses critérios, no estabelecimento do diálogo com grupos
diversos e na revisão e estudo das coleções.
Outro fator relatado que se refere à legitimação e distinção, é o papel dos museus no
sistema das artes. Os museus de arte acabam fechando um conjunto de determinações que
podem estabelecer ou condenar artistas ao esquecimento. Destaca-se nesse aspecto dois pontos
que se manifestam principalmente nas coleções Século XX e XXI: o interesse dos artistas em
expor e ter suas obras no acervo do MALG; e a composição do grupo que definia essas
aquisições e participações no Museu (formado quase exclusivamente por membros do meio
artístico local).
Curiosamente, essa aproximação com os cursos de artes da universidade, tendo a
presença de professores na gestão e tomadas de decisão do museu aparentemente não se refletiu
nas ações de ensino pesquisa e extensão do MALG.
A UFPel possuí uma gama de cursos de graduação e programas de pós-graduação48 que
se relacionam diretamente ou indiretamente com o acervo e atividades do Museu. Ainda assim,
há um desinteresse pelo acervo (especialmente as coleções incorporadas), tanto no sentido de
pesquisa como de interesse para o ensino. Foram encontradas poucas pesquisas relacionadas ao
acervo do Museu ou sua atuação. O acervo também é pouco aproveitado em atividades de
ensino e o maior destaque das ações do MALG se dá no campo das exposições. Ocorre assim
um desequilíbrio nas ações de ensino-pesquisa-extensão.
Por fim, a aparente falta de discussão e construção de uma política para a formação do
acervo, não significa, entretanto, que as coleções do MALG foram formadas à parte de
intencionalidades e posições dos poucos que ficaram responsáveis pela sua seleção. Ao
contrário, são escolhas entre o que seria lembrado, celebrado e o que seria esquecido. Além das
dificuldades que colocam o ensino e a pesquisa em clara desvantagem em relação à extensão,
talvez o principal desafio do MALG seja conseguir romper a bolha que o mantém atuando para
a comunidade (universitária e pelotense) e não com ela. O conhecimento do seu acervo e como
ele foi construído ajuda a problematizar a própria trajetória, a perceber e incorporar novos
olhares, produzir conhecimento e ser um vetor de transformação social.
Referências
ALBUQUERQUE, Fernanda. C.; FROZZA, Marília. O. Museus de Arte Universitários:
vocações, especificidades e potencialidades. Concinnitas, Rio de Janeiro, v. 20, n.36, p. 289-
310, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.12957/concinnitas.2019.47976. Acesso em 27
jul. 2021.
48
Alguns deles são: Bacharelado e Licenciatura em Artes Visuais, Museologia, Conservação e Restauro de Bens
Culturais Móveis, Bacharelado e Licenciatura em História, Turismo, Antropologia e Arqueologia, Design Gráfico
e Design Digital. PPG Artes Visuais, História, Memória Social e Patrimônio Cultural.
80
Ao estabelecer o museu como uma prática social, Chagas coloca que não é possível
desassociar o patrimônio e os museus dos grupos sociais ao qual estão ligados. Afirma, ainda,
o autor, que por trás de uma narrativa que se utiliza da materialidade para evocação da memória
há um projeto político a ser sustentado.
Mesmo instituições que possuem pouco diálogo com a sociedade, estão ligadas a uma
representação de parte dela. Contudo, essa representação tende a ser excludente, tendo pouco
apelo perante a população em geral. Por isso, é importante pensar como se forma o patrimônio
dentro das comunidades e como o museu trabalha com isso.
Algo que pode ser considerado como formador deste elo, entre patrimônio e sociedade,
que resulta no fenômeno chamado museu é a busca pela construção de uma narrativa própria.
Como Chagas coloca, o museu é o lugar para:
Um dos fatores a que esta prática de selecionar está ligada, é o poder do museu de definir
o que é patrimônio ou não, através do processo de musealização, que segundo Desvallées e
Mairesse:
49
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural e Bacharel em Museologia
pela Universidade Federal de Pelotas - UFPel, Servidor Público no cargo de Museólogo da Prefeitura Municipal
de Rio Grande/RS, lotado na Fototeca Municipal Ricardo Giovannini. E-mail: [email protected]
50
Doutor em Sociologia pelo Programa de PPGS da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, com
período sanduíche no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa (2016). Mestre em Ciência da
Informação pelo Programa de PPGCI- IBICT/UFF (2007). Graduado em Museologia pela Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO (2004). Professor do Departamento de Museologia, Conservação e
Restauro, e do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de
Pelotas. . E-mail: [email protected]
82
Através desta operação o museu legitima os objetos, definindo quais são dignos ou não
para representação de determinado grupo (BOTTALLO, 1995, p. 283), definindo, assim, quais
memórias e narrativas que serão continuadas. Essa legitimação pode ocorrer pelo que Candau
define como o uso patrimonial feito por alguns grupos, que buscam construir uma narrativa
própria, atribuindo ao objeto uma autoridade que valide a narrativa. Sendo que para isso ocorrer,
é necessário que objeto seja capaz de provocar manifestação de recordações em indivíduos do
grupo que reforcem o discurso desejado (2012, p.159-160).
Portanto, os museus não selecionam de forma arbitrária, ou pelo menos não totalmente.
Pois como colocam Bittencourt, Fernandes e Tostes (1995, p. 63-64), todo o objeto pode se
tornar museológico, mas cada museu possui critérios para realizar essa seleção, e muitas vezes
regulamenta com o que os autores chamam de política de aquisição. Tal política, é criada com
a influência da conjuntura que criou o museu, a produção da época e a visão política dos que a
estabeleceram.
Ao entrar no museu é como se o objeto fosse validado, sendo tomado como prova
material da narrativa que a instituição se propõe a contar. E isso ocorre, por exemplo, pelo que
Marcos Olender diz ser a necessidade de preservar o rastro de um período histórico antes que
ele se perca da nova época. Quando isso ocorre, ao mesmo tempo em que ele adquire uma
dimensão pública, tem apagada sua dimensão privada (2012, p. 159), no momento da
descontextualização, não sendo mais um objeto ligado a um indivíduo, mas a um grupo social
que o ressignifica.
Esse objeto se torna o que Pomian chama de semióforo (1984, p. 71), ou seja, um objeto
sem função prática ou utilitária, mas que mantém um sentido invisível que lhe dá significado.
Neste caso, quer dizer que pode ser tomado como uma referência cultural/memorial. Ao passar
pela ressignificação, através da musealização, esse processo pode ser instrumentalizado por
uma Política de Acervos. Que segundo Ladkin é:
Baseado no que coloca Renata Padilha, cada instituição deve elaborar e tornar público,
de forma autônoma, uma política de aquisição, proteção e utilização do acervo, em cooperação
83
com a comunidade que provêm o acervo, refletindo o que esses grupos consideram seu
patrimônio cultural e natural (2014, p. 24). A autora ainda coloca a política de acervo como a
instrumentalização que estabelece os procedimentos para a prática da musealização.
A política de acervos, como instrumento de gestão dos museus, deve considerar a
capacidade do referencial patrimonial do bem perante a sua comunidade, atuando de forma a
valorizar esse vínculo memorial. Também deve contribuir para discutir e refletir sobre esses
referenciais, tentando valorizar a dinâmica de um grupo social que não é uniforme, ao contrário,
sendo muitas vezes conflitante.
Para Huyssen o processo de entrada de um objeto no museu pode levá-lo a dois
caminhos, o do mausoléu e ou da ressureição (1996, p.37). O Mausoléu é o do esquecimento,
do objeto que entra no museu sem um significado que justifique, não alcançando o estado de
semióforo. Ou seja, não cumpre com o seu propósito como referência patrimonial, não
construindo um vínculo afetivo e de evocação de memória do grupo social. Ele é no máximo
algo exótico e/ou curioso, não há uma apropriação, não remete a algo. Isso, baseado em
Huyssen, é colocar o museu como o tumulo de objetos que deixaram de ser úteis para a
sociedade. Ou seja, que em vez de ir para o lixo, foi para o museu.
Porém, a ressureição é quando se atribui um novo sentido. O objeto perde o uso prático,
mas adquire um simbólico. Para Gonçalves, isso ocorre porque:
Ou seja, é uma busca pelo domínio, utilizando de suas referências não apenas para se
opor ao outro, mas para dominá-lo de alguma forma. Apresentando este grupo como superior a
outros, através de suas heranças, que neste caso, seria o patrimônio cultural. Já Nora, ao definir
os lugares de memória, coloca que:
mas da identidade que a qual se utiliza desta para se formar. E para reverter esse processo,
busca-se referenciais patrimoniais que possam ser utilizados para sustentar essas lembranças.
Ou seja, o objeto torna-se importante não mais por seu uso prático, mas pelo significado
que lhe é atribuído. Fortalecendo uma ideia de identidade que é corroborada por um grupo
social através da memória que é evocada através da materialidade, podendo fortalecer uma
identidade criada ou em declínio. Ou seja, preservar uma ideia de realidade que não se sustenta
mais, sem o uso de artifícios, como os já citados.
Contudo, o patrimônio tanto tem um viés material, como imaterial. Maria Cecília
Londres Fonseca, ao discutir a formação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN) e do conceito de patrimônio no Brasil, coloca a percepção do ex-diretor do
instituto nos anos de 1970, Aloisio Magalhães. Ele considerava o modelo criado pelo então
SPHAN51 na década de 1930 como morto, por ser pouco representativo, não sendo mais que
um mero testemunho de época ou de expressões artísticas individuais (2017, p. 160-161). Em
contrapartida, Aloisio Magalhães defendia:
(...) um olhar novo sobre os processos culturais (...) a transformação e/ou (...)
resistência dessas atividades, sempre tentando se aproximar o máximo
possível do ponto de vista dos produtores e dos consumidores. (FONSECA,
2017, p. 156)
Pois não basta a preservação física destes bens, pois o que vincula as pessoas às coisas
é o seu significado. Mas no processo de proteção, esse significado é esvaziando de sentido,
numa tentativa de isolar o bem para preservá-lo. O que muitas vezes afasta o bem das práticas
sociais dos grupos, retirando sua significância perante as comunidades. O bem não faz mais
parte das vivências destes indivíduos, portanto, não lhes causa mais impacto.
Deste modo, como coloca Gonçalves, baseado nos “fatos sociais totais” de Marcel
Mauss (1974), o "(...) patrimônio é usado para agir, e não somente para se comunicar. (...) O
patrimônio, de certo modo, constrói, forma as pessoas” (2009, p.31). Ou seja, o uso do
patrimônio vai além da preservação de significados e referência culturais. Seu estabelecimento,
como um bem cultural é vinculado ao desejo de formação de uma narrativa, em fatos
memoriais, validadas pela materialidade do patrimônio, com o intuito de definir e delimitar os
elementos que compõem determinada comunidade. Contudo, se no processo de transformação
de algo em patrimônio cultural, não é preservado o que lhe dá capacidade de reconhecimento,
perante os membros de determinado grupo social, perde-se o poder de agir. O que faz esse
51
Serviço do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, atual IPHAN.
85
patrimônio ser incapaz de validar qualquer discurso, por não ter significa aos olhos do indivíduo
de determinado grupo social.
Por isso, o museu que quebra esse vínculo do objeto, do seu significado, com o
indivíduo, pode ser chamado de mausoléu. Pois além da perda de sua utilidade prática, o objeto
tem reprimido o seu uso simbólico. Já o museu que consegue alimentar esse vínculo ao retirá-
lo de seu contexto, traduzindo para o ambiente museológico o sentido do objeto, o ressuscita,
pois ele mantém ou adquire a capacidade de evocação de memória, mantendo ou adquirindo
relevância para os membros dos grupos sociais.
52
Centro de Tradições Gaúchas, ligados ao Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG).
53
Esporte que reproduz a captura de gado com laço, montado a cavalo.
54
Guerra civil que ocorreu de 1835 a 1845 entre parte da elite sul-rio-grandense e o Império Brasileiro, tendo
início no dia 20 de setembro, data que é feriado estadual no Rio Grande do Sul.
55
República criada pelo grupo da elite do estado que se voltou contra o Império. Tendo início no dia 11 de setembro
de 1936, foi dissolvida no ano de 1945, quando ocorreu o final da Guerra.
86
56
Local de atuação, entre voluntariado, estágio e como servidor entre os anos de 2006 a 2013.
57
Local de atuação como servidor entre os anos de 2013 a 2019.
58
Evento que ocorre no Centro Municipal de Eventos da cidade de Antônio Prado, geralmente no segundo e
terceiro final de semana de agosto. Site https://www.noiteitaliana.com.br/ acesso em 14/02/2021.
59
Festival Gastronômico dedicada a receitas de massa que ocorre a cada dois anos no centro histórico da cidade
de Antônio Prado/RS (Praça Garibaldi), no mês de novembro. Site do evento http://www.fenamassa.com.br/
acesso em 13/02/2021.
87
algum poder criador” (2009, p. 20), e que assim, são capazes de romper momentaneamente as
barreiras do tempo e do espaço, aproximando o usurário do “grande homem de ação”
(CHAGAS, 2009 p. 21). Ou seja, o indivíduo nesse momento não está só reivindicando, mas
externando perante o outro os valores que ele atribui àqueles objetos.
Quando um morador de Antônio Prado leva alguém para o museu para visitar uma sala
cheia de utensílios relacionados ao trabalho rural60, a pessoa quer mostrar o quanto os
moradores de sua cidade trabalham, o que inclui ele. Quando um morador de Piratini leva
alguém ao museu e lhe mostra as armas, as insígnias, ele quer mostrar que aquela cidade é
formada por pessoas valentes, o que inclui ele. É o uso de poder colocado por Gonçalves, que
difere e se impõem perante o outro. E muitas vezes, também é a necessidade de valorizar uma
memória que se encontra enfraquecida, como coloca Pierre Nora (1993).
Como Candau (2012) comenta, é a utilização dos bens patrimoniais na busca da
confirmação de uma narrativa construída. Não importa a veracidade, mas sim a capacidade de
evocação de memórias desses objetos e coesão com o que é desejado.
Porém, como colocam Huyssen (1996) e Chagas (2009), o museu é um local de reflexão,
não apenas de afirmação de discursos. O museu vivo, dinâmico, é o que se utiliza dos objetos
e das narrativas para preservar as referências patrimoniais/culturais das comunidades de forma
crítica, como um local ao qual a população pode falar para o outro o que é. Mas também pode
se ver e criticar a si própria, de forma coletiva e individual, através das representações das
memórias do grupo.
60
Destacando que são bem distintos do que se encontraria no museu em Piratini, o que remete, entre outras coisas,
à grande diversidade cultural e de etnias do Estado.
88
Nesse contexto, Bruno Brulon Soares e Teresa Scheiner (2009) colocam que os museus
não devem fechar-se em si. Para que não se tornem um instrumento de construção de visões
irreais das comunidades que encubra a existência do outro, fortalecendo intolerâncias e
preconceitos, numa narrativa fantasiosa de evocação de um grupo majoritário.
O processo de musealização pode ser perigoso, e o trato puramente técnico pode
sustentar um uso elitista do museu. Como coloca Bruno (1996, p.59-60), o processo de
musealização carrega implicitamente uma contradição, pois através da seleção patrimonial,
impulsiona “(...) uma realidade muito distinta daquela que emerge a partir de um fenômeno de
comunicação”. Essa mesma realidade pode ser um instrumento que minimiza falhas e silencia
eventos (BRUNO, 1996, 69), fazendo os museus pouco representativos e, por consequência,
pouco atrativos, a não ser para turistas curiosos.
Nos exemplos já citados, os museus possuem uma dificuldade em abranger no seu
discurso outros grupos, cultuando algumas figuras e/ou grupos étnicos, não incluindo – ou
fazendo de forma tímida – outros grupos que compõem sua narrativa. Assim, promovem o
encobrimento de certos elementos da história, em prol de narrativas convenientes aos grupos
majoritários.
Por isso, fundamentando-se no que colocam Maria Lucia Loureiro e José Mauro
Loureiro (2013, p. 2 e 8), de que a transformação do objeto em documento através da
musealização possuí a intencionalidade de estabelecer uma representação de uma
temporalidade; e que a Política de Acervo, como coloca Rosa, é “(...) um instrumento
indispensável para a administração, aquisição, tratamento e disponibilização de objetos
musealizados” (2020, p. 6), entende-se que uso deste instrumento deve levar em consideração
essas intencionalidades, não se limitando aos procedimentos técnicos de documentação e
conservação. Deve ainda, buscar a cooperação da comunidade, para a elaboração de um
documento que defina os procedimentos técnicos de forma crítica e participativa, tendo a
sensibilidade de que o museu deve atuar para fortalecimento dos vínculos entre da população
com os bens culturais, mas também, deve se estabelecer como um local de reflexão e autocritica
da sociedade.
O museu “vivo”, em movimento, oposto ao acumulador de objetos mortos, sem
significado, compreende que a memória é dinâmica e marcada pelo conflito. Por isso, o museu
deve ser o local de mediação das tensões que fazem parte da memória, agindo, bem como
expressa Pollak, como “(...) o denominador comum de todas essas memórias”, mas também,
nas tensões entre elas, intervindo “na definição do consenso social e dos conflitos num
determinado momento conjuntural” (1989, p. 11).
89
Isso pode diferenciar o museu dinâmico, que dialoga com suas comunidades e distintos
grupos sociais, buscando mediar as tensões criadas pela memória, do mausoléu, acumulador,
que descontextualiza o patrimônio, objetivando apenas cultuar memórias fragilizadas. Como
meio de instrumentalização do processo de musealização, a Política de Acervos é um meio
fundamental para estabelecer práticas que viabilizem tanto o acesso quanto o uso dos bens
culturais para representar e fomentar a reflexão sobre o meio social, provocando
questionamentos e não apenas vultos.
Referências
BITTENCOURT, José; FERNANDES, Lia Silvia. P.; TOSTES, Vera Lúcia B. Examinando a
Política de Aquisição do Museu Histórico Nacional. In: Anais do Museu Histórico
Nacional, v. 27, p. 61-77, 1995.
BRULON SOARES, B. C.; SCHEINER, T. C. A ascensão dos museus comunitários e os
patrimônios ‘comuns’: um ensaio sobre a casa. FREIRE, Gustavo Henrique de Araújo (Org.)
E-book do Encontro Nacional da Associação Nacional de Pesquisa em Ciência da
Informação. A responsabilidade social da ciência da Informação. João Pessoa:
Idéia/Editora, 2009.
BRUNO, Maria Cristina. Formas de Humanidade: Concepção e Desafios da Musealização.
Cadernos de Sociomuseologia, n° 9. Centro de Estudos de sociomuseologia. Lisboa:
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, p. 55-73, 1996.
BOTTALLO, M. Os museus tradicionais na sociedade contemporânea: uma revisão. Revista
do Museu de Arqueologia e Etnologia. São Paulo, n° 5, p.283-287, 1995.
CANDAU, Joel. Memória e Identidade. Maria Leticia Ferreira (Trad.). São Paulo/SP:
Contexto, 2012.
90
Introdução
Por meio deste trabalho propomos, as diretrizes para a criação de um Centro de Memória
no Parque Estadual dos Pirineus, para produção e resgate de sua identidade e história.
Utilizando como problema o seguinte questionamento: é possível a criação de um centro de
memória no Parque Estadual dos Pirineus para melhorar o conhecimento do público sobre sua
história e identidade? Para tanto, foi delimitado o espaço do parque e seu patrimônio natural e
cultural. A delimitação temporal do patrimônio cultural abrange desde 1927 até os dias atuais,
pois é o período da história da Romaria em louvor a Santíssima Trindade que acontece no local,
não deixando de mencionar acontecimentos anteriores. As fontes utilizadas são textuais e
também registros fotográficos com levantamento bibliográfico e documental, consultas a
órgãos públicos e palestras virtuais que foram proferidas na Câmara Técnica sobre uso público,
organizadas pelo Conselho Consultivo do Parque. Tem como conceitos fundamentais:
Memória, como elemento constitutivo da identidade baseando se em Freire e Pereira (2002); e
Patrimônio, baseando-se em Scifoni et al. (2006) que não concebe natureza e cultura como
termos independentes e excludentes, mas como dimensões contraditórias e articuladas que
demandam uma abordagem conjunta. Está estruturado em quatro partes: os aspectos gerais do
Parque, seu patrimônio natural, seu patrimônio cultural e a proposta do Centro de Memória.
Pensa-se num Centro que também produza registros e reúna grande parte dos inúmeros
documentos e pesquisas gerados a respeito do Parque Estadual dos Pirineus.
Localização: aspectos gerais do local
61
Mestranda no Programa de Territórios e Expressões Culturais do Cerrado (TECCER/UEG), graduada em
Ciências Sociais pela Universidade Evangélica de Goiás, professora aposentada da Rede Pública no Estado de
Goiás. Contato: [email protected].
62
Doutora em História Social pela Universidade de Brasília, mestre em História pela Universidade Federal de
Goiás, graduação em História pela Universidade Federal de Goiás, pprofessora no Programa Territórios e
Expressões Culturais no Cerrado (TECCER/UEG). Contato: [email protected].
63
Graduada em Biologia pela Universidade Estadual de Goiás, mestre no Programa de Territórios e Expressões
Culturais do Cerrado (Teccer/UEG), professora da Rede Pública no Estado de Goiás. Contato:
[email protected].
92
Patrimônio Natural
Na área do parque está localizado o segundo maciço mais alto do Estado de Goiás, são
três picos, o mais alto tem 1.385 metros de altitude. Importante marco geográfico da região, foi
objeto de interesse da Comissão Crulz, grupos de cientistas que passaram na região em 1892
para a demarcação do quadrilátero do Distrito Federal. Outro destaque é o Morro Cabeludo,
formado por Quartzito dobrado e fraturado, como aponta o documento Projeto Geoparques:
Geoparque dos Pireneus (Proposta), organizado pelos pesquisadores Thomé Filho; Moraes;
Paula (2010). O local tem como principais características as formações rochosas em arenito e
quartzito, datadas do período pré-cambriano, formações das mais antigas do planeta. Possui
dobras, falhas e fraturas, raras ou excêntricas na sua forma ou arranjo geométrico. Na proposta
do Projeto Geoparque dos Pireneus, Thomé Filho et al. destaca:
Formadas quase que exclusivamente por quartzitos e quartzitos micáceos
(moscovita quartzitos), se estende na direção aproximada E-W, por pouco
mais de 40 km, passando ao Norte da cidade de Pirenópolis e ao Sul da cidade
de Cocalzinho de Goiás. Na porção mediana deste alinhamento situa-se um
conjunto de três elevações, sendo a maior delas o ponto culminante do sul de
Goiás, o pico dos Pireneus, com aproximadamente 1390 m de altitude
(THOMÉ FILHO; MORAES; PAULA, 2010 p.15-16).
Leandro Vitorino e Douglas Santos, foi colocado no local armadilhas fotográficas (2020), onde
conseguiram vários registros, entre eles, o da onça pintada, raríssima de ser vista.
Na romaria dos Pireneus, os fiéis e visitantes, partem em direção ao local da festa para
compartilhar coletivamente o espaço, o qual torna palco do contato humano para a troca de
experiências religiosas e profanas vivenciadas em um espaço de tempo transcorrido, como
descreve o antropólogo Carlos Rodrigues Brandão, “[...] na romaria, devotos, penitentes ou não,
vão em busca de um lugar próprio e único, onde um tipo peculiar de relação com o sagrado é
intensamente vivido” (1989, p. 31). O evento iniciado é ressignificado com o passar dos anos,
tendo sua continuidade por meio dos descendentes do criador da romaria, de outras famílias da
comunidade pirenopolina e de moradores das cidades vizinhas. Sobre a ressignificação das
festas, recorremos às concepções da pesquisadora D’Abadia (2014) que, ao analisar as
festividades de padroeiro afirma que “perante as mudanças na sociedade atual, as festas
religiosas podem ser vistas como fator de ressignificação, seja, a perpetuação de uma tradição
97
presente nos diversos municípios brasileiros, essas são celebradas em maior ou menor
intensidade. Elas resistem e permanecem diante dos diversos cenários da contemporaneidade”
(2014, p. 12).
Neste sentido, a Romaria em Louvor a Santíssima Trindade que se tornou tradição com
a participação de muitas pessoas que apreciam a festa, não mais se define apenas no
acontecimento da missa em véspera de lua cheia.
Atualmente, os rituais festivos que seguem a ideia de um ciclo festivo, como propõe
Maia (2010), tem seu começo nove meses antes do mês de culminância. têm início em
novembro com a reza do terço mensal e finalizados no Plenilúnio de julho, com a procissão dos
romeiros na quinta-feira à tarde, que partem da Igreja do Senhor do Bonfim até o morro,
carregando o andor com a imagem da Santíssima Trindade. Ainda na quinta à noite, tem início
o tríduo, sequência de três dias de reza do terço que termina no sábado com levantamento de
mastro e acepipes. A missa solene é celebrada no sábado à tarde na capela da Santíssima
Trindade no alto do pico e domingo de manhã na capela de nossa Senhora D’Abadia, ao sopé
do morro. A tradição se modifica, mas a festa continua singela e peculiar com clima religioso,
familiar, fraterno e de contemplação da natureza, apresentando como verdadeiro Patrimônio
Natural, Cultural e Religioso de Pirenópolis.
Desafios da Romaria
Por características peculiares, a Romaria da Santíssima Trindade dos Pireneus é
concebida, como uma festa frágil. A manifestação prossegue anualmente, superando muitos
desafios, sobre este assunto, o padre e biólogo Josáfá Carlos de Siqueira que estudou a região
e a festa, discorre que “[...] cremos que um dos desafios atuais para a sociedade pirenopolina
consiste em resgatar e preservar a ideia original desta tradicional festa, pois nela acontece o
encontro da comunidade local com o divino e a natureza; com o Criador e as criaturas”
(SIQUEIRA, 2004, p. 42).
Segundo informaçãoes contidas em Silva (2020), o terreno que abrange o Santuário foi
doado por Christóvam José de Oliveira ao patrimônio da igreja durante seu comando da
romaria, hoje, o espaço de acontecimento da festa está localizado dentro de uma unidade de
conservação, o Parque Estadual dos Pirineus. A criação do Parque com a imposição de
normativas, sem conhecer ou valorizar a importância da romaria para seus partícipes, provocou
em muitos um descontentamento, bem como um distanciamento do evento festivo. Diante das
mudanças, os romeiros de tradição que prezam pela festa, tem a percepção dos cuidados
necessários para manutenção do evento, bem como do espaço onde ele se realiza desta forma,
98
Centro de Memória
A criação de um Centro de Memória no Parque Estadual dos Pirineus surge como uma
proposta para o resgate da identidade e da memória da Romaria, pois segundo os pesquisadores
Freire e Pereira: “A memória é, portanto, um elemento constitutivo da identidade, tanto coletiva
quanto individual, e elemento importante para o reconhecimento e a valorização de indivíduos
ou grupos (2002, p.125)". E também como registro do acervo de estudos e pesquisas sobre seu
patrimônio natural. Desta forma, por meio de um planejamento centralizado, busca-se
estabelecer diretrizes para a criação do centro que para tanto, evidencia-se a história, o
99
patrimônio natural, os conceitos sobre memória, acervo e identidade como linhas gerais para
demarcar este centro. Pretende-se elaborar o projeto deste Centro e apresentá-lo ao Conselho
Consultivo do Parque para aprovação e posteriormente apresenta-lo a diversas instituições
públicas e privadas, no âmbito municipal e estadual para captação de recursos com o objetivo
de reunir, produzir e disponibilizar acervo documental multimídia sobre sua história. A
restauração de um dos locais que se encontra em abandono na área do Parque, para a disposição
dos acervos, entra na também na pretensão deste projeto.
O projeto prevê a valorização da identidade cultural local através de identificação dos
marcos históricos existentes, resgate dos nomes tradicionais de locais e trilhas com placas de
identificação, restauro das capelas, revitalização da Via Sacra que parte de Pirenópolis até o
local de realização da romaria, como caminho de peregrinação e fé. Espera-se que esse resgate
da história local atraia e informe o visitante e seja referência para profissionais e alunos de
instituições de pesquisa, educação e memória, fortalecendo o Parque como local de preservação
do patrimônio natural e cultural.
Nestes quase 100 anos de história da romaria, e com mais de 30 anos de criação do
Parque, muitos registros foram produzidos sobre o local: livros, dissertações, teses, fotografias,
entre outros, os quais se encontram espalhados por diversas instituições e em acervos
particulares e também na memória dos moradores. Pretende-se, então, mapear, reunir e
conservar todo esse material em parceria com instituições governamentais que fazem parte do
Conselho Consultivo como a própria Secretaria de Meio Ambiente, as universidades federais
de Goiás e Brasília, a Universidade Estadual de Goiás, bem como as Secretarias de Meio
ambiente e Cultura municipais, e com apoio também da Associação dos Romeiros da
Santíssima Trindade. Parte de seu acervo já foi reunido e mapeado. Prevê-se a discussão com
o Conselho Consultivo do Parque sobre a gestão e responsabilidade da conservação do acervo
reunido.
Considerações finais
A criação do Centro de Memória vem contribuir para a educação ambiental e
patrimonial; para as pesquisas e as práticas educativas; para as visitações turísticas, com
valorização do espaço, resgate e fortalecimento da história e da biodiversidade local.
Scifoni et al. (2006) no seu artigo ‘Preservar: por que e para quem?’ diz que natureza e
cultura não podem ser termos independentes e excludente, mas que são dimensões
contraditórias e articuladas e precisam ser abordados de forma conjunta e que a área natural
100
Referências
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A Cultura na rua. Campinas. Papirus, 1989. 219p.
D’ABADIA, Maria Idelma Vieira. Diversidade e Identidade Religiosa: Uma leitura especial
dos padroeiros e seus festejos em Muquém, Abadiânia e Trindade-GO. Jundiaí: Paco
Editorial, 2014.
FREIRE, Doia. PEREIRA, Leite. História oral, memória e turismo cultural. In: MURTA,
Stela Maris. ALBANO Celina (Orgs). Interpretar o patrimônio: Um exercício do olhar.
Belo Horizonte: Ed. UGMG, 2002. 288p.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Goiás - Pirenópolis -
Panorama. Disponível em https://cidades.ibge.gov.br/brasil/go/pirenopolis/panorama.
Acesso em: 18/07/2021
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL. Pirenópolis-
GO. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/364.
http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/72. Acesso em: 20/06/2021
JAYME, Jarbas. Esboço Histórico de Pirenópolis. Goiânia: UFG, 1971. 624p.
MAIA, Carlos Eduardo Santos. Enlaces Geográficos de um Mundo Festivo – Pirenópolis: a
tradição cavalheiresca e sua rede organizacional. Rio de Janeiro: PPGG/UFRJ, 2002. 300 f.
(Doutorado em Geografia).
PEP / APA PIRENEUS (Conselho) - Câmara Técnica para Elaboração do Plano
Emergencial de Proteção e de Uso Público do PEP. Patrimônio Biológico do Parque
Estadual dos Pireneus – Webnar do dia 30/03/2021. Patrimônio geológico do Parque
Estadual dos Pireneus – Webnar do dia 27/04/2021. Disponível em
https://trello.com/b/BRahZcvi/pep-apa-pireneus-conselho. Acesso em: 20/06/2021.
PIRENOPÓLIS. Disponível em https://www.pirenopolis.com.br/. Acesso em: 18.07.2021.
SCIFONI, Simone. RIBEIRO, Wagner Costa. Preservar: por que e para quem? Patrimônio
e Memória. UNESP – FCLAs – CEDAP, v.2, n.2, 2006 p. 98/109. Disponível em:
http://pem.assis.unesp.br/index.php/pem/article/view/65.Acesso em: 20/07/2021.
SEMAD. Unidades de Conservação. Pireneus. Disponível em:
https://www.meioambiente.go.gov.br/component/content/article/118-meio-
101
ambiente/unidades-de-conserva%C3%A7%C3%A3o/1111-parque-estadual-dos-pirineus-
pep.html?Itemid=101. Acesso em: 20/06/2021.
SIQUEIRA, Josafá Carlos de. Pirenópolis: identidade territorial e biodiversidade. Rio de
Janeiro: Loyola, 2004.
SILVA, Sirlene Alves da. Sob a luz do luar: Natureza e religiosidade na Festa do Morro dos
Pireneus/Pirenópolis-Go (1927-2019). Dissertação de mestrado – TECCER – UEG,2020.
Disponível em:http://www.bdtd.ueg.br/handle/tede/369. Acesso em 20/07/2021.
THOMÉ FILHO, Jamilo José. MORAES, Juliana Maceira. PAULA, Thiago Luiz Feijó de.
Projeto Geoparques: Geoparque dos Pireneus (Proposta). Ministério de Minas e Energia.
MME/Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral – SGM/Serviço
Geológico do Brasil – CPRM. 2010. 66p.
OLIVEIRA NETO, Nicodemos Pireneus de. Mapa de localização do Parque dos Pirineus.
2020.
OLIVEIRA, Oona Yasmina de. Acervo fotográfico da família, 1927.
102
Introdução
Neste trabalho, apresentamos uma análise sobre a proposta temática do evento 14ª
Primavera dos Museus no que se refere a oferta de exposições e atividades educativo-culturais
em ambientes digitais. Partiu-se do levantamento realizado no Projeto de Pesquisa Forma e
Conteúdo: reflexões sobre as exposições museológicas67, que contabilizou as iniciativas de
comunicação museológica, com ênfase nas exposições online produzidas até agosto de 2020,
pelos museus do Rio Grande do Sul. A partir desta pesquisa macro, partiu-se para uma análise
pontual voltada para as iniciativas de exposições cadastradas no evento 14ª Primavera dos
Museus68, do Instituto Brasileiro de Museus (Ibram)69. Nesse sentido, o presente estudo visa
identificar quais instituições propuseram atividades dentro da programação do evento, bem
como, pontuar quais delas ofereceram exposições online e quais foram as ferramentas e
plataformas que viabilizaram sua realização no ciberespaço. Logo, essa investigação parte de
64
Museóloga, Mestra e Doutora em Educação (UFPel). Professora do Curso de Bacharelado em Museologia e do
Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS). Vice-Líder do Grupo Sépia UFRGS/CNPq. Contato: [email protected]
65
Graduada em Gestão em Turismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC/RS).
Graduanda de Bacharelado em Museologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), bolsista da
PROPESQ - UFRGS - Brasil no Projeto Forma & Conteúdo: reflexões sobre as exposições museológicas. Contato:
[email protected]
66
Museóloga e Mestranda no Programa de Pós-graduação em Museologia e Patrimônio/ PPGMusPA pela
Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atua como pesquisadora e estagiária docente na Graduação em
Museologia da mesma Universidade. Contato: [email protected]
67
O Projeto de Pesquisa [38162] Forma & Conteúdo: reflexões sobre as exposições museológicas sob coordenação
da Profa. Dra. Vanessa Aquino está vinculado à PROPESQ/UFRGS. Em razão da Pandemia, adaptou seus
objetivos específicos, passando a contemplar também as ações de comunicação museológica realizadas pelas
instituições museológicas gaúchas durante o período de isolamento social. A pesquisa fez levantamentos virtuais
de junho a agosto de 2020, em todas as instituições cadastradas no Sistema Estadual de Museus (SEM-RS) e na
Rede Nacional de Identificação de Museus (RENIM). Além das autoras do artigo, o Projeto conta com a
participação das pesquisadoras: Alahna Santos da Rosa, Kimberly Terrany Pires, Olivia Nery, Natália Greff,
Priscila Chagas Oliveira, e Sofia Perseu, às quais agradecemos imensamente toda dedicação e comprometimento
com a pesquisa.
68
O evento anual possui como objetivo “Promover, divulgar e valorizar os museus brasileiros; aumentar o público
visitante; intensificar a relação dos museus com a sociedade” (IBRAM, 2019), onde, a cada ano, uma temática é
escolhida para nortear as ações dos museus. Ocorrendo durante uma semana no mês de setembro, desde a primeira
edição em 2007, aborda questões direcionadas à diversidade de acervo, meios de comunicação, relações de espaço,
debatendo, inclusive, o funcionamento dos espaços museais
69
Criado em 2009, herdou responsabilidades e deveres do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(Iphan) em relação à gestão de museus federais e, a partir das discussões com “pessoas e entidades vinculadas à
museologia, meio universitário, profissionais da área e secretarias estaduais e municipais de cultura”, também
ficou responsável pela promoção da Política Nacional de Museus.
103
uma análise quantitativa de caráter exploratório, com ênfase em um estudo de caso delimitado
na 14ª edição do evento. As fontes utilizadas foram bibliográficas e documentais, onde foram
analisadas publicações sobre o tema e os perfis online das instituições70.
É significativo pontuar que em 2020, durante a pandemia71, ocorreu a 14ª edição da
Primavera dos Museus, sob o tema “Mundo Digital: Museus em Transformação”, a qual contou
com a participação de 520 instituições museológicas que cadastraram 1.385 eventos. No Rio
Grande do Sul foram 127 eventos organizados por 67 instituições72 (COSTA, 2021).
Em meio à realidade de instituições fechadas ao público externo, notou-se a importância
das ações online para que a comunicação continuasse a ocorrer, de forma a oferecer a
possibilidade de manter o diálogo com a sociedade. Assim, o que anteriormente ao período de
isolamento social era somente uma opção ainda pouco explorada pela maioria dos museus
brasileiros73 passou a ser um de seus únicos meios viáveis de comunicação. Pensando nisso, a
14ª Primavera dos Museus lançou luz para uma reflexão que passou a ser central nas tomadas
de decisões comunicacionais: a atuação no ciberespaço.
Ao observarmos esse cenário desafiador que os museus enfrentam desde o início da
pandemia, torna-se essencial que pesquisas, levantamentos e análises sejam feitos, a fim de
observar as múltiplas potencialidades, limites e reverberações do uso das tecnologias para
potencializar a comunicação museológica e, da mesma forma, que estudos sejam elaborados
em níveis regional e nacional, tanto quantitativa quanto qualitativamente. Pesquisas sobre esse
momento ímpar na história dos museus são necessárias para compreender a postura e mesmo
qual a função das instituições museológicas em seu sentido mais amplo, isto é, como estas se
articulam para manterem-se relevantes à sociedade mesmo quando encontram-se de portas
fechadas. Assim, ao suscitar o pensamento crítico, fomenta-se a reflexão acerca da função social
70
Para saber mais, acesse: https://www.museus.gov.br/acessoainformacao/acoes-e-programas/primavera-dos-
museus/. Acesso em 15 de Nov. de 2020.
71
O ano de 2020 foi marcado pela presença e disseminação do novo coronavírus, também chamado de COVID-
19 e Sars-CoV-2. No dia 11 de março do mesmo ano, a Organização Mundial da Saúde classificou a doença como
uma pandemia (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020a). Na época da declaração existiam mais de 118 mil
casos e 4.291 mortes em mais de 114 países. Quase um ano e meio após a constatação da situação pandêmica, os
números assustam ainda mais: foram confirmados 202.608.306 casos e 4.293.591 mortes em 223 países, áreas ou
territórios (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020b).
72
Cabe salientar que para fazer o cadastro de atividades não há necessidade de ser um museu: o evento permite
que outras instituições como Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Museologia, Grupos de Pesquisa e
quaisquer organizações sociais inscrevam sua programação.
73
A Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs) nos Equipamentos Culturais
Brasileiros, feita em 2018 pela TIC Cultura, apontou que 26% dos museus nacionais possuíam site próprio, 30%
faziam uso de websites hospedados por terceiros e 48% possuíam uma plataforma ou perfil em rede social para
divulgar notícias, programação de atividades e informações sobre a instituição (TIC CULTURA, 2018).
104
dos museus em contextos atípicos, inclusive a partir das suas propostas, presença ou ausência
no evento proposto pelo IBRAM.
Nessa perspectiva, a análise e compreensão das ações regionais provocadas por uma
demanda reflexiva nacional se faz presente. No caso do Rio Grande do Sul é possível identificar
e analisar diversos impactos nas estratégias de comunicação museológica propostas partindo
deste evento em específico.
74
Inicialmente sob denominação de Coordenadoria Estadual de Museus/RS (CEM/RS), o Sistema era ligado à
Secretaria de Educação e Cultura e, somente em 1991, já ligado à Secretaria do Estado da Cultura (criada em
1990), é que passa a se chamar Sistema Estadual de Museus/RS, o que se mantêm até hoje (DUARTE, 2013).
75
Cabe observar que os números totais de instituições do estado divergem no levantamento do SEM/RS, da Rede
Nacional de Identificação de Museus (Renim), do GT Museus do RS mobilizados na pandemia da Covid-19 e do
Projeto de Pesquisa Forma & Conteúdo. Isso demonstra as dificuldades de atualização e manutenção de cadastros,
algo que o SEM/RS tem trabalhado para realizar.
76
Cada região possui uma sede e é composta por distintas cidades, sendo a 1ª Região sediada em Porto Alegre
contando com 139 cidades; a 2ª em Farroupilha abarcando 153 cidades; a 3ª em Erechim com 48 cidades; a 4ª em
São Luiz Gonzaga composta por 63 cidades; a 5ª sediada em Santa Maria com 72 cidades; a 6ª em Dom Pedrito
contando com 37 cidades e, por fim, a 7ª Região, tendo Piratini como sede e representando 69 cidades.
105
criação, visto o contexto de demanda por profissionais qualificados para atuar no campo
museológico, passou a reivindicar que cursos de graduação fossem criados no estado77.
A respeito da realidade das instituições do Estado no contexto pandêmico, o GT Museus
do RS Mobilizados na Pandemia da Covid-1978 apontou que 86,3% das instituições
encontravam-se fechadas ao público externo, 11,3% estavam recebendo o público em
expediente reduzido e 2,4% permaneceram abertas entre os meses de maio e junho, período que
a pesquisa com as instituições foi feita (GT MUSEUS DO RS MOBILIZADOS NA
PANDEMIA DA COVID-19, 2020). Tal resultado demonstra uma adesão significativa às
diretrizes divulgadas pela OMS para frear a disseminação do vírus. Visto que muitas
instituições não possuíam recursos prévios para manter suas atividades presenciais, a saída
emergencial foi a utilização do ciberespaço para continuar comunicando ações e dialogando
com o público.
Para compreender como a Museologia se insere nesse contexto de comunicação online,
é necessário entender alguns conceitos que atravessam essa postura cada vez mais necessária,
que utiliza de outros ambientes para divulgar suas ações e manter o público participativo no
processo de geração de conhecimento. Segundo Monteiro (2007) o ciberespaço desponta com
a criação da World Wide Web (www), uma rede de abrangência global, no início dos anos 1990.
O Ciberespaço surge como ambiente de virtualização, comunicação e desterritorialização,
fomentando uma nova perspectiva de cultura: a cibercultura. A autora aponta que, diferente do
que se pode imaginar, o ciberespaço não é um ambiente ficcional ou inexistente, pois ele existe
em um plano distinto dos espaços conhecidos, envolvendo outra relação com o tempo e espaço,
onde através dele, a comunicação e o contato entre os indivíduos acontece. Nesse sentido,
Quanto à definição de virtual, Pierre Lévy (1999) compreende e aponta que o virtual é
a existência de algo em potencial e que este não se opõe ao real, mas ao atual, sendo estes dois
77
Segundo Duarte (2013), em 1992, o concurso vestibular da Universidade de Bagé ofereceria o curso de
Graduação em Museologia, em convênio com a Universidade Federal da Bahia. A Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul (PUCRS) oferecia pós-graduação na área de Museologia. A Universidade Federal de Pelotas
passou a oferecer o curso de graduação em 2006 e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2008.
78
Integram o GT um grupo de profissionais do Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus (ICOM-
Brasil), do Curso de Museologia e Programa de Pós-Graduação em Museologia e Patrimônio da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (PPGMusPA/UFRGS), da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), do Sistema
Estadual de Museus RS (SEMRS/DMP/Sedac), além de representantes das sete Regiões Museológicas que formam
o SEM RS e do Colegiado Setorial de Museus.
106
últimos conceitos, formas diferentes de existência. Para o autor, virtualizar algo não converte
automaticamente o “real” em “não-real”, uma vez que meramente rompe com as barreiras de
tempo e espaço. Cabe salientar que os museus que se encontram também no ciberespaço não
são considerados museus virtuais79, são museus que extrapolam os limites físicos e adentram
os ambientes digitais de diferentes formas. Para Henriques (2004), um museu virtual não é a
réplica de um museu de pedra e cal, e sim, um museu com outra roupagem, onde as ações
museológicas são transferidas ao meio virtual - que, como já mencionado previamente, não é
oposto ao real.
Os cibermuseus, na concepção desta autora, caracterizam os sites de museus: são
espaços online que reproduzem o acervo, ou parte dele, como forma de complementar as ações
do museu físico, dando enfoque na comunicação desse acervo, ampliando seu acesso frente ao
público. Logo, os museus virtuais caracterizam-se por aquelas instituições que não comportam
um ambiente físico, que trabalham suas ações museológicas, no espaço virtual, apresentando-
se como um novo mediador entre o indivíduo e o patrimônio80 (HENRIQUES, 2004).
Nesse sentido, assim como as exposições físicas são compreendidas como a forma
primeira pela qual o público tem acesso ao patrimônio, sendo entendida por Cury (2005), como
o meio mais específico de comunicação museológica, as exposições online ou as
ciberexposições (DESVALLÉES; MAIRESSE, 2013) também possuem tal centralidade na
apresentação de um museu virtual. A curadoria de uma exposição no ciberespaço possui
peculiaridades quando comparada a uma exposição física: ao mesmo tempo que contam com
ferramentas que favorecem seu design e interatividade, estas podem fazer com que referências
sejam perdidas e mesmo limitar a aproximação do público com os artefatos museológicos, sem
um maior aprofundamento, deixando, dessa forma, sua característica de mediador cultural,
comprometida (JAHN, 2016).
79
De acordo com Schweibenz (1998 apud HENRIQUES, 2004), a conceituação de museu virtual está em discussão
e por isso, não há um entendimento claro sobre o que seria um museu virtual e o que seria meramente um site de
um museu.
80
Henriques (2004) diferencia duas ramificações de museu virtual: aqueles que incorporam as ações museológicas
de uma instituição física, como uma extensão dessa, muito embora, o fazer museológico se distinga, oferecendo
ao público formas distintas e singulares de experiência. A segunda vertente que a autora estabelece é o do museu
virtual “essencialmente virtual” (HENRIQUES, 2004, p.68), que efetua suas ações museológicas unicamente no
meio virtual. A autora ainda lança luz ao fato de que museus virtuais não necessitam e não devem buscar por
reproduzir a experiência, e mesmo a visualidade, de um museu físico e que oferecer visitas virtuais não
necessariamente transforma sites em museus virtuais.
107
Os acervos museais e sua interação com os públicos, bem como a comunicação entre
museus e sociedade, experimentam novas formas de diálogo, dadas as mudanças sociais que
despontam a cada dia81. As portas de entrada para os museus não mais são unicamente as físicas:
adentrando o ambiente digital e por consequência, agindo de forma desterritorializada, as
instituições ganharam a possibilidade de utilizar outras formas de comunicar-se com a
sociedade (MAGALDI et al, 2018). Como forma de manterem-se ativas e inseridas nos novos
paradigmas comunicacionais, muitas instituições direcionam o conteúdo offline para o online
ou mesmo criam conteúdo próprio para o formato digital, visando aproximar os públicos por
meios mais dinâmicos e interativos.
Frente a isso, cabe salientar a importância da realização periódica de estudos específicos
voltados ao público externo, afinal, somente através do estabelecimento de uma cultura da
avaliação (CURY, 2005) será possível identificar e conhecer os diferentes públicos interessados
ou não na instituição e como eles se conectam com ela a partir de diferentes plataformas. Como
atesta Cury (2005), a avaliação não pretende somente qualificar o trabalho oferecido, como
também visa criar uma base de informações que, devido a inúmeras variáveis, nem sempre é
alcançada. Refletir e problematizar as práticas comunicacionais é fundamental para perceber os
problemas e as potencialidades do trabalho, afinal “a avaliação é um meio para um fim”
(CURY, 2005, p. 124), que corrobora com o aperfeiçoamento das iniciativas de comunicação e
de interação com o público.
Da mesma forma que a avaliação institucional é necessária, pesquisas voltadas a estes
eventos que propõem a ação conjunta entre diferentes instituições podem resultar em dados de
interesse comum aos museus participantes e ao departamento organizador. Nessa perspectiva,
torna-se possível compreender como o trabalho se dá em diferentes níveis e como consequência,
servindo de norte para eventuais revisões. Logo, os dados aqui apresentados podem auxiliar
para a construção de um panorama sobre o engajamento online das instituições do Rio Grande
do Sul frente à Pandemia e ao evento proposto.
Sendo assim, de início cabe pontuar que das 581 instituições estaduais, a maior parte,
correspondente a 44,9 % se vinculam à iniciativa público-municipal, e 27,9% são de caráter
privado (Gráfico 1). Tal informação é necessária para compreender a estrutura dessas
instituições uma vez que normalmente temos ideias pré-concebidas de que instituições com
mais recursos necessariamente estão ativas virtualmente, entretanto, o presente estudo revela
outro cenário. Cabe chamar atenção também para a porcentagem de 10,2% de instituições que
81
Leshchenko (2015) entende que tais novas maneiras de interação inserem-se na chamada Cibermuseologia, que
por sua vez, compreende a utilização de formatos digitais, redes sociais e virtualização das instituições
108
não foram identificadas quanto à sua administração, reflexo da dificuldade encontrada para
acessar essa informação no próprio ciberespaço, fato sujeito a reflexões sobre a disponibilização
de dados institucionais, dado que tal acesso é necessário para que estudos sejam feitos.
82
As mídias sociais levantadas correspondem ao Facebook, Instagram, Twitter, Youtube, LinkedIn, TripAdvisor
e Wikipedia.
109
Gráfico 2 - Gráfico sobre possuir ou não site com recorte das regiões
museológicas do RS.
Quanto à adesão à 14ª Primavera dos Museus, das 581 instituições estaduais, 65 delas
estavam inscritas no evento, sendo totalizadas 127 atividades cadastradas. É significativo
pontuar que mais de uma ação poderia ser cadastrada pela mesma entidade, da mesma forma,
havia possibilidade de inscrição de museus não cadastrados no SEM/RS ou ReNIM. É
significativo pontuar que se somam às 65 instituições dois novos museus virtuais, ambos
criados em meio à pandemia e ligados à Universidade Federal de Pelotas, o Museu Diários do
Isolamento e o Museu Afro-Brasil-Sul.
No âmbito das exposições online ou ciberexposições juntamente com a realização de
tour virtual pela instituição, destacamos a realização de 35 iniciativas (Gráfico 3). Dentre as
atividades encontradas, as ciberexposições foram disponibilizadas em sites próprios, no
Facebook e no Instagram, sendo estes dois últimos plataformas gratuitas e alguns sites com
domínio sites google, outra plataforma gratuita. As temáticas das exposições foram diversas,
seguindo a pluralidade de temática dos museus gaúchos, como, por exemplo, a exposição
“Conviver” do Museu de Ciências Naturais da Fundação Zoobotânica, na qual propõe
interseções entre arte e ciência, e a exposição “Teatro em Caxias: trajetórias e cenas”,
cadastrada pelo Museu Municipal de Caxias do Sul83. Já as ações de tour virtual aconteceram
no formato de vídeo, disponibilizados principalmente no Youtube e no Facebook.
83
Para conhecer a exposição Conviver acesse: https://coletivostudiojardim.com/exposicao/. Para conhecer a
exposição “Teatro em Caxias: trajetórias e cenas” acesse:
https://sites.google.com/view/museumunicipaldecaxiasdosul/exposi%C3%A7%C3%B5es-itinerantes/teatro-em-
caxias?authuser=1
110
Gráfico 3 - Gráfico sobre oferta de ciberexposições e/ou tour virtuais na programação das
atividades das instituições do RS cadastradas na 14ª Primavera dos Museus
Considerações finais
Ao realizarmos o presente estudo de caso com ênfase na presença dos museus gaúchos
na programação da 14ª Primavera dos Museus (2020), destacamos as diversas iniciativas de
comunicação museológica, com destaque para as exposições online realizadas em diferentes
plataformas como alternativa para manter o diálogo com o público externo. Ao longo da
pesquisa foi possível identificar um aumento significativo de ofertas de exposições online
juntamente com outras atividades educativo-culturais realizadas no ciberespaço. Vale ressaltar
que a partir de um levantamento mais amplo sobre as sete regiões museológicas do Rio Grande
do Sul, notou-se que já existiam ações anteriores, entretanto, se verificou a intensificação de
propostas comunicacionais em ambientes virtuais que, por sua vez, consideramos resultantes
do evento e de sua temática.
111
Referências
COSTA, Ana Lourdes. Dados evolutivos da Primavera dos Museus 2020. Destinatário:
Gabriela Mattia. Porto Alegre, 28 jan. 2021. 1 Mensagem eletrônica.
CURY, Marília Xavier. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo:
Annablume, 2005.
GALHARDI, Cláudia Pereira (et. al). Fato ou Fake? Uma análise da desinformação frente à
pandemia da Covid-19 no Brasil. In: Ciência & Saúde Coletiva vol. 25 supl. 2 Rio de
Janeiro out. 2020 Epub 30 set. 2020. Disponível em https://doi.org/10.1590/1413-
812320202510.2.28922020 Acesso em: 10 Jan. 2021.
112
84
Mestrando em Museologia pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Museologia, Universidade de
São Paulo (USP). Licenciado em História (UFRGS). Contato: [email protected] / [email protected]
85
Professora Titular em Museologia no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo
(MAE/USP). Doutora em Arqueologia (USP). Mestre em História Social (USP). Contato: [email protected]
114
Universidade de São Paulo86. Aqui, apresentamos não resultados propriamente ditos, mas
discussões que têm sido feitas na busca de compreender as possibilidades e limitações do espaço
observado, sua existência material e as que relações que se constroem em torno daquele lugar.
As formigas
Algumas coisas ficam guardadas na memória e reacendem como faíscas de acordo com
certos estímulos. Durante as atividades de pesquisa de campo no Cemitério da Santa da Casa
de Misericórdia, em Porto Alegre, decidiu-se em determinado momento olhar não apenas ao
nível dos olhos ou para cima, visto a altura de certas sepulturas, mas também deter-se no chão.
Foi uma primeira experiência de readequação do olhar e exploração de outras perspectivas
sobre o espaço.
Não é de se surpreender que, nas áreas onde a grama substitui o calçamento no entorno
dos túmulos, aqueles “caminhos” de formigas fossem fácil de detectar. Afinal,
In many habitats, the first animal that a visitor is likely to notice is an ant forager. Ant
foraging trails can stretch for hundreds of metres, like pseudopodia from the central
body of the colony, searching for and retrieving food. Attempts to interfere with these
foraging trails may prompt a rapid and aggressive response from the ants, with
individuals readily sacrificing their life in defence of the harvested resources.
(DORNHAUS; POWELL, 2010, p. 210)87
86
Esta pesquisa é financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) através
do Programa de Demanda Social e tem orientação da Profª Dra. Maria Crista Oliveira Bruno.
87
Tradução livre: “Em muitos habitats, o animal mais provável de ser percebido primeiro por um visitante é uma
formiga operária em busca de alimento. Trilhas de forrageamento de formigas podem se estender por centenas de
metros, como pseudópodes do corpo central da colônia, procurando e angariando recursos. Interferências nessas
trilhas podem gerar respostas rápidas e agressivas por parte das formigas, o que inclui indivíduos se sacrificando
prontamente pela defesa dos recursos obtidos”
88
Conceito da Ecologia, forrageamento, ou forrageio, pode ser definido como “atividade locomotora repetitiva de
indivíduos ou populações de animais em busca de um recurso alimentar particular” (LIMA; SILVA FILHO;
ARAÚJO, 2016, p. 84). Não é interesse aqui apropriar-se desse conceito per se, uma vez que seu uso é bastante
diverso e depende de modelos de análise inacessíveis e que fogem do escopo dessa pesquisa.
115
O espaço cemiterial
Todo ser habita um determinado espaço no mundo. Essas formigas que inspiram as
ideias aqui discutidas compartilham seu habitat com outros seres, aquelas pessoas que residem
no Cemitério da Santa Casa. Diante da inevitabilidade da morte, passar a residir na necrópole é
uma das opções, que, uma vez pautada pela religiosidade de descansar em solo sagrado,
lentamente secularizou-se como o senso comum, sem, necessariamente, perder o caráter
sagrado do descanso. E, no ato de mudar-se para o cemitério, é possível, ainda, um esforço de
manutenção de si, ao se deixar registrado, na sepultura, informações a serem passadas às
próximas gerações sobre a pessoa ou pessoas que ali residem.
Em contexto, além de serem esse lugar do sagrado, do descanso, os espaços cemiteriais
são reflexos das relações que se desenham no ambiente social no seu entorno, ou, na palavra
dos autores, “[…] são espaços que comunicam muito sobre a história, a cultura de um país, uma
cidade, uma sociedade, um grupo social porquanto são como espelho do mundo, ou extrato
complexo da cultura de seu tempo” (TAVARES, BRAHM, RIBEIRO, 2016, p. 98). Tal
característica, portanto, permite observar não apenas as mudanças sociais testemunhadas por
esses objetos, as sepulturas, ao longo do tempo, numa perspectiva diacrônica, mas também
explorar como esses objetos dialogam entre si em diferentes sincronias, entre os pares temporais
– construídos e/ou idealizados num mesmo contexto – ou em tempos futuros a si – em diálogo
com outras formas de existir na necrópole que se modificaram com o passar do tempo.
Tornado documento a fim de constituir um conjunto de informações sobre uma
realidade que se quer conhecer (LE GOFF, 2013), esse espaço, na sua diversidade interna, nos
permite acesso a dimensões narrativas de ordem micro e macrocósmica, respectivamente, na
forma das sepulturas individuas e suas narrativas próprias e nos diálogos e embates que travam
com as outras, vizinhas nas ruas e avenidas. Esses espaços representam, também, uma forma
de monumento (idem), uma vez que as representações do falecido enviadas ao futuro passam,
necessariamente, por um processo de decisão e o produto final é resultado direto de escolhas
feitas por pessoas, se não familiares, ao menos próximas daquela representada pela sepultura.
O que nos interessa nessa discussão acerca de trilhas de comunicação entre presentes,
não é como o presente busca entender o passado, mas sim os esforços que os habitantes desse
passado empregaram, no seu presente, para comunicar ao futuro as memórias que desejaram
manter vivas na forma dos registros em suas sepulturas:
89
Reconhece-se, aqui, como limitação dessa chave de leitura, as pessoas sepultadas em valas comuns, onde não é
possível manter esse registro material devido à rotatividade desses espaços, ao contrário de gavetas, jazigos e
mausoléus, propriedade da família do sepultado ou sepultada, onde o controle do uso é exclusivo.
117
um processo qualquer de pesquisa, num esforço como o delimitado por Jacques Le Goff (2013)
ao pensar o monumento – registro do passado guardado para o futuro – tornado documento –
fonte de informação a partir da leitura crítica – mas que, aqui, não necessariamente precisa
constituir uma pesquisa científica per se, pois a curiosidade sobre passado e as coisas do mundo
não é exclusividade da academia.
Mas, se esse debate abstrato busca criar uma chave de leitura sobre a realidade, onde
observar e como identificar essas trilhas no mundo real? Como já comentado, o lugar do mundo
a ser observado é o espaço cemiterial, nesse caso, o Cemitério da Santa Casa de Misericórdia
de Porto Alegre, mas ainda a ser incorporado o Cemitério Municipal São João, na mesma
cidade90. As trilhas são identificáveis na existência material desses objetos, produções ativas e
intencionais, se não dos sujeitos a que se referem, de indivíduos próximos dessas pessoas no
intuito de preservar sua existência após o fim do tempo vivido.
Para ilustrar uma possível aplicação dessa leitura, trazemos três casos colhidos a partir
das visitas ao Cemitério da Santa Casa e das conversas e discussões mantidas com as
historiadoras responsáveis pela manutenção das atividades de visitação desse espaço (OSORIO,
2019). As sepulturas trazidas são i) o túmulo de Julio de Castilhos (1860-1903), ex-presidente
da província do Rio Grande do Sul do período positivista, ii) Casemiro Scepaniuk, falecido em
2016, paraquedista reformado do Exército Brasileiro, e iii) a gaveta de um jovem de 18 anos
onde se lê “Eterno Pai do Grau”91, acompanhado de uma foto do mesmo conduzindo uma
motocicleta apenas na roda traseira. Os dois primeiros estão no quadro central do Cemitério,
enquanto o terceiro encontra-se ao fundo de uma galeria superior.
O primeiro, túmulo do ex-presidente Julio de Castilhos, é uma obra de cerca de cinco
metros de altura, que requer um reposicionamento do olhar a fim de observá-lo em sua
plenitude92. Falecido em 1903, seu túmulo é um exemplo do culto à personalidade que marcou
a ditadura positivista no Estado: uma águia observando do alto, o busto do falecido desenhado
em pedra, a República em luto e os lemas “Ordem e Progresso” e “Os vivos são sempre e cada
vez mais governados pelos mortos”. Tudo isso às custas do Estado a fim de posicionar o ex-
presidente enquanto exemplo a ser seguido por aqueles e aquelas que visitassem o cemitério,
90
O Cemitério da Santa Casa caracteriza-se com um exemplar de cemitério moderno oitocentista, minimamente
organizado a fim de integrar-se no avanço do desenvolvimento urbano do século (MEIRELLES, 2015). O
Cemitério Municipal São João é um cemitério público de Porto Alegre inaugurado em 1936, com características
distintas, menos monumentalizado que o primeiro
91
Em respeito ao falecido, não seria utilizado seu nome, por não se tratar de uma pessoa pública. Em tempo, “dar
grau” é a gíria para conduzir uma motocicleta apenas na roda traseira.
92
O túmulo de Castilhos encontra-se na entrada do quadro central, na via principal, à esquerda, e, mesmo dividindo
espaço com outras sepulturas igualmente grandes, é possível ver o topo do mesmo de praticamente todo o quadro.
119
93
O jazigo de Casemiro está no centro do mesmo quadro de Castilhos, mas não ocupa a via principal, estando um
tanto recuado. Ainda assim, logo atrás do cantor Teixeirinha, a estátua de Casemiro salta aos olhos pelas cores
vivas, que contrastam com os tons foscos de pedra que envolvem o lugar.
120
94
Tradução livre: “Uma autoimagem apolítica do museu como uma instituição que apenas conserva e fornece
acesso a coleções, possibilitando pesquisas e ações educativas, não mais se sustenta em tempos nos quais nenhuma
instituição publicamente financiada pode se abster de sua ‘responsabilidade social’”. Vale apontar que, ainda que
o Cemitério da Santa Casa, um dos objetos desse trabalho, seja mantido com fundos privados, a pesquisa nesse
espaço é realizada a partir de uma universidade pública, a USP, e com recursos públicos, através da CAPES.
122
trilhas entre diferentes instâncias desse mesmo tempo. Cabe a nós, também, investigar e
compreender as narrativas que permeiam a criação desses meios de comunicação entre
presentes, que se materializam no mundo de acordo com as intenções e possibilidades de cada
comunicante.
Referências
ABREU, Luciano Aronne de. Rio Grande do Sul ontem e hoje: Uma visão histórica. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2018.
ALMEIDA, Marcelina. A cidade e o cemitério: uma experiência em educação patrimonial.
Revista M. Estudos sobre a morte, os mortos e o morrer, [S. l.], v. 1, n. 1, 2019. p. 213–
230.
BITTENCOURT, Circe. Ensino de história: fundamentos e métodos. 5 ed. São Paulo:
Cortez, 2018.
BORGES, Maria Elizia. O cemitério como “museu a céu aberto”. VII Congresso
Internacional Imagens da Morte: Tempos e espaços da morte na sociedade. 16 p. 2016.
BRUNO, Maria Cristina Oliveira. A pedagogia museológica e a expansão do campo
científico da Museologia. 36º Simposio Internacional de Museología: Nuevas tendencias en
Museología. 5p. 2014.
CRELIER, Cristine. Expectativa de vida dos brasileiros aumenta 3 meses e chega a 76,6 anos
em 2019. Agência de notícias IBGE. [S.l.]: 26 de novembro de 2020. Disponível em
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-
noticias/noticias/29505-expectativa-de-vida-dos-brasileiros-aumenta-3-meses-e-chega-a-76-6-
anos-em-2019 Acesso em 15 de julho de 2021.
DORNHAUS, Anna; POWELL; Scott. Foraging and Defence. In: LACH, Lori; PARR,
Catherine; ABBOTT, Kirsti (ed.). Ant Ecology. New York: Oxford University Press, 2010. p.
210-229.
GIL, Carmem Zeli de Vargas. Memória. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; OLIVEIRA,
Margarida Maria Dias de (Orgs.). Dicionário de ensino de História. Rio de Janeiro, FGV
Editora, 2019. p. 155-161.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 7. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.
LIMA, Eudes Ferreira; SILVA FILHO, Jeremias Pereira da; ARAÚJO, Aryane. Dicionário
de termos usados em Ecologia. [Recurso eletrônico] Parnaíba: Editora da UFPI, 2016.
MANOEL-CARDOSO, Pedro. O que é a Museologia? In: Cadernos do CEOM, Chapecó:
Argos, ano 27, n. 41. Museologia Social. p. 115-152.
MEIRELLES, Pedro Von Megden. A Criação do Cemitério da Santa Casa e o contexto da
reforma cemiterial em Porto Alegre (séc. XIX). In: Santa Casa de Misericórdia de Porto
Alegre: histórias reveladas IV. Porto Alegre: ISCMPA, 2015. p. 130-146.
MORRE militar que projetou o próprio túmulo. GZH Digital. 03 de fevereiro de 2016.
Obituário. Disponível em https://gauchazh.clicrbs.com.br/geral/noticia/2016/02/morre-militar-
que-projetou-o-proprio-tumulo-4967455.html Acesso em 17 de julho de 2020.
OSORIO, Pedro Luiz Vianna. A cortina da memória dos mortos se abre à presença dos vivos:
o cemitério e a aula de História. Aurora, Rio de Janeiro, ano 1, n° 2, jul./dez. 2018. p. 77-89.
123
Egidio S. Toda 95
Fernanda Maria de O. Araújo 96
Maria Carla V. Pinho 97
Introdução
Françoise Choay, descreve que durante a Revolução Francesa as
95
Doutor e Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela UPM Mackenzie - SP. Especialista em MBC –
Comunicação e Mídia. Graduado em Comunicação Digital – Design de Multimídias. Professor e pesquisador.
96
Doutora e Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela UPM Mackenzie - SP. Graduada em Ciências
da Computação pela UNESP. Professora e pesquisadora.
97
Doutora em Educação, Arte e História da Cultura pela UPM Mackenzie - SP. Professora e pesquisadora pela
FMU-SP. Enfermeira do Centro de Enfermagem Auricular - SP.
125
descobrimento dos laços com algo já existente e forte. A Aura está presente na obra antiga ou
moderna e pode haver uma intencionalidade ou não. Esta intencionalidade se justifica no culto
à Arte religiosa do ontem, do hoje e do amanhã, como validação da crença para a criação da
Aura e sua memória.
Os monumentos religiosos, também mostram uma cultura singular que deve ser
sacralizada, preservada. Pierre Bourdieu, (2006), defende a socialização e as necessidades da
sociedade, levanta a preocupação da objetivação na construção da cultura material. Para ele, os
condicionamentos materiais e simbólicos agem sobre nós (sociedade e indivíduos) numa
complexa relação de interdependência. Bourdieu, também esclarece que vivemos em uma
estrutura social que é vista como um sistema hierarquizado de poder e privilégio, determinado
tanto pelas relações materiais e/ou econômicas (salário, renda) como pelas relações simbólicas
(status) e/ou culturais (escolarização) entre os indivíduos. Segundo esse ponto de vista, a
diferente localização dos grupos nessa estrutura social deriva da desigual distribuição de
recursos e poderes de cada um de nós. O autor mostra a necessidade do acesso à cultura, do
conhecimento, da memória, quebrando esta estrutura hierarquizada e classicista.
Em sua arqueologia do conhecimento, os monumentos religiosos, independente de sua
época, mostram através do objeto, a construção de sua historiografia, memória e materialidade.
A preservação dos monumentos através da certificação como patrimônio cultural, delega à
humanidade o direito de saber sobre seu passado, identidade e história.
de 324 à 337 que foi levantada a edificação. Já, a palavra Khora, tem em seu significado em
turco, a tradução de fora da cidade ou no campo.
Dada sua importância e por estar perto do palácio de Theodosius II (408-450), a igreja
recebeu cuidados e se manteve ativa por vários séculos. Mas, no período da Quarta Cruzada
(1203-1261), quando a cidade de Istambul se encontrou sob os domínios latinos, submetidas a
saques e depredação, a igreja foi quase destruída. Só no período de Andronikos II (1282-1328),
que a igreja pôde ser restaurada completamente. Nesta fase, a restauração teve como líder
Theodoro Metokhides, foi ele o responsável pela construção dos famosos mosaicos bizantinos,
na decoração interna da igreja.
A arquitetura da Igreja de São Salvador de Chora tem como principal construção sua
nave, com dimensões de 10,5m X 15m. Nesta nave, encontra-se a cúpula principal, carregada
por quatro arcos resistentes. Com sua cavidade alta, esta cúpula possui em seu interior 16
janelas. A decoração da nave possui placas de mármores revestindo o piso e as paredes, com
um trabalho de recorte preciso e lindas composições cromáticas. Estas placas são tão valiosas
e belas quanto os painéis de mosaicos que enfeitam a igreja. A nártex interior tem 4m X 18m
de medida e está coberta por duas abóbodas menores. A decoração de seus pisos e paredes é
constituída por placas de mármores, de diferentes cores e tamanhos, trazendo uma beleza
singular em seu desenho e formas geométricas.
Os mosaicos e afrescos têm uma importância à parte. Foram idealizados quando o
período final de Bizâncio perdia seus territórios, suas forças e poder. Mas, antes de seu término,
começou um grande movimento de arte e cultura. Entre os anos de 261 e 1350, antes do
Renascimento italiano, foram criadas obras embasadas em um novo conceito estético e artístico.
Nesta fase, da nova corrente artística bizantina, a pintura obteve um destaque especial e os mais
belos e ricos mosaicos da Igreja de São Salvador de Chora, foram construídos.
O material utilizado nos mosaicos bizantinos é diferente dos mosaicos feitos para as
decorações das casas e arquiteturas romanas antigas. Enquanto os mosaicos romanos, em sua
maioria, se posicionavam no chão como um tapete e eram feitos de cerâmica com uma
coloração opaca, os mosaicos bizantinos eram colocados nas paredes e eram constituídos de um
revestimento que lembrava o vidro, trazendo um brilho vibrante que dava uma coloração
resplandecente e especial ao dourado. O dourado por sua vez, era a representação maior do
poder e riqueza da época. Muito utilizado neste período.
Estes mosaicos narram a vida da Virgem Maria, além de narrar também a vida de Jesus,
sua morte, ressurreição e seus milagres. Em sua narrativa, os mosaicos contam em forma de
quadros, as histórias dos principais personagens da religião cristã do novo testamento. Nesta
127
Estos mosaicos e frescos que adornan lãs paredes, arcos, tonozes e cúpulas
son reflejos de uma frescura, vivacidad y modernidad. El fondo monótono
acostumbrado de la época anterior, aqui deja su lugar a los deseños
arquitectónicos y paisajes com estilo de La época helenística. Estos paisajes
añaden um aire vivaz, humanista y sentimental a lãs escenas de vida de Jesus
y Virgem Maria.
La escena de “La muerte de La Virgem” (koimesis o dormición),
inmortalizada com um gusto muy perspicaz, que se encuentra justo arriba de
La puerta de entrada de La edificación principal (naos), e afecta mucho al que
lo observa. (KILIÇKAYA, 2010, p. 75).
em 09/10/1946 foi lançada a Pedra Fundamental, com a inscrição “Regina Brasiliae”. Na urna
depositada, além de documentos, havia um estojo com terra do local das aparições de Fátima,
em Portugal. Nesta mesma noite a Pedra Fundamental foi violada.
É interessante observar, no periódico Ecos Marianos, que uma reportagem de outubro
de 1951 registrava uma ordem de Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, que na ocasião
era o cardeal arcebispo de São Paulo:
Foi inaugurada em 4 de julho de 1980, quando Papa João Paulo II visitou o Brasil pela
primeira vez e lhe outorgou o título de Basílica Menor. Cabe destacar aqui a terminologia
adotada pela Igreja Católica para classificação de Basílica Maior e de Basílica Menor. As
basílicas maiores, também chamadas de basílicas patriarcais, são 7 e estão localizadas em
Roma, sob a autoridade do papa. Outras igrejas, em diversos países, devido à sua importância,
podem receber do papa o título honorífico de basílica menor.
Durante a inauguração da Basílica de Aparecida, perante uma multidão de cerca de 300
mil pessoas, João Paulo II celebrou a Santa Missa na Esplanada do Santuário. Após a Missa de
Sagração do Altar, o Papa fez sua consagração e a de todos os brasileiros a Nossa Senhora
Aparecida e deu a bênção final com a imagem original de Nossa Senhora. Seu último gesto foi
declarar o novo templo “Basílica Menor”, o que viria a confirmar o costume do povo de chamar
as igrejas de Basílica Velha e Basílica Nova (O Estado de S. Paulo, 05 de julho 1980, p. 40).
Em 30 de junho de 1980, durante a visita de João Paulo II, o Governo Federal decretou
oficialmente o dia 12 de outubro como sendo feriado nacional de Nossa Sra. de Aparecida,
padroeira do Brasil.
A Basílica destaca-se pela sua magnitude e grandeza, por ser um dos maiores centros da
fé católica no Brasil. Considerado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, em 1984,
como o “Maior Santuário Mariano do Mundo”. Mais de um milhão de fiéis por ali passam
anualmente, para visitarem a pequena imagem, cumprirem com suas devoções, depositarem
seus pedidos, pagarem suas promessas e participarem das missas e celebrações. No mês de
outubro, por conta da festa da padroeira, é o mês de maior afluxo dos romeiros. Segue a seguir,
algumas curiosidades:
129
Segundo estatística reunida por Júlio Brustoloni, o fluxo de romeiros na basílica mudou
significativamente entre 1968 e 1997, evidenciando que a estrutura atual do templo era uma
demanda que não poderia de fato esperar mais tempo. A quantidade de pessoas passou de 903
mil, em 1968, para 3 milhões em 1979 e ascendendo a 6,2 milhões em 1997. Um crescimento
vertiginoso de 687%. Em 2010, portanto passados outros 13 anos, os registros acusaram
10.380.173 visitantes à basílica.
De acordo com o Padre Júlio Brustoloni, por consequência, também o fluxo de veículos
coletivos (ônibus) e de passeio cresceu, de 16.127 e 51.594, em 1968, respectivamente, para
68.025 e 228.332, em 1997. Ou seja, registrou-se um crescimento de mais de 420% nos
veículos. Note-se que esta estatística registrou as concentrações aos domingos. Era sem dúvida
premente uma nova concepção dos espaços de estacionamento, do contrário, se estabeleceria o
caos na cidade e arredores. (BRUSTOLONI, 2012, p. 377).
Além das quatro naves (norte, sul, leste e oeste) e da cúpula central, o espaço interno da
Basílica também está composto de 5 capelas: Capela do Santíssimo, Capela da Ressurreição,
Capela de São José, Capela do Batismo e Capela das Velas. Concluída a etapa da construção
estrutural do templo, que durou 42 anos, de 1955 a 1997, uma tarefa não menos importante era
a de acabamento da nova basílica. Além dos 182.000 m2 de piso a decorar, as 4 naves com 40
metros de altura, a cúpula de 70 metros e os enormes vitrais de cada uma das naves e das 5
capelas, eram um grande desafio, principalmente tendo em vista que essa obra deveria ter um
conteúdo evangelizador muito forte.
Na junção das quatro naves, formando uma cruz latina sobreposta à cruz grega,
encontram-se o Altar. A cruz latina, que é a mais comum de todas as cruzes, representa o
supremo sacrifício de Jesus, sua crucificação. Lembra-nos também a ressurreição e a esperança
da vida eterna. Tem 3 braços de igual longitude e o quarto braço com um comprimento maior
em duas vezes. Diferente da cruz latina, a cruz grega tem todos os braços com o mesmo
tamanho. Na junção das duas cruzes, forma-se uma estrela de 8 pontas. O Altar, que se situa no
cruzamento das cruzes latina e grega, é o centro e coração do templo, bem ao centro e abaixo
da cúpula principal da área interna da nova basílica. Para Pastro, é a razão de ser do espaço
130
sagrado, lugar do sacrifício cultural, o símbolo tangível do lugar do encontro e da aliança entre
Deus e o homem.
A função das obras de convergência das quatro naves é a doutrina cristã. Sua relação
conta a história do cristianismo e a vida, missão, morte e ressurreição de Cristo. Dividida em
34 painéis em azulejos pintados e distribuídos em torno da parte interna da Basílica ao alto,
apresenta-nos a vida de Cristo celebrada anualmente pela Igreja. Para dar uma visão mais
precisa de como isso se processa na Basílica de Nossa Sra. Aparecida, vamos discorrer sobre
os painéis das suas quatro naves. É interessante observar que em cada nave é explorada uma
etapa da vida de Jesus. Nas naves Norte, Leste e Oeste temos 8 painéis e na nave Sul são 10
painéis.
Considerações finais
Os valores reconhecidos pela humanidade e sua necessidade na conservação do
patrimônio cultural material e sua memória, são cruciais para a identidade de uma nação. O
valor nacional prioriza os bens pertencentes à ela, o valor cognitivo regra o acesso ao
conhecimento e suas competências e o valor artístico do patrimônio monumental, rege a
conservação das igrejas, basílicas, conventos e castelos, ao priorizar sua transformação em
museus, com o objetivo da preservação dos monumentos e seu valor histórico, cultural, técnico,
científico e artístico.
Referências
ALVES, Andréa M.F. Queiroz. Pintando uma imagem Nossa Senhora Aparecida – 1931:
Igreja e Estado na Construção de um Símbolo Nacional. 2005. Dissertação (Mestrado em
História), Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campus de Dourados, Dourados,
MS.
BOURDIEU Pierre. A produção da crença: uma contribuição para uma teoria dos bens
simbólicos. São Paulo: Editora Zouk, 2006.
132
Centro de Documentação
CDM – Centro de Documentação e Memória Padre Jorge Antão. Santuário Nacional de
Aparecida. Aparecida, São Paulo, Brasil. 2011.
CMA – Cúria Metropolitana de Aparecida. I Livro do Tombo da Paróquia de Santo Antônio
de Guaratinguetá.
ECOS MARIANOS, do Santuário de Aparecida no. VII – 1940. no. VII – 1949. A planta da
Basílica Nova – 1952. Suplemento do Santuário de Aparecida – 1952. Suplemento do
Santuário de Aparecida – 1953, 1982.
ANEXOS
1.
133
2.
1. Igreja de São Salvador de Chora.
2. Basílica de Nossa Senhora de Aparecida. Fotografias de Egidio S. Toda.
3.
4.
5. 6.
7.
8.
Introdução
O intuito de relatar minha experiência em um Projeto de Pesquisa por meio da Iniciação
Científica é de fomentar o diálogo sobre oportunidades de ensino e aprofundamento das
disciplinas através da prática da pesquisa. Este artigo promove comunicações tanto sob esta
perspectiva quanto de resultados parciais do próprio projeto de pesquisa coordenado pela Profª
Drª Vanessa Aquino intitulado Forma & Conteúdo: reflexões sobre as exposições museológicas
que teve início em março de 2020 e que eu passo a integrar primeiramente de forma voluntária
no mês de maio e posteriormente, a partir de setembro de 2020 integro a equipe como bolsista
de iniciação científica.
O movimento de aprendizado pode ser feito e refeito por diversos caminhos. No curso
de bacharelado em Museologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
estudantes têm possibilidades institucionalizadas como: carga horária mínima de disciplinas
eletivas e de créditos complementares, estágios curriculares, bolsas de projetos de extensão e
de iniciação científica e participação voluntária no centro acadêmico, além da participação ativa
em projetos vinculados às disciplinas. O curso de graduação99 está vinculado ao Departamento
de Ciências da Informação que pertence à Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação
(Fabico) da UFRGS. O Curso ainda possui três laboratórios especializados, a saber: o
Laboratório de Pesquisa e Extensão Museológica (Lapem), o Laboratório de Cultura Material
e Conservação (CMC) e o Laboratório de Criação Museográfica (CRIAMUS).
O ano de 2020 foi marcado pela disseminação do Covid-19 e a subsequente
oficialização da pandemia pela Organização Mundial da Saúde (World Health Organization,
2020). Em março do mesmo ano, mês da declaração, existiam mais de 118 mil casos e 4.291
mortes em mais de 114 países. Quase um ano e meio após a constatação da situação pandêmica,
os números assustam ainda mais: foram confirmados 202.608.306 casos e 4.293.591 mortes em
223 países, áreas ou territórios (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2020b). Atualmente
98
Turismóloga (PUCRS) e Graduanda de Bacharelado em Museologia na Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS). Bolsista de Iniciação Científica do Projeto Forma & Conteúdo: reflexões sobre as exposições
museológicas, coordenado pela Profª Drª Vanessa Aquino. O presente trabalho foi realizado com o apoio da Pró-
Reitoria de Pesquisa (UFRGS). Contato: [email protected]
99
Para conhecer a grade curricular, projeto pedagógico e mais, acesse:
http://www.ufrgs.br/ufrgs/ensino/graduacao/cursos/exibeCurso?cod_curso=731
136
A troca, o compartilhamento com respeito e afeto aos saberes de cada uma é amplificam
os alcances da pesquisa, uma vez que, cada uma correlacionando o foco de estudo com suas
próprias vivências, trazem questionamentos e/ou preocupações que direcionam o rumo da
pesquisa. Um dos exemplos deste grupo é a própria preocupação com o arquivamento na web
dessa história institucional. Como os museus estão preservando suas comunicações no espaço
desterritorializado e imaterial que é o ciberespaço? Como e o quê preservar das interações
efêmeras mas não menos importantes desse diálogo com o público?
A história do tempo presente acontecendo na casa de cada um, nos aparelhos que logo
adiante se tornarão obsoletos vai ser preservada?
100
Cabe observar que os números totais de instituições do estado divergem no levantamento do SEM/RS, da Rede
Nacional de Identificação de Museus (Renim), do GT Museus do RS mobilizados na pandemia da Covid-19 e do
Projeto de Pesquisa Forma & Conteúdo. Isso demonstra as dificuldades de atualização e manutenção de cadastros,
algo que o SEM/RS tem trabalhado para realizar.
140
Transformação”. Foi produzida uma tabela que espelhasse os dados das instituições cadastradas
na programação e um detalhamento das atividades propostas. Este estudo rendeu novos olhares
e o artigo “Museus em [im]previsível transformação: as proposições dos museus gaúchos no
ciberespaço durante a 14ª Primavera dos Museus”, de autoria de Vanessa Aquino, Gabriela
Mattia e Aline Vargas, apresentado no 4º Seminário Patrimônio & História: diálogos e
perspectivas101 da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), ilustrado na Figura 2. No
artigo é possível identificar o aumento em 129% na oferta de ciberexposições e/ou tour virtual
(AQUINO; MATTIA; VARGAS, 2021).
101
Para conhecer o evento, acesse: https://4shp.furg.br/
141
Dentro desse metadado, o grupo definiu que consideraríamos o uso de site quando o
museu ou instituição tivesse gestão sobre uma página, não somente um espaço em uma página
institucional de outrem, como secretarias de cultura, por exemplo. Outro dado gerado a partir
do entrecruzamento de dados foi o de que 117 instituições não se apresentavam no ciberespaço,
nem em site ou mídia social, pelo menos até agosto de 2020.
Foram realizadas o painel “OS MUSEUS NO CIBERESPAÇO: um olhar acerca dos
impactos da Pandemia no cenário museológico gaúcho”102, apresentado por Vanessa Aquino e
Gabriela Mattia no III Seminário Repensando Museus: qual o futuro dos museus? da Fundação
Força e Luz (Figura 3) e artigo “A presença dos museus gaúchos no ciberespaço: reflexões
acerca dos primeiros meses de Pandemia de COVID-19”, de autoria de Vanessa Aquino e
Gabriela Mattia, apresentado no Seminário da Semana dos Museus da UFPel 2021103, e
ilustrado na Figura 4. São ainda comunicações da pesquisa o presente artigo e o artigo.
102
É possível acessar a live através do link:
https://www.facebook.com/132896260128271/videos/1181135035631308
103
Veja a apresentação em:
https://youtu.be/O64yU7S7wck?list=PLGTL0KmkziHp44_QvLzL6hPfLR_j0cA50&t=2622
142
Considerações finais
Este artigo buscou debruçar-se brevemente sobre a atuação na iniciação científica no
escopo da graduação e apresentar a metodologia do projeto de pesquisa Forma & Conteúdo,
coordenado pela Profª Drª Vanessa Aquino. O diálogo constante, ou seja, presente em todas as
etapas da pesquisa e entre as pesquisadoras de forma horizontal possibilitou trocas,
compartilhamentos e aprendizados profícuos.
Essa coordenação e organização do grupo possibilitou revisão e afinamento do próprio
instrumento de trabalho e sob essa metodologia produziu-se cientificamente uma relevante base
de dados, passível de análise sob diversas lentes da Museologia. Há múltiplos recortes e
entrecruzamentos possíveis e o seguimento do Forma & Conteúdo, bem como a produção de
comunicações da pesquisa, pode aprofundar a pesquisa e registro do momento histórico que os
museus e a sociedade vivem.
O compartilhamento em eventos acadêmicos e trocas com outros grupos de
pesquisadores, de diferentes áreas do conhecimento e provenientes do imenso e diverso país
que é o Brasil também é um diferencial para o estudante de graduação. As trocas em eventos
trazem novas perspectivas, novas indicações de estudo preliminares ou novas abordagens. O
143
ciberespaço ampliou esse alcance geográfico, no entanto, não podemos esquecer da exclusão
digital e dificuldades também ampliadas nesse período pandêmico.
Minha participação neste projeto tornou-se uma vivência única pois demandou
adaptações de comunicação ao meio digital, de pesquisa e interação nesse espaço. É minha
segunda trajetória na iniciação científica e acredito ser uma experiência que poderia ser ainda
mais ofertada para estudantes de graduação, ainda mais reconhecida pelo Governo Federal e
demais esferas de gerência administrativa público-social. O Projeto Pedagógico do Curso (PPC)
de Museologia da UFRGS se assemelha e compartilha dos princípios do Plano de
Desenvolvimento Institucional - PDI (2016- 2026) da UFRGS, como
autonomia universitária; indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão; ética;
pluralidade e democracia; respeito à dignidade da pessoa humana e seus direitos
fundamentais; liberdade acadêmica; excelência; diversidade; sustentabilidade;
compromisso social; valorização de seus docentes, técnico-administrativos e
discentes. Alinha-se também aos seguintes valores: responsabilidade social;
transparência; inclusão; responsabilidade ambiental; promoção do bem-estar social;
inovação; internacionalização; interdisciplinaridade. (COMISSÃO DE
ELABORAÇÃO PROJETO PEDAGÓGICO DO CURSO DE MUSEOLOGIA,
2019, p. 9)
Dentre os múltiplos fatores que podem ser considerados, pontuo aqui a expressão de
“indissociabilidade” ao falar da tríade da universidade, ensino, pesquisa e extensão. No mesmo
documento, é explicitado que a própria Fabico possui um PDI, sendo uma de suas linhas o
entrelaçamento desta mesma tríade. Essa correlação também é identificada em um dos maiores
eventos de divulgação científica da universidade, o Salão UFRGS104, no qual são apresentados
em diferentes formatos, as ações de Iniciação Científica, Extensão, Inovação, Ensino e mais.
Nessa perspectiva, a atuação dos diversos indivíduos da comunidade acadêmica da UFRGS são
- ou deveriam ser - incentivados a conhecer e se apropriarem da tríade Ensino, Pesquisa e
Extensão.
Como estudante e por ter sido representante discente do curso de Museologia,
compreendo que nossa graduação apresenta diversas possibilidades já institucionalizadas para
a inserção dos estudantes na pesquisa. Essas possibilidades são vitais para que os futuros
bacharéis em Museologia e profissionais Museólogos tenham contato com a produção científica
numa esfera maior do que as próprias disciplinas. Projetos de Pesquisa oportunizam discussões
e trocas com pesquisadores de diferentes níveis de ensino e de diferentes áreas, contato com
fontes e bibliografias específicas, trabalho com metodologias e temáticas à médio ou longo
prazo; vivências e experimentações relevantes para a construção de trajetórias de profissionais
104
Para acessar o Salão UFRGS, acesse: https://www.ufrgs.br/salaoufrgs/ Para conhecer as publicações do Salão
UFRGS, acesse o repositório da Universidade: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/40515
144
críticos, defensores das ciências e que reconheçam a complexidade das relações e da sociedade
contemporânea.
Referências
Comissão de Elaboração Projeto Pedagógico do Curso de Museologia. Projeto Pedagógico
do curso de Museologia 2019. 2019, 55 p. Disponível em
https://www1.ufrgs.br/RepositorioDigitalAbreArquivo.php?4B8AA251440C&115. Acesso
em: 30 Jul. 2021.
CURY, M. X. Exposição: concepção, montagem e avaliação. São Paulo: Annablume, 2005.
DESVALLÉES, A., MAIRESSE, F. Conceitos-chave de museologia. Tradução de Bruno
Brulon Soares e Marilia Xavier Cury. ICOM. São Paulo: Armand Colin, 2013.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 50ª ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.
INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS. Evento 14ª Primavera dos Museus. Disponível
em http://eventos.museus.gov.br/. Acesso em: 15 de Nov. de 2020.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Tradução Carlos Irineu da Costa. 3. ed. São Paulo: Editora 34,
[1997] 2010.
MAGALDI, M. B.; BRULON, B.; SANCHES, M. Cibermuseologia: as diferentes definições
de museus eletrônicos e a sua relação com o virtual. In: MAGALDI, Monique B. BRITO,
Clovis Carvalho (Org.). Museus & Museologia: desafios de um campo interdisciplinar.
Brasília: FCIUnB, p.135-155, 2018.
MONTEIRO, Silvana. O Ciberespaço: o termo, a definição e o conceito. DataGramaZero -
Revista de Ciência da Informação - v.8 n° 3, p.1-18, 2007.
WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Director-General's opening remarks at the
media briefing on COVID-19 - WHO, 11 mar. 2020. Disponível
em:https://www.who.int/director-general/speeches/detail/who-director-general-s-opening-
remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19---11-march-2020 Acesso em: 12 jan. 2021.
WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO Coronavirus Disease (COVID-19) Dashboard.
WHO, 2021. Disponível em https://covid19.who.int/. Acesso em: 12 jan. 2021.
145
Introdução
Dentro dos estudos da cultura material, o historiador Daniel Roche em seu livro
“História das Coisas Banais” (2000) aborda a importância do objeto e da materialidade como
fonte histórica, por meio da relação destes (como por exemplo, as vestimentas) com os aspectos
da esfera social, onde carrega parte da história das relações humanas que podem levar a
hipóteses e à compreensão da história social.
Estes objetos em museus, segundo Meneses (1992) tendem a se transformarem em uma
plataforma de símbolos que cultuam valores como identidade e nacionalidade. Como lugar de
conhecimento, o museu é um espaço que estabelece uma intermediação institucionalizada entre
indivíduos e materiais, que induz a ver o que deixamos passar. O museu deve mostrar a
sociedade como um organismo vivo, em transformação, produção e reprodução o que contribui
para a consciência histórica. Assim, o que se mostra em um museu, como o objeto, também
denominado como cultura material, se transforma em documento (MENESES, 1992). Torna-
se, portanto, parte do processo de construção de memória e de leitura crítica, que exterioriza
valores, costumes, economias, formas de viver, ações, heranças, um documento de construções
passadas, que geram interpretações e leituras críticas (MENESES, 2009).
Dentro desta cultura material, se encontram os vestuários, como qualquer outro objeto
social, ele adquire vivências e representações, por meio das relações roupa (objeto) e
indivíduo/sociedade, transmitem e manifestam juízos e valores, como elemento sinalizador de
significados e interesses de um conjunto de relações simbólicas (BERGAMO, 1998). Para
Daiana Crane:
O vestuário, sendo uma das formas mais visíveis de consumo, desempenha
um papel da maior importância na construção social da identidade. A escolha
do vestuário propicia um excelente campo para estudar como as pessoas
interpretam determinada forma de cultura para seu próprio uso, forma essa
que inclui normas rigorosas sobre a aparência que se considera apropriada
num determinado período (o que é conhecido como moda), bem como uma
variedade de alternativas extraordinariamente rica. Sendo uma das mais
evidentes marcas de status social e de gênero – útil, portanto, para manter ou
subverter fronteiras simbólicas –, o vestuário constitui uma indicação de como
as pessoas, em diferentes épocas, vêem sua posição nas estruturas sociais e
negociam as fronteiras de status […] (CRANE, 2006, p. 21).
105
Mestranda do programa de Pós-graduação em História Social pela Universidade Estadual de Londrina,
especialista e Moda: produto e comunicação e em Antropologia e bacharela em Design de Moda pela mesma
universidade. E-mail: [email protected].
146
Para pensar a roupa em uma cadeia de sistemas simbólicos, pensa-se nos trabalhos de
Barthes, como “Sistema de moda”, onde o autor vai trazer a ideia da roupa como acontecimento
histórico, datar seu aparecimento, origem e circunstâncias, como significante para um
significado que são interligados à um conjunto de normas coletivas que captam a sua natureza
social em termos como: regras, usos, proibições, tolerâncias, transgressões, imposições,
aspectos morfológicos, psicológicos e sistema social.
O pesquisador e professor, Jules Prown, em sua obra “Mind in matter” (1994), ao
escrever sobre o vestuário, propõe que um estudo deve apontar as observações contidas no
objeto, em seguida, uma dedução por meio de pequenas associações, e por fim, realizar uma
especulação, levantar hipóteses, e questões derivadas do objeto com outras evidencias externas.
uma veste que requer, tradicionalidade, modelos estéticos pré-estabelecidos, podendo variar de
acordo com: uso, tipo, idade, posição social, estado civil, estação do ano, entre outras, como
por exemplo, na primavera, apresentam cores vibrantes com flores, no outono, as cores são
menos vibrantes, pode variar no material de acordo com o frio e o calor. Além disso, se tem um
modelo mais longo, de um corte básico para todos os gêneros, modelos de mangas que se
diferenciam em relação ao sexo e idade, como por exemplo, as mangas longas, características
do furisode usada por uma mulher jovem, as mais curtas e as retangulares são para mulheres
casadas, as mangas masculinas são quadradas e não têm nenhuma abertura sob o braço
(MAYUMI, 2012).
Os kimonos tradicionalmente são feitos de seda, porém, podem variar, é possível
destacar ainda nessas vestes, um símbolo chamado “mon”, um símbolo representativo da
família do proprietário original, bordado como um elemento de caráter identificatório visual da
peça (UCHIDESCHI, 2013).
com calças ou saias), hakama (saia de aikidô), wagasa (sombrinhas tradicionais japonesas) e
miniaturas de bonecas japonesas com a estética completa tradicional, com: kimonos, wagasa,
leques (estilo ogi ou sensu, conhecido por serem modelos dobráveis), penteados e maquiagem,
produzidos manualmente. Todas as peças aqui destacadas, encontram-se em um bom estado de
conservação, guardadas na Reserva Técnica.
Em uma breve contextualização, no museu existem cerca de aproximadamente 14
kimonos, que pertenceram a uma das famílias pioneiras, a Família Kobayashi, as peças foram
doadas por Mario Kobayashi. A Família Kobayashi, chegou em Londrina no início da década
de 50, especificamente em 1953 quando adquiriram seu primeiro lote de terra, atuavam como
agricultores, plantavam sobretudo alface e vendiam para estabelecimentos locais (PIOTTO,
2018). Abaixo, algumas imagens da família em Londrina.
Fotografia 4: Mãe dos Kobayashi, Tomi Kobayashi, Mitsuko k. Helena e Milton, à frente Lúcia e
Mário (doador das peças), no Jardim Kobayashi, por volta de 1971
Fotografia 5: Da esquerda para a direita: Claudia Kobayashi, Lucia Kobayashi, uma amiga da família
Sayuri e Olga Kobayashi, usando as vestes típicas japonesas, com Kimonos e faixas para uma
apresentação de uma dança com música japonesa para a TV, 1972
Destacam-se as cores neutras como o preto, branco, cinza e bege, e as cores mais
intensas como o rosa e o vermelho. Em relação as estampas, as vestes aqui retratas possuem em
sua maioria florais e formas geométricas, em que os modelos com flores se apresentam nas
peças de cores mais fortes e abertas, como o vermelho e rosa, com detalhes nas cores: amarela
e laranja, e as geométricas em modelos mais sóbrios, como: o branco, preto e cinza, com
detalhes nas cores: preto, branco e vinho. Apenas dois kimonos não possuem estampas,
considerados modelos mais simples, usados ocasionalmente, como é o caso da peça mostarda
e cinza. Algumas ainda contam com forros de diversas cores, como branco, rosa, vermelho e
estampados, além de faixas que completam as amarrações.
A maioria dos modelos são compridos com mangas longas, medindo aproximadamente
1,20 a 1,40 metros, em média. Abaixo, uma descrição mais precisa sobre alguns modelos aqui
representados:
Tabela 2: Kimonos
O Kimono foi confeccionado em tecido seda nas cores preto e
vinho, a parte externa destaca-se pela alternância das cores
proporcionando um xadrez com decoração de ramos florais
intercalados em vermelho, branco e verde. A parte interna
possui um forro na cor branca. A peça foi fabricada e usada no
século XX em Londrina – PR.
Tamanho: 1,41 x 51 cm
Considerações finais
A partir deste estudo, foi possível refletir a importância da história japonesa em
Londrina, e relaciona-lo com a sua presença dentro do acervo da cidade, a partir da condição
de existência de objetos tridimensionais, como as roupas, acessórios, bonecas, fotografias e
outras representações, que marcam a presença nipônica no norte do Paraná, que, ainda hoje é
marcada por diversos eventos e memoriais, em homenagem à migração japonesa.
Os kimonos do Museu Histórico de Londrina, possuem muitas cores e estampas, uma
grande diversidade estética que simboliza, como documento, a importância de uma cultura, de
uma família e também no pioneirismo londrinense, deixadas como memórias palpáveis, uma
parte da história contada através de objetos e da sua relação como documento histórico local,
que muitas vezes, tornam-se desconhecidos pelo público e pesquisadores.
Considera-se um trabalho de relevância para os estudos teóricos em torno da cultura
material, já que é uma fonte que está conquistando seu espaço dentro dos trabalhos acadêmicos,
além disso, propõe reflexões históricas e culturais que contribuem para o conhecimento. Assim,
vê-se como uma forma de contribuição para as pesquisas voltadas para a história do vestuário
como acervos.
Os estudos em torno da historicização e documentação da fonte estudada, possuem
carência de dados e informações, assim, pensa-se na continuação dessa pesquisa, com um
estudo aprofundo de cada peça estudada no artigo, pois com a pandemia, limitou visitas ao
museu e também o trabalho presencial, assim, sendo realizados com os documentos e fotos já
digitalizadas do acervo.
154
Referências
ANDRADE, Suellen Nunes de. IMIGRAÇÃO JAPONES: um olhar sobre a cultura artística.
In: 9° ENCONTRO DE ATIVIDADES CIENTIFICAS, 9, 2006, Londrina. Anais
[...]. Londrina: Unopar, 2006. p. 1-2. Disponível em:
https://repositorio.pgsskroton.com/bitstream/123456789/8112/1/IMIGRA%C3%87%C3%83
O%20JAPONESA%20%20UM%20OLHAR%20SOBRE%20A%20CULTURA%20ART%C
3%8DSTICA.pdf. Acesso em: 22 jun. 2021.
CAMARGO, Ana Paula de Souza. Japão: a peculiaridade de sua cultura, arte e moda. p. 88.
Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Moda, Cultura de Moda e Arte).
Universidade Federal de Juiz de Fora, 2013.
PIOTTO, Califórnia, Eldorado, Nova Conquista, Ok e Kobayashi: Memórias de um passado
recente. In: Contação de histórias no Norte do Paraná: memória e patrimônio / Museu
Histórico de Londrina. Universidade Estadual de Londrina, organizadoras: Eliana Aparecida
Candoti e Regina Célia Alegro; Projeto gráfico e editoração Petra Maria Schauff Mendes. –
Londrina: UEL, 2018.
CULTURA JAPONESA (São Paulo) Kimono. Disponível em:
http://www.culturajaponesa.com.br/index.php/diversos/kimono/. Acesso em: 22 jun. 2021.
FOLHA DE LONDRINA (Londrina): Os Imigrantes Japoneses, 2017. Disponível em:
https://www.folhadelondrina.com.br/folha-rural/os-imigrantes-japoneses-988507.html.
Acesso em: 22 jun. 2021.
SATO, Cristiane A. Japop: o poder da cultura pop japonesa. São Paulo: NSPHAKKOSHA,
ed. e promoções, 2007.
SATO, Cristiane A. (2007) Kimono. Disponível em: http://www.culturajaponesa.com.br.
Acesso em: 22 jun. 2021.
SATO, Cristiane A. (s.d.) Kimono, história, cultura, vestuário: o que é kimono. Disponível
em: https://www.portalsaofrancisco.com.br/turismo/kimono. Acesso em: 22 jun. 2021.
SATO, Cristiane A. (2008). Quimono moderno: o lado fashion do estilo tradicional.
Disponível em: http://www.culturajaponesa.com.br/. Acesso em: 22 jun. 2021.
SATO, Cristiane A. (s.d.) Moda japonesa: geral. Disponível em:
http://www.culturajaponesa.com.br/. Acesso em: 22 jun. 2021.
UCHIDESCHI, Juliana Galende (2013). Kimono: A vestimenta tradicional do Japão.
Disponível em: http://www.bugei.com.br/artigos/index.asp?show=artigo&id=13. Acesso em:
22 jun. 2021.
MAYUMI (2012). Kimonos. Disponível em: http://3.bp.blogspot.com/-
zaK3siQ5NYU/UGWehNnlC7I/AAAAAAAAAWc/. Acesso em: 22 jun. 2021.
155
Introdução
A Faculdade de Ciências Políticas e Econômicas – FCPE, segunda instituição de
ensino superior do Município do Rio Grande, tinha como finalidade principal a formação
de profissionais capacitados em solucionar problemas de ordem política e econômica. Sua
criação pelo poder público municipal, visou conter a evasão de estudantes a outros centros
urbanos no final da década de 1950, ao possibilitar o acesso a um curso de nível superior
e posteriormente em cursos de nível médio e técnico, além da participação no crescimento
intelectual e social da região.
No desenvolvimento das funções e atividades da FCPE, bem como de sua
subunidade vinculada, a instituição de ensino foi responsável pela produção e
recebimento de documentos que refletem sua administração, funcionamento e história.
Nesses registros estão inseridas as fotografias, que são utilizadas como fontes de pesquisa
sobre a história da Instituição e constituem parte do seu patrimônio documental.
Assim, o presente trabalho tem como objetivo investigar o contexto histórico e de
formação do acervo fotográfico da FCPE, garantindo subsídios para uma interpretação e
descrição consiste aos pesquisadores. O período de produção do acervo analisado,
corresponde as datas do efetivo funcionamento da Instituição, entre os anos de 1959 até
1972, sendo que em 1969 foi incorporada a Universidade Federal do Rio Grande – FURG,
devido a mudança no sistema educacional do país ocasionada pela Reforma
Universitária.
Para a realização do trabalho, foram realizadas consultas em referenciais teóricos
pertinentes ao assunto e visitas na Coordenação de Arquivo Geral da FURG, local de
guarda do acervo documental e das fotografias para levantamento informacional. Ainda,
como parte das fotografias, encontram-se custodiadas no Núcleo de Memória Francisco
106
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM). Arquivista da Universidade Federal do Rio Grande - FURG, Rio Grande, RS. Contato:
[email protected]
107
Orientadora. Professora Doutora no Programa de Pós-Graduação em Patrimônio Cultural da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Contato: [email protected]
157
108
Informações retiradas do site < https://www.fcrg.org.br/>. Acesso em: 20 jul. 2021.
158
A FCPE foi criada pela Lei Municipal nº 875, de 22 julho de 1955, com a previsão
de ser mantida pela Prefeitura Municipal. A instituição tinha como finalidade ministrar o
ensino superior das Ciências Políticas e Econômicas, com o fim de formar profissionais
nestas especialidades.
Caetano e Weiduschadt (2016), em estudo sobre a FCPE e suas contribuições ao
Município, relatam as alterações ocorridas na planta urbana da cidade e o processo de
formação da cultura escolar no cotidiano de Rio Grande. Para os autores a presença da
instituição “atendia a um ideário do espírito capitalista das autoridades e personalidades
locais [...] e poderia aumentar as possibilidades de progresso no local, ainda mais,
atreladas a outras formações de instituição superior” (2016, p. 68).
Apesar de ter sido criada em 1955, a FCPE teve seu funcionamento previsto a
partir de 1956, pelo prefeito na época, Sr. Frederico Ernesto Buchholz. Entretanto,
somente em 1958 ocorreu a autorização para o funcionamento do Curso de Ciências
Econômicas, através do Decreto Federal nº 43.563, de 24 de abril, assinado pelo
Presidente da República, Juscelino Kubitschek. Por esse motivo, o primeiro período letivo
de aulas ocorreu em 1959, e contou com treze alunos matriculados109.
A administração da Faculdade era exercida pela Congregação dos Professores,
pelo Conselho Técnico Administrativo e pelo Diretor, de acordo com as normas gerais
estabelecidas no Regimento da Faculdade. O Diretor Economista Sr. Roberto Coimbra
Edom, empossado na ocasião de instalação da Faculdade, e o secretário Edio de Oliveira
Cardoso, foram os primeiros responsáveis por orientar os serviços administrativos.
O Curso de Ciências Econômicas tinha previsão de duração de quatro anos, e
funcionava no turno da noite, afim de facilitar o acesso a uma grande parcela de
estudantes que trabalhavam durante o dia. Os programas das disciplinas ministradas eram
aprovados pelo Conselho Técnico Administrativo, e as disciplinas agrupadas, para fins
didáticos e de pesquisa, nos seguintes departamentos: Departamento de Matemática e
Estatística; Departamento de Economia e Finanças; Departamento de Contabilidade e
Administração; e Departamento de Direito.
A primeira sede da FCPE funcionou nas dependências da Escola de Belas Artes
de Rio Grande, também mantida pela Prefeitura Municipal. A partir do ano de 1964, a
FCPE passou a funcionar em prédio localizado na Rua Luiz Loréa nº261, onde
109
Conforme informações consultadas no Relatório de Inspeção da FCPE do 1º período do ano de 1959.
Acervo Universidade Federal do Rio Grande (Coordenação de Arquivo Geral).
159
permaneceu até o ano de 1972. O novo local era mais amplo e logo recebeu algumas
adaptações e melhorias no mobiliário e no espaço físico.
Em 1962, na gestão do Prefeito Engº Horácio Ubatuba de Faria, através da Lei
Municipal nº 1439, de 23 de outubro, a FCPE foi instituída como órgão autárquico e em
1967, o Curso de Economia teve seu reconhecimento através do Decreto Federal nº61401,
de 22 de setembro de 1967.
Em 1966, vinculado a FCPE, foi criado o Colégio Técnico Comercial “Fernando
Freire” – CTCFF, que tinha como finalidade ministrar cursos de nível médio. A Lei nº
737, de 26 de julho de 1966, determinou a institucionalização do CTCFF e sua orientação
didática, administrativa e financeira por parte da FCPE.
O CTCFF mantinha o Curso Técnico de Administração, com duração de três anos,
e o Curso Ginásio-Comercial, em dois turnos diurnos. Os cursos, possibilitavam aos
alunos maior participação no trabalho produtivo ou no prosseguimento de seus estudos,
representando um apoio ao desenvolvimento comercial e industrial de Rio Grande.
No final da década de 1960, devido a mudança no sistema educacional do país
ocasionado pela Reforma Universitária110, as instituições com cursos superiores, que
antes funcionavam de forma independente e isolada, deveriam ser incorporadas a
complexos maiores com objetivos comuns. Então, o Decreto-Lei nº774, de 20 de agosto
de 1969, que autoriza o funcionamento da URG (atualmente FURG), determina em seu
artigo 3º, a constituição da FCPE do Rio Grande junto à estrutura da Universidade, bem
como de outras unidades de ensino superior do Município111.
A extinção oficial da FCPE, foi dada pelo Decreto Municipal nº 2414, de 31 de
março de 1970. Já o modelo estrutural tradicional permaneceu na URG até o ano de 1972,
visto que a partir de 1973, a antiga Faculdade passou a integrar o Centro de Ciências
Humanas e Sociais, um dos cinco centros criados pela Universidade em decorrência de
uma grande mudança em sua estrutura.
110
A Reforma Universitária de 1968, foi um movimento que trouxe alterações no sistema educacional
brasileiro de nível superior, incluindo uma série de leis, nas décadas de 1960 e 1970.
111
A Lei nº 1828, de 19 de junho de 1967, em seu conteúdo já previa a incorporação da FCPE e do CTCFF
à Universidade criada no Município e extinção da autarquia. Nessa junção, o CTCFF só contava com o
CTA em sua estrutura, não sendo incluído o Curso Ginásio-Comercial, que deveria passar a jurisdição do
Depto de Educação e Saúde. Disponível em: <https://leismunicipais.com.br/> Acesso em 16 jul.2021.
160
O Fundo FCPE
O Fundo da FCPE é formado por documentos relativos à criação e funcionamento
da instituição de ensino superior, produzidas no decorrer de suas atividades-meio e fim,
e que comprovam a trajetória acadêmica dos alunos desde a sua entrada, período de
permanência até a conclusão do curso realizado.
Ainda, como uma subdivisão do Fundo, apresenta os documentos pertencentes ao
CTCFF, pelo fato do Colégio se caracterizar como uma unidade administrativa com
competência especifica integrada à FCPE, sob orientação didática, administrativa e
financeira desta última.
O período de produção dos documentos do Fundo, em sua totalidade, tem início
no ano da criação da FCPE, mas se concentra em maior quantidade a partir do seu efetivo
funcionamento em 1959, e se estende até 1972, ano que perdurou suas atividades.
O Fundo totaliza 3,36 metros lineares de documentos, em sua maioria textuais,
acondicionados em 24 caixas arquivo e armazenados em um Arquivo deslizante,
composto por estantes e prateleiras distribuídos em 12 módulos. O fundo encontra-se
custodiado no Arquivo Permanente da Coordenação de Arquivo Geral da FURG,
localizado no Campus Carreiros.
As séries documentais que constituem o Fundo FCPE são: Administração Geral;
Ensino Superior e Assuntos Diversos. Alguns assuntos/ tipos documentais presentes são:
atas de reuniões do Conselho Técnico Administrativo e da Congregação; diários de
classes; controle de frequência; processo de reconhecimento do Curso; relatório de
atividades; relatório de concursos de habilitação; regulamentação interna; proposta
orçamentária; reestruturação e alteração salarial; reformulação curricular; entre outros.
O Fundo também apresenta a Seção Colégio Técnico Comercial Fernando Freire,
respeitando o vínculo e a relação de subordinação entre as unidades. Apresenta a série
Administração Geral, que contém o regimento do CTCFF, processo de autorização de
funcionamento, processo de reconhecimento do Colégio, atas de reuniões, contratos de
trabalho, termos de posse; e a série Educação Básica e Profissional, com diários de classe,
programas didáticos das disciplinas, termos de colação de grau, assentamentos
individuais de formados e passivos, entre outros tipos documentais/ assuntos.
de indivíduos e de uma sociedade. Seu uso como fonte histórica é reconhecido, pois
conforme afirma Siqueira (2016, p.770) “permite analisar, perceber, compreender,
reconstituir, revelar e suscitar dúvidas referentes aos acontecimentos, transformações
sociais, culturais, econômicas e políticas, bem como formas de vida do passado”.
Para Pesavento (2008, p. 111) “as imagens não são um duplo do real, mas o
atestado de intenções e sensibilidades, fruto de um olhar sobre o mundo em uma
determinada época”. Ainda em relação ao olhar do criador da imagem fotográfica, a
autora completa e compara com “um texto ou narrativa, pois carrega consigo avaliações,
julgamentos, emoções, reflexões.” (2008, p. 111).
Logo, as escolhas feitas pelo criador da fotografia determinam algumas
características da imagem e registram uma situação específica inserida em um contexto
histórico, social, econômico e cultural, linha de pensamento já defendida por Kossoy
(2001) em sua obra.
Nesse sentido, a autora Manini (2009, p. 1) defende a fotografia como uma
narrativa, “passível de uma leitura, leitura esta que deve ser aprendida e efetuada como
um processo necessariamente anterior à análise documentária da imagem”. Essa
perspectiva, defende que o profissional arquivista ou o profissional da informação
aprofunde seu olhar na narrativa da fotografia, na intenção de interpretar a mensagem da
imagem e entregar o que de melhor e mais útil importa ao pesquisador.
Torna-se importante, não se atentar somente as informações técnicas, mas também
ao ato de contextualizar a imagem representada, e ter um “conhecimento prévio (o
repertório) sobre o conteúdo da fotografia ou do conjunto maior de que faz parte.”.
(MANINI, 2009, p. 10). O objetivo consiste em decifrar a linguagem e interpretar a
mensagem histórica cultural que constitui a imagem fotográfica.
No caso das universidades públicas, com a produção documental acumulada
organicamente, as fotografias encontram-se presentes em quantidades significativas. As
imagens retratadas se referem as atividades da instituição, direta ou indiretamente, e
servem como testemunho e prova de fatos ocorridos.
As fotografias pertencentes ao Fundo da FCPE, constituem parte relevante do
patrimônio documental da Instituição e da própria FURG, que hoje atua como
responsável pela custódia e preservação dos seus registros documentais. As imagens
fotográficas servem como informação das atividades administrativas e de ensino
praticadas pela Faculdade durante o período de seu funcionamento.
162
Figura 3 - Conferência do Prof º Manoel Luzardo de Almeida da UFRGS, sobre o tema “Zona
de livre comércio” com a presença de vários economistas da região e capital, realizada em
4/11/1960 na FCPE. Acervo NUME/FURG.
Ainda, a FCPE representa uma parte significativa da história da cidade, pois sua
fundação e legitimação contribuiu para o desenvolvimento econômico, social e cultural
do Município de Rio Grande. Desta forma, o acervo fotográfico da Instituição retrata
também aspectos de formação e crescimento da região, confirmando seu valor histórico
e cultural à cidade.
Dessa forma, as fotografias podem ser consideradas um importante subsídio para
as pesquisas realizadas pelos usuários da FURG, que possuem ou já tiveram algum
vínculo com a FURG ou com as antigas Faculdades, como docentes, técnico-
administrativos em educação, e estudantes; egressos dos cursos superiores; e
pesquisadores em geral. A preservação e o tratamento adequado desses arquivos
fotográficos possibilita ampliar as fontes informacionais dos usuários, atendendo
satisfatoriamente suas necessidades e expectativas.
Considerações finais
A FCPE, que tem sua história relacionada com a FURG, produziu um rico acervo
documental fotográfico que serve como fonte de informação e preservação da identidade
e da memória institucional. Seu arquivo, assegura um valor probatório e de base cultural
e histórica ao seu produtor e que é extensivo a toda sociedade, pois através das atividades
e dos serviços prestados, supera os limites do campus universitário.
Do profissional, dependerá a leitura do conteúdo das imagens fotográficas, que
será outra leitura daquela feita pelo fotógrafo no momento da captura da imagem. Essa
nova reconstrução que irá permitir o acesso aos documentos, sendo essencial, o
conhecimento prévio do contexto histórico e de criação da instituição, da política da
164
Introdução
Os arquivos privados, pessoais ou institucionais são produzidos, recebidos e
acumulados no decorrer da vida, das atividades, de uma pessoa ou instituição. Alguns
destes arquivos, posteriormente à produção ingressam em instituições que custodiam
acervos, como arquivos, bibliotecas, centros de memória e museus. Os espaços de
custódia possuem características técnicas próximas, no entanto, com especificidades
distintas e com formas variadas no tratamento da informação. A organização proposta
pelo espaço custodiador pode alterar, preservar, evidenciar, privilegiar as características
dos arquivos e indicar ou não a relação orgânica entre os documentos.
Os arquivos pessoais dentro das instituições tornam-se fonte de pesquisa, registros
e evidenciais documentais. São elementos que permitem novos atores e vozes na
construção historiográfica e na memória social e coletiva. A Arquivologia durante um
longo período, sobretudo, anterior a segunda metade do século XX, dedicava-se,
prioritariamente, aos documentos institucionais, de caráter privado ou público, em
especial, aos produzidos no âmbito estatal. Os documentos produzidos por pessoas nos
espaços privados não encontravam um lugar coletivo para a sua salvaguarda e tampouco
eram privilegiados na teoria e prática arquivística.
Nas últimas décadas conforme indica Hedstrom (2017) há um crescimento nas
produções arquivísticas referentes à construção da memória pública, social e coletiva. Os
arquivos, incluindo os pessoais, preservam e fornecem acesso à prova e decisões do
passado. Duarte (2018, p.10) aponta que “O limiar inicial, portanto, entre a arquivologia
e os arquivos pessoais se encontra no momento da incorporação destes arquivos por
organizações jurídicas dedicadas ao acúmulo e tratamento de documentos pessoais …”.
Neste sentindo, o processo de ingresso dos conjuntos documentais às instituições é o
momento fundamental para o pensamento da teoria e prática arquivística. E foram as
112
Mestre em Gestão de Documentos e Arquivos e arquivista pela Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro. Graduanda em Biblioteconomia pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente, servidora
pública federal da Fundação Biblioteca Nacional, lotada na Seção de Iconografia e responsável técnica da
Coleção Alair Gomes.
166
113
Atualmente, a Fundação pertence à administração indireta do Ministério do Turismo.
114
Conforme o Regimento Interno, disposto na Portaria nº 74 de 2018.
167
115
Aíla foi tradutora e professora de língua e literatura inglesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
116
Esta informação torna-se relevante ao identificarmos, no acervo, volumoso número de documentos
textuais escritos por Alair na língua inglesa.
168
e dedicação que Alair teve por suas séries fotográficas, a paixão, desejo e arte a partir de
sua sexualidade originaram grande parte de sua coleção. Com olhar único, muitas vezes
voyeur, escreveu e captou muitas imagens e produziu muitos documentos sobre o
conceito e organização das séries.
Entre as décadas de 60 e 70 Alair produziu a série fotográfica (e documentos
textuais relacionados a ela) Symphony of Erotic Icons, SEI, ou Composição erótica em
três movimentos. A série numerosa, com mais de 1700 fotografias abarca o nu masculino
de inúmeros rapazes, em diferentes olhares e condições com perspectiva erótica e
artística, classificadas através de movimentos da música clássica. Conforme afirma
Gomes, Alair (1975) a série foi motivada por uma obsessão que não necessitava de
explicação e que ele esperava que lhe garantisse uma cidadania artística, um
reconhecimento.
Em documento produzido por Alair entre [1970-198-], intitulado: “Instituições
tipo museu ou fundação que talvez aceitem meu material fotográfico (sob minha condição
expressa de aceitação inclusive do material de caráter erótico, sem censura)”, ele
menciona instituições que pudessem receber seu acervo, sem ressalvas, e pessoas que
pudessem auxiliar nas negociações. O documento datilografado possui várias anotações
manuscritas e indica que Alair vislumbrava instituições americanas e europeias com boas
categorias. Outro documento relacionado com o acima, que data do final da década de 70,
foi a carta enviada a Sam Wagstaff117. Em uma delas, Alair explana a preocupação com
o futuro da Sinfonia de Ícones Eróticos e a oferece, por doação, para Sam: “My enormous
concern for the safety and the ultimate destiny of the Symphony determine me to offer it
to you.”118
A partir dos documentos apresentados, é possível perceber a intenção de envio e
preservação das fotografias, sobretudo, as eróticas fora do país, mas as negociações não
avançaram e este desejo não foi concretizado. Outro ponto que merece destaque foi a
confecção do testamento de Alair, em agosto de 1983. O testamento destinou a maior
parte dos bens à irmã Aíla. As fotografias, escritos de várias naturezas, a biblioteca, foram
destinados a Antônio Jordão (responsável por concretizar a repartição conforme as
especificidades do testamento) e Laurence Christy III. Na ausência dos primeiros
mencionados, Alair deixa seu legado para Celeida Tostes e Maurício Bentes (novo
117
Norte-americano, falecido em 1987, era colecionador e curador de artes.
118
“Minha enorme preocupação com a segurança e o destino final da Sinfonia me determinam a oferecê-la
a você.”
171
responsável pela partilha dos bens em questão). Santos apresenta a situação envolvendo
os herdeiros.
Como os herdeiros legais da obra de Alair Gomes, Antonio Jordão
Motta Vecchiatti e Lawrence Christy III, residiam nos Estados Unidos
e não foram localizados após a sua morte em 1992, numa ordem
hierárquica criada por Alair, Bentes era o substituto legal desses
herdeiros, juntamente com a artista Celeida Tostes, que ficaram
responsáveis pela guarda do seu acervo de imagens e textos. (SANTOS
2006, p. 286)
fotografias, com referências nas pesquisas realizadas e com critérios baseados nos títulos
atribuídos por Alair e nos grandes temas das séries fotográficas. O final do projeto
culminou com a participação de fotografias em uma grande exposição em Paris, no ano
de 2001.
Durante este projeto inicial, a equipe identificou que a quantidade de fotografias
presentes na coleção era maior que a descrita no termo de doação. Ao invés de 8 mil
fotografias, foram localizadas mais que o dobro, cerca de 17 mil. Ainda em aspectos
relacionados à doação, em agosto de 1998, a Biblioteca Nacional devolveu à Aíla duas
caixas contendo fitas cassetes que foram encaminhadas junto com as fotografias. No
documento, ressalta-se que a doação em 1994 foi exclusivamente do acervo fotográfico
e que as fitas deveriam ser juntadas ao acervo pessoal/ biblioteca para que pudesse
auxiliar na compreensão da obra de Alair.
Em julho de 2004 em documento destinado à Seção de Iconografia, Aíla expressa
o desejo de doar os documentos textuais de Alair, que até então, encontrava-se na sua
residência:
Venho por meio desta expressar o meu desejo de doar à Fundação
Biblioteca Nacional o acervo pessoal de Alair Gomes que se encontra
em meu poder, como irmã e herdeira do mesmo. O material consiste
dos originais de seus diários, textos científicos, cartas, documentos etc
que poderão ser de grande valia para estudiosos e pesquisadores119
(GOMES, 2004).
119
Processo FBN 2252/04.
173
enfatizando que: “... não aceitar a presente doação, integralmente, implicaria em colocar
este importante acervo em risco…”. Neste momento, a segunda doação já estava na
Iconografia, após a ida de servidores à residência de Aíla para retirar o material. No
entanto, aguardava-se a definição do local de guarda, já que boa parte dos documentos
eram textuais, e cogitava- se a Seção de Manuscritos para a custodia.
Considerações finais
A Biblioteca Nacional é uma das principais instituições de preservação e de acesso
à memória nacional. A coleção Alair Gomes na Biblioteca Nacional é um bem público,
patrimônio institucional e nacional. Os arquivos privados, institucionais ou pessoais são
registros que complementam os oficiais e possibilitam um novo olhar historiográfico e
arquivístico. A vida e obra de Alair Gomes apresentam singularidade na produção e
vivência da homossexualidade do autor, de seus desejos, relações, olhares e dimensões
profissionais. A representatividade no trabalho de Gomes é de grande relevância para dar
lugar a estórias que não figuravam e não ocupavam o espaço estatal.
A primeira doação da coleção privilegiou a dimensão artística do trabalho de
Alair. Mas foi na segunda doação, com os documentos textuais que foi estabelecida a
perspectiva da integralidade do conjunto documental. O breve relato sobre a
institucionalização da coleção Alair Gomes na Fundação Biblioteca Nacional é
preliminar. A organização do conjunto documental encontra-se em desenvolvimento e
com alguns desafios, como o extenso volume, a caligrafia de difícil compreensão, a
escrita em inglês, a redução de servidores no quadro institucional. Apesar dos desafios da
coleção, ela é rica em detalhes com características próprias dos arquivos pessoais.
O conjunto documento de Alair Gomes na Biblioteca Nacional representa a
diversidade no patrimônio nacional e o reconhecimento de um artista contemporâneo, de
muitas facetas. E, ainda traz o ineditismo de registros e olhares sobre um homem
brasileiro homossexual no século XX.
174
Referências
ALAIR de Oliveira Gomes: 1921-1992: relevant data concerning his intellectual life.
[S.l.: s.n., 1992?]. 34 p
ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.
11, n. 21, p. 9-34,1998. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/2061. Acesso em: 28 jun.
2021.
BRANDO, Daniele Cavaliere; MEREGE, Ana Lúcia. Arquivos privados na Biblioteca
Nacional. Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte, n. 2, p. 58-71, jul
dez, 2009. Disponível em:
http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/acervo/rapm_pdf/20092A07.pdf . Acesso em: 28
jun. 2021.
CAMARGO, Ana Maria de Almeida. Arquivos Pessoais são Arquivos. Revista do
Arquivo Público Mineiro, Belo Horizonte, n. 2, p. 27-39, jul-dez, 2009. Disponível
em: http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/acervo/rapm_pdf/2009-2-A02.pdf. Acesso
em: 12 jul.2021.
CUNHA, Lygia da Fonseca Fernandes da. O acervo iconográfico da Biblioteca
Nacional: estudos de Lygia da Fonseca Fernandes da Cunha. Rio de Janeiro: Fundação
Biblioteca Nacional, 2010. 256, [92] p. de estampas, il. (algumas col.), 25cm. -.
(Coleção Rodolfo Garcia, v.34).
DUARTE, Renato Crivelli. Arquivos pessoais: institucionalizações e trajetórias. (224
p.) Tese (doutorado)- Universidade Estadual Paulista – Faculdade de Filosofia e
Ciências, Marília, SP. Disponível em: http://hdl.handle.net/11449/153526. Acesso em: 2
jul. 2021.
GOMES, Alair de Oliveira. Acêrca da Sinfonia de Ícones Eróticos: (ou Composição
Erótica em Três Movimentos.) Rio de Janeiro: [s.n], 1975.
GOMES, Alair de Oliveira. Instituições tipo museu ou fundação que talvez aceitem
meu material fotográfico (sob minha condição expressa de aceitação inclusive do
material de caráter erótico, sem censura). [Rio de Janeiro]: [s.n], [1970-198-]
GOMES, Aline Ferreira. A fotografia de Alair Gomes. 2017. 1 recurso online (196 p.).
Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Campinas, SP. Disponível em:
http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/322643. Acesso em: 1 jul. 2021.
HEDSTROM, Margaret. Arquivos e memória coletiva: mais que uma metáfora, menos
que uma analogia. In: EASTWOOD, Terry; MACNEIL, Heather. Correntes atuais do
pensamento arquivístico. Tradução Anderson Bastos Martins; revisão técnica Heloísa
Liberalli Bellotto. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2016, p. 237-259.
IMPRENSA NACIONAL. PORTARIA Nº 74, DE 3 DE AGOSTO DE 2018. Aprova o
Regimento Interno da Fundação Biblioteca Nacional - FBN. Disponível em:
http://www.in.gov.br/materia/-
/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/35518090/do1-2018-08-06-portaria-n-74-
de-3-de-agosto-de-2018-35517964. Acesso em: 31 jul. 2021.
MCKEMMISH, Sue. Provas de mim... novas considerações. In: TRAVANCAS, Isabel;
ROUCHOU, Joëlle; HEYMANN, Luciana. Arquivos pessoais: reflexões
multidisciplinares e experiências de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.
175
PAULA, Ana Cristina da Silva de. Arquivo Lima Barreto: um arquivo pessoal na
Biblioteca Nacional. 60f. Monografia (Graduação em Arquivologia) Escola de
Arquivologia, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,
2017. Disponível em: http://www.unirio.br/arquivologia/arquivos/monografias/ana-
cristina-de-paula. Acesso em: 1 jul 2021.
PEREIRA. Bruno. Symphony of Erotic Icons: erotismo e o corpo masculino na
fotografia de Alair Gomes. 2017. 196 f. Dissertação (mestrado) - Universidade
Estadual Paulista, Faculdade de Ciências e Letras, Assis, SP. Disponível em:
https://repositorio.unesp.br/handle/11449/150508. Acesso em: 1 jul. 2021.
PITOL, André Luís Castilho. Alair Gomes: fotografia, crítica de arte e discurso da
sexualidade. São Paulo: [s.n.], 2013.
SANTOS, Alexandre Ricardo dos Santos. A fotografia como escrita pessoal: Alair
Gomes e a Melancolia do corpo-outro. 2006. 403f. Tese. Doutorado em Artes Visuais,
com ênfase em História, Teoria e Crítica de Arte. Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Porto Alegre, 2006.
176
Introdução
Este estudo é um recorte da tese de doutorado intitulada “Revisitando o Instituto
Geobiológico La Salle através do acervo bibliográfico: preservação documental e
ressignificação da memória científica”, vinculada institucionalmente ao Programa de Pós-
graduação em Memória Social e Bens Culturais e à linha de pesquisa “Memória, Cultura
e Identidade”, da Universidade La Salle Canoas/RS. Tem como objetivo contribuir para
a salvaguarda e ressignificação da memória científica do Instituto Geobiológico La Salle,
por meio do seu acervo especial, localizado na Seção de Coleções Especiais da Biblioteca
da Universidade La Salle, possibilitando que a unidade de informação seja reconhecida
como patrimônio regional da comunidade científica e da Rede La Salle, na condição de
instituição educacional.
Considera-se que uma das principais funções das instituições de memória é a
pesquisa, a qual desempenha papel fundamental na construção do conhecimento, e, como
tal, é uma importante fonte de estudo e investigação para pesquisadores na busca de
informações e na produção de novos saberes. Partindo-se deste princípio, o artigo
circunscreve o papel do Instituto Geobiológico La Salle, uma instituição de memória que,
como será apresentado aqui, foi importante na constituição de uma cultura científica no
Rio Grande do Sul na década de 1940, mais particularmente no município de Canoas/RS.
O estudo inicia com uma discussão sobre os conceitos de memória, cultura e
patrimônio, refletindo a respeito de como se deu a formação da cultura científica na cidade
120
Doutora pelo Programa de Pós Graduação em Memória Social e Bens Culturais pela Unilasalle/Canoas.
Mestre em Patrimônio Cultural pela UFSM. Especialista em Gestão em Arquivos pela UFSM. Bibliotecária
da UFSM. Contato: [email protected]
121
Pós-doutora em Microbiologia Agrícola/Depto de Genética/UFRGS. Doutora em Genética e Biologia
Molecular/UFRGS. Mestre em Microbiologia Agrícola e do Ambiente/UFRGS. Pesquisadora do
Laboratório de Microbiologia Agrícola do Departamento de Diagnóstico e Pesquisa Agropecuária (DDPA,
ex-FEPAGRO) da SEAPDR/RS, curadora da Coleção SEMIA de Rizóbios, Coordenadora do Programa
Institucional PIBIC/PIBIT CNPq-SEAPDR, Representante legal da SEAPDR para o CNPq. Contato:
[email protected]
122
Doutora e Mestre em Ecologia e Evolução da Biodiversidade pela PUC/RS. Docente do PPG em
Memória Social e Bens Culturais, e do Mestrado em Avaliação de Impactos Ambientais da Unilasalle.
Coordenadora do Laboratório de Conservação e Manejo da Biodiversidade – LabCMBio da Unilasalle.
Editora da Revista de Ciências Ambientais - RCA. Contato: [email protected]
177
Com isso, pode-se inferir a memória como uma “construção social e espacial dos
sujeitos que residem em um determinado espaço habitado.” (GOMES, 2013, p. 5).
Por outro lado, Bosi (2004, p. 47) considera que “a memória teria uma função
prática de limitar a indeterminação (do pensamento e da ação) e de levar o sujeito a
reproduzir formas de comportamento que já deram certo.” E que a memória é “a
reserva que se dispõe da totalidade de nossas experiências”. Afirma, ainda, que “a
memória é, sim, um trabalho sobre o tempo, mas sobre o tempo vivido, conotado pela
cultura e pelo indivíduo.” (BOSI, 2003, p. 53). Partindo desse pressuposto, Leal afirma
que:
178
dão consistência a esse grupo e que servem de quadros de referência, considerado como
valores. Para o autor, os quadros sociais da memória se constituem de uma série de
elementos que estruturam uma forma de agir dentro de um determinado grupo. Neste
sentido, o IGB pode ser considerado como centro de pesquisas e práticas, naquela época,
que garantiu a continuidade do fazer científico. Seu valor como patrimônio científico
localiza-se aí, não se restringindo somente aos aspectos materiais de sua coleção.
A reflexão sobre a valorização do Instituto Geobiológico La Salle como fonte de
pesquisa no âmbito da cultura científica, na reconstrução da sua memória, busca na sua
história (tempo passado) elementos que foram relevantes e significativos à memória da
própria instituição, constituído pelo conhecimento individual e coletivo produzidos ao
longo dos anos por seus pesquisadores.
Neste contexto, considera-se o estudo do patrimônio cultural relevante, porque
possibilita analisar a trajetória de um povo, suas relações sociais e políticas, através dos
sentidos simbólicos desses lugares, dos modos de vida no espaço comunitário, suas
expressões culturais, suas relações de existência. A esse respeito, a Constituição Federal
de 1988, no artigo 216 estabelece que:
Abordagem metodológica
Com o propósito de contribuir para a salvaguarda e ressignificação da memória
científica, assim como para o processo de gestão documental, realizou-se o diagnóstico
das condições físicas e microbiológicas capazes de provocar deterioração do acervo
bibliográfico do IGB, localizado na Seção de Coleções Especiais da Biblioteca da
Universidade La Salle (Canoas/RS). Essa avaliação foi realizada buscando fundamentar
a discussão sobre a importância da preservação documental, considerada essencial à
conservação dos acervos físicos de bibliotecas e centros de documentação. Observações
e coleta de amostras in loco, por meio da utilização de instrumentos profissionais de
medição, foram realizadas entre agosto de 2017 e agosto de 2019, conforme a Figura 1.
bioaerossol cultivável não fosse alta, alguns fungos, conhecidos como potenciais
alergênicos, agentes tóxicos e oportunistas foram encontrados, constatando-se, através de
parecer técnico, o nível baixo de biodeterioração nas amostras analisadas.
A análise microbiológica do ambiente, realizada pelo Laboratório de Análises
Microbiológicas GRAM e baseada em medições pontuais, evidenciou a importância de
contraprovas em futuras medições, devido tanto ao alerta de temperatura proveniente do
relatório do laboratório GRAM, quanto ao monitoramento da umidade via termo-
higrômetro, que eventualmente ultrapassou os limites estipulados pela norma da
ANVISA.
Dentre os microrganismos presentes nos ambientes internos das bibliotecas, os
predominantes nas pesquisas foram Aspergillus, Cladosporium, Alternaria e Penicillium,
confirmando que os ambientes e materiais de bibliotecas abrigam fungos de vários
gêneros, inclusive em altas concentrações. As fontes podem ser humanas, através dos
funcionários e usuários de bibliotecas; objetos, tais como livros, revistas, jornais ou em
equipamentos, assim como os sistemas de ventilação associados ao ar condicionado,
ventiladores, etc. Tudo isso impacta na conservação do papel, podendo também causar
efeitos adversos à saúde humana.
Considerações finais
Neste trabalho, buscou-se refletir sobre a memória científica do IGB, vinculado à
Universidade La Salle Canoas, e sua importância na transmissão de práticas científicas
próprias às áreas de Geografia e Biologia. Para tanto, partiu-se de uma pesquisa
fundamentada em revisão bibliográfica, tomando por orientação os conceitos de memória,
cultura e patrimônio cultural. Com base no conteúdo da pesquisa e nos conceitos
norteadores, entende-se que o IGB pode operar como elo de um sistema de relações, o
qual pode estruturar a continuidade da transmissão dos saberes e fazeres científicos dos
pesquisadores nas áreas acima citadas. O valor de patrimônio científico do IGB não se
restringe às suas coleções, mas também diz respeito ao conhecimento científico que é a
informação e o saber que parte do princípio das análises dos fatos reais e cientificamente
comprovados.
Por outro lado, vivencia-se, nas instituições, a dificuldade na localização dos
documentos nos acervos por alguns motivos como extravio, dispersão, furto, etc., e, como
consequência, perda do conhecimento e da memória institucional. Atualmente, as
instituições de fomento vêm dando especial apoio à preservação da memória científica e
187
Referências
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo:
Ateliê, 2003.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 12. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
BRASIL. AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA. ANVISA.
Resolução Nº 9, de 16 de Janeiro de 2003. Orientação técnica elaborada por grupo
técnico assessor sobre padrões referenciais de qualidade do ar interior em ambientes
climatizados artificialmente de uso público e coletivo. Diário Oficial da União,
Brasília, DF, 20 jan. 2003. Seção 1, p. 35. Disponível em:
https://www.saude.mg.gov.br/images/documentos/RES_RE_09.pdf. Acesso em: 04 jun.
2018.
BRASIL. Constituição (1988). Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso
em: 12 out. 2017.
CENTRO UNIVERSITÁRIO LA SALLE. Relatório de gestão: 1999 a 2005. Canoas,
RS: Salles, 2006.
COMPAGNONI, Ivo Carlos. História dos irmãos lassalistas no Brasil. Canoas, RS:
La Salle, 1980. 496 p. (Coleção religiosos no Brasil; 5).
CONSELHO NACIONAL DE ARQUIVOS (CONARQ). Recomendações para a
produção e o armazenamento de documentos de arquivo. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2005. Disponível em:
http://conarq.gov.br/images/publicacoes_textos/recomendaes_para_a_produo.pdf.
Acesso em: 14 abr. 2020.
CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO CIENTÍFICO E
TECNOLÓGICO - CNPQ. Uma proposta de política nacional de memória científica
e da tecnologia da Comissão Especial constituída pela Portaria 116/2003 do
Presidente do CNPq em 04 de julho de 2003. Brasília: CNPq, 2003. Disponível em:
http://centrodememoria.cnpq.br/politicadememoria.pdf. Acesso em: 12 out. 2017.
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru, Edusc, 2012.
GOMES, Marcos Aurélio, OLIVEIRA Jr., José, ARAÚJO, Nelma Camelo. Memória:
construção social, lugares e competência. In: CONFERÊNCIA SOBRE
TECNOLOGIA, CULTURA E MEMÓRIA, 2013. Disponível em:
http://www.liber.ufpe.br/ctcm2013/anais/files/2b.M_CSLC.pdf. Acesso em: 21 nov.
2017.
GONDAR, Jô. Cinco proposições sobre memória social. Revista Morpheus: estudos
interdisciplinares em Memória Social. Rio de Janeiro: Híbrida, edição especial, v. 9, n.
15. 2016. Disponível em: http://www.memoriasocial.pro.br/painel/pdf/publ_19.pdf.
Acesso em: 14 jul. 2017. p. 19-40.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1990.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Centauro, 2006.
INCOTERM. Termo-higrômetro: temperatura interna/externa: manual de instruções.
2018. Disponível em: https://www.incoterm.com.br/media/2009/12/7663-02-0-00-
manual.pdf. Acesso em: 20 ago. 2018.
189
Introdução
123
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Faculdade de Educação (FaE) da
Universidade Federal de Pelotas (UFPel) e Mestra em Educação pelo mesmo programa. Graduada em
Pedagogia pela Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Pesquisadora
integrante do centro de memória e pesquisa Hisales. Professora dos anos iniciais da rede municipal de
Pelotas. E-mail: [email protected]
124
Professora do Departamento de Ensino da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-graduação em
Educação da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Vice-líder do grupo de pesquisa Hisales e
coordenadora do centro de memória e pesquisa Hisales. Doutora e Mestra em Educação pela Universidade
Federal de Pelotas, Especialista em Alfabetização e Letramento (UFPEL), Pedagoga (UFPEL). E-mail:
[email protected]
125
Está localizado no Campus II – UFPel, Rua Almirante Barroso, 1202 - Sala 101 H, CEP 96.010-280 -
Pelotas/RS. É coordenado pelas Prof.ª Dr.ª Eliane Peres, Prof.ª Dr.ª Vania Grim Thies e Prof.ª Dr.ª Chris
Azevedo Ramil. Mais informações sobre os acervos, ações de ensino, pesquisa e Instagram:
@hisales.ufpel) e E-mail: [email protected].
191
Pelo exposto pela autora, se pode ter a dimensão do trabalho que o centro vem
desenvolvendo e aprimorando ao longo dos anos, caracterizado como um arquivo
especializado nas temáticas mencionadas. O Hisales contempla três grandes eixos de
organização de acervos e pesquisas, quais sejam: 1) História da alfabetização e da
escolarização; 2) Práticas escolares e não escolares de leitura e escrita e 3) Conteúdo,
visualidade e materialidade em livros didáticos, impressos pedagógicos e materiais
escolares (eixo 3).
A composição dos acervos relativos aos três eixos é ampla e diversificada, reúne
uma série de materiais e objetos que oferecem margem a realização de estudos e pesquisas
científicas, dentre os quais pode-se destacar os acervos: de cadernos de alunos (2116), os
cadernos de planejamentos (281), os livros para o ensino da leitura e da escrita (1255),
livros didáticos produzidos no Rio Grande do Sul (392), materiais didáticos pedagógicos
e escritas pessoais e familiares (686).
É compromisso e política do centro de memória e pesquisa desenvolver ações de
busca, salvaguarda e valorização dos objetos e artefatos escolares, em especial aqueles
relacionados à escolarização primária, visando, principalmente, contribuir com as
investigações no campo educacional (PERES; RAMIL, 2015) contribuindo com a
organização do patrimônio histórico educativo.
Neste sentido, a possibilidade de realizar uma pesquisa que contemple esses
materiais é amparada na perspectiva da História Cultural (CHARTIER, 2002) que dentre
os múltiplos aspectos teóricos e conceituais privilegiou a ampliação das fontes a serem
considerados nos estudos históricos, o investimento nas reflexões sobre as práticas
culturais, ampliando as relações de diálogo entre as diferentes áreas do conhecimento e
os campos de investigação.
192
Pela perspectiva da ampliação das fontes e pelo movimento descrito acima, pelo
autor, tem reflexo e respaldo a dinâmica de investimento em constituir e organizar de
espaços que contemplem a salvaguarda desses objetos, aqui exemplificado pelas
atividades desenvolvidas no centro de memória e pesquisa e consolidadas pela ampliação
do espaço, dos acervos e das pesquisas desenvolvidas.
126
É um tipo de papel de revestimento transparente com cola autoadesiva no verso e que gruda em
praticamente todas as superfícies, utilizado para encapar e/ou envelopar materiais diversos.
195
Fonte: Fonte: Centro de memória e pesquisa Hisales – Acervo fotográfico das autoras.
Considerações finais
A coletânea de materiais doada pela professora para o centro de memória e
pesquisa Hisales é de grande valia para a constituição do patrimônio histórico educativo.
Os materiais permitem as pesquisadoras adentrar ao contexto escolar sob outras prismas
de análises, e exigem outras formas metodológicas de ação e a elaboração de
procedimentos que possam contemplar a diversidade material produzida na e pela relação
de professores e alunos.
Consolida a necessidade de criar espaços com esse potencial de salvaguarda de
acervos específicos dos contextos escolares, pois se acredita que por meio destes é
possível escrever e refletir sobre as práticas escolares, bem como, reforça que as
iniciativas para manter esse tipo de acervo ainda é um desafio, exigindo trabalho árduo e
políticas públicas de investimento e manutenção desses espaços. Além disso, exige que
se mobilize pesquisas que contemplem esses materiais ampliando o processo de produção
do conhecimento científico e histórico-cultural.
Os aspectos relativos aos processos de higienização, catalogação e
acondicionamento, que compõem as primeiras ações de tratamento aplicadas aos
materiais doados ao centro e descritos aqui refletem sobre a materialidade de determinado
conjunto, qual seja, a coletânea de materiais didáticos produzidos de forma artesanal por
uma professora primária ao longo de sua trajetória docente. Esses procedimentos
configuram parte do processo metodológico da pesquisa que está em desenvolvimento,
pois por meio deles ocorreu a aproximação com esse acervo potencial e pelo qual se
verificou as possibilidades de utilização deste patrimônio educativo na constituição do
trabalho.
Por fim, entende-se que valorização dos artefatos materiais que compõem a
história da escola contribuem para investigar a prática cultural de produção de materiais
e os modos empíricos da cultura da escola (Escolano Benito, 2017) destacando a ação da
professora em produzir essa multiplicidade de materiais para subsidiar a sua ação e prática
pedagógica, conservá-los e posteriormente doá-los, caracterizando-os como patrimônio
educativo, para fins de pesquisa científica, afinal eles narram a história e guardam a
memória da escola.
Referências
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução de
Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difusão Editorial, 1988.
198
Introdução
Um pedaço de papel que foi rasgado do canto de uma folha qualquer, com algumas
anotações escritas. Muitas vezes, trabalhando com acervos pessoais, deparamo-nos com
essas notas rabiscadas com algumas notas rabiscadas. Ele não possui o formato físico de
um “documento”, muito menos apresenta a estrutura formal de uma prova jurídica. Qual
o significado (se é que existe) daquele fragmento? Como isso poderia ser classificado?
Deve ser mantido? Descartado?
Alguns “fragmentos de material arquivístico” levam-nos a questionar o conceito
de documento constituído pela ciência arquivística, já que nele se dão “poucas das
convenções formais de estrutura de um documento ou as prerrogativas relacionadas a
atividades, provas ou à memória associadas a um documento” (HOBBS, 2016, p. 321).
Nesse sentido, na “contramão” do pensamento arquivístico, tivemos como ponto
de partida de nossas discussões um fragmento, em vez do conjunto. Nossas indagações
foram surgindo, à medida que nos deparávamos com itens do acervo íamos, entendíamos
que seria possível contribuir com o conhecimento, abordando de maneira ampla algumas
características dos acervos pessoais, para além das individualidades. O presente texto é o
resultado das reflexões de seus autores, que se acercaram aos acervos de Balem, Spalding
e Borges Fortes tendo-os como objeto de análise.
Esse tipo de documento – um pedaço de papel com anotações –, comumente, faz
parte de acervos pessoais. Durante décadas, os conjuntos documentais de cunho pessoal
127
Mestre em História (Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo).
Especialista em História Contemporânea (FAPA). Graduada em História e Arquivologia (UFRGS). Integra
a Rede de Pesquisa em Acervos e Patrimônio Cultural (REPAC/PPGH/UPF). Arquivista no Museu de Porto
Alegre Joaquim Felizardo (MJJF/SMC/PMPA).
128
Doutorando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo.
Bolsista Capes. Mestre e Licenciado em História pela mesma Instituição. Membro da Rede de Pesquisa em
Acervos e Patrimônio Cultural (REPAC).
129
Mestranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade de Passo Fundo.
Bolsista Capes. Especialista em Gestão em Arquivos (UFSM), Bacharel em Arquivologia (UFRGS),
Bacharel e Licenciada em História (PUCRS). Coordena o Grupo de Estudos Paleografia na Prática, do
Arquivo Histórico Regional (PPGH/UPF). Membro da Rede de Pesquisa em Acervos e Patrimônio Cultural
(REPAC) e participa do Grupo de Pesquisa e Discussão do Laboratório de Estudos das Crenças (LEC).
Arquivista e historiógrafa no Arquivo Histórico da Cúria Metropolitana de Porto Alegre (AHCMPA).
200
foram tratados como coleções, como afirmam Britto e Corradi (2017, p. 150-151), não
recebendo status de arquivo, que não fossem de políticos eminentes ou de “heróis”
reconhecidos. Posteriormente, acervos de políticos eminentes ou de “heróis”
reconhecidos passaram a ser tratados como arquivos, entretanto o enfoque dado a esses
conjuntos documentais “eram os mesmos dados aos arquivos institucionais sem levar em
consideração as suas peculiaridades” (BRITTO; CORRADI, 2017, p.151). Essa é apenas
uma das questões que fazem com que o processamento técnico arquivístico dos acervos
pessoais represente diferentes desafios e conduza a relevantes reflexões.
As mudanças historiográficas ocorridas a partir da Escola dos Annales e da
chamada “Nova História” proporcionaram a ampliação do conceito de documento, assim
como o reconhecimento da necessidade das relações interdisciplinares para abordá-lo.
Tendo em vista a crescente necessidade de estudos que busquem compreender a
“trajetória dos acervos”, nossa proposta é analisar alguns aspectos que entendemos serem
essenciais, quando pensamos em arquivos pessoais.
A partir do cruzamento de experiências em três acervos institucionalizados –
Gabriel Borges Fortes, João Maria Balem e Walter Spalding – colocamos as seguintes
questões: como compreender a relação entre a motivação de se manter o arquivo e a
intenção em se produzir o arquivo por parte de seu titular? De que forma serão conhecidos
os sentidos dos itens que formam o acervo? Como lidar com a fragmentação e a dispersão
de um acervo, ocorrência tão frequente em arquivos pessoais?
Entendendo que o processo de organização dos arquivos, não só por parte de seus
titulares e herdeiros, mas também por profissionais após a institucionalização, podem
ocultar ou revelar o dinamismo e as possibilidades que neles se encerra, consideramos
que a análise da biografia do indivíduo, ou seja, compreendê-lo além de uma cronologia,
buscando informações que possam oferecer “uma visão sincrônica de suas funções,
atividades e interesses ao longo do tempo”, como define Goulart (2017, p. 4), seja um
mecanismo capaz de potencializar o acervo.
Nesse contexto, os acervos pessoais despontaram cada vez mais como objetos,
temas e fontes de pesquisa, gerando grandes desafios aos arquivistas que, cada vez mais,
necessitavam contar com seu saber atravessado por outros, como a história, a sociologia,
a antropologia, para citar alguns.
A organicidade é fator determinante quando abordamos arquivisticamente os
acervos. Definida como a relação natural entre documentos de um arquivo, se dá em
decorrência das atividades da entidade produtora, refletindo as funções e as atividades do
titular (pessoa ou instituição). No entanto, preconiza Cunha (2004, p. 292-293), nos
arquivos – estendendo aos acervos aqui analisados – representar essa organicidade
“natural” é difícil, já que há “camadas de interpretação intransponíveis e contaminadas”,
muitas vezes, afirma Heymann, por terem sido produtos “da ação de outros agentes, além
do titular, tais como secretárias e familiares” (2009, s/p).
Para compreender as funções e atividades do titular, que incidirão na formação
particular de seus acervos, é fundamental analisar o indivíduo produtor, seu papel social,
informações sobre os grupos e a sociedade em que viveu (BRITTO; CORRADI, 2017, p.
158). O ponto chave para acessar as características e particularidades do conjunto
documental, assim como os sentidos imbricados e ocultos dos itens que o compõem,
reside no conhecimento do contexto de produção e das escolhas de seu produtor. Tal como
afirma Heymann (1997, p. 46-47), os critérios que norteiam o processo de acumulação
dos acervos estão condicionados pela situação vivida pelo titular e foram “demarcados
pela posição social relativa ocupada pelo indivíduo”.
À medida que os interesses, projetos, motivações e intenções do titular são
reconhecidos, os itens do acervo parecem ganhar vida e ampliar o sentido, tanto do item,
quanto do conjunto documental.
Hobbs nos propõe considerar que ao trabalhar esses acervos devemos também
levar em conta que mais do que refletir ou provar a experiência dos titulares, a
documentação estaria ligada e seria parte da experiência de seus criadores, e com isso
chegar “a um sentido mais completo e holístico de como e porque se criam e preservam
documentos” (2016, p. 322). Nesse sentido, a ideia é que se dirija o foco aos contextos
pessoais, o que nos permitiria “complementar outras visões de formação de arquivos
baseadas em provas e informações, além de permitirmos que a sutil e mutável relação
entre as pessoas e seus arquivos, e entre esses arquivos e a vida humana, torne-se central”.
(HOBBS, 2016, p. 323).
202
Mons. Balem, Walter Spalding e Gabriel Borges Fortes: para além da dispersão
João Maria Balem foi sacerdote do clero secular da Arquidiocese de Porto Alegre.
Filho de imigrantes italianos de Caxias do Sul, após iniciar os estudos no Seminário de
Porto Alegre, seguiu para Roma (1908), onde graduou-se em Direito Canônico e foi
ordenado.
De volta a Porto Alegre, foi secretário particular do arcebispo Dom João Becker,
construiu a igreja N. Sra. da Glória (1916) e, entre 1919 a 1950 foi cura da Catedral e
promotor contumaz da construção do novo templo, nomeado diretor das Obras da Nova
Catedral. Em 1927 recebeu o título de “Monsenhor”.
A partir de 1950, com o novo governo arquidiocesano de Dom Vicente Scherer,
deixou o cargo de diretor das Obras e foi nomeado “historiador eclesiástico”, o que lhe
rendeu, na mesma época, o convite para ser membro do Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande Sul (IHGRGS). Até falecer acumulou publicações em jornais, escritos,
pesquisas e diversos materiais relacionados à história da igreja católica, sobretudo a nível
regional; foi capelão de irmandades e conventos, exerceu funções no Tribunal
Eclesiástico e viu de longe a Catedral sendo erguida. Suas “paixões confessas” foram a
Catedral, a terra natal (Caxias do Sul) e o IHGRGS, para onde doou sua biblioteca. O
203
Nasceu em Arroio dos Ratos (RS) e estudou no Instituto São José de Canoas.
Entre 1920 a 1932 trabalhou como comerciário. Em 1932 tornou-se membro do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande Sul (IHGRGS), instituição da qual seria secretário
em substituição a Eduardo Duarte, a partir de 1939.
Sua carreira “intelectual”, integrada à profissional, teve início ao incorporar-se à
comissão cultural dos festejos farroupilhas (1935-1936). De 1937 a 1963 atuou na
Prefeitura Municipal de Porto Alegre, vinculado à Diretoria de Arquivo e Biblioteca (mais
tarde Serviço de Documentação), onde, a partir de 1940, passou a exercer o cargo de
diretor. Editou também o Boletim Municipal entre 1939 e 1947, publicação que divulgava
os atos do governo municipal, além de artigos sobre o estado e a cidade, bem como a
transcrição de documentos históricos, constantes no arquivo municipal.
Sobre seu acervo pessoal, sabemos que em 1967 doou uma parte (cinco pacotes
de correspondência) ao IHGRGS, com uma cláusula que previa a abertura 10 anos após
seu falecimento. Após seu falecimento, parte de seu acervo bibliográfico (2.771 volumes)
foi destinada à constituição da Biblioteca Walter Spalding de Cultura Popular. Em 1986,
a correspondência foi aberta e em 1995 sua bisneta doa 609 itens ao Arquivo Histórico
Municipal de Caxias do Sul.
Num estudo preliminar, percebemos em sua biografia a relação constante com
documentos e acervos. Em seu trabalho, na Diretoria de Arquivo e Biblioteca, e mais
tarde no Serviço de Documentação, era responsável pela seleção, organização e
divulgação do acervo desses órgãos. Labor na qual podemos perceber que houve
momentos de valorização e também muitos embates e negociações com a administração
pública. Também como secretário do IHGRGS teve a seu cargo, ao menos em parte, a
documentação da entidade. Em seu trabalho de escritor e historiador esses documentos
eram também a fonte de suas pesquisas.
Aprofundar o estudo da biografia de Spalding, especialmente a relação com todos
esses acervos pode nos ajudar a compreender tanto o seu legado documental pessoal,
como o das instituições pelas quais passou.
Considerações finais
O processo de acumulação dos acervos, assim como o sentido dos itens que os
compõem, deve ser calcado na trajetória do titular. Ao apresentar nossa proposta a partir
dos acervos de mons. Balem, Walter Spalding e Gabriel Borges Fortes, pretendemos
evidenciar que a mesma abordagem revelará as idiossincrasias, diferenciando os
titulares.
Figuramos a possibilidade da existência de algum projeto de acumulação por parte
do titular, como atenta Heymann (1997, p. 48). A complexidade da discussão não nos
permite aprofundar o debate neste espaço, mas entendemos que a própria compreensão
da constituição intencional do acervo deve ser considerada à luz da biografia do titular.
E aquele canto de papel rasgado mencionado no início? Faz parte do acervo do
mons. Balem. Seu significado foi compreendido muito além de sua forma física, pois ao
se cotejar a documentação do acervo com o envolvimento do titular com a construção da
Catedral Metropolitana de Porto Alegre, descobrimos que o pedaço de papel anotado,
quase um bilhete sem muito sentido, desvendava a inspiração artística das famosas
carrancas da Catedral.
206
Referências
BRITTO, Augusto César Luiz; CORRADI, Analaura. Considerações teóricas e
conceituais sobre arquivos pessoais. Ponto de Acesso, Salvador, v. 11, n. 3, p. 148-169,
dez. 2017.
CAMPOS, Vanessa Gomes de. Arquivos Pessoais: Sujeito, Contexto e Organicidade...
In: Anais do 7º Seminário Regional de Arquivos: Fontes de pesquisa em ambiente
digital. Anais... Santa Maria (RS) Online, 2020. Disponível em:
https//www.even3.com.br/anais/aars7sra/326766-arquivos-pessoais---sujeito-contexto-
e-organicidade. Acesso em: 22/06/2021.
CUNHA, Olivia Maria Gomes da. Tempo imperfeito: uma etnografia do arquivo.
Mana, vol. 10, n.2, Rio de Janeiro, out. 2004, p. 287-322.
GOULART, Silvana. Arquivos pessoais de homens públicos em abordagens diversas.
Revista do Arquivo, Arquivo Público do Estado de São Paulo, n. 4, 2017. Disponível
em: http://www.arquivoestado.sp.gov.br/revista_do_arquivo/04/artigo_03.php
HEYMANN, Luciana Q. Indivíduo, memória e resíduo histórico: uma reflexão sobre
arquivos pessoais e o caso Filinto Müller. Estudos Históricos, n. 19, 1997, p. 41-66.
HEYMANN, Luciana Q. Estratégias de legitimação e institucionalização de
patrimônios históricos e culturais: o lugar dos documentos. In: Reunião de
Antropologia do Mercosul, 8, 2009, Buenos Aires. Processos de patrimonialização da
cultura no mundo contemporâneo. Buenos Aires, 2009, GT 33.
HOBBS, Catherine. Vislumbrando o pessoal: reconstruindo traços de vida individual.
In: EASTWOOD, Terry e MACNEIL, Heather (Orgs). Correntes atuais do
pensamento arquivístico. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2016, p. 303-341.
MARTINS, Jefferson Teles. O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Sul e o espaço social dos intelectuais: trajetória institucional e estudos das redes de
solidariedade (e conflitos) entre os intelectuais (1920-1956). Tese de Doutorado
(Programa de Pós-Graduação em História). PUCRS, 2015.
MOLINA, Talita dos Santos. O acervo documental de Clóvis Steiger de Assis Moura
(1925-2003). Escritas do Tempo, v. 1, n. 2, jul-out/2019, p. 5-24.
ROSA, Maria de Lurdes (Org.). Arquivos de família, sécs. XIII-XX: que presente, que
futuro? Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 2012.
207
Introdução
Antônio Cândido considerava que o estudo de acervos, principalmente das
bibliotecas particulares serve para trazer a lume a história intelectual ou a formação das
mentalidades de um determinado momento histórico. Para ele, o avanço da cultura de um
indivíduo se afere pelos livros que ele leu e, através deste, é possível identificar a história
intelectual de uma época, posto que “[...] a formação de uma biblioteca equivale
geralmente à superposição de camadas de interesse que refletem a época através da
pessoa” (CÂNDIDO, 1996, p. 266).
O estudo de acervos pessoais permite ao historiador novas possibilidades de
pesquisa por trazer à baila outras fontes, outros atores e principalmente outros objetos.
Essa diversificação de objeto de estudo foi trazida à historiografia pelo concurso da
Escola de Annales e da Nova Historia, a partir dos anos 1970, ao erigir culturas de
pesquisas inovadoras (LE GOFF; NORAT, 1976).
O artigo em tela se propõe a resgatar traços biográficos da professora e jurista
paraense Maria Annunciada Ramos Chaves, a partir de seu arquivo pessoal. A intelectual
estudada nasceu em Belém do Pará, em 1915, e foi uma das primeiras paraenses a obter
nível superior, desenvolvendo atividades eruditas, que para época (por volta dos anos
1930 a 1970) eram desempenhadas mais por homens, tais como: participar sociedades
letradas; fundar instituições de ensino; fomentar a produção de livros e revistas
cientificas, etc.
Analisando a documentação existente no espólio de Annunciada do Memorial do
Livro Moronguêtá é possível pensar que investigar a vida de Annunciada Chaves é a
possibilidade de ter contato com mudanças históricas do Estado do Pará e o seu sistema
de educacional, com o diferencial que Annunciada Chaves nos fornece uma visão sobre
o ensino particular. Esse acervo é composto, sobretudo, por documentos que demonstram
130
Doutoranda em História Social da Amazônia – PPHIST/UFPA. Mestre em Educação – PPGED/UFPA.
Bacharela em Biblioteconomia – FABIB/UFPA. Bibliotecária da Seção de Obras Raras da Biblioteca
Central da UFPA. Membro do Grupo de Pesquisa Patrimônio Bibliográfico e Documental (UFBA).
Bibliotecária do Memorial do Livro Moronguêtá da UFPA. Contato: [email protected]
208
Problema da pesquisa
Esse excerto biográfico de Annunciada Chaves supracitado nos suscita a consultar
seu acervo pessoal. Entrementes, ressalta-se que não é possível consultar o acervo
particular em sua totalidade, porque após sua morte ocorrida em 16 de agosto de 2006
(BECKMANN, 2006), houve a venda de sua casa e venda de seus bens. A profa.
Annunciada Chaves era celibatária e não deixou descendentes. Ela teve três irmãs que
faleceram antes dela, com isso a Profa. Annunciada conferiu a Wilma Lobato, sua vizinha
e amiga, a responsabilidade de administrar seus bens (BESSA, 2007).
A inventariante optou por vender a casa da professora. O dia do despejo chegou;
e, a sua biblioteca que perfazia mais de 20.000 volumes (DAMASO, 1997), juntamente
com seus escritos, diplomas, cartas e demais documentos que foram postos em via
pública. Para evitar que eminente acervo fosse dilapidado, alguns de seus amigos de
recolheram o máximo de seus pertences que puderam, e se comprometeram a reuni-los
futuramente em um espaço que ficasse disponível a consulta de pesquisadores (NASSAR,
2017). Foi neste contexto que nasceu o Memorial do Livro Moronguêtá (MLM)131, um
projeto pertencente à Universidade Federal do Pará (UFPA), que se dedica a recolher e
disponibilizar para a pesquisa o acervo pessoal de eminentes intelectuais que nasceram
no Pará ou que ajudaram a desenvolver o setor cultural paraoara.
Ressalta-se que a autora deste artigo é bibliotecária voluntária no MLM, e
trabalhou na organização do acervo pessoal dessa intelectual, o que demandou o estudo
de sua vida e de sua obra, para melhor compreender e organizar seu acervo. Essa lida
diária com a massa documental desta eminente intelectual paraense motivou a autora
deste artigo a redigir sua tese intitulada: O Itinerário intelectual da Profa. Maria
Annunciada Ramos Chaves (1915-2006) a ser defendida no Programa de Pós-Graduação
em História Social da Amazônia da Universidade Federal do Pará, sob a orientação da
Profa. Dra. Maria de Nazaré Sarges.
131
Para obter mais informações sobre o Projeto Memorial do Livro Moronguêtá, consulte a URL:
http://moronguetaufpa.blogspot.com.br/.
209
Metodologia
Com o intento de tornar esse estudo exequível procedeu-se uma pesquisa do tipo
descritiva e exploratória. Considera-se também um estudo de cunho documental, porque
se propõe a analisar: os recortes de jornal colecionados pela profa. Anunciada Chaves;
bem como apresenta cunho bibliográfico por buscar aporte teórico os estudos de:
Azevedo (2021), Santos (2018), Cox (2017); Travancas; Rouchou; Heymann (2013);
Farge (2009), Vidal (2007), Gomes (2004), Artiéres (1998) e Ducrot (1998).
O Acervo pessoal de Annunciada possui diferentes tipos documentais, dentre os
principais temos: livros, periódicos (e recorte de jornal), catálogos e cadernos com
anotações manuscritas, fotografias, cópias de leis, atas de reunião, programas de peças
teatrais e cartões postais.
Apesar da vasta diversidade de materiais bibliográficos que compõem o Acervo
da Profa. Annunciada Chaves para os propósitos deste artigo, optou-se por analisar
somente os recortes de jornais que foram selecionados e colados pela Profa. Annunciada
Chaves, em alguns cadernos de capa dura compostos por folhas de papel sem pauta. Esses
recortes versavam sobre fatos da sua vida, principalmente sobre a sua vida profissional.
A fim de fazer um estudo mais minucioso destes cadernos foi feito um inventário
destes recortes, identificando: 1) o título do artigo, ou nota; 2) o periódico onde foi
publicado, 3) a data de publicação; 4) o assunto sobre qual versava o artigo; e 5) o número
do caderno onde o recorte estava armazenado.
Resultados
A professora Annunciada Chaves, foi uma intelectual muito respeitada no Pará e
sempre era lembrada por seu vasto background cultural, ela era uma contumaz
compradora de livros e afirmava ter cerca de 20.000 mil livros (DAMASO, [1997], p. 3).
No entanto, devido ao episódio fatídico exposto na seção Problema da pesquisa deste
artigo, o MLM só possui 6.306 itens. A Imagem 1 exibe os dados quantitativos desse
montante distribuído por tipologia documental.
210
Imagem 2 – Caderno 1 e Caderno 2 em que a Profa. Annunciada Chaves colava seus recortes
de Jornal.
Imagem 3 – Temática dos recortes de jornal armazenados nos dois cadernos colecionados pela
Profa. Annunciada Chaves.
bruscamente, sem qualquer satisfação. Depois descobrimos que o motivo da demissão era
político. O governador queria dar posse ao professor Artur Napoleão Figueiredo, que era
baratista como ele. Eu ao contrário, achava que o Magalhães Barata132 era um politico
prepotente e ditatorial” (CHAVES apud DAMASO, [1997], p. 5).
Ademais, a Profa. Annunciada não integrava a “Legião Feminina Magalhães
Barata”133, e apesar de não manifestar apoio a seus opositores. A neutralidade de
Annunciada irritava, o então governador Luís de Moura Carvalho134, apoiador do ex-
governador Joaquim Magalhães Barata, e, como naquele período prevalecia o lema: “se
você não me apoia está contra mim”; essa abstenção redundou em seu afastamento da
sala de aula. A imprensa local saiu em defesa de Annunciada Chaves e fez uma cobertura
jornalística ostensiva do caso. Como pode ser visualizada na Imagem 4.
132
Joaquim de Magalhães Cardoso Barata (1888-1959), foi um político paraense. Foi nomeado pelo
Presidente da República Getúlio Vargas como interventor federal no Pará, no período de 12 de novembro
de 1930 a 12 de abril de 1935. (FCP, 2021).
133
Grupo de mulheres que se mobilizava para auxiliar nas campanhas eleitorais do Tenente Magalhães
Barata, tendo na professora Francisca do Céu Ribeiro de Sousa (1898-1993), uma de suas fundadoras
(CENTRO DE MEMÓRIA MULHERES DO BRASIL E PESQUISA, 2017). Ver: CENTRO DE
MEMÓRIA MULHERES DO BRASIL E PESQUISA. Francisca do Céu Ribeiro de Sousa (1898-1993).
Mulheres 500 anos por trás dos panos. 2017. Disponível em:
http://www.mulher500.org.br/category/biografia/page/64/. Acesso em:14.05.2020.
134
Luís de Moura Carvalho, politico paraense pertencente a legenda do Partido Social Democrático (PSD),
governou o Estado do Pará, no período de 11 de março de 1947 a 29 de junho de 1950. Moura Carvalho foi
eleito em sufrágio universal, porém abdicou do cargo a fim de pleitear uma vaga no Senado Federal.
213
Ao fazer a hemeroteca com noticias sobre a sua vida, nos denota a impressão de
que Annunciada procedia uma espécie de escrita de si, com vistas de se eternizar por meio
daqueles recortes.
Considerações finais
O ato de colecionar documentos é uma atividade precípua a qualquer ser humano,
entretanto, o uso que será feito desses documentos que amealhamos ao longo da vida, irá
depender do modo como tratamos as pessoas e da destinação que nossos descendentes ou
representantes legais farão de nossas “coleções”.
Em um mundo com grandes mudanças tecnológicas e vultosas informações, a
guarda e conservação de acervos que pertenceram a eminentes intelectuais vem se
tornando cada vez mais complicadas, não só pelas carências de local de armazenamento,
mas principalmente pelo modo como esses acervos chegam as instituições de ensino e
pesquisa. O caso do Acervo da Professora Annunciada Chaves, ilustra muito bem essa
assertiva, posto que o acervo integral da professora teve destinação imerecida após a sua
morte; se não fosse o esforço de seus amigos que se empenharam na recolha e criação de
um espaço cultural para que o material bibliográfico fosse salvaguardado, mesmo que só
tenha sido possível, recuperar parte da portentosa coleção que a Professora Annunciada
Chaves reuniu ao longo de sua trajetória existencial quase centenária.
216
Referências
ARTIÉRES, Philippe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos. Rio de Janeiro,
FGV, v. 11, n. 21, p. 9-34, 1998.
217
Introdução
Em 26 de outubro de 2018, mediante assinatura do 1º Termo Aditivo ao Convênio
de Cooperação Técnica nº 021/2017, o Tribunal de Justiça do Estado do Pará (TJPA),
cedeu a Universidade Federal do Pará – Campus Universitário de Bragança (UFPA-
Campus de Bragança), a custódia de todo o acervo arquivístico produzido e reunido pela
Comarca de Bragança – PA durante o regime ditatorial civil-militar (1964-1985).
Destarte, pela diversidade e singularidade das informações registradas, o acesso e
a difusão desse conjunto documental são de extrema relevância para a história e a
memória da ditadura civil- militar na Amazônia. Porém, demandam cautela e
responsabilidade, pois, devido a tipologia e temporalidade dos documentos, abundam em
suas páginas dados ou informações pessoais, cuja divulgação indiscriminada e incauta,
pode ferir o princípio da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da
imagem de muitos indivíduos.
De acordo com a Lei de Acesso à Informação - LAI (Lei 12.527/2011) e a Lei
Geral de Proteção de Dados Pessoais- LGPD (Lei 13.709/2018), informações pessoais ou
dados pessoais são: “informações relacionadas a pessoa natural identificada ou
identificável;” (BRASIL, 2011; 2018).
Longe de ser uma particularidade deste acervo, a elaboração de um protocolo de
acesso que seja capaz de conciliar, de maneira satisfatória, o direito à informação e o
direito à privacidade, é uma problemática comum às instituições que custodiam, em
caráter permanente, documentos produzidos pelo Estado, que registrem dados ou
informações pessoais. Isto se dá porque em diversas ocasiões, especialmente, no que
tange a publicização dos arquivos oriundos do último regime de exceção, estes direitos
135
Mestrando pelo Programa de Pós- graduação em Ciências do Patrimônio Cultural, do Instituto de
Tecnologia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Graduado em História pela UFPA – Campus
Universitário de Bragança-PA. Integra a Rede de Pesquisa em Acervos e Patrimônio Cultural (Repac).
Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas Interculturais Pará- Maranhão (GEIPAM-UFPA) e do Grupo de
Pesquisa Arte, Corpo e Conhecimento (UFPA). Atua, desde 2017, junto ao Projeto Preservação
Documental e Organização dos Arquivos Históricos das Comarcas de Bragança e Ourém no Nordeste do
Pará (PRODOC). Contato: [email protected]
219
honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou
moral decorrente de sua violação.” (BRASIL, 1988).
Não obstante, a LAI, no art. 31, versa sobre o tratamento de informações pessoais.
Contudo, isto se dá de maneira bastante sintética: “O tratamento das informações pessoais
deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e
imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais” (BRASIL, 2011).
O marco legal firma no inciso I, que o acesso a tais informações fica restrito pelo prazo
máximo de 100 anos, a contar da sua data de produção, enquanto que no inciso II, estipula
possibilidades de que sejam divulgadas ou acessadas por terceiros, mediante previsão
legal ou consentimento expresso do titular (BRASIL, 2011).
A LGPD, por seu turno, apresenta o tema pormenorizadamente, discorrendo, entre
outros pontos, sobre os requisitos para o tratamento de dados pessoais, os direitos do
titular, a transferência internacional de dados pessoais, os agentes envolvidos no
tratamento de dados pessoais e as sanções administrativas aplicáveis em casos de
infrações.
Em vigor desde setembro de 2020, essa lei agrega novos elementos ao debate
sobre o direito à privacidade, no que se refere ao tratamento, acesso e difusão de
documentos arquivísticos que registram dados ou informações pessoais e que foram
destinados à preservação permanente.
Isto porque, conforme afiança Heather MacNeil (2019), as preocupações
modernas a respeito da privacidade, caracterizam-se pela centralidade com que abordam
o sigilo “ou à quantidade de informações conhecidas sobre um indivíduo, que surgiram
em resposta a situações criadas por práticas de coleta de informações ignoradas nas
interpretações tradicionais de invasão de privacidade.” (MACNEIL, 2019, p. 43). Neste
ângulo, as diversas legislações gestadas na segunda metade do século XX e ao longo do
século XXI, que regulamentam o tratamento de dados pessoais nos países ocidentais,
materializam um conceito de direito à privacidade que está intimamente atrelado à
proteção de dados ou informações pessoais.
Debruçando-se sobre esse movimento, Danilo Doneda aponta como referências
significativas
a concepção de uma informational privacy nos Estados Unidos, cujo
“núcleo duro” é composto pelo direito de acesso a dados armazenados
por órgãos públicos e também pela disciplina de proteção de crédito;
assim como a autodeterminação informativa estabelecida pelo Tribunal
Constitucional Federal alemão e a Diretiva 95/46/CE da União
Europeia (relativa à proteção das pessoas singulares no que diz respeito
223
Dez anos após a escrita do artigo de Doneda, podemos acrescentar a esta lista o
General Data Protection Regulation (GDPR), aprovado pela União Europeia em 2016 e
vigente desde 2018. O GDPR, que substituiu a Diretiva 95/46/CE, influenciou fortemente
a redação da LGPD.
Lenora Silva Schwaitzer, dissertando sobre as dimensões em que a LGPD e suas
concepções de privacidade afetam o funcionamento de instituições que gerenciam e
custodiam acervos arquivísticos históricos, destaca que:
de sua vida são registrados em bancos de dados estatais. Estas informações, por sua vez,
estão postas em documentos que em dado momento poderão ser recolhidos por arquivos
públicos ou demais instituições de custódia, com o objetivo de serem preservados em
caráter permanente e disponibilizados à sociedade.
Para fins de exemplificação, evocamos a figura do processo judicial, documento
característico dos arquivos judiciários. É impossível conceber sua constituição sem que
sejam agregados de maneira lógica, utilitarista e pragmática dados ou informações
pessoais referentes às partes, testemunhas, e demais indivíduos que porventura possam
vir a assumir algum papel no andamento da ação. Se hipoteticamente, o órgão se isenta
dessa tarefa, o processo judicial automaticamente perde sua autenticidade, veracidade,
valor de prova e utilidade.
Ademais, delimita-se que o tratamento de dados pessoais pode dar-se “inclusive
nos meios digitais”. Tal especificidade reforça o fato de que a LGPD é passível de
aplicação às instituições que custodiam dados registrados em documentos que possuem o
papel como suporte. Sendo este o caso do acervo arquivístico permanente produzido e
reunido pela Comarca de Bragança-PA entre os anos de 1964-1985.
No inciso X do mesmo artigo, o referido marco legal entende como “tratamento”:
toda operação realizada com dados pessoais, como as que se referem a
coleta, produção, recepção, classificação, utilização, acesso,
reprodução, transmissão, distribuição, processamento, arquivamento,
armazenamento, eliminação, avaliação ou controle da informação,
modificação, comunicação, transferência, difusão ou extração;
(BRASIL, 2018).
136
Essa afirmação baseia-se na definição de gestão documental constante no Dicionário Brasileiro de
Terminologia arquivística: Conjunto de procedimentos e operações técnicas referentes à produção,
tramitação, uso, avaliação e arquivamento de documentos em fase corrente e intermediária, visando sua
eliminação ou recolhimento. Também chamado administração de documentos. (ARQUIVO NACIONAL,
2005, p. 100).
225
sabido que grande número de pessoas não se sente à vontade, diante da possibilidade de
publicização de processos judiciais, sobretudo criminais, com os quais possuem relação.
137
O GT foi criado por meio da portaria UORG/ORG nº 340, de 10 de outubro de 2019.
228
Deste modo, recai sobre os servidores que trabalham nesses espaços a responsabilidade
de estruturar políticas, protocolos e procedimentos, que visem conciliar de maneira ética
essas duas prerrogativas constitucionais.
Referências
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de
1988. Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 09 mar.
2020.
BRASIL. Lei n.º 12.527, de 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações
previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216
da Constituição Federal; altera a Lei n.º 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei
n.º 11.111, de 5 de maio de 2005, e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de
1991; e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil,
Brasília, DF, 18 nov. 2011. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm. Acesso em:
08 mar. 2020.
BRASIL. Lei n.º 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a proteção de dados
pessoais e altera a Lei n.º 12.965, de 23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet).
Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 15 ago. 2018.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/
Lei/L13709.htm. Acesso em: 12 jan. 2021.
CARNEIRO. João Víctor Vieira. Proteção de dados pessoais e direito à informação:
impasses na gestão de arquivos públicos e o caso dos documentos da ditadura (1964-
1985). Revista do Arquivo, São Paulo, SP, n. 9, p. 52-59, 2019.
CHALHOUB, Sidney. O conhecimento da História, o Direito à Memória e os Arquivos
Judiciais. In: Curso de Formação de Multiplicadores em “Políticas de resgate,
preservação, conservação e restauração do patrimônio histórico da Justiça do
Trabalho no Rio Grande do Sul”. Porto Alegre, 2005.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA (Brasil). Resolução n.º 324, de 30 de junho de
2020. Institui diretrizes e normas de Gestão de Memória e de Gestão Documental e
dispõe sobre o Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder
Judiciário – Proname. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça, 30 jun. 2020.
Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3376. Acesso em: 23 jul. 2020.
DONEDA, D. A proteção dos dados pessoais como um direito fundamental. Espaço
Jurídico Journal of Law [EJJL], [S. l.], v. 12, n. 2, p. 91-108, 2011. Disponível em:
https://portalperiodicos.unoesc.edu.br/espacojuridico/article/view/1315. Acesso em: 20
jun. 2021
EUROPEAN ARCHIVES GROUP. Guidance on data protection for archive
services. European Archives Group, 2018. Disponível em:
https://ec.europa.eu/info/files/guidance-data-protection-archive-services_en. Acesso em
19 mar. 2020.
GRINBERG, Keila. A história nos porões dos arquivos judiciários. In: PINSKY, Carla
Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (Orgs.). O historiador e suas fontes. São Paulo:
Contexto, 2009, p. 119-139.
230
KETELAAR, Eric. The right to know, the right to forget? Personal information in
public archives. Archives & Manuscripts, Australia, v. 23, n. 1, p. 8-17, may. 1995.
SCHWAITZER, Lenora Silva. LGPD e Acervos Históricos: impactos e perspectivas.
Archeion Online, [S. l.], v. 8, n. 2, p. 36–51, 2020. Disponível em:
https://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/archeion/article/view/57020. Acesso em: 7 ago.
2021.
MACNEIL, Heather. Sem consentimento: a ética na divulgação de informações
pessoais em arquivos públicos. Belo Horizonte: UFMG, 2019.
MIRANDA, Filipe de Sousa. Os Sentidos da preservação: os documentos de arquivo da
Comarca de Bragança-PA, memória, História e cidadania. Semina - Revista dos Pós-
Graduandos em História da UPF, v. 20, n. 1, p. 42 - 58, maio 2021.
SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico. São Paulo: Cortez
editora, 2017.
231
Introdução
A Bacia Hidrográfica Mirim-São Gonçalo (BHMSG) localiza-se na parte leste do
Uruguai e na parte meridional do Rio Grande do Sul (RS), correspondendo a última à
parte brasileira de sua jurisdição. Seu território ocupa a fronteira entre ambos os países,
contando com 62.250 km² de área de superfície, sendo 29.250 km² (47%) em território
brasileiro e 33.000 km² (53%) em território uruguaio (SOSINSKI, 2009).
Assentada sobre a planície costeira, o território se estabelece enquanto uma das
principais bacias hidrográficas do estado do RS. De mesmo modo, compreendendo uma
extensa diversidade ecológica, destacando a fauna e flora locais, a área também apresenta-
se como um importante patrimônio natural para a região.
A jurisdição internacional compartilhada entre Brasil e Uruguai faz com que a
BHMSG seja uma região transfronteiriça onde prevalece o regime de águas
compartilhadas. Por isso, enquanto um espaço geográfico binacional, esse limita-se a leste
com o Oceano Atlântico, a noroeste com a República Argentina, e a sudoeste com a
República Oriental do Uruguai.
O território da Bacia Hidrográfica Mirim-São Gonçalo compreende 100% do
território das cidades de Arroio Grande, Candiota, Capão Leão, Cerrito, Chuí, Herval,
Jaguarão, Morro Redondo, Pedras Altas, Pedro Osório, Rio Grande e Santa Vitória do
Palmar. É integrado por 684.202 habitantes em áreas urbanas e 86.106 em áreas rurais.
Dessa maneira, a importância da BHMSG reside, principalmente, no abastecimento
humano e na irrigação de extensas áreas de terras, abrangendo vários outros municípios
na região sul. Aliado a isso, em suas margens situam-se duas reservas ambientais, sendo
a Reserva do Taim, em território brasileiro, e a Reserva de Humedales del Este, em
território uruguaio140.
138
Graduanda em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e bolsista de pesquisa e extensão
pelo projeto “Ações e metas de estudo, inventário e diagnóstico do Distrito de Irrigação do Chasqueiro”.
Contato: [email protected]
139
Graduanda em História pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e bolsista de pesquisa e extensão
pelo projeto “Ações e metas de estudo, inventário e diagnóstico do Distrito de Irrigação do Chasqueiro”.
Contato: [email protected]
140
Disponível em: https://sema.rs.gov.br/l040-bh-mirim.
232
Histórico e administração
Devido à ocupação de áreas de dois países, a região da Bacia Hidrográfica Mirim-
São Gonçalo é, desde o século XVIII, motivo de diferentes interesses, acordos e ações
governamentais. Dessa forma, a aproximação entre o Império do Brasil e a República
Oriental do Uruguay foi inevitável. Visando, portanto, estabelecer alguns marcos
territoriais, em 12 de outubro de 1851, foi assinado o Tratado de Limites141.
A partir deste Tratado foram demarcadas as fronteiras na área, estabelecendo,
inicialmente a exclusividade de navegação às embarcações brasileiras e deixando ao
Uruguai apenas uma fronteira seca. Tal determinação fez com que, durante o período
imperial e no início da República, o governo uruguaio insistisse reiteradamente no direito
de navegação igualmente nessas águas (CPDOC, 2016). A partir dessa reivindicação,
portanto, no ano de 1909142, por iniciativa brasileira, é assinado um novo Tratado de
Limites, onde são alteradas as fronteiras na área da Lagoa Mirim e do Rio Jaguarão,
estendendo ao Uruguai a soberania de navegação sobre a região.
Visando uma política internacional que pudesse favorecer o estabelecimento de
alianças e a manutenção de boas relações com os países vizinhos, “esse acordo, que ia
além das reivindicações uruguaias, alinhava-se à prática internacional [...]” (CPDOC,
2016). A partir disso, passados alguns anos o Uruguai criou uma Comissão Técnica, a
qual possuía como objetivo maior a realização de estudos para a recuperação do leste do
país, na região conhecida como Banhados de Rocha. Decorrente dessa ação, em 1960 foi
solicitado um representante brasileiro para a realização de trabalhos conjuntos na região,
visando solucionar impasses relacionados à Lagoa Mirim.
No ano seguinte, em 1961, o governo brasileiro entrou em contato com o Fundo
Especial das Nações Unidas em busca de respostas para os impasses na região. Em
outubro do mesmo ano, o governo uruguaio emite a Nota do Ministério das Relações
Exteriores, solicitando assistência técnica para a recuperação da região leste do país. Por
conta da instalação dessa situação, em dezembro do mesmo ano foi firmada no Rio de
Janeiro a Ata onde ambas as nações comprometeram-se a criar uma comissão mista que
estudaria os problemas daquela região.
141
Tratado de Limites entre o Brazil e a Republica Oriental do Uruguay. Disponível em:
https://wp.ufpel.edu.br/alm/files/2019/07/Tratado-de-Limites-1851.pdf
142
Tratado entre os Estados Unidos do Brasil e a Republica Oriental do Uruguay modificando as suas
fronteiras na Lagoa Mirim e no Rio Jaguarão. Disponível em:
https://wp.ufpel.edu.br/alm/files/2019/07/Tratado-de-Limites-1909.pdf
233
realizada pela ONU em 1972 é que buscamos apresentar a importância que o mesmo
possui no âmbito das relações internacionais entre Brasil e Uruguai, envolvendo o
território transfronteiriço da Bacia Hidrográfica Mirim-São Gonçalo.
O estabelecimento de acordos mútuos entre os dois países visa, nesse âmbito, o
aproveitamento e o desenvolvimento da região, além da preservação da Bacia
Hidrográfica Mirim-São Gonçalo enquanto um patrimônio natural. Responsável pelo
abastecimento hídrico de diversas cidades localizadas na região sul do Rio Grande do Sul,
a bacia tem sua importância associada tanto a fatores econômicos quanto a fatores sociais.
Em relação à economia, proporcionando a viabilidade de irrigação de diversas áreas
agricultáveis, por exemplo, e em relação ao fator social, enquanto um bem patrimonial
carregado de significados, memórias e afetos para a população em seu entorno.
Nesse sentido, ao ser caracterizada na qualidade de patrimônio natural, a BHMSG
deve ser também compreendida como um lugar de memórias. Atravessadas por
experiências passadas e presentes, a memória e suas representações estruturam “as
identidades sociais, inscrevendo-as numa continuidade histórica e dotando-as de um
sentido, ou seja, de um conteúdo e de uma direção” (TRAVERSO apud SILVEIRA,
RAMOS, 2016, p. 23). Dessa forma, a reconstrução e a manutenção das memórias
coletivas associadas a esse bem patrimonial encontram-se permeadas por noções de
preservação e cuidado para com os mesmos, demonstrando seus papéis na sociedade em
que se inserem.
Dito isso, é necessário que se compreenda que a relação entre memória e
patrimônio é feita de aproximações. Imerso nesse contexto de proteção e defesa, contudo,
alguns papéis desses patrimônios são pormenorizados, como a atuação desses “na
sociedade cumprindo papéis que também são políticos e institucionais” (SILVEIRA,
RAMOS, 2016, p. 25). A partir disso, a noção de patrimônio histórico também perpassa
a discussão, envolvendo agentes econômicos, políticos e sociais.
A conceituação sobre patrimônio histórico “tradicionalmente se refere à herança
composta por um complexo de bens históricos” (SILVA, SILVA, 2009, p. 324). Apesar
disso, a expressão está cada vez mais sendo substituída pela de patrimônio cultural,
definido pela Convenção de Haia em 1954 como
Inserida nas discussões sobre patrimônio natural, dado seu caráter ambiental, a
BHMSG é apenas um dos patrimônios sob os cuidados da ALM. Associada à discussão
do presente trabalho, a noção de patrimônio cultural engloba também o acervo histórico
da Agência de Desenvolvimento da Lagoa Mirim.
Do mesmo modo, o espaço do acervo histórico também remete a manutenção e a
reconstrução memorial da região. Contudo, além de contar com documentações que
permitem esse processo em relação à região e ao seu desenvolvimento, o acervo também
se apresenta como um possibilitador do conhecimento sobre a história da própria
instituição. Dessa forma, é preciso compreender esses documentos em suas devidas
inserções e essencialidades, como apontam Silveira e Ramos: “Os documentos são bens
culturais e não raro, ao comporem acervos de arquivos e/ou centros de documentação
histórica, também integram um patrimônio cultural” (SILVEIRA, RAMOS, 2016, p. 17).
Portanto, ao abordar as noções de patrimônio natural, histórico e cultural
relacionando todas elas à Bacia Hidrográfica Mirim-São Gonçalo e ao seu acervo
histórico nota-se o quanto a multiplicidade de abordagens perpassa as discussões. Além
disso, apresentam-se como latentes as relações de memória, construção de identidade e
preservação desses patrimônios, essenciais para a percepção e o entendimento sobre os
mesmos.
seu respectivo fundo. Diariamente eles são lançados a uma tabela digital para registro e
salvaguarda do material.
Figura 1 - Mapoteca H
Considerações finais
O presente trabalho visa abordar e compreender as atribuições da Agência de
Desenvolvimento da Lagoa Mirim no âmbito preservacionista tendo em vista suas
diversas atividades para melhor aproveitamento, conservação e divulgação dos
patrimônios natural e cultural da região Sul do Rio Grande do Sul. Como mencionado
anteriormente, a relação bilateral entre Brasil e Uruguai se destaca no desenvolvimento
da região - que é compartilhada pelos dois países - e é marcada por continuidades a partir
da segunda metade do século XX.
As ações desenvolvidas pela ALM têm caráter interdisciplinar, e são compostas
por pesquisas de diversas áreas da ciência, como Antropologia, Arqueologia, História,
Engenharia Hídrica, Relações Internacionais, Geografia, Geologia e Biotecnologia.
Reunidas, estas áreas do conhecimento formam uma ambiente plural, que conta com
percepções e aproximações diversas sobre o uso das águas da BHMSG, as terras irrigadas
e das relações com os povos presentes em seus entornos.
238
Referências
ALM. Agência de Desenvolvimento da Lagoa Mirim. UFPEL, Pelotas. Disponível
em: https://wp.ufpel.edu.br/alm Acesso realizado em 06/07/2021.
BATISTA, Vanessa Oliveira; MACEDO, Carmen Lúcia. O patrimônio cultural na
legislação brasileira. NOMOS: Revista do Programa de Pós-Graduação em Direito da
UFC, Fortaleza, v.28, n.1, 2008, p.237-260.
BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivos permanentes. Tratamento documental. Rio
de Janeiro: Editora FGV, 2004.
BRANCO, Rio. DOMINGUEZ, Rufino T. Tratado da Lagoa Mirim. Brasil/Uruguai,
30 de outubro de 1909. Rio de Janeiro: 1909. Disponível em:
http://info.lncc.br/utt1909.html Acesso realizado em 06/07/2021.
CPDOC. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil.
Fundação Getúlio Vargas. Atlas Histórico do Brasil. Tratados de fixação de limites
territoriais. Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: https://atlas.fgv.br/verbetes/tratados-
de-fixacao-de-limites-territoriais Acesso realizado em 06/07/2021.
IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/ Acesso realizado em 12/07/2021.
SEMA, Secretaria do Meio ambiente e Infraestrutura. Disponível em:
https://sema.rs.gov.br/l040-bh-mirim Acesso realizado em: 13/07/2021.
SILVEIRA, Éder da Silva; RAMOS, Eloisa Helena Capovilla da Luz. A produção do
conhecimento histórico sobre memória e patrimônio: algumas considerações sobre o
uso das fontes e notas preliminares para o professor/historiador em formação. In:
NASCIMENTO, José Antonio Moraes do (Org.). Centro de Documentação e
arquivos: acervos, experiências e formação. São Leopoldo: Oikos, 2016, v. 1, p. 13-28.
SOSINSKI, L. T. W. Caracterização da Bacia Hidrográfica Mirim - São Gonçalo e o
uso dos recursos naturais. Embrapa Clima Temperado, Pelotas, 35p. 2009.
239
Introdução
“O registro da história e da memória se dá, atualmente e em grande parte, por
meio dos documentos gerados pelas atividades desenvolvidas por determinada
organização, pessoa ou família” (MERLO; KONRAD, 2015, p. 27). Escolhemos as
palavras de Merlo e Konrad para abrir o presente trabalho, que é fruto da uma experiência
do autor enquanto estagiário do Arquivo Público e Histórico Municipal do Rio Grande –
APHMRG, quando graduando do curso de Arqueologia da Universidade Federal do Rio
Grande – FURG. A experiência em questão refere-se à tentativa do APHMRG de
inscrever no Programa Memória do Mundo da UNESCO, no Brasil coordenado pelo
Arquivo Nacional, as cartas do engenheiro e sanitarista Francisco Saturnino Rodrigues
de Brito, Patrono da Engenharia Sanitária Brasileira, que compõem parte do acervo do
APHMRG.
A iniciativa de inscrição das referidas cartas no programa partiu deste que
escreve e da diretora da instituição, e contou com o auxílio de toda a equipe de
funcionários e estagiários, que se empenhou durante todo o processo para conseguir
maiores informações sobre as cartas e seu autor, bem como a documentação necessária
para o registro da candidatura. Como resultado de toda a experiência, apresentamos este
trabalho que se encontra dividido em três partes; na primeira, é apresentado o Programa
Memória do Mundo e suas diretrizes; na segunda, é explanado sobre as características de
cada uma das cartas e qual foi o percurso tomado pelo arquivo para levar o projeto adiante;
por fim, na terceira parte abordamos a forma como foi negada a inclusão das cartas no
programa e como instituições de pequeno porte, como o APHMRG, podem se sentir
pouco incentivadas a participar de ações do tipo.
143
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
144
Mestrando em Ciência Política pela Universidade Federal de Pelotas – UFPEL, onde é membro do
Núcleo de Pesquisa sobre Políticas de Memória – NUPPOME. Contato: [email protected].
240
145
Nome original do programa em língua inglesa.
241
Municipal da Cidade do Rio Grande, nas quais o engenheiro apresenta sua proposta, bem
como discute preços e alterações contratuais na realização de obras para melhorias no
serviço de água e esgoto da cidade do Rio Grande.
Fonte: Arquivo Público e Histórico Municipal do Rio Grande. Autora: Jussieli Martins Bastos.
Fonte: Arquivo Público e Histórico Municipal do Rio Grande. Autora: Jussieli Martins Bastos
Fonte: Arquivo Público e Histórico Municipal do Rio Grande. Autora: Equipe do APHMRG.
247
Ocorre que, pouco depois das cartas terem sido encontradas, chegou ao arquivo
um e-mail do Arquivo Nacional, convidando instituições a se candidatarem ao Programa
Memória do Mundo. Assim, a documentação de Saturnino de Brito parecia valer a
tentativa, pois, além de seu inegável valor histórico, com mais de cem anos, se referia a
importantes obras conduzidas na cidade de Rio Grande por uma figura de relevância na
engenharia nacional. A verificação da autenticidade das cartas foi feita com base na
comparação da assinatura do engenheiro com outros documentos de sua autoria,
encontrados on-line. Desta feita, seguiu-se todo o processo de inscrição nos conformes
do edital do MoW Brasil; as cartas foram digitalizadas e descritas de acordo com as
técnicas e padrões arquivísticos; cartas de recomendação foram solicitadas a instituições
e profissionais do ramo, e assim deu-se a inscrição no programa.
A negativa
A expectativa gerada na equipe do APHMRG foi grande; todavia, esta sabia que
as chances de conquista eram pequenas. A resposta chegou no 20 vinte de novembro de
2018, com a negativa para a inclusão das cartas como parte do MoW, em razão destas
não possuírem significância nacional e não acompanharem os planos, ideias e projetos do
sanitarista. Assim, é oportuna a fala de Crivelli e Bizello, que dizem que
Quando pensamos, então, que um conjunto documental de uma pessoa
física é tombado por conta de seu conteúdo informacional, deve-se
observar também que o nome titular que lhe já vem imbuído de uma
carga simbólica socialmente investida. Sua importância junto à
concepção do nacional está, talvez, mais no nome do produtor, do que
se próprio conteúdo informacional (CRIVELLI; BIRELLO, 2012, p. 7).
Considerações finais
Em artigo sobre a desvalorização do patrimônio cultural da cidade de Boa Vista
– RR, Silva, Falcão e Barbosa atentam para a importância de novos debates e discussões
sobre a valorização de bens de valor histórico e cultural, uma vez que estes, além de fonte
de conhecimento sobre o passado, servem, no futuro, como testemunho da cultura
humana de seu período (SILVA; FALCÃO; BARBOSA, 2010); este é exatamente o caso
das cartas de Saturnino de Brito, que se encontram sob posse do APHMRG. Quem
caminha hoje pelas ruas do centro da cidade, não sabe que muito de sua configuração
atual se deve ao engenheiro; não sabe que obras semelhantes foram feitas por ele em
outras diversas cidades do país. Suas cartas, com mais de cento de dez anos de história,
são o testemunho das mudanças pelas quais passou a cidade do Rio Grande.
Ao submeter as referidas cartas ao Programa Memória do Mundo, buscou-se dar
maior visibilidade para o Arquivo Público e Histórico Municipal do Rio Grande. Não
haveria prêmios em dinheiro; mas, com maior visibilidade, quem sabe não se conseguiria
melhores condições de infraestrutura para o local; como estabelece o próprio Memória
do Mundo, “o primeiro objetivo do programa é garantir a preservação, pelos meios mais
adequados, do patrimônio documental” (MOW BRASIL, [2021?]). O sucesso da
empreitada não foi obtido; esbarrou-se nas relações de poder que permeiam as
250
considerações do patrimônio histórico e cultural. Sobre estas relações, Aline Canani diz
que, com base nos escritos de Shils, o poder de se decidir o que é patrimônio emana do
centro para a periferia, pois quem detém o poder de definir o que é considerado
patrimônio, localiza-se no centro (CANANI, 2005). Rio Grande é uma cidade que se
encontra afastada dos grandes centros; seu patrimônio histórico e cultural, parece se
encontrar também afastado; e afastado das preocupações da esfera pública, visto que
pouco é feito para sua conservação, vide a situação, em ruínas, de muitos bens tombados
pela cidade.
Neste cenário, as cartas de Saturnino de Brito foram também afastadas; ainda
segundo Canani, quem detém o poder de definir o que é patrimônio, “atribui um certo
caráter de sacralidade para os bens tocados por ele, aqueles escolhidos para compor a lista
do patrimônio (CANANI, 2005). Não tendo recebido este toque, as cartas de Saturnino
de Brito seguem guardadas no acervo de uma instituição que, mesmo com todos os
desafios que enfrenta em seu dia-a-dia, segue lutando para que o patrimônio documental
sob sua custódia seja preservado.
Referências
CANANI, Aline. Herança, sacralidade e poder: sobre as diferentes categorias do
patrimônio histórico e cultural no Brasil. Horizontes antropológicos, v. 11, p. 163-175,
2005. Disponível em:
https://www.scielo.br/j/ha/a/DdyW8tLQXzJb59CgD9V5y9M/abstract/?lang=pt. Acesso
em 29/07/2021.
CARRIÇO, José Marques. O Plano de Saneamento de Saturnino de Brito para Santos:
construção e crise da cidade moderna. In: Risco-Revista de Pesquisa em Arquitetura
e Urbanismo, n. 22, p. 30-46, 2015. Disponível em:
https://www.revistas.usp.br/risco/article/view/124537. Acesso em: 30/05/2021.
CHAGAS, Mario. Casas e portas da memória e do patrimônio. Em questão, v. 13, n. 2,
p. 207-224, 2007. Disponível em:
https://www.redalyc.org/pdf/4656/465645957002.pdf. Acesso em 29/07/2021.
CRIVELLI, Renato; BIZELLO, Maria Leandra. De arquivos pessoais a patrimônios
documentais: análise dos registros memória do mundo do Brasil, da UNESCO,
2013. Disponível em: http://200.20.0.78/repositorios/handle/123456789/2103. Acesso
em: 29/05/2021.
LOPES, André Luís Borges. “Sanear, prever e embelezar”: o engenheiro Saturnino
de Brito, o urbanismo sanitarista e o novo projeto urbano do PRR para o Rio
Grande do Sul (1908-1929). Tese (Doutorado em História), Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.
MERLO, Franciele; KONRAD, Glaucia. Documento, história e memória: a importância
da preservação do patrimônio documental para o acesso à informação. In: Informação
& informação, v. 20, n. 1, p. 26-42, 2015. Disponível em:
251
Karine Jeziorski146
Luiza Barth Klingenberg Noal147
Pauline Tante de Tróia 148
Introdução
O presente trabalho apresenta um relato de experiência acerca dos trabalhos
desenvolvidos pelo Sépia UFRGS no âmbito da salvaguarda e da comunicação,
sobretudo, com relação ao uso das mídias sociais como espaços de socialização do
conhecimento e popularização da ciência. Para compreender a trajetória do grupo é
necessário recordar a parceria firmada entre Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) e a Sociedade Polônia de Porto Alegre (SocPol) por meio de um acordo de
cooperação científica-cultural consolidado a partir de junho de 2018 sob a coordenação
das professoras Maria Stephanou e Vanessa Aquino. Essa parceria também conta com o
apoio da Prorext e Propesq/UFRGS, CNPq e do Consulado Geral da Polônia em Curitiba.
A finalidade deste acordo é desenvolver conjuntamente ao acervo documental da
instituição ações de extensão, com vistas à preservação dos documentos históricos,
interações com a comunidade, pesquisa e ensino.
A Sociedade Polônia de Porto Alegre é uma instituição que foi fundada pelos
imigrantes poloneses que chegaram ao Rio Grande do Sul ao longo do século XIX.O
Acervo Histórico da Sociedade Polônia de Porto Alegre tem em seu conteúdo um
expressivo conjunto de documentos, composto de diversas tipologias, como: livros do
século XIX, fotografias, certificados, certidões, diplomas, manuscritos, discos de vinil,
flâmulas, medalhas, troféus, moedas, entre outros. Neste contexto, em que se identifica a
necessidade de salvaguarda da materialidade em suas variadas tipologias, o Grupo Sépia
149
surge com esta denominação, em meados do ano 2020, como uma iniciativa coletiva
146
Graduanda do Curso de Bacharelado em Museologia pela UFRGS. Bolsista e membro do Grupo de
Pesquisa Sépia UFRGS/CNPq. Contato: [email protected]
147
Graduanda do Curso de Bacharelado em Museologia pela UFRGS. Graduanda em Design de Moda pela
Uniritter. Membro do Grupo de Pesquisa Sépia UFRGS/CNPq. Contato: [email protected]
148
Graduanda do Curso de Licenciatura em Pedagogia da Faculdade de Educação da UFRGS, bolsista de
Iniciação Científica no Projeto de Pesquisa 34050 e membro do Grupo de Pesquisa Sépia UFRGS/CNPq.
Contato: [email protected]
149
O Sépia UFRGS já atuava junto ao acervo histórico da Sociedade Polônia desde 2018, todavia foi
cadastrado como grupo de pesquisa na PROPESQ/UFRGS e no CNPq em 2020.
253
2012, p. 32). Após cada livro ser higienizado folha a folha (Figura 1) foi realizado o
acondicionamento em materiais neutros (Figura 2 assim como seu armazenamento em
mobiliário adequado.
escritor Umberto Eco. Durante a leitura, apresentou interesse no significado que o autor
traz à palavra “Fólio”, por se relacionar com a temática estudada pelo grupo, que se refere
ao objeto “livro”.
Foi durante o mutirão de salvaguarda da coleção de obras do século XIX que
aconteceu nos laboratórios especializados do Curso de Museologia, na FABICO/UFRGS,
que surgiu a proposta de criar uma conta na plataforma Instagram com o objetivo de
disseminar as atividades e curiosidades encontradas no cotidiano do trabalho, dessa
maneira nasceu o “Polskie Fólio”. As primeiras postagens foram realizadas
despretensiosamente, todavia, o ingresso do Grupo de Pesquisa e Extensão nas redes
sociais indicava um marco temporal, e com o advindo da pandemia causada pelo novo
coronavírus (SARS-CoV-2), a atuação nas mídias sociais se tornou essencial para a
realização e divulgação do trabalho do grupo.
A imersão do grupo no universo virtual permitiu novos olhares sobre a produção
científica e cultural no meio online, ocasionando na decisão de uma mudança na
identidade visual do grupo (Figura 3), assim como de seu conteúdo e nome (marca). A
palavra “sépia”, que popularmente faz referência ao pigmento de tom amarronzado, foi
incorporada como nome do grupo e demarcou um novo momento da presença do Sépia
nas redes sociais.
Figura 3 - Identidade Visual do Sépia UFRGS
Neste cenário, 75% dos seguidores são categorizados como perfis pessoais,
enquanto os outros 25% são contas institucionais e páginas de produção de conteúdo
autoral tal qual nossa conta. Dentre os perfis pessoais, 70% demarcam sua identidade de
259
O Sépia UFRGS, por estabelecer as mídias sociais como seu espaço oficial de
compartilhamento de conteúdos autorais, se encontra em uma realidade cuja
singularidade da sua produção, neste momento, está inteiramente voltada ao universo
online. Neste contexto também se insere a proposta de desenvolvimento de um website
oficial do Sépia UFRGS, cuja finalidade engloba o interesse em realizar um
aprofundamento teórico tanto das pesquisas produzidas quanto dos referenciais teórico-
metodológicos considerados fundamentais para os estudantes, professores e interessados
pelas áreas de atuação dos integrantes. A partir do compartilhamento deste conhecimento
são viabilizados meios de associação ao grupo, estimando as potencialidades de novas
pesquisas e vínculos com instituições cujos acervos sirvam como fonte de estudo,
considerando a relação construída pelo Sépia UFRGS com instituições locais como a
Federação Espírita do Rio Grande do Sul e o Museu de História da Medicina do Rio
Grande do Sul, cujos vínculos se estabeleceram através de pesquisadores integrantes do
grupo.
Considerações finais
Referências
CURY, Marília Xavier. Exposição – concepção, montagem e avaliação. São Paulo:
Annablume, 2005.
DESVALLÉES, André; MAIRESSE, Françoise (Ed.). Ética. In: Conceitos Chave de
Museologia. Tradução e comentários de Bruno Brulon Soares e Marília Xavier Cury.
São Paulo: Armand Colin, 2013. p. 40-42.
ECO, Umberto; GARRIÈRE, Jean-Claude. Não contem com o fim do livro. Rio de
Janeiro: Editora Record, 2010. 293 p.
GRUPO SÉPIA UFRGS (Porto Alegre). Sépia. Porto Alegre, 2021. Instagram:
@sepia.ufrgs. Disponível em: https://www.instagram.com/sepia.ufrgs/. Acesso em: 10
ago. 2021.
GUARNIERI, Waldisa. A interdisciplinaridade em Museologia [1981]. In: BRUNO,
Maria Cristina de Oliveira (org.). Waldisa Rússio Camargo Guarnieri: textos e
contextos de uma trajetória profissional. São Paulo: Pinacoteca do Estado; Secretaria de
Estado da Cultura; Comitê Brasileiro do Conselho Internacional de Museus, 2010, p.
123-126.
SANTAELLA, Lúcia. Da cultura das mídias à cibercultura: o advento do pós-humano.
Revista Famecos, [S.L.], v. 10, n. 22, p. 23, 12 abr. 2008. EDIPUCRS.
http://dx.doi.org/10.15448/1980-3729.2003.22.3229. Disponível em:
https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/3229/2493
. Acesso em: 10 ago. 2021.
SÉPIA UFRGS (Porto Alegre). Sépia UFRGS. 2021. Canal no YouTube. Disponível
em: https://www.youtube.com/channel/UCM7xGuX3ipZNp83sAmJ_jKw. Acesso em:
10 ago. 2021.
SEQUEIRA, Arminda Sá. Identidade visual: o simbolismo na identidade
organizacional. Instituto Politécnico do Porto. Instituto Superior de Contabilidade e
Administração do Porto. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10400.22/1780>.
SOCIEDADE POLÔNIA DE PORTO ALEGRE (Porto Alegre). Sociedade Polônia:
histórico. Histórico. [s.d.]. Disponível em: https://www.sociedadepolonia.com/historico.
Acesso em: 10 ago. 2021.
262
Introdução
“Tem que conhecer pra preservar”. Esta frase, proferida pela senhora Lourdes
Vignochi152, presidente do Clube de Mães La Mamma desde sua fundação no ano de
1975, representa características marcantes do contexto espacial aqui abordado: Galópolis,
bairro da cidade de Caxias do Sul (Rio Grande do Sul – Brasil), possui uma história
constantemente evocada por seus habitantes, que veem nela a base para a consolidação
de sua identidade, calcada sob ideais de preservação da memória coletiva representada
pelo patrimônio cultural e suas múltiplas nuances.
É com base nessa perspectiva que busca-se analisar as relações entre diferentes
processos que envolvem a patrimonialização e a musealização do território em questão,
sobretudo ao que refere-se ao Museu de Território de Galópolis e ao artesanato
(principalmente os bordados manuais), aqui tido como forma de expressão de um extrato
da comunidade local – mulheres adultas e idosas que integram o Clube de Mães La
Mamma.
Para tal, optou-se por fazer uso de metodologias diversificadas, transdisciplinares,
como a pesquisa bibliográfica e documental, a história oral (Pollak, Portelli) e a análise
iconológica (Gombrich, Panofsky), trazendo referenciais acerca dos temas basilares,
como patrimônio industrial (Meneguello, Silva, TICCIH), museologia social (Meneses,
Varine), arte e artesanato (Andrade, Machado, Rodrigues, Rufinoni) e história regional
(Adami, Fontana, Herédia).
Pensando nas possibilidades e dificuldades impressas no senso de pertencimento
e autonomia locais por meio da musealização do bairro, este trabalho parte de uma série
150
Licenciada em História pela Universidade de Caxias do Sul (UCS) e mestranda do Programa de Pós-
Graduação em Museologia e Patrimônio da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(PPGMUSPA/UFRGS). Mediadora cultural do Instituto Hércules Galló e educadora para o Patrimônio do
Museu de Território de Galópolis. Contato: [email protected]
151
Professora adjunta da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (FABICO/UFRGS), atuando no curso de graduação em Museologia e pós-graduação em
Museologia e Patrimônio (PPGMUSPA). Museóloga pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UNIRIO), mestre e doutora em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Contato: [email protected]
152
Em entrevista com representantes do Clube de Mães La Mamma, de Galópolis, feita pela pesquisadora
Geovana Erlo no dia 22 de junho de 2021, em decorrência da presente pesquisa.
264
Contextualização
Galópolis é hoje um bairro localizado na zona sul da cidade de Caxias do Sul –
situada no nordeste do estado do Rio Grande do Sul – que possui uma história marcada
pelo desenvolvimento da indústria lanieira, que ali foi instalada e encontra-se presente até
hoje, sendo constantemente evocada como elemento agregador de sentido, pertencimento,
memória e identidade da região. Fundada no modelo de cooperativa no final do século
XIX pelos primeiros imigrantes italianos que chegaram à região – oriundos de uma greve
organizada no Lanifício Rossi, em Schio, que culminou com sua demissão e expulsão do
país natal (FONTANA, 1985) – por meio do processo imigratório oficial para ocupação
das terras devolutas do Estado (ADAMI, 1963), a fábrica passou por diferentes fases,
evidenciadas por Herédia (2017, p. 253):
Sua história cíclica foi permeada por constantes rupturas e permanências, mas a
dinâmica fabril sempre esteve presente – e continua contemporaneamente –, organizando
a localidade tanto dentro como fora do ambiente produtivo, perpassando os modos de
viver e perceber as relações sociais desenvolvidas entre operários e proprietários por meio
da postura paternalista presente desde que se constituiu como “cidade de Galló”.
Ao longo dos 127 anos que o lanifício completa em 2021, muitas estruturas
materiais e imateriais foram construídas para garantir a permanência da mão-de-obra
próxima ao local de trabalho, possibilitando também a consolidação de uma forte relação
de dominação sobre os trabalhadores e aumento da sua produtividade por meio de
265
Patrimonialização e musealização
Para pensar a demanda por preservação do patrimônio industrial de Galópolis é
necessário, antes de tudo, compreender o processo de patrimonialização para além de seus
parâmetros legais, sendo caracterizado aqui, de forma polifônica e dinâmica, como a
atribuição valores cognitivos, formais, afetivos, pragmáticos e/ou éticos sobre os bens
culturais (MENESES, 2009), assumindo o papel de signos/representações.
De forma semelhante, ao conceber o termo “musealização”, também caro a este
trabalho, Stránský (apud BRULON, 2017) o enuncia como um processo que atribui a
qualidade museal, sendo um dos elementos da tríade musealidade-museália-musealização
que demanda a seleção, a tesaurização e a comunicação museológica – elementos
artificiais, criados pelos sujeitos com base em questões seletivas, políticas e subjetivas.
266
153
Sigla oficial do Instituto Hércules Galló.
154
Sigla utilizada neste trabalho com o intuito de evitar repetições, sendo extra-oficial.
267
155
Disponível em: https://forms.gle/G8n1p4hSGGevVmEP7. Acesso em 05 jul. 2021.
268
De tal forma, percebe-se que o papel assumido pelas integrantes do Clube de Mães
– estas, moradoras de Galópolis, participantes assíduas das demandas comunitárias –
diante do processo de atribuição de valor ao patrimônio industrial é o de interpretantes.
Suas produções artesanais refletem tal valoração, sobretudo os bordados alusivos aos bens
culturais locais, que tornam-se mais do que meros suportes materiais – embora saiba-se
que a técnica empregada para sua confecção esteja expressa nestes objetos, ilustrando
156
Depoimento manuscrito de Maria Lourdes Diligenti Comerlato, feito com o objetivo de historicizar a
trajetória do Clube de Mães La Mamma em decorrência da necessidade de justificar sua importância para
a comunidade local, quando o prédio em que a sua sede situava-se – espaço que pertenceu ao Círculo
Operário, que também abrigava um espaço expositivo, a sala da Associação de Moradores de Galópolis
(AMOG), o Centro de Inclusão Digital (CIAD), o brechó Amigópolis, a cozinha da Subprefeitura de
Galópolis e salas com documentações do Lanifício Sehbe – foi ameaçado de desapropriação pelo Município
de Caxias do Sul em novembro de 2019. Na ocasião, nem a justificativa e nem a criação do Ponto de Cultura
Galópolis Fortalecendo Laços foi suficiente para a manutenção do prédio, que foi interditado e assim segue
até a publicação deste trabalho, em agosto de 2021. Em entrevista à pesquisadora, a presidente do Clube de
Mães, Lourdes Vignochi, afirma duas vezes distintas, ambas sendo confirmadas pela vice-presidente
também presente, Ivone Vial, e pela presidente da AMOG e também membro do Clube, Maria Patrício
Pinto, que a motivação para tal feito foi “politicagem”, e que em função da inexistência de um espaço físico
para seus encontros, o Clube não tinha mais se reunido. Em junho de 2021, a AMOG, Ponto de Cultura e
demais voluntários do bairro começaram a estruturar um projeto de ocupação do prédio, que encontra-se
em fase de aprovação pela Prefeitura de Caxias do Sul, por meio da Secretaria Municipal do Planejamento
(SEPLAN), conforme consta na matéria disponível em:
<https://gauchazh.clicrbs.com.br/pioneiro/geral/noticia/2021/06/comunidade-ira-entregar-documento-
com-sugestoes-para-ocupacao-de-predio-historico-em-galopolis-ckq14alnb00520180f03aeo5p.html>.
Acesso em 05 jul. 2021.
270
Bordar e preservar
Partindo da premissa de que os bordados inseridos em almofadas e ecobags
(chamadas de sacolas pelas suas fabricantes) são representações dos signos que envolvem
a memória individual e coletiva de Galópolis, faz-se imprescindível analisa-los diante da
perspectiva de musealização do território. Para tal, optou-se por fazer uso de duas
metodologias distintas: primeiro, fez-se uso da História Oral, já amplamente utilizada
nesta pesquisa, para historicizar a produção artesanal do Clube de Mães, bem como suas
intenções a partir dela; segundo, optou-se pela metodologia iconológica proposta por
Panofsky (1986) para investigar interpretativamente a construção da imagem usada como
base para o bordado – que apresenta três etapas analíticas: descrição pré-iconográfica;
inserção cronológica; e significação alegórica.
Segundo o autor, as imagens corporificam concepções culturais coletivas, indo
além, mas também incorporando o sentimento individual – no caso, de cada artesã –, que
é determinado pelas particularidades culturais que definem as vivências responsáveis por
delimitar a unidade estilística utilizada. A imagem é construída pela posição do olhar, que
deve ser entendida historicamente como produto do contexto. De tal forma, conforme
Ivone Vial evidencia em entrevista, cada artesã escolheu o tipo de bordado manual que
mais tinha familiaridade e Vignochi complementa, afirmando ter utilizado o ponto
corrente, aprendido ainda quando criança, com sua mãe – o que pode ser considerado um
importante elemento imaterial do patrimônio cultural local, conforme Silva e Silva (2016,
p. 9) apresentam:
[...] é nessa concepção que a mulher bordadeira precisa ser analisada
como reprodutora de um saber-fazer com preservação pela memória e
ensinada pra futuras gerações com a técnica de sua construção, esse fazer
expõe claramente uma identidade de cada mulher bordadeira no
momento, que constrói cada ponto do bordado, não existe a cópia desse
fazer, ou seja, ao se fazer cada ponto do bordado a mulher caracteriza
uma personalidade em seu fazer e ao qual mesmo sendo ensinado não
tem como se replicar a marca de personalidade remetendo para uma
identidade ao passar dos anos.
Legenda: Bordados a mão feitos respectivamente por Lídia e Ivanir, integrantes do Clube de Mães
La Mamma, fazendo uso de diferentes técnicas sobre tecido de linho utilizado na confecção de
ecobags.
Fonte: Geovana Erlo, 2021.
Este fator, isolado, refutaria a teoria sustentada até aqui acerca das exclusões que
o processo de musealização proporcionou, mas a fala de Vignochi a seguir auxilia na sua
manutenção. Questionada sobre a necessidade de representar outros patrimônios
industriais de Galópolis – já fazendo referência aos bordados das almofadas que,
diferentemente das sacolas, eram diversos, trazendo oito desenhos –, apontou que “não
tem como não ter [os espaços representados pelas almofadas]”. Para ela, além de
representar estes bens culturais, também era necessário disponibilizar um breve histórico
de cada um dos espaços representados nos bordados, porque (novamente) “tem que
conhecer pra preservar”. Estes continham informações resumidas, coletadas por meio de
depoimentos escritos “de pessoas mais velhas”, afirmou Maria Pinto, também
entrevistada.
Questionadas sobre como se deu a seleção dos oito espaços afirmaram ter
escolhido coletivamente, com auxílio da AMOG, que também ajudou na construção dos
vetores para o traçado do desenho no tecido – “[...] comprado do nosso bolso, não
ganhamos nada!”, evidenciou com entonação Ivone Vial. Os “pontos turísticos” (como
273
elas chamam os lugares) escolhidos foram o Morro da Cruz, o Capitel São José, o
“Moinho Galópolis” (como denominam a empresa Roseflor), a Igreja de Nossa Senhora
do Rosário de Pompéia, a Vila Operária, o Cine-Operário, o Lanifício, o “Museu Hércules
Galló” (como chamam o IHG) e a Árvore das Garças (esta inserida como elemento em
diversos bordados) – sendo os últimos cinco também contemplados pelo MTG.
As entrevistadas ressaltaram ainda como foi feita a produção: “no início a gente
ainda podia se reunir na nossa sala no antigo Círculo Operário, então a gente fazia o que
dava lá, nas terças [dia em que se encontravam], e depois terminava em casa. Cada uma
levava pra casa quantas podia fazer, 2, 3, 10, quantas quisesse. [...]. O desenho era um
molde, mas cada uma podia fazer como queria, do jeito que queria. Teve gente que criou
desenhos diferentes e colocou coisas a mais” – informa Ivone Vial.
Imagem 2 - Bordados em almofadas
Legenda: Bordados alusivos a Galópolis, bordados pelos membros do Clube de Mães La Mamma.
Fonte: Rosa Maria Diligenti, 2021.
Considerações finais
Desde o movimento Arts and Crafts, Arte, artesanato e Design passaram a ser a
junção onde “mão, mente e coração do homem vão juntos” (RUSKIN apud
MENEGUELLO, 2021, p. 13). Mesmo diante das tensões estabelecidas entre hierarquias
de produções artísticas “populares” e “canonizadas”, estas refletem as subjetividades de
indivíduos que atribuem valor, sentido e significado aos bens culturais de seu contexto
espaço-temporal.
Em alguns casos, a hierarquização alcança as próprias atribuições de valor, o que
impede a participação de determinados sujeitos na gestão de representações identitárias.
Ao invisibilizar, silenciar e enquadrar percepções, os processos de patrimonialização e
musealização, verdadeiras construções coletivas, perdem seu caráter representativo e
275
passam a servir não mais àqueles que construíram os bens culturais e que a eles atribuem
significado, mas sim àqueles que estabelecem as hierarquias de valor, ícones, índices e
símbolos. Em outras palavras (RUFINONI, 2021, p. 60), tais processos “[...] define[m]
lugares sociais e [constroem] narrativas e discursos em um trabalho de pensamento e de
história que também registra a arte de viver e de interpretar o tempo presente.”
Como foi apresentado neste trabalho, as hierarquias estão presentes no processo
de patrimonialização e musealização do território de Galópolis, expressos pelo projeto do
MTG, gestado pelo IHG e não pela comunidade local, que em tantas ocasiões, evidenciou
sua demanda por preservação e participação na gestão do patrimônio industrial, fruto da
trajetória de operários que em inúmeros momentos foram colocados em segundo plano.
As hierarquias precisam ser quebradas para que os preceitos expressos pela
Museologia Social, cara ao projeto em questão, possam ser alcançados e/ou
requalificados, e para tal feito ser alcançado, somente a gestão comunitária – diante de
todas as implicações que o uso do termo apresenta – por meio de um inventário
participativo (terceira fase do Museu de Território de Galópolis), é viável, sendo o
artesanato uma das diversas frentes traçadas para pensar a dimensão humana do
patrimônio industrial.
Referências
ADAMI, João Spadari. História de Caxias do Sul (1864-1962). Caxias do Sul: São
Miguel, 1963.
ANDRADE, Mario. O artista e o artesão. São Paulo, 1938. Disponível em:
http://www.eba.ufmg.br/alunos/kurtnavigator/arteartesanato/filos-03- artesao.html.
Acesso em 05 jul. 2021.
BORGES, Adélia. Design+Artesanato. São Paulo: Terceiro Nome, 2011.
BRULON, Bruno. Provocando a Museologia o pensamento geminal de Zbynek Z.
Stránský e a Escola de Brno. Anais do Museu Paulista, vol. 25, n. 1, 2017, p 403-425.
BUENO, Ricardo. Galópolis e os Italianos: patrimônio histórico preservado a serviço
da cultura. Porto Alegre: Quattro Projetos, 2012.
CAVALHEIRO, João Pedro. O Movimento de preservação ao Patrimônio Cultural em
Caxias do Sul e seus desdobramentos durante o final do século XX. Monografia.
Caxias do Sul: Universidade de Caxias do Sul, 2021.
CHUVA, Márcia. Os Arquitetos da Memória: sociogênese das práticas de preservação
do patrimônio cultural no Brasil Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2009.
CLUBE DE MÃES LA MAMMA. Depoimento manuscrito. Histórico do Clube de
Mães la Mamma escrito por Maria Lourdes Diligenti Comerlato. Caxias do Sul, out.
2019. Impresso, 3p. ERLO, Geovana. Museu de Território de Galópolis: estratégia para
276
SILVA, Janeclay Alexandre da; SILVA, Maria Cecília Feitosa da Silva. Mulheres
bordadeiras: práticas e memórias na construção do patrimônio cultural imaterial em
Alagoinha-PE. In: Anais do V Congresso Sergipano de História e V Encontro
Estadual de História da ANPUH/SE: O Brasil na historiografia de Felisbelo Freire:
Reflexos na Pesquisa e no Ensino em História. IHGSE: Sergipe, 2016.
TICCIH. Carta de Nizhny Tagil sobre patrimônio industrial. 2003.
TICCIH. Princípios de Dublin. 2011.
TICCIH BRASIL. Carta de Campinas. 2004.
VARINE, Hugues de. As raízes do futuro: o Patrimônio a serviço do desenvolvimento
local. Porto Alegre: Editora Medianiz, 2012.
278
Introdução
Este artigo apresenta um relato de nossas experiências como bolsistas de extensão
do Núcleo Transdisciplinar Arte e Loucura - Tania Mara Galli Fonseca
(NuTAL/UFRGS), núcleo de extensão vinculado ao Departamento de Educação e
Desenvolvimento Social (DEDS/UFRGS) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS) O Núcleo foi criado em novembro de 2019, após o falecimento da Profa. Tania
Galli, como uma forma de homenageá-la e dar continuidade aos trabalhos por ela
desenvolvidos junto à Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro
(HPSP).
As ações do Núcleo se desdobram em diferentes frentes de trabalho, contando
com um coletivo composto por docentes, discentes e técnicos da UFRGS e de outras
Universidades, de diferentes áreas do conhecimento como Artes Visuais, Arquivologia,
Biblioteconomia, Educação, História da Arte, Museologia, Psicologia e Saúde Coletiva,
evidenciando a transdisciplinaridade atrelado à missão do Núcleo. O programa tem como
objetivo a realização de projetos relacionados às discussões sobre Arte e Loucura,
possibilitando a produção de conhecimento e a socialização do que é produzido, com o
intuito de promover diferentes interações com a comunidade. O intuito deste trabalho é
realizar um registro das atividades desenvolvidas até o presente momento e também
daquelas que estão em andamento.
157
Aluna do curso de Museologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Estagiária da
Oficina de Criatividade do HPSP desde 2021. Contato: [email protected]
158
Aluna do curso de Museologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e bolsista de
Extensão do NuTAL/UFRGS - PROREXT. Contato: [email protected]
279
Nos hospícios brasileiros, a reclusão asilar era o meio de normatizar o sujeito que
não se adaptava às razões do trabalho e do mundo burguês, favorecia-se a ordem e o
progresso. "Para isto, o louco era internado em um lugar higienizado física e mentalmente
saudável, onde poderia recuperar os bons valores morais perdidos" (NEUBARTH, 2009,
p. 58).
Ao longo do século XX, muitas mudanças urbanas, políticas, sociais e culturais
marcaram a história do São Pedro, sobretudo, as discussões travadas sobre a Reforma
Psiquiátrica, a qual impactou diretamente na trajetória do hospital. Eclodindo em diversas
partes do mundo movimentos da anti-psiquiatria, da luta anti-manicomial somaram-se ao
movimento pela Reforma Psiquiátrica, com propostas mais humanitárias no cuidado aos
indivíduos com algum sofrimento psíquico. Na Assembléia Legislativa do Rio Grande do
Sul tramitou a Lei de Reforma Psiquiátrica - Lei 9.716, promulgada em 07/08/92, que,
em seu artigo segundo determinava a atenção ao doente mental em serviços
diversificados, de acordo com suas necessidades, o que, em muito nos interessava.
280
Figura 2 - Fachada da atual sede da Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro.
NuTAL
A criação do Núcleo de Extensão aconteceu no dia 25 de novembro de 2019.
Vinculado ao Departamento de Educação e Desenvolvimento Social (DEDS/UFRGS), o
NuTAL promove ações de extensão e tem por objetivo dar continuidade aos projetos
desenvolvidos pela Profa. Tania Mara Galli Fonseca junto à Oficina de Criatividade e o
seu Acervo. Para isso, fazem parte do Núcleo técnicos, docentes e discentes, da UFRGS
e de outras universidades, de diferentes áreas do conhecimento. O programa tem como
objetivo a realização de colóquios, seminários e jornadas que discutem as relações entre
Arte e Loucura, possibilitando a produção de conhecimentos, além da ampla divulgação
de pesquisas e eventos por meio do seu site e mídias sociais, para assim socializar o que
é produzido com o intuito de promover interações com a comunidade interna e externa
da UFRGS.
Atualmente o NuTAL/UFRGS possui um site oficial (Figura 4), um perfil no
Instagram e um canal no YouTube, espaços que socializam e registram as atividades
realizadas e em andamento propostas pelo Núcleo.
283
módulos e ministrada pela Profa Dra. Vanessa Aquino, Museóloga e Coordenadora Geral
do NuTAL e pela Museóloga e Mestranda em Museologia e Patrimônio, Aline Vargas. A
atividade contou com reflexões teóricas e práticas em relação aos cuidados com a
organização, limpeza e segurança nos espaços de guarda do Acervo da Oficina
Criatividade. Ao final do exercício, os participantes e profissionais que trabalham na
Oficina receberam um material contendo informações sobre os temas abordados para
facilitar a consulta posterior e auxiliar na manutenção das boas práticas. A ação teve como
objetivo mobilizar a equipe a refletir sobre a importância do papel de cada um nas rotinas
que envolvem cuidados diários com os espaços de guarda para a efetiva preservação deste
patrimônio.
Figura 6 - Oficina de Boas Práticas em Acervos.
Desde a criação do perfil nas redes foram produzidas mais de oitenta publicações
relacionadas a temática arte e loucura, divulgação de eventos, indicações culturais e a
divulgação dos trabalhos feitos em parceria com a Oficina.
Por conta do contexto pandêmico muitos planos foram adiados, como, por
exemplo, a exposição para celebrar os trinta anos da Oficina de Criatividade, que estava
prevista para acontecer ainda em 2020. Todavia, a exposição segue nos planos para
quando for possível nosso retorno presencial.
Cabe salientar que no mesmo ano, participamos do XXI Salão de Extensão da
UFRGS, que ocorreu de forma virtual, apresentando o Núcleo e as atividades que estavam
sendo desenvolvidas, disponibilizando posteriormente nossos vídeos no canal do NuTAL
no YouTube (youtube.com/nutalufrgs), outra plataforma gratuita que nos possibilita
dialogar com a comunidade e compartilhar nossas atividades. Também, em uma parceria
com a Oficina e as outras três coleções de arte e loucura do âmbito nacional, promovemos
o evento “Arte e Loucura: 4 coleções em diálogo”, uma conversa com os representantes
dos acervos, que ocorreu durante a 14ª Primavera dos Museus.
Em 2021, está ocorrendo o Seminário Tania Mara Galli Fonseca: Pensamentos e
Testemunhos, organizado pelo Prof. Luís Artur Costa (PPGPSI/UFRGS) em parceria com
o NuTAL. Serão oito encontros online, de abril até novembro, em que os convidados
conversaram sobre suas trajetórias pessoais e profissionais, marcadas pela presença e
afeto da Profª Tania.
286
Considerações finais
É indubitável a importância da parceria do NuTAL com a Oficina de Criatividade,
através desta relação conseguimos fortalecer o vínculo entre a instituição e a Universidade
e dar continuidade ao legado da Profa. Tania Mara Galli e iniciar novos projetos. O
mesmo se estende ao futuro Museu Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São
Pedro (MOC-HPSP), instituição em processo de criação composto pelas obras que fazem
parte do Acervo da Oficina de Criatividade, onde são previstas ações museológicas
específicas voltadas aos bens culturais vinculados ao futuro Museu e à comunidade local
Em 2021, daremos continuidade aos projetos em andamento, como o Seminário
Tania Mara Galli: Pensamentos e Testemunhos, que possui programação até novembro
deste ano. O NuTAL, em parceria com o MOC-HPSP, irá participar do Dia do Patrimônio
do RS, uma iniciativa promovida pela Secretaria da Cultura do estado, cujo objetivo é
promover e divulgar o patrimônio cultural do Rio Grande do Sul. Para isso, será
produzido um vídeo com vistas a reproduzir uma visita guiada virtual no espaço do futuro
Museu. Além disso, o NuTAL segue com sua presença ativa no Instagram e está se
organizando para participar do XXII Salão de Extensão promovido pela UFRGS,
relatando as atividades realizadas ao longo do ano e as ações desenvolvidas em parceria
com a Oficina de Criatividade e o seu Acervo.
Referências
CRUZ JÚNIOR, Eurípedes. Do asilo ao museu: as primeiras exposições das coleções
da loucura no Brasil. Tese (Doutorado em Doutorado em Museologia e Patrimônio) -
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. 2015.
NEUBARTH, Barbara Elisabeth. No fim da linha do bonde, um tapete voa-dor: a
Oficina de Criatividade do Hospital Psiquiátrico São Pedro (1990-2008):
inventário de uma práxis. Tese (Programa de Pós-Graduação em Educação) –
UFRGS. Porto Alegre. 2009.
NUTAL - NÚCLEO TRANSDISCIPLINAR ARTE E LOUCURA - TANIA MARA
GALLI FONSECA. NuTAL - Núcleo Transdisciplinar Arte e Loucura - Tania
287
Introdução
Em um mundo cada vez mais visual, existe uma grande produção de imagens para
o mercado de consumo. No entanto, o cartão postal, na maioria das vezes, não mostra a
nova paisagem que vai sendo construída e reconstruída. Essa nova paisagem tem muito a
dizer, já que se remete a identidades que não são aquelas originais dos lugares
patrimoniais, mas que acabam falando por si, insistindo em viver em meio a uma
sociedade dinâmica de mudanças e de transformações. Desta maneira, é possível observar
a construção de imagens de visualidades que nós nos remetemos e que representam uma
realidade em específico.
Inicialmente, será feita uma reflexão sobre as fontes utilizadas no trabalho
historiográfico, discutindo sua ampliação e a apropriação do patrimônio por diferentes
grupos sociais; abordando, em específico, o uso de imagens e a construção de visualidades
sobre determinados espaços, e estabelecendo representações e sistemas simbólicos que
são reproduzidos pela população de um modo geral. Haverá, assim, uma discussão sobre
a complexidade do patrimônio como um ato de violência de caráter autoritário que, por
vezes, não leva o outro em consideração.
Logo após, será problematizada a ideia de patrimônio como algo fechado e
acabado, mostrando suas fraturas e contradições, pois o dever de preservar é a vontade de
preservar o importante. Uma nova paisagem é criada à medida que se depara com as
enormes dificuldades em se preservar o corpo do patrimônio, as ruínas são testemunhas
de uma nova forma ou o fim de alguma memória. O patrimônio, portanto, precisa ser
entendido como algo dinâmico em constante movimento e transformação.
Por fim, neste trabalho será analisado o risco de transformar o patrimônio em
mercadoria, os espaços patrimoniais em cenários e os bens em produtos que atendam ao
mercado de consumo; refletindo sobre as sensibilidades e emoções presentes nesses
lugares, atentando-se para a importância de se preservar e, também, de entender às suas
interações sociais, relações de poder e construção e representação da identidade
159
Mestranda do Programa de Pós Graduação do Mestrado Profissional em Estudos Culturais, Memória e
Patrimônio da Universidade Estadual de Goiás (PROMEP/UEG/Câmpus Cora Coralina). Contato:
[email protected].
290
goiana. Analisaremos cidade como uma obra de arte total que precisa ser gerida de
maneira a atender todas as demandas de diferentes grupos, o que a tornaria uma sociedade
para inclusão e diversidade.
lugares que não se apresentam em bom estado de conservação não são vistos no cartão-
postal da cidade.
Acontece que por mais que exista um esforço em se preservar e conservar junto
com as residências a áurea daquele local, os espaços e as residências presentes ali são
reconstruídos com outras identidades que não são as originais. Estes locais visuais não
são, na maioria das vezes, reais por não representarem, de fato, a sociedade e as pessoas
como um todo, mas apenas um restrito grupo de poder.
Quando analisados o ideal de preservação e a real situação do centro histórico da
cidade de Goiás, percebe-se a perda de sentido de algumas residências. É necessário ir
além do que mostra, além do material. Passando a existir uma preocupação das relações
das pessoas com esses locais, os quais não podem ser considerados um fim em si
mesmo.
Daí pode-se perceber a importância das visualidades para o discurso imaginário
das pessoas. Os silêncios ou a não divulgação destes espaços fraturados falam sobre
aquilo que não foi dito ou escrito oficialmente. Por trás da história pronta, da legislação
acabada, existe uma série de burocracias e acontecimentos que passam despercebidos aos
olhos da sociedade.
A cidade como uma visualidade precisa ser repensada na mediada em que se
começa a perceber os limites do patrimônio. Gonçalves (1999), em seu texto sobre
coleções e museus, faz uma reflexão acerca de colecionamento e esta pode também ser
aproveitada quando se busca ir além do visível. O patrimônio jamais atinge uma
totalidade, jamais se fecha é produzido por um sujeito situado numa posição relativa.
Gonçalves (1999, p. 49) pontua que o indivíduo é limitado a produzir verdades
parcialmente onde “a cultura possa ser vista em constante reconstrução, como um
processo híbrido, sempre parcial, precário, contingente, jamais fechado numa
totalidade”.
Em relação ao patrimônio, há um esforço de construir uma totalidade. Todavia,
em consonância com as palavras de Gonçalves (1999), é um processo dividido contra si
mesmo, articulado por uma permanente tensão entre totalização e fragmentação. Destarte,
faz-se indispensável pensar o patrimônio como algo em constante movimento que não se
apresenta de maneira fechada e unificada, mas passível de intervenções e reconstruções
de modo que venha beneficiar diferentes grupos na sociedade.
Numa cidade patrimônio, é preciso entender a presença das ruínas em sua
composição estética, indenitária e cultural, pois elas têm um significado simbólico e
294
são os vãos, as fissuras, a ruína como testemunho de fluxos e histórias que já acontecerem,
ou seja, daquilo que representava e deixa de representar numa sociedade.
A dialética do progresso numa cidade patrimônio da humanidade é muito forte,
pois ao mesmo tempo que se preserva o antigo, anseia-se pelo novo. Desta forma, estes
lugares abandonados são constantemente renegados por olhares cotidianos e alvo de
críticas.
A paisagem abrange outras memórias e reflexões que representam uma sociedade
cada vez mais capitalista, que valoriza o progresso e olha para o antigo, por vezes, com
interesses econômicos; “fetichizando” o patrimônio e adaptando-o de acordo com as
exigências do novo mercado. Ou, até mesmo, abandonando-o por causa das dificuldades
burocráticas existentes. O sociólogo e filósofo francês, Henri-Pierre ressalta:
Os fotógrafos procuram na maioria das vezes, ao menos, em nossa
época, fazer falar o que a cidade parece esconder. Bom número deles
insiste nos “não-lugares”, nos territórios indefiníveis, continuam
fascinados pelos “entre-dois-espaços”. Captam imagens parecidas com
“montagens naturais”, que associam “fragmentos de realidade” a fim de
provocar e manter uma sensibilidade própria das aparições insólitas.
(JEUDY 2005, p. 82).
Faz-se necessário, portanto, repensar a cidade por meio dos moradores, levando
em conta também a apropriação dos espaços de poder, por grupos “invizibilizados”, nos
monumentos que tratam de uma memória específica que não prima pela diversidade, o
que ressignificaria os discursos e a nova paisagem, pensando sobre as memórias dos
indivíduos na construção e representação do espaço central. As ruínas, portanto, além de
fazer parte da paisagem urbana, são os restantes exemplares do patrimônio, o qual diz
muito sobre a cidade, seus moradores e proprietários. Os valores são atribuídos aos bens
e, desta forma, tornam-se relativos. Estes locais são, portanto, testemunhas de histórias e
transformações das identidades do sujeito.
ganha lugar principal e emociona milhares de pessoas. Por isto, resgatar e conservar
tradições são uma importante característica da cidade de Goiás, o que contribuiu para sua
valorização.
Este modelo exemplifica a ameaça de transformar, como cita Veloso (2006,
p.439), [...] os bens culturais em meros objetos de consumo, em transformar o patrimônio
cultural em história rasa, ou ainda transformar as manifestações culturais em fetiche [...]”.
Deste modo, quando os turistas vêm atrás do espetáculo desconsideram toda dimensão
semântica e social da cidade.
O que se percebe é a existência de um universo simbólico compartilhado, onde é
forte a relação entre patrimônio cultural e poder local, valorizando uma expressão cultural
vinculada à elite, marginalizando, assim, todas as outras que não estão naquele espaço de
poder. Como afirma Veloso (2006, p. 445), “mesmo com o processo de democratização
e modernização da sociedade brasileira, o poder local e sua capacidade de manipulação
da tradição, da memória coletiva e da identidade local não podem jamais ser
desprezados”. Portanto, é necessário que se reflita como a sociedade apropria dos
discursos de poder e como as crenças vão se tornando verdades.
Na cidade de Goiás, é perceptível a valorização e a extrema cautela com os museus
e igrejas localizados no centro histórico, reconhecido mundialmente como patrimônio.
Isto pode ser explicado pelo fato de estes lugares serem de responsabilidade do Órgão
Público. No caso das residências, a responsabilidade pela conservação é do proprietário
para que sua residência permaneça em bom estado sempre. Quando o possuinte não tem
condições financeiras para tal, é possível recorrer ao artigo 19 do Decreto-lei n°
25/1937.
O ideal seria todo conjunto arquitetônico tombado estar em perfeito estado de
preservação e se apresentar da maneira como era na construção da cidade de Goiás. No
entanto, o patrimônio pensado como um corpo apresenta fraturas e traumas, sofre, como
todos os lugares, constantes mudanças e transformações. A permanete preocupação com
o preservar significa a tentativa de adiar aquilo que vai acontecer, que é a perda.
Essas residências que sofrem com o processo de deterioração produzem uma nova
paisagem no patrimônio, escondendo um mistério sobre sua existência e possibilitando
outras narrativas. Como cita Silva:
Ao ressignificar os espaços patrimoniais, passamos a nos questionar
sobre seus afetos e suas histórias, um passado que coexiste no presente,
de registros de novas histórias que se escondem em paisagens de
emoções. [...] Um patrimônio que além de representar significados,
297
Sabe-se que os bens culturais não têm por si mesmo valores intrínsecos, ao
contrário, são as pessoas que lhes atribuem este valor. No caso do centro, há grupos de
poder e prestígio em função de interesses. No entanto, como aborda Veloso (2006), “O
patrimônio cultural, quando bem compreendido, expressa diferentes representações
coletivas que estabelecem múltiplas conexões entre si. [...] é fundamental que se vincule,
sempre, a pulsação do patrimônio cultural à dinâmica coletiva”.
Silva (2019) diz que são nessas mesmas fraturas que os moradores se reconhecem,
são singulares, ressignificam espaços, constroem identidades, ou seja, onde veem “[...] os
lugares como espaços de memórias, de lutas e resistências, de lembranças e afetos, de
tradições e oralidades, do sentir e do pensar. Portanto, são patrimônios que muitas vezes
falam por si, e mesmo apesar do tempo, insistem em viver (p. 5)”. Portanto, o desejo de
conservar e valorizar vem ao encontro da necessidade de conhecer, que deve ser, segundo
Bessa, Cunha, Loureiro, Barreira, Coelho e Melo (2010), articulada com o respeito mútuo
e simultâneo pelo antigo e pelo novo. A Cidade Patrimônio da humanidade precisa ser
repensada e entendida como uma obra de arte nos seus aspectos total e particular, como
algo que precisa dilatar e agregar outros espaços, sendo ocupada por diferentes grupos
sociais. Uma cidade bem gerida e cuidada por uma gestão que venha a atender à demanda
de todos, e não apenas de alguns, numa nova dinâmica em que a memória é para todos.
298
Considerações finais
Ao propor o estudo do patrimônio material na construção de visualidades,
podemos repensar o significado, os limites e as possibilidades do patrimônio que resulta
em olhar para as dimensões e espaços das novas paisagens visuais. Os indivíduos, assim,
além de agentes transformadores do meio, são também produtores de significados e novas
memórias. A comunidade, consequentemente, é a peça fundamental na proteção e
preservação do patrimônio.
Pensar em residências tombadas é imaginar o fluxo de histórias e experiências que
as envolve, que se tornam únicas na medida em que os agentes estabelecem diferentes
formas de vivenciá-lo em seus modos de existência, permitindo a aproximação das
pessoas com seus patrimônios, para que haja a compreensão de que naquele espaço, em
diferentes temporalidades, houve relações e sociabilidades promovidas com
afetividade.
São mais que residências tombadas, são espaços que habitam e podem ser
chamados de lar, são produto de memórias e identidade, lugar e suporte em que homens
e mulheres tecem suas histórias de vida e de sua comunidade. É importante pensar
patrimônio a partir das interações entre a comunidade e suas residências. No Patrimônio
cultural, tais locais se apresentam como anexadoras de experiências de pertencimento e
sociabilidades.
Em vista disto, é necessário que, nestes espaços tombados, exista uma
preocupação em não deixar que este patrimônio se volte somente para demandas
capitalistas, banindo sua história ou superficializando as representações. É um espaço
passível de críticas e desconstruções, mas que pode der repensado, ocupado e utilizado
de modo a incorporar outros grupos, atentando-se para inclusão e diversidade.
Referências
BESSA, Alda et al. O Papel da História da Arte numa Cidade Património Mundial.
Estudo de Caso: o Porto. Actas do Seminário Centros Históricos: Passado e Presente, p.
109205, 2010
FREITAS, Artur. História e imagem artística: por uma abordagem tríplice. Revista
Estudos Históricos, v. 2, n. 34, p. 3-21, 2004.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Historicizando Coleções e museus
etnográficos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios, pp. 44-57 –
1999.
299
Introdução
Certamente a compreensão majoritária compreende que políticas voltadas ao
patrimonial cultural se restringem aos limites das ações do Poder Executivo em
implementar políticas públicas dessa temática a partir dos órgãos historicamente
consolidados, tais como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
(IPHAN), o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM). Nesse sentindo, a presente pesquisa
analisará o processo legislativo do PL 7568/2006, até chegar ser outorgada pelo
Presidente na lei 11.904/2009, conhecidamente como Estatuto do Museus. Portanto, será
acompanhada a tramitação do respectivo PL, cujo o objetivo é mostrar o desenrolar dos
projetos legislativos com temáticas voltadas do patrimônio cultural.
Anualmente, são realizadas diversas entradas de Projetos de Lei (PL) que irão
tramitar ou não no Congresso Brasileiro. Esses projetos que podem ser de autoria dos
próprios parlamentares eleitos, tal como deputados e senadores, mas também terão a
possibilidade de serem criados pelo Presidente da República, Ministros do Supremo
Tribunal Federal e outros tribunais superiores, além das Iniciativas Populares, passarão
por toda estrutura institucional ensejada pela Constituição Federal e aos Regimentos
Internos das respectivas casas legislativas. Não fugindo da regra, PLs cujas temáticas são
vinculadas ao patrimônio cultural também passarão por toda estrutura institucional do
Legislativo Nacional, o qual é o espaço de debates e deliberações políticas, em especial,
políticas a nível nacional. Vale destacar que a tramitações dos PLs acontecem como rito,
contudo, um rito jurídico, os quais são importantes para a regra democrática e eficiência
do Poder Legislativo.
Normalmente, a porta de entrada dos PLs ocorrem em primazia na Comissão de
Constituição, Justiça e Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados, onde um grupo de
160
Mestrando em Ciência Política – PPGCP/UFPA. Graduado em Museologia (UFPA) e Relações
Internacionais (Unama). Membro do Grupo de pesquisa “Instituições: Processo Legislativo e Controle”.
161
Doutor em Ciência Política (Unicamp). Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política
(PPGCP) e da Faculdade de Ciências Sociais (FACS) da UFPA. Coordenador do Grupo de Pesquisa
“Instituições: Processo Legislativo e Controle”.
301
162
Grosso modo, um sistema bicameral é considerado simétrico quando ambas as câmaras gozam de
semelhantes poderes para iniciar, modificar ou vetar leis; e incongruente quando as formas de seleção dos
membros de cada casa são distintas. Apesar de ser considerado incongruente, nota-se que, em relação a
composição partidária, as diferenças nos corpos legislativos de ambas as casas do Congresso Nacional não
são tão grande quanto a que se pode esperar a partir dos dispositivos institucionais que fomentam a
incongruência (RUBIATTI, 2015).
302
acabam sendo responsáveis por parte significativa dos dispositivos das leis aprovadas que
foram iniciadas pelo Executivo. Somado a esse papel, também destaca-se que os
legisladores têm forte atuação na área social (FIGUEIREDO e LIMONGI, 1999;
LIMONGI e FIGUEIREDO, 2006) – o que inclui a política de patrimônio – e que nos
anos 2000 houve um aumento das iniciativas dos legisladores (ALMEIDA, 2019). A
produção de leis com temáticas políticas patrimoniais no Brasil é algo difuso, pois a força
da ocorrência é de iniciativa quase exclusiva do interesse dos parlamentares em querer
dialogar e deliberar sobre as questões pertinentes ao tema ou ser estimulado pelos órgãos
ministeriais do Executivo que atuam com questão da salvaguarda do patrimônio.
A Ciência Política contribui com o olhar as instituições e explicar os fenômenos
políticos existentes nesses espaços, para então, desenvolver, apontar e corroborar com
melhorias ou rejeitar situações de incomodo. Para isso, é buscado compreender a cultura
presente nas ações dos agentes políticos dentro de um contexto institucional, e deflagrar
os processos que construíram os arranjos que compõem a cena política. Vale ressaltar,
que mesmo não sendo um tema recorrente na área da Ciência Política, o patrimônio
cultural possui grande papel para o desempenho das instituições, pois é de conhecimento
acadêmico que as funções colocadas ao patrimônio são servidas como imaginário
simbólico e identitário dos Estados-Nações ao longo da história. Em palavras próprias, a
Ciência Política como epistemologia poderá olhar o patrimônio cultural como status
político dos bens culturais, os quais são eleitos por uma determinada organização social,
seja ela local, nacional ou internacional. Por fim, as ocorrências e verificações das
instituições são fundamentais para chancelar os desejos sociais, tal como em
patrimonializar algum bem cultural, pois são através das instituições que são incorporadas
as regras aceitáveis ou rejeitada por uma ou mais sociedades.
A Macropolítica Brasileira
A trajetória macropolítica brasileira pós redemocratização possui peculiaridades e
arranjos políticos próprios, que diferem das experiencias democráticas anteriores, isto é,
mesmo mantendo um arranjo que combina Presidencialismo, Multipartidarismo,
Federalismo, sistema bicameral, e eleições proporcionais de lista aberta, a Constituição
de 1988 adotou algumas medidas que diferenciam o real funcionamento do sistema
político atual frente ao que se via no período democrático anterior (1946-1964). Destarte,
“a Carta de 1988 modificou as bases institucionais do sistema político nacional, alterando
radicalmente o seu funcionamento” (LIMONGI e FIGUEREDO, 1998, p, 82).
303
Vale ressaltar que no ano de 1988, foi lançado por Sergio Abranches a expressão
“presidencialismo de coalizão” (ABRANCHES, 1988), sendo cristalizado como a maior
característica do arranjo macropolítico brasileiro, e incorporado em diversas pesquisas
acadêmicas ao tratar de presidencialismo no contexto da existência de um sistema
eleitoral que tendem ao multipartidarismo em diversas partes do mundo.
Esse presidencialismo de coalizão segundo Abranches consiste na ação do Poder
Executivo em construir uma base de apoio (coalizão) no Legislativo, dado da
impossibilidade do partido do governo deter a maioria das cadeiras do parlamento, pois
o sistema eleitoral brasileiro atua em regular as preferências com a proporcionalidade, já
que “os sistemas proporcionais ajustam-se melhor à diversidade, permitindo admitir à
representação a maioria desses segmentos significativos da população” (ABRANCHES,
1988, p. 12), assim ocasionando um grande número de parlamentares eleitos por
diferentes partidos. Dentro dessa perspectiva, tem-se como resultado desse
multipartidarismo a condição minoritária do Presidente e a consequente fragilidade do
Executivo em passar seus projetos dentro do Legislativo. Porém essa situação poderia ser
mitigado a partir da distribuição de recursos e cargos para os legisladores, em outras
palavras, com a formação de uma coalizão.
Posteriormente a esse diagnóstico, foi apresentado por Fernando Limongi e
Argelina Figueiredo (1998) um olhar mais criterioso do funcionamento institucional do
Congresso. Dessa maneira, destaca-se o papel protagonista dos partidos políticos nas
articulações para construir as coalizões. É desenrolado na pesquisa pelos autores que é
exequível e viável o funcionamento do presidencialismo de coalizão, com o pressuposto
que os partidos disciplinariam os membros da bancada, a partir da criação em gerar
benefícios e punições aos parlamentares (LIMONGI e FIGUEREDO, 1998). Assim, os
autores pontuam que para a literatura anterior:
As relações Executivo-Legislativo dependerão sempre e
exclusivamente do sistema partidário e das regras que regulam a
competição eleitoral, e partidos desempenharão o mesmo papel no
interior do Legislativo, independentemente dos direitos legislativos
assegurados regimentalmente aos líderes partidários. (LIMONGI,
FIGUEREDO, 1998, p. 84).
Todavia, para se compreender o funcionamento das instituições políticas, é
necessário observar o próprio arranjo institucional. Como dito anteriormente, a
Constituição de 1998 alterou as regras que norteiam o funcionamento do Legislativo e a
distribuição de poderes entre o Executivo e o Congresso Nacional. Essas alterações se
deram em dois pontos fundamentais: o aumento do poder de agenda do Executivo e a
304
163
Em ambas as Câmaras se observa um predomínio de um comportamento partidário e ambas possuem
regimentos que fortalecem os líderes partidários. Porém, é perceptível uma maior força regimental e maior
disciplina na Câmara dos Deputados.
305
da população, especialmente para Câmara, uma vez que no Senado o sistema adotado é o
majoritário. Nesse sentindo, o papel de parlamentares que possui uma posição não
extremada, obtém mais sucesso em gerar novas informações para o parlamento, pois o
observa que parlamentares extremos poderiam levantar informações aviesadas
(SANTOS; ALMEIDA, 2011). Vale mencionar, que o principal agente informacional do
Legislativo é o próprio Executivo, dado que a estrutura do governo possui de forma
concisa informações sobre o país. Contudo, é possível fazer uma reflexão também, de
como será a realizado o trabalho de comunicação por parte dos agentes do Executivo em
conexão ao Congresso, pois possivelmente o Executivo poderá corroborar com
informações enviesadas, o que poderia levar a entender a manipulação de interesses, dessa
forma, é de suma relevância a ação de pressionar os legisladores em direção em buscar
gerar novas informações.
Tramitação do PL 77568/2006
Durante a agenda do congresso, os projetos de leis participam de todo rito
regimental elaborado pelos Regimentos das casas legislativas, tanto o Senado quanto a
Câmara possuem regimentos internos que vão nortear todas as discussões e as votações.
Segue-se compreender que internamente às casas, deputados e senadores poderão estar
mais envolvidos estrategicamente em comissões, cujo o eixo temático se aproxima mais
de suas bandeiras eleitorais. No caso de políticas voltadas para o patrimônio cultural, o
tema era deliberado na Comissão de Educação e Cultura até o ano de 2013 – após essa
data a Câmara optou o desmembramento dos temas, transformando-as em duas comissões
permanentes: Comissão de Educação e Comissão de Cultura.
O contexto na época para as políticas patrimoniais era próspero, visto que os
patrimônios edificados, patrimônio imaterial, museus, bibliotecas, arquivos públicos e
outros passavam por grande ebulição social e acadêmica. Nesse sentido, foi realizado
durante a década de 2000 diversos investimentos em espaços museológicos por todo
Brasil, o que fez criar visibilidade para esses espaços perante a sociedade, além também,
foi nesse período que foi levantado a chancela inédita de patrimonialização, através do
registro, dos Bens Imateriais.
O Legislativo também incorporou essas influências da sociedade na época:
provocou-se a discutir um Projeto de Lei que garantia estabelecer regulamentação das
funções dos espaços museológicos no Brasil, e ainda criar uma nova instituição, sendo
ela o IBRAM, podendo agora trabalhar concentrados nas ações restritas dos museus.
307
Nesse período foi apresentado o PL 7568/2006 que, posteriormente, passou a ser a Lei
11.904/2009, conhecidamente como Estatuto dos Museus, e que terá aqui nessa pesquisa
uma explica do processo legislativo no seguinte quadro:
164
Regimentalmente, todo projeto que não chega a um resultado na Câmara dos Deputados é arquivado ao
final da legislatura, sendo facultado o pedido de desarquivamento na legislatura seguinte.
309
para o plenário da comissão e, sendo aprovado por ele, para o plenário da casa. Todavia,
esse primeiro relatório da CCJC, que era pela aprovação da matéria, não chega a ser
votado e o projeto é arquivado.
Esse arquivamento será interrompido a partir da aprovação do requerimento da
Comissão de Educação e Cultura já de 2007, o que retornaria para discussão na CCJC,
porém nas mãos de outro relator: agora o Deputado José Genuino (PT-SP), figura que
também compõe a coalizão governista, é o responsável por essa função. E seu relatório,
fica a aprovação, porém com emendas de conteúdo, isto é, esse segundo relator também
se mostra favorável ao projeto, mas exerce suas funções propondo modificações no
mesmo. Apesar desse relatório ter sido votado na CCJC em agosto de 2007, apenas em
junho do ano seguinte o mesmo entra na pauta do plenário, que seria o responsável pela
decisão final. Nesse meio tempo, tanto a CEC quanto parlamentar da base governista
(Dep. Angelo Vanhoni – PT) apresentaram requerimentos para incluir o projeto na pauta.
Dessa forma, se nota que, mesmo não sendo projeto do Executivo, a coalizão – ou parte
dela – busca agilizar o processo decisório sobre essa política.
Assim, o ano de 2007 é marcado pela trajetória vagarosa na Câmara dos
Deputados, e essa lentidão pode ser justificada pela ocorrência de outras atividades
legislativa que ocuparam intensamente a agenda do Congresso.
Após a apreciação e aprovação em plenário, o PL seguiu para o Senado, que atuou
como casa revisora. Nessa casa o projeto se inicia pela Comissão de Constituição e Justiça
(CCJ), que tem como relatora indicada Ideli Salvatti, também do PT e, consequentemente,
parte da coalizão de governo. Essa relatoria se caracteriza por ser mais célere e a
aprovação do relatório se dá em menos de um mês. Cabe notar que o relatório em questão
foi pela aprovação da matéria. Após a aprovação na CCJ, o projeto passa para a Comissão
de Educação, Cultura e Esportes (CE). Na CE se visualiza duas ações diferentes: 1) há
um grande montante de notas sobre o PL encaminhado por diferentes indivíduos e
organizações vinculadas a questão dos museus e 2) foi feito requerimento de Audiência
Pública para a instrução da matéria, requerimento feito pela Senadora de oposição Marisa
Serrano (PSDB-MS).
Cabe notar que o pedido de audiência ocorreu durante a enxurrada de
correspondências e documentos de diversas matizes que trabalham com as questões
museológicas, tais como Museus, profissionais de Museus, Conselhos, Professores de
Museologia e outros. Durante a realização foram convidados seis agentes com expertises
no assunto, sendo entre eles chama-se atenção para dois convidados: João Sayad,
310
Considerações finais
A tramitação do Estatuto dos Museus nos dá uma dimensão sobre o
funcionamento das Instituições Políticas Brasileiras, permitindo ver o presidencialismo
311
Referências
ABRANCHES, Sergio. Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro.
DADOS, vol. 31, n.1, 1988, p. 5-34.
ALMEIDA, Acir. Do plenário às comissões: mudança institucional na Câmara dos
Deputados. In: PERLIN, G, SANTOS, M.L. Presidencialismo de coalizão em
movimento. Brasília: Edições Câmara, 2019,
COX, G.W. & MCCUBBINS, M.D. (1993) Legislative leviathan: party government in
the house. Berkeley: University of California Press, 1993 KREHBIEL, K. Information
and legislative organization. Ann Arbor: The University of Michigan Press, 1991.
LIMONGI, Fernando; FIGUEIREDO, Argelina. Bases institucionais do
presidencialismo de coalizão. Lua Nova, São Paulo, 1998.
LIMONGI, Fernando; FIGUEIREDO, Argelina. O Poder de agenda na Democracia
Brasileira: desempenho do governo no presidencialismo pluripartidário. In: SOARES,
Gláucio e RENNÓ, Lúcio. Reforma Política: lições da história recente. Rio de Janeiro:
Ed. FGV, 2006, p.249-280
NEIVA, Pedro Robson Pereira; SOARES, Márcia Miranda. Senado brasileiro: casa
federativa ou partidária? Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 81, p. 97- 115,
2013.
RUBIATTI, Bruno de Castro. Incongruência e composição partidária no bicameralismo
brasileiro. In: V. R. CARVALHO, V. R; MENEZES, M. Política e Instituições no
Brasil. Teresina: Ed. UFPI, 2015.
RUBIATTI, Bruno de Castro. Sistema de resolução de conflitos e o papel do Senado
como câmara revisora no Bicameralismo Brasileiro. Revista Brasileira de Ciência
Política, s/v(23), 2017, pp. 35-74. DOI: 10.1590/0103-335220172302
RUBIATTI, Bruno de Castro. Organização interna das Casas Legislativas da
Argentina, Brasil e México: estratégias individualistas ou reforço da representação
partidária? In: MENEZES, M.; JOHAS, B.; PEREZ, O. (Orgs.) Instituições políticas e
sociedade civil. Teresina: EDUFPI, 2017a p. 201-237.
RUBIATTI, Bruno de Castro. O Senado frente as propostas da Câmara dos Deputados
no bicameralismo brasileiro. Revista Debates, 12(2), 2018, pp. 169-199.
RUBIATTI, Bruno de Castro. Os Estudos Legislativos no Brasil: Agendas de
Pesquisa. Caos - Revista Eletrônica de Ciências Sociais, 2(23), 2019, pp. 12-35. DOI:
10.46906/caos.n23.49418.p12-35
313
RUBIATTI, Bruno de Castro. Para Além do Plenário: o papel decisório das comissões
no Senado Federal Brasileiro. Revista de Sociologia e Política, v. 28, n.75, e005, 2020.
DOI 10.1590/1678-987320287505
SANTOS, Fabiano e ALMEIDA; Acir. Fundamentos Informacionais do
Presidencialismo de Coalizão. Curitiba; Apris; 2011.
Outras referências
Câmara dos Deputados:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=335902
Senado: https://www6g.senado.leg.br/busca/?q=estatuto+dos+museus
314
Introdução
As cidades do Brasil Colônia, mesmo com várias diferenças das que
Portugal ergueu em seu próprio solo e também no Marrocos, África Meridional e
Ásia, mantiveram, em vários aspectos, características tão intrínsecas da Metrópole que
podem ser tratadas como cidades portuguesas do Brasil antes de serem consideradas
cidades brasileiras. Recife, cuja traça deve-se aos holandeses de Nassau, deixou de ser
exceção após a expulsão de seus invasores e passa a moldar-se às características das
demais cidades brasileiras, semelhantes às portuguesas do mesmo período: a da Idade
Média, informal, e a renascentista, formalizada.
Atributos medievais e da Renascença foram trazidos por portugueses em
sua colonização brasileira em uma combinação complexa executada por
cruzados, interessados genuinamente em obras de catequese, e por homens ambiciosos
com o único objetivo de enriquecer na Colônia. Tal desordem diferenciava o Brasil da
colonização hispânica nas Américas e diante desse cenário Sério Buarque de Holanda
aponta que:
Em nosso próprio continente a colonização espanhola caracterizou-
se largamente pelo que faltou à portuguesa: por uma aplicação
insistente em assegurar predomínio militar, econômico e político da
metrópole sobre as terras conquistadas, mediante a criação de grandes
núcleos de povoação estáveis e bem ordenados. Um zelo minucioso e
previdente dirigiu a fundação das cidades espanholas na América
(HOLANDA, 1995, p. 95 e 96).
165
Arquiteta e Urbanista graduada pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) e Mestre em
Urbanismo (PROURB-FAU/UFRJ). Atualmente, é professora da Faculdade Paraíso do Ceará. Contato:
[email protected]
315
pelo alinhamento dessas fachadas) com muita profundidade. Essa implantação persiste
até hoje em várias cidades brasileiras e tal solução não era originalmente portuguesa.
Desde a Mesopotâmia a organização das quadras dessa maneira permite uma grande
concentração de habitantes no menor espaço possível.
Este artigo segue por apresentar uma breve evolução da tipologia do lote urbano
colonial o fim do século XIX, prosseguindo com a história da cidade de Barbalha a fim de
contextualizar a sua importância na região. Segue-se pela análise da implantação
da cidade com enfoque no seu Centro Histórico e na relação do lote com o restante
do território. Finaliza-se então analisando a necessidade de preservar a morfologia de
centros históricos, destacando sua importância como estratégia de conservação dos
mesmos.
Não havia variações desse esquema de moradia, tanto que Louis Vauthier,
engenheiro francês responsável por obras urbanas e arquitetônicas em Recife no
século XIX, afirmou que quem viu uma casa brasileira viu quase todas. Este comentário
deve se à setorização uniforme: junto à fachada principal, a área social e de trabalho; na
seção intermediária, o setor íntimo; aos fundos, junto aos pátios ou quintais, o setor de
serviço. As poucas variações aconteciam relacionadas à situação econômica dos
proprietários e da localização do edifício no sítio. Somente no final do século XVIII é
que são notados elementos classicistas no Brasil, advindos da atuação de arquitetos
orientados pelo Marquês de Pombal.
Barbalha, em 1790, local em que atualmente encontra-se a Matriz de Santo Antônio. Tal
capela atraiu habitantes de outros lugares que se estabeleceram nos arredores dela,
originando assim o primeiro núcleo urbano da cidade, ligado politicamente ao Crato.
Assim como outras cidades brasileiras, Barbalha, sob influência dos senhores
de engenho, adquiriu uma formação política oligárquica com uma sociedade
aristocrática. Ambas colaboraram na formação de um relevante patrimônio
arquitetônico, ainda preservado apesar de demolições e descaracterizações. A Igreja
Católica também contribuiu para a evolução e crescimento da cidade na medida em que,
ao construir novas capelas, possibilitou a consolidação de novos núcleos de povoamento.
Percebe-se, então, o quanto a religião sempre esteve atuante na sociedade barbalhense.
Figura 2 - Barbalha.
Considerações finais
As cidades, compostas por várias camadas de tempo expressas nas
suas edificações e áreas públicas, sempre concentraram importantes funções
sociais, econômicas e administrativas em determinados bairros que consagraram
referências à sua sociedade. Das pequenas aglomerações urbanas da Antiguidade às
metrópoles contemporâneas: entende-se o núcleo original da cidade não só como centro
histórico nos dias atuais, mas também como o local de legado à população que mantem
vivo o testemunho de várias épocas.
Quanto à Barbalha, seu centro histórico se apresenta, invariavelmente, como
área já detentora de infraestrutura com importantes vantagens sobre o conjunto da
cidade: trata-se de antiga centralidade urbana, referência a toda a Região do Cariri que
consome a cidade como produto cultural. Giovannoni já havia alertado que centros e
demais bairros antigos só serão integrados à vida contemporânea e então conservados
quando fosse possível conciliar sua nova função à morfologia e dimensões anteriores
(CHOAY, 2006, p. 236).
Uma alternativa eficaz à preservação do conjunto arquitetônico, levando
em consideração sua morfologia original e as edificações históricas que a compõe é
a reabilitação. Esta é definida na Carta de Lisboa (1995) como “uma estratégia de
gestão urbana que procura requalificar a cidade existente através de intervenções
múltiplas destinadas à valorizar as potencialidades sociais, econômicas e funcionais, a
fim de melhorar a qualidade de vida das populações residentes” (Carta de Lisboa apud
CASTILHO; VARGAS, 2015, p. 67).
Conhecer, analisar, aprender e criticar o processo de formação das cidades é
o primeiro de muitos passos para a elaboração de projetos de intervenção que
visem preservar seus centros históricos. Como apresentado neste estudo, entender a
origem da cidade portuguesa também faz parte deste processo devido a mais semelhanças
do que diferenças em relação as cidades do Brasil colonial. O legado do desenho dos
espaços urbanos articulando-se com características físicas e ambientais também é
aprendizado para a construção de futuras cidades.
322
Referências
BITTAR, Willian; MENDES, Chico; VERÍSSIMO, Chico. Arquitetura no Brasil: de
Cabral a Dom João VI. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2011.
CASTILHO, Ana Luis; VARGAS, Heliana (Orgs). Intervenções em centros urbanos:
objetivos, estratégias e resultados. Barueri, São Paulo: Manole, 2015.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. 3 ed. São Paulo: Estação
Liberdade: UNESP, 2006.
CURY, Isabelle (Org.). Cartas patrimoniais. 3 ed. rev. aum. Rio de Janeiro: IPHAN,
2004.
Dossiê de Registro da Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio de Barbalha.
Fortaleza: IPHAN, 2015.
GURGEL, Ana Paula Campos. Entre serras e sertões: a(s) (trans)formação(ões)
de centralidade(s) da Região Metropolitana do Cariri/CE. Dissertação (Mestrado
em Arquitetura e Urbanismo) – Programa de Pós Graduação em Arquitetura e
Urbanismo, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2012.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
LAMAS, José M. Ressano Garcia. Morfologia urbana e desenho da cidade. 9 ed.
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Gráfica ACD Print S.A., 2017.
REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. 13 ed. São
Paulo: Perspectiva, 2012.
ROSSA, Walter. A urbe e o traço: uma década de estudos sobre o urbanismo
português. Coimbra: Editora Almedina. 2002.
TEIXEIRA, Manuel C. A forma da cidade de origem portuguesa. São Paulo:
Editora Unesp, 2012.
323
Introdução
As políticas patrimoniais no Brasil são intensamente demarcadas pela atividade
de instituições Públicas, como o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional,
(IPHAN), criado em 1937, e as Instituições e Órgãos competentes de Estados e
Municípios, o que leva a uma síntese, de matriz estatal, sobre a definição do que seja
patrimônio cultural e suas narrativas. Mas, dos conflitos patrimoniais participam,
também, algumas mobilizações de grupos e redes sociais (ALBERNAZ e REIS, 2014),
iniciativas acadêmicas (FERREIRA, CERQUEIRA e RIETH, 2008; FERREIRA e
ZANIRATO, 2021), pressões do setor imobiliário (LACERDA, 2018), entre outros.
Assim, o campo do patrimônio é articulado através de redes de negociação e poder que
envolvem conflitos, mas que, através de políticas, são supostamente estabilizados
conforme os interesses sociais que se sedimentam ou alcançam êxito nessas negociações.
Mas, tais políticas, quando afetam a bens edificados, notadamente a conjuntos urbanos,
como é o caso do objeto de investigação desta pesquisa, também se conectam com o tom
vívido e convivial do direito à cidade: nas práticas de intervenção do Estado no direito à
propriedade, no regulamento da circulação no local e do uso dos bens edificados, na
sacralização de símbolos que demarcam a identidade social expressa na construção de
uma narrativa memorial através do tombamento. Assim, no contexto urbano brasileiro,
ele é formado por diversos grupos sociais, e a hipótese, que será investigada nesta
pesquisa, é que o direito à memória (CANDAU, 2019) assim como o direito à cidade
(LEFEBRVE, 2011) nem sempre são garantidos, de forma equitativa, entre essas disputas
de narrativas.
O problema é que essas tensões interferem nos usos e discursos dos patrimônios
culturais que representam estes espaços, principalmente quando tombados como
conjuntos urbanos, representados como centros históricos.
166
Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural; Universidade
Federal de Pelotas (UFPel). Contato: [email protected]
167
Doutora em Direito; Docente na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Docente
Permanente no Programa de Pós-Graduação em Memória Cultural e Patrimônio Cultural da Universidade
Federal de Pelotas (UFPel). Contato: [email protected].
324
168
Fomentada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
325
169
Por Direito à cidade se entende, aqui, como uma noção que engloba os direitos à liberdade,
individualização na socialização, ao habitat e habitar (LEFEBVRE, 2011). Logo, também estão implícitos
o direito à participação no espaço urbano – tanto à circulação quanto à produção deste espaço - pelos
diversos atores sociais que o permeiam.
326
170
Identificado pelo protocolo 01512.000089/2008-62 e disponibilizado pelo IPHAN para consulta através
do Sistema Eletrônico de Informação (Disponível em http://sei.iphan.gov.br/pesquisapublica).
329
desenvolvimentista no Brasil, que passa a afetar o setor imbibiliário e o fluxo das cidades
brasileiras visando uma postura de progresso, causando a descaracterização de centros
que até então apresentavam certa homogenidade em relação ao tempo, expressa na
arquitetura, e no intuito de fomentar o turismo na região de Jaguarão, cidade fronteiriça
com o Uruguai, e cenário de um fluxo intenso de turistas que visitam o país vizinho
(IPHAN, 2008).
Já o Programa de Revitalização Integrada apresenta-se como uma segunda fase do
projeto Jaguar, fomentado pelo IPHAN e pelo curso de Arquitetura da Universidade
Federal de Pelotas. Como um “convite para reformular valores”, o documento do
Programa de Revitalização Integrada de Jaguarão é escrito em alguns trechos de sua
introdução de forma subjetiva, utilizando analogias como artifício linguistico para expor
suas intenções. Mas, ao propor uma “visão orientada” da forma de entender o patrimônio
arquitetônico que deve ser transmitida, questiona-se quem daria esse sentido de
orientação em uma gestão participativa? A comudidade é atora ou consumidora desse
patrimônio? Essas são questões que serão especuladas nas entrevistas e revisão de mais
documentos.
Destaca-se, também, os objetivos do Projeto Jaguar, ratificando que consistiriam
em recuperar a consciência comunitária dos habitantes da cidade acerca do processo de
desenvolvimento de Jaguarão e seu acervo arquitetônico, através da legitimação do
mesmo enquanto patrimônio cultural. Embora houvesse tal objetivo, o programa carece
de ações, documentadas no processo, que provem que se efetivou essa participação social,
bem como de ações de educação patrimonial que visassem reforçar os vínculos da
comunidade com o acervo patrimonial e as memórias que segundo eles estariam sendo
preservadas acerca do passado da cidade.
Ao longo do processo, são introduzidas reportagens de diversos jornais do Rio
Grande do Sul que narram o processo de tombamento da cidade de Jaguarão. Com a
finalidade de compreender qual foi a narrativa construída pela mídia neste período,
considerando os recortes desta narrativa que foram abordados no (validados pelo)
processo, aqui serão descritos estes anexos e, logo após, analisados através do aporte
teórico que fundamenta o presente trabalho. Para tal análise, as reportagens foram
retiradas do documento e organizadas de forma cronológica, para possibilitar uma
compreensão efetiva de tal discurso ao longo do processo de tombamento.
As reportagens analisadas são identificadas através das seguintes manchetes: Zero
Hora – 23/02/1984 - Vigília Para Salvar a Velha Enfermaria; Diário Popular –
330
Considerações finais
No caso analisado, percebe-se, nessas primeiras análises, uma certa desconexão
entre território usado e narrativa patrimonial do conjunto urbano tombado de Jaguarão.
Se desde o início de seu processo de urbanização, a cidade apresentou uma preocupação
por estruturas que remetessem ao moderno, valorizando uma estética diferente das
construções de palha e madeira que haviam sido construídas até então, isso não pode
significar a exclusão dessas memórias e de seus bens de suporte desse conjunto que revela
a dinâmica total da vida na cidade, e não apenas o que se quer representar dela. Estas
construções passam a forjar uma narrativa que representa os anseios da elite da época,
sendo os palacetes considerados parte do patrimônio edificado que estaria em destaque
na discussão.
A falta de interesse dos agentes para promover e fomentar uma participação social
plural e efetiva colabora nesse jogo de memória e esquecimento no centro histórico da
cidade, e esta lacuna na representação de dinâmicas, principalmente de classes menos
privilegiadas, dificulta a intensão atual do IPHAN de fazer os centros históricos
documentos que recontam as dinâmicas da cidade, também se notando, aí, um
descolamento entre a narrativa patrimonial e a territorialização deste espaço urbano.
Referências
ALBERNAZ, R. O.; REIS, M. G. dos. O processo de patrimonialização e a
cibercultura: mobilização no ciberespaço através de grupos na rede social Facebook.
Comunicação & Informação, Goiânia, Goiás, v. 17, n. 1, p. 21–35, 2014. DOI:
332
171
Arquiteto e Urbanista pela Universidade Federal Fluminense (UFF); pós-graduando em Patrimônio pelo
CEFET-RJ. E-mail: [email protected]
172
Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/378/#:~:text=A%20Vila%20
Hist%C3%B3rica%20de%20Mambucaba,tombado%20pelo%20Iphan%2C%20em%201969; acesso em
12/07/2021.
335
173
Site da UNESCO: http://www.unesco.org/new/pt/rio-20/single-
view/news/paraty_becomes_the_first_mixed_world_heritage_site_in_brazil/; acesso em 18/07/2021.
174
Informação disponível no Arquivo da Superintendência do IPHAN no Rio de Janeiro.
337
175
Tal praia, segundo aventado por DI SALVO (2009), tem formação recente e aparenta ser sido propiciada
pelo assoreamento do Rio Mambucaba.
338
Reflexões e apontamentos
Se acima discutimos o cenário normativo, é preciso levar em consideração
também a realidade do espaço urbano construído da Vila. A análise de fotos aéreas e de
satélite nos permite chegar à conclusão de que a legislação não foi, nem de longe,
suficiente para assegurar a integridade do Bem Tombado. Para isso, pode ter contribuído,
talvez, a fragilidade da atuação do poder público no local, de modo que não foi possível
garantir a aplicação dos parâmetros inicialmente idealizados na década de 1980.
É importante, porém, compreendemos, ainda que de maneira hipotética, as
consequências da plena aplicação da Lei nº 158/1982. Vejamos, por exemplo, a Área de
Tombamento Rígido. Se as novas construções deveriam ser menores que os muros
obrigatórios, a altura máxima deve ser inferior a 4 metros. Suponhamos, portanto, uma
edificação genérica com pé direito de 2,80 metros. A essa altura, devemos somar a
espessura da laje, a caixa d’água, o espaço para manutenção e acesso para instalações
339
hidráulicas, tanto por baixo quanto por cima, bem como a inclinação do telhado – o qual,
como vimos, deveria ser obrigatoriamente em telhas cerâmicas -, assim como o arremate
da cumeeira e o madeiramento do telhado. Tudo isso pressupõe acréscimo de altura que
simplesmente não pode ser abrangido pelos 4 metros permitidos.
Estratégias possíveis seriam, por exemplo prescindir de laje ou diminuir o pé-
direito. A primeira, entretanto, diminui o isolamento térmico e deixa os moradores
expostos a variações mais intensas de temperatura, tanto com calor intenso no verão,
como frio nas noites amenas de inverno frente à brisa marítima; já a segunda traz a
sensação de abafamento e confinamento na medida em que favorece a percepção
encolhida do espaço, o que nos faz questionar a exequibilidade, em condições razoáveis
e salubres, desses parâmetros.
A esse universo, ainda deve-se acrescentar a taxa de ocupação inferior a 0,3%.
Para fins de comparação, imaginemos que toda a área considerada como tombamento
rígido seja um único lote. Nesse caso, já incluindo as áreas ocupadas por ruas e calçadas,
poderíamos chegar em um total estimado de 30.000,00 m². Ora, 0,3% desse montante
perfaz uma área construída de 90 m², ou seja, um apartamento regular de três quartos em
uma metrópole – isso seria o possível de construir em toda área de tombamento rígido!
Por outro lado, os lotes reais são substancialmente menores, de modo que a aplicabilidade
da taxa de ocupação se torna, no mínimo, comprometida.
Já a nível urbano, é preciso considerar que, à época do tombamento, havia lotes
vagos oriundos de construções ruídas, e possivelmente pouca documentação que
subsidiasse reconstruções, de modo que a perspectiva era que, a longo prazo, novas
edificações fossem maioria no tecido urbano. Logo, incluindo os muros obrigatórios na
dinâmica urbana, o resultado seria uma configuração que mais atrapalharia do que
favoreceria a percepção de Conjunto da Vila, além de impor condições de apreensão do
urbano que careceria de pontos de interesse importantes para a identidade da cidade
(CULLEN, 1974; LYNCH, 2001) com sua longa faixa monótona de muros alternadas
com as aberturas únicas de, no máximo 1,20 metro.
Nas áreas de expansão recente, a normativa é, a princípio, mais branda. A altura
máxima de 5,50 metros é suficiente para abrigar todos os elementos construtivos
necessários ao programa de uma residência sem problemas, desde que seja adotado
apenas um único pavimento. Não obstante, apesar de não dispor de cadastral atualizada
340
do local176, parece ser difícil supor que, atualmente, os lotes são maiores que os 360 m²
permitidos. O que se percebe é que nem mesmo esses parâmetros foram observados:
várias construções possuem dois pavimentos, os afastamentos e, por conseguinte, os
alinhamentos, não foram observados; as telhas nem sempre são cerâmicas: é difícil
apreender, portanto, o conjunto tombado.
A aplicação integral da Lei 158/1982 seria impossível sem demolições em massa.
Noutro sentido, Lei 2.937/2012, ainda que parte significativa das residências precisassem
sofrer demolições parciais para obedecer aos afastamentos, as alturas por ela permitidas
não poderiam ser aplicadas junto aos remanescentes do século XIX sem prejuízo à sua
leitura. É difícil imaginar uma construção de dois andares vizinha a uma singela
edificação térrea de interesse para preservação.
Reconstrução, identidades
A Vila Histórica de Mambucaba, apesar de não estar localizada no Centro de
Angra dos Reis, é um núcleo urbano sujeito às dinâmicas próprias desse tipo de ocupação,
com perspectiva de pressão para renovação do tecido existente, novas construções,
aumento ou decréscimo populacional etc. Não obstante, como percebemos anteriormente,
o poder público nunca tratou o local sob tal perspectiva. Choay (2001) defende que
atitudes como essa conferem ao objeto de preservação urbana papel que denomina
museal, caracterizado por um olhar da cidade como frágil, ameaçada de desaparecimento
– quase textualmente a linha argumentativa que ensejou a inscrição no Livro do Tombo
Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico. Por outro lado, a mesma autora relembra que
as cidades apresentam necessidades, não são estáticas, não podem e não devem ser
tratadas como peças de museu.
A legislação da década de 1980, com seu rigor excessivo, teve possivelmente
como uma de suas consequências sufocar sua própria aplicação, falhou em sua execução
prática e não pode ser obedecida à risca atualmente na medida em que seu cumprimento
pressupõe o desalojamento da maior parte dos habitantes, o que é impensável. De forma
paralela, o aspecto ambiental, sobretudo o cuidado com as margens dos estuários oriundas
dos corpos d’água que ali desembocam, e que constituem importante delimitação
territorial e paisagística dessa ocupação, foram preteridos na redação da normativa. O
casario está em vários trechos fortemente descaracterizado e, por fim, o adensamento
176
Após contato com a Prefeitura de Angra e posterior redirecionamento ao setor responsável, não foi
possível obter retorno.
341
A partir dessa ótica, a mesma autora elenca alguns impasses conceituais para
lançar mão da reconstrução, de acordo com os críticos da disciplina de restauração: a) o
risco de “falsificação”, com utilização de um modelo didático (BRANDI, 2004, apud
RODRIGUES, 2017); b) a indistinguibilidade da intervenção contemporânea. Não
obstante, é apontada a limitação da perspectiva que se atém apenas ao valor histórico e
artístico do Bem, com “entendimento da matéria enquanto suporte da imagem e [que]
não engloba valores simbólicos de recepção e interpretação dessa imagem por parte dos
que vão efetivamente vivenciar o bem arquitetônico” (RODRIGUES, 2018, p. 10).
Por outro lado, em 1980, foi publicada a Carta de Burra, o primeiro documento
patrimonial de grande alcance que menciona a reconstrução. Uma leitura mais atenta,
porém, evidencia que não se trata exatamente de repristino, e sim de reconstrução de
partes em que há base material sólida que a subsidie:
Para que exista patrimônio reconhecível, é preciso que ele possa ser
gerado, que uma sociedade se veja o espelho de si mesma, que
considere seus locais, seus objetos, seus monumentos reflexos
inteligíveis de sua história, de sua cultura. É preciso que uma sociedade
opere uma reduplicação espetacular que lhe permita fazer de seus
objetos e territórios um meio permanente de especulação sobre o futuro.
(JEUDY, 2005, p. 19)
Parece ser exatamente nesse contexto que entra a reconstrução em Mambucaba –
uma duplicação e especulação de um futuro espelhado em um passado que,
arquitetonicamente e urbanisticamente, teve perdas consideráveis. Por outro lado, esse
partido pode gerar situações caricatas caso a lógica de construção e expansão do tecido
urbano tenha sido abandonada ao longo do tempo, relegada a um papel pretérito, para só
então ser retomada por uma política patrimonial (PEIXOTO, 2004). É nesse momento
que se coloca a seguinte pergunta: em eventual nova normativa, cabe a permanência da
diretriz de reconstrução enquanto forma de gerar uma imagem facilmente reconhecível
do tecido urbano colonial? De forma alternativa, seria possível a apropriação dos marcos
característicos das tipologias pretéritas para orientar novas construções no local,
distinguindo-as daquelas oriundas do séc. XIX? Seria possível agregar, de forma
harmoniosa, outros momentos históricos que elucidem a evolução urbana de
Mambucaba?
Essa é, naturalmente, uma pergunta cuja resposta está em aberto e não pode ser
obtida sem o profundo envolvimento e diálogo com a população local, já que levanta
questões que incluem, para além as implicações práticas, outras relacionadas à identidade
e pertencimento.
Referências
CARTA DE BURRA, 1980 (ICOMOS).
CARTA DE VENEZA, 1962 (ICOMOS).
CAVALCANTI, Lauro. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na
arquitetura (1930-60). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade;
Ed.Unesp, 2001.
CULLEN, Gordon. El Paisaje Urbano: tratado de estética urbanística. Barcelona:
Blume-Labor, 1974.
DI SALVO, Aline Amaral. Redescoberta do Patrimônio da Vila Histórica de
Mambucaba. Tese (especialização em Patrimônio). Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional – IPHAN: Paraty, 2009.
FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em Processo: trajetória da política
federal de preservação no Brasil. 2 ed. rev. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; MinC –
IPHAN, 2005, 296 pp.
JEUDY, Henri-Pierre. Espelho das Cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.
LYNCH, Kevin. A Imagem da Cidade. São Paulo: WWF Martins Fontes, 2011, 3ª ed.
PEIXOTO, Paulo. A identidade como recurso metonímico dos processos de
patrimonialização, Revista Crítica de Ciências Sociais [Online], 70 | 2004, pp. 184-
204. URL: http://journals.openedition.org/rccs/1056; acesso em 17/05/2021.
IPHAN. Processo de Tombamento 0816-T-69.
RODRIGUES, Angela Rosch. Da Restauração à Reconstrução: impasses conceituais
nos debates patrimoniais do século XX e seus reflexos na contemporaneidade. In: Anais
do Simpósio Científico 2017 - ICOMOS BRASIL. Anais... Belo Horizonte: Instituto
Metodista Izabela Hendrix, 2018. Disponível em:
https://www.even3.com.br/anais/eventosicomos/60690-da-restauracao-a-reconstrucao-/.
acesso em 01/06/2021.
SOUZA, Luiz Antonio Lopes de. Wiederaufbau: a Alemanha e o sentido da
reconstrução. Parte 1: A formação de uma nação alemã. Arquitextos, São Paulo, ano
10, n. 111.04, Vitruvius, ago. 2009 https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/
10.111/35.
345
Introdução
177
Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural; Universidade
Federal de Pelotas – UFPel – Pelotas. Especialista em Direito Processual Civil; Universidade Católica de
Pelotas – UCPel – Pelotas; Especialista em Sociologia – Universidade Federal de Pelotas – UFPel – Pelotas,
RS; Bacharel em Direito; Universidade Federal de Pelotas (UFPel); Atua como Procuradora do Município
de Pelotas/RS.
178
Doutora em Direito (2008). Atua como Professora Associada na Universidade Federal do Rio Grande
do Sul – UFRGS – Porto Alegre e como docente permanente no Programa de Pós-graduação em Memória
Social e Patrimônio Cultural, da Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
346
edificado de sua história para dela desvinculá-lo, pois paradoxalmente são os discursos e
conflitos, a um só tempo, sua razão de existir e sua constante ameaça.
Com efeito, do mesmo modo que o patrimônio constitui o resultado de lutas e
conflitos, a sua preservação não é ato perfeito e acabado, mas depende do esforço diuturno
daqueles que optaram por sua manutenção.
179
Esse viés "estadocêntrico" e, de certa forma, atrelado a uma interpretação técnica-estilística erudita, mais
do que representativa do grupos sociais partícipes do país, tem começado a ser alterado nas últimas duas
décadas, evidenciando uma tentativa dos órgão estatais de preservação em democratizar os processos
patrimoniais (ALBERNAZ, 2021).
349
180
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados
individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I - as formas de expressão;
II - os modos de criar, fazer e viver;
III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-
culturais;
V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico,
ecológico e científico.
181
Art. 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade
e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
(…)
XII – proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural,
histórico, artístico, paisagístico e arqueológico (...)”
350
182
Transcreve-se parte do art. 69, da Lei n. 5.502/2008:
Art. 69. Os imóveis integrantes do inventário e descritos em lei municipal serão, por ato do Executivo
Municipal e de acordo com a avaliação da Secretaria Municipal de Cultura, enquadrados em um dos quatro
níveis de preservação, assim definidos:
(...)
II - Nível 2: Inclui os imóveis componentes do Patrimônio Cultural que ensejam a preservação de suas
características arquitetônicas, artísticas e decorativas externas, ou seja, a preservação integral de sua(s)
fachada(s) pública(s) e volumetria, as quais possibilitam a leitura tipológica do prédio. Poderão sofrer
intervenções internas, desde que mantidas e respeitadas suas características externas. Sua preservação é de
extrema importância para o resgate da memória da cidade.
352
Considerações finais
Nessa eterna disputa de narrativas patrimoniais, o Estado figura como agente de
destaque, e, talvez, ele não possa se abster ou se afastar dessa tarefa. Ainda que as atuais
diretrizes de gestão patrimonial estimulem a participação e o controle social, bem como
a descentralização das decisões políticas de seleção, valoração, significação e gestão do
patrimônio cultural, no rumo de um processo por democratizá-lo, o papel do Estado,
através de seus agentes, segue angariando considerável parte da responsabilidade e do
poder de decisão e de preservação do legado cultural de uma sociedade. Na esfera
municipal, então, essa ação do Estado se destaca ainda mais, pois sem ela, praticamente,
seria impossível fazer conviver os interesses coletivos de preservação dos suportes
materiais de memória e os interesses presentistas e futuristas do desenvolvimento
econômico e da exploração territorial.
É possível observar, assim, que a municipalidade se faz presente em todas as fases
de processo de patrimonialização de bens edificados, seja na fase de escolha dos bens
objeto de proteção, seja na alocação de recursos, agentes e políticas públicas de criação e
execução de leis preservacionistas, seja, finalmente, na fase de composição dos conflitos
que surgem a partir das necessidades ou dos interesses dos proprietários e possuidores de
manutenção do bem e de prover-lhe um uso economicamente útil.
No âmbito do Município de Pelotas, identifica-se que foi a prevalência de um
acervo de edificações erigidas durante o apogeu econômico da cidade, na era do charque,
que provocou e legitimou a instituição de diplomas legais voltados à preservação do
patrimônio cultural edificado. Mas, outros grupos e outras histórias também lutam por
espaço nessa representação no acervo patrimonial da cidade. Essa sobreposição de
354
representações, somada à edição de leis locais que adotam a política de um grande número
de imóveis inventariados, visando assegurar a integridade e autenticidade da própria
paisagem do patrimônio edificado, é provocadora dos mais recorrentes conflitos e
contraposições de interesses em torno do patrimônio cultural em Pelotas.
É por essa característica reveladora de profundos conflitos envolvendo os
processos de patrimonialização e de gestão pública do patrimônio cultural edificado que
o presente estudo, ainda em curso, debruçar-se-á em uma hermenêutica de profundidade
sobre os expedientes administrativos que versam acerca de intervenções em edificações
protegidas pela legislação local, tentando identificar a essência do conflito que deles
resultam. Compreender o modo como a legislação tem sido utilizada e interpretada pelo
gestor municipal para assegurar a proteção do patrimônio edificado é, por conseguinte,
um desafio a ainda ser vencido.
Referências
ABREU, Maurício. Sobre a memória das cidades. In: CARLOS, Ana Fani Alessandri;
SOUZA, Marcelo Lopes de; SPOSITO, Maria Encarnação Beltrão (Org.) A Produção
do espaço urbano: agentes e processos, escalas e desafios. São Paulo: Editora
Contexto, 2018.
ALBERNAZ, Renata Ovenhausen. Democracia e sistema de proteção do patrimônio
cultural no Brasil. Revista Direito, Estado e Sociedade. PUC-RJ. V. 58. N. Pp. 2021.
Disponível em https://revistades.jur.puc-
rio.br/index.php/revistades/article/view/1438/631
BRASIL. Constituição da República Federativa, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. acesso em: 16 set
2020.
BRASIL. Estatuto da Cidade. Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10257.htm. acesso em 06 jul 2021.
CARLOS, Ana Fani Alessandri. A prática espacial como segregação e o “direito à
cidade” como horizonte utópico. In: VASCONCELOS, Pedro de Almeida; CORRÊA,
Roberto Lobato; PINTAUDI, Silva Maria (Org.) A cidade contemporânea.
Segregação espacial. São Paulo: Editora Contexto, 2018.
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo: trajetória da política
federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2017.
GONÇALVES, José Reginaldo. A retórica da perda: os discursos do patrimônio
cultural no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2002.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Editora Centauro, 2006.
HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do
tempo. 1. ed.; 3. reimp. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2019.
HARVEY, David. Cidades Rebeldes.1. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
355
IPHAN. Patrimônio Vivo. Pelotas. RS. Programa Monumenta. Vol 7. 2007. disponível
em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/Pratrimonio_Vivo_Pelotas.pdf .
Acesso em: 19 jul 2021.
IPHAN. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/281. Acesso em: 19
jul 2021.
LACERDA, Norma; ZANCHETI, Sílvio Mendes. (org.). Plano de gestão da
conservação urbana: conceitos e métodos. Olinda: CECI, 2012)
MIRANDA, Marcos Paulo de Souza; ARAÚJO, Guilherme Maciel; ASKAR Jorge
Abdo (org.) Mestres e Conselheiros. Manual de atuação dos agentes do patrimônio
cultural. Belo Horizonte: Instituto de Estudos do Desenvolvimento Sustentável, 2009.
NEUTZLING, Simone Rasmussen. O saber e o fazer: um olhar sobre o patrimônio:
escaiolas em Pelotas. Porto Alegre: Imagina Conteúdo Criativo, 2019.
PELOTAS. Lei nº 2.564 de 1980. Institui o II Plano Diretor de Pelotas, acesso em 08
abr 2021.
PELOTAS. Lei nº 2.708 de 1982. Dispõe sobre a proteção do patrimônio cultural do
Município de Pelotas, e dá outras providências, acesso em 08 abr 2021.
PELOTAS. Lei nº 4.568 de 2000. Declara área da cidade como Zonas de Preservação
do Patrimônio Cultural de Pelotas – ZPPCS – Lista seus bens integrantes e dá outras
providências.
PELOTAS. Lei nº 5.502 de 2008. Institui o III Plano Diretor Municipal e estabelece as
diretrizes e proposições de ordenamento e desenvolvimento territorial no Município de
Pelotas e dá outras providências, acesso em 12 set 2020.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Revista da
Associação de Pesquisa e Documentação Histórica, v. 3, n. 2, p.3-15, 1989.
LEITE, Rogério Proença; PEIXOTO, Paulo. Políticas urbanas de patrimonialização e
contrarrevanchismo: o Recife Antigo e a Zona Histórica da Cidade do Porto. Cadernos
Metrópole 21. 1º sem. 2009.
RAMIL, Vitor. Satolep. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
RESENDE, Maria Antônia Botelho; FRAZÃO, Quênia. A tutela do patrimônio cultural
na legislação brasileira: instrumentos de proteção do patrimônio material e imaterial.
Revista Jurídica Uniaraxá, Araxá. v. 21, n. 20, 2017.
RODRIGUES, José Eduardo Ramos; MIRANDA, Marcos Paulo de Souza. Estudos de
Direito do Patrimônio Cultural. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2014.
SANTOS, Carlos Nelson F. dos. Preservar não é tombar. Renovar não é por tudo
abaixo. Revista Projeto. São Paulo, n. 86, 1986.
SMITH, Laurajane. Class, heritage and negotiation of place. Missing out conference.
http://www.english-heritage.org.uk/about/who-we-are/how-we-are-run/heritage-for-
all/missing-out-conference/, acesso em 14 out 2020.
SOARES, Inês Virginia Prado. Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro. Belo
Horizonte: Fórum, 2009.
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008.
356
Introdução
183
Doutor em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM); Mestre em Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM);
Licenciado em História pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões (URI),
campus Santo Ângelo. Professor do Departamento de Ciências Humanas URI, campus Santo Ângelo.
Contato: [email protected]
358
Baseado neste passado, entre 1995 e 1996, 70 anos depois da marcha da Coluna
Prestes, o prefeito de Santo Ângelo, Adroaldo Loureiro, contando com a colaboração de
Luiz Carlos Prestes Filho184, idealizou e implantou o Memorial Coluna Prestes, alegando
que o movimento dos anos 1920 havia começado na cidade quando Luiz Carlos Prestes
revoltou o 1º Batalhão Ferroviário185. Naquele momento, a administração de Santo
Ângelo também defendia que estava “resgatando” um dos principais acontecimentos da
história do Brasil, ao mesmo tempo em que defendia que o projeto iria alavancar o turismo
na cidade, agregando o Memorial às expressões patrimoniais do período jesuítico-
indígena de Santo Ângelo e da região. Apesar disso, o projeto não foi unanimidade e
chegou a gerar descontentamento em alguns grupos políticos locais em função da
histórica ligação de Luiz Carlos Prestes com o Partido Comunista Brasileiro (PCB),
desenvolvida na década de 1930 após a marcha da Coluna.
Dessa forma, o objetivo deste trabalho é expor e analisar algumas das
representações que foram produzidas acerca do projeto de criação do Memorial Coluna
Prestes em Santo Ângelo, problematizando também as disputas políticas locais a partir
dos principais veículos da imprensa escrita na época, principalmente o Jornal das
Missões, ligado ao então prefeito Adroaldo Loureiro. A pesquisa fez parte da tese de
doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM) em abril de 2021.
184
Filho de Luiz Carlos Prestes com Maria do Carmo Ribeiro.
185
Na nossa perspectiva a Coluna Prestes só se formou e iniciou a marcha pelo Brasil a partir de São Luiz
Gonzaga, cidade distante aproximadamente 85 quilômetros de Santo Ângelo, onde foram concentrados os
efetivos que se rebelaram em quartéis do Rio Grande do Sul. Isso ocorreu entre os meses de novembro e
dezembro de 1924. Quando Luiz Carlos Prestes revoltou o 1º Batalhão Ferroviário de Santo Ângelo, na
noite de 28 de outubro, ainda não havia a definição de que seria formado um efetivo que iria marchar pelo
Brasil. O argumento de que a Coluna Prestes surgiu em Santo Ângelo serviu para dar legitimidade ao
projeto de criação do Memorial.
359
Exatos dois anos depois do primeiro levante dos “tenentes”, em um novo dia 5 de
julho, agora em 1924, em São Paulo, uma nova etapa das rebeliões tenentistas foi iniciada,
desta vez contando com a liderança do general Isidoro Dias Lopes e com a adesão de
parte dos militares da Força Pública, representados pelo major Miguel Costa. O objetivo
do movimento era a deposição do presidente Artur Bernardes, além das mesmas bandeiras
levantadas em 1922 relacionadas à estrutura e às condições das Forças Armadas.
Também, continuava a oposição ao sistema republicano baseado no controle das elites
políticas e econômicas, reivindicando-se o voto secreto e a moralização do sistema
político.
Os rebeldes se mantiveram por mais de vinte dias na capital paulista em constante
enfrentamento com as forças legais. Juarez Távora (1973, p. 144) relatou em suas
memórias que a situação ficou delicada a partir do dia 20 de julho, tanto pela dificuldade
em estabelecer acordo para que cessassem os bombardeios quanto para reorganizar as
forças espalhadas nas trincheiras de defesa das posições rebeldes. Dessa forma, usando o
ramal ferroviário, os rebeldes saíram de São Paulo e se deslocaram para o Paraná
(CORRÊA, 1976).
O Rio Grande do Sul foi o estado que deu continuidade às ações do Movimento
Tenentista após a rebelião empreendida em São Paulo. As conspirações militares
prosseguiram durante todo o ano, apesar de as notícias sobre o levante no centro do país
terem chegado apenas pelos jornais (REIS, 2014, p. 50). Estando espalhados por algumas
guarnições militares, especialmente na região das Missões e fronteira oeste, diversos
oficiais do Exército formaram um núcleo de conspiradores em território rio-grandense
dispostos a pegar em armas em oposição ao governo de Artur Bernardes. No estado os
militares contaram com a colaboração dos civis ligados a Aliança Libertadora, grupo
político que fazia oposição ao presidente do Estado, Borges de Medeiros.
Entre os dias 28 e 29 de outubro de 1924 rebelaram-se os quartéis de Santo
Ângelo, sob o comando do capitão Luiz Carlos Prestes; São Luiz Gonzaga, sob o
comando do tenente João Pedro Gay; São Borja, comandado pelo tenente Aníbal
Benévolo; Uruguaiana, comandado pelo capitão Juarez Távora; e Alegrete, sob o
comando do tenente João Alberto Lins de Barros. Em novembro o efetivo revolucionário
se concentrou em São Luiz Gonzaga, contando com aproximadamente mil e quinhentos
homens. Pressionados pelas tropas governistas, que em dezembro deslocou mais de dez
mil homens para a região, em 27 daquele mês, sob o comando geral de Luiz Carlos
Prestes, os rebeldes passaram a empreender marcha em direção a região norte do estado
361
buscando alcançar Santa Catarina e depois o Paraná. Começava ali a marcha da Coluna
Prestes (PRESTES, 1991).
Em abril de 1925, o efetivo rio-grandense chegou a região de Foz do Iguaçu onde
estavam estacionadas as tropas paulistas desde que abandonaram São Paulo em julho do
ano anterior. Com a integração dos paulistas ao efetivo do Rio Grande do Sul, os rebeldes
seguiram em marcha pela região centro-oeste, depois norte e nordeste do Brasil, buscando
reunir o máximo possível de soldados e alcançar o Rio de Janeiro para concretizar a
deposição de Artur Bernardes. Entretanto, entre baixas e adesões no efetivo, a Coluna não
chegou a ultrapassar dois mil homens e algumas poucas mulheres, sendo constantemente
perseguida por tropas do Exército e efetivos irregulares arregimentados para atacar os
rebeldes. Além disso, a propaganda governista aliada a censura aos meios de
comunicação representou a Coluna Prestes como uma horda de insubordinados,
sediciosos, assassinos e saqueadores que prejudicavam a população por onde passavam.
Dadas as dificuldades, em fevereiro de 1927, depois de mais de dois anos de
marcha pelo Brasil e já com Washington Luís na presidência da República, os rebeldes
se exilaram na Bolívia. A Coluna Prestes foi uma das maiores marchas rebeldes da
história da humanidade. Não alcançou seu objetivo, mas também jamais foi derrotada.
Pouco tempo depois, no processo eleitoral de 1930 e no próprio golpe de Estado que levou
Getúlio Vargas ao poder, vários ex integrantes do movimento estiveram presentes. Luiz
Carlos Prestes teve amplo reconhecimento, mas se afastou de seus antigos companheiros
de marcha acreditando que o Brasil precisava de uma profunda transformação social que
apenas a mudança de lideranças políticas não seria capaz de promover. Abandonando o
Exército, se exilou na Argentina e Uruguai, depois rumando para a União Soviética e
sendo incorporado ao Partido Comunista Brasileiro, em 1934. Dali em diante seria uma
das principais lideranças comunistas da América Latina. Faleceu em 1990, aos 92 anos
de idade.
Soviética, Prestes havia retornado ao país em 1979 beneficiado pela Lei da Anistia e
aquele era um momento em que se articulavam lideranças, partidos, movimentos sociais
e grande parte da sociedade civil em prol da redemocratização, após vinte anos de ditadura
civil-militar. O evento, intitulado “Coluna Prestes: 60 anos depois”, também marcou o
momento em que Santo Ângelo passou a acionar o passado e a memória da Coluna
Prestes, o que se refletiria, pouco mais de uma década depois, na criação do Memorial
Coluna Prestes (VITOR, 2021).
Por outro lado, Santo Ângelo era uma cidade dominada politicamente por
lideranças e partidos conservadores, como o Partido Democrático Social (PDS), que
comandava a prefeitura186. Membros de partidos de oposição, como o Partido
Democrático Trabalhista (PDT) e o Partido do Movimento Democrático Brasileiro
(PMDB), entre eles o então vereador Adroaldo Loureiro, tentaram aprovar a concessão
do título de Cidadão Honorário a Luiz Carlos Prestes na Câmara de Vereadores do
município. Entretanto, a proposta acabou sendo rejeitada187 em função da histórica
ligação de Prestes com o PCB, por mais que nos anos 1980 ele já tivesse rompido com o
partido (MEIHY; BIAZO, 2002). Isso demonstra a influência do anticomunismo e o
conservadorismo político do município.
Nove anos depois da volta de Luiz Carlos Prestes a Santo Ângelo, em 1993, teve
início o mandato de Adroldo Loureiro (PDT) como prefeito da cidade, o primeiro, em
décadas, não alinhado a grupos ou partidos políticos de direita. Um ano depois, em 1994,
se completou 70 anos de história da Coluna Prestes. Para marcar a data e rememorar o
movimento dos anos 1920, Luiz Carlos Prestes Filho iniciou um projeto de refazer a
marcha da Coluna partindo do Rio Grande do Sul. A partir da estadia de Prestes Filho em
Santo Ângelo houve uma reunião, em 15 de fevereiro de 1995, entre ele, o então prefeito
Adroaldo Loureiro e a coordenadora do Museu Municipal Dr. José Olavo Machado,
Gládis Maria Pippi, articulando-se a ideia de criar um espaço de memória que remetesse
à história da Coluna Prestes (VITOR, 2021).
A partir desta reunião rapidamente se chegou à ideia de criar um Memorial
aproveitando o prédio da antiga Estação Ferroviária de Santo Ângelo (Figura 1), tombado
186
Desde o início da ditadura civil-militar em 1964, todos os prefeitos de Santo Ângelo eram ligados a
partidos de direita, seja da Aliança Renovadora Nacional (ARENA) ou, posteriormente, do PDS. Somente
em 1993, através da eleição de Adroaldo Loureiro (PDT), teve início um mandato de um político ligado
não alinhado a partidos de direita.
187
Levado à votação, o projeto recebeu dez votos favoráveis, nove votos contrários e uma abstenção, o que
impossibilitou a aprovação em função de não ter atingido o quórum qualificado de dois terços dos eleitores.
363
por lei municipal em 1984. De acordo com os idealizadores do projeto, o objetivo de criar
um Memorial em homenagem à Coluna Prestes em Santo Ângelo estava relacionado a
uma demarcação dessa história, relacionado isso com uma espécie de “resgate” do
passado. Além disso, outro fator preponderante para a implementação do projeto de
criação do Memorial seria a possibilidade de o espaço ter o potencial de se tornar um
“produto” turístico na cidade, sendo agregado a outros espaços ligados ao passado das
Missões Jesuítico-Indígenas188. Como se divulgava na época: “Este espaço histórico-
cultural tem como objetivo homenagear e resgatar um dos fatos mais marcantes na
história do Brasil, servindo como referencial para o seu conhecimento e divulgação”
(TAVARES, 1996, p. 04).
188
Nos anos 1990, o turismo era encarado como uma alternativa de desenvolvimento econômico aos
municípios, e desde 1983, quando a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura
(UNESCO) decretou o sítio histórico de São Miguel das Missões, então distrito de Santo Ângelo, como
patrimônio da humanidade, isso trouxe inúmeras consequências para a cidade e região, especialmente em
relação aos projetos de desenvolvimento do turismo. Entretanto, em 1988, São Miguel das Missões se
emancipou de Santo Ângelo, o que fez com que os administradores da cidade tivessem de buscar
alternativas para o setor turístico. De certa forma, a criação do Memorial Coluna Prestes também foi uma
resposta a este desafio.
189
O jornal teve como um de seus fundadores, em 1983, o próprio Adroaldo Loureiro. Até hoje o jornal
pertence a sua família.
364
190
Oscar Niemayer era amigo pessoal de Luiz Carlos Prestes.
365
Jornal das Missões, o professor Valmir Muraro, que fez parte da organização do evento
em 1984, relata a ideia que se tinha acerca do comunismo.
Assim como houve manifestações a favor do Memorial desde sua criação e que o
estabeleceram como expressão do patrimônio cultural de Santo Ângelo, também, quem
foi contrário à iniciativa na década de 1990 e ainda não o reconhece nos dias de hoje
procurou representá-lo como algo negativo para a cidade, baseado principalmente em
ideologias políticas contrárias a que foi seguida por Luiz Carlos Prestes em praticamente
toda a sua atuação como homem público no Brasil, o que demonstra o quanto os campos
da memória e do patrimônio cultural são espaços de disputas.
Considerações finais
prefeito de Santo Ângelo, Adroaldo Loureiro, o mesmo que, em 1984, já havia proposto
a concessão do título de Cidadani honorária a Luiz Carlos Prestes, naquela ocasião negado
pela Câmara de Vereadores da cidade.
Dessa forma, demonstra-se o quanto a criação do Memorial Coluna Prestes se
inseriu em um contexto de estímulo ao turismo como ferramenta de desenvolvimento
econômico do município de Santo Ângelo. Com isso, o Memorial atendia um duplo
interesse, o de acionar o passado da Coluna Prestes na cidade e, ao mesmo tempo, o de
patrimonializar esse passado utilizando-o como um atrativo cultural e turístico que
poderia ser agregado às potencialidades do período jesuítico-indígena da cidade.
Referências
BORGES, Vavy P. Tenentismo e revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1992.
CARVALHO, José Murilo de. Forças armadas e política no Brasil. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006.
CORRÊA, Anna Maria Martinez. A rebelião de 1924 em São Paulo. São Paulo:
HUCITEC, 1976.
EDITORIAL. Jornal das Missões, Santo Ângelo, 25 nov. 1995.
FAUSTO, Boris. A revolução de 1930: historiografia e história. São Paulo: Brasiliense,
1970.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom; BIAZO, Glauber Cícero Ferreira. O retorno de Luiz
Carlos Prestes a Santo Ângelo. Santo Ângelo: Ediuri, 2002.
MEOTTI, Fabieli. Coluna Prestes: movimento heroico ou vilão? Jornal das Missões,
Santo Ângelo, 26 set. 2009.
MULLER, Enrique Érico. Coluna Recanto do Sabiá. A Tribuna Regional. Santo
Ângelo, 12 dez. 2009.
PRESTES, Anita Leocádia. A Coluna Prestes. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.
PRESTES, Anita Leocádia. Luiz Carlos Prestes: um comunista brasileiro. São Paulo:
Boitempo, 2015.
REIS, Daniel Aarão. Luís Carlos Prestes: um revolucionário entre dois mundos. São
Paulo: Companhia das Letras, 2014.
SANTA ROSA, Virgínio. O sentido do tenentismo. Rio de Janeiro: Schmidt Editor,
1933.
SILVA, Hélio. 1922: sangue na areia de Copacabana. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1964.
TAVARES, Gládis Pippi. Memorial à Coluna Prestes será inaugurado no dia 17. A
Tribuna Regional. Santo Ângelo, 14-15 dez. 1996. p. 07.
TÁVORA, Juarez. Juarez Távora: uma vida e muitas lutas. Vol. 1. 3. ed. Rio de
Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1973.
368
Introdução
O artigo tem por objetivo estabelecer um diálogo sobre os espaços fúnebres, tendo
por estudo de caso o Cemitério do Bonfim, na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais, e
seu valor vinculado ao patrimônio industrial. Com isso busca-se o debate acerca da
visibilidade dos diferentes elementos cemiteriais não apenas como espaços religiosos ou
fúnebres, mas como patrimônio cultural e industrial de suas cidades e, também, como
obras públicas e espaços de memória coletiva. Ressalta-se ainda possibilidades de ações
educativas sobre a história da cidade e do patrimônio local.
Histórico
Uma nova capital para Minas, o anseio por uma cidade que represente e consolide
ideais modernos, republicanos, revolucionários, a fim de se tornar uma referência de
modelo de cidade; esta foi a tão sonhada e idealizada Belo Horizonte. Se de fato o
surgimento da capital cumpriu sua finalidade ou não, é uma pauta a ser debatida
posteriormente, afinal, toda história possui pontos positivos e negativos, mas há um fato:
o Cemitério do Bonfim constitui-se em um ilustre exemplar da memória coletiva da Nova
Capital, com suas idealizações higienistas e modernas, que não apenas cumprem sua
função como também democratizam o fim da vida para todos. Torna-se impossível
desassociar tais histórias ao Bonfim, pois ocorrem marcas que evidenciam as relações
temporais, históricas e sociais com a cidade desde sua inauguração aos dias atuais.
No fim do século XIX, após a instalação da Comissão Construtora da Nova
Capital mineira, os sepultamentos eram, até então, realizados no adro da Igreja Matriz de
Nossa Senhora da Boa Viagem e foram, posteriormente, proibidos. O valor higienista,
disseminado à época, propunha que as igrejas não fossem mais espaços fúnebres por uma
questão de salubridade. Sendo assim, a Comissão definiu um novo local para a criação
do cemitério da cidade. Uma obra de caráter público, que tinha por finalidade separar a
191
Doutor em História e Patrimônio pela Universidade do Minho e Professor da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais. Contato: [email protected]
192
Arquiteta e Urbanista pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Contato:
[email protected]
370
convivência entre vivos e mortos, de acordo com os preceitos europeus, além de oferecer
condições dignas de sepultamento e despedida para a família.
O local escolhido deveria ser afastado da zona urbana, ou seja, um espaço não
ocupado, amplo e ventilado, que se localizasse para além da atual Avenida do Contorno.
Localizava-se à 650 metros do perímetro urbano, além de ser vizinho à uma pedreira,
atual Pedreira Prado Lopes, que poderia auxiliar no processo de construção do novo
Cemitério Municipal (Figura 01).
Figura 01: Localização do Cemitério do Bonfim (mancha cinza, lado superior esquerdo) em relação à
Avenida do Contorno (polígono rosa). Adaptado de BH Map.
Fonte: Maria Clara Lara Ferreira, 2021.
Figura 02: Vista geral do Cemitério. Observa-se ao fundo, na parte central, o edifício do Necrotério.
Fonte: Página Web https://vejadecima.com/2016/10/30/cemiterio-do-bonfim/, ..., 2016.
Com isso, tem-se ainda uma ressignificação histórica dos sepultamentos, entre o
ato religioso, realizado, essencialmente, pelas diferentes crenças e a sua apropriação pelo
setor público, por meio das obras públicas para concepção dos espaços cemiteriais
independentes e, posteriormente, na atualidade, como espaços privados.
Para a capital mineira, essa transição traz à tona uma interpretação que
correlaciona as obras públicas ao patrimônio cultural, em especial o patrimônio religioso
e, no caso específico, o patrimônio fúnebre.
Além da percepção do patrimônio cemiterial como patrimônio cultural, pode-se
ainda relacioná-lo ao patrimônio industrial, que se constitui em um debate recente o qual
se relaciona ao desenvolvimento do espaço urbano e seus elementos de expressão cultural
e industrial. Para o caso da capital mineira, estes princípios não apenas reforçam ideais
modernistas e positivistas como também abrangem elementos industriais que foram
essenciais para o desenvolvimento da cidade.
Uma expressão desta relação entre o patrimônio cultural, o patrimônio industrial
e as obras públicas encontra-se expressa na Carta de Nizhny Tagil (2003) que reforça os
valores imateriais dos espaços industriais, junto aos ofícios e modos de fazer, as
personagens por detrás da indústria capitalista, aos espaços comuns, aos verdadeiros
protagonistas por detrás do crescimento das cidades.
O património industrial reveste um valor social como parte do registo
de vida dos homens e mulheres comuns e, como tal, confere-lhes um
importante sentimento identitário. [...]
Estes valores são intrínsecos aos próprios sítios industriais, às suas
estruturas, aos seus elementos constitutivos, à sua maquinaria, à sua
paisagem industrial, à sua documentação e aos registos intangíveis
contidos na memória dos homens e das suas tradições. (Carta de Nizhny
Tagil, item 2, § 2 e 3, 2003).
Tais valores se entrelaçam aos artistas que foram essenciais para a consolidação
do Cemitério e que concretizaram sensações, desejos e vicissitudes nas lápides e demais
elementos decorativos dos túmulos. Há um valor intrínseco da iconografia que demarca
a interpretação e inspiração dos artífices que transcreveram em pedras, bronze e ferro
valores imateriais para as famílias ali representadas por seus entes falecidos.
Esses valores encontram-se reforçados em outro documento, Os Princípios de
Dublin (2011), que reforçam o valor imaterial que se explicita nas formas de
documentação, conservação e pesquisa, contidas nos diversos elementos do cemitério e
que se tornam um grande acervo documental do cotidiano belo-horizontino desde a
década de 40.
373
Figura 04: Projeto do portão de acesso principal. Provavelmente em ferro e/ou bronze.
Fonte: Prefeitura de Belo Horizonte, 2011 (Disponível em:
https://www.flickr.com/photos/portalpbh/6261697780).
375
Figura 05: Túmulo da família Bhering. Estrutura em alvenaria, revestimento em granito preto e detalhes
em bronze. O túmulo tem uma placa da marmoraria São Geraldo.
Fonte: Gerência de Identificação (GID), IEPHA, 2010.
Figura 06: Túmulo da família Murta. Revestimento em mármore branco. Marmoraria Horizontina de
Paulo Simoni. Fonte: Gerência de Identificação (GID), IEPHA, 2010.
Figura 07: Túmulo da família Meirelles. Granito vermelho, bronze fundido e vidro colorido e armação
metálica. Marmoraria Irmãs Natali Ltda. Fonte: Gerência de Identificação (GID) IEPHA, 2010.
376
193
“O Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte / CDPCM-BH, nos
termos do disposto na Seção II, do Capítulo III, do Título VIII da Constituição Federal; na Seção IV, do
Capítulo I, do Título IV da Constituição do Estado de Minas Gerais e no Capítulo VI, do Título VI da Lei
Orgânica do Município de Belo Horizonte, em conformidade com o Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro
de 1937, o Decreto Federal 80.978, de 12 de dezembro de 1977, a Lei Municipal nº 3.802, de 06 de julho
de 1984 e o Decreto Municipal nº 5.531, de 17 de dezembro de 1986, a Lei Municipal n.° 9.011, de 1° de
janeiro de 2005 e o Decreto n.° 11.981, de 09 de março de 2005 e a Lei nº 9.549, de 07 de abril de 2008 e
Decreto nº 13.128, de 28 de abril de 2008, reunido em sessão extraordinária realizada em 14 de dezembro
de 2016, deliberou aprovar a proteção do Conjunto Urbano Bairros Lagoinha, Bonfim e Carlos Prates e
pela sua inscrição Livro do Tombo Histórico e no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e
Paisagístico, conforme inventário do patrimônio cultural elaborado pela Diretoria de Patrimônio Cultural /
Fundação Municipal de Cultura – Processo Administrativo nº 01.100051.96.99, pela abertura de processo
de tombamento dos bens culturais, bem como das indicações para Registro Documental (...)” Diário Oficial
do Município – DOM, 2016.
194
“O tombamento estadual do edifício do Necrotério foi aprovado pelo decreto estadual n.° 18.531, de
dois de junho de 1977, sendo determinada sua inscrição no Livro de Tombo n.° II — de Belas Artes —,
número de inscrição XII, página 02v, sob a seguinte designação: VII – edifício do Necrotério do Cemitério
do Bonfim, com partes de cantaria, cobertura metálica e decorações, inclusive quatro piras externas e
passeios de pedra adjacentes” (IEPHA, 2021)
377
Figura 09: Túmulos inventariados pelo IEPHA. Em amarelo, 10 quadras ao redor do necrotério, e em
vermelho, 08 quadras localizadas na entrada principal do cemitério. Fonte: Gerência de Identificação
(GID), IEPHA, 2010
Considerações finais
Para além da carga emocional e fúnebre que o espaço do Cemitério do Bonfim
possui, observa-se uma ambiência aquém do luto e da religiosidade: a materialidade dos
túmulos sobressai ao estereótipo das demais necrópoles, sendo considerado um museu a
céu aberto devido as belas lápides e túmulos, em sua maioria, extremamente
ornamentadas, esculpidas, de materiais finos e nobres.
Pode-se interpretar que a morte era capitalizada e comercializada nos túmulos,
com artistas escolhidos para a confecção de esculturas das lápides, adornos, granitos,
mármores, além de materiais importados da Europa, principalmente da Bélgica. Essa
378
materialidade espacial fomentava os valores elitizados em que quem muito possuía muito
mostrava, até mesmo após a partida. Tem-se o necrotério como exemplar de uma
arquitetura com influência neoclássica, imponente e marcante no espaço, assim como
lápides que possuem traços do art nouveau.
Como citado anteriormente, diversas indústrias, fábricas, artistas, trabalhadores,
foram responsáveis pela criação e consolidação desse espaço, de valor único e de extrema
urgência para uma capital que se desenvolvia em infraestruturas e crescia em economia
e, concomitantemente atraiu emigrantes e imigrantes para a cidade, fomentando o
crescimento da população. Como não visualizar o Cemitério como um marco construtivo,
uma obra pública que até os dias atuais cumpre sua função social e carrega valores sociais,
culturais e históricos em suas estruturas? Um espaço de enorme dualidade que perpassa
pela dor do luto e ao mesmo tempo promove uma imersão nas artes, na materialidade,
nos detalhes? Quem está enterrado? Quem projetou esse túmulo? O que essa obra
representa? O cemitério do Bonfim é um mar de curiosidades e dúvidas que pode e precisa
ser explorado como um patrimônio das mais diversas esferas, afinal, grande parte de nossa
história está marcada nesse espaço.
A indústria fúnebre compreende um crescente mercado cujos clientes, em vida ou
em morte, se apresentam por meio dos cemitérios e constituem a prova viva de que as
relações comerciais possuem diferentes vertentes e se traduzem em necessidades
materiais e imateriais, racionais e afetivas. O Cemitério do Bonfim se encaixa não apenas
na perspectiva de um valor estético, mas em uma grande variabilidade de interpretações,
que incluem as indústrias e produções materiais que são também protagonistas,
igualmente aos elementos imateriais que no todo constituem todo o processo de sua
museificação e transformação em patrimônio citadino.
Ainda que a cerimônia de enterramento se constitua em sua função primária e
essencial, sua história emerge para fora de sua espacialidade e propicia infinitos diálogos
e conhecimentos para além de um patrimônio considerado religioso, mas que promove
discussões sobre um grande conjunto de elementos industriais e materiais. O Cemitério
do Bonfim constitui-se em um exemplar único da representatividade belo-horizontina que
permite a aproximação dos espaços fúnebres ao debate sobre o Patrimônio Cultural e o
Patrimônio Industrial.
379
Referências
ALMEIDA, Marcelina das Graças de. O Espaço da Morte na Capital Mineira: Um
ensaio sobre o Cemitério do Nosso Senhor do Bonfim. Revista de História Regional,
Ponta Grossa, v. 3, n. 2, p. 187-191, 1998.
ALMEIDA, Marcelina das Graças de. Memórias, lembranças, imagens: o cemitério.
Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 30, n. 1, p. 105-122, jun. 2004.
https://doi.org/10.15448/1980-864X.2004.1.23520
ALMEIDA, Marcelina das Graças de. Cemitério e Cidade: Imagens e representações
da morte. IV Encontro Nacional de Estudos da Imagem. I Encontro Internacional de
Estudos da Imagem. Londrina, 2013.
BH MAP – Prefeitura de Belo Horizonte. Cemitérios Públicos (camada). Disponível
em:
htp://bhmap.pbh.gov.br/v2/mapa/idebhgeo#zoom=5&lat=7798058.8714&lon=610019.2
9607&baselayer=base&layers=cemiterio_publico. Acesso em: 24/03/2021.
DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO. Cemitério do Bonfim é tema de nova exposição
do Museu Histórico Abílio Barreto. Disponível em:
http://portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk=1067981.
Acesso em: 21 abr 2021.
DIÁRIO OFICIAL DO MUNICÍPIO. Secretaria Municipal de Governo - CDPCM /
Deliberação Nº 193/ 2016. Disponível em:
http://portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk=1173076.
INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE
MINAS GERAIS (IEPHA/MG). Edifício do Necrotério do Cemitério do Bonfim.
Disponível em: http://www.iepha.mg.gov.br/index.php/programas-e-acoes/patrimonio-
cultural-protegido/bens-tombados/details/1/65/bens-tombados-edif%C3%ADcio-do-
necrot%C3%A9rio-do-cemit%C3%A9rio-do-bonfim. Acesso em: 21 mar 2021.
INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE
MINAS GERAIS (IEPHA/MG). Inventário do acervo de estruturas arquitetônicas e
bens integrados do Cemitério do Bonfim – Belo Horizonte/MG. MOLINARI, Luis
(Org.) IEPHA/MG: Belo Horizonte, 2010.
INSTITUTO ESTADUAL DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DE
MINAS GERAIS (IEPHA/MG). Relatório final de pesquisa de inventário do acervo
de estruturas arquitetônicas e bens integrados do Cemitério do Bonfim – Belo
Horizonte. Gerência de Identificação (GID). Belo horizonte, outubro de 2010.
THE INTERNATIONAL COMMITTE FOR THE CONSERVATION OF THE
INDUSTRIAL HARITAGE. Carta de Nizhny Tagil para o Património Industrial.
2003. Disponível em: http://ticcih.org/about/charter/. Acesso em 21 mar. 2021.
THE INTERNATIONAL COMMITTE FOR THE CONSERVATION OF THE
INDUSTRIAL HARITAGE. Princípios de Dublin. 2011. Disponível em:
http://ticcih.org/about/about-ticcih/dublin-principles/. Acesso em: 21 mar. 2021.
THE INTERNATIONAL COMMITTE FOR THE CONSERVATION OF THE
INDUSTRIAL HARITAGE. Carta de Sevilla de Patrimonio Industrial. 2018.
Disponível em: https://ticcih.org/wp-content/uploads/2019/03/Carta-de-Sevilla-de-
Patrimonio-Industrial-febrero-2019.pdf. Acesso em: 21 mar. 2021.
380
195
Mestre e doutoranda em História pelo PPGH/UFGD; Especialista em Educação e Patrimônio Cultural
pela UnB. Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). [email protected].
382
A memória pode ser entendida como a capacidade que o ser humano tem de
relembrar e conservar experiências e informações relacionadas ao passado, sendo estas,
parte de processos de interação de cada indivíduo com seu meio. Assim, a memória
também pode ser utilizada para reconstruir os fatos históricos do passado, a partir de
ressignificações individuais. Neste caso, o monumento pode ser evidenciado enquanto
evocação do passado, porém sendo esta ação realizada no presente.
196
Tais práticas podem ser observadas também na atualidade, onde tanto os templos religiosos, os santos
como os rituais ligados aos mesmos são igualmente valorizados e preservados no contexto religioso.
383
Partindo dos conceitos de valores dos monumentos explorados pelo autor nesta
obra, é proposta uma diferenciação entre monumento e monumento histórico. Enquanto
o primeiro é uma criação pensada de forma imediata, deliberada (a priori), o segundo é
constituído pelos olhares dos profissionais da História e da Arte (a posteriori), que dentro
de um processo seletivo, no qual interferem inúmeros fatores, escolhem alguns
monumentos representativos na enorme gama de edifícios existentes (CHOAY, 2006, p.
25). Para Camargo (2002), conceituar monumento histórico não é tarefa muito fácil, na
medida em que esse conceito também foi construído pela noção de patrimônio nacional,
384
caracterizado pelos apelos simbólicos que ultrapassam seu caráter intencional. Nesta
construção.
Dessa forma, é notável a influência que a religião católica exerceu e exerce sobre
os elementos relacionados ao patrimônio cultural religioso brasileiro através de seus
símbolos e linguagens. Lima (2005) aponta alguns tipos de linguagem, juntamente com
sua simbologia, que retratam o patrimônio cultural religioso presente na sociedade:
linguagem arquitetônica, linguagem ornamental, linguagem escultória, linguagem cênica,
linguagem festiva e linguagem literária (LIMA, 2005, p. 93-104).
Através de algumas linguagens citadas, é possível perceber os elementos
imateriais presentes na pluralidade expressiva do patrimônio cultural religioso, como por
exemplo: a linguagem decorativa e ornamental do patrimônio, presentes na simbologia
da cruz, do terço, velas, medalhas; as devoções individuais e/ou coletivas ligadas às
esculturas das imagens de santos; as representações simbólicas presentes na transmissão
de passagens históricas da Bíblia; as procissões que constituem em exposições dos valores
e das crenças presentes em determinadas comunidades através das promessas e de ex-
votos197; as encenações que revivem cenas das lições de catequeses convertendo-a em
uma linguagem visual; as peregrinações e romarias, onde se percebe a transmissão das
crenças, os folhetos, hinários, extratos religiosos e poesias e, finalmente as festas
religiosas que promovem a catarse, onde o “humano é vinculado ao divino” (LIMA, 2005,
p. 101) e notam-se, muitas vezes, elementos sagrados e profanos fundidos na
dinamicidade cultural e religiosa (LIMA, 2005, p. 93-104).
Todos esses elementos e todas essas linguagens que fazem parte da imaterialidade
do patrimônio cultural religioso são representados e legitimados em determinados
espaços, em determinados lugares, sendo fundamentais para simbolizar a identidade de
197
Testemunho colocado em salas de milagre em igrejas e santuários católicos, como por exemplo: bilhetes,
esculturas, quadros, fotografias, mechas de cabelo, reproduções de partes do corpo esculpidas em diversos
materiais, etc. Nesse sentido, os ex-votos constituem parte de um universo religioso e também cultural, pois
retratam a memória e a identidade de um indivíduo ou de sua coletividade. Além disso, “desvenda a história
do devoto e que o inscreve na teia de uma tradição que o precede e que com ele se enriquece” (LIMA, 2005,
p. 101).
387
um grupo social. Para Borges (2010) os espaços sagrados fazem parte de um conjunto de
referências destinadas a consolidar as marcas do passado e reforçar a proteção espiritual.
Assim:
198
Nesse contexto, tomo como referência alguns conceitos relacionados a lugar a fim de contextualizar a
abordagem da narrativa nessa pesquisa: lugar enquanto espaço físico atribuído de significado cultural
(BORGES, 2010; TEIXEIRA, 2015) e lugar de memória (NORA, 1993). Noto que tais conceitos não estão
distanciados, ao contrário, dialogam entre si, estão interligados e são fundamentais para se entender o
sentido de lugar na produção de identidades dos indivíduos. Borges (2010) utiliza o conceito de lugar a
partir da noção de espaço abordada pela Antropologia e a Geografia, que é a de espaço enquanto criação
cultural, existindo para o ser humano na medida em que forma significado, através de elementos
qualitativos. Nesse sentido, esse espaço “vivido pelos homens e grupos é detentor de significados, pois
assume sempre um papel na orientação de grupos e indivíduos. Através de um sistema de contrastes
elaborados por cada cultura é possível construir um conjunto significativo, que informa sobre o “situar”
dos indivíduos” (BORGES, 2010, p. 121-122). Na publicação Dicionário do Patrimônio Cultural,
disponibilizada no site do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN -
(http://portal.iphan.gov.br/dicionarioPatrimonioCultural/detalhes/30/lugares), Teixeira (2015) conceitua o
verbete lugares como sendo “espaços físicos imbuídos de significação cultural, aos quais são atribuídos
valores” (TEIXEIRA, 2015, s. p.). No campo do patrimônio cultural brasileiro, o debate em torno desse
conceito remonta a década de 1980, quando houve uma forte pressão social para a ampliação e
reconhecimento do patrimônio cultural, sobretudo relacionados às culturas indígena e afro-brasileira. Com
a criação do Decreto nº 3551 de 2000, a “categoria lugar se consolidou como forma de compreender um
referencial cultural especializado, cujo valor não se concentra estritamente em seus aspectos construtivos
ou históricos. Desse modo, a categoria diz respeito a um recorte espacial dotado de significação cultural e
social expressas no tempo presente por meio da relação que pessoas e grupos estabelecem com ele. Nesse
sentido, a categoria lugar compreende demarcações físicas e simbólicas no espaço, ‘cujos usos qualificam
e lhes atribuem sentidos de pertencimento, orientando ações sociais e sendo por estas delimitadas
reflexivamente’” (LEITE, 2004, p. 35 apud TEIXEIRA, 2015, s. p.). O sentido de lugar de memória
(NORA, 1993) preferi abordar no próprio texto, pois se aproxima mais da discussão realizada.
388
São lugares, com efeito nos três sentidos da palavra, material, simbólico
e funcional, simultaneamente, somente em graus diversos. Mesmo um
lugar de aparência puramente material, como um depósito de arquivos,
só é lugar de memória se a imaginação o investe de uma aura simbólica.
Mesmo um lugar puramente funcional, como um manual de aula, um
testamento, uma associação de antigos combatentes, só entra na
categoria se for objeto de um ritual. Mesmo um minuto de silêncio, que
parece o exemplo extremo de uma significação simbólica, é ao mesmo
tempo o recorte material de uma unidade temporal e serve,
389
uma forma material” (HALBWACHS, 2003, p. 31-32). Portanto, um lugar de memória não
seria somente um lugar “digno de lembrança” (GONÇALVES, 2012, p. 32).
Pollak (1992) destaca como característica da memória, tanto individual quanto
coletiva, o caráter mutante. Tais elementos mutáveis são, sobretudo, episódios vividos
pessoalmente ou pelo o grupo no qual a pessoa se relaciona. A memória também pode
sofrer flutuações, dependendo do momento em que ela está sendo abordada. O autor
analisa ainda, os elementos constitutivos da memória e ordena-os em: acontecimentos,
pessoas e lugares. Os acontecimentos podem ser vividos pessoalmente ou acontecimentos
vividos por tabela (vividos em coletividade); as pessoas podem ser categorizadas por
personagens encontradas durante a vida e também vividas indiretamente, ou por tabela.
Por fim, os lugares da memória, lugares de comemoração, que ficaram marcados na
memória pública do indivíduo, os vestígios datados da memória. “Esses três critérios,
conhecidos direta ou indiretamente, podem obviamente dizer respeito a acontecimentos,
personagens e lugares reais, empiricamente fundados em fatos concretos. Mas pode se
tratar também da projeção de outros eventos” e da percepção de si e dos outros (POLLAK,
1992, p. 3). Nesta perspectiva, é possível afirmar que a memória, por conservar certas
informações, contribui para que o passado não seja totalmente esquecido, pois ela acaba
por capacitar o homem a atualizar impressões ou informações passadas, fazendo com que
a história se eternize na consciência humana (LE GOFF, 2013, p. 387).
O ponto fundamental a ser observado é a percepção de Pierre Nora a respeito das
dimensões do lugar de memória, sobretudo da relação da simbologia, exercida pelo
caráter imaterial da memória. Nesse sentido, Gonçalves (2012, p. 34), reafirma a proposta
do autor:
Referências
BONJARDIM, Solimar Guindo Messias; ALMEIDA Maira Geralda de. Apropriação
simbólica do território: o catolicismo em Sergipe. In: SEMINÁRIO REGIONAL
NORTE E NORDESTE DE PÓS-GRADUAÇÃO EM GEOGRAFIA, 2, 2012, Campus
I João Pessoa. Anais... João Pessoa: [s.ed.], 2012. p. 1-11.
BORGES, Célia Maia. A memória e o espaço sagrado: os colonos e a apropriação
simbólica dos lugares. LOCUS - Revista de História, Dossiê patrimônio histórico e
cultural, Juiz de Fora, v. 31, p. 119-130, 2010. ISSN 1413-3024.
CAMARGO, Haroldo Leitão. Patrimônio histórico e cultural. São Paulo: Aleph,
2020.
392
Introdução
O presente trabalho apresenta o desenvolvimento de uma proposta urbana
e intervenções arquitetônicas no quilombo do Areal, uma comunidade histórica em um
bairro central de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
A proposta é dívida em 3 etapas, onde a primeira buscar criar uma nova conexão
da comunidade com a capital, a segunda busca reorganizar a condição interna da
comunidade, a fim de criar novos pontos de convívio e qualidade de vida, e a terceira
busca requalificar as edificações históricas que marcam o acesso principal do quilombo.
O objetivo da conclusão deste trabalho busca reafirmar a presença dessa
comunidade na construção da cidade, como símbolo de memória e resistência da
população afrodescendente de Porto Alegre, que busca diariamente visibilidade espacial,
social e espeito em um cenário sócio-político desfavorável.
1. Areal da baronesa
1.1 História
O quilombo do areal é resquício de um grande território negro em Porto
Alegre, chamado Areal da Baronesa, que ao longo do século XIX era uma grande
extensão de terra pertencente ao Barão e a Baronesa de Gravataí. Lá mantinham um
palacete, referência na época, no local onde hoje é a Fundação Pão dos Pobres. Além
desse nome, a área, que hoje corresponde ao bairro Cidade Baixa, teve outras
denominações associadas ao seu território, como “Emboscadas”, Estado Oriental e a
Banda Oriental. Essa área faz parte da história de Porto Alegre, enquanto espaços
associados à cultura popular, expressa através dos batuques, das danças, ritmos e festas
organizadas pelos diversos segmentos negros da população. O Areal era considerado um
“outro país”, demonstrando a segregação de alguns espaços da cidade. A historiadora
Sandra Pasavento (2001), em seu artigo sobre os excluídos da cidade, ressalta que a
cidade baixa fazia oposição à cidade alta, onde habitavam as classes mais abastadas,
199
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Brasil.
200
Trata-se de projeto de TCC apresentado em 2020/02 no Curso de Arquitetura e Urbanismo da Unisinos.
394
1 Areal da baronesa
1.2 Evolução urbana
1939 2010
2 quilombo do Areal
2.1 Análise espacial da comunidade
A
comunidade possui configurações espaciais que tem a rua como base/unidade
morfológica e um espaço contido por edificações definindo arquitetonicamente o
percurso. É um evento espacial por si própria. O cenário é pleno em diversidade e o
repertório arquitetônico é variado.
396
Figura 4 - A casa do Beleza, o simpático morador que está logo no acesso do quilombo.
Ele é como um “porteiro”, pois está sempre disposto para recepcionar e contar um pouco
da história da comunidade.
Foto. Guilherme Santos, Sul21
2 quilombo do Areal
2.2 Intervenções
A partir das análises e a pesquisa histórica foi possível identificar a estrutura
funcional e as características que contribuem para a identidade da comunidade
Guaranha. O projeto consiste no pensamento inclusivo de uma área informal do bairro
reestabelecendo sua relação com o entorno.
A proposta prevê reorganizar a condição existente a partir da: reintegração entre
as duas áreas que pertenciam ao Areal da Baronesa (área no bairro Cidade Baixa e a área
do quilombo do Areal) que atualmente estão separadas, e a partir da reorganização do
espaço da área da comunidade, a fim de promover uma maior relação entre equipamentos
urbanos, sociais e de moradia.
O projeto está divido em 3 etapas:
Figura 5 - Ponto A. Centro Cultural Terreira da Tribo: este terreno já está destinado para
a construção deste Centro cultural, através do orçamento participativo. O grupo
de experimentação teatral Terreira da tribo ocupa lugar de destaque na cidade e funciona
como uma escola de formação de atores e, principalmente, como ponto de aglutinação de
pessoas e profissionais dos mais diversos seguimentos, fomentando a criação artística
em diferentes áreas.
3. A Pegada Africana, que é uma obra existente em Porto Alegre, criada por Vinícios
Vieira e pertence ao Museu do Percurso Negro. A presença dessa obra da área do Areal
reafirma a presença histórica da negritude na construção da cidade de Porto Alegre.
Imagem comparativa entre o atual e a proposta de um dos espaços abertos possíveis com
o desadensamento da área.
existente.
Considerações finais
A conclusão deste trabalho afirma a presença da comunidade afrodescendente
na construção da cidade de Porto Alegre, onde viabiliza o quilombo no bairro. E a
conexão do quilombo com o espaço urbano ao qual um dia pertenceu é fundamental para
o desenvolvimento cultural da sociedade e acima de tudo ao respeito ao quilombo do
Areal.
Referências
“O Bairro esquecido” REVISTA DO GLOBO, 1965 - DELFOS, PUCRS
MAPAS: (1888-1916) - Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Velhinho. (1939 -
2015) - Prefeitura de Porto Alegre
MARQUES, Olavo Ramalho. Entre a Avenida Luís Guaranha e o Quilombo do Areal:
estudo etnográfico sobre memória, sociabilidade e territorialidade negra em Porto
Alegre. 2006.
MATTOS, Jane Rocha de. Que arraial que nada, aquilo lá é um areal: O areal da
Baronesa: imaginário e história (1879-1921). 2000. Dissertação. (Mestrado em
História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da PUCRS, Porto Alegre, 2000.
VIEIRA, Daniele Machado. TERRITÓRIOS NEGROS EM PORTO ALEGRE/RS
(1800 – 1970): Geografia histórica da presença negra no espaço urbano 2006,
ARQUEOLOGIA URBANA NO QUILOMBO DO AREAL, PORTO ALEGRE –
Fernanda Tocchetto e Paulo de Tarso Santos – Museu JF/SMC.
403
201
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas e Professor de Ensino Médio das Escolas Newton Oppermann, Maria de Lourdes
Campos Freire Marques e Orlando Signorelli. Pesquisador do Grupo de pesquisa História das Cidades:
Ocupação Territorial e Ideários Urbanos (PUC-Campinas) e Grupo de Arte Sacra Jesuítico-Guarani e Luso-
Brasileira (PUCRS). E-mail: [email protected]
202
O tenente Pedro Gonçalves Meira “foi o latifundiário escravocrata, [...] dono da fazenda açucareira Pau
Preto, que idealizou, já em 1793, a construção de uma capela nos limites de sua propriedade na paragem de
"Indayatuba", doando um pedaço dessas suas terras ao padre Joaquim Gomes Escobar, para constituição de
seu patrimônio sacerdotal e também para que fosse capelão da então chamada Capela de Nossa Senhora da
Conceição [...]. As capelas eram a materialização do poder e riquezas dos senhores e desde os primeiros
engenhos coloniais a presença de uma, nem se fosse um oratório, era obrigatória. Como tantos outros, Pedro
Gonçalves Meira empenhou-se em erigir a capela e associar seu nome ao empreendimento. Ele era
reconhecido pelo Bispo e pela Coroa, obtendo privilégios do padroado local.” Diz BELO, Eliana. Cf.
http://www.tribunadeindaia.com.br/_conteudo/2015/12/especiais/indaiatuba_185_anos/434-reflexoes-
sobre-o-fundador-oficial-de-indaiatuba.html. Acessado em 20 de março de 2018.
404
Para o escritor Dr. Ricardo Gumbleton Daunt era desejo do Senhor Meira
“beneficiar a sua imediata vizinhança” (DAUNT, 1900, p. 7) construindo uma Igreja,
dando assim um prestigio social entre os homens bons. Contudo, o local onde Meira
gostaria de construir a Igreja era inadequado. Pois o pároco Padre Joaquim Gomes
afirmava a “incompatibilidade do terreno para tal edifício, por estar ainda lodoso e
infiltrado d’agua, vestígios do antigo brejo” (DAUNT, 1900, p. 7).
Após alguns anos desse ocorrido, o terreno onde seria construído a Igreja que
pertencia ao Tenente Meira passa a ser do Capitão Joaquim Teixeira Nogueira de
Almeida203 pai do Padre Antônio Joaquim Teixeira de Camargo conforme no seguinte
trecho:
[...] um homem que concentrava em si grande copia do antigo civismo e
espirito empreendedor paulista, Pedro Gonçalves Meira, tratou de edificar uma
capella ao lado do logar actualente ocupado pela egreja de que tratamos, no
terreno em que depois se construiu o sobrado, propriedade do sr. Joaquim
Teixeira Nogueira de Almeida, e que depois foi por alguns anos ocupado como
cemitério. (DAUNT, 1881, p. 137)
203
Joaquim Teixeira Nogueira de Almeida é filho do José Teixeira Nogueira de Camargo que seria irmão
do Padre Antônio Joaquim Teixeira (fundador da igreja do rosário). “Joaquim Teixeira Nogueira de
Almeida, batizado em Campinas a 18/12/1830, foi vereador à Câmara Municipal e o maior proprietário
rural de seu tempo. Faleceu em Campinas a 12/7/1918. (MELLO PUPO, 1969, p. 258)
204
“Padre Antonio Joaquim Teixeira, nascido em Campinas, foi batizado nesta cidade em 20/06/1793,
sendo oficiante o seu tio paterno Frei Antonio de Padua Teixeira, 1º Vigario de Campinas. Ordenou-se em
São Paulo (processo de habilitação “de genere” na Curia Metropolitana). Viveu em Campinas, onde fundou
em 1817 a Igreja do Rosário, tendo sua residência em frente à esta igreja na rua do Bom Jesus, uma grande
casa que depois foi residência do Major Álvaro Xavier de Camargo Andrade; possuía, também uma chácara
no Bonfim, que deixou a seus pais que sobreviveram, chácara legada depois a seus irmãos Domingos e D.
Ana, que nela sempre residiu e de onde lhe veio o tratamento de “vovó da chácara”, dado por seus inúmeros
sobrinhos. Padre Antônio faleceu em Itu, para onde fora buscar alivio às suas moléstias, a 4/9/1828, sendo
inventariado em Campinas” (MELLO PUPO, 1969, p. 262).
405
Figura 2 - Largo do Rosário (1890). Ao fundo a Igreja do Rosário e o sobrado que pertenceu a família
Teixeira Nogueira. Fonte: MENDES, José de Castro. Retratos da Velha Campinas, 1951.
A Igreja do Rosário foi fundada em 1817 pelo padre Antônio Joaquim Teixeira
[...] Depois de outros terem tentado em vão dar a Campinas uma terceira igreja.
O padre Antônio Joaquim Teixeira de Camargo ‘se tornou herdeiro da ideia’ e
fundou a igreja do Rosário: ‘reunindo a si o seu parente, senhor do engenho
Joaquim José dos Santos Camargo, sempre prompto para o que fosse do
serviço de Deus, eles deram começo à obra em lugar que a configuração do
largo (hoje do Rosário) indicava como próprio; e aos poucos, e maximé
ajudados por esmolas dos cativos, conseguiram levantar o templo e pô-lo em
estado que permitia a celebração do Santíssimo Sacramento Eucarístico
(DAUNT, 1881, p. 138).
Como descrito pelo Dr. Ricardo para construção do templo religioso, foi
necessário contar com as esmolas dos escravos além da ajuda de alguns dos irmãos do
padre Antônio Joaquim Teixeira, como o Major Luciano Teixeira Nogueira e Domingos
Teixeira Nogueira. Auxiliado também pelo seu outro parente, Joaquim Jose dos Santos
Camargo, deram assim início às obras. Porém o Padre Antônio não conseguiu ver sua
obra pronta, pois, ao adoecer teve que se retirar para Itu, onde tinha parentes, em busca
de tratamento médico. No ano de 1828, o padre Fundador da Igreja do Rosário vem a
falecer, e é enterrado na Igreja do Carmo em Itu. O sonho da vila de São Carlos de ter
uma Igreja dedicado à Nossa Senhora do Rosário, não acabaria com a morte do Padre
Antônio, pois o Padre Manoel José Fernandes Pinto daria continuidade na empreitada,
sendo sucedido pelo padre Januário Maximo de Castro Camargo e Prado, padre Francisco
de Abreu Sampaio e pela Irmandade do Rosário.
A Igreja do Rosário teve “um longo período em que a tarefa de completar o que
ainda faltava parecia abandonada” (DAUNT, 1881, p. 139), assim os padres responsáveis
pela paroquia viram a necessidade de criar uma irmandade que deveria zelar pela igreja.
Contudo, a “Igreja do Rosário teve grande apoio e simpatia dos escravos. Eles
colaboraram com esmolas para a construção do templo, até que nele se pudesse
406
finalmente celebrar a Santa Missa” (MARTINS, 2010, p. 52). Mais não podemos afirmar
de fato que a Igreja Nossa Senhora do Rosário seria uma Igreja para homens de cor como
vemos no seguinte trecho:
A frase “Igreja de Nossa Senhora dos Pretos do Rosário”, causa espécie. Será
que o templo se construía iria ser dos homens de cor – igreja separada dos
homens brancos – como também foi o cemitério dos escravos dos de seus
Senhores? (BRITO, 1957, p. 159)
Ao redor da Igreja possuía ainda um cemitério para o enterro dos cativo, assim,
“as taipas iniciadas por Meira, ao lado da capela, foram transformadas em muros do
cemitério, servindo para o sepultamento dos negros escravos e libertos católicos – e de
‘pessoas humildes’” (LORETTE, 2003, p. 62). Dessa maneira podemos supor que a Igreja
além de ser financiada poderia ser frequentada por pessoas de cor. A Igreja ao longo de
sua existência, sofreu muitas reformas e modificações. Segundo Dr. Ricardo:
O corpo da egreja foi forrado á moda abaulada, ou em meia laranja, como se
diz. O assoalho e o côro foram renovados. Janellas receberam os competentes
caixilhos envidraçados; e construíram-se dous altares aos cantos do Arco
Cruzeiro. A egreja estava sem fronstespicio e torres. [...] A egreja tem capella-
mor, nave, dous corredores laterais, terminado, um no altar do Senhor Bom
Jesus e outro na sachristia. Esta egreja tem no fundo e ao lado direito um
pequeno terreno que separa das propriedades imediatas. (DAUNT, 1881, p.
139)
Figura 3. A primeira Igreja seria idealizada pelo padre Antônio (1817). A segunda, teria sido
reformada e recebeu torres (1871) e a terceira igreja onde as torres foram demolidas por apresentar
risco de desabamento (1887). Fonte: Mateus Rosada
205
Diz Maria Lúcia de Souza Rangel Ricci Cf.
http://www.centrodememoria.unicamp.br/sarao/revista45/sarao_ol_texto1.htm. Acessado 10 de novembro
de 2017
407
206
“Em 1898, a Igreja do Imaculado Coração de Maria (São Paulo) já havia sido consagrada, era o momento
de os Claretianos trabalharem na fundação de novas casas. Cedo as pregações missionárias dos Claretianos
pediram a criação de casas e de comunidades que lhes servissem de abrigo e viabilizassem incursões mais
distantes e, outrossim, regulares e constantes. Entre os dias 4 e 16 de janeiro de 1889, a Casa-missão de
São Paulo recebeu o Pe. Antônio Dalmau Caldero, Padre Visitador em viagem pela América do Sul.
Durante a sua estada tratou-se de nova fundação. Havia, então, convites de várias cidades, entre outras,
Sorocaba, Bauru e Franca. Duas eram as cidades, àquela altura, cogitadas pelos Missionários Claretianos:
Campinas e Botucatu. Correspondências encaminhadas às Dioceses responsáveis foram favoravelmente
respondidas, estava aberto o caminho para a expansão. Os Missionários Claretianos mostraram preferência
pela cidade de Campinas, todavia, devido à solicitação de Dom Joaquim Arcoverde, agora Arcebispo do
408
Rosário, pois, com a dedicação dos missionários a Igreja ganharia nova fachada, novos
altares, novas imagens e novas pinturas. Tornando-se uma das igrejas mais belas de
Campinas (figura 4).
As transformações que aconteceram no templo durante longos períodos históricos
seriam um reflexo da vida religiosa presente nessa região. Isso aconteceu por ser um
desejo do povo e dos padres para que pudesse existir uma igreja dedicada à Nossa Senhora
do Rosário.
2 O plano de demolição
Com o despontar de uma cidade industrial, houve a necessidade de pensar um
plano de melhoramentos urbanos para Campinas. Alguns fatores contribuíram para que
isso acontecesse, dentre eles o principal foi o problema de ligação viária aos novos bairros
Rio de Janeiro, decidiu-se por Botucatu. É necessário observar que Dom Joaquim Arcoverde esteve à frente
da Diocese de São Paulo entre os anos de 1894 e 1897 sendo, posteriormente, transferido para a
Arquidiocese do Rio de Janeiro. A sede de São Paulo será vacante até a chegada, em 1899, de Dom Antônio
Cândido de Alvarenga. Dom Joaquim Arcoverde, durante a sede vacante, foi o responsável pela Diocese
de São Paulo, daí a sua participação no processo de criação de novas comunidades por parte dos
Missionários Claretianos. Apesar da escolha, por parte de Dom Joaquim, de Botucatu, no final, a partir de
visitas de Claretianos às cidades e apurada avaliação das circunstâncias a serem encontradas e daquilo que
lhes era oferecido, a cidade de Campinas foi definida como a cidade que receberia a segunda Casa dos
Missionários Claretianos. Entre as observações favoráveis à escolha de Campinas o Livro Tombo (1899 -
1930), em notas assinadas pelo Padre Fidel Orueta, um dos integrantes da Segunda Expedição, registra o
tamanho da cidade – aproximadamente 35 mil habitantes – e as linhas ferroviárias Mogiana e Paulista, que,
àquela altura permitiam avançar em regiões do interior do Estado de São Paulo e de Minas Gerais. Tratava-
se de escolha estratégica que permitiria aos Missionários levar a Palavra aos interiores do país. A escolha
definitiva para a fundação de nova comunidade ainda tardaria, Padre Genover Carreras, Superior da Casa
de São Paulo, expressava preocupação com o surto de febre amarela na cidade de Campinas e, a despeito
da preferência pela cidade, procurou acompanhar os desdobramentos da doença no interior do Estado de
São Paulo. A espera demonstrou ao Superior de São Paulo que Campinas estaria em condições de receber
a Comunidade Claretiana. Inaugurada solenemente no dia 24 de setembro de 1899, a nova casa exigiria
grande esforço. Os Missionários receberam uma casa e capela de feições modestas e antigas. Dedicaram-
se ao trabalho de ampliação e de reconstrução. Em novembro 1913, a Igreja de Nossa Senhora do Rosário
estava pronta, faltava decorá-la e instalar os altares; em nada lembrávamos a casa e capela originais. A
Europa vivia os tempos tristes e árduos que prenunciavam uma guerra de grandes proporções, os altares,
no total de seis, lavrados na Itália, segundo nos conta o Pe. Elias Leite, chegaram ao Brasil em 1914. A
Igreja ganhava forma e graça pelas mãos daqueles que se empenhavam na sua construção e consagração”.
Diz DUARTE, Josias Abdalla. Cf. http://serclaretiano.com.br/formacao/historia-dos-claretianos-no-brasil-
parte-6/. Acessado em 01 de agosto de 2018.
409
que ia surgindo com o aumento da população atrás de emprego. O medo de uma nova
epidemia de febre amarela que assombrava a cidade há décadas também contribui para
que se houvesse um planejamento urbano. Por isso, no ano de 1934, o escritório do
engenheiro Prestes Maia foi contratado pela prefeitura para elaboração de um novo
planejamento urbanístico para Campinas.
Segundo Ricardo Badaró, este novo planejamento possuía como filosofia os
seguintes princípios: 1º A cidade deve estabelecer espaços para uma futura expansão; 2º
A cidade necessita de rápidas possibilidades de comunicação interna; 3º A cidade precisa
definir suas funções espacialmente, como, administração, lazer, residência, comercio etc.
(BADARÓ, 1996, p. 50)
Para Campinas o novo projeto ficou conhecido como o Plano de Melhoramentos
Urbanos de Campinas (ou plano Prestes Maia) sendo dividido em duas fases: a primeira
fase de 1934 a 1955; a segunda fase de 1956 a 1962. Sua aprovação deu-se através do
Ato Municipal nº118 de 23 de abril de 1938. Contudo a principal característica do plano
era melhorar as vias para um novo sistema viário, sendo divididos da seguinte maneira
segundo Badaró (1996, p. 51-73):
• Radiais externas: sua função seria canalizar o trafego rural e interurbano
• Perimetral externa: seria formada por anéis de vias de trânsito rápido
• Radiais internas: seria vias construídas ou alargadas para a continuidade de
trafego das radiais externas
• Perimetral media: deveria estabelecer a articulação com as radiais internas e a
parte mais antiga da cidade
• Avenidas centrais: Seria o alargamento e criação de duas avenidas ortogonais
entre si que deveria ligar o centro secundário com o centro principal
• Perimetral interna: Contaria com um quadrilátero que engloba o centro principal
e seu entorno imediato
• Melhoramentos complementares: seriam vários melhoramentos na região central
que pudesse completar as interligações entre a perimetral média e interna.
410
o plano de melhoramentos urbanos fora “largamente divulgado [...] por meio de plantas,
perspectivas e maquete” (KROGH; SOUZA; SALGADO, 2016, p. 114) (figura 5 e 6).
O processo de desapropriação da Igreja do Rosário ainda contou com uma
interdição, pois no dia 25 de janeiro de 1956, o engenheiro Cyro B. Costa, da secção
Técnica de Obras Particulares do Departamento de Obras e Viação da Prefeitura
Municipal de Campinas, encaminhou um ofício ao Bispo da Diocese de Campinas, D.
Paulo de Tarso Campos, sobre as “condições de segurança do prédio da Igreja do Rosário”
(CASTRO, 1956, p.1). Neste ofício o engenheiro comunica a “interdição imediata da
Igreja do Rosário, para “a garantia da segurança da coletividade que a frequenta”
(CASTRO, 1956, p.1). Justifica esta Intenção pelo laudo de vistoria realizados pelos
engenheiros do departamento de Obras e Viação da Prefeitura Municipal de Campinas,
Lix da Cunha, Mario de Camargo Penteado e Rubens Duarte Segurado, realizado no dia
24 de janeiro de 1956. O intuito da Prefeitura era pressionar as autoridades eclesiásticas,
a Congregação dos Padres Claretianos estava relutante com o desejo do poder municipal,
porém quem deveria decidir o destino da belíssima igreja do Rosário era o ordinário local,
Dom Parlo de Tarso Campos. A atitude do bispo foi contratar novo engenheiro para
realizar uma nova visita técnica.
A prefeitura de Campinas estava oferecendo ainda uma indenização para
desapropriação do imóvel no valor de Cr.$ 6.000.000,00 (seis milhões de cruzeiros) sendo
paga da seguinte maneira, Cr.$3.400.000,00 (três milhões e quatrocentos mil cruzeiros),
em títulos de dívida pública e Cr.$ 2.6000.000,00 (dois milhões e seiscentos mil cruzeiros,
em dinheiro. A proposta fora feita a comunidade claretiana e ao senhor bispo. No dia 23
de fevereiro de 1956 o pisco convoca a 173º sessão capitular extraordinária do Cabido,
para dizer aos padres que “diante do parecer do laudo técnico [...] a melhor solução para
o caso seria aproveitar agora a boa vontade do Sr. Prefeito Municipal, para estudar o valor
da desapropriação do templo” (CABIDO, 1956). No dia 4 de abril de 1956 o bispo assina
o acordo amigável entre a prefeitura para a desapropriação do espaço religioso (figura 7).
Exatamente no dia 11 de maio de 1956 a prefeitura inicia o processo de demolição da tão
prestigiada Igreja de Nossa Senhora do Rosário que fora concluída no dia 1 de setembro
de 1956 (figura 8).
Vários jornais noticiaram o fim trágico da suntuosa Igreja. Assim como parte da
preservação das pinturas da Igreja o senhor Dr. José de Angelis, financiou a retirada de
vários murais, uma técnica que se removia o reboco. Dessa forma, todos os altares de
mármore, bancos, imagens, alfais, sino, portas, janelas, vitrais, etc. Tudo o que seria
412
possível de se carregar foi retirado da Igreja do Rosário, para que um dia pudesse ser
utilizado na reconstrução da mesma.
Considerações finais
O artigo é resultado de uma pesquisa de iniciação cientifica, realizada entre 2017-
2019, que buscou entender a fundação da Igreja, a criação de sua irmandade e o
desenvolvimento do plano urbanístico que resultou na demolição do templo. Com a
implementação do plano urbanístico o patrimônio religioso sofreu uma desapropriação e
consequentemente a demolição para o alargamento das avenidas centrais de Campinas.
Nesse sentido, o artigo buscou revelar traços curiosos sobre a criação da Igreja, o
desenvolvimento da Irmandade, a nova administração e a implementação do plano
urbanístico de Campinas-SP.
Referências
BADARÓ, Ricardo de Souza Campos. (1986) Plano de Melhoramento urbano de
Campinas (1934-1962). Dissertação (Mestrado) – Escola de Engenharia de São Carlos,
Universidade de São Carlos, São Carlos.
BRITO, Jolumá. Histórias da cidade de Campinas. Campinas: Saraiva, 1956-1969. 26
vols.
CABIDO, Diocesano de Campinas. 173º Sessão Capitular extraordinário. Campinas,
1956.
CASTRO, C. B. [Ofício] 25 jan. 1956, Prefeitura Municipal de Campinas. [para]
CAMPOS, Paulo de Tarso. Curia Diocesana de Campinas. Campinas. 1f. Interdição
da Matriz do Rosário.
DAUNT, Ricardo Gumbleton. Os primeiros tempos de Campinas. São Paulo:
Tipografia Paulista, 1879
DAUNT, Ricardo Gumbleton. Rosário de Campinas. In: Almanaque Literário de São
Paulo para 1881.
KROGH, Daniela da Silva Santos; SALGADO, Ivone; SOUZA, Rodrigo Henrique
Busnardo de. O papel das exposições na formação do urbanismo: a difusão do Plano
de Melhoramentos de Campinas de Prestes Maia na exposição de 1939. Arq.Urb. USJT,
número 17, setembro-dezembro de 2016. Disponível em:
http://www.usjt.br/arq.urb/numero-17/ 7-krogh-souza-salgado.pdf. Acesso em: 15 julho.
2019.
LEITE, Padre Elias. Missionários Claretianos, Igreja do Rosário, 100 anos em
Campinas-SP, 1899-1999.
LORETTE, Antônio Carlos Rodrigues. (2003). Cemitério em Campinas:
Transformação do espaço para sepultamento (1753-1881). Centro de Ciências Exatas,
Ambientais e Tecnológicas. Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
413
207
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas
Tadeu (USJS). Contato: [email protected]
208
Professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas
Tadeu (USJS). Contato: [email protected]
415
Praia do Guarujá final do século XIX e Praia de New Bighton, Inglaterra final do século XIX
Fonte: Arquitetura a Beira Mar, Jaqueline Alves
Desenvolvimento do turismo
na Baixada
416
http://guarujafatosefotosdanossahistoria.blogspot.com/2013/06/grand-hotel-la-plage_13.html
Uma das primeiras iniciativas de turismo na orla santista foi o hotel Internacional
de 1895. Além dele, antigas residências também eram transformadas em pensões, cabines
para troca de roupa e os cassinos em cada um dos hotéis. A necessidade da urbanização
da orla tornou-se uma exigência face a demanda surgida a partir do primeiro quartel do
século XX e grandes empreendedores pressionavam as autoridades para que a
417
https://www.novomilenio.inf.br/santos/fotos108.htm
Mulheres ao lado de cabine de banho na praia do Gonzaga.
Fonte: Arquitetura a Beira Mar. Jaqueline Alves
418
1 Palacete Olímpia de 1928 2 Palacete São Paulo década de 1920 3 Edifício Flórida de 1944 4 Edifício
Belmar de 1946 5 Edifício Copacabana de 1946 6 Edifício Paulistânia de 1946 7 Edifício Irmãs Santos de
1960 8 Edifício Porto Fino de 1960 9 Edifício Porto Velho de1961
Considerações finais
De paisagem bucólica a território ocupado, a orla santista tem em seu repertório
construtivo um interessante mosaico de arquitetura que se delimita entre 1930 e 1970. Os
programas arquitetônicos elaborados com um critério informal a princípio para veraneio
422
e lazer de fim de semana e férias foram sendo adaptados para uma população fixa. O
restaurante, por exemplo, era um espaço obrigatório na maioria desses edifícios que aos
poucos foram sendo descaracterizados e um número mínimo ainda possui esse uso.
Foi essa ocupação na orla, definitiva a partir dos anos 1950 que a cidade de Santos
iniciou a renegar o seu núcleo inicial, localizado no centro histórico no antigo Cais do
Valongo. A pujança da riqueza do café retratada na sua arquitetura definitivamente muda
de lugar.
O que potencializou a ação dos agentes imobiliários foi a facilidade de acesso que
os paulistanos passam a ter com a abertura da rodovia Anchieta. Assim, o que se viu na
orla santista foi a produção de vários edifícios multifamiliares onde se aplicam as
vertentes da arquitetura moderna, mas apropriadas a um mercado imobiliário em
expansão e que acaba por popularizar esses preceitos e tinham na classe média paulistana
seus principais consumidores. Essa movimentação legou a cidade um conjunto
arquitetônico único, porém pouco lembrado e efetivamente catalogado, o que dificultam
ações e políticas preservacionistas.
Referências
ALVES, Jaqueline Fernández. Arquitetura à Beira Mar. Santos entre 1930 e 1970.
Dissertação de Mestrado. São Paulo: FAU/USP, 2000.
CONDE, Luis Paulo; NOGUEIRA, Mauro Neves; ALMADA, Mauro e SOUZA,
Eleonora Figueiredo de. Protomodernismo em Copacabana. Uma arquitetura que não
está nos livros. In Arquitetura Revista nº 03. FAU/UFRJ. Rio de Janeiro, 1985.
CORBIN, Alain. O Território do Vazio. A Praia e o Imaginário Ocidental. São Paulo:
Cia das Letras, 1989.
LANNA, Ana Lúcia Duarte. A Cidade Controlada: Santos 1970-1913. Apostila.
FAU/USP. São Paulo 1994.
REIS FILHO, Nestor Goulart. São Paulo e outras Cidades. Produção Social e
Degradação dos Espaços Urbanos. São Paulo: Hucitec, 1994.
423
Introdução
O caminho percorrido, e que levou a elaboração desta reflexão, tem seu início em
2018, com a disciplina optativa História e Patrimônio Cultural, ofertada no segundo
semestre aos estudantes do 3º ano de Licenciatura em História, curso da Universidade
Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), campus de Irati, Paraná. Ao final daquele
período letivo foi realizada uma exposição fotográfica intitulada “Educando para o
Patrimônio Cultural – comidas, saberes e práticas alimentares”, a qual nos estimulou a
pensar para além dela, analisando os aspectos que poderiam ser problematizados e os
debates fomentados a partir dos estudos sobre Memória e Patrimônio Cultural212.
Com o intuito de despertar o interesse e a compreensão dos conteúdos por parte
dos acadêmicos, “sobreviventes” das sextas-feiras à noite213, foi proposto um trabalho
final, cuja execução envolveu ações individuais e também coletivas. O objetivo geral era
notar a relação existente entre a teoria e prática. Além disso, almejava-se atingir uma
sensibilização dos estudantes para os conceitos trabalhados ao longo do semestre,
referentes ao Patrimônio Cultural, tanto no âmbito material quanto imaterial, produzindo
novos sentidos e significados.
Esta atividade foi inspirada na obra “Educando para o Patrimônio Cultural:
propostas de práticas para a educação formal”, de Ana Cláudia Cerini Trevisan e Leandro
Henrique Magalhães (2012). A estratégia pedagógica e metodológica empregada pelos
209
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste,
bolsista CAPES. Contato: [email protected]
210
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste,
bolsista CAPES. Contato: [email protected]
211
Doutora, Universidade Estadual do Centro-Oeste/Irati. Contato: [email protected]
212
É importante indicar que uma parte destas questões já foram alvo de reflexões nos trabalhos apresentados
na XIX Semana de História-UFG: A História em tempos de crise: anticientíficismos, negacionismos e
revisionismos, e na XV Semana de História, X Seminário de Estudos Étnico-Raciais, VII Jornada de
Integração Graduação e Pós-Graduação.
213
Para compreender a ação colocada em prática, consideramos importante indicar que o horário de
funcionamento do Curso de História da UNICENTRO (campus Irati) é noturno e que a maior parte dos
estudantes é de trabalhadores. No ano de 2018, a disciplina em questão foi ministrada na sexta-feira, um
dia da semana que, por excelência, é alto o índice de ausência de sala de aula.
425
214
A ideia de receita tradicional foi empregada em articulação com a concepção de permanência, ou seja,
receitas que foram transmitidas de geração em geração e que eram realizadas nos dias de hoje. Todavia,
não deixamos de trabalhar com a perspectiva de que essas receitas foram reelaboradas ao longo do tempo.
Conforme Maria H. Gimenes, “é importante observar que a tradição, mesmo que estabeleça uma sensação
de constância e permanência, também sofre alterações compatíveis com as dinâmicas culturais dos grupos
aos quais pertence” (GIMENES, 2008, p. 52).
426
exposição fotográfica. Ao lado das fotos dos pratos, produzidas exclusivamente para
integrar a atividade, foram apresentadas as transcrições das receitas, bem como um
pequeno texto em que os acadêmicos explicaram as razões das escolhas das suas receitas
e indicaram o valor simbólico destas para seu núcleo familiar.
215
Popularmente conhecido por “nhoque”, é uma massa formada com trigo, água e sal, dividida em formato
de bolinhas.
427
parecem estar onipresentes na memória dos estudantes. Isto permite pelo menos duas
reflexões a respeito do papel atribuído a essas mulheres, dentro e fora das memórias: a
primeira diz respeito aos espaços que ocupavam, a cozinha, possibilitando uma análise a
partir do enfoque das relações de gênero; a segunda, sobre a própria forma com que as
mulheres compõem um lugar na história.
Partindo da primeira reflexão, cabe o reconhecimento dos esforços existentes na
academia e na sociedade de se pensar as mulheres para além dos estereótipos de gênero
foram criados para elas. Estes estereótipos, muitas vezes, constituem formas de
dominação por si próprios ou denunciam formas de dominação. A historiadora Joan Scott
(1995) define o gênero a partir da conexão de duas proposições: “(1) o gênero é um
elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os
sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significados às relações de poder”
(SCOTT, 1995, p. 86). Sendo assim, o gênero dá sentido à sociedade, diferenciando
categorias descritivas que se baseiam nas diferenças percebidas. Scott discute gênero
partindo da dicotomia descritiva “masculino x feminino”, para demonstrar as relações de
poder existentes entre estes gêneros.
Cabe ainda ressaltar que as diferenças entre os gêneros não são naturais e sim
naturalizadas pela sociedade, que atribui papéis e os hierarquiza. Segundo Scott, “as
estruturas hierárquicas baseiam-se em compreensões generalizadas da relação
pretensamente natural entre o masculino e o feminino’’ (SCOTT, 1995, p. 26). O
estereótipo que atribui às mulheres as funções domésticas, por sua vez, é resultado dessas
estruturas hierárquicas, originadas de avaliações culturais que a sociedade produz. Estas
avaliações, de acordo com a antropóloga Sherry B. Ortner (1979), seriam maneiras pelas
quais as próprias sociedades buscam percepções sobre si a fim de definirem-se,
estabelecendo certas regras. Para Ortner (1979, p. 98) estas avaliações são identificadas
por três fatores: o que se está explícito (elementos da ideologia cultural e colocações
informativas que desvalorizam a mulher), o que se está implícito (os esquemas
simbólicos) e as “classificações sócio estruturais que excluem as mulheres da
participação” em algum domínio em que reside o poder da sociedade.
Portanto, estudar sobre mulheres que cozinham não configura necessariamente
uma concordância com o estereótipo “mulheres na cozinha”, mas o contrário. A partir da
experiência, podemos identificar os papéis sociais que são considerados masculinos e
femininos a fim de compreendê-los e desconstruí-los, para historicizar que as diferenças
são reflexos do que é generalizado e socialmente imposto ao longo do tempo, como
428
demonstram as autoras acima. Isto também pode ser feito a partir de uma categoria
descritiva de análise, a História das Mulheres.
Conforme argumentam Mariana Vogt Michaelsen e Tânia Regina Oliveira Ramos
(2020), em um estudo sobre imagens alimentares presentes em obras de literatura, em que
personagens cozinheiras ora estão em uma situação de invisibilidade ora de visibilidade,
“a cozinha, a princípio um espaço de opressão, pode figurar-se como um campo de
possibilidades e de criação” (MICHAELSEN; RAMOS, 2020, p. 10). Partindo deste
território, é possível compreender costumes das mulheres ao longo do tempo, mas não só.
Por este caminho, poderíamos centrar nossos olhares às histórias de homens na cozinha
ou então de mulheres em todos os espaços para percebermos que os corpos não possuem
aspirações naturais e sim generificadas. Em nossa pesquisa com as receitas, a partir dos
depoimentos/textos que contemplam descrições sobre mulheres “mães” e “avós”, temos
condições de pensar a vida dessas mulheres fora da cozinha. Outras indagações podem
ser feitas para além do estabelecimento dos vínculos familiares: quais atividades
cotidianas elas teriam? estudavam? trabalhavam fora de casa? praticavam exercícios?
Ocupavam espaços públicos ou de sociabilidade? viviam em espaços urbanos ou rurais?
Etc.
Deste modo, cabe também pensar as formas com as quais as mulheres compõem
os lugares no estudo da história. É certo que estão incluídas na sociedade e participam
das relações sociais, políticas, econômicas e culturais. Entretanto, de alguma forma, são
excluídas da História, que outrora considerava apenas os aspectos políticos das relações,
sob o véu do positivismo. Não precisamos ir longe para nos questionarmos se, de fato,
superamos este aspecto. De que forma estamos (se estamos?) integrando as mulheres em
nossos estudos? Consideramos as relações de poder que perpassam o gênero? Essas são
apenas algumas inquietações que a experiência com a elaboração da exposição
fotográfica com as receitas pode suscitar.
1.2 Memória
Um outro conjunto de palavras encontradas nos textos que acompanhavam as
receitas diziam respeito ao debate sobre memória. Como exemplo, temos: TEMPO –
RECORDAÇÕES – PASSADO – CRIANÇAS – AMOR – HOJE – GERAÇÃO – ANOS
– INFÂNCIA. A receita proposta pela estudante 09 representa, na sua perspectiva, um
elo com o passado: “o preparo da receita junta novamente nossa família, para
conversamos, rirmos e relembrarmos o passado”. Já a estudante 04 atenta para a herança
429
cultural que a receita representa para o seu grupo: “nos dias de hoje, sempre que possível
a receita ainda é feita, tradicionalmente nos sábados, pois era quando minha avó fazia o
pão, e quando minha mãe ainda o faz”. As relações passado-presente acima evidenciadas
são ilustrativas do caráter construtivo que a memória possui, sempre dialogado com o
presente:
A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a
história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória
não se acomoda a detalhes que a confortam: ela se alimenta de lembranças
vagas, telescópicas, globais ou flutuantes, particulares ou simbólicas, sensível
a todas as transferências, cenas, censuras ou projeções. […] A memória instala
a lembrança no sagrado, a história a liberta e a torna sempre prosaica [...]
(NORA, 1993, p. 9).
1.3 Imigração
Com a finalidade de pensarmos aspectos relacionados a temática da imigração,
partimos das seguintes palavras: TRADIÇÃO – PASSADO – GERAÇÃO – BISAVÓ –
REGIÃO – PEROHÊ – HERANÇA – IDENTIDADE.
Tomamos como fio condutor de nossa discussão a justificativa da estudante 06:
“a receita do perohê sempre fez parte da minha família. Trazida pelos imigrantes
ucranianos, maioria da população de Prudentópolis/PR, é a identidade culinária desse
povo”216. Nesse caso, observamos que a comida e as práticas alimentares carregam
consigo diversos aspectos simbólicos, atuando como um mecanismo de pertencimento e
reconhecimento de determinado grupo étnico, o qual mantem a coesão social por meio
do compartilhamento de aspectos considerados comuns. Ao mesmo tempo, é um
demarcador de fronteiras e de distinção em relação ao “outro”, na mesma via dos
costumes, língua, religião, entre outros.
216
Perohê, ou Pierogi, são pasteis feitos com massa pré-cozida que podem receber diferentes recheios,
salgados ou doces. Em Irati, município do Paraná, temos a presença de descendentes de poloneses,
ucranianos, italianos, etc. Entre os acadêmicos que estudam na UNICENTRO, estão aqueles que nasceram
em Irati, mas também aqueles advindos de municípios vizinhos, como Prudentópolis, em que a presença de
descendentes de imigrantes se faz presente. Sobre a culinária ucraniana no município de Prudentópolis, ver:
EDUVIRGEM, 2018, p. 282-291.
431
Como aporte teórico para tal discussão, utilizamos a noção de etnicidade proposta
por Poutignat e Streiff-Fernart (1998). Para esses autores, a ideia de etnicidade exerce um
sentido organizacional, assegurando a unidade afetiva, formando agrupamentos a partir
de aspectos considerados comuns, definidos pela atribuição interna (endógena), mas
também externa (exógena), identificando a si e delimitando os demais. Esses limites
estabelecidos não se caracterizam como estáveis, e sim, podem variar conforme o tempo
e contexto.
Partindo destas questões, podemos considerar que as formas alimentares de um
povo e o preparo de seus pratos “típicos”, os torna em partes semelhantes, permitindo o
aprofundamento dos vínculos e de suas relações. Alguns alimentos são associados e
legitimadores de determinada etnia, exemplificado aqui com o perohê, sendo parte dos
ucranianos e seus descendentes, criando uma delimitação do que é comido por “nós” e o
que é por “eles”, classificando os indivíduos como membros e não membros. Ou seja,
essa comida atua como um mecanismo de identificação, bem como, um símbolo
pertencente a construção de uma identidade coletiva, no seu âmbito social e cultural. Vale
ressaltar que embora esse prato seja definido enquanto pertencente aos sujeitos oriundos
da Ucrânia, ele é encontrado também na gastronomia polonesa, divergindo-se nas
maneiras de fazer. Nesse sentido, encontramos a importância do preparo e dos
significados a ele atribuídos.
Uma boa parte dos municípios do entorno da Unicentro, campus de Irati, foram
marcados por deslocamentos migratórios e a constituição de núcleos coloniais de
imigrantes eslavos. Com isso, trouxeram consigo valores, costumes, hábitos e tradições
materializadas nos alimentos. Neli Teleginski (2016) ao analisar as práticas, saberes
culinários e receitas tradicionais de poloneses e seus descendentes na região Centro-Sul
do Paraná, discorre que tais questões englobam uma série de significados e
“sensibilidades alimentares”, ocasionando emoções e lembranças relacionadas ao país de
origem e as suas vivências, sendo perpetuados como um bem imaterial aos descendentes.
De certa forma, estes aspectos estão ligados aos conceitos de “herança” e “tradição”,
conforme as palavras presentes nos depoimentos da exposição fotográfica das receitas.
Para a autora, “a transmissão de práticas e de regras alimentares é uma
mobilização da memória, de aprendizado sobre o passado e de adaptações no presente”
(TELEGINSKI, 2016, p. 47). Para além do Perohê, observamos que outros estudantes do
Curso de História também escolheram receitas relacionadas a imigração nesses
432
territórios. A estudante 04 relata que o Pão no Bafo217 foi registrado como patrimônio
imaterial da cidade de Palmeira/PR em 2015. O prato foi introduzido no município por
volta de 1878, com os primeiros imigrantes russo-alemães. O modo de preparar a receita,
por sua vez, sofreu transformações ao longo dos anos, sendo ressignificado entre as
gerações, mas sem deixar de ser vinculado a uma memória coletiva e de manutenção de
práticas culinárias de familiares imigrantes. Muitas vezes, essas memórias e referências
estão respaldadas em imagens das bisavós e avós, como afirma a acadêmica: “esse prato
remete a minha vó (Apôlonia- in memorian)”.
Para além da reflexão levantada, podemos pressupor que os patrimônios
alimentares expostos, mesmo que não de forma generalizada e visível, também são
resultados dos cruzamentos históricos entre as distintas culturas e grupos sociais e étnicos,
sendo herdados de portugueses, espanhóis, italianos, poloneses, ucranianos, das
populações indígenas, dos africanos, entre outros. O consumo de alimentos específicos,
assim como o preparo das receitas, estão relacionados a determinados contextos políticos,
culturais, econômicos e geográficos, difundidos em todas as sociedades e, para alguns,
conforme proposto por Teleginski (2016), acabam por fazer parte dos discursos de
pertencimentos.
1.4 Sociabilidades
Para pensarmos essa temática e conceito, partimos das discussões propostas por
Simmel (1983), o qual define sociabilidade enquanto formas pelas quais os indivíduos se
agrupam em razão de seus interesses e necessidades, sejam elas momentâneas ou
duradoras, que repercutem na base da sociedade humana, configurada por meio das
relações e interações entre os distintos atores históricos. A partir dos momentos de
convívio, busca-se a constituição de um sentimento de união entre os grupos e membros,
onde a satisfação de “estar junto” pode constituir um elo do coletivo.
Com base nessa discussão inicial, observamos algumas palavras que remetem as
sociabilidades exercidas entre os estudantes e seus núcleos familiares, presentes no
momento de relatar a receita escolhida, sendo: FAMÍLIA – RECEITA – PREPARAR –
COMIDA – APRENDIDO – DOMINGO – CASAS – ALMOÇO. As justificativas
217
Pão no Bafo é um prato que consiste em um pão fermentado cozido no vapor de um molho que leva
carne de porco (costelinha e bacon) e repolho. Sobre o Decreto N 9.859, de 26/08/2015, que institui o
registro do “Pão no Bafo” como bem cultural de natureza imaterial, passando a integrar o Patrimônio
Cultural do Município de Palmeira, ver: https://issuu.com/ihgpalmeira/docs/decreto-p__o-no-bafo Acesso
em: 08 ago 2021.
433
Considerações finais
Partindo da premissa que os estudantes se constituíam como agentes históricos e
se encontravam envolvidos com suas “comidas e saberes”, foi possível compreender o
processo de recuperação e de pesquisa das receitas como um “lugar de memória”, com
seus aspectos de “reconhecimento e pertencimento”, conforme discute Pierre Norra. Em
certa medida, as etapas que envolveram a organização da exposição podem ser
interpretadas como um percurso de configuração de um “patrimônio imaterial particular’’
de cada grupo, na medida em que expressam identidades grupais e que atribuem sentido
ao longo do tempo. Além disso, a prática pedagógica colocada em curso na disciplina
História e Patrimônio Cultural procurou “proporcionar uma aprendizagem significativa,
em contato direto com a realidade local e partindo de questões próximas dos interesses
dos acadêmicos” (WAGNER, 2021, p. 10).
Por meio da bibliografia, refletimos a respeito do lugar de memória que as receitas
podem constituir, a ressonância no processo de seleção das receitas, bem como os desafios
teóricos e metodológicos no que tange as questões da diversidade e multiculturalidade
nas discussões sobre patrimônio. Nesse sentido, a bibliografia foi igualmente importante
ao revelar a multiplicidade epistemológica que o tema permite. Procuramos demonstrar
ao longo da reflexão que os estudos sobre Memória e Patrimônio Cultural podem suscitar
inquietações e debates sobre variados eixos temáticos, como questões relativas às relações
de gênero, cotidiano, sociabilidades, imigração, diversidade cultural, identidade, entre
outros.
435
Referências
EDUVIRGEM, Renan Valério. A culinária ucraniana na cidade de Prudentópolis,
Paraná: aspectos da imigração e a influência cultural das comidas típicas. In: DRESCH,
Francisca Júlia Camargo (Org.). Impactos das tecnologias nas Ciências Humanas e
Sociais Aplicadas, vol. 2. Ponta Grossa: Atena Editora, 2018, p. 282-291.
GIMENES, Maria Heriqueta Sperandio Garcia. Cozinhando a tradição: festa, cultura
e história no litoral paranaense. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal
do Paraná, Curitiba, 2008.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Ressonância, materialidade e subjetividade: as
culturas como patrimônios. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 23, p.
15-36, 2009.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão ... [et al.] -
Campinas, SP Editora da UNICAMP, 1990.
MATOS, Júlia Silveira; SENNA, Adriana Kivanski de. História oral como fonte:
problemas e métodos. Historiae, Rio Grande, 2 (1), p. 95-108, 2011.
MICHAELSEN, Mariana V; RAMOS, Tânia R. Oliveira. Ela sabia desaparecer com(o)
os pedaços de cebola: mulheres, (in)visibilidades e livros de receitas. Revista
Confluências Culturais, v. 9, n. 2, 2020, p. 10-22.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. In: Projeto
História. PUC-SP. São Paulo, n.10, p.7-28, Dez. 1993.
ORTNER, Sherry. Está a mulher para o homem assim como a natureza para a cultura?
In: ROSALDO, Michelle; LAMPHERE, Louise. (Orgs.). A mulher, a cultura e a
sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 95-120.
POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FERNART, Jocelyne. Teorias da Etnicidade. São
Paulo: UNESP, 1998.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica. In: Educação e
realidade (revista), v. 20, n. 2. Porto Alegre, 1995. p. 72-99.
SIMMEL, Georg. Sociabilidade: um estudo de sociologia pura ou formal. In: MORAES
FILHO, E. (org.). Sociologia. São Paulo: Ática. 1983, p. 165-181.
TELEGINSKI, Neli M. Sensibilidades na cozinha: a transmissão das tradições
alimentares entre descendentes de imigrantes poloneses no Centro-Sul do Paraná,
século XX. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Paraná, Curitiba,
2016.
TREVISAN, Ana Cláudia Cerini; MAGALHÃES, Leandro Henrique. Educando para
o Patrimônio Cultural: propostas de práticas para a educação formal. Londrina:
EdUniFil, 2012.
WAGNER, Ana Paula. História e Patrimônio Cultural em sala de aula. In: Anais da XV
Semana de História, X Seminário de Estudos Étnico-Raciais, VII Jornada de
Integração Graduação e Pós-Graduação. Universidade Estadual do Centro-Oeste,
Abril de 2021, p. 1-10.
WOORTMANN, Klaas. A comida, a família e a construção do gênero feminino. Série
Antropologia, Brasília, 50, 1985, p. 1-44.
436
Introdução
Este trabalho versa sobre audiodescrição e sugere uma reflexão referente sua
função e seus princípios aplicados na prática de atividades culturais no contexto do
Patrimônio Cultural para apreciação por pessoas com deficiência visual, que se relaciona
com a experiência oferecida pelo Encontro Olho de Sogra, que tange o planejamento e
práticas pedagógicas em mediações que consideram as pessoas com deficiência como
público visitante, na Perspectiva da Inclusão Cultural. Aborda-se aspectos conceituais e
metodológicos da audiodescrição e os desafios para as instituições culturais em torno das
ações de acessibilidade e ao processo de acessibilização para a consolidação da inclusão
cultural de pessoas com deficiência visual.
218
Mestrando no Programa de Pós Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade
Federal de Pelotas (PPGMP-UFPel) e graduado em Administração de Empresa.
437
Acessibilidade, inclusão e cultura, são três palavras que juntas significam que
todas as pessoas, com ou sem deficiência, de diferentes religiões, comunidades ou etnias,
têm o direito a todas as manifestações culturais; e para usufruírem desse direito, é
necessário que as instituições culturais, que promovem o patrimônio cultural, estejam
preparadas para receberem as pessoas em toda as sua diversidade. Os recursos de
acessibilidade possibilitam às pessoas com deficiência exercerem o pleno direito de
acesso ao patrimônio cultural e às instituições culturais, construirem um caminho rumo à
inclusão.
Amanda Tojal (2007), considera recente a valorização desse tema por instituições
culturais como museus. Segundo a autora, desde a década de 90, final do século 20, foi
que grande parte dos museus começaram a implantar, dentro de suas possibilidades,
programas de acessibilidade.
Há três itens importantes para a prática de ações de acessibilidade em instituições
culturais: acessibilidade física, acessibilidade comunicacional e acessibilidade atitudinal.
Acessibilidade Física: tem o compromisso de tornaro espaço arquitetônico possível para
o deslocamento e o acesso de todas as pessoas no local onde se encontram.
Acessibilidade Comunicacional: assume a responsabilidade de mediar as informações e
facilitar a compreensão dos objetos ou dos conteúdos apresentados, que amplia as
possibilidades para o público fruidor.
Acessibilidade Atitudinal: consiste em desenvolver nas instituições e nos espaços
culturais, a cultura da inclusão, formando os profissionais a reconhecerem em suas ações
e suas funções, maneiras de permitir a todos os públicos usufruírem das manifestações
artísticas e culturais, considerando sempre a inclusão de pessoas com deficiência.
A acessibilidade é um meio fundamental de promover a inclusão, que permite a todos que
desejarem a aproximação com o patrimônio cultural, estarem em permanente diálogo com
a história, seja do passado, presente ou futuro.
apropriação do espaço físico das instituições culturais pelas pessoas com deficiência
visual, por intermédio da audiodescrição e tudo que contextualiza a disposição espacial
no ambiente, desde a arquitetura, mobiliário e objetos, que têm função significante na
constituição do patrimônio cultural.
Considerações finais
O planejamento de mediação em instituições culturais com o recurso da
audiodescrição, expande, principalmente as possibilidades de percepção do patrimônio
cultural por parte do público fruidor, neste caso as pessoas com deficiência visual, tem na
acessibilidade comunicacional o fator fundamental para a compreensão e significação do
patrimônio cultural e tudo mais que se relaciona com ele.
O Encontro Olho de Sogra, através das edições de 2017 a 2019, levaram ao
conhecimento, para além dos participantes com cegueira ou baixa visão, extendeu aos
integrantes da equipe permanente do evento e aos profissionais das instituições culturais
que fizeram parte da programação, vivência prática e informações sobre a mediação
acessibilizada em que o recurso da audiodescrição revelou-se uma ferramenta pedagógica
para o ensino e aprendizagem acerca do patrimônio cultural de Pelotas. Cursos de
introdução à audiodescrição, podem ser uma excelente possibilidade de capacitação para
os profissionais das instituições culturais para iniciar a prática da acessibilidade
comunicacional com o público, principalmente aquele formado por pessoas com
deficiência visual. Um passo importante para melhorar o trabalho de mediação,
fundamental na promoção da interação entre a instituição cultural e o público fruidor,
significa abrir a instituição para todos os tipos de públicos, principalmente àqueles que
por fatores sociais e também por limitações sensoriais, físicas e intelectuais fazem parte
de grupos com menores condições de ter bom aproveitamento da experiência nos espaços
culturais, em vista que a cultura é um direito de todos. A audiodescrição como ferramenta
pedagógica abre possibilidades para que cada pessoa, em sua diversidade, tenha acesso à
informação imagética de modo igualitário, devendo por suas vantagens ser considerara
como uma possibilidade de acesso e permanência.
Referências
COUTO, Doris. Narrativas sobre a experiência em uma exposição acessibilizada.
Trabalho de Conclusão de Curso para obtenção do titulo de Bacharel em Museologia.
UFRGS. 2018.
444
Explorar o tema “morte” e seus obstáculos impostos pelas concepções atuais sobre
a finitude da vida (ELIAS, 2001) são aspectos analisados na relação cotidiana e educativa
na perspectiva da temática. São atitudes consideradas modernas diante das questões sobre
morte e o morrer (ARIÈS, 1977). Conforme o historiador Philippe Ariès analisa em seu
livro “História da morte no Ocidente”, as formas de conversar sobre morte são
escamoteadas:
Antigamente: dizia-se às crianças que se nascia dentro de um repolho,
mas elas assistiam à grande cena das despedidas, à cabeceira do
moribundo. Hoje, são iniciadas desde a mais tenra idade na fisiologia
do amor, mas quando não vêem mais o avô e se surpreendem, alguém
lhes diz que ele repousa num belo jardim por entre as flores. (ÁRIÈS,
2003, p. 89).
219
Doutoranda em Educação Ambiental PPGEA (Furg); Mestre em História (Furg); Especialista em Rio
Grande do Sul: sociedade, política e cultura; Graduada em Artes Visuais e História licenciatura (Furg) e
Bacharelanda em História (Furg). Professora da rede municipal na cidade do Rio Grande/RS. Contato:
[email protected]
446
Refletir sobre a realidade do fim da vida humana não se caracteriza como tarefa
fácil. As questões emotivas que se revelaram diante de um contexto velado, propiciam a
abertura para o diálogo sem rodeios, da inclusão nas conversas cotidianas sobre a morte
e todas as questões que envolvem o assunto. Conforme Elias (2001):
Finalmente, podemos encarar a morte como um fato de nossa
existência; podemos ajustar nossas vidas, e particularmente nosso
comportamento em relação às outras pessoas, à duração limitada de
cada vida. Podemos considerar parte de nossa tarefa fazer com que o
fim, a despedida dos seres humanos, quando chega, seja tão fácil e
agradável quanto possível para os outros e para nós mesmos (ELIAS,
2001, p. 07).
Procedimento invertido
Propor inverter a lógica de ofertar o conhecimento em sala de aula é etapa
importante do processo aqui investigado (PASTORE, 2016). Acreditando na hipótese de
que ao suscitar interesse, pode provoca atitude e gerar conhecimento, a proposta sugere
emanar do aluno às questões para movimentar o plano de aula para o ensino de História,
incentivando o jovem partícipe nos acontecimentos da vida como sujeito interventor na
ação “do que aprender” (PASTORE, 2016). Parte-se da possibilidade de realizar uma
aula-visita ao cemitério local conectadas com estratégias didáticas que culminaram no
“Procedimento Invertido”. Desta forma constrói-se possibilidades de compreensão dos
conteúdos para ensino de história no que se refere a um ensino pautado na aprendizagem
significativa.
A tendência historiográfica apresentadas nessa pesquisa levou-se a crer que o tema
morte, assim como o ensino de História, encontra-se em debate nos últimos anos por um
número considerável de autores, e aumentou na ultima década. Com a preocupação de
452
que falar em morte não se configura como algo relevante, tanto na escola, como na
família, enfatiza-se a importância do tema como expressão de humanidade, de
sociabilidade, de coletividade em um mundo individualista. Reitera-se que pensar a morte
é pensar a vida.
Diante das exposições aqui apresentadas, durante as aulas, nos relatos dos
estudantes, percebe-se que a geração vigente não possui instrumentalização e referências
para a compreensão dos processos que envolvem a morte, as práticas e rituais de
despedidas. Em vista dos argumentos proporcionados, problematiza-se a necessidade de
abordar questões sobre a morte em sala de aula no ensino de História. Dessa forma, me
parece que o cenário educacional convencional com um currículo imposto pela gestão
escolar e sugerido pelos PCNs para a disciplina História, não contribui para que o aluno
relacione o presente com o passado na perspectiva humanitária.
Levando em conta que conhecer as sociedades do passado, aprofundar os
conhecimentos históricos não ajuda a conseguir um emprego, alguns alunos argumentam:
“Para que saber o passado?” Essa atitude é muito comum em sala de aula e na prática
diária do professor. Conhecer as experiências anteriores dos humanos é estabelecer com
o mundo uma interpretação dos fatos históricos (PINSKY, 2011) que ajude a pensar o
presente.
A partir da aula em que havia o conteúdo de História sobre o ser humano no inicio
do processo evolutivo que conduziu o homem ao moldes atuais, e os aspectos que o
diferenciavam do animal, quero dizer, as práticas ritualísticas e cuidados com os mortos,
a curiosidade de um aluno ao perguntar se haviam cemitérios naquela época, permite
introduzir os procedimentos que induziram todas as séries de atividades que compõe o
“Procedimento Invertido” e propiciou os debates e levantou algumas hipóteses. Algumas
confirmadas outras refutadas.
O Procedimento Invertido se apresenta como uma estratégia para promover a
aprendizagem no ensino de História. Elaborado para enfatizar uma forma de construir
conhecimento na tentativa de incentivar o aluno como protagonista do processo de ensino
e aprendizagem. Através da interação com a estética cemiterial as questões levantadas
provocam o estudante à construir sua opinião, preparando-o para resolver questões
significantes em sua vida.
Além do reconhecimento da importante fonte histórica que se constituí o cemitério
para o ensino de História, o estudo do meio representa quebra do paradigma educacional
conservador. É comum levar o aluno ao cemitério? A saída da sala de aula provoca
453
Aprendizagem significativa
O conceito de aprendizagem significativa se baseia na concepção das Teorias da
Aprendizagem em Carl Rogers e Ausubel, apud RONCA (1994), no qual sugere que a
construção da aprendizagem significativa implica em relacionar os saberes anteriores, do
que o aluno compreende com os conhecimentos novos. É mais que uma acumulação de
informações, é uma aprendizagem que provoca modificações comportamentais e nas
atitudes. Aprendizagem significativa pretende um equilíbrio entre o que vivência e o que
significa. Constitui segundo Carl Rogers, aprendizagem significativa depende do
envolvimento pessoal:
Considerações finais
Para as últimas reflexões sem esgotar o tema, construir uma relação dialógica com
o outro proporciona uma troca, que rompe com a corrente hegemônica de um pensamento
dominante, um currículo escolar formatado. Enfatizar o cemitério como ambiente
alternativo de estudar as sociedades e sua relação com a transformação da cidade possui
a prerrogativa de romper com o pré-estabelecido e proporciona outros olhares para a
sociedade.
Entre avanços e retrocessos na educação em geral, precisamos considerar o
planejamento de ações educativas que desmistifiquem o senso comum e que na ousadia
de explorar novos espaços, novas temáticas, relacioná-las com o mundo e afirmar o lugar
do conhecimento como lugar de liberdade e autonomia do pensamento na busca de uma
aprendizagem com significado para o cotidiano.
O estudante ao perceber-se conhecedor de fronteiras, ao ultrapassar os muros do
cemitério, ao fazer conexões com seus saberes anteriores, realizou algumas avaliações e
tentou compreender as sensações que o momento permitiu. O estudante elaborou sua
conclusão, talvez, imperceptíveis anteriormente à experiência de conhecer o espaço
ofertado, no entanto, conectados pelo ambiente e pela temática desenvolvida na aula de
história, o jovem estudante foi levado a questionar a concepção de morte e próprio local.
Qual o sentido de aprende sobre morte no espaço cemitério? Além de desenvolver
sensibilidade e solidariedade ao momento da perda, permite pensar no outro como parte
de uma rede de relações humanas, remete as memórias coletivas, e relaciona o saber
escolar com o cotidiano.
455
Referências
ARIÈS, Phillippe. O homem diante da morte. Tradução Luiza Ribeiro. São Paulo:
Editora Unesp, 2014.
ARIÈS, Phillippe. História da morte no Ocidente: Da Idade Média aos Nossos Dias.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
BORGES, Maria Elizia. Imagens da morte: monumentos funerários e análise dos
historiadores da arte. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH. São
Paulo, 2011.
BRANDÃO, Carlos R. O que é educação. São Paulo: Brasiliense, 1981.
BRASIL (Ministério da Educação). Parâmetros Curriculares Nacionais: História.
Brasília: ME, 1998.
DUARTE JR, João Francisco. O sentido dos sentidos: a educação (do) sensível.
Campinas, 2000.
ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de Envelhecer e morrer. 1897-
1990. Tradução, Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 2002.
FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In: (Org.:). MOTTA, Manoel Barros Michel
Foucault. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001.
INGOLD, Tim. O dédalo e o labirinto: caminhar, imaginar e educar a atenção. Horiz.
antropol. Porto Alegre [online]. 2015, vol.21, n.44, pp.21-36. ISSN 1806-9983. Acesso
em Julho/2021.
LIPOVETSKY, Gille. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Editora Barcarolla,
2004.
OTOBELLI, Danúbia. Benedictus: os cemitérios de Flores da Cunha: arte, história e
ideologia / Danúbia Otobelli, Gissely Lavatto Vailatti – Flores da Cunha: Seculum,
2007.
PASTORE, Maria Cristina. Procedimento invertido: O Ensino de História a partir das
inquietações de jovens estudantes sobre a morte na aula-visita ao cemitério. Dissertação
(Mestrado em História, Pesquisa e Vivências de Ensino-Aprendizagem) – Universidade
Federal do Rio Grande, Rio Grande: 2016. Disponível biblioteca Furg.
PASTORE, Maria Cristina. A cidade dos mortos a cidade dos vivos: diálogos
possíveis entre a escultura funerária e o cotidiano escolar. Trabalho de conclusão de
curso (graduação) – Universidade Federal do Rio Grande - FURG, Instituto de Letras e
Artes – ILA, Artes visuais Licenciatura. 2013.
PINSKY, Carla Bassanezi. Novos temas nas aulas de história. São Paulo: Contexto,
2009.
PINSKY, Jaime. O ensino de História e a criação do fato. 14 ed. São Paulo: Contexto,
2011.
456
ROGERS Carl, R. Zimring, Fred. Carl Rogers / Fred Zimring; tradução e organização:
Marco Antônio Lorieri. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana,
2010. http://livros01.livrosgratis.com.br/me4665.pdf Acesso em Julho/2021.
RONCA, Antonio Carlos Caruso. Teorias de ensino: a contribuição de David Ausubel
1994 http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tp/v2n3/v2n3a09.pdf Acesso em Julho/2021.
457
Introdução
A Intolerância religiosa tem se manifestado ao longo dos anos, através não apenas
de ofensas verbais, mas também de agressões e físicas e vandalismo, a destruição de bens
tombados na intenção de deixar claro o discurso de ódio proeminente de grupos
extremistas e religiosos fanáticos.
O Patrimônio religioso é um assunto delicado diante da aceitação e
reconhecimento da comunidade, uma estátua ou busto de um general é aceita e entendida
pelo contexto histórico por toda a sociedade, e atos de vandalismo a estes bens são em
sua maioria voltados para fins não religiosos, um vandalismo pode partir de uma pessoa
não instruída, o que difere de um ato de intolerância religiosa provocado para atingir não
apenas o objeto mas as pessoas que o valorizam, como recente corte da cabeça da estátua
de Iemanja, na orla de João Pessoa, em 2013223, 2016224 e 2020225, sendo um exemplo
próximo de nosso campo em Alhandra, Templo dos Doze Reinados da Jurema Santa e
Sagrada, Alhandra/PB.
Já nosso campo em salvador, Ilé Òsùmàrè Aràká Àse Ògòdó, Salvador/BA,
podemos retirar vários exemplos, no decorrer de anos e anos de atos de intolerância
religiosa, como apedrejamentos em estátuas226, sendo o caso mais famoso o do Busto da
220
Historiador Licenciado (UNESA); Bacharel e Mestre em Ciências das Religiões (UFPB); Pós
Graduando em Arqueologia e Patrimônio, FACUMINAS; Membro do Grupo de Pesquisas Raízes –
Religiões Afrobrasileiras, sincretismos, hibridismos e simbologia. PPGCR (UFPB). Contato:
[email protected].
221
Mestranda, PPGCR/UFPB; Especialista em Metodologia do Ensino em Religioso e Artes, FAVENI;
Cientista das Religiões, PGCR/UFPB; Acadêmica em Arquitetura e Urbanismo, CT/UBTECH/UNIPÊ;
Integrante do grupo de pesquisa SOCIUS-Núcleo de Pesquisas Socioantropológicas da Religião e
Modernidade do PPGCR/UFPB. Contato: [email protected].
222
Doutora em Antropologia-PPGA-UFPE. Docente do curso de Direito do UNIPÊ Coordenadora do
Projeto de Extensão Gestão do Patrimônio Cultural (UNIPÊ).
223
https://m.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/04/1258341-decapitacao-de-estatua-de-iemanja-causa-
revolta-na-paraiba.shtml, acessado em 10/08/2021 às 09h e 20min.
224
https://portalcorreio.com.br/imagem-de-iemanja-tem-cabeca-arrancada-em-joao-pessoa-e-
umbandistas-denunciam-intolerancia/ acessado em 10/08/2021 às 09:22.
225
https://paraiba.com.br/2020/12/08/no-dia-de-iemanja-pai-de-santo-reclama-de-imagem-decapitada-em-
joao-pessoa/ acessado em 10/08/2021 às 09h e 24min.
226
https://guianegro.com.br/depredacao-de-imagens-de-figuras-do-candomble-e-terrorismo-religioso-
afirmam-especialistas/ acessado em 10/08/2021 às 09h e 30min.
458
227
https://www.anf.org.br/intolerancia-religiosa-provoca-vandalismo-em-salvador/ acessado em
10/08/2021 às 09h e 35min.
228
https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/intolerancia-religiosa-busto-de-mae-gilda-e-alvo-de-
vandalismo-pela-2a-vez/ acessado em 10/08/2021 às 09:40.
229
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL.
230
http://portal.iphan.gov.br/noticias/detalhes/4446 acessado em 10/08/2021 às 09h e 47min.
459
Mas a localização não foi o suficiente para impedir as investidas policiais, pois
“as batidas policiais passaram a ser frequentes também por conta da urbanização” (Casa
de Òsùmàrè, 2011, pág. 27). A perseguições policiais continuaram até meados de 1952, quando
mãe Simplícia encontrou-se com o presidente Getúlio Vargas conquistando respeito das
autoridades. Mas a expansão urbana trouxe ainda outras problemáticas, a valorização da região
da Mata Escura colocou o terreiro em risco, pois o crescimento desenfreado começou a adentrar
o espaço do terreiro.
O início da gestão de Mãe Nilzete foi marcado por luta e seguiu assim
até a final. No mesmo ano em que tomou posse, sua primeira batalha
foi de reivindicar a área do terreiro, que estava sendo invadida devido à
urbanização desordenada na região. Mas graças ao seu carisma e o bom
diálogo que mantinha com a comunidade, reintegrou as terras da Casa
de Òsùmàrè e assegurou-lhe os limites. (Casa de Òsùmàrè, 2011, p. 47).
Em 1988, Mãe Nilzete travou uma luta com a prefeitura de Salvador buscando
impedir um projeto de construção de uma passarela na Avenida Vasco da Gama. Esse
processo de gentrificação urbana marcou a história do terreiro, pois o expôs colocando
em vulnerabilidade. É entendido por gentrificação o processo de elitização dos bairros
operários gerando uma especulação imobiliária que atua na transformação e apropriação
desses espaços.
2. Educação Patrimonial
2018, p. 04). Estas perspectivas estão inseridas no caderno projetual realizado pelo
escritório de arquitetura chamado Arquitetura Brasil231.
231
CADERNO CASA DE ÒSÙMÀRÈ, BRASIL ARQUITETURA, agosto de 2017. Acesso em: 12 de
junho 2021. Disponível: arquiteturabrasil.com.
462
A Jurema preta (mimosa hostilis benth) e a branca (vitex agmus castus), sendo a
informação dada por Assunção (2010, p.19), pois Cascudo (1978, p. 30) diferentemente,
cita os nomes, Acacia Jurema Mart para a Jurema Branca e Mimosa Nigra Hub para a
Jurema preta, o que para a espiritualidade e significados simbólicos da religião não fariam
alterações, mas de importância acadêmica com o passar dos anos já que alterações de
gênero e epítetos específicos de nomenclatura científica acontecem. Estudos recentes nos
dizem que:
Os usos são os mais diversos: banhos, bebidas, remédios, benzeções, etc. O poder
da cura física e espiritual é atribuído a Jurema preta, por isso o foco de sua utilização no
rito, como assim designam os Mestres. É na ritualística onde se encontra o ethos da
religião da Jurema, o Catimbó, cuja fusão simbólica se dá no mundo imaginado para o
mundo vivido. Um dos relatos míticos que explicam a sacralidade da planta Jurema está
relacionado a fuga de Maria para o Egito, mãe de Jesus, que segundo a narrativa mítica,
escondeu o menino na tronqueira de uma Jurema, sendo por isso a árvore tomada como
sagrada.
Ou seja, apesar da forte influência indígena nas origens da Jurema, há em sua
mitologia muitos elementos que a associam também ao cristianismo, e os Mestres são
entidades e agentes de força espiritual, que movem o mundo material através do espiritual,
a fala do Mestre é como um comando simpático que serve como motivador e norteador
das ações futuras, o guia desta casa de Jurema, de seus membros.
A importância do patrimônio material para a Religião do Catimbó Jurema é
Sagrada e primordial para que suas crenças continuem operando, a relação entre mundo
e espiritual e material é tênue. No caso do Templo dos Doze Reinados Jurema Santa
Sagrada, ele tem como finalidade promover a valorização da religião da Jurema Sagrada,
e ainda, que sirva de local sagrado permanente para todos os povos de Jurema que vierem
por ventura a Alhandra fazer seus rituais, festividades e peregrinações (HENEINE, 2020).
463
232
O axis mundi (em latim "centro do mundo", "pilar do mundo") é um símbolo ubíquo que atravessa as
culturas humanas. A imagem representa um centro no qual a eternidade e a terra encontram-se entre os
quatro cantos do mundo. Neste ponto correspondências são feitas entre os reinos superiores e inferiores.
Mensagens dos reinos inferiores podem ascender à eternidade e as bênçãos dos reinos mais elevados podem
descer a níveis mais baixos e serem divulgadas a todos. É o "omphalos" (umbigo), ponto de início do
mundo. Mircea Eliade (tr. Philip Mairet). 'Symbolism of the Centre' in Images and Symbols." Princeton,
1991. p.48-51.
233
INSTITUTO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO DO ESTADO DA PARAÍBA
464
Figura 3 - Árvore Túmulo do Mestre Flósculo, atrás da Igrejinha do Acais, também tombado
pelo IPHAEP
234
Fundador do Templo dos Doze Reinados da Jurema Santa e Sagrada e do Reino do Bom Florar, ambos
dirigidos pelo Pai de Jurema Eriberto Carvalho Ribeiro, conhecido como Pai Beto, ou Pai Beto de Xangô.
Informação verbal adquirida em entrevista realizada com Eriberto Carvalho Ribeiro, Pai Beto.
465
E, por último, foi criado um espaço ao lado do Templo dos Doze Reinados Jurema
Santa Sagrada, fundado em 13 de maio de 2021, chamado Reino do Bom Florar, aonde
a educação patrimonial se cruza com a educação ambiental.
Vejamos que o corte de Jurema Preta neste contexto não é apenas um crime ao
patrimonial, mas também ao meio ambiente. Além da pluralidade e sincretismo religioso
que abarcam o Catimbó-Jurema, temos uma ideologia sustentável, a religião da Jurema
Sagrada busca e necessita de contínua interação com o meio ambiente, o patrimônio para
estes religiosos extravasa o aspecto de um literal tombamento material, a Árvore de
Jurema como dito é centro da sua fé, a fé deles está também no culto à natureza através
da Árvore sagrada, centro do mundo para estas pessoas.
No Reino do Bom Florar, também são realizadas palestras, assim como o plantio
de árvores de Jurema Preta, oficinas de como se plantar, adubar e manter os cuidados da
árvore para um crescimento saudável, além da explicação da importância que ela tem para
a tradição, sendo então outra ação de educação patrimonial (e ambiental) da tradição
religiosa do Catimbó-Jurema em Alhandra/PB.
466
Considerações finais
A arte, artefatos e arquitetura das religiões afro-brasileiras abrigam
culturalidades relevantes quanto à historicidade brasileira. Para tanto, ao dar-se a devida
importância histórico-religiosa frente ao reconhecimento pelas políticas públicas de
patrimônio, não é apenas um ato considerável, mas uma ação de indulto, de reparação
histórica pelas imensas retaliações sofridas. Embora essas contribuições das religiões
afro-brasileiras ainda não estejam em patamar comparável com relação aos patrimônios
tombados no início do século XX, outrora frequentemente debatidas no âmbito
educacional, nosso estudo se propôs a evidenciar que através da educação patrimonial é
possível promover o respeito e o pertencimento pela população, sensibilizando-os a
resguardar os feitos das identidades nacionais.
O que consideramos ser então o foco em questão para que ações de salvaguarda
sejam acompanhadas sempre um forte apelo à educação patrimonial, como sendo
“recurso para compreensão” redigido na Portaria 375/2018, e assim podermos assegurar
que nas futuras gerações o respeito e a consciência sejam de fato garantidas, a atitude dos
filhos pode refletir a mentalidade dos pais, e uma geração tende a ou a repetir os erros de
seus antepassados, ou superá-los de forma a abandonar velhos preconceitos e hábitos de
caráter nocivo e agressivo para com outras formas de expressão cultural, sendo no caso
das religiões afrobrasileiras, de suma importância, já que constantemente são alvo de
discursos de ódio, e como vimos, vandalismo. A riqueza das religiões afrobrasileiras está
na sua diversidade, nas suas cores, indumentárias, culinária, cantos, danças, nos objetos
de culto e nos espaços sagrados, há isso importa compreender, e salvaguardar.
Referências
ASSUNÇÃO, Luiz Carvalho de. Reino dos Mestres: A tradição da Jurema na
Umbanda nordestina. Rio de Janeiro: Pallas, 2010.
ASSUNÇÃO, Luiz Carvalho de. A tradição do Acais na Jurema Natalense: Memória
identidade, política. R. Pós Ci. Soc. v. 11, nº 21, jan/jun. 2014.
BOGÉA, Marta. ILÉ ÒSÙMÀRÈ ARÀKÁ ÀSE ÒGÒDÓ. Revista Prumo online do
Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Pontifícia Universidade Católica - Puc-
Rio – Rio de Janeiro Brasil. Ano I – N° I v. 3, p. 18, 2018.
CADERNO CASA DE ÒSÙMÀRÈ, BRASIL ARQUITETURA, agosto de
2017. Acesso em: 12 de junho 2021. Disponível: arquiteturabrasil.com.
Casa de Òsùmàrè. Livro institutional. Acesso em: 12 de junho 2021. Disponível:
http://casadeoxumare.com/images/livro/livro_oxumare.pdf
467
Introdução
A pesquisa que está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em
Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Santa Maria (PPGPC/UFSM), objetiva
criar um material educativo acerca do saber-fazer artesanal advindo da palha de milho e
trigo, com o suporte da educação patrimonial. Com isto, esperamos impulsionar o
desenvolvimento local a partir Turismo de Base Comunitária, uma prerrogativa para a
consolidação do Geoparque Quarta Colônia Aspirante UNESCO. O recorte do estudo
foi estruturado em dois pilares impulsionadores do desenvolvimento local: o patrimônio
imaterial, acerca do saber-fazer artesanal, e a educação patrimonial, como ferramenta para
o reconhecimento do patrimônio na região estudada. Nesta perspectiva compreende-se:
O patrimônio está ligado ao tempo por sua evolução e por seus ritmos.
Ele tem um passado, um presente e um futuro. Se o desenvolvimento se
efetua no presente, portanto a partir de um patrimônio constatado a um
dado momento, ele não pode ignorar suas origens e não pode
igualmente se limitar a consumi-lo sem nada criar de novo. Quanto aos
ritmos, ou ao menos aos ritmos endógenos, eles são produto e resultado
do patrimônio. Não se pode fazer nenhum desenvolvimento sem levar
em conta os ritmos da vida local, que fazem parte da cultura viva da
população (VARINE, 2012, p. 20).
235
Os resultados parciais da pesquisa já foram apresentados em eventos científicos. III Congresso
Internacional e Interdisciplinar em Patrimônio Cultural: Experiências da Gestão e Educação em Patrimônio,
Porto Portugal, Editora Cravo. Publicado em: 18 julho 2021. Disponível
em: https://www.ciipc2020.rj.anpuh.org/site/anais#B.
236
Mestranda, Universidade Federal de Santa Maria (PPGPC/UFSM). Contato:
[email protected]
237
Professora doutora em História, orientadora, Universidade Federal de Santa Maria (PPGPC/UFSM),
[email protected]
469
Figura 1 – Na primeira imagem a Sporta, confeccionada por uma artesã de São João do
Polêsine/RS; na segunda uma Boneca, confeccionada por uma artesã de Faxinal do Soturno/RS
e o Chapéu de Palha, confeccionado por uma artesã de Silveira Martins/RS
Figura 2 – Na primeira imagem uma artesã de São João do Polêsine/RS trançado da palha de
trigo e na segunda imagem a matéria-prima da palha de milho sendo manuseada por uma artesã
de Faxinal do Soturno/RS
Assim, foi possível dialogar e realizar registros fotográficos nos meses de maio e
junho de 2021, com as artesãs que trabalham com o artesanato em palha de milho e trigo
em seis dos nove municípios que compõem o território do Geoparque Quarta Colônia
Aspirante UNESCO. Neste contexto, o artesanato:
Compreende toda a produção resultante da transformação de matériasprimas,
com predominância manual, por indivíduo que detenha o domínio integral de
uma ou mais técnicas, aliando criatividade, habilidade e valor cultural (possui
valor simbólico e identidade cultural), podendo no processo de sua atividade
ocorrer o auxílio limitado de máquinas, ferramentas, artefatos e utensílios
(SILVEIRA, 2019, p. 26).
Vale destacar que, segundo Silveira (Apud MOURA, 2019, p. 12), o “[...]
artesanato se dá por meio de um conhecimento inseparável dos agentes concretos que ao
longo de sua história o praticam. Ele não é apenas um saber, mas um ‘saber-fazer’, um
conhecimento palpável que se preserva na medida em que é realizado, de construção e
reconstrução permanente”. Desta forma, o educar para o patrimônio potencializa a
identificação social e coletiva do patrimônio cultural imaterial através de práticas
educativas advindas do artesanato em palha dentro e fora da sala de aula.
Através do diálogo com as artesãs, predominantes mulheres, foi possível refletir
acerca de ações educativas para valorização da referência cultural do artesanato em palha
em espaços educativos formais e não formais nas localidades.
473
Considerações parciais
A pesquisa está em fase da finalização do material educativo proposto na pesquisa
com intuito de sensibilizar e orientar educadores e educandos sobre o artesanato em palha
no território que constitui o Geoparque.
Ainda, foram compilados os registros e informações coletadas durante a pesquisa
de campo realizada nos meses de maio e junho de 2021. Mesmo diante dos desafios de
realizar uma pesquisa em meio a pandemia da Covid19 no Brasil e no mundo, todos os
cuidados de proteção foram tomados, seguindo as orientações de prevenção do contágio
do vírus. O diálogo com as produtoras do artesanato em palha na região foi significativo
e de suma importância para a viabilização da proposta educativa como produto final a ser
apresentado no Mestrado em Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Santa Maria
– RS.
Espera-se, com o término da pesquisa, fortalecer políticas públicas de cunho
educacional de valorização e preservação do patrimônio cultural imaterial advindo do
artesanato regional. Ainda, despertar na comunidade, nos ambientes educativos e nos
turistas que visitam a região o interesse em conhecer as temáticas de Geoparque.
Outrossim, Educar para o Patrimônio, com enfoque na referência cultural do artesanato
em palha em ambientes educativos formais e não formais do território Geoparque Quarta
Colônia Aspirante UNESCO viabiliza o turismo.
Referências
BRASIL. Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a Proteção do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Diário Oficial, Rio de Janeiro, 6 dez. 1937.
Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1930-1939/decreto-lei-25-
30-novembro-1937-351814-normaatualizada-pe.pdf Acesso em: 20 mar. 2021.
BRASIL. Decreto-lei nº 3.551 de 04 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens
Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o
Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3551.htm Acesso em: 21 mar. 2021.
FLORÊNCIO, Sônia Rampim; CLEROT, Pedro; BEZERRA, Juliana e RAMASSOTE,
Rodrigo. Educação Patrimonial: histórico, conceitos e processos. Brasília, DF:
IPHAN/DAF/Congedip/Ceduc, 2014.
FROEHLICH, J. M.; IUVA DE MELLO, Carolina. O bem que falta na cesta: o
artesanato no território Quarta Colônia, RS. Estudos, Sociedade e Agricultura, v.27, n.2,
p. 282-306, jun. 2019.
HORTA, Maria de Lourdes Parreiras; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane
Queiroz. Guia básico de Educação Patrimonial. Brasília: Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, Museu Imperial, 1999.
474
Introdução
O presente trabalho tem como tema central apresentar as atividades de ensino de
Arqueologia e Educação Patrimonial que vem sendo desenvolvidas durante a pandemia
no Laboratório de Arqueologia, Sociedades e Culturas das Américas (LASCA), da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), dando foco para o período entre março e
novembro do ano de 2020.
Devido à crise sanitária instaurada em nosso país mediante o contexto da
pandemia de Covid-19, o LASCA e outras instituições de guarda e pesquisa aderiram a
imposição do isolamento e distanciamento social. A comunicação virtual e as mídias
sociais foram utilizadas como alternativa para a continuação dos trabalhos e demais
projetos desenvolvidos nas instituições. Assim sendo, para manter nosso engajamento
com a comunidade, realizamos a produção de vídeos sobre as maquetes e os demais itens
que compõem o acervo do laboratório, divulgando-os nas redes sociais do LASCA.
A partir das publicações dos vídeos no Instagram, Facebook e Youtube podemos
observar que, por meio dos dados existentes nessas redes sociais, obtivemos um bom
engajamento com a comunidade, tendo alcançado mais de 10.000 visualizações na soma
dos números das redes citadas. Deste modo, buscamos através destas publicações dar
continuidade na socialização do conhecimento acadêmico de forma lúdica e acessível.
O que é o Lasca?
O LASCA é resultado da fusão do Laboratório de Estudos e Pesquisas
Arqueológicas (LEPA), coordenado pelo Prof. Saul Milder até 2014, e do Núcleo de
Estudos do Patrimônio e Memória (NEP) coordenado pelo Prof. André Luis Ramos
238
Acadêmico do Curso de História Licenciatura, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Contato:
[email protected]
239
Acadêmico do Curso de História Bacharelado, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Contato:
[email protected]
240
Acadêmico do Curso de História Licenciatura, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Contato:
[email protected]
476
Gestão de acervo
O laboratório possui um acervo de cerca de 200.000 itens entre os quais se
encontram materiais arqueológicos de sítios históricos (objetos metálicos, louças, vidros,
moedas, ossos de humanos e de animais, entre outros) e pré-coloniais (cerâmicas, líticos,
ossos de humanos e de animais e carvões) de diferentes regiões brasileiras. Dentre nossos
objetivos está realizar o inventário, higienização, catalogação e acondicionamento dos
materiais presentes em nossa reserva técnica, contando sempre com a orientação e auxílio
do coordenador e do museólogo responsável pelo laboratório para que tudo seja feito da
melhor maneira possível.
Estas são atividades referentes ao trabalho interno do laboratório, e assim como
nos diz Ladkin (2004, p. 17) a “gestão do acervo é vital para o desenvolvimento,
477
organização e preservação do acervo que cada museu alberga”. Então, para o autor, a
gestão do acervo “foca-se na preservação das colecções, preocupando-se pelo seu bem-
estar físico e segurança, a longo prazo. Preocupa-se com a preservação e a utilização do
acervo, e registro de dados, e em que medida o acervo apoia a missão e propósito do
museu” (LADKIN, 2004, p. 17).
Educação Patrimonial
O laboratório de arqueologia vem desenvolvendo atividades de Educação
Patrimonial desde antes da inauguração do LASCA. Antes da fusão dos laboratórios já
aconteciam diversas oficinas, como a de arco e flecha, confecção de cerâmica Guarani,
arte rupestre e escavação arqueológica simulada. Com a intenção de dar continuidade a
esse trabalho, nós do LASCA realizamos tanto essas oficinas antes citadas, como também
a produção de maquetes e uma exposição temporária. Desta forma, levando o
conhecimento, a apropriação e a valorização do patrimônio cultural, proporcionamos aos
visitantes uma aprendizagem de forma ativa e lúdica, assim como especifica Maria de
Lourdes Horta.
O trabalho da EP [Educação Patrimonial] busca levar as crianças e
adultos a um processo ativo de conhecimento, apropriação e
valorização de sua herança cultural, capacitando-os para um melhor
usufruto desses bens e propiciando a geração e a produção de novos
conhecimentos, num processo contínuo de criação cultural. (HORTA,
1999, p. 6).
escavações feitas por todo o estado. Fazemos também o uso de maquetes sobre esses
povos, pois acreditamos que:
[...] as maquetes ajudam na construção do conhecimento,
proporcionando a visualização concreta das representações dos
acontecimentos históricos, tipologias arquitetônicas, acidentes
geográficos, fenômenos climáticos e ambientais, entre outros.
(GARBINATTO; SOARES, 2020, p. 97).
Após o grupo ter feito a visita à exposição e obtido uma base de como trabalha o
arqueólogo e quais os objetos que ele pode encontrar, levamos o grupo até a oficina de
escavação arqueológica simulada (imagem 2). O objetivo desta atividade é apresentar de
forma lúdica uma parte do trabalho do arqueólogo, que consiste na promoção de
escavações de sítios históricos e pré-coloniais. Com a realização desta atividade é
demonstrada a importância da realização das escavações, bem como das metodologias
próprias deste trabalho para a preservação da cultura material e para o posterior estudo de
sociedades do passado, sejam elas históricas ou pré-coloniais.
479
A Pandemia
Nas primeiras semanas de 2020 chega ao Brasil o novo coronavírus (Sars-Cov-2),
“[...] uma infecção viral que provoca um espectro clínico em humanos que compreende
desde infecções assintomáticas até quadros graves que levam ao óbito.”
(SEILERT; BOELSUMS, 2020, p. 185).
O causador da Covid-19 é altamente transmissível, pois ele se concentra em nosso
sistema respiratório. Assim sendo, quando falamos, espirramos, tossimos, o vírus é
carregado em pequenas gotículas de água podendo atingir até um metro de distância e
assim contaminar pessoas que se encontrem nessa proximidade. Além disso, essas
gotículas carregadas do vírus podem ficar cerca de trinta minutos no ar e em superfícies
ampliando ainda mais a sua contaminação.
O primeiro caso de contaminação no Brasil foi confirmado pelo Ministério da
Saúde no dia 26 de fevereiro de 2020. E assim, a partir do dia 11 de março do mesmo ano
480
Assim, optamos por desenvolver vídeos com no máximo dois minutos de duração
que trouxessem informações concisas, imagens representativas e locução clara das
temáticas propostas.
Desta forma, propomos três temáticas para a produção de vídeos que foram
publicados semanalmente. Incialmente, focamos no desenvolvimento de pesquisa
bibliográfica da temática “Primeiras populações habitantes do Rio Grande do Sul”, onde
falamos sobre as principais características desses povos, apontando suas datações e seus
materiais arqueológicos encontrados. Obtivemos como base para isto as maquetes
anteriormente produzidas no laboratório sobre essas populações.
Depois disto, numa segunda temática, falamos especificamente desses materiais
arqueológicos encontrados nos sítios que fazem parte do acervo e da exposição do
LASCA, salientando suas funcionalidades, datações e tecnologias neles identificados.
Além disto, trouxemos algumas curiosidades e características existentes nesses artefatos,
complementados com imagens.
Por último, no mês de novembro, com a temática “Mês da Consciência Negra”,
realizamos vídeos nos mesmos moldes anteriores, baseados em maquetes produzidas
sobre as populações negras na África e no Brasil. Nesse período, realizamos a publicação
de dois vídeos semanais no sentido de intensificarmos a conscientização sobre a temática
proposta.
Além dos vídeos, também optamos por realizar algumas publicações e enquetes
nas redes sociais, com a finalidade de firmarmos uma maior interação entre o público que
acompanha as páginas e entendermos quais eram os maiores interesses de conteúdos que
essas pessoas gostariam de ver. Por meio dessas publicações, buscamos também contar
um pouco da história do LASCA, partindo de sua criação na década de 80, com o LEPA
até as últimas modificações com a inauguração do LASCA, em um novo espaço, no ano
de 2019.
Também, ainda a partir das publicações, falamos de forma mais textual acerca de
quem somos, o símbolo do LASCA e o acervo, com a intenção de complementar e trazer
algumas curiosidades que não foram ressaltadas nos vídeos.
Resultados
A partir das publicações dos vídeos no Youtube, Instagram e Facebook podemos
observar que, por meio dos dados existentes nessas redes sociais, obtivemos o alcance de
mais de 10.000 visualizações.
482
A partir dos dados disponibilizados pelas mídias sociais, como foi representado
no gráfico, concluímos que estas são ótimas ferramentas de extensão. Porém, o Instagram
e Facebook se destacam em relação ao Youtube em termos de contato com o público.
483
Sempre levando em consideração que nunca podem ser utilizadas como substituição ao
museu e demais instituições de guarda e pesquisa.
Considerações finais
Portanto, concluímos que há aspectos positivos a se destacar, como a oportunidade
de ampliar o alcance das atividades para áreas externas ao espaço físico do museu. O uso
das redes sociais pode contribuir para despertar o interesse e gerar curiosidade para que
ocorram futuras visitas de modo presencial. Desta forma, as redes sociais, como
instrumento de ensino, não se sobrepõem, mas complementam as atividades presenciais.
Consequentemente, a partir do exposto, a adesão às redes sociais permitiu ao
LASCA manter o contato com o público, diversificando em termos de faixa etária,
alcance virtual a outras cidades e estados, ampliando a divulgação científica e observando
a interação mediatizada pela internet.
Cabe dizer, que as experiências obtidas para produções dos vídeos e das
publicações foram de extrema importância para nós, membros do LASCA, pois
proporcionaram inúmeros debates e trocas de ideias em meio ao caos da pandemia.
Referências
BRUNO, Maria Cristina O. Musealização da Arqueologia: um estudo de modelos para
o Projeto Paranapanema. 288 p. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São
Paulo, 1995.
DE PAULA, Bernardo. Duque. Reestruturando uma reserva técnica
arqueológica: um projeto para o Laboratório de Arqueologia, Sociedades e Culturas
das Américas – LASCA/UFSM. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de
Santa Maria, Centro de Ciências Sociais e Humanas, Programa de Pós-Graduação em
Patrimônio Cultural, RS, 2020.
GARBINATTO, Valeska; SOARES, André Luis Ramos. Ensino de História Afro-
brasileira através das maquetes do LASCA-UFSM. História em Revista: Revista do
Núcleo de documentação histórica, v. 25, p. 96-113, 2020.
HORTA, Maria de Lourdes; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane Queiroz.
Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, Museu Imperial, 1999.
IPHAN. Portaria 196, de 18 de maio de 2016. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Portaria_Iphan_196_de_18_de_mai
o_2016.pdf. Acesso: 14 de outubro de 2020.
LADKIN, Nicola. Gestão do Acervo. In: Como Gerir um Museu: Manual
Prático. França: ICOM, 2004. p. 17-32.
SCHENKEL, C. Em quarentena: apontamentos sobre educação em museus em tempos
de pandemia. Porto Arte: revista de artes visuais. v. 25, n. 43, jan/jun 2020.
484
Introdução
Este trabalho parte da experiência realizada com uma turma de nono ano da Escola
Básica Municipal Almirante Carvalhal em Florianópolis, junto ao professor Marcos
Francisco da Silva, no ano de 2018, vinculada ao projeto PIBID/CAPES/UDESC, sob a
orientação das professoras Barbara Giese e Luciana Rossato. Através das trocas entre os
saberes escolares e os saberes da universidade pudemos relacionar a prática com a teoria
e destacar a importância do reconhecimento da realidade dos estudantes com quem
estávamos dialogando, para que o ensino não fosse alheio à criticidade e fizesse sentido
em suas vidas. Com orientação dos professores da escola e da UDESC, pudemos
experimentar práticas pedagógicas diferenciadas e que promovessem a aprendizagem a
partir das vivências dos discentes. Sendo assim, a atividade teve a pretensão de pensar
sobre a educação patrimonial e as possibilidades de utilização do espaço público como
sala de aula. A proposta para sua realização surgiu a partir de indagações, em sala de aula,
sobre agência histórica e sobre os espaços considerados históricos na cidade, tendo como
destaque o Centro Histórico da cidade de Florianópolis.
O processo de diálogo, antecedente à saída com a turma, demonstrou que a
ocupação daquele espaço significava, para eles, basicamente uma relação comercial, ou
de resolução de assuntos práticos, sem contato expressivo com museus, igrejas e centros
culturais. Estes últimos são espaços presentes no centro de Florianópolis, mas acabam
sendo frequentados por um público específico, não contemplando o cotidiano desses
estudantes. Sendo assim, a saída de estudos teve como objetivo que os alunos
experimentassem a cidade com outros olhares, fazendo a conexão com a disciplina de
História e trabalhando com o conteúdo de transformações urbanas na cidade de
Florianópolis na primeira metade do século XX, assunto já abordado de maneira
expositiva na escola.
241
Graduanda em Licenciatura - História na Universidade do Estado de Santa Catarina.
242
Graduanda em Licenciatura - História na Universidade do Estado de Santa Catarina.
243
Graduanda em Licenciatura - História na Universidade do Estado de Santa Catarina.
486
Desenvolvimento
Educação Patrimonial e a noção de identidade
O Centro de Florianópolis é denominado como histórico, como muitos centros de
capitais estatais, por algumas razões. Entre elas destaca-se que ele contempla o local dos
primeiros assentamentos coloniais, a partir dos quais se construíram outros povoamentos
ao longo do estado de Santa Catarina. Os prédios públicos e religiosos, que possuem datas
de construção variando desde o século XVIII, formam uma paisagem de disposição
comum a um centro histórico brasileiro, com uma igreja posicionada à frente da praça
principal, próximas aos prédios que serviram como sedes governamentais em outras
épocas. Hoje, sede de diversos patrimônios tombados, o centro de Florianópolis também
é foco de um intenso comércio e manifestações sociais diversas.
As edificações e monumentos presentes neste espaço, tombados ou não,
conformam uma leitura bastante tradicional, assim como bastante perceptível, das
inclinações sobre o que foi considerado passível da nomeação enquanto um patrimônio,
ou do entendimento geral como um espaço importante na cidade. Prédios
governamentais, igrejas e museus, além de monumentos a grupos considerados
importantes, e/ou formadores da identidade catarinense e florianopolitana.
Pensando esta realidade, Silva (2015) reflete sobre a ideia do patrimônio como
um ponto de referência em relação ao passado. A partir da observação do que é destacado
na cidade e do que é valorizado pelo município, pode-se subentender uma escolha sobre
o que nos diz o passado. Ou pelo menos, sobre a parte dele que somos impelidos a
apreender.
487
também porque o espaço do centro em si, não os parecia passível de historicidade, estava
esvaziado de significados para além do comércio.
Neste sentido, utilizou-se o conceito descrito por Larrosa, que vê a experiência
como "o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece ou o
que toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos
acontece" (LARROSA, 2014, p. 18), para pensar a saída de campo como uma
oportunidade de criar experiência a partir do ordinário. Ou seja, através da aula de
História, procurou-se transformar o espaço cotidiano em um espaço histórico, assim como
também, torná-lo uma sala de aula ao ar livre.
A saída de campo partiu do Ticen – Terminal Urbano do Centro, e teve um roteiro
voltado para os patrimônios tombados e pontos turísticos que em geral fazem parte de
uma narrativa mais tradicional sobre a cidade, na intenção de problematizá-los e subvertê-
los, pensando suas trajetórias durante o tempo e no presente. O primeiro prédio visitado
foi o Mercado Público, construído em 1851, espaço de grande importância para o
comércio popular, até as sucessivas reformas nos anos de 2005 e 2014, que transformaram
o espaço em um local mais voltado à gastronomia e ao turismo, mesmo mantendo partes
destinadas ao comércio. Discutiu-se ali o conceito de gentrificação e higienismo, levando
em consideração o que pôde ser observado pelos próprios alunos, como os preços dos
restaurantes, a segurança privada presente no local, as pessoas que ali estavam
consumindo e se algum deles já havia ocupado algum daqueles estabelecimentos.
Caminhando, o grupo seguiu ao Largo da Alfândega, local onde ficava o antigo
porto da cidade, e hoje pode ser observada uma linha azul pintada que marca onde era a
divisão da terra com o mar, anterior ao aterramento de parte do centro. Também observou-
se o monumento às rendeiras, consideradas personagens da cultura de Florianópolis,
porém que configurou uma pequena confusão devido ao comum desconhecimento sobre
a obra, e também à falta de qualquer identificação ou descrição no local. Lá pôde-se notar
como a capital do estado, mesmo sendo uma ilha, virou suas costas para o mar, e ao
mesmo tempo ter uma noção geral de como são tratados os monumentos neste espaço da
cidade e sua consequente invisibilidade.
Na Praça XV de Novembro, grande cartão postal da cidade, que abriga em seu
centro uma figueira centenária e um monumento em homenagem à luta na Guerra do
Paraguai, continuou-se a conversa sobre a monumentalização, levando em conta também
o acontecimento do roubo de bustos de bronze, representações de personalidades
490
catarinenses, que só foi notado duas semanas após o acontecimento244. Para além disso,
houve uma observação da ocupação deste espaço, comparando-a com a do Mercado
Público, em que as prováveis condições de classe e as questões de raça ficaram evidentes.
Esta questão foi principalmente importante por conta do antigo cercamento da praça, no
século XX, que restringia seu acesso apenas a grupos limitados, e também pelo
aparecimento recentes de novos projetos com o intuito de cercar a praça pública, alegando
o zelo por sua preservação.
Logo, chegou-se à Catedral Metropolitana, datada do século XVIII, de construção
tradicional, e partiu-se dela para encontrar a Igreja de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito, que data do mesmo período, construída e frequentada pela população negra
ainda na época da escravidão, visando um templo em que pudessem professar sua fé e
criar laços de sociabilidade, sendo um local que representa a luta e a resistência negra. A
diferença entre as duas igrejas foi uma pauta bastante importante na saída, pois são
demonstrações em pedra das disparidades raciais em Santa Catarina, tão invisibilizadas
por sua historiografia. Não por coincidência, a escadaria do Rosário, em frente à igreja,
atualmente é utilizada com frequência como ponto para manifestações populares e
políticas, um espaço de resistência e também de perpetuação identitária.
O passeio terminou no Palácio Cruz e Sousa, em que se encontra o museu
histórico de Santa Catarina. Apesar de não ter havido tempo para que fosse visitado o
interior do museu, foi feito um piquenique com a turma em seu jardim, aberto à visitação,
procurando explorar outra maneira de ocupar o local. Neste ponto, discutimos a
patrimonialização e a homenagem presente na nomeação da estrutura, apresentando um
pouco sobre a vida do poeta Cruz e Sousa, expoente do simbolismo catarinense e
brasileiro, que por toda a vida teve direitos e lugares negados por questões raciais, mas
que hoje dá nome ao importante museu. Discutiu-se sobre representatividade do nome e
sobre a ocupação do espaço pela população negra e pobre e sobre a cultura da visitação
destes espaços culturais, questionando também sobre o desconforto em mais um ambiente
público cercado por seguranças.
Este breve resumo sobre o roteiro da saída de campo e as possíveis
problematizações que dela partem têm intenção de exemplificar como o espaço público
pode ser usado como sala de aula e como ferramenta da própria aula, para que se
244
Vídeo mostra homem furtando busto de bronze na Praça XV, na capital, 2013. Disponível em:
http://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2013/08/vide-mostra-homem-furtando-busto-de-bronze-na-
praca-xv-na-capital.html
491
Considerações finais
Pode-se entender, a partir das observações feitas durante a atividade da saída de
campo, algumas dificuldades relacionadas à apropriação dos significados de espaços
patrimoniais pelos alunos, mas ao mesmo tempo, uma gama de possibilidades para a
educação patrimonial. A desnaturalização do cotidiano, a desconstrução de perspectivas
e a problematização histórica são ferramentas da História que dialogam diretamente com
a educação patrimonial e seus objetivos de conhecimento e preservação.
A identificação e o pertencimento com os patrimônios e espaços históricos locais
dependem não apenas da educação histórica, ou da patrimonialização estatal, mas de um
conjunto destes com o saber popular e coletivo, de maneira que haja democracia nos
processos de sua escolha e manutenção. A história e os patrimônios históricos estão no
presente, não no passado, e dependem de um trabalho que vai além da política de
conservação, mas que também leve em conta a reflexão e as demandas deste presente.
A saída ao centro histórico de Florianópolis contou com diálogos durante a
caminhada que indagavam os estudantes quanto aos locais patrimonializados. Essas
questões foram levantadas pelos bolsistas do PIBID no sentido de mostrar qual a
importância dos patrimônios e se representam ou não, a população florianopolitana. Esse
exercício faz parte da tomada de consciência por parte dos estudantes, como pertencentes
àquele local e também como sujeitos históricos. De acordo com Freire (1979, p. 21), “a
consciência se reflete e vai para o mundo que conhece: é o processo de adaptação. A
consciência é temporalizada. O homem é consciente e, na medida em que conhece, tende
494
Referências
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista
Brasileira de Educação, Barcelona, p.20 - 28, jan/fev/mar/abr 2002.
FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. São Paulo: Paz e Terra, 1979. Disponível em:
https://construindoumaprendizado.files.wordpress.com/2012/12/paulo-freire-educacao-
e-mudanca-desbloqueado.pdf. Acesso em: 28 jul. 2021.
GONÇALVES, Janice. Da educação do público à participação cidadã: sobre ações
educativas e patrimônio cultural. Mouseion, Canoas, v. 05, n. 18, p. 83-97, dez. 2014.
SILVA, Rodrigo Manoel Dias da. Educação patrimonial e a dissolução das
monoidentidades. Educar em Revista, [S.L.], n. 56, p. 207-224, jun. 2015.
FapUNIFESP (SciELO). http://dx.doi.org/10.1590/0104-4060.38374.
495
Introdução
O Serviço Social do Comércio – SESC, vinculado a Confederação Nacional do
Comércio, foi criado pelo Decreto-Lei n° 9.853 de 13 de setembro de 1946 e tem como missão
institucional promover ações educativas, desportivas, de saúde, lazer e cultura para os
trabalhadores e trabalhadoras do comércio de bens e serviços. Com mais de 500 unidades
espalhadas pelo Brasil, sendo 46 em território gaúcho, subdividem-se em centros educacionais,
turismo e lazer e de atividades. A instituição compreende a Cultura como um importante
elemento aperfeiçoador da condição humana.
A programação gaúcha “Cultura Arte Sesc – Cultura por toda parte” oferta a
comunidade em geral projetos como Palco Giratório, Rio Grande no Palco, CineSesc, Sesc
Música, mostras de artes visuais, Feira de Livros, Aldeia Sesc, entre outras atividades. A
unidade regional de Caxias do Sul, localizada no nordeste do estado, é responsável por mais 11
cidades246 do entorno e conta com teatro, biblioteca, restaurante, ginásio poliesportivo,
academia e pousada. Também recebe diversas atrações do circuito nacional para troca de
experiencias com os artistas e o público local com o Aldeia Sesc desde 2013.
O Aldeia Sesc acontece em 35 cidades do país, sendo 04 no estado do Rio Grande do
Sul. Este evento compreende mostras de arte e cultura organizados pelos seus departamentos
regionais durante a passagem dos projetos nacionais em seus territórios, como Palco Giratório,
Dramaturgias e o Sonora Brasil. Na busca por diversificar o circuito cultural brasileiro, emular
intercâmbios entre os artistas nacionais e locais, fomentar a as artes cênicas, musicais e
fortalecer laços para uma integração regional-nacional faz-se necessário o papel da Curadoria
245
Mestrando em Museologia e Patrimônio – PPGMusPa/UFRGS (desde 2020); Mestre em Turismo e
Hospitalidade - PPGTurH/UCS (2014); Graduado em Turismo e Lazer pelo Centro Federal de Educação
Tecnológica de Alagoas – CEFET/AL, atual IFAL (2008). Contato: [email protected]
246
Bom Jesus, Campestre da Serra, Esmeralda, Flores da Cunha, Monte Alegre dos Campos, Muitos Capões, Nova
Petrópolis, Pinhal da Serra, São José dos Ausentes, São Marcos e Vacaria.
497
para elaboração programática e mediação nestes encontros. O Aldeia Sesc Caxias do Sul guarda
algumas particularidades: É o maior do estado e é a única que trabalha com temas específicos
a cada edição desde 2016.
Ao primar por uma programação temática passa a consultar artistas e agentes com
notório saber para suscitar na população reflexões, ressignificações e descobertas. Em 2016
trabalharam a temática “Os 100 anos do Samba”. Em 2017, “Estação MPB – A Era dos
Festivais” e, em 2019, “Celebração do Feminino: Terra, Mãe, Mulher”. Nos anos 2020 e 2021
as ações presenciais foram suspensas devido às restrições impostas pela pandemia de Covid-
19. No ano de 2018 ocorreu a 6ª edição com enfoque dado as Culturas Negras locais sob o tema
“SARAVÁ” e contou com oficinas de Hip Hop; Passeio cultural guiado em locais de força da
cultura negra local; Exposição de artes visuais “Refugiados” e “Saravá Orixá”; Parte da
exposição “Triangulo Atlântico” da Bienal do Mercosul; Programação musical em quilombos
urbanos247 da cidade; Oficinas de RAP e Percussão; Exibição de filmes que trataram da questão
racial e dos novos imigrantes (haitianos e senegaleses); Debates em torno da ensino da cultura
africana e afro-brasileira na sala de aula; além da criação de um Tambor (Cápsula) do tempo
com mensagens que serão abertas em 2028. O encerramento da programação foi registrado em
obra audiovisual intitulada “TamboReS da nossa Aldeia”. Com isto posto, este trabalho objetiva
compreender processos curatoriais que viabilizaram a construção temática do ano de 2018, as
dificuldades enfrentadas por seus organizadores e o legado que esta edição deixou para os
performadores das culturas negras na cidade.
1. Metodologia
247
“grupos sociais de resistência a um sistema de exclusão, comunidades de ascendência marcadamente negra –
mas não exclusivamente –, no geral empobrecidas, com ethos e costumes diferenciados dos grupos que lhes
circundam. Um confinamento espacial é proporcionado pela marginalização por parte das políticas públicas. A
ausência de políticas específicas para um contingente dotado dessa peculiaridade histórica e a precariedade das
políticas universalistas conformaram os “quilombos urbanos” como espaços socialmente distantes” (OLIVEIRA;
D’ABADIA, 2015.).
498
Ramos (2010) afirma que existe uma certa dificuldade em afirmar quando um ofício
surge na história. Embora a curadoria seja um ofício antigo, trata-se de uma categoria
profissional recente.
Do século XVIII ate boa parte do século XX, curadores eram eruditos que
tomavam conta dos tesouros do passado. Eles montavam, catalogavam e
preservavam coleções e interpretavam e exibiam os objetos nela contidos.
Eram guardiões intelectuais dos museus, e suas exposições serviam a um
propósito bastante objetivo: defender a ideia de que os objetos sob seus
cuidados mereciam ser protegidos e que eles serviriam para educar de alguma
forma o público em geral. Hoje em dia, entretanto, essa definição mudou
radicalmente. (HOFFMAN, 2017, p. 15)
Em meio a estas mudanças Hoffman (Idem) ainda afirma que os curadores são os
encarregados para propor debates originais e contexto. Ou seja: “Ofertar um espaço que permita
que os significados circulem e afetem um determinado público” (idem, p. 16). O curador
institucional não é aquele que coloca em circulação apenas o que lhe agrada, mas é um sujeito
que pensa, estuda e reflete. (ALVES, 2010. P. 45), ainda mais quando se sabe, de antemão, que
o Brasil oficial sempre ignorou, no campo das representações hegemônicas, os povos
originários, imigrantes não europeus e/ou empobrecidos (ANJOS, 2017, p. 111.). A criação de
novos ambientes reflexivos são fundamentais para descobertas e ressignificações deste outro,
emergente, ainda caricatural. Para o SESC o curador é uma figura presente e atenta à cena
local (2016, p. 07).
Com a ampliação do entendimento de Patrimônio Cultural a partir da Constituição
Federal de 1988, em seus artigos 215 e 216, as populações negras escravizadas no Brasil
tiveram o mais importante dispositivo legal brasileiro que as elevaram a categoria de relevância
cultural e importante contribuidora do senso de nacionalidade. Papel antes destinado apenas aos
civilizadores europeus. Entende-se aqui, a luz da Constituição Federal de 1988, que Patrimônio
Afro-brasileiro são as memórias da África reelaboradas no Brasil cuja suas particularidades
originais se manifestam na oralidade, nas danças, na religiosidade, na música, na culinária e nas
mitologias dos seus detentores e dos que com elas se vinculam e se comprometem.
a partir de maio de 1875. Antes da colonização da atual Caxias do Sul, os tropeiros que
passavam pela região registraram a presença de indígenas no local.
Vem daí o antigo nome de Campo dos Bugres, que permaneceu mesmo após
a denominação oficial da região como Colônia Caxias em 1877. [...] Estudos
arqueológicos registram, no território hoje denominado Caxias do Sul, sítios
arqueológicos com a presença de “casas subterrâneas”, popularmente
conhecidas como “toca de bugre” ou “buraco de bugre”. (CAXIAS DO SUL,
2012, p. 12).
Estes imigrantes são conhecidos pela historiografia como pioneiros na região. Quando
aqui chegaram formaram redes de solidariedade, mutualismo e congraçamento ao redor da
religiosidade, do trabalho e na criação dos momentos de lazer (COSTA, et al. 1974.) Estes
fatores foram determinantes para criação do histórico lema da cidade: Fé e Trabalho! Depois
de passar pela fase de autossustentação agrícola, a comercialização de excedentes começa a
partir de 1878. A historiadora Loraine Slomp Giron registra que em abril de 1884, quatro anos
antes da abolição da escravatura, o escritor e empreendedor de produtos agrícolas Paolo Rossato
marca a este processo com a célebre frase “Lá éramos servos, aqui somos senhores.” (2016,
p.11). O desenvolvimento econômico da cidade já lhe atribuía slogans como: Perla dele colonie
(Pérola das Colônias) nomenclatura dada por Júlio de Castilhos, presidente da província,
quando visitara a vila em 1897 e Piccola Manchester (Pequena Manchester) em publicação
oficial referente aos 50 anos da imigração Italiana em 1925 (TESSARI, 2013). Muito dos
grandes industriais da cidade tiveram suas prosperidades originadas a partir de pequenas
oficinas.
248
O molde do monumento foi confeccionado pelo artista pelotense Antônio Carigi a partir de fotografias do casal
de imigrantes italianos Luigi e Enrica Zanotti. A obra final fora forjada em bronze pela metalúrgica Abramo Eberle
e contou com a presença do Presidente Getúlio Vargas em sua inauguração.
500
Uma das bases das Culturas249 em Caxias do Sul parte do campo das identificações
originadas pela imigração italiana. No campo das artes, a partir da literatura de Guilherme
Pozenato que lança “O Quatrilho”, em 1985, na III edição da Feira do Livro de Caxias do Sul,
abrem-se possibilidades para trocas simbólicas250 em maior intensidade. Em entrevista251
Pozenato relata seu receio em lançar a primeira edição citadina:
Para falar a verdade, eu estava um pouco temeroso com relação ao público
leitor da cidade, porque sabia que o romance não era um romance ufanista, de
exaltação, dos heróis que construíram essa civilização. Era uma narrativa de
meio humano, com acertos, erros, virtudes, defeitos, não só das pessoas, mas
também das instituições. Isso tudo eu tinha consciência. Para a minha
surpresa, aconteceu o contrário. Os que começaram a ler fizeram a primeira
divulgação do romance e ele se tornou conhecido em pouco tempo.
249
Pensando a partir de Certeau (1998) pode-se conceituar como Culturas aquilo que os outros nos dão (saberes,
fazeres, poderes e sentidos) para viver e pensar.
250
Bourdieu (1998) afirma que sempre que aprendemos uma linguagem assimilamos simultaneamente as formas
de aceitabilidade desta. Para este autor os mercados são fatos sociais determinados pela economia, pelas condições
de produção e reprodução dos agentes, das agências sociais e culturais. Esta relação ele a intitula como “mediação
simbólica” onde cada campo social especifico estipula sua base de práticas e trocas (Idem, 2008).
251
Jornal Zero Hora 08 de novembro de 2014 – CULTURA E LAZER.
252
Designação autóctone para os imigrantes italianos da região.
501
A trajetória dos negros do Juá tem ligação umbilical com a história dos negros
e mestiços em Caxias. Ela começa com a ocupação pelos escravos de um
território chamado de Cadeinha – que ironicamente lhes dava alguma
liberdade – no interior do distrito, onde formaram um quilombo em algum
período difícil de precisar do século XIX. Eles chegavam fugidos de fazendas
dos municípios de Taquara, São Sebastião do Caí e São Francisco de Paula e
não se sabe ao certo por que foram parar justo naquelas bandas. (ANDRADE,
2012a, p.17).
clubes exclusivos para si. Em 12 de dezembro de 1933, as mulheres negras criam o “Clube das
Margaridas” para confraternizarem-se e, mais adiante, os homens negros fundam o “Sport
Clube Gaúcho” em 23 de junho de 1934. Em 1950, o Clube Gaúcho forma a “Escola de Samba
Protegidos da Princesa”, que se sagra campeã em 15 carnavais, até o fim dos anos de 1970.
Neste espaço aberto na cidade para manifestação festiva negra e periférica em área pública faz
surgir novas agremiações. Atualmente há uma emergência performática e identitária filiada às
matizes afro-brasileiras na cidade no qual destacamos o grupo Zingado; O Maracatu Baque dos
Bugres; Ventos de Aruanda e Alagbes Caxias; Padê Orum; O Projeto Sucata Sonora; Dj Tuba;
Dj Mono; DJ Hood; Pura Curtição; Choros de Balcão e Seresteiros do Luar; Samba Show,
Banda Marcial Cristovão de Mendoza; Tônico de Ogum; Chiquinho Divilas; eventos de SLAM
feminista entre tantos outros. Estas novas performances culturais, pouco a pouco, começam a
ser absorvidas pelas institucionalidades, dentre elas, as programações culturais do Sesc.
A tematização do Aldeia Sesc em Caxias do Sul deu ao município uma distinção, até
então, sem precedentes. Luciana Stello assim nos explica:
Vanessa Falcão, agente de Cultura a época, ao falar sobre a tematização do Aldeia Sesc
Caxias do Sul no âmbito da entrevista entende que esta medida foi: “Uma baita sacada, por
que acaba facilitando para quem está fazendo a curadoria e para quem está apreciando acaba
percebendo melhor tudo que permeia aquele universo. O tema filtra o olhar. Os próprios
artistas locais vão mergulhar no assunto.” Carlinhos Santos explica como se deu sua
contratação para pensar e articular o 6ª Aldeia Sesc SARAVÁ, em 2018:
503
Vanessa Falcão relembra que a abordagem para edição de 2018 estavam baseadas em:
África – berço da humanidade; A influência africana no Brasil, RS, Caxias; Cultura Afro-
504
Então, esta foi uma discussão que a gente fez, tenho ela muito clara assim no
momento em que a gente conversou sobre isso, veio muito de energia, uns
acreditam outros não, mas comigo vai muito nesse viés e com a Vanessa
também. E a gente ficou pensando, chamaremos de negro olhar, negritude,
surgiram vários temas assim e daí lá pelas tantas alguém falou “ai meu Deus,
SARAVÁ!” Daí sentimos que este Aldeia deveria se chamar Saravá. Mas nos
perguntamos, o que será que as pessoas vão pensar com este tema? Estamos
trabalhando numa comunidade basicamente católica, a religiosidade é muito
forte, e aí como é que vai ser isso. As pessoas podem entender tudo errado.
Daí fizemos todo um trabalho, inclusive interno, explicando para as pessoas o
que era o Saravá! né, validei com a direção regional, porque existia todo um
receio de como as coisas poderiam fluir do Sesc deixar de trabalhar com uma
religião e trabalhar com outra e tal. Havia uma preocupação institucional da
minha parte de como isso seria percebido. Por que, de todo modo, o tema
acabando sendo mais delicado. Envolve o negro e toda a questão do
preconceito aí tu vai botar Saravá! e vai que as pessoas vão entender que tu
está levando para um lado religioso e que não era nada do que a gente queria.
E aí, vamos buscar argumentos, informações e entendemos que Saravá nada
mais é que um cumprimento, um Salve! Estávamos saudando o Aldeia Sesc
Caxias. Olha chego a me arrepiar quando falo essas coisas. Por que é muito
forte, quando a gente se deu conta, meu Deus é isso. Não tem como alguém
se opor a isso. Por que a gente tinha todo o embasamento, a gente tinha, além
de acreditar muito no que a gente estava fazendo, estava falando, a gente tinha
o embasamento teórico. E daí não deu outra, foi super aprovado, fizemos o
lançamento.
Para Vanessa Falcão o tema caiu de maduro e que vislumbravam de fazer o lançamento
no Clube Gaúcho.
Queríamos utilizar o clube gaúcho para o lançamento do Aldeia, ou para
qualquer outra situação. Fomos conversar com o presidente, e tal, mas daí
vamos dar visibilidade para o local e depois a prefeitura querer mover
qualquer ação contra eles. A estrutura estava muito feia. Enfim, estavam sem
recursos. Vão por um holofote no Gaúcho, mas depois isso pode vir a
prejudicar eles. Seria perfeito fazer várias ações lá, enfim, convidamos eles
para participarem de ações conosco.
[...] justamente afirmar esta ideia. No momento quando a gente lançou, o Sesc
tem sempre que consultar Porto Alegre, os seus gestores estaduais, então foi
feita a consulta e aprovaram a ideia. A primeira tensão foi lançar e botar o
SARAVÀ! na rua, sabe? Depois disso, eu acho que foi. Justamente porque
mostrou quanta coisa tinha especial, significativa tinha na cidade. Então, eu
acho que daí os outros grupos, as outras facetas da sociedade que vinham
sistematicamente contempladas pela cultura tradicional, elas se sentiram
abraçadas. Eu acho que isso foi significativo no sentido “Opa! Isso nos
representa! Isso nos interessa!” Outra coisa interessante neste Aldeia, é que
ele foi descentralizado. Ele não aconteceu lá na estação ferroviária, que é um
505
Para Luciana Stello, o grande legado foi que a comunidade descobriu que podem utilizar
os serviços oferecidos pelo Sesc. As pessoas descobriram que poderiam utilizar nossos serviços
A partir da “batalha da prova” elas perceberam que o Sesc poderia ser delas também. O Sesc
não é um lugar elitizado nem nada. As crianças chegaram com muito respeito, apesar do nosso
medo inicial com o patrimônio.
Carlinhos Santos afirma que o legado foi o destacamento profissional de alguns artistas
participantes, e toma como exemplo a dançarina Vanessa Carraro:
Vanessa Falcão, afirma que o legado deixado vem sendo construído a cada edição:
Acho que a cada Aldeia a gente vai somando. Talvez alguns artistas possam
falar melhor dos que vivenciaram aquilo né. Abriu muitas possibilidades
alguns ali. Grupos de percussão que acabaram fazendo muitos outros projetos,
realizando outros encontros. O próprio Richard Serraria e Chiquinho de Vilas
fizeram outras coisas juntos depois. O Carlinhos e o Richard também. Não é
o Aldeia, mas a cena cultural acabou se expandindo, vejo os movimentos de
novos produtores culturais, de fazer projeto do pessoal ir atrás de outras coisas,
sabe? O Aldeia permite esse encontro, essa troca. A possibilidade de você
fazer uma oficina com um cara que você talvez não teria grana agora, ou,
enfim, nas escolas também, talvez tenhamos plantado uma semente.
Considerações finais
Viu-se que há em Caxias do Sul uma cultura patrimonial totalmente vinculada a epopeia
do imigrante italiano. Que apesar dos avanços e destaques para outras culturas não-
hegemônicas estas ainda não foram assimiladas como símbolos patrimoniais do município.
Sesc de Caxias do Sul vem rasurando esta lógica ao exercer uma prática curatorial de ouvir
atentamente as demandas de artistas e personalidades com notório saber ao desenvolver suas
ações culturais, e que assim vem fazendo valer a missão do Sesc Nacional. Este trabalho buscou
expor o objeto, ainda que de modo inicial e sucinto, a luz dos olhares dos demais pesquisadores que
se interessam e se comprometem com o tema abordado. Entende-se que o Aldeia Sesc, em sua 6ª
edição no ano de 2018, protagonizou diversos agentes locais, promoveu encontros, trocas e atingiu
os objetivos que lhe dão razão institucional, a interação entre as diversas culturas e linguagens.
Referências
ANDRADE, Andrei. O salão branco proibido para negros. In: Revista O CAXIENSE.
Páginas Brancas da História Negra. Caxias do Sul: Ed. 131. 2012 a.
ALVES, C. A curadoria como historicidade viva. In: Sobre o ofício do curador. Alexandre
Dias Ramos. (Org.). Porto Alegre: Zouk, 2010.
ANJOS, M. dos. Arte, curadoria e crise de representação. In: MOTTA, Gabriela;
ALBUQUERQUE, Fernanda (Orgs.). Curadoria em Artes Visuais. Um panorama
histórico e perspectivo. Santander Cultural. 2017.
BOURDIEU, Pierre. O que falar quer dizer. In: BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas
simbólicas. Algés: Difel. 1998.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
BOURDIEU, Pierre. A Distinção: Crítica social do julgamento. São Paulo: EDUSP, 2008.
BRASIL. Constituição da República Federativa do. 1988.
BRASIL. Decreto-Lei N° 9.853 - de 13 de setembro de 1946. Diário Oficial da União de 16
de setembro de 1946.
CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas - estratégias para entrar e sair da modernidade.
São Paulo: EDUSP. 1997.
CAREGNATO, L. A Outra Face: A Presença de Afro-descendentes em Caxias do Sul –
1900 a 1950. Caxias do Sul, RS: Maneco Liv. & Ed., 2010.
CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano: Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998.
CAXIAS DO SUL. Centro de Memória da Câmara Municipal de. Memória Palavra e
Poder: 120 anos do Poder Legislativo em Caxias do Sul. Organização da pesquisa: Geni
Salete Onzi; textos de Anelise Cavagnolli, Eduardo Ziegler Reis e Geni Salete Onzi. Caxias
do Sul: Ed. São Miguel, 2012.
507
Referencial Audiovisual
TAMBORES DA NOSSA ALDEIA. Documentário Nacional. YouTube (19min.12s.)
Produção: Ilha 8C5A e Sistema Fecomércio RS – SESC. Direção: Robinson Cabral e Dinarte
Paz. Publicado em 21 de março de 2019.
508
253
Doutorando em Historia del Arte y Geografia, Universidad de las Islas Baleares. Contato:
[email protected]
509
"patrimônio cultural” que abrange tanto bens de natureza material como imaterial, assim como
estabelecia práticas participativas de preservação e apoio ao patrimônio entre Poder público e
sociedade (VOLPE, 2016).
Foi somente após a consolidação legal deste conceito que todo o corpus de
conhecimento e organização institucional realizado pelos folcloristas brasileiros foi integrado
na esfera federal de preservação do patrimônio histórico, artístico e cultural do país De qualquer
forma, naquela conjuntura do turismo cultural, a música não era considerada de grande
importância, exceto em casos específicos como o carnaval no Rio de Janeiro, Bahia, Recife e
Olinda ou a prática do Boi-bumbá. Casos que, para a autora, resultam exemplos de que
“integração das tradições musicais às economias criativas possibilita a associação do
etnoconhecimento ao desenvolvimento sustentável e, desse modo, a própria salvaguarda das
singularidades e saberes locais” (VOLPE, 2016, p. 271-272).
Em princípios do século XXI, o Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000 criou o
Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, como parte do Registro de Bens Culturais de
Natureza Imaterial, o qual organizou os patrimônios imateriais em quatro domínios principais
- formas de expressão, saberes, celebrações, lugares. Apenas dois anos depois, a Emenda
Constitucional nº 71, de 29 de novembro de 2012, representou um importante avanço com a
criação do Sistema Nacional de Cultura que reafirmou os princípios de universalização do
acesso a bens e serviços culturais, cooperação entre instituições autônomas, a transversalidade
de políticas culturais, a transparência nas informações e a realização de processos decisórios
democráticos.
Todavia, não se deve esquecer que a cidade deve ser pensada como uma enorme
estrutura que abriga as relações sociais, com as quais está em constante interação e vê as
transformações dos espaços como cicatrizes deixadas por distintos momentos de luta na
história. Em função disso, o patrimônio ambiental urbano é o espaço de materialização das
redes sociais que interagem na cidade e um elemento de identidade coletiva cuja preservação é
também resultado de tensões entre o ideário comum de progresso e modernidade associado à
destruição sistemática do passado e os órgão públicos destinados à preservação pouco podem
fazer, frente às pressões das classes dominantes que, com um discurso de princípios sanitaristas
travestidos pela ideia de renovação infringem a premissa básica planejamento urbano e
regional, segundo a qual a preservação do espaço (e da cultura, poderíamos também dizer)
depende diretamente da manutenção da identidade cultural e da qualidade de vida das pessoas
(MAGALDI, 1992).
Um importante exemplo do papel social do espaço físico e suas relações com o
desenvolvimento da identidade cultural de grupos pode ser encontrado na pesquisa da
historiadora Mônica Pimenta Velloso, que descreveu o processo histórico pelo qual famílias
afro-brasileiras de origem baiana lideradas por mulheres constituíram espaços simbólicos com
profundas raízes afro-baianas ao se estabelecerem em zonas marginalizadas do Rio de Janeiro,
a partir do século XVIII. A autora reflete sobre a condição de baluarte social ocupado por estas
mulheres que souberam estruturar toda uma rede de conhecimentos baseada em códigos
culturais para desenvolver estratégias de sobrevivência preservando a cultura afro-baiana
através da oralidade e do canto, instituindo a concepção de uma grande família não
consanguínea, onde as tias, avós e madrinhas eram vistas como guardiãs das tradições e saberes,
assim como foco de enorme admiração, respeito, carinho e prestígio (VELLOSO, 1990).
Desta maneira, Velloso percebe nas ‘casas da tias baianas’ os lugares onde a histórica
capacidade subterrânea de resistência254 da comunidade negra encontrou meios de driblar a
perseguição do poder e transmitir saberes utilizando de canais informais para isso. Um
importante exemplo disso reside, para a autora, nas práticas da música e dança que têm a
fundamental função de funcionarem como meio através do qual são contadas as histórias de
pessoas e da comunidade, enquanto o indivíduo empresta seu corpo e sua voz para as forças
sagradas. Estas práticas expressam uma cidadania paralela diante da qual são formados canais
particulares de participação sociopolítica, onde os espaços são reinventados evidenciando, uma
254
Velloso, 1990, p. 2019.
511
O Hip Hop
Originada nos EUA, a cultura hip hop foi desenvolvida em meio ao contexto de crise e
recessão econômica dos países capitalistas da Segunda Fase da Guerra Fria, quando a alta dos
preços da energia agravou a corrida armamentista em curso, sendo acompanhada pela
disseminação de insurreições por independência em países da África e Ásia. Aliado a isso, os
efeitos da revolução cultural com a contracultura foi acompanhado pelo aumento de
movimentos sociais, assim como uma crise no modelo da sociedade burguesa capitalista, em
meio à qual a juventude teve reconhecido seu poder de agente social independente
(HOBSBAWM, 2012).
Nesta conjuntura, a ascensão de políticas neoliberais no país (caracterizada pela
precarização da qualidade de vida e condições de trabalho) e a escalada da opressão de órgãos
do Estado norte-americano fizeram com que todo o otimismo conquistado durante a luta por
direitos civis dessem lugar a um sentimento de exaustão e raiva desfocada que afetava
especialmente os moradores de regiões periféricas dos EUA. O sul do Bronx, em Nova Iorque,
foi um exemplo deste processo, sofrendo com abandono de maior parte da população branca, a
ascensão de gangues formadas por jovens, a expansão do tráfico de heroína, assim como
constantes incêndios criminosos provados pelos proprietários dos imóveis com objetivo de
recolher os recursos das apólices de seguro (CHANG, 2007).
Uma conjuntura que atuou como catalisador no desenvolvimento da perspectiva crítica
sobre problemas sociais, favorecendo a organização de tribalizações urbanas, das quais o Hip
Hop é considerado um exemplo de origem jamaicana que se estabeleceu nesta região através
das block parties organizadas por DJ Kool Herc (FILHO, 2004). Com isso, o hip hop se
estabeleceu como uma forma de produção diaspórica e um movimento cosmopolita capaz de
ressignificar o espaço social e favorecer o desenvolvimento iniciativas comunitárias que
passaram a ser interpretadas como uma estratégia para a garantia da sobrevivência de toda uma
juventude marginalizada a partir de uma relação dialética entre o indivíduo e as tecnologias
urbanas e letradas, no qual a música ocupa importante posição (SOUZA, 2009).
Fundamentada em quatro elementos centrais (MC, DJ, Grafitti e Break), a cultura hip
hop trouxe transmutações ressignificantes que possibilitaram todo um procedimento de
transvalorização, o qual foi acompanhado pelo florescimento de novas formas de subjetividade.
Estas práticas deram origem a um multifacetado coletivo de aspectos híbridos que está
512
Inferno>> (1997), pelo grupo Racionais Mc’s, integrou o Brasil na comunidade global do hip
hop, junto a produções artísticas do Oriente Médio e China (IBRAHIM, Awad, 2016).
A ascensão da cultura hip hop ao mainstream da indústria discográfica desde o início do
século XXI, permitiu a disseminação de tais ideias e valores entre jovens artistas, os quais têm
se dedicado a explorar e reforçar o reconhecimento social da herança diaspórica africana,
buscando conexões com culturas de outros países para recontar a história desde um ponto de
vista original e inédito. Atualmente, o hip hop ocupa posição central no mercado fonográfico
mundial e tem revolucionado aspectos do consumo musical, assim como do processo criativo
contemporâneo, participando de grandes transformações na economia digital da música.
(BRUHN-JENSEN, 2010; DE-AGUILERA-MOYANO; ADELL-PITARCH; BORGES-REY,
2010; FOUCE-RODRÍGUEZ, 2010; HENNION, 2010; HORMIGOS-RUIZ, 2010).
Desta forma, este projeto pretende apresentar explorações e descobertas realizadas
durante nossa investigação de mestrado, complementadas por conhecimentos que tem sido
aprofundados nestes últimos três anos de investigação para a tese de doutorado que está em
curso. Com isso, nos propomos a apresentar aspectos de todo o processo de mudanças que tem
implicado este fundamental patrimônio cultural que é a história da música brasileira e que sofre
com a falta de investigações. Para isso, nos propomos a expor casos que foram estudados
durante a investigação anterior, assim como introduzir novos artistas e iniciativas que têm
ganhado espaço, inclusive em contexto de pandemia.
Referências
ALIM, H. S. The streetz is a mutha”: The street and the formation od a Hip Hop linguistics
(HHLx). Roc the Mic Right the language of hip-hop culture, Routledge. New York;
London: [s. n.], 2006. p. 1–12.
BRUHN-JENSEN, K. The Sounds of Media. An Interdisciplinary Review of Research on
Sound as Communication. Comunicar, v. 17, n. 34, p. 15–23, 1 mar. 2010. DOI
10.3916/C34-2010-02-01. Disponível em:
http://www.revistacomunicar.com/index.php?contenido=detalles&numero=34&articulo=34-
2010-03. Acesso em: 14 mar. 2018.
CHANG, J. Can’t stop, won’t stop: a history of the hip-hop generation. London: Ebury,
2007.
COTTA, A. G. Perspectivas de integração do patrimônio musical brasileiro. Arquivologia e
patrimônio musical. Salvador: EDUFBA, 2006. p. 39–56. Disponível em:
http://books.scielo.org/id/bvc3g. Acesso em: 22 maio 2021.
514
Aspectos iniciais
O papel da imprensa na sociedade brasileira é fundamental. Por meio da liberdade de
trabalho da imprensa, o jornalismo tornou-se responsável por discutir e impulsionar debates
importantes para a população brasileira. Tendo isso em vista, o jornalismo apresenta um caráter
universal, almejando reproduzir informação para os diversos públicos aos quais atende, sendo
embasado pela liberdade do campo democrático. Faz-se interessante observar a presença negra
nestes veículos e como a mesma foi sendo constituída no período pós-abolição, almejando
compreender fatores históricos. Esta produção surgiu a partir de uma atividade do curso de
extensão “Estratégias de educação das relações étnico-raciais em meio à pandemia do Covid-
19”257, realizado na modalidade remota, no ano de 2020.
Em termos metodológicos, o projeto foi realizado a partir do Ambiente Virtual de
Aprendizagem (AVA), através da plataforma Google Classroom, e contou com diversos
recursos pedagógicos relacionados ao ensino à distância (vídeos, chats, biblioteca virtual e
tarefas avaliativas), viabilizando a comunicação multidirecional entre todos os sujeitos
envolvidos no processo de ensino-aprendizagem (COSTA, 2016, p. 38), com vistas a capacitar
docentes da rede básica e graduandos dos cursos de licenciatura da FURG e da sociedade, em
geral, para a Educação das relações étnico-raciais nos espaços educativos, incluindo os lugares
virtuais de educação.
Seguindo estes pressupostos, a partir de uma atividade do curso, discutiu-se sobre o papel
da imprensa negra e dos clubes sociais, com base na colaboração dos pesquisadores Dr. Arilson
dos Santos Gomes (UNILAB) e Dr. José Antônio dos Santos (UFRGS), os quais apresentaram
falas sobre os espaços de cultura negra no pós-abolição, no formato de constituição de duas
vídeo aulas. E, neste sentido, o presente trabalho reflete a análise desta parte do curso de
extensão.
255
Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e professora do
Instituto de Ciências Humanas e da Informação da Universidade Federal do Rio Grande (ICHI-FURG). Contato:
[email protected].
256
Mestre em História (PPGH/FURG) e Licenciado em História (FURG). Contato:
[email protected].
257
Este projeto foi contemplado pelo edital PROEXC 02/2020 da Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e
contou com a participação de Leonardo de Melo Belem e Marcelo Moraes Studinski como bolsistas.
517
258
Faz-se interessante analisar os projetos urbanísticos no Rio de Janeiro/RJ, os quais empurraram contingentes
pobres e de ex-escravizados para a periferia da cidade. Sobre este ponto, indica-se a leitura do texto de Marcelo
Penna da Silva, intitulado “O processo de urbanização carioca na 1ª República do Brasil no século XX: uma análise
do processo de segregação social”. Disponível em:
https://periodicos.unifap.br/index.php/estacao/article/download/3489/marcelov8n1.pdf.
518
responsáveis por trazer para um público negro, discussões políticas, culturais e sociais, as quais
ressoavam com as questões presentes na opinião pública do período. Esses periódicos são de
um valor histórico ímpar, pois demonstram a presença de um grupo importante de intelectuais
negros no estado do Rio Grande do Sul, impulsionando discussões relevantes e criando debates,
a partir das páginas dos veículos de notícias. Esses noticiários eram formulados por intelectuais
negros, os quais eram jornalistas, redatores e editores, profissionais alfabetizados, em
contraposição à maioria negra, não alfabetizada, no período. Os próprios títulos dos jornais
remetem ao protagonismo, à necessidade de seus criadores tornarem-se exemplos em meio a
uma população negra iletrada. Isso se apresenta como fundamental para a compreensão da
logística e das formas de circulação de tais noticiários.
Essas publicações adentraram o período Republicano, tendo grande expansão em vários
estados da União, como o Rio Grande do Sul. As publicações mais notáveis no que se refere
ao público gaúcho são O Exemplo, de Porto Alegre (1892-1930) e A Alvorada, de Pelotas (1907-
1965). Através destes jornais, pode-se ter uma noção acerca de uma imprensa negra, a qual
perdurou no estado e trouxe uma discussão sobre o preconceito racial e oportunizou uma leitura
voltada para a agremiação de negros e negras.
Mediante uma discussão racial extensa, os periódicos afro-gaúchos formularam
percepções e demarcaram sua posição em um espaço fortemente comercial. Além disso,
conseguiram educar e fomentar uma debate conciso sobre questões de raça e de pertencimento,
sendo que, a partir dos conteúdos apresentados nos mesmos, tem-se todo um espaço para a
análise sobre o protagonismo negro.
Com base na obra de José Antônio dos Santos (2011), tem-se pistas sobre a logística de
funcionamento dos periódicos. O autor discute sobre os fundadores de jornais, tendo um
enfoque em Marcílio Francisco da Costa Freitas, o editor gerente e parte da comissão material
do periódico O Exemplo. Através de sua trajetória na imprensa gaúcha, Marcílio Freitas tornou-
se um dos principais profissionais do meio jornalístico, sendo redator, jornalista e editor,
possuindo uma ampla bagagem para com as questões raciais no Brasil Republicano. Outro
exemplo citado pelo professor é Dario Bittencourt, jornalista, advogado e autor de livros
voltados para o direito de empregados sindicalizados. Em linhas gerais, percebe-se que através
destes e de muitos outros jornalistas profissionais, pode-se ter uma produção de grande volume
e de qualidade ímpar para o povo afro-gaúcho.
Nesta direção, o jornal O Exemplo circulou no estado do Rio Grande do Sul, no período
de 1892-1930, sendo um dos mais reconhecidos no circuito da imprensa negra brasileira.
Produzido em Porto Alegre/RS, por meio de seu caráter associativo e da conotação política, o
520
259
A Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional é muito rica em conteúdos jornalísticos da segunda metade do
século XIX em diante, sendo uma ótima fonte de pesquisa para discussão de periódicos brasileiros. Disponível
em: <https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>.
521
para a pesquisa. Sendo uma peça jornalística, tem-se no documento um viés editorial e toda
uma lógica de publicação e circulação, a qual se fazia necessária para o funcionamento do
periódico, tanto como estrutura organizacional, quanto como um produto comercial. Percebe-
se, assim, um formato pautado na divulgação de diversas questões voltadas à população afro-
gaúcha e esse modelo fez-se muito popular no período do pós-abolição, na nascente república
brasileira. Discorrendo sobre A Alvorada, Oliveira afirma que:
A Alvorada era parte de uma prática associativa de negros e negras, na cidade
de Pelotas. Esse associativismo se formou ainda no século XIX e com o pós-
abolição acabou se ampliando. Por conta dele foram fundadas diversas
organizações atuantes na formação e valorização de uma identidade negra.
São exemplos: os clubes sociais, alguns com origem em cordões
carnavalescos. As finalidades desses eram múltiplas. (OLIVEIRA, 2017, p.
11).
É interessante observar que neste período ainda tem-se uma relativa liberdade de
imprensa e propaganda. Será após o recrudescimento do regime varguista e da formação do
Estado Novo, que órgãos como o Departamento de Imprensa e Propaganda-DIP (1939) terão
maior controle sobre os conteúdos publicados nos meios jornalísticos (FAUSTO, 2006). Isso
irá ter um efeito sobre tais publicações, as quais irão se tornar mais escassas e perderão, devido
às circunstâncias, seu objetivo inicial: agremiar e associar indivíduos negros(as) letrados.
Apesar disso, pode-se perceber o impacto e a necessidade de tais veículos produzidos por essa
imprensa, a qual se especializou e focou-se em um público, o qual encontrava-se buscando por
identidade, ansiando por enxergar-se nas publicações veiculadas no período.
temática da imprensa livre e sua ligação com a luta antirracista contemporânea. Percebeu-se,
assim, que os recortes jornalísticos e o trabalho dos veículos de comunicação podem funcionar
como uma ferramenta, auxiliando na discussão de políticas públicas e da realidade social
brasileira e essa é a principal hipótese defendida neste trabalho, de que por meio da imprensa,
pode-se ter um recurso educativo para o trabalho com as relações étnico-raciais.
A partir da vídeo aula sobre a esfera periódica do pós-abolição e os clubes negros, os
alunos discorreram sobre questões como a temática da imprensa contemporânea, seus meandros
e sua necessidade no que tange ao combate à discriminação racial. Percebe-se, assim, a
contribuição que documentos como os periódicos podem trazer para a pauta educacional.
Quando se pensa nas peças jornalísticas como documentos históricos, tem-se uma fonte de
pesquisa muito ampla. Mediante tais números, pode-se abarcar todo um debate acerca das
mentalidades, das discussões culturais e políticas presentes na sociedade do período. Dessa
forma, verifica-se a existência de um protagonismo negro, com diversas pessoas negras
letradas, as quais produziam escritos de alta qualidade, almejando representar um público que
a pouco fora liberto, e que encontrara a possibilidade de fomentar suas identidades. Esse
protagonismo foi sendo desvelado mediante as obras de tais escritores, redatores, editores e
membros de corpos editorais, os quais produziam a partir de seu trabalho, discussões e leituras
fortuitas acerca de fenômenos sociais do período.
Assim, a população afro-gaúcha, fomentou espaços e modos de viabilizar sua liberdade.
Pertencentes à uma cultura de poder público excludente, que inviabiliza suas individualidades
e coloca-os em um espaço de desigualdades, os recém libertos vão tendo que angariar espaços
e formar grupos sociais, sendo que pela via da formação de clubes, agremiações e sociedades
de mutualidade, diversas comunidades vão produzindo uma cultura de pertencimento e de
fomento das negritudes. Esses espaços de sociabilidade foram sendo desenvolvidos nas diversas
regiões do país, tendo sua expansão no pós-Abolição (SANTOS, 2011). Pela ação de indivíduos
que fazem parte das agremiações, grupos jornalísticos e sindicatos, fomentou-se uma cultura de
promoção da equidade e do pertencimento; isto é, negros e negras vão adquirindo espaços, e
estes vão incorporando discussões e demonstrando seu protagonismo.
Quando se discute o protagonismo negro, deve-se ter a noção que o mesmo perpassa
diversos períodos da história brasileira. E esse protagonismo foi se tornando cada vez mais
intensificado a partir do pós-abolição e, através da realização da pesquisa, busca-se a
compreensão acerca dos mecanismos sociais utilizados por esta presença negra nos mais
diversos espaços da sociedade brasileira. Para tanto, o associativismo, os clubes sociais e a
imprensa negras são peças-chave nessa engrenagem e, por meio destes elementos, consegue-se
523
ter uma noção de identidade(s) e negritude, formulando novas percepções nos negros e negras
recém libertos. Em outras palavras, observa-se que a imprensa tem um local próprio, para a
construção de debates e de divulgação de assuntos concernentes às populações negras
brasileiras, sendo que os redatores (de assuntos e público alvo definidos) de periódicos negros
vão produzindo diversos materiais, os quais denunciam a discriminação, discutem pautas
sociais e promovem a alfabetização da população negra.
Aspectos finais
Quando se observa a imprensa negra e sua conexão com a esfera educacional, percebe-
se o quão ligadas estão estas duas áreas. Para tanto, apontou-se o exemplo de uma atividade que
foi aplicada, de forma virtual, no curso de extensão “Estratégias de educação das relações
étnico-raciais em meio à pandemia do Covid-19”, a qual teve como pauta o debate sobre uma
impressa livre como canal educativo e de discussão de pautas étnico-raciais. Com este horizonte
em vista, ressalta-se a importância de se debater tais assuntos nos espaços educacionais e
utilizá-los para o aumento do escopo desta discussão.
Tendo a questão da imprensa negra em vista, percebe-se que no período do pós-
Abolição, tem-se a efervescência de clubes sociais e sindicatos negros, além da presença de
uma imprensa especializada, focada no debate de elementos raciais. Deve-se observar, ainda,
este período como um momento de construção de uma cultura política e de participação de
negros e negras em esferas sociais e culturais. A partir deste ponto, a imprensa surge como um
mecanismo de discussão sobre negritudes, raça e protagonismo. Quando se tem um espaço para
discutir a vida cotidiana, os anseios e a luta política é que se verifica o surgimento de um
caminho rumo ao empoderamento e ao respeito à diversidade brasileira.
Ademais, deve-se observar que a imprensa negra, de meados do século XX, foi muito
importante para fomentar discussões sobre raça e preconceito racial. Apesar disso, não se pode
transpor conceitos, aplicando categorias da atualidade para o passado. Não se pode efetivar o
“pecado do anacronismo” (FEBVRE, 1977). Contudo, é possível observar as discussões
empreendidas por esta imprensa e defendê-la como uma possibilidade efetiva de discussão de
pautas raciais; porém, demarcando tal debate como um produto de seu tempo. Tendo estas
ressalvas em vista, a contribuição dos profissionais da imprensa negra gaúcha é fundamental
para se fomentar debates e produzir uma compreensão acerca da necessidade de instituição de
uma imprensa livre. Mediante diversos governos ditatoriais, o Brasil teve a perda de liberdades
e a censura dos veículos de comunicação. Com este contexto em vista, uma imprensa livre e
524
voltada para a discussão de pautas étnico-raciais, é uma conquista do campo democrático e deve
ser exaltada.
A imprensa livre atual discute sobre diversas pautas, podendo apresentar um diálogo
conciso com questões que se fazem presentes no cotidiano brasileiro. Deve-se, assim, observar
os indivíduos que produziram conteúdo jornalístico no período do pós-Abolição, pois os
mesmos empreenderam discussões efetivas e engendraram pautas raciais importantes. Tendo
isso em vista, torna-se de suma importância discorrer sobre a obra de jornalistas negros, nos
espaços educacionais, haja vista que, mediante estes exemplos, pode-se ter uma inspiração para
os alunos negros, além de se demonstrar a participação negra intelectual na formação brasileira,
contribuindo para o pensamento social e político brasileiro. Assim, o jornalismo negro e gaúcho
traz como contribuição, toda uma produção demarcada por pautas raciais e sociais, trazendo
cores de pertencimento e integração à uma população excluída das esferas de poder e de
decisão.
Referências
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. 14 ed. São Paulo: USP, 2015.
FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Lisboa, Presença, 1977.
COSTA, Inês Teresa Lyra Gaspar da. Metodologia do ensino a distância. Salvador: UFBA,
2016.
MARTINS, Ana Luiza. Fontes para o patrimônio cultural: uma construção permanente. In:
PINSKY, Carla Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (Orgs.). O historiador e suas fontes.
São Paulo: Contexto, 2009, p. 281-308.
OLIVEIRA, Ângela Pereira. “A imprensa negra do Rio Grande do Sul e alguns de seus
homens. Revista Espacialidades [online]-v. 12, n. 2, 2017. Disponível em:
https://cchla.ufrn.br/espacialidades/v12/dossie_8.pdf. Acesso em 28 mar. 2021.
PINTO, Flávia Magalhães. De pele escura à tinta preta: a imprensa negra do século XIX
(1833-1899). Brasília, PPGH-UNB. Dissertação (Mestrado em História). Programa de Pós
Graduação em História da Universidade Federal de Brasília, 2006. Disponível em:
https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/6432/1/Ana%20Flavia%20Magalhaes%20Pinto.pdf
. Acesso em: 23 mar. 2021.
SANTOS, José Antônio. Prisioneiros da História: Trajetórias intelectuais na imprensa negra
meridional. Porto Alegre, PPGH-PUCRS. Tese (Doutorado em História). Programa de Pós-
Graduação em História, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, PUCRS, 2011.
Disponível em: https://tede2.pucrs.br/tede2/bitstream/tede/2400/1/433237.pdf. Acesso em: 23
mar. 2021.
525
260
Graduado em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana, professor do Projeto Popular de
Educação Malungos, Anguera-BA. Contato: [email protected]
526
história única, no caso aqui, não só perigosa, mas comprometida com o não reconhecimento de
outras histórias e representações possíveis.
A perspectiva subalterna, decolonial em diálogo com o pensamento museau, não se
encerra na evidência de “contra-histórias ou histórias diferentes” como salienta Walter Mignolo
na sua obra Histórias Locais, Projetos Globais: colonialidade, saberes subalternos e
pensamento liminar, o que se pretende aqui a partir desse investimento teórico que tem como
pano de fundo, no espaço museau, a presença do passado escravista, “são histórias esquecidas
que trazem para o primeiro plano, ao mesmo tempo, uma nova dimensão epistemológica
(MIGNOLO, 2020, p. 81)”. Nesse sentido, a relação viável entre os pressupostos decoloniais e
o pensamento museológico aponta para a liberação de “conhecimentos que foram
subalternizados e a liberação desses conhecimentos possibilita um outro pensamento
(MIGNOLO, 2020, p. 100)”. Ou seja, um pensamento museau, a ser articulado no Pavilhão
Anexo Lucas da Feira, que possa dar conta das complexidades referentes à presença do passado
escravista, assim como possa se aproximar de uma razão subalterna.
Os estudos decoloniais permitem examinar, a partir das práticas e representações
mobilizadas no museu aqui discutido, “o processo de colonização da memória (BERNADINO-
COSTA, 2015, p. 44)” do escravizado Lucas da Feira. Nessa esteira, em sintonia com os estudos
de Grada Kilomba, se tem “uma noção de como o conhecimento e o poder racial se entrelaçam
(KILOMBA, 2019, p. 49)”, de modo a transparecer que a “subalternidade não está somente
ligada à classe social, mas está vinculada à colonialidade do poder [...] e a subordinação de
histórias (BERNADINO-COSTA, 2015, p. 50)”. O pensamento decolonial pode contribuir para
a desobediência interpretativa a cerca das experiências negras ainda apresentadas como um
aspecto formal ou circunstancial ao interesse simbólico do museu. Daí a necessidade de
inserção no mapa discursivo do museu de um projeto orientado em direção à decolonização das
histórias e representações sobre a presença do passado escravista no Pavilhão Anexo Lucas da
Feira. Faz-se necessário e urgente a construção de um novo ambiente epistemológico que
incorpore e dialogue as histórias e representações do povo negro e o pensamento museau
brasileiro.
A noção de desobediência aqui mobilizada está relacionada àquilo que a professora
Luciana Ballestrin nomeia de estratégias de decolonização. De acordo com essa autora,
categorias como “desprendimento, abertura [...], desobediência, vigilância e suspeição
epistêmica são estratégias para a decolonização [...] epistemológica, p. 108 (BALLESTRIN,
2013, p. 108)”. Ainda nesse âmbito, vale dizer que “a perspectiva decolonial” pode
disponibilizar “novos horizontes [...] em diálogo com a produção de conhecimentos
527
(BALLESTRIN, 2013, p. 110)”, trazendo para o campo do pensamento museau “aquilo que é
original nos estudos decoloniais”, que seriam, segundo Ballestrin, “as novas lentes colocas
sobre velhos problemas (BALLESTRIN, 2013, p. 108)”.
Diante disso, intentar decolonizar os saberes museais a respeito do escravizado Lucas
da Feira, é um dos passos para decolonizar o próprio pensamento museau identificado no
Pavilhão Anexo do Museu Casa do Sertão/UEFS. Pode-se dizer ancorado nos estudos de
Catherine Walshe e sua interação com Aníbal Quijano, que as histórias e representações sobre
Lucas estão sedimentadas na “racionalização que formou a colonialidade do poder nas
Américas (WALSHE, 2019, p. 18)”. Dito isto, o diálogo aqui sugerido busca escavar outras
reflexões e considerações museais que possam levar em conta que as histórias e representações
sobre Lucas da Feira mantêm-se numa situação colonial, em outras palavras, elas ainda são
cúmplices e reveladoras da colonialidade do saber.
Sendo assim, este trabalho se interessa pelas “prácticas” museais “que abren caminos y
condicions radicalmente otros de pensamiento (WALSHE, 2017, p. 28)”, constatando que os
saberes que corporificam às histórias e representações museais sobre Lucas da Feira estão
inscritos numa dada geopolítica do conhecimento marcadamente distante da razão subalterna e
que opera, partindo aqui dos estudos de Nelson Maldonado-Torres, “dentro da lógica [...], da
marca d’água da raça e da colonialidade (MALDONADO-TORRES, 2008, p. 94)”. Segundo
este autor, “o conceito de decolonização epistêmica e, mais amplamente, os conceitos de
decolonização do ser, do poder e do saber adicionaram precisões importantes para entender as
formas de conhecimento (MALDONADO-TORRES, 2015, p. 76)”.
Essas precisões indicadas por Maldonado-Torres incitam aquilo que Walshe vai chamar
de “pensar desde y com genealogias, racionalidades, conocimientos” e “prácticas (WALSHE,
2017, p. 28)” subalternas, dando a ver aquilo que a pensadora Zulma Palermo aponta como
sendo “formas outras de conhecer e descobrir, de fazer e de pensar (PALERMO, 2019, p. 56)”,
no caso aqui, a respeito dos saberes museais relacionados à presença do passado do povo negro
em seus espaços. Retomando os estudos de Ballestrin, vale ressaltar que “o processo de
decolonização” das histórias e representações do escravizado Lucas da Feira “não deve ser
confundido com a rejeição (BALLESTRIN, 2013, p. 108)” dos saberes museais sobre ele
existentes no Pavilhão Anexo do Museu Casa do Sertão/UEFS e sim num processo que
reconheça radicalmente “o direito à diversidade histórica” e “o direito à multiplicidade das
memórias (RAMOS, 2004, p. 80)” como bem aponta Francisco Régis Lopes Ramos em sua
obra A danação do objeto: o museu no ensino de história.
528
Ainda com este autor, sabe-se que “o papel do museu não é revelar o implícito, nem o
explícito, não é resgatar o submerso, não é dar voz aos excluídos (nem aos incluídos), não é
oferecer dados ou informações (RAMOS, 2004, p. 131)” e sim, tratando da sua
“responsabilidade social [...], exercitar a reflexão sobre as múltiplas relações entre o presente e
o passado, através de objetos no espaço expositivo (RAMOS, 2004, p. 131)” e é nesse circuito,
em conexão com o pensamento decolonial, que “aprendemos que há outras formas de fazer-
dizer o saber (PALERMO, 2019, p. 56)”. Sendo que estas últimas podem trazer à tona saberes
museais outros atinentes ao escravizado Lucas da Feira, relacionados inclusive com aquilo que
Bernardino-Costa, partindo dos estudos de Boaventura Santos Sousa, vai abordar como uma
“sociologia das ausências” que “nos permite reconhecer a existência de outras narrativas da
nossa história que até então estavam apagadas, silenciadas (BERNARDINO-COSTA, 2015, p.
56)”.
Ramos salienta que “perscrutar objetos expostos no museu não é um ofício de analisar
o que passou, mas interpretar a presença do pretérito (RAMOS, 2004, p. 158)”, é nesse sentido
que a investigação a cerca das histórias e representações museais sobre o escravizado Lucas da
Feira decorre. É compreendendo “a decolonização [...] tanto como um projeto incompleto e em
processo como uma atitude (MALDONADO-TORRES, xx, p. 93)” que sugiro ser possível a
emergência de novos saberes museais no tocante a presença do passado no povo negro no
Pavilhão Anexo Lucas da Feira. Como bem ressalta Mário Chagas Souza, “os museus são a um
só tempo: herdeiros de memória e de poder (SOUZA, 2002, p. 62)” e se tratando do espaço
museau aqui em questão, as memórias herdadas sobre Lucas compõem um painel do medo
branco das elites feirenses e baianas, deixando evidente, a partir do diálogo investigativo da
decolonialidade e do pensamento museau, as relações entre racismo, memória e poder que
inscreve o povo negro numa representação patrimonial simplista e confinada nos tempos da
escravidão.
É nesse debate que os dois seguintes momentos deste trabalho se situam, na tentativa de
mapear as histórias e representações sobre o escravizado Lucas da Feira no Pavilhão Anexo do
Museu Casa do Sertão/UEFS e, em seguida, apontar, ainda que de forma breve, por meio do
auxílio do pensamento decolonial, interpretações não hegemônicas relacionadas à presença do
passado escravista no espaço museau.
167)”, onde falar é também esquecer. Vale frisar, em diálogo com os estudos de Bell Hooks,
que o conjunto de representações e pedaços de histórias sobre o escravizado Lucas da Feira
informa sobre “a indissociabilidade entre política e representação”, entre “dominação e
representação (HOOKS, 2019, p. 11)”, deixando evidente que o corpo de imagens defeituosas
sobre Lucas foi elaborado a partir de filtros sustentados num universo que já não pertencia mais
ao rural escravista, e sim num contexto de “debate sobre os males urbanos e as utopias
racionalizadoras”, assim como estava articulado, pode se dizer, com o processo de “racialização
das relações sociais, a ética do trabalho e uma política de sistemática limpeza social dos centros
urbanos, que estigmatizava práticas oriundas das classes populares (SILVA, 2012, p. 17)”.
A partir da ressonância dos estudos de Frantz Fanon, psiquiatra e revolucionário
martinicano, em específico seu livro Os Condenados da Terra, é possível dizer que essas
narrativas sobre Lucas da Feira podem ser tomadas como tradutoras daquilo que o autor
chama de “uma espécie de quintessência do mal (FANON, 2013, p. 58)”, seria o escravizado
Lucas, ali naquele contexto dos anos iniciais do século XX feirense, tomado como o retrato
da figura repugnante, o condenado da terra e da memória, o “declarado impermeável à ética”,
o da “ausência de valores” e “também” da “negação dos valores. Ele seria, ousemos dizer, o
inimigo dos valores. Nesse sentido, ele é o mal absoluto. Elemento corrosivo, destruindo tudo
de que se aproxima”, Lucas é encenado como “elemento deformante, desfigurando tudo o
que se refere à estética ou à moral, depositário de forças maléficas (FANON, 2013, p. 58-
59)”.
Preto, rebelde e foragido, Lucas, o escravizado odiado pela elite de Feira de Santana,
cabia ser negado, esquecido, e se não possível esquecê-lo, deveria ele ser lembrado enquanto o
bandido, o marginal, a moldura cabal do crime e do criminoso a ser combatido na paisagem
urbana feirense. É com esse DNA que destacada parte das histórias e representações sobre
Lucas da Feira foram acolhidas, relidas e mantidas no Pavilhão Anexo do Museu Casa do
Sertão, o Pavilhão Anexo Lucas da Feira.
Estando aqui algumas pistas para se pensar, em posteriores pesquisas, outras histórias
e representações a respeito do escravizado Lucas da Feira e do povo negro no Pavilhão Anexo
do Museu Casa do Sertão/UEFS, afirma-se assim, “o desejo de aprofundar, na razão de ser do
museu, o caráter de instituição de pesquisa e difusão de conhecimento, que interage com a
sociedade das mais variadas formas (RAMOS, 2004, p. 45)”, ou seja, pensar o decolonial no
museu é um processo tenso, desafiador, desconfortável, mas, sobretudo, potente e necessário
no tocante à elaboração de histórias e representações subalternas, não hegemônicas sobre
Lucas Evangelista dos Santos, o escravizado insurgente Lucas da Feira.
Referências
ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. O Tecelão dos tempos: novos ensaios de teoria da
história. São Paulo: Intermeios, 2019.
BALLESTRIN, Luciana. América latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência
Política, nº11. Brasília, maio-agosto, 2013, p. 89-117.
BARBOSA, Nila Rodrigues. Museus e Etnicidade - O Negro no Pensamento Museau:
Sphan - Museu da Inconfidência - Museu do ouro Minas Gerais. Dissertação (Mestrado
em Estudos Étnicos e Africanos). Salvador, Universidade Federal da Bahia, 2013.
BARBOSA, Nila Rodrigues. Apresentação: Dossiê Representação dos Negros em Museus.
Anais do Museu Histórico Nacional, v. 40, p. 144-147, 2008.
BARBOSA, Nila Rodrigues. Uma questão de raça: representações de negros no museu de
história de Belo Horizonte. Anais do Museu Histórico Nacional, v. 40, p. 221-236, 2008.
BERNADINO-COSTA, Joaze. Saberes subalternos e decolonialidade: os sindicatos das
trabalhadoras domésticas no Brasil. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2015.
CHAGAS, M. Memória e poder: dois movimentos. Cadernos de Sociomuseologia, v. 19, n.
19, 11.
CUNHA, Marcelo Nascimento Bernardo da. Teatros de Memórias, Palcos de esquecimentos:
culturas africanas e das diásporas negras em exposições museológicas. Anais do Museu
Histórico Nacional, v. 40, p. 149-173, 2008.
FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Rio de Janeiro: UFJF, 2013.
HOOKS, Bell. Olhares negros: raça e representação. Prefácio Rosane Borges. São Paulo:
Elefante, 2019.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução
Jess Oliveira. 1. Ed. – Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
MALDONADO-TORRES, Nelson. A topologia do Ser e a geopolítica do conhecimento.
Modernidade, império e colonialidade. Revista Crítica de Ciências Sociais, 80, 2008, 71-
114.
MALDONADO-TORRES, Nelson. Transdisciplinaridade e decolonialidade. Traduzido do
original Transdisciplinariedad y decolonialidad. Tradução de Joaze Bernardino-Costa.
Sociedade e Estado [online]. 2016, v. 31, n. 1, pp. 75-97.
535
Considerações iniciais
Este trabalho tem como objetivo evidenciar a presença dos sujeitos afrodescendentes
em lugares culturais e sociais da cidade de Porto Alegre, capital do Estado do Rio Grande do
Sul, entre 1872 e 1971, ano da fundação da Sociedade Beneficente Floresta Aurora (SBFA) e
ano da criação do Grupo Palmares de Porto Alegre, respectivamente. Esse coletivo propôs o
Dia da Consciência Negra, comemorado em 20 de novembro, data que, em 2021, completa a
efeméride de 50 anos desde sua primeira evocação.
Nesta narrativa, com base nos fundamentos de Henrique Cunha Júnior (2005),
compreende-se por afrodescendentes as massas de trabalhadores escravizados que constituíram
a mão de obra na escravidão, e consideram-se espaços socioculturais, como clubes,
organizações negras, imprensa negra, empresas jornalísticas e espaços públicos. Esses lugares,
em nosso entendimento, propiciaram a produção de linguagens, elaboradas pelos representantes
dessas populações em conjunturas difíceis.
Criados ou frequentados por negros, os ambientes socioculturais possibilitaram a
transmissão e as trocas de saberes desses indivíduos com a cultura hegemônica, de modo a
tencionar as linguagens hierarquizantes e suas influências na existência das experiências e das
percepções desses sujeitos. Em diversas situações, impedidos de ingressarem em espaços
culturais, a alternativa foi criar espaços próprios, inclusive em épocas de comemoração do dia
13 de maio (ZUBARAN, 2008), data da abolição da escravidão no Brasil. Essa era uma
alternativa viável para se fazer constituinte em uma sociedade que ignorava sua presença como
cidadão da mesma forma que desconsiderava sua história, sua linguagem e sua cultura
(MUNANGA, 2012).
261
A versão completa e original deste trabalho encontra-se disponível na Revista Intellèctus UERJ, Rio de Janeiro,
v. 20, n. 1, 2020. A revista Intellèctus é originária das atividades dos Grpesq/CNPq Intelectuais e Poder no Mundo
Ibero-Americano e Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais, Sociedade e Política, sediados, respectivamente, no
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas e na Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Disponível em: < https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/intellectus/article/view/56821>.
Acesso em 02 de Ago. 2021.
262
Doutor (2014) e Mestre (2008) em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB). Contato:
[email protected]
537
tipos: clubes, centros cívicos, grêmios literários, sociedades recreativas e dançantes, como a
própria SBFA. Nesse período, no Rio Grande do Sul, fundam-se jornais que, em suas linhas,
denunciam e protestam contra as discriminações e visibilizam e afirmam a identidade negra.
O jornal negro O Exemplo, como aponta Maria Angélica Zubaran (2020), apareceu em
Porto Alegre em 11 de dezembro de 1892, como propriedade da Irmandade da Nossa Senhora
do Rosário. “O grupo de afrodescendentes que deu início ao jornal estava composto por Arthur
de Andrade, Marcílio Freitas, Aurélio Bittencourt Júnior, Sérgio Bittencourt, Alfredo de Souza
e Esperidião Calisto” (ZUBARAN, 2020, p. 123).
Após alguns anos de existência, no final do século XIX, entre 1892 e 1895, o periódico
fechou. O Exemplo voltou a circular no início do século XX, em 5 de outubro de 1902. Em
janeiro de 1903, foi suspensa a publicação do jornal, que reapareceu em 1904 e manteve-se em
atividade até 1905, quando novamente fechou. Suas atividades só reiniciaram em 1916 e, em
1930, sua publicação foi, definitivamente, encerrada (MÜLLER, 1999).
O Exemplo foi o primeiro impresso da história da comunidade negra porto-alegrense;
nas palavras de Zubaran (2020), o jornal “[...] trata-se de um testemunho de inestimável valor
histórico e cultural para a interpretação da memória das populações afrodescendentes no pós-
abolição”.
Quadro 1: da atuação dos sujeitos
O intelectual negro Alcides Cruz, jornalista e advogado, atacado por sua cor escreveu
no Jornal A Federação, impresso do Partido Republicano Rio-Grandense sobre as suas
experiências e dos: “nascidos sob um estigma que os vinte séculos do cristianismo ainda não
puderam apagar” (A Federação, Porto Alegre, 12 de janeiro de 1903, Apud IHGRS).
540
263
A agremiação nasce inserida em uma tradição centenária instaurada pelas populações negras antes mesmo da
abolição, identificada na formação de círculos, clubes, impressos e confrarias fundadas por negros em Porto Alegre
e no interior do Estado (MÜLLER, 1999 LONER, 1999; SANTOS, 2000; PEREIRA, 2008; SILVA, 2011).
541
Em seu estudo pioneiro, Deivison Campos (2006) destacou sobre o Grupo Palmares:
“ao afirmar-se e organizar-se como grupo étnico, adotam uma postura e um discurso subversivo
que coloca em cheque conceitos estruturantes da sociedade brasileira como democracia racial,
identidade e cultura nacional [...] enfrentaram a ditadura ao organizarem-se como movimento
contestador [...] (CAMPOS, 2006, p. 05).
O Grupo Palmares tinha como proposta social e cultural a valorização do dia 20 de
novembro, data da morte de Zumbi dos Quilombos dos Palmares (1695), como principal
referência para os negros sul-rio-grandenses em contraponto às comemorações do dia 13 de
maio (1888), dia oficial da abolição da escravidão no Brasil. Antônio Carlos Cortês, um dos
fundadores do Grupo, em recente artigo, intitulado Os esquecidos do 20 de novembro, dia da
consciência negra (2020), destacou a origem das ideias dos jovens intelectuais negros em
propor um novo referencial simbólico à data da abolição. Segundo Côrtes “para a comunidade
afrodescendente, o 20 de Novembro era data que melhor representava a história real dos negros
brasileiros. Estes jovens, fundadores ajudaram a instituir o Dia da Consciência Negra”
(CORTÊS, OS ESQUECIDOS, 2020, sp).
Para o debate da ideia da história real e dos problemas enfrentados pelas populações
negras, além do deslocamento das comemorações das datas — considerado, nesta análise, como
uma operação decolonial — existe o aspecto da reprodução da linguagem e da cultura no
cotidiano, além da discriminação racial, que são situações que devem ser refletidas, como o
observado nas escritas de Antônio Carlos Cortês (2020).
Por meio de sua trajetória de vida, um dos fundadores do grupo nos traz as
considerações da história oficial, o que era entendido por real, na sua concepção, e como a
data da abolição era comemorada e ensinada nas escolas.
Sobre a história oficial e a real, Cortês explica que “Foi durante as discussões do grupo,
que descobri o livro Quilombo dos Palmares, de Edison Carneiro. Após estudar junto a outras
obras o movimento decidiu pelo 20 de Novembro, dia da morte de Zumbi dos Palmares
(CORTÊS, OS ESQUECIDOS..., 2020, sp)”.
Compreende-se que, para Cortês, existiam outras possibilidades que poderiam ser
representadas na narrativa histórica, para além da data elaborada pelo Estado brasileiro, que
rememorava a libertação dos escravizados a partir da assinatura da Lei Áurea pelas mãos da
Princesa Isabel. E esse contraponto, identificado como real, era fundamentado em pesquisas
542
264
Edison Carneiro. Carneiro nasceu em Salvador em 1912 e faleceu na cidade do Rio de Janeiro no ano de 1972.
Foi o pioneiro nas pesquisas sobre o Quilombos dos Palmares, tendo publicado o livro: O Quilombo dos Palmares.
Editora Brasiliense: São Paulo, 1947, com nova edição em 1958.
543
265
Aqui faço referência a Deivison Campos em sua pesquisa, que informa: Nesse período, “[...] têm-se dois
manifestos. Um redigido em 1972 e publicado em Zero Hora (REVISTA ZH, 1972: 05), em um caderno especial
sobre Zumbi e os Palmares, e o outro em 1974, veiculado no Jornal do Brasil.” (GARCIA, 1974, s.p. Apud
CAMPOS, 2006: 58-59).
266
Em virtude da pandemia do coronavírus, a entrevista foi realizada por e-mail.
544
Considerações finais
A modernidade/colonialidade legou às populações afrodescendentes estereótipos que,
mesmo após a abolição, insistiam em manter sua cultura e sua história — sob a régua da cultura
ocidental — como inferior. A partir de uma hierarquia construída por meio da linguagem, e que
encontrava eco na realidade, essas populações passaram a elaborar ações práticas como
alternativa com vistas a transformar o seu cotidiano de exclusão.
Os afrodescendentes, em Porto Alegre, resistiram à colonialidade de maneira
estratégica, participando de associações, como redatores da imprensa, atuando em ambientes
intelectuais e socioculturais, e criando seus próprios espaços, jornais e associações.
Assim, difundiram suas ideias, apresentando alternativas à sobrevivência e,
posteriormente, ao reconhecimento de sua identidade assertiva. Desde as demandas por locais
para que fossem dignamente enterrados, como a SBFA propôs desde o seu início (1872), até a
ressignificação da data alusiva a libertação dos escravizados, formulada pelo Grupo Palmares
(1971), as propostas intercalavam demandas de acesso à educação e ao combate ao racismo.
Em suas experiências e ações, a partir da década de 1970, são acionadas as africanidades
brasileiras (escolas de samba, culinária africana, poesia negra etc.) como resistências à
colonialidade. Influenciando epistemologias, a cultura e a política. Inspirando saberes em
espaços acadêmicos, escolares e juridicos de reconhecimento dos sujeitos e de direitos diante
da secular violência imposta “do conhecimento e do mito da objetividade”, como aduz Grada
Kilomba (2019, p. 52).
Referências
BHABHA, Homi. O local da Cultura. Editora UFMG: Belo Horizonte, 2007.
CAMPOS, Deivison Moacir Cezar. O Grupo Palmares (1971-1978): Um movimento negro
de subversão e resistência pela construção de um novo espaço social e simbólico. Dissertação
(Mestrado em História). PPGH-PUCRS, Porto Alegre, 2006.
CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares. São Paulo: Brasiliense, 1958.
CARNEIRO, Sueli. A Construção do Outro como Não-ser como fundamento do Ser. São
Paulo: FUESP, 2005.
CORTÊS, Antônio Carlos. Entrevista concedida a Arilson dos Santos Gomes. Correio
eletrônico, Porto Alegre, 2020.
CORTÊS, Antônio Carlos. Os esquecidos do 20 de novembro dia da consciência negra.
Jornal do Comércio. Porto Alegre, 2020. Disponível em:
https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/opiniao/2020/11/767096-os-esquecidos-do-20-
de-novembro-dia-da-consciencia-negra.html. Acesso em: 24 de nov. 2020.
545
Introdução
Localizada no município de Campos dos Goytacazes, interior do Rio de Janeiro, a Usina
de Cambahyba268 teve um papel de destaque no cenário econômico da região, tendo sido uma
das principais entre meados do século XX. Essa importância ultrapassa os limites do
econômico, traduzindo-se também em influência política, fenômeno que faz parte da formação
da cidade, ligada desde o início ao açúcar. Podemos destacar a grande importância da indústria
açucareira no desenvolvimento econômico ao observar, por exemplo, que Campos foi, graças
a ela, uma das pioneiras na imprensa no Brasil, além de ser a primeira cidade no país a contar
com energia elétrica.
O controle político por parte dos que controlavam a atividade do açúcar já se mostrava
presença constante nas várias fases da economia açucareira e, nesse desenvolvimento, a elite
econômica se torna também a elite política, e se confunde com ela, numa rede de influências
que está relacionada à organização do próprio território industrial, que Pereira Pinto (1995)
classifica como “usina ilha”: os trabalhadores moravam em casas ao redor da usina, e que eram
cedidas a eles pelos proprietários, e acabava por se formar toda uma organização cotidiana no
local: no terreno da usina se construíam igreja, mercado, escola, hospital, toda uma estrutura
que tornava a ida ao centro da cidade, por exemplo, quase que desnecessária.
Também uma relação paternalista em relação aos usineiros se montou por conta disso:
“a usina era o centro em torno do qual giram o trabalho, a família, o progresso, o futuro. O
usineiro era o grande ‘patrão’, respeitado por todos e de quem todos dependiam.” (PINTO,
1995, p. 203) Por isso, importa também o conceito de “usina domínio”, que representa essa
relação de poder entre patrão e empregado baseada nessas ilhas e que se aproxima muito de
uma relação clientelista. Essa organização espacial cria uma relação entre o trabalhador e o
patrão que vai além do vínculo empregatício: o usineiro era o homem que dava ao trabalhador
a casa em que sua família vivia, a educação de seus filhos, seus serviços hospitalares e mesmo
espaços de lazer tinham lugar dentro dessas terras.
Localizada em Martins Lage, a Usina de Cambahyba foi inaugurada em princípios do
século XX e era administrada pela empresa Augusto Ramos & Co. Heli Ribeiro Gomes adquire
267
Bacharel em História pela Universidade Federal Fluminense. Desenvolve atualmente pesquisa no Laboratório
de História Regional e Patrimônio (LAHIRP) da UFF-PUCG. Contato: [email protected].
268
Optamos por utilizar a grafia antiga da palavra, porém é mais comum vê-la escrita na grafia atual: Cambaíba.
548
a propriedade nos anos 1960, momento em que a produção alavanca exponencialmente graças
a reformas empreendidas com auxílio de empréstimos do governo federal (empréstimo esse que
contribuiu em grande parte para sua posterior falência) (MESQUITA, 2012, p. 86). A influência
do usineiro na política local cresceu muito a partir daí. Heli Ribeiro Gomes foi deputado federal
entre 1959 e 1967 pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), além de ter sido vice-governador
do Estado do Rio de Janeiro, e se filia à Aliança Renovadora Nacional (Arena) quando do início
do regime militar. Essa influência tem importância na discussão acerca das disputas pela
memória que veremos a seguir.
Após a declaração de improdutividade das terras da usina, elas foram postas como
passíveis de desapropriação para fins de reforma agrária pelo Instituto Nacional de Colonização
e Reforma Agrária (INCRA), porém apenas em 2021, após muita pressão do Movimento de
Trabalhadores rurais Sem Terra (MST), a desapropriação foi efetivada269. A primeira ocupação
do MST nas terras de Cambahyba foi feita em 2000, com o acampamento Oziel Gomes, porém,
em 2006 as famílias foram violentamente expulsas do território, por decisão da Justiça Federal
de Campos. Mais de 100 famílias viviam nessas terras na época, e algumas delas voltaram na
organização da reocupação em 2012.
Nos propomos, neste trabalho, a discutir o caráter de lugar de memória da Usina de
Cambahyba, contrapondo suas múltiplas faces: patrimônio agroindustrial da cidade, espaço que
guarda a memória de vítimas da ditadura militar e, após anos de ocupação, a memória da luta
dos trabalhadores pela democratização terra e pela reforma agrária. Destacamos, ainda, a
dificuldade observada em se reconhecer e preservar os lugares que guardam a memória da
repressão no Brasil, ao contrário do observado, por exemplo, na Argentina e em outros países
da América Latina, cujas políticas de memória evocaram um caráter pedagógico pós transição
política. No Brasil, as estratégias de transição traduziram a intenção do esquecimento, e não da
memória.
1 A publicação do livro “Memórias de uma Guerra Suja” e os impactos na memória da
usina
Publicado em 2012, livro Memórias de uma Guerra Suja agregou um novo significado
à Usina de Cambahyba. Organizado pelos jornalistas Marcelo Netto e Rogério Medeiros, o livro
reúne o depoimento do pastor Claudio Guerra, ex-delegado do DOPS, sobre todos os crimes
políticos em que esteve envolvido durante a ditadura militar, revelando informações
269
Atualmente, o MST mantém nova ocupação nas terras da usina, com o acampamento Cícero Guedes. Acerca
da desapropriação, ver: https://www.brasildefato.com.br/2021/06/03/rj-justica-destina-a-reforma-agraria-usina-
onde-corpos-foram-incinerados-na-ditadura. Acesso em: 27 de jul. 2021.
549
importantes sobre episódios como a chacina da Lapa, que resultou na morte de três dirigentes
do Partido Comunista do Brasil (Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Batista Franco
Drummond), o episódio da bomba do Riocentro, uma série de assassinatos e desaparecimentos
(incluindo o do delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury), além de locais utilizados para
tortura e ocultação de cadáveres, dentre os quais a utilização dos fornos da Usina de Cambahyba
para queimar os corpos de vítimas - a maior parte trazidas da Casa da Morte de Petrópolis -,
uma das informações de maior impacto dentro dos testemunhos de Guerra.
Segundo o ex-delegado, em fins de 1973 as opções utilizadas pelo governo para
ocultação de cadáveres (valas rasas, jogar ao mar, entre outras) estavam “manjadas” – palavra
de Guerra – e vinham perdendo a eficácia, além do que as pressões políticas sobre o governo
vinham se intensificando, especialmente a partir do caso de Vladmir Herzog270. A influência de
Guerra sobre diversos donos de usinas no interior advinha do auxílio no contrabando de armas,
facilitado pelo cargo que exercia na polícia, e que eles necessitavam para proteger suas
propriedades, no momento em que estavam acontecendo diversos conflitos no campo, reforma
agrária e desapropriações de terra (GUERRA; NETTO; MEDEIROS, 2012, p. 51).
A escolha pelos fornos da Usina de Cambahyba se motivou por dois pontos: o primeiro,
a amizade e confiança entre o delegado e Heli. O segundo, o fato de ser o único complexo
industrial da região que pertencia a uma única família, enquanto as outras usinas eram dirigidas
por mais de um sócio, então as chances de as informações vazarem era muito pequena. Segundo
ele narra, além dele e da família, apenas duas outras pessoas estavam envolvidas no processo
de queima dos corpos: o gerente, Zé Crente, que pilotava o forno, e Vavá, outro funcionário.
No total, doze militantes tiveram seus corpos levados para Cambahyba: Luís Ignácio
Maranhão Filho (jornalista - membro do PCB), Ana Rosa Kucinski Silva (professora
universitária - Aliança Libertadora Nacional), João Massena Melo (ex-vereador do então DF -
PCB), Armando Teixeira Fructuoso (operário - PCB), David Capistrano da Costa (militar -
PCB), Eduardo Collier Filho (estudante - Ação Popular Marxista-Leninista), Fernando Augusto
de Santa Cruz Oliveira (estudante - Ação Popular), Joaquim Pires Cerveira (líder da Frente de
Libertação Nacional), João Batista Rita (estudante - Vanguarda Popular Revolucionária), José
Roman (metalúrgico - dirigente do PCB), Thomaz Antônio Silva Meirelles Netto (jornalista -
Ação Libertadora Nacional) e Wilson Silva (analista de sistemas - Ação Libertadora Nacional).
270
Vladimir Herzog era diretor de jornalismo da TV Cultura, e foi morto em decorrência de torturas enquanto
esteve detido no DOI-CODI, em 1975. A grande repercussão do caso deveu-se ao fato de sua morte ter sido
noticiada como suicídio, mas a foto apresentada do jornalista preso à janela pelo cinto, com os pés no chão,
desmentiu por si só a versão oficial. Por isso, as ondas de protesto contra a Ditadura Militar se intensificaram. a
partir da morte de Herzog.
550
271
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LtBJrlFhtiU. Acesso em: 12 de nov. 2020.
272
Cícero Guedes dos Santos foi assassinado em 25 de janeiro de 2013. Os acampados nas terras da usina recebiam
ameaças constantes desde o início do acampamento. Disponível em: http://g1.globo.com/rj/serra-lagos-
norte/noticia/2013/01/lider-do-mst-e-encontrado-morto-em-campos-dos-goytacazes-rj.html Acesso em: 27 de jun.
2021.
551
273
Trecho retirado do documentário Forró em Cambahyba, entrevista concedida a Vitor Menezes, 2013.
55min16seg. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LtBJrlFhtiU&t=1s Acesso em: 14 de jul. 2021.
552
Além disso, a imprensa local seguiu linhas muito parecidas ao noticiar o caso em suas
primeiras investigações: em reportagem publicada na Folha Blogs274, em maio de 2012, Esdras
Pereira se dedicou a questionar a legitimidade desses depoimentos, onde aparecem indagações
como “paranoia delirante ou marketing de vendas?”, e diz que as declarações dessa “suposta”
incineração haviam caído na cidade como uma bomba. Destacamos então a constante lembrança
da imagem construída de Heli, além do fato de “não poder se defender”, e de que o testemunho
de Guerra não poderia ser tomado como verdade dado o seu passado, por ter participado das
irregularidades do regime, além de ter cometido outros crimes, fora os a mando da ditadura
(PEREIRA, 2012).
A família do usineiro entrou, ainda em 2012, com uma medida cautelar contra a editora
Topbooks, responsável pela publicação, pedindo a retirada de todos os exemplares de
circulação, além da busca e apreensão dos mesmos, e foi representada por Jorge Lyzandro de
Albernaz Gomes, advogado e filho de Heli, nas ações contra a editora e nos pedidos de
investigações sobre o caso junto ao MPF, além do pedido de reparação em relação à família,
atingida moralmente pelas acusações (PEREIRA, 2012).
Em fevereiro de 2020, uma nova perícia foi realizada pela Comissão Especial Sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) na usina, acompanhada por Marcus Vinícius
Carvalho, presidente da CEMDP, e um perito do Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto. Uma
perícia no local já havia sido realizada pelo MPF em 2014, na qual foi constatado que o tamanho
dos fornos era suficiente para que coubessem corpos humanos, ao contrário do que afirmavam
os filhos do usineiro. Essa perícia contou com a participação do próprio Cláudio Guerra. O
inquérito foi concluído pelo MPF no ano anterior, em 26 de julho de 2019, e foram ouvidas 20
pessoas, mas seus resultados ainda estão sendo mantidos sob sigilo (SALES, 2020).
O caso de Cambahyba voltou ao noticiário quando das alegações do presidente Jair
Bolsonaro, em julho de 2019 ao presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, de que ele poderia dizer
o que havia acontecido com o pai deste último. Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira foi um
dos militantes cujo corpo foi levado, de acordo com o depoimento de Guerra, para os fornos da
usina. Bolsonaro afirmou que o estudante teria sido morto por seu próprio grupo. Segundo o
relatório final da CNV, Santa Cruz foi preso em 23 de fevereiro de 1974, em Copacabana, junto
com Eduardo Collier, e dado como desaparecido a partir de então. À época do relatório,
trabalhava-se com a possibilidade de esses corpos terem sido enterrados na Vala de Perus, em
São Paulo.
274
Seguimento da revista Folha em que os colunistas escrevem com maior liberdade de publicação. O autor é
repórter da Rede Globo.
553
275
A terceira ocupação aconteceu após a desapropriação, em 2021, e mantém atividade até o momento de
publicação deste artigo.
276
Forró em Cambaíba. Op. cit. 13min59seg.
554
Considerações finais
O complexo industrial Cambahyba sobrepõe diversos “motivos” de memória que vão
muito além de sua antiga importância econômica, perpassando grupos sociais diversos. Na
sociedade campista de modo geral, a influência da economia açucareira se destaca na política,
através do coronelismo presente nas relações entre trabalhador e patrão, como demonstrado
anteriormente. Em relação aos antigos trabalhadores da Usina, espaços de memória construídos
em homenagem a membros da família corroboram com a visão que apresentamos dessa política.
277
Forró em Cambaíba. Op. cit. 31min56seg.
555
Agora, duas novas percepções entram na disputa de memórias relacionadas ao local: a memória
da repressão do Estado durante a ditadura, e a luta pela democratização da terra.
Nosso objetivo foi sobrepor essas narrativas conflitantes acerca de um mesmo local para
discutir a aplicação do conceito de lugar de memória sobre ele. A história que se perpetuou, e
a imagem que se construiu da Usina de Cambahyba, evocam um passado latifundiário e de
grandes avanços econômicos para a cidade e mesmo para os trabalhadores, mas silencia, por
exemplo, os vários processos trabalhistas que contribuíram para o fim das suas atividades, além
da exploração do trabalho por meio do controle da terra. Dessa forma, enquanto a narrativa
oficial carrega os benefícios econômicos, a influência social e o apoio garantido pela política
coronelista, há uma outra narrativa silenciada, tanto em Cambahyba como em outras usinas da
região. Somado a isso, há a disputa pela terra que se inicia em 2000, com o MST pela primeira
vez reivindicando o cumprimento de uma medida já aprovada pelo INCRA.
Com base na análise dos documentos, jornais, discursos e rememorações que buscamos
até aqui, concluímos que o Complexo Industrial de Cambahyba se configura como um lugar de
memórias múltiplas, isto é, ele abriga significados diferentes para cada grupo que se relaciona
com esse espaço, e diferentes sentidos foram sendo atribuídos a ele: a memória do auge de
produção açucareira do século XX, que se mostra em homenagens feitas à família proprietária,
no discurso saudosista por parte de antigos trabalhadores, e mesmo na influência política que
seus membros ainda exercem; a memória política associada à ditadura militar, evocada por
movimentos sociais, movimentos de luta por verdade, memória e justiça, e estudantil; e aquelas
ligadas ao MST, que, ao mesmo tempo em que reivindica essa memória política, em seus
discursos, em sua homenagem, e na nomeação do acampamento, também constrói sobre ele sua
luta: a luta pela terra, pela desapropriação, contra o domínio do latifúndio e pela reforma agrária.
Referências
ARNS, Paulo Evaristo. Brasil Nunca Mais. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1998.
BALLOUSIER, Anna Virginia. Hoje pastor, ex-delegado do Dops vira réu acusado de
queimar corpos na ditadura. Folha, Rio de Janeiro, 24 de out. 2019. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/hoje-pastor-ex-delegado-do-dops-vira-reu-
acusado-de-queimar-corpos-na-ditadura.shtml. Acesso em: 18 de jun. 2021.
BENJAMIN, Walter. As teses sobre o conceito de História. In: Obras Escolhidas, Vol. 1, p.
222-232. São Paulo: Brasiliense, 1985.
BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório. Brasília, CNV, 2014. (Relatório da
Comissão Nacional da Verdade, v. 1). Disponível em:
http://www.cnv.gov.br/images/relatorio_final/Relatorio_Final_CNV_Volume_I_Tomo_I.pdf.
Acesso em: 12 jun. 2021.
556
PEREIRA, Esdras. Sem provas, ex-delegado fala em dez corpos incinerados na Usina
Cambahyba. Folha 1, Campos dos Goytacazes, 07 de mai. de 2012. Disponível em:
https://www.folha1.com.br/_conteudo/2012/05/blogs/esdras/178160-sem-provas-ex-delegado-
fala-em-dezcorpos-incinerados-na-usina-cambahyba.html. Acesso em: 17 de jul. de 2021.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. RJ, vol. 2, n.3,
1989.
PINTO, Jorge Renato Pereira. Um pedaço de terra chamado Campos: Sua geografia e seu
progresso. 2. ed., Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, 2006.
RODRIGUES, Igor Paolo Ribeiro Dias. Território e poder: as elites e a organização do
território em Campos dos Goytacazes (RJ). Dissertação (mestrado em geografia) - Programa
de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense. Campos dos
Goytacazes, 2016.
RICKLY, Aline. Ex-delegado vai responder por ocultação e destruição de corpos na Usina de
Cambaíba na ditadura. G1, Campos dos Goytacazes, 24 de out. de 2019. Disponível em:
https://g1.globo.com/rj/nortefluminense/noticia/2019/10/24/ex-delegado-vai-responder-por-
ocultacao-e-destruicao-de-corpos-na-usina-decambaiba-na-ditadura.ghtml. Acesso em: 18 de
jun. de 2021.
SALES, Aldir. Nova perícia na Usina Cambaíba. Folha 1, Campos dos Goytacazes, 17 de
fev. 2020. Disponível em: http://www.folha1.com.br/_conteudo/2020/02/politica/1258038-
nova-pericia-na-usina-cambaiba.html. Acesso em: 18 de nov. 2020.
SILVA, Camilla. Acusado de assassinar Cícero Guedes é absolvido. Folha 1, Campos dos
Goytacazes, 07/11/2019. Disponível em:
https://www.folha1.com.br/_conteudo/2019/11/geral/1254606-acusado-de-assassinar-cicero-
guedes-e-absolvido.html. Acesso em: 04 de jul. 2021.
TELES, Janaína de Almeida. A constituição das memórias sobre a repressão da ditadura: o
projeto Brasil Nunca Mais e a abertura da vala de Perus. Porto Alegre: Revista Anos 90, v.
19, n. 35, p. 261-298, jul. 2012.
558
Introdução
Nos últimos anos, a crítica sociopolítica tem embalado os desfiles da G.R.E.S. Estação
Primeira de Mangueira que, em 2019, foi campeã do Grupo Especial das escolas de samba do Rio de
Janeiro, com o samba-enredo “História para ninar gente grande”. Naquele ano, a trama do cortejo
da agremiação criticava o modelo de ensino que privilegia a história “oficial” e sua narrativa sob a
perspectiva dos heróis nacionais, silenciando a história e a cultura afro-brasileira e indígena. Neste
sentido, o samba-enredo da Mangueira buscou visibilizar o protagonismo da população afro-indígena
na história do Brasil, bem como denunciar alguns fatos históricos, de guerras, massacres, genocídios
e violências pelo qual estas populações, historicamente marginalizadas, foram submetidas em nosso
país.
No entanto, este não foi o primeiro e, provavelmente, não será o último samba-enredo que
reivindica as pautas destas populações na “Marquês de Sapucaí”, haja vista que, ao longo da história
do carnaval carioca, diversas escolas de samba abordaram as pautas africanas, afro-brasileiras e
indígenas em seus desfiles. Dentre estas pautas, temáticas como a “escravidão africana no Brasil”,
bem como, a “abolição da escravidão” foram objetos de críticas pelas agremiações carnavalescas.
Seguindo esta perspectiva, esta proposição de reflexão apresenta resultados da análise de
enredos e sambas-enredos, das escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro, entre os anos
de 1988 e 2020, que tiveram por temática a abolição da escravidão, no Brasil. Neste sentido, a partir
da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2002) buscou-se compreender como a temática foi abordada nas
narrativas dos sambas-enredos e a possibilidade de se trabalhar com a abolição, a partir dos diálogos
propostos pelas escolas de samba. Sendo assim, o objetivo desta análise consiste em apresentar a
utilização dos sambas-enredos como um recurso didático para o ensino de História.
278
Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e professora do
Instituto de Ciências Humanas e da Informação da Universidade Federal do Rio Grande (ICHI-FURG). Contato:
[email protected]
279
Mestrando em História (PPGH/FURG). Bacharel em História (FURG). Contato: [email protected]
559
Assim, todo o processo criativo das escolas de samba converge para o desfile carnavalesco,
sendo este o ápice da celebração, que marca a passagem do “tempo ritual” do espetáculo. A harmonia
de um desfile representa, portanto, a dramatização do enredo, numa linguagem plástica, sincronizada
à linguagem rítmica do samba-enredo.
Desta forma, o desfile das escolas de samba do carnaval carioca assume, em última instância,
uma dimensão pedagógica, que se utiliza de uma linguagem estética, visual, poética e rítmica, para
narrar determinado tema.
Assim, os enredos e sambas-enredo apresentam-se como uma narrativa acerca de um tema
específico, os quais propõem uma análise crítica sobre este, voltados a um público específico, seja os
espectadores ao longo da Marquês da Sapucaí, ou os telespectadores, através da transmissão do
desfile pelas emissoras de televisão, narrado por um apresentador. Neste prisma, torna-se imensurável
o alcance de tal diálogo, tendo em vista que a transmissão televisiva ocorre em nível nacional e, até
mesmo, internacional, através dos canais por assinatura.
Outro aspecto importante de ser destacado é o papel da internet que, nos últimos anos, permite
a transmissão simultânea do desfile. Além disso, a Rede Mundial de Computadores, centraliza grande
parte do acervo histórico dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, seja por meio de sites
especializados na temática carnavalesca, como as páginas virtuais das próprias agremiações, ou
páginas de notícias e “redes sociais”, bem como institucionais, que permitem o debate simultâneo,
entre espectadores, acerca das narrativas propostas pelos carnavalescos.
560
Nesta direção, existe uma dimensão pedagógica na elaboração dos enredos e sambas-enredos,
possível de serem utilizadas como recurso didático para o ensino de História, sobretudo, no ensino de
História e Cultura afro-brasileira. Desta forma, apresenta-se um convite à reflexão acerca do uso dos
enredos e sambas-enredos como um recurso didático no ensino de História.
2 “Não veio do céu nem das mãos de Isabel”: o ensino de história da abolição a partir de sambas-
enredos
2.1 “Kizomba, a Festa da Raça” à “História para ninar gente grande”
No ano de 1988, que marcou o centenário da assinatura da “Lei Áurea”, as quatro agremiações
carnavalescas, que abordaram estas temáticas, foram: G.R.E.S. Tradição; G.R.E.S. Beija-flor de
Nilópolis; G.R.E.S. Vila Isabel; G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro. Na sequência, analisar-se-á cada
um dos enredos e/ou sambas enredos destas escolas, que também foram analisados por Maria Laura
Cavalcanti280.
As quatro escolas de samba discutiram a temática da liberdade, em perspectivas distintas,
como forma de homenagear o centenário da abolição e, apenas a Acadêmicos do Salgueiro, trouxe a
temática negra como parte fundamental da economia brasileira, nos séculos XVIII e XIX, na
exploração do ouro e o cultivo do café.
A primeira escola a “homenagear” o centenário da Abolição foi a G.R.E.S. Tradição, com o
enredo “O melhor da Raça, o Melhor do Carnaval”, com o objetivo de demonstrar que a mistura das
três raças – negra, indígena e branca – representava a “tradição da cor brasileira”. Desta forma, o
enredo apresentava os heróis da cultura indígena, que lutavam pela defesa territorial, e os heróis afro-
brasileiros, ícones da luta e resistência negra. Ao final, o enredo celebrava a igualdade e a integração
das três etnias, que somente aconteceria no carnaval, conforme o samba-enredo sintetiza: “vem, me
dê a mão, que na folia todo mundo é igual” (CAVALCANTI, 1999, p. 40).
A G.R.E.S. Beija-Flor de Nilópolis levou para a Marquês de Sapucaí o enredo: “Sou negro,
do Egito à Liberdade” e, nesta composição, a ideia consistia em “mostrar, apoiado na egiptologia
moderna, que o negro estava na origem de grandes civilizações históricas, mostrando a continuidade
entre a cultura egípcia, a africana e a nossa” (CAVALCANTI, 1999, p. 40). Entretanto, o samba-
enredo expressava:
Vem, amor, contar agora
Os cem anos da libertação
A história e a arte dos negros escravos
Que viveram em grande aflição
E mesmo lá no fundo das províncias do Sudão
Foram o braço forte da nação
Eu sou negro, e hoje enfrento a realidade
E abraçado à Beija-Flor, meu amor
Reclamo a verdadeira liberdade
Raiou o sol, e veio a lua
Eu sou negro, fui escravo
280
A autora participou da comissão julgadora do desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro, no ano de 1988,
avaliando o quesito enredo (CAVALCANTI, 1999, p. 40); portanto, a visão desta autora sobre o assunto é o nosso
ponto de partida.
562
Com semelhante perspectiva, de resistência negra e luta pelos direitos da população afro-
brasileira, está o tema da G.R.E.S. Vila Isabel que, no centenário da Abolição, levou para a Passarela
do Samba, o enredo do cantor e compositor Martinho da Vila: “Kizomba, a Festa da Raça”. Contudo,
a campeã do carnaval de 1988, apresentou um diferencial ao introduzir no enredo uma proposta
democrática, onde as diferenças eram confraternizadas no quilombo:
Valeu Zumbi!
O grito forte dos Palmares
281
https://www.vagalume.com.br/beija-flor-de-nilopolis/samba-enredo-1988.html (Acesso: 30/09/2017).
282
https://www.vagalume.com.br/mangueira/samba-enredo-1988.html (Acesso: 30/09/2017)
563
Segundo Cavalcanti (1999), diferentemente da escola de samba Tradição, que propunha uma
integração pautada na miscigenação, a Vila Isabel apresentou uma proposta de democracia, onde as
diferenças étnicas eram integradas e celebradas no quilombo, sendo a Kizomba, o “evento que
congraça gente de todas as raças numa mesma emoção”, onde a escola deslocava a perspectiva da
“democracia racial”:
Com a menção ao Apartheid sul-africano, enfatizava-se a luta por direitos humanos
que rompiam a barreira nacional. Os heróis mencionados eram radicais
representantes da intransigência para com o sistema escravista – Zumbi e uma nova
heroína, Anastácia (a anti Chica da Silva) aquela que não se deixou seduzir. Diante
da opressão, a escolha de ambos pela integridade, os conduziu à morte. Mas há um
espaço para negociação: “há o jongo, o batuque, a quizomba”. A ótica da negociação
que pode integrar era, contudo, radicalmente outra. Uma irrupção: “Nossa quizomba
é nossa constituição” (CAVALCANTI, 1999, p. 43).
Neste sentido, o enredo proposto pela Vila Isabel, em 1988, pode ser interpretado como uma
pequena ruptura sociológica, ao trazer para o centro do diálogo carnavalesco as pautas do Movimento
Negro brasileiro que, durante o processo de redemocratização do país, participou ativamente das
assembleias constituintes, na luta pelo reconhecimento da história e da cultura africana e afro-
283
https://www.letras.mus.br/martinho-da-vila/287389/ (Acesso: 16/10/2017).
564
284
Composição de Niltinho Tristeza, Preto Joia, Vicentinho e Jurandir. Disponível em:
https://www.imperatrizleopoldinense.com.br/memorias/decadas/ano-a-ano/anos/ano?decada=80&ano=1989
(acesso em 09/2021).
565
Brasil, reaparece, como tema central dos desfiles das escolas de samba do grupo especial do Rio de
Janeiro, somente nos anos de 2018 e 2019, com as escolas “Paraíso do Tuiuti” e “Estação Primeira
de Mangueira”, respectivamente.
Em 2018, a G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti, escola de samba com pouquíssima tradição nos
desfiles do grupo especial, apresentou-se com o enredo “Meu Deus, meu Deus! Está extinta a
escravidão?”, do carnavalesco Jack Vasconcelos, o qual rendeu a segunda colocação para a
agremiação, no resultado final da competição. O enredo apresenta a escravidão, desde o “Mundo
antigo”, até sua mais trágica representação, a escravização dos povos africanos, transmigrados da
África, para a construção do “Novo Mundo”. A crítica da narrativa reside no fato da falsa abolição
que acontecera, tardiamente, no Brasil, mas que não representou, de fato, a plena inserção da
população negra na sociedade brasileira. O Samba-enredo denunciava as consequências da “Lei
Áurea”, que aprisionou os afro-brasileiros no “cativeiro social”:
Ê calunga! Ê ê calunga!
Preto velho me contou, preto velho me contou
Onde mora a senhora liberdade
Não tem ferro, nem feitor
285
Samba-enredo Paraíso do Tuiuti, 2018: https://www.letras.mus.br/gres-paraiso-do-tuiuti/samba-enredo-2018-
meu-deus-meu-deus-esta-extinta-a-escravidao/ (acesso, set/2021).
286
Samba-enredo, Mangueira, em 2019: https://www.letras.mus.br/sambas/mangueira-2019/ (acesso, set/2021).
567
Este samba-enredo, devido à crítica política e social, teve forte repercussão na internet, antes
mesmo do desfile oficial das escolas de samba. Após o campeonato, quando o público, enfim, pode
visualizar a proposta da Estação Primeira de Mangueira, por meio da transmissão do desfile pela
televisão, o mesmo foi bastante elogiado. Nesta direção, o objetivo do carnavalesco Leandro Vieira,
de “lançar um olhar possível para a história do Brasil, numa narrativa baseada nas páginas ausentes
dos livros”287, foi contemplado, não apenas pela vitória do campeonato do carnaval, mas porque a
sociedade brasileira compreendeu a sua proposta.
Considerações finais
Todos os enredos e sambas analisados, trouxeram a temática do centenário da Abolição, sob
perspectivas distintas. Mas, igualmente apresentaram um posicionamento característico dos anos em
que foram produzidos/idealizados pelos carnavalescos, influenciados pelas pautas políticas e sociais
do processo de redemocratização do Brasil, tanto no ano da promulgação da Constituição Federal de
1988, ou no ano da primeira eleição presidencial, com voto direto, após a Ditadura Civil-Militar, em
1989. De igual maneira, os enredos da G.R.E.S. Paraíso do Tuiuti (2018) e o da G.R.E.S. Estação
Primeira de Mangueira (2019), apresentaram a temática da Abolição, contextualizando-a com as
pautas políticas e identitárias, características do século XXI.
Estas influências estão explícitas nas expressões: “Constituição”; “preconceito social”,
“preconceito racial”; “liberdade”; “igualdade”; “sociedade”; “lutar”; “democracia”; "apartheid";
“quilombo da favela”; “bondade cruel”; “cativeiro social”, “tem mais invasão do que descobrimento”;
“tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado”; “não veio do céu nem das mãos de Isabel”,
entre outras. Tais expressões, traçam diálogos importantes com o passado histórico dos afro-
brasileiros, e buscam demonstrar que as mazelas sociais contemporâneas estão diretamente
vinculadas a este passado, marcado pela escravização de seus antepassados. Nesta direção, acredita-
se que o uso dos enredos e sambas-enredos, aqui analisados, são importantes recursos didáticos para
o ensino de História.
Por fim, reitera-se que o uso de diferentes fontes na prática do ensino de História, exige dos
professores e pesquisadores, uma reflexão em torno dos limites e das possibilidades de
aprofundamento das temáticas discutidas, tendo em vista que ao “incorporar diferentes linguagens no
processo de ensino de história, reconhecemos não só a estreita ligação entre os saberes escolares e a
vida social, mas também a necessidade de (re)construirmos nosso conceito de ensino aprendizagem”
(FONSECA, 2006, p. 164). Assim, o reconhecimento da realidade social e histórica transforma o
287
Sinopse do enredo G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira: https://galeriadosamba.com.br/escolas-de-
samba/estacao-primeira-de-mangueira/2019/ (acesso, set/2021).
568
Referências
BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2002.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. São Paulo:
Cortez, 2004.
CAVALCANTI, Maria Laura V. C. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Editora da UFRJ, 1995.
CAVALCANTI, Maria Laura V. C. O rito e o tempo: ensaios sobre o Carnaval. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1999.
FONSECA, Selva Guimaraes. Didática e prática de ensino de História. 5ª ed. Campinas; São Paulo:
Papirus, 2006.
569
Introdução
Somos frutos de nossas experiências de vida, de nossas experiências territoriais
e identitárias, e estas experiências estão constituídas de relações com as pessoas e com os
lugares que habitamos. E assim, de geração em geração as experiências vão sendo
rememoradas e reconstituídas e vamos recriando e ressignificando as nossas formas de
convivência. Para o filósofo Jorge Larrosa Bondía (2002) experiência remete ao lugar de
encontro, de travessia, e acontecimento, ao lugar que nos forma e nos transforma, e que
somente o sujeito da experiência está, portanto, aberto à sua própria travessia, formação
e transformação. E assim é o fazer Quadrilha Junina, uma experiência com o fazer
artístico e com a cultura popular que nos forma e nos ajuda a fazer as travessias da vida.
No texto, tomaremos como referência o conceito cunhado por Silva R. (2008, p.8), que
por cultura popular “identifica o cultivo dos elementos, significados e valores comuns ao
povo”.
Desse modo, ouvir, conversar e escrever sobre histórias de mulheres fazedoras
de quadrilha junina no Ceará é revelar memórias de produção e os entremeios que
desvendam suas afirmações de gênero, suas histórias sociais e o fazer quadrilha junina
enquanto experiência artística. É desvendar histórias de mulheres e suas relações com o
cotidiano, perceber possíveis conexões sensíveis entre relações de gênero e sociabilidade
feminina. É mapear histórias através da tradição oral, descritas e documentadas a partir
de suas experiências e em consonância com as suas narrativas e tradições territoriais. É
tecer os fios que tramam entre o gênero, a arte do fazer quadrilha junina e a vida.
288
Professor do setor de estudos em Arte Educação, do Curso de Artes Visuais – Licenciatura da Faculdade
de Educação, Ciências e Letras de Iguatu – FECLI/UECE; Doutorando em Bens Culturais e Projetos Sociais
– FGV. E-mail: [email protected].
571
realização de diversos processos artísticos que partem dessas conexões, foi possível
perceber diversas instâncias, atravessamentos e sentidos das potencialidades dos
processos que revelam lugares que perpassam entre o fazer artístico e as histórias sociais
de seus fazedores. E com a experiência no campo da produção de cultura popular e
especificamente no campo da cultura junina pude perceber ainda que esses processos
acontecem entre lugares envoltos de fragilidades, sensibilidades e de produção de
conhecimento, e que estes são potentes territórios do experenciar e de se conhecer o
mundo e a si.
Apresentamos nesse texto, histórias que foram rememoradas e narradas por
mulheres que assumem o papel de liderança na experiência do fazer quadrilha junina,
memórias que nos levam a compreensão de que o indivíduo e a sociedade são esferas
inseparáveis da narrativa histórica, ao entender a realidade como um “[...] conjunto
mutável de interdependência entre os indivíduos na totalidade das suas ações e múltiplas
experiências de vida, em suas intricadas relações sociais” (MACHADO, 2010, p. 115).
Dessa forma, no âmbito dessa experiência, também pôde se afirmar o
pensamento de Bloch (2001) de que o objeto da história não é o passado, e sim o indivíduo
no tempo, e de que este simboliza e identifica o lugar e o tempo histórico de uma
coletividade. Pois também foi possível conectar as narrativas de celebração das festas
juninas e do fazer quadrilha junina em tempo presente, em interface com as narrativas das
histórias de vida destas mulheres. O que também dialoga com a perspectiva de
pensamento de Bourdieu (1996) ao propor que uma abordagem de narrativas que
analisem a ação e a representatividade do indivíduo na constituição, organização e
manutenção nos diferentes campos de atuação social.
Nessa perspectiva, Delgado relata que:
A memória, principal fonte dos depoimentos orais, é um cabedal infinito,
onde múltiplas variáveis – temporal, topográficas, individuais, coletivas –
dialogam entre si, muitas vezes revelando lembranças, algumas vezes, de
forma explícita, outras vezes de forma velada, chegando em alguns casos a
ocultá-las pela camada protetora que o próprio ser humano cria ao supor,
inconscientemente, que assim está se protegendo das dores, dos traumas e
das emoções que marcaram sua vida. (DELGADO, 2010, p. 16).
jovem e vinda do interior. Microfone desligado, com falas cortadas nas grandes
assembleias e muitas críticas e situações veladas.
Desse modo, apresentar as memórias de Rosemeire enquanto mulher fazedora
de quadrilha junina é apontar para perspectivas de se perceber modos de sentir e de se
afetar pelas formas de fazer das tradições da cultura popular e pelos estigmas impostos
por uma sociedade que não democratiza e não reconhece o papel da mulher numa
perspectiva de sociabilidade. Para além das suas possibilidades sensíveis e afetivas, as
memórias de Rosimeire nos revelam o entendimento de que precisamos afirmar e
legitimar o ritual de liderança do fazer quadrilha junina como uma manifestação
democrática e que incentive a subjetividade dos sujeitos do processo. E de forma que
essas experiências possam instigar processos de interlocuções e de debates acerca das
manifestações das tradições populares que são lideradas por mulheres, em específico das
festas juninas. E que essas práticas também se consolidem através dos princípios do
pertencimento, de valorização e preservação dessa cultura.
Filha do Poço da Draga289, Noélia ficou conhecida em sua comunidade por Tia
Nó. Para muito além do São João, Noélia dos Santos é uma ativista social, psicóloga por
formação, que há mais de vinte anos carrega nas costas o peso e a responsabilidade de ser
uma liderança comunitária em um território marcado por violência e desigualdade social.
Noélia entrou no São João por acaso, ainda na década de 1990, quando recebeu do
Francisco, dono da já extinta quadrilha “Vozes da Seca” o convite pra fazer parte do
casamento, naquele momento, mal sabia ela da história que estaria para construir ao
fundar e assumir a liderança do fazer quadrilha junina da também já extinta “Estação
Junina”. Noélia então começa a rememorar e nos contar das experiências com o seu grupo
e nos impactos que a quadrilha causava na comunidade:
289
O Poço da Draga está localizado na faixa litorânea do bairro Centro, em Fortaleza. Encontra-se entre o
prédio histórico da Caixa Cultural Fortaleza e os galpões da Indústria Naval do Ceará (INACE). Em seu
entorno, encontra-se também o Centro Cultural Dragão do Mar. A comunidade surge quando seus primeiros
habitantes, muitos deles migrantes, construíram suas casas no local buscando sobrevivência na pesca
artesanal. É um território marcado pela estigmatização como área de favela, fato esse se dá não só pelo
isolamento físico e visual, mas também pelos anos de exclusão de investimentos públicos diretamente na
comunidade (GONDIM, ALMEIDA 2014)
576
Era preciso ter muita maleabilidade para saber conversar com cada
brincante, pois eram cabeças e mentes bem diferentes, mas também
havia o momento que era preciso se impor, mostrar liderança e
comando do grupo. Sempre com muito respeito, apesar dos conflitos
a gente era muito unido na hora de produzir. Muitos dos brincantes
ainda me chamam de Tia e temos uma relação de amizade até hoje,
mesmo com o fim do grupo. (NOÉLIA, entrevista, 2021, 20 de abril)
Em um dos momentos mais emocionantes das narrativas rememodas, Noélia nos
conta dos contrastes e das distintas realidades sociais, que os jovens da comunidade
vivenciavam, por morarem numa região tão vulnerável, mas que também é um espaço
turístico e próximo a equipamentos culturais. É quando nos revela a sensação de dever
cumprido ao compartilhar que o que sentia mais orgulho era ver a sensação daqueles
meninos que antes assistiam os grandes festivais na Praia de Iracema e no Instituto
Cultural Dragão do Mar, e “que agora eles estavam ali, sendo protagonistas, em quadra,
eles que antes observavam as 'vitrines do São João', agora estavam ali mostrando as suas
artes” (NOÉLIA, 2021, entrevista, 20 de abril)
Sobre os desafios de ser mulher e estar à frente de uma quadrilha junina, de
assumir o papel de fazedora e liderança, Noélia relata que no começo de sua experiência
à frente do grupo sentiu algumas resistências, que não levavam muito a sério suas falas e
não davam muita credibilidade as suas opiniões. Conta que sempre encontrou alguma
barreira, mas afirma que nunca se deixou abater, que sempre procurava expor suas ideias,
e esse sentimento talvez viesse mesmo desse lugar de ser mulher assumir um papel de
liderança, e por não ter muitas mulheres nessa posição nas quadrilhas junina do Ceará.
Ainda nesse contexto, narrar a atuação de Noélia enquanto liderança do fazer
quadrilha junina em uma comunidade de periferia se potencializa se pensarmos que esta
577
ação tende a promover uma reflexão sobre o modo vida destes sujeitos e de suas
comunidades. E essa reflexão deve partir do pensamento de que as suas vozes e narrativas
devem ser escutadas e legitimadas. E esse debate deve ser compreendido a partir de uma
perspectiva que não desvincula a história da comunidade ao espaço geográfico em que
essas mulheres vivem e que praticam o seu fazer. Conhecer a história de Noélia diante da
prática do fazer junino também apontou para a necessidade de registros e de preservação
de estudos no campo da memória social, das relações de construção de identidade e da
preservação desta manifestação enquanto ritual da cultura popular desenvolvida por
mulheres em comunidades periféricas.
Considerações finais
Narrar e rememorar histórias de mulheres fazedoras de quadrilha junina na
perspectiva de liderança, como as compartilhadas por Rosemeire Furtado e Noélia Santos,
pode abrir possibilidades de novos aportes metodológicos no campo das políticas sociais
e da experiência com o fazer artístico no campo da cultura popular, de modo que essas
mulheres possam refletir sobre o fazer quadrilha junina enquanto prática de afirmação
social e política. É levantar a hipótese de compreender a mulher fazedora de quadrilha
junina como atuante no movimento junino do estado do Ceará, percebida como sujeito
histórico, capaz de transformar as condições sociais em que vive e de desconstruir
estereótipos reproduzidos para justificar sua exclusão no campo das sociabilidades.
Nesse sentido, as narrativas rememoradas por Rosemeire e Noélia nos levam
a afirmar que sujeitos, aparentemente anônimos à sociedade, podem possuir histórias de
vida significantes para compreensão de um determinado contexto, e estas não devem ser
desprezadas. E a partilha dessas narrativas também deve funcionar como um dispositivo
que possibilite maior visibilidade as vozes e as histórias dessas mulheres, pois estas
vivenciaram determinadas situações, fato ou conjunturas históricas, que ficam
expurgadas das versões historiográficas oficiais das celebrações das festas populares, em
específico das festas juninas e, tendem a ocupar espaços mínimos nas narrativas desta
manifestação, embora tenham participado ativamente do processo histórico.
Referências
ALBERTI, Verena. História dentro da história. In: PINSKY, C. B. (Org.). Fontes
históricas. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2006
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência.
Universidade de Barcelona, Espanha, 2002.
578
Introdução
Para compreender as práticas devocionais como elementos de instituição da Casa
do Divino como patrimônio cultural em Ponta Grossa (PR), faz-se necessário conhecer
um pouco de sua história. O culto ao Divino Espírito Santo na forma de festas, novenas,
orações, bingos, músicas, bailados, precatórios, promessas, partilha de alimentos e
barracas com comidas e bebidas teve origem a partir de uma promessa feita pela Rainha
D. Isabel de Aragão, no século XIII, diante de uma crise que Portugal passava (CORRÊA,
2012). No Brasil, a devoção foi introduzida no litoral dos atuais estados de Santa Catarina
e Rio Grande do Sul, por volta do século XVIII e “[...] gradativamente foi se propagando
por todo território nacional ganhando características singulares” (ROCHA, 2012, p. 13)
e denominações específicas.
Em Ponta Grossa, o culto teve incremento em 1882, quando D. Maria Selvarina
Julio Xavier encontrou em um olho d'água uma imagem do Espírito Santo. Segundo
matéria do jornal Diário dos Campos (1979), D. Maria sofria de problemas mentais e falta
de memória, tanto que, ao encontrar a imagem ela estava perdida andando sem destino
rumo à cidade de Castro, sem inclusive saber o motivo de sua saída de casa. Segundo o
relato, ao se deparar com o objeto, rezou e sentiu-se curada, recobrando a memória e
voltando para casa. A notícia de sua cura se espalhou e, a partir de então, passou a ser
conhecida na cidade como “Nhá Maria do Divino”.
É provável que, logo após Nhá Maria achar a imagem, recobrar a consciência,
retornar para casa e tornar essa história conhecida pela sociedade local, tenha despertado
o interesse de muitas pessoas em conhecer a representação milagrosa e até se tornarem
devotos desse Divino recém-encontrado. Na sequência Nhá Maria começou a recolher
quadros de diferentes santos. Do acúmulo desses objetos construiu em uma das salas da
sua casa um altar, que recebeu um ostensório onde fica exposta até hoje a imagem do
Divino (DIÁRIO DOS CAMPOS, 1979).
290
Doutora em Geografia pela UEPG, Mestre em História pela UFPR, Licenciada em História pela UEPG.
Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa, membro do
Grupo de Pesquisa CNPq Geografia e História: memória social e patrimônio cultural. Contato:
[email protected]
580
291
O ex-voto “trata-se de uma manifestação artístico-religiosa que se liga diretamente à arte religiosa e à
arte popular. As motivações do presente votivo são muitas: proteção contra catástrofes naturais, cura de
doenças, recuperação em virtude de sofrimentos amorosos, acidentes e dificuldades financeiras. [...]. Os
ex-votos são amplamente realizados até hoje, em todo o mundo, no Brasil, trata-se de uma tradição que
remonta ao século XVIII” (ENCICLOPÉDIA, 2017).
292
Vinculado à Fundação Municipal de Cultura, da Prefeitura Municipal de Ponta Grossa.
581
memória herdada ao ponto de tomarem forma de memória coletiva do grupo porque são
a sedimentação de sentidos e emoções.
Tais práticas só podem ser reconhecidas como fundamentais para a manutenção
da devoção na Casa do Divino porque possuem sentido e significado para aqueles que a
frequentam. “Transmitir uma memória e fazer viver, assim, uma identidade não consiste,
portanto, em apenas legar algo, e sim uma maneira de estar no mundo” (CANDAU, 2016,
p. 118), que se vincula ao lugar em que as práticas devocionais são realizadas. Essa
perspectiva aproxima-se do que a Declaração de Québec defende ao afirmar que “o
espírito do lugar oferece uma compreensão mais abrangente do caráter vivo e, ao mesmo
tempo, permanente do monumento” (ICOMOS, 2008, p. 2), de modo que a imbricação
da materialidade com a imaterialidade significa o entendimento do patrimônio como um
todo indivisível.
Para a definição de quais práticas de devoção são significativas para se pensar a
Casa do Divino como um patrimônio cultural, foi necessário acompanhar a realização de
todas as atividades, tanto no espaço da Casa, como fora dele. A partir da observação
participante e da elaboração do diário de campo é que tais ações começaram a aparecer,
ou seja, não se sabia que inexiste um modelo ideal de devoto que
realize/execute/viva/compartilhe todas as práticas. O que existe são muitos tipos de
devotos293 porque não há um formato padrão de devoção.
Algumas atividades foram observadas poucas vezes e realizadas por poucos
devotos. Para qualificar uma experiência religiosa realizada na Casa do Divino ou fora
dela como prática de devoção não se tomou por base a quantidade de devotos ou as vezes
realizadas e observadas, mas sua ocorrência por devotos distintos e seu reconhecimento
pela atual responsável pela Casa do Divino como uma ação que não contrariaria nenhum
preceito da devoção.
Segundo o que foi observado e dialogando com o posicionamento de Geertz
(2008), que defende ser necessário ao pesquisador identificar as estruturas significantes
produzidas, percebidas e interpretadas por aqueles que as criaram e as vivenciam como
293
Durante as observações participantes constatou-se que existem devotos que frequentam a Casa do Divino
apenas nas segundas-feiras para as novenas; outros além desse momento também a frequentam em distintos
dias da semana para fazer com mais tranquilidade suas orações pessoais, já que para as novenas o fluxo de
presentes varia entre trinta e noventa pessoas. Existem aqueles que só a visitam nos dias da Festa do Divino,
mas também há aqueles que realizam suas práticas de devoção somente aos sábados pela manhã, pois
trabalham durante a semana. Acreditar que diante dessa diversidade de possibilidades de contato com o
Divino resultaria numa única forma de exteriorização de fé por meio de poucas práticas de devoção é
inviável.
582
fundamental para uma análise cultural, é que serão apresentadas as atividades que são
realizadas pelos devotos da Casa do Divino. Primeiramente serão relatadas as ações que
significam a Casa como lugar de devoção, ou seja, aquelas que só ocorrem no imóvel. “A
essência do lugar é a de ser o centro das ações e das intenções, onde são experimentados
os eventos mais significativos de nossa existência” (HOLZER, 1998, p. 76).
Pensar a Casa do Divino por essas perspectivas é defender que as experiências
religiosas que ocorrem ali não apenas significam o imóvel quanto a própria devoção, ou
seja, por mais que existam devotos do Divino em outros espaços de Ponta Grossa sem
nenhuma vinculação com a Casa do Divino, assim como existem devotos em outras
cidades brasileiras e em outros países, algumas das atividades realizadas na Casa são
específicas dela, da devoção ao Divino que é vivenciada apenas naquele lugar. São as
experiências específicas que conectam o devoto com a Casa (lugar) e ao mesmo tempo
com a devoção ao Espírito Santo, comum a todo católico.
atualmente existem poucas peças guardadas desse material porque muitas foram
derretidas para fazer velas para queimar diante do altar.
Outra forma de ex-voto encontrado foram as fitas coloridas amarradas nas
Bandeiras do Divino. Diferentes pesquisadores mencionaram, em seus estudos sobre a
Festa do Divino, a presença da Bandeira sempre enfeitada com fitas coloridas amarradas
logo abaixo da representação da pomba no mastro. “No alto são colocadas fitas de várias
cores e tamanhos em pagamento de promessas” (ETZEL, 1995, p. 69). Muitas dessas fitas
amarradas carregam o pedido da bênção pretendida ou o agradecimento pelo dom
alcançado.
Deixar objetos em cera, preces escritas, quadros e estátuas, além de fitas coloridas
nas Bandeiras, não foram as únicas formas de presente votivo encontradas. As fotografias
também foram muito utilizadas como ex-votos desde o século XIX, tanto que resultaram
num acervo fotográfico composto por mais de 14 mil fotos. A maior parte das imagens
não possui nenhuma informação escrita quanto ao devoto, como sua identificação,
procedência, ano em que a foto foi tirada ou depositada no altar, assim como o intuito do
devoto em entregar o ex-voto.
Independente da lacuna de dados – além do conteúdo imagético, que se refere à
natureza não verbal das fotografias ofertadas – somente o fato de existir esse conjunto
documental até a atualidade representa o quanto a devoção ao Divino significava e
significa para aqueles que continuam depositando suas imagens ou de outras pessoas
rogando ou agradecendo bênçãos. Assim, esse conjunto documental pode ser
compreendido como fruto de um trabalho social de produção de sentido já que as fotos
representam a “interrupção do tempo” (KOSSOY, 2001, p. 44). Uma interrupção que se
materializa na foto, tornando esse tempo imóvel.
enquanto prática religiosa pode ser reconhecida como memória herdada que é transmitida
e praticada como patrimônio cultural de muitos católicos.
Na Casa do Divino não existe registro informando desde quando as crianças eram
trazidas por seus pais para serem batizadas diante do Divino, somente a referência de que
na década de 1950, era comum as mulheres darem à luz e após receberem alta do hospital
passarem na Casa do Divino com seus bebês recém-nascidos para serem batizados.
Não é feito nenhum tipo de registro sobre a ocorrência de apresentações ao Divino
pela responsável pela Casa, o que impossibilita saber a quantidade de apresentações
ocorrem anualmente. A primeira vez que essa prática devocional foi observada e
registrada no diário de campo da presente pesquisa foi em abril de 2015. Nesse momento,
o bebê recém-nascido estava acompanhado de seus pais, sua irmã, sua avó materna e
bisavó materna, ou seja, três gerações de devotos traziam a quarta geração da família para
ser apresentada ao Divino e introduzida nas práticas religiosas da devoção. Participantes
todos de um ritual em que a memória coletiva dos devotos era articulada com a memória
dos membros daquela família em especial.
2.3 Novenas
Em uma reportagem do jornal Diário dos Campos (1979) consta que dentre as
primeiras atividades religiosas a serem feitas na casa da Nhá Maria diante da imagem
achada, constavam as novenas. Essa é a única menção a esse tipo de prática devocional
antes que a atual coordenadora assumisse a responsabilidade pelas atividades religiosas e
retomasse a realização de novenas nos primeiros anos de 2000. O único período em que
não ocorrem novenas todas as segundas-feiras, às 15 horas, é quando se encerram as
atividades religiosas anuais da Casa poucos dias antes do Natal e o mês de janeiro de cada
ano. A primeira terça-feira de fevereiro é a data para o reinício das novenas que se mantêm
consecutivamente todas as semanas até o final do ano. A regularidade de realização
semanal se modifica apenas nos nove dias que antecedem a Festa do Divino. Durante esse
período todos os dias às 15 horas ocorrem novenas em preparação para o Pentecostes,
sendo o último desses nove dias o próprio domingo festivo.
As práticas devocionais apresentadas até este momento da pesquisa só ocorrem
na Casa do Divino, compreendida como sendo o centro de ações e intenções (HOLZER,
1998). No entanto, as novenas, além de serem realizadas nos cômodos do imóvel abertos
aos devotos, também ocorrem fora dele, ou seja, em residências de devotos ou outros
espaços.
585
para ocorrerem, por isso acontecem tanto à tarde como à noite, no decorrer de todo o ano.
Sua ocorrência atrela-se à disponibilidade dos Festeiros do Divino em comparecer, já que
muitos ainda trabalham.
O momento de oração inicia-se com a chegada dos Festeiros e da Bandeira do
Divino no local, onde estão sendo esperados no portão da propriedade por todos aqueles
que participarão da novena, o que inclui a família do devoto, parentes e vizinhos
convidados. Grande parte dos presentes não participa usualmente das novenas semanais
na Casa do Divino, e este é um dos motivos para a realização de novenas em residências
de devotos, ou seja, é um trabalho missionário que tem o intuito de divulgar a devoção ao
Divino e as atividades da Casa.
Após a entrada dos presentes iniciam-se as orações e cantos, igual à novena que é
feita na Casa do Divino. Ao término das preces, o proprietário ou alguém designado por
ele pega a Bandeira e passa por todos os cômodos para abençoar cada ambiente. Somente
após o momento em que todos os presentes tenham tocado, beijado ou se envolvido com
a Bandeira a novena termina e as músicas religiosas param de ser tocadas. Inicia-se então
a confraternização. O mesmo ambiente que minutos antes tinha velas acesas, vaso com
flores para o Divino e pessoas rezando/cantando transforma-se. A Bandeira é enrolada e
os objetos que até então tinham função religiosa são guardados. Uma farta mesa é
arrumada com doces, salgados e bebidas para que os Festeiros do Divino recobrem as
forças e retornem a essa residência futuramente.
Festeiros do Divino em sua residência, pois com a visita sua família e seu imóvel foram
abençoados.
Ao analisar a significação do imóvel Casa do Divino como lugar religioso para os
que a frequentam, em nenhum momento se desconsiderou que os devotos vivenciam sua
devoção também em outros espaços. Um desses espaços é a própria residência do devoto
ou o seu local de trabalho. Pela significação que seu proprietário lhe imputa, esses espaços
são lugares religiosos e merecedores de bênçãos, porque a capacidade de significar
pertence ao homem, enquanto ação livre do intelecto e produto da simbolização humana,
conectado às suas experiências religiosas.
Usualmente as saídas com a Bandeira que ocorrem fora do período que antecede
a Festa do Divino são solicitadas para abençoar residências, locais de trabalho e os
presentes nesses lugares, o que inclui moradores/trabalhadores e
parentes/vizinhos/amigos. A única diferença entre a saída com a Bandeira para abençoar
casas e empresa, e a que realiza uma novena é o tipo de oração realizada. A chegada,
entrada da Bandeira no imóvel, cantos, bênçãos de todos os cômodos e a oportunidade
dos presentes tocarem, beijarem ou se enrolarem na Bandeira é exatamente igual. O
oferecimento de farta mesa com doces, salgados e bebidas, ao término das orações, para
que os Festeiros tragam novamente a Bandeira do Divino a essa residência, também
ocorre.
Considerações finais
(Re)conhecer e preservar a materialidade e a imaterialidade de um bem enquanto
patrimônio cultural é compreender que as práticas sociais que lhe dão sentido se fundem
ao espaço onde se desenrolam. “O imaterial constrói o material e, ao mesmo tempo, o
material incorpora e exprime valores imateriais” (TOURGEON, 2014, p. 72). Assim, um
alimenta o outro, fazendo-se constitutivos.
O Decreto nº 3551 que instituiu o Registro de Bens Culturais de Natureza
Imaterial na esfera federal (BRASIL, 2000), pontua que a continuidade histórica é
elemento definidor para qualificar o registro ou não de um bem como patrimônio cultural
imaterial. “A continuidade histórica, tomada aqui no melhor sentido de tradição, isto é,
de práticas culturais que são constantemente reiteradas, transformadas e atualizadas,
mantendo para o grupo um vínculo do presente com seu passado” (MINISTÉRIO, 2006,
p. 26).
589
Sendo assim, as práticas devocionais que são realizadas na Casa do Divino e fora
dela, aqui entendidas como práticas patrimoniais, se enquadram no que a legislação
federal define como prioritário para o reconhecimento de um patrimônio cultural
imaterial, pois, se não surgiram em 1882, se consolidaram como um processo cultural
dinâmico, mantendo vivo o vínculo da devoção atual com seu passado e com o lugar.
Reconhecer oficialmente a materialidade da casa e não efetivamente a imaterialidade das
práticas devocionais como patrimônio cultural local é apartar aspectos inseparáveis.
Por esses motivos, estudar a Casa do Divino, sem se ater somente ao seu
reconhecimento como patrimônio cultural de Ponta Grossa pelo órgão municipal
competente para tal, mas aprofundar as discussões do que se entende por patrimônio
cultural, foi a proposta desta pesquisa. Para isso, o bem cultural foi compreendido além
da sua materialidade já protegida, ou seja, além do âmbito do patrimônio edificado
tombado. A pesquisa (re)conheceu a Casa do Divino a partir da vivência da devoção pelos
devotos naquele lugar. Um lugar sagrado, significado dessa maneira por seus devotos e
com o qual se identificam. Por se sentirem participativos de tudo o que ocorre na Casa do
Divino, os devotos a percebem como seu patrimônio, o que, por sua vez, é reconhecido
pela sociedade local como patrimônio cultural.
Referências
BRASIL. Decreto nº 3551, de 04 de agosto de 2000. Institui o Registro de Bens
Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o
Programa Nacional do Patrimônio Imaterial e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d3551.htm Acesso em: 26.out.2016.
CANDAU, J. Memória e identidade. São Paulo: Contexto, 2016, 219 p.
CASCUDO, L. C. Dicionário do folclore brasileiro. 9. ed. São Paulo: Global, 2000.
CORRÊA, L. N. Festa do Divino Espírito Santo: dos Açores ao Brasil, um estudo
comparativo. Tese (Doutorado em Antropologia de Ibero-América). Universidade de
Salamanca. Salamanca, 2012, 272 p. Disponível em:
http://www.youscribe.com/BookReader/Index/1792731?documentId=1770910 Acesso
em: 23.ago.2015.
DIÁRIO DOS CAMPOS. Redação. Divino de Ponta Grossa vai completar 100 anos.
Ponta Grossa, Diário dos Campos, p. 6-A, 28 jan. 1979. Acervo: Casa da Memória
Paraná.
ENCICLOPÉDIA Itaú cultural de arte e cultura brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural,
2017. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/ Acesso em: 15.set.2017.
ETZEL, E. Divino: simbolismo no folclore e na arte popular. São Paulo: Giordano; Rio
de Janeiro: Kosmos, 1995.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
590
1 Introdução
O texto aqui apresentado é fruto do projeto de pesquisa de mestrado titulado
“Manda Responsar”: O Responso enquanto Patrimônio Imaterial de Mostardas/RS”295,
em desenvolvimento no PPG em Memória Social e Patrimônio Cultural da UFPel.
Partimos, então, para uma breve contextualização da delimitação espacial e do objeto de
estudo.
Mostardas é um município do litoral gaúcho, situado entre o mar e a Laguna dos
Patos, e de acordo com o último censo (2010) possui 12.124 habitantes. Durante muitos
anos, esteve geograficamente isolado, o acesso se dava pela chamada “Estrada do
Inferno”, conhecida pela sua precariedade, que ligava Osório a São José do Norte. A
estrada era de terra, sendo muito difícil o deslocamento de veículos pequenos,
principalmente em dias de chuva, nos quais o barro vinha à tona. Acredito que tal
isolamento contribuiu para que se mantivessem preservadas muitas das tradições e
costumes locais, entre as quais está o “Responso”, objeto de pesquisa deste projeto.
Conforme consta no Dicionário Oxford Languages, “Responso” é definido como:
“oração que se dirige a Santo Antônio, para recuperar objetos desaparecidos”. Segundo
Moisés Espírito Santo (1990), Santo Antônio - de Lisboa, onde nasceu, ou de Pádua, onde
morreu - é um santo católico, conhecido por proteger tanto os comerciantes contra os
ladrões quanto os próprios ladrões, por proteger os criadores de animais e os animais e
por encontrar objetos perdidos, roubados ou esquecidos.
A oração do Responso pode ser realizada por qualquer pessoa, o interessante é o
fato de que há a oração do responso e a prática de “responsar”, duas coisas diferentes. A
prática demanda a existência da figura do “responsador”, que possui um “dom
divinatório” ou uma “visão”. Assim, é costume entre os moradores, quando perdem
alguma coisa ou animal, “mandar responsar”. Ou seja, uma pessoa que possui esse saber
ou dom, através da fé, intercede para que outra pessoa encontre um objeto perdido ou
esquecido, em grande parte das vezes consegue descrever com detalhes o local onde está
294
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultura da Universidade
Federal de Pelotas - UFPel, bacharela em História pela Universidade Federal do Rio Grande - FURG e
licencianda em História pela mesma universidade.
295
Orientado pelo Prof. Dr. Ronaldo Bernardino Colvero e co-orientado pela Profa. Dra. Olivia Nery.
592
tal objeto e identificar se for um caso de roubo, por exemplo. Nada é cobrado pelo
“responsador”, eles dizem que não se deve cobrar por exercer um dom.
Pensando no responso enquanto uma prática cultural, que também pode ser
compreendida enquanto um patrimônio imaterial a partir da ideia de Gonçalves (2009),
pois, patrimônio imaterial pode ser definido como aquele que visa “aspectos da vida
social e cultural”, foi identificado que, no ano de 2010, entrou em vigor a Lei nº 2.744
que institui como Patrimônio Cultural Imaterial do Município de Mostardas: as Cantorias
de Ternos de Reis, o Ensaio de Pagamento de Promessa, as Cavalhadas, a Festa do Divino
Espírito Santo, a Festa em louvor a São Luiz Rei de França, o Artesanato e o Culto às
Tradições Gaúchas. Assim, sendo o Responso uma prática tradicional no município e não
estando incluído na lei, a pesquisa busca responder a seguinte questão-problema: O
responso constitui uma prática cultural reconhecida/identificada como patrimônio
imaterial pela comunidade de Mostardas?
A partir dessa problemática central, o objetivo geral da pesquisa consiste em
investigar se o Responso é visto pela comunidade de Mostardas enquanto um patrimônio
cultural imaterial, além de constituir um registro da prática.
2 Conceitos fundamentais
2.1 Patrimônio Cultural e Imaterial
Visto que a problemática central desta pesquisa envolve a compreensão do
Responso como patrimônio cultural imaterial de Mostardas, os conceitos de patrimônio
cultural e imaterial são essenciais no seu desenvolvimento. Partimos da ideia de que
patrimônio cultural é “entendido como todo aquello que socialmente se considera digno
de conservación independientemene de sus interes utilitário” (PRATS, 2000, p. 115), ou
seja, tudo a que é atribuído valor, tornando-se digno de preservação. No Brasil, a ideia de
que patrimônio não se refere apenas ao material e edificado, mas também ao “produto da
alma popular, remonta aos anos 1930 e se encontrava no projeto que o poeta modernista
Mário de Andrade elaborou para o Serviço do Patrimônio Artístico Nacional, em 1936”
(SANT’ANNA, 2009, p. 54). Gonçalves (2009, p. 26) argumenta que patrimônio é “uma
categoria de pensamento extremamente importante para a vida social e mental de
qualquer coletividade humana” e aponta que o patrimônio imaterial ou intangível faz
oposição ao chamado “patrimônio de pedra e cal”.
Assim, o conceito de patrimônio abrange os bens materiais e imateriais, sendo que
patrimônio cultural imaterial ou intangível “designa as referências simbólicas dos
593
2.2 Memória
Falar de patrimônio, de oralidade e narrativas, é falar de memória. A narrativa
compartilhada pelos indivíduos faz parte de um exercício mnemônico importante na
construção identitária. Portanto, essa pesquisa estará baseada nos preceitos teóricos e
conceituais da Memória, um tema atravessado por diversas perspectivas disciplinares.
Partiremos da contribuição de Maurice Halbwachs, sociólogo responsável por inaugurar
o campo de estudos da Memória Social, pensando a memória enquanto fenômeno coletivo
dentro das ciências sociais. Halbwachs em “Los marcos sociales de la memória” diz que
“es en la sociedad donde normalmente el hombre adquiere sus recuerdos, es donde los
evoca, los reconoce y los localiza” (2004, p. 8). Assim, o sujeito não se lembra
594
individualmente, mas enquanto membro de um grupo, influenciado por ele. Para o autor,
as lembranças não são revividas tal como aconteceram no passado, e sim reconstruídas
no presente a partir do contexto em que o indivíduo está inserido, com ação direta dos
quadros sociais da memória. Esses quadros sociais são o espaço, o tempo e a linguagem.
Maurice Halbwachs não traz em sua obra o conceito fechado de memória coletiva, mas
Graeff (2018) enquanto seu leitor, a conceitua como sendo o conjunto de lembranças
individuais compassadas pelas representações coletivas (essas representações são os
quadros sociais).
As concepções de memória do antropólogo Joel Candau (2011) também serão
importantes nesta pesquisa. O autor define três manifestações da memória: a
protomemória memória propriamente dita e a metamemória. O conceito desta desta
última é o mais relevante no contexto da pesquisa, pois refere-se à construção da
identidade: no nível individual relaciona-se ao conhecimento que cada indivíduo possui
de sua própria memória e no nível coletivo é aquela que o grupo reconhece como uma
memória coletiva ou identitária, ou seja, quando afirmam que tal fato é parte da memória
local, regional ou nacional. A metamemória é a representação que o indivíduo, isolado ou
coletivamente, faz de si mesmo ou do grupo, é a reivindicação de uma memória.
Para Candau, a protomemória e a memória propriamente dita, pertencem à categoria
individual, não podendo ser compartilhadas. E a metamemória, enquanto representação
da memória pode ser compartilhada e assim, se referir à memória coletiva. Desse modo,
faz sua crítica à Halbwachs, que acredita que as memórias individuais atravessadas pelos
quadros sociais constituem a memória coletiva. O fato é que “a memória não se reduz ao
ato de recordar” (DELGADO, 2003, p. 17), essa faculdade carrega inúmeros significados
e: ultrapassa, inclusive, o tempo de vida individual. Através de histórias de famílias, das
crônicas que registraram o cotidiano, das tradições, das histórias contadas através de
gerações e das inúmeras formas de narrativas, constrói-se a memória de um tempo que
antecedeu ao da vida de uma pessoa (Ibidem, p. 19) Bosi (1987, p. 18) diz que “o
instrumento decisivamente socializador da memória é a linguagem” assim, as recordações
de cada indivíduo são externalizadas através das narrativas, que sob a forma de registros
orais ou escritos são responsáveis pelo movimento de contar e de traduzir em palavras as
reminiscências da memória e a consciência da memória no tempo (DELGADO, 2003).
595
3 Fontes e Metodologia
Pesquisar o “Responso” não seria possível senão, principalmente, através das fontes
orais. Por ser uma prática singular em seu modo de fazer, é necessário ouvir os detentores
desse saber ou dom, bem como daqueles por ele beneficiados. Assim, é a fala dos sujeitos
envolvidos que delineará os rumos da pesquisa. Raphael Samuel, em seu artigo “História
Local e História Oral” (1990, p. 231) diz que “ainda há certos tipos de pesquisa que
apenas podem ser realizados com a ajuda de uma testemunha viva e áreas completas da
vida nas quais suas credenciais estão acima de questionamento.” Acredito ser este o caso
nesta pesquisa.
Delgado (2003, p. 23) define a história oral como “uma metodologia primorosa
voltada à produção de narrativas como fontes do conhecimento, mas principalmente do
saber”. E Candau (2005, p. 163) diz que “os testemunhos orais adquiriram um forte valor
patrimonial para as coletividades territoriais que veem neles peças essenciais da cultura
local: histórias da vida quotidiana, antigos ofícios, festas de aldeia, práticas religiosas
[...]”. Essa ideia vem perfeitamente ao encontro da pesquisa, visto que as narrativas dos
“responsadores” adquirem valor patrimonial, pois são eles os detentores do saber
referente à prática investigada.
Sobre o tipo de entrevista a ser realizado, no caso dos “responsadores” se fundirão
a história oral de vida e a temática, na medida em que desejamos conhecer suas histórias,
contexto de vida, bem como entender as motivações e/ou circunstâncias que os levaram
a desenvolver a prática e em que momento isso se deu, assim como questões mais
específicas sobre a forma como é feito o responso e a partir de quê.
As entrevistas realizadas com a amostra da comunidade serão de história oral
temática, pois nos interessamos especificamente nas suas observações e relatos pessoais
sobre o responso. Esperamos que compartilhem suas percepções sobre o Responso, a
relevância que atribuem à prática e suas experiências com a mesma.
4 Resultados parciais
4.1 O Responso do Seu Nilo e o Responso da Dona Terezinha
O que percebo é que a prática do responso é complexa e diversa, constatação que
fica ainda mais evidente após a realização de entrevistas com dois “responsadores” da
cidade de Mostardas. Através das falas dos entrevistados nota-se que há mais de um tipo
de Responso, ou que este é bastante sincrético.
596
Seu Nilo ou “Tio Nilo”, como é conhecido na região, começou a “responsar” por
volta dos 46 anos de idade, mas desde “guri” fazia benzeduras que aprendeu com os avós.
Mais velho, ao tornar-se membro da Igreja Evangélica, seu dom foi inicialmente criticado,
mas optou por prosseguir com suas práticas de benzedura e responso e diz que “no lugar
de eu benzer como se dizia, eu faço oração, eu oro pelas pessoas, eu oro pra os bichos…
quem quiser falar que fale, mas eu faço.” Dessa forma, a religião alterou o modo de se
referir à prática, mas não o modo de fazer. Ele conta que muitas pessoas de Tavares,
município vizinho, vêm até Mostardas à procura das suas orações de cura e Responso.
Ele também é mestre de Terno de Reis. Incluído nas práticas culturais citados pela
Lei nº 2744, o Terno de Reis é um canto em versos, no qual o Mestre canta versos e o
grupo, formado por aproximadamente seis pessoas, responde também cantando.
Antigamente, o grupo visitava as casas onde tinham mais moças, para se apresentar. Seu
Nilo conquistou várias premiações em festivais de Terno de Reis em diferentes cidades.
Sobre o Responso, seu Nilo sempre afirma a existência de um dom “Deus me deu
esse dom [...], e eu vou continuar enquanto eu existir. Não cobro nada de ninguém” e
acredita que dentre sua grande família, formada por oito filhos, dezessete netos e dois
bisnetos, alguém irá “pegar esse ramo”, pois “Deus coloca um no lugar da gente [...]”
A outra entrevistada, Terezinha de Jesus Machado Araújo, de 68 anos, define o
Responso como “uma oração de fé feita a Santo Antônio pedindo pra ele mostrar às
pessoas as coisas perdidas” (ARAUJO, 2019). Ela é católica e conta que começou a
“responsar” pela fé, fazendo a oração, “[...] eu tenho esse meu livro de orações, eu rezo
pra Santa Rita, rezo pra Santo Antônio, eu rezo pros santos, gosto muito de santos, eu
acredito em santos, e aí comecei a fazer essa oração de Santo Antônio”.
597
Sobre a persistência do Responso ao longo dos anos, dona Terezinha diz que “essa
história de responsar pra Santo Antônio aqui em Mostardas existe há muitos anos, porque
eu conheci a Dona Ana, eu conheci a minha avó, a Dona Sueli [...] aqui tem e sempre
teve, isso aí eu posso te garantir”. Os nomes citados são de senhoras já falecidas,
conhecidas por terem sido responsadoras. Assim, interpreta-se que o Responso constitui
uma prática tradicional no município, que resiste através das gerações.
Diferente do que acontece com Seu Nilo, para Dona Terezinha a “visão” não é tão
simples, e por vezes, não aparece, ela diz que “às vezes se enxerga, nem sempre”.
Ambos os responsadores entrevistados dizem que se sentem bem em fazer o
Responso, pois estão ajudando as pessoas e ficam muito felizes quando têm o retorno de
que encontraram o que procuravam.
4.2 Os “utilizadores”
Serão chamados de utilizadores aquelas pessoas que buscam o Responso, que o
utilizam. O grupo de pessoas entrevistadas entre a comunidade será, necessariamente,
bastante diversificado, abraçando pessoas das diferentes gerações, religiões, grupo social,
local de moradia etc. No entanto, esse grupo ainda não foi efetivamente selecionado, mas
compartilharei relatos de duas entrevistas já realizadas.
Nas entrevistas com os utilizadores é perguntado à pessoa como ela explicaria o
que é o responso para alguém que não conhece. A colaboradora Ana Lúcia Libano296
disse que o Responso é uma coisa muito antiga e que os pais sempre falavam que se perder
uma coisa tinha que “mandar responsar”. Sobre o modo de fazer, diz que “eles acendem
uma velinha pra Santo Antônio e fazem uma oração e aí aparece o que tu perdeste. Tem
uns que colocam que enxergam onde pode estar, tem outros que não [...]”.
Na entrevista, quando questionada sobre responsadores(as) mais antigos, ela citou
alguns nomes, todos femininos, entre os quais falou um pouco de Ione, a quem questionou
como se fazia o responso, pois tinha interesse em aprender:
a dona Ione […] até me deu a oração que era cinco minutos diante do
Santo Antônio e que tu acendia uma vela e fazia a oração, ela não via
nada, assim, não identificava nada onde é que poderia tá, ela só rezava
pra ele [...] achar, a pessoa encontrar. (LIBANO, 2019)
296
Entrevista coletada em (01/09/2019)
598
Assim como dona Ione não “via” onde estava o objeto ou animal perdido, outras que
foram lembradas durante as entrevistas também não possuíam esse dom da visão, apenas
faziam a oração com fé pedindo que a pessoa que a procurou encontrasse o que procurava
- deve-se atentar para o fato de que eram em sua maioria, católicas. Já com os
responsadores(as) mapeados no presente, é frequente que consigam “ver” e descrever o
local onde está o objeto/animal perdido. Como relatado, o Responso de seu Nilo, em
realidade, consiste no dom da visão, visto que não utiliza nenhum outro “aparato” para
realizar o responso. Dona Terezinha, por vezes, consegue ver, mas diz que depende muito
do momento e da fé:
Aquela vez o gado da mãe… a Dona Iolanda disse e o tio Nilo disse
“esse gado tem tantos bichos presos num piquete assim e assim atrás de
uma casa velha” e estavam lá. [...] Foi roubado um gado da minha mãe,
no responso de duas pessoas falaram que o gado estava em um piquete
numa chácara velha abandonada. E nós fomos lá, achamos quatro rês lá
nesse piquete, estavam lá, não todo o gado, mas eles disseram que tinha
mais ou menos tantos rês lá e tinha mesmo. Nós chegamos lá e um até
já tinha morrido, estavam há muito tempo presos [...] e os outros já
tinham vendido (ARAÚJO, 2019)
297
Entrevista coletada em (20/09/2019)
599
Seu Nilo, viu no responso que os objetos estavam perto da casa de onde haviam
sido furtados e que alguns seriam recuperados. Recorrendo à polícia, foi descoberto que
o furto havia sido feito pelo vizinho que morava na casa da frente e, de fato, recuperaram
todos, menos a jaqueta que havia sido vendida.
Para finalizar essa breve exposição dos resultados parciais com base nas entrevistas
já realizadas, trago um ponto em comum nas quatro entrevistas citadas: a necessidade da
crença de todos os envolvidos. Aquele que procura o Responso deve acreditar na sua
eficácia, e o responsador deve fazer o Responso com fé. Ana Lucia disse que a fé é
determinante no sucesso da procura: “tem que acreditar no que que tu tá fazendo. [...] se
tu faz por fé, se tu é católico e faz por fé, tu já tá acreditando naquilo, [...] até o olhar é
diferente pra procurar”. Alberi Araujo também fala com clareza que a crença é um fator
determinante: “o Responso só tem que acreditar, né [...] eu acredito”. Quando questionada
se o Responso era algo passado à outra pessoa ou ensinado, dona Terezinha respondeu
que “tem que rezar e acreditar”, pois “tem que ser um pedido de fé”. E sobre quem busca
o responso, também “Sabrina: E não adianta tu pedir pra responsar se tu não acredita
também, né? Terezinha: Ah, é, é verdade, não adianta. É isso aí [...]”.
Por fim, Seu Nilo sintetiza bem essa ideia a partir da fala: “eu faço com fé, e o
pessoal vem com fé, né, dá tudo certo”. Essa relação de crença pode ser entendida a partir
do exemplo de cura xamânica, desenvolvido por Levi-Strauss em “A Eficácia Simbólica”
(1975). Com o acréscimo do coletivo, ele explica que a cura xamânica só se realiza se o
curandeiro acreditar no seu poder, se o paciente acreditar que o xamã tem poder e confiar
nele e se houver um coletivo que acredite tanto no curandeiro quanto no seu poder de cura
600
Considerações finais
Tendo nascido e morado em Mostardas até os dezoito anos de idade, cresci vendo
meus pais e vizinhos buscarem auxílio do Responso em caso de objetos perdidos, algo
muito comum em Mostardas e que sempre chamou minha atenção. Achava, no mínimo,
curioso que existissem pessoas capazes de nos guiar na busca por objetos perdidos tão
precisamente. Durante a graduação em História, o interesse foi mudando, deixou de ser
apenas um fator de curiosidade pessoal para se tornar um possível objeto de pesquisa,
capaz de ser investigado dentro de um olhar científico. Assim, foi feito o projeto de
pesquisa para a seleção de mestrado 1/2021.
A pesquisa se justifica também pela ausência de registros a respeito do Responso,
que ainda não foi devidamente pesquisado. Essa falta evidencia a lacuna existente na
produção científica acerca do tema, a qual buscamos preencher. Em paralelo a isso, assim
como ocorre com outras práticas culturais, a exemplo do benzimento, o Responso corre
o risco de ser extinto, visto que há uma dificuldade em encontrar “responsadores” novos.
Mesmo que os mais recentes tenham chegado à prática por meio de familiares, não é uma
regra que ela seja passada adiante através das gerações. Assim, não há nenhuma garantia
da sua continuidade e, a iminente perda da prática faz com que o registro se torne ainda
mais necessário e urgente.
Portanto, a pesquisa em desenvolvimento inicial aqui apresentada, traz uma
temática original e que trará uma contribuição significativa não só ao cenário cultural de
Mostardas e Tavares (município vizinho onde também se utiliza o Responso), mas
servindo de referência para pesquisas em outras localidades, colaborando para o avanço
científico na área.
Referências
ARAUJO, Terezinha de Jesus Machado. Entrevista concedida a Sabrina Machado
Araujo. Mostardas, 01 de setembro de 2019.
ARAUJO, Alberi Santos. Entrevista concedida a Sabrina Machado Araujo.
Mostardas, 20 de setembro de 2019.
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo: T.A. Quieroz
Editor, 1987.
BURKE, Peter. O que é História Cultural? 2ª ed. rev., e ampl, Rio de Janeiro: Zahar,
2008.
601
Introdução
Corpo e território são conceitos que se complementam. Um território é um espaço
vivido, delimitado por relações de poderes, que se dá em todos os níveis do estrato social.
Um corpo, além da própria materialidade física, é também um elemento geográfico
criador de um território. O homem faz do espaço o seu suporte físico, da mesma forma o
espaço enquanto cidade faz e interfere na vida do homem. Um corpo sozinho ou em
conjunto de outros corpos, ocuparão um espaço delimitado por relações de poderes
externos a si. A cidade, enquanto suporte dos corpos e dos territórios, é um campo de
disputa de poderes, onde se apresentam as forças que cada corpo exerce para sua
apropriação, expressão e permanência no uso das ruas e espaços públicos.
Um exemplo de coletividade são as práticas culturais, que congregam em si o
praticante como aquele que vê, escuta, canta, dança e acompanha nas ruas. Dentro destas
práticas culturais, trago como estudo de caso uma festa tradicional, o carnaval do Zé
Pereira, na Freguesia do Ribeirão da Ilha. Essa festa utiliza o espaço público como suporte
de sua expressão. Estes corpos coletivos produzem um território próprio durante sua
prática, ocupando os espaços da cidade e se limitando às formas urbanas existentes. Como
se dá a relação entre a morfologia e a prática social? Até que ponto uma influencia na
outra?
298
Mestrando em Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade (Pós-Arq), Universidade Federal de Santa
Catarina. E-mail: [email protected].
604
necessidades. A grande questão que Sitte trouxe é que o vazio importa. Para ele, a
arquitetura nasce de fora para dentro, onde o vazio representado pelo espaço público, cria
as formas do cheio representado pelas edificações. Em alguns trechos, Sitte também se
preocupa com a apropriação destes espaços, no qual ele trata como vida pública. Na sua
perspectiva, a vida pública influencia tanto na conformação das ruas e praças, como na
sua devida apropriação. Sitte também destaca o uso das praças para grandes festas
públicas e práticas cotidianas. Segundo ele:
Para Sitte, a cidade tem de ser pensada como arte, fazendo do espaço público um
local de encontros, passagens e permanências. Décadas depois, Lefebvre, em 1968, vai
definir a cidade como a obra das obras. Tanto o Lefebvre quanto Sitte, vão apontar o fato
de o urbanismo moderno, da retidão, da funcionalidade e da setorização contribuem para
a diminuição da vida pública. Lefebvre usa o conceito de festa como apropriação das ruas
e praças de modo coletivo nas cidades tradicionais. Lefebvre (2010) enxerga na base do
tecido urbano, diversos fenômenos em diferentes níveis da vida social e cultural. Além
da cidade ser composta por uma série de infraestruturas sob este tecido, como sistemas
de mobilidade, de saneamento, eletricidade e abastecimento de água e esgoto. Também
neste mesmo tecido urbano estão valores atribuídos ao lugar, lazer, costumes e práticas
sociais que fazem parte da estrutura do cotidiano. Fica evidente, que em ambos os casos,
entre a vida pública de Sitte e a festa de Lefebvre, há uma dialética entre prática e espaço.
Leitoles (2016), em sua dissertação, para essa dialética, uma vez que a arquitetura
dos espaços públicos definem as possibilidades de utilização, deslocamentos, barreiras e
formas de apropriação, moldando, criando, aumentando ou diminuindo os impactos na
dimensão do cotidiano e da vida social. Os espaços urbanos refletem o desenvolvimento
da sociedade. São nestes espaços que a sociedade, através de seus corpos, se relacionam
por meio de suas práticas, e também através destas práticas, a produção do espaço é feita.
A arquitetura pode ser incorporada na figura de um edifício, no entanto, lugares
externos como ruas e praças também são arquitetura, segundo Holanda (2006), em seu
605
texto Arquitetura Sociológica. Uns dos aspectos para definir o que é arquitetura é o
aspecto sociológico, no qual a configuração forma-espaço, através das relações de cheios
e vazios, implicam condições de movimentação. Uma das perguntas que Hollanda faz é
“O tipo, quantidade e localização relativa das atividades implicam desejáveis padrões de
utilização dos lugares, no espaço e no tempo?” Esta pergunta reflete sobre as condições
do espaço influenciar nas ações de determinadas práticas sociais. Uma possível resposta
a esta questão é a seguinte reflexão de Peponis:
A configuração do espaço urbano é importante, não porque o espaço
possa produzir diretamente outros aspectos de cultura, mas porque o
espaço realmente decide muito pouco. Acontece que o pouco que é
decidido pelo espaço é também crítico em relação ao nosso ser em
sociedade. (PEPONIS, 1992, p. 81)
Peponis (1992) discute a arquitetura como uma função da cultura, tratando não
como uma expressão histórica e formal, mas como textura da vida cotidiana. Nesta
relação entre cultura e arquitetura dos espaços públicos, no espaço estabelece uma relação
dialética fixo-fluxo, sendo a forma urbana fixa e a prática social o fluxo. A forma define
o uso e aceita contra-usos, ou seja, aquelas atividades que contrariam o uso principal.
Dentro desta relação, o espaço em si não possui valor. A aplicação do valor é feita quando
há uma prática, quando há presença humana. Segundo Mello e Vogel, “quem pratica o
espaço é também, de maneira muito sutil, aquele que o produz” (MELLO; VOGEL, 1981,
p. 4) atribuidas usos diversos, se transformando em agentes de modificações no espaço,
atribuindo nestes locais, significados e sentidos.
É preciso que as pessoas atribuam signos às coisas para que possam
servir-se delas. Espaços construídos são capazes de sustentar um modo
de vida desde que lhe sejam outorgados certos valores. Este processo
de valorização consiste em formar grupos, delimitar fronteiras e
distinguir funções. (MELLO; VOGEL, 1979, p. 04).
Avançando nesta relação dialética entre espaço e prática social, Mello e Vogel
(1979), atenta que o espaço é sempre o espaço de ou para alguma coisa, assim como as
coisas só podem acontecer ou estar em algum espaço. O espaço não escolhe as atividades
ou objetos, é a atividade e os objetos quem escolhe os espaços, se apropriando do preço
de uma ação de retorno, que explicado pelos autores:
Existem conjugações de espaços e atividades onde os primeiros não são
apenas formas inertes que abrigam um conteúdo eventual, mas
elementos determinantes da própria ação. E ao contrário: o que acontece
em um local não deve ser visto somente como uma substância que,
vertida no espaço- recipiente, tomasse a forma deste. Os eventos
decidem a respeito das próprias qualidades formais do espaço.
606
O Zé Pereira
É nas ruas, através das permanências, do pulso e da prática, que se constrói
diversas sociabilidades, hábitos e modos de ser. Cada povo, em sua comunidade, tem suas
especificidades, suas peculiaridades e suas coletividades. A Constituição Brasileira de
1988 estabelece que patrimônio cultural é formado por bens de natureza material e
imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira
(BRASIL, 1988). O patrimônio cultural, tanto o material quanto o imaterial, além de
retratar, é reflexo da cultura de cada grupo social ao longo dos anos. O patrimônio também
está nas ruas, no traçado e na forma do tecido urbano, nas edificações e monumentos, nas
festas e expressões, nas conversas e sociabilidades, na agenda do bairro e no cotidiano
das pessoas. O patrimônio é festa e fé, é sagrado e profano, é a expressão coletiva e o
608
modo de fazer individual. Todos estes conceitos cerceiam o carnaval do Zé Pereira, uma
festa que cria seu território nas ruas da Freguesia do Ribeirão da Ilha, local tombado a
nível federal, pois a localidade ainda guarda muito de sua formação urbana, tanto no
traçado como nas edificações e sociabilidades.
Linha rosa representa a poligonal de tombamento a nível federal do sítio histórico. Geoprocessamento da
Prefeitura Municipal de Florianópolis, 2021.
Mapa representando as edificações, evidenciando os cheios e vazios. Esquema gráfico feito pelo autor,
em 2021.
oito mil pessoas, sendo arrastadas pela Banda da Lapa na estreita rua com casas
geminadas. Até a década de 80, a festa acontecia todos os finais de semana dos dois meses
que antecedem o carnaval. Após a influência da festa do Camarão, a festa assumiu
somente um dia de celebração, o domingo anterior ao domingo de carnaval. Em sua
pesquisa, Mariela Silveira entrevista uma moradora que traz o seguinte relato:
Não dava pra andar era melhor ficar parado [...] não ia ter como a gente
fazer a trajetória que a gente fazia, que era sair do Clube Social - Centro
Comunitário, ao lado da sede da banda -, ir até a igreja da Lapa, a gente
desfilava mesmo, ia cantando com a banda, chegava lá na igreja, fazia
a volta e continuava desfilando até a pracinha - praça em frente à praia
e as casas geminadas da freguesia -, lá a gente ficava dançando,
brincando, daí tinha o joga na água no fim da festa. (Moradora do
Ribeirão, 2010).
O corte evidencia a aglomeração se moldando a forma urbana durante a folia. Esquema gráfico feito pelo
autor, em 2021.
Figura 4 - Imagem aérea do Zé Pereira, em 2014, com 20 mil pessoas.
611
Em lilás a concentração de pessoas, sendo limitadas pelas casas, pelo mar e pelas cercas de revista da
polícia. Esquema do autor, em 2021.
que ampliassem mais dois quilômetros de festa, concentrando a multidão nas apertadas
ruas da Freguesia. Em 2016 aconteceu a última edição. De 2017 em diante, a festa não
foi mais viabilizada por diversos fatores consequentes da responsabilidade e da proporção
que a festa tomou, como por exemplo: segurança e policiamento, banheiros químicos,
cercas metálicas, palco e sonorização. Outros fatores que desanimaram a população foram
a falta de mobilidade neste dia com as ruas trancadas, a sujeira deixada pela festa, o
barulho dos sons automotivos daqueles que não entravam na festa e ficavam pelas
imediações.
Aí nós íamos lá pra freguesia. Vinha gente do sul da ilha todo. Naquela
época, o trânsito era outro né. Hoje em dia, infelizmente, em virtude do
aumento de carros circulando na rua, por exemplo, inviabilizou essa
festa. A rua continua sendo a mesma, mas a quantidade de moradores
no sul da ilha, de carros, não permite mais fazer aquela brincadeira”
(DA SILVA, 2018).
Mas entre todos os fatores que motivaram o final daquele modelo de Zé Pereira
que estava sendo praticado, o papel morfológico do espaço público foi determinante. Se
a mobilidade fosse prejudicada, isso se devia à forma do traçado urbano. Se o local ficava
apertado por conta do número de pessoas, isso se devia à forma edificada. Para o
presidente da Banda da Lapa, José Carlos Corrêa, no qual já organizou muitas edições da
festa, "a gente a bem pouco tempo fazia o Zé Pereira, que hoje não deu mais devido às
circunstâncias do local, da mobilidade. Para o pessoal daqui, fica muito difícil nos dias
de carnaval” (CORREA, 2020).
613
A rua em vermelho é a via principal, com 5 m de largura, também é a rua trancada pela folia. A via em
amarelo é a chamada Rua de Cima, com largura de 3 m. Esquema do autor, em 2021.
Conclusões
Segundo Gonçalves (2005), os objetos que compõem um patrimônio precisam
encontrar ressonância junto a seu público. A ressonância se encontra nas forças
tradicionais que mantêm a cultura em pé, demonstrando que certas práticas não
desaparecem por completo por estarem na memória coletiva da comunidade. O Zé Pereira
prova suas diversas dinâmicas para se ajustar ao espaço onde nasceu, aceitando suas
formas e tendo noção da capacidade de suporte que o espaço físico lhe oferece. O espaço
é crítico em relação às práticas sociais, mesmo decidindo pouco, altera muito em relação
aos aspectos culturais, como Peponis trouxe. Ainda assim, é interessante notar que as
alterações que o bem cultural sofreu dizem respeito somente ao bem em si, em diminuir
seu tamanho, mesmo que o preço seja alto a ponto de não acontecer uma edição. Não há
uma alternativa na discussão de ser feito em outro local. Há raízes a serem mantidas, não
fazendo sentido acontecer em outro lugar. A escala urbana das estreitas ruas e casas
baixas da Freguesia do Ribeirão da Ilha propiciam maior integração entre a natureza da
prática e o seu espaço. A paisagem cultural que engloba as casas luso-brasileiras, as ruas
615
estreitas, as amendoeiras na praça, a vista pro mar, os sotaques e a Banda da Lapa tocando,
fazem parte intrinsecamente da festa do Zé Pereira.
Uma outra reflexão é a presença do patrimônio imaterial nas ruas, em suas formas
de expressão, em seus modos de ser e fazer. A festa do Zé Pereira é um bem cultural ainda
não registrado pelo município, mas de certa forma, não precisaria do registro para
entender sua importância histórica e cultural. Essa força tem impactos simbólicos que
transformou a rua onde acontece a folia em uma rua que contém grande parte da memória
coletiva da comunidade. Essa apropriação das ruas pelo patrimônio cultural acrescenta
uma nova camada de informação na função daquele espaço, atribuindo valores
simbólicos, conforme o que Vogel traz.
A questão do patrimônio imaterial na arquitetura e urbanismo pode ser mais
explorada em questão de planejamento urbano, fazendo com que o arquiteto-urbanista
tenha em seus planos, tenha um olhar mais antropológico sobre os espaços onde atua,
levando em conta o passado e a historicidade do local e assumindo as relações e dinâmicas
sócio-espaciais que o espaço urbano tem. A cidade é o suporte físico das práticas culturais
e tradicionais da identidade de um povo e o planejamento urbano pode contribuir para a
conservação ou potencializar conflitos envolvendo o patrimônio e seus territórios. Ao
reconhecer que determinada rua possui uma vida pública ou uma festa, conforte aborda
Sitte e Lefebvre, é estabelecido um tratamento distinto por parte das políticas públicas e
pelos órgãos de planejamento e proteção do patrimônio da cidade. A importância nessa
questão, se dá no conhecimento que tais práticas sociais num contexto atual, ou seja, de
cidades contemporâneas e globalizadas, que sofrem alterações sistemáticas,
principalmente com planos diretores pouco ou nada participativos que não abarcam a
dimensão do cotidiano.
Essas mudanças podem prejudicar tais práticas, diminuindo a força cultural, tanto
da prática quanto do espaço. Algumas das manifestações e expressões culturais dependem
da configuração espacial para acontecer. Sua força, em muitos casos, está na escala
adequada entre as casas, a rua e as pessoas. Não é coincidência que em Florianópolis, o
patrimônio imaterial se faz presente, principalmente nos núcleos históricos das freguesias,
onde a escala das ruas é mais próxima, onde a estrutura formal das cidades tradicionais
se mantém, onde as manifestações artísticas e festas de rua são presentes, e claro, há uma
preservação a nível federal do perímetro das freguesias.
616
Referências
BERMAN, Marshall. Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da
modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de
1988. Brasília, DF, Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 26
maio 2018.
CORREA, José Carlos. O registro da Banda da Lapa como patrimônio cultural
imaterial de Florianópolis. Florianópolis, Ribeirão da Ilha. Outubro de 2020.
CORBUSIER, Le. A Carta de Atenas. 4. ed. São Paulo: Usp, 1993.
DA SILVA, Reginaldo Oswaldo. Suas composições, o carnaval e a importância da
Banda da Lapa para a comunidade. Florianópolis, Ribeirão da Ilha. 30 nov. 2018
GOLÇALVES, José Reginaldo Santos. RESSONÂNCIA, MATERIALIDADE E
SUBJETIVIDADE: AS CULTURAS COMO PATRIMÔNIOS. Horizontes
Antropológicos, Porto Alegre, ano. 23, n. 23, p.15-36, jan/jun 2005.
HOLANDA, Frederico. Arquitetura Sociológica. 2006.
JACOBS, Jane. Morte e Vida das Grandes Cidades. 3. ed. São Paulo: Wmf Martins
Fontes, 2014.
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade. 5. ed. São Paulo: Centauro Editora, 2010.
LEITOLES, Maicon Lincon. PERMANÊNCIAS E TRANSFORMAÇÕES NO
ESPAÇO PÚBLICO O CASO DA RUA XV DE NOVEMBRO EM CURITIBA.
2016. 183 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Arquitetura e Urbanismo, Centro
Tecnológico, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016. Cap. 1
MELLO, Marco Antônio da Silva; VOGEL, Arno. Lições da Rua (ou Quando a Rua
vira Casa):Algumas considerações sobre habito e diligo no meio urbano. IBAM,
FINEP, 1979-1980.
PEPONIS, John. Espaço, cultura e desenho urbano. AU -Arquitetura e Urbanismo, São
Paulo, v. 41, n. 8, p. 78-83, maio 1992.
RIO, João do. A alma encantadora das ruas: crônicas. 2. ed. São Paulo: Martin Claret,
2007. (A obra-prima de cada autor).
ROSA, Artur Hugo da. Pela Banda do Ribeirão. 2019. 93 f. TCC (Graduação) - Curso
de Arquitetura e Urbanismo, Centro Tecnológico, Universidade Federal de Santa
Catarina, Florianópolis, 2019.
SITTE, Camillo. A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. 4. ed.
São Paulo: Editora Ática, 1992.
SIMAS, Luiz Antônio. O corpo encantado das ruas. Coordenação de Guilherme Wisnik.
São Paulo: Escola da Cidade, 2020. (58 min.), son., color. Seminário de Cultura e
Realidade Contemporânea. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7-
YaLUd0vrQ. Acesso em: 07 dez. 2020.
SILVEIRA, Mariela Felisbino da. “Atrás do Zé Pereira só não vai quem já morreu”:
Patrimônio cultural imaterial na Freguesia de Nossa Senhora da Lapa do Ribeirão da
Ilha. 2010. 70 f. TCC (Graduação) - Curso de Ciências Sociais, Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, 2010.
617
1 O Saber - Fazer
1.1 Contexto Histórico
O objeto de estudo se localiza na área rural do Município de Palmeira,
Microrregião de Ponta Grossa (PR): as colônias de Santa Bárbara e Canta Galo. As
colônias possuem características rurais, com pequenos proprietários e sistema viário
ramificado (PREFEITURA MUNICIPAL DE PALMEIRA, 2006). Ambas foram,
colônias oficiais criadas pelo Governo do Paraná com o intuito de povoar o interior do
Estado, seguindo as margens do rio Iguaçu (LAROCCA, 2008).
Deste modo, no ano de 1891, assentaram-se 141 famílias na Colônia Santa
Bárbara, em uma área correspondente a 1.916 hectares (ORCHANHESKI e MAYER,
2006). Contígua a ela fica a colônia de Canta Galo, fundada em 1892 com o intuito de
abrigar 30 famílias em uma área de 493 hectares. Elas se separam por 6 Km e são
povoadas majoritariamente por famílias de origem polonesas (LAROCCA, 2008). O local
possui caráter de conjunto patrimonial, com suas construções arquitetônicas, paisagem
rural e práticas culturais próprias. Percebe-se, então, que a presença da cultura imigrante
polonesa é muito forte na região, e é facilmente vista nos bens imóveis remanescentes,
assim como em diferentes saber-fazer. A somatória desses elementos configura o local
como um conjunto patrimonial. A Constituição Federal de 1988 (CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, 1988) define Patrimônio da seguinte
maneira:
299
Graduanda em Licenciatura em História pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Contato:
[email protected]
300
Orientadora. Doutora em Geografia pela UEPG, Mestre em História pela UFPR, Licenciada em História
pela UEPG. Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Estadual de Ponta Grossa,
membro do Grupo de Pesquisa CNPq Geografia e História: memória social e patrimônio cultural. Contato:
[email protected]
618
Para a senhora, rezar naquele local sagrado faz parte de sua identidade e memória,
para os turistas é só um local de contemplação. Porém, o patrimônio deveria ser entendido
como um todo, a catedral gótica não surgiu ao acaso, ela surgiu com o objetivo de ser um
templo religioso, portanto observar a mesma cumprindo a função a qual ela foi projetada
é muito mais relevante do que apenas vê-la como um edifício de valor arquitetônico
(MENESES, 2009).
O interessante nesse caso é que todo o patrimônio material necessita de um suporte
intangível para existir, pois sem o significado cultural de determinado povo ele não
existiria, o mesmo ocorre com o patrimônio imaterial, pois ele necessita da dimensão
material para poder ocorrer, incluindo o corpo humano. No exemplo acima, seria o ritual
de rezar da senhora juntamente com a materialidade da catedral, que apresenta o
619
patrimônio em sua totalidade, o material com o imaterial. Outro exemplo, o “saber fazer”
é um conhecimento corporificado, é a memória da cozinheira, do artesão ou do músico
que o guia e o permite existir de geração em geração, como patrimônio imaterial ele se
utiliza do ambiente ao seu redor e do corpo daquele que o produz (MENESES, 2009).
Dentro dessa memória que é desenvolvida ao longo dos anos o “saber fazer” está
completamente atrelado ao cotidiano. Segundo Priore (1997), a vida cotidiana “remete,
com imediatismo, à vida privada e familiar, às atividades ligadas à manutenção dos laços
sociais, ao trabalho doméstico e às práticas de consumo (PRIORE, 1997, p. 377)”, temos,
portanto, a repetição do existente, das práticas que permitem a conservação e
permanências culturais e de rituais sem modificá-las e nem as individualizar (PRIORE,
1997).
A discussão sobre o cotidiano acaba sendo recente, de acordo com Priore (1997)
ela foi iniciada por Le Golf e Fernand Braudel. Braudel via os códigos alimentares e de
vestuários mais relevantes na vida dos grupos sociais do que as instituições políticas e
administrativas, e além disso, considerava que esses itens devem ser vistos como história-
problema e não como história descritiva. O peso dos gestos repetidos em sua longa
duração é enorme, porém discreto no dia a dia. Em suma, o cotidiano não é menos
importante do que outros acontecimentos históricos. O cotidiano é construído pela
população e mantido por ela (PRIORE, 1997).
PRIORE diz que “O cotidiano só produz a si mesmo. E ele reproduz uma ordem.
No emprego do tempo do camponês, do escravo ou do operário, de homens e mulheres
existe toda uma divisão de trabalho e toda uma herança de “saberes” e de “saber fazer”
(1997, p. 387). O patrimônio cultural é parte do cotidiano, e nesse caso, a culinária
regional é um exemplo de legitimação do cotidiano como um bem cultural (MORAIS,
2011).
Quando falamos de cotidiano não podemos deixar de falar de memória, ela pode
ser entendida como um fenômeno individual, porém ela também pode ser construída
coletivamente e sujeita a mudanças constantes, ainda que possa ser flutuante e mutável
ela carrega marcos imutáveis (POLLAK, 1992). Então existem os acontecimentos vividos
individualmente e aqueles vividos por determinado grupo que a pessoa sente pertencer,
quase como uma memória herdada (POLLAK, 1992).
Segundo POLLAK, “a memória é um elemento constituinte do sentimento de
identidade, tanto individual como coletiva, na medida em que ela é também um fator
extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa
620
consciência que as sociedades têm delas mesmas, na visão que elas têm
de sua identidade (MACIEL, 2004, p. 27).
1.3 Métodos
Com base no estudo acima, e na discussão sobre como a gastronomia se
transforma ao longo das gerações, será realizado um questionário com três gerações de
famílias estabelecidas nas Colônias Santa Bárbara e Canta Galo, em Palmeira (PR).
Os resultados obtidos complementam o trabalho teórico realizado até determinado
momento.
Questionário a ser utilizado:
1. Nome completo:
2. Idade:
3. Nasceu onde? De onde vieram seus antepassados?
4. Quais são as comidas que sua família fazia quando era criança?
5. De onde vieram essas receitas?
6. Você costuma fazê-las?
7. Com quem aprendeu essas receitas?
8. Como você faz essas receitas?
9. Você possui algum livro de receita que seja passado de geração em geração?
10. Você ensinou essas receitas para alguém?
11. Qual a importância dessas receitas de família para você?
12. Acha importante mantê-las?
13. Qual comida você come no dia-a-dia? É a mesma que seus pais e avós comiam? (Se
a resposta for não, qual a comida que eles normalmente comiam)
14. Qual a memória culinária que você guarda com mais carinho?
622
Considerações finais
A culinária regional, a forma como ela é selecionada, preparada e consumida são
partes independentes de um único sistema que se vincula ao nosso estilo de vida e define
sua significação e transformação (SILVA, 2007), PRIORE diz que “são imensas as
dificuldades para nomearmos a complexidade e a riqueza que estão mais próximas de
nós, impregnadas da aparente banalidade do cotidiano” (1997, p. 376). O cotidiano acaba
sendo minimizado por estar diretamente ligado a vida diária, considerado como algo
corriqueiro e sem muita importância, porém, a quantidade de informações contidas em
cada ato correspondente a ele é de grande relevância. Um exemplo seria como fazer a
massa do pierogue: há um jeito certo de amassar e moldar a massa, que vem de anos de
experiência e a cada geração são passadas as informações necessárias para que tal ato
aconteça de forma fácil.
No contexto atual em que há grandes transformações e degradação dos hábitos
alimentares é relevante registrar o processo dos mesmos (SILVA, 2007). A forma como
se vê a comida, seus hábitos, dizem muito sobre uma sociedade e é de grande importância
para a posteridade.
Devido a pandemia de COVID-19 não foi possível realizar o questionário para
aferir a discussão teórica, mas o objetivo é que ele seja realizado no decorrer dos próximos
meses.
Referências
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Art. 216.
Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm. Acesso
em 19 abr. 2016.
LAROCCA, Joel Jr., LAROCCA, Píer L., LIMA, Clarissa de A. Casa Eslavo-
Paranaense: Arquitetura de Madeira dos Colonos Poloneses e Ucranianos do Sul do
Paraná. Local: Larocca Associados S/S Ltda., 2008.
MARETTI, Mirian C. Gastronomia e Patrimônio Cultural Londrinense. Local:
Unifil, 2012, p. 11-23. Disponível em:
https://unifil.br/portal/images/pdf/documentos/livros/gastronomia-patrimoio-
cultural.pdf. Acesso em: 12 jan. 2021.
MENESES, Ulpiano T. B. O Campo do Patrimônio Cultural: Uma Revisão de
Premissas. In: I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural, Ouro Preto - MG, 2009, 26
- 38 p. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/publicacao/Anais2_vol1_ForumPatrimonio_m.pdf.
Acesso em: 20 nov. 2020.
623
Continuidades anteriores
Esse trabalho, fruto de um mestrado, se fez artigo que quer: estender o olhar
formidável da paisagem, seus sons próprios, para a beira-mar. Surge de um exercício de
imaginação geográfica que tem início na leitura da frase de Michel Serres (2001) que
aponta como a paisagem, cem vezes modelada por forças inertes, igualmente cultivada
pelos paisanos, pagã, olha a nós que a vemos num silêncio formidável. Devaneio da
imagem da beira-mar. Pé que sente a onda bater na areia, nariz que cheira o sal, areia
pontiaguda que atrita e fura o pé, sal que curte a pele. Esse artigo é devaneio sensível,
reação imaginativa ao deslumbre do mar. Aqui, seguimos num mergulho sensível junto
ao mar para ouvir seus ecos, que ainda hoje compõem essa paisagem em atração e
fascínio, contribuindo para o entendimento dessa composição que eclipsa no olhar, desejo
exposto e movente de um caminhar.
301
Esse texto é fruto da minha dissertação de mestrado, intitulada “A lenta dança do mar na costa ou uma
leitura sensível da grafia das ondas” (MEDEIROS, 2017). Disponível em:
https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/IGCC-AWTJN9.
302
Mestrado em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Técnica Nível Superior
Pleno da Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social. Membra do Núcleo de Pesquisa em Geografia
Humanista. Mais informações em: http://npgeoh.blogspot.com.br/.
625
A imensidão da intimidade faz do lugar, rosto e pele expostos, praia que é solo
para o corpo em pernas, visceral. Se no mar de fora os nós são mais ralos, estes pululam
no mar de dentro, na veia d’água e nas croas, na praia. A praia desvela os corpos em
exposição, nós de intimidade que se abrem e fecham. Têm também seus sabores próprios,
suas possibilidades de apreensão. Para os pescadores que se aventuram no mar, a praia é
sempre o solo para o qual retornam. Praia, barco, corpo: lugares que a paisagem absurda
e imensa do mar reúne; expostos e vulneráveis na paisagem marinha. Todos se degastam
no contato, exigência de troca.
O que sofre o corpo ecoa nos tempos, é recuperado nos movimentos das pernas,
dos braços, na pele viva. Os registros que guardam o corpo são expostos na interação com
o mundo. Os ecos se alastram em todas as direções, de tempo e espaço. São ecos de modos
de vida, de crenças, de velhos movimentos. O marulho das águas deixa marcas no corpo,
marcas na forma de enjoos, costumes, ousadias.
O prazer de curtir praia deixa registros junto a pele queimada ou vermelha de sol.
Na permissão da exposição, na aceitação do corpo nu. Deixa registros no conhecimento
que se compartilha, nos modos de fazer. Nos sabores que atendem ao paladar, ao corpo
bem nutrido, no cozinhar seus frutos e animais, nos seus temperos salgados. Se tudo
acontece sempre no presente, também seus ecos passados estão aí, em inúmeras
continuidades não rastreadas. Assim, mergulhemos agora nos ecos, nas suas
presentificações atuais. A beira-mar tem passado vivo, tem continuidade presente e
resistente nas lutas por permanecer, em todos os seus sentidos.
Se antes nos detivemos na perspectiva do trabalho praiano, que pode superar essa
configuração e adentrar o terreno do modo de viver, foi porque essa é uma vivência de
praia bastante específica. Entretanto, a praia e o mar não permanecem apenas nas certezas
da carne em labuta, na delícia do estômago cheio. Ela cresce e arrepia e atinge outras
dimensões. Adentra o terreno do invisível, do incerto e da crença com fé. Doma o corpo
e o liberta em ações de labuta e prazer.
mas pouco evidentes nas letras. Como ouvir seus ecos? Na memória do corpo, bastante
enraizada. Nas crenças que sobrevivem no místico, essa nuance do saber e do viver que
as letras dominadoras demoram a subjugar.
O que é possível reconhecer a partir desses trabalhos é que, antes da burguesia
europeia se interessar pelas praias, elas já existiam enquanto lugar de desfrute, trabalho,
vida. Enquanto detentores do poder da escrita e povo dominante, suas letras, porém, falam
mais alto. “Cabe dizer, para o tema que nos concerne, que o banho de mar ou de rio até
então era considerando uma distração imoral, própria do povo sem educação; na época
de Burton [1620], torna-se uma prática autorizada” (CORBIN, 1989, p. 71), embora ainda
não difundida. É autorizada sob prescrição médica. Difundida posteriormente com os
balneários. Enquanto paisagem de desfrute, quem se banha e se esturrica ao sol e ao sal
era, até então, o povo sem educação, desprovido do conhecimento das letras europeias
dominantes.
Assim, não é à toa que Jean de Lery (1994), viajante europeu que vem ao Brasil
em torno de 1587, fica surpreso pelo próprio desfrute da praia e do mar pelos povos que
aqui encontrou. Eles “savent tous nager: mais qu'aussi les petits enfants dés qu'ils
commencent à cheminer, se mettans dans les rivières et sur le bord de la mer, grenouillent
desjà dedans comme petits canards ” (apud DANTAS, 2011, p. 4), escreve. Jean de Lery
descreve, ainda, como esse povo, que vivia no litoral do Rio de Janeiro, pescava com arco
e flecha e em alto-mar utilizando embarcações construídas por eles mesmos, as jangadas.
no modo de vida caiçara foram, e ainda são, constantes, implicando hoje em uma
interação com a praia bastante distinta (SILVA, 1993).
Os rastros históricos dos jangadeiros nordestinos são mais difíceis de estabelecer.
Embora exista a marcada influência dos africanos trazidos a força para a escravidão no
Pernambuco, esta também foi a capitania que mais escravizou indígenas, sobretudo
tupinambás (SILVA, 1993). Não existe um registro dos escravizados, suas origens ou
história pessoal. O certo é que o número de pescadores escravizados cresceu até o século
XIX e daí vem um rastro da origem jangadeira (SILVA, 1993). Daí vem também a
preocupação do pescador nordestino em ser livre, a valorização dessa liberdade.
As maneiras próprias de interagir com o mar e a praia ecoam suas origens, que
não são necessariamente europeias. Testemunham ecos ainda mais longos, por isso
também mais difíceis de escutar.
Raul Bopp (1976) nos instiga sons e cheiros que ecoam nesse passado de quem
atravessou mar de uma beira a outra.
Pesa em teu sangue a voz de ignoradas origens
As florestas guardaram na sombra o segredo da tua história
A tua primeira inscrição em baixo-relevo
foi uma chicotada no lombo
Um dia
atiraram-te no bojo de um navio negreiro
E durante longas noites e noites
vieste escutando o rugido do mar
como um soluço no porão soturno
Uma madrugada
baixaram as velas do convés
Havia uma nesga de terra e um porto
Armazéns com depósitos de escravos
e a queixa dos teus irmãos amarrados em coleiras de ferro
(Negro - Raul Bopp, 1976, p. 127)
Os ecos que se originam num sem número de mistério, vozes silenciadas,
testemunhos perdidos e recuperados. Gilberto Freyre (1937, apud DA SILVA, 1993, p.
630
30) diz: “A barcaça, a canoa e até a jangada estiveram por muito tempo ligadas à cana, ao
açúcar e ao negro do engenho”. Dos africanos que vieram, caçados e vendidos,
desumanizados mas apesar disso humanos, temos alguma noção de história. Desses povos
que já possuíam relação com o mar, vieram suas crenças que logo se misturaram com
outras. Seus deuses, reis e rainhas, seus santos. Dentre eles, aquela que perdura, em suas
referências sincréticas, testemunha dos sons do rugido do trovão e do chicote e do cheiro
do sangue, mãe, abrigo e concha: Iemanjá.
O mesmo samba (MATTOS et al., 1976) que fala do mar, misterioso, lendário e
fascinante, agora canta:
Oguntê, Marabô
Caiala e Sobá
Oloxum, Ynaê
Janaina e Yemanjá
São rainhas do mar
Referências de difícil rastreio para quem não bate pé nos seus terreiros. Simas
(2012), porém, demonstra como as expressões no samba se referem a qualidades da rainha
do mar, adaptações do seu nome ou entidade e a cantos de proteção. Se não há nas letras
e documentos o registro das maneiras como as gentes viviam a praia, o sentido de
adoração e respeito que ela principia, enquanto ligação com o mar, sobrevivem em ecos
na própria figura de Iemanjá. Ela que é rainha do mar, mãe, guerreira e protetora. Que
sustenta e ensina, cobra, exige. Se quando deixou a África, especialmente a região da
Nigéria, Iemanjá era rainha dos rios, das crianças e da fartura, chegando aqui já havia
disputado mar com Olokun, divindade iorubá masculina do mar, e ganhado (POR
DENTRO, 2017). Associada com Nossa Senhora dos Navegantes ou outras
manifestações da entidade cristã feminina, juntamente as noções de mãe terra e natureza
indígenas, Iemanjá, nos seus ensinamentos e alimentos traz essencialmente as mensagens
do mar e sobrevive em adoração ainda forte hoje. Iemanjá é sentimento-paisagem de praia
e mar exposto em sua complexidade característica.
Se procuramos ecos ainda mais longínquos da vivência da praia e interação com
o mar por aqui, facilmente os encontramos. O litoral já foi habitado por diversos povos
indígenas, dos quais sobrevivem em luta ainda hoje alguns. Em se tratando de
antepassados na região do litoral sul, afirma Silva (1993) que “as comunidades indígenas
da costa meridional do Brasil exploravam as lagunas vizinhas da Serra do Mar há 6000
ou 9000 anos” (SILVA, 1993, p. 22), como indicam os sambaquis na área. Os sambaquis
631
pertenceu, já que isto que nos era próprio permanecia vedado na aparência do que se dá
à luz” (PESSANHA, 2011, p. 54). A praia sagrada é lugar de transformação, é lugar de
união, de conexões misteriosas e cura, de vivência profunda duma paisagem agora sim
acessível, na imaterialidade da crença e da fé que o sagrado faz tomar forma e contato.
A decadência de um modo de vida frente aos confortos e facilidades contemporâneas é o
que está em jogo aqui. Como sobreviver nos tempos que estão aí. É no livro de Ihimaera
(2012) que a luta que a comunidade tradicional enfrenta vai ser descrita em palavras.
abstração” (SERRES, 2001, p. 317). Porém, não chega a ser abstração fugidia e vaporosa.
É concreta em sensações, em vivências e em capacidade de transformação. Nesse sentido,
o abstrato por si só não faz casa aqui.
O corpo que transcende praia ou mar o faz por mil canais que tangenciam a pátina
da pele exposta. Quando essa transcendência compõe tentáculos entre o corpo e o mundo,
aí alcançamos algo sagrado. A pátina da carne do corpo tem seus ecos e, para
compreender as possibilidades de abertura para suas imensidões, é preciso ir além da
substância, da matéria descrita com ganas sensíveis e sensuais. Além ou aquém, o que
melhor convir. Compreender a unicidade das coisas, não acreditando em tudo o que se
diz ao pé da letra. Pensar nos sentimentos que os ecos do corpo valorizam, suas afinidades
e proximidades. Resistir na permanência dos corpos.
Nesse sentido, alcançar o sublime da paisagem é ir além até mesmo da sua
apreciação sensível ou rotineira. Mas a paisagem sublime, que resguarda a transcendência
de si e do sagrado, essa precisa nos desafiar em suas provocações com forças próprias.
Por isso, o mar, mundo absurdo, nos incita tanto. A praia, enquanto abrigo e abertura, nos
libera.
Ouvir as ondas e entender suas mensagens próprias canaliza uma compreensão da
paisagem, enquanto abertura e exposição, e do lugar, da comunidade, que convergem e
se alimentam.
Nesse sentido, é possível compreender o sentimento-paisagem (COLLOT, 2012),
que para as gentes em contemplação do mar é apenas confusão, mistério, atração leve que
conquista. Para os habitantes da praia, os mistérios do mar que vislumbramos na praia já
transcenderam respostas, na sua imersão e atenção ao revelar do invisível no visível. O
sagrado, então, caracteriza uma forma própria de adentrar a imensidão em intimidade, um
eco característico das forças maiores que moldam as paisagens há milênios e nos
transparece o sublime. Uma intimidade que cura e renova e, por isso, também se liga a
morte. Que orienta, em seus termos próprios. Que valoriza as cadências do corpo e da
natureza. Valoriza, portanto, as vivências da praia e das montanhas e cachoeiras, e as
vivências do corpo: suas mensagens próprias. Recupera o sagrado na valorização do corpo
visceral. Que se atenta aos sabores, das ervas e dos alimentos. Na passividade atenta que
traz a vivacidade em si. Aos ciclos, da lua, dos seres, do útero. O sagrado se aninha na
intimidade, que pode ser da imensidão e da paisagem, mas corta. Flui mesmo ao cortar,
desaguar as más águas.
636
Referências
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Coleção os pensadores. São Paulo: Abril
Cultural, 1978.
BOPP, Raul. Cobra Norato e outros poemas. 11ª. ed. Rio de Janeiro: civilização
brasileiras, 1976.
BOTTON, Alain de. A arte de viajar. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2012.
COLLOT, Michel. Poética e filosofia da paisagem. Organização da tradução: Ida
Alves. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2013.
CORBIN, Alain. Território do Vazio: A praia e o imaginário ocidental, São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
DEBLASIS, Paulo; GASPAR, Madu. Os sambaquis do sul catarinense: retrospectiva e
perspectivas de dez anos de pesquisas. Especiaria - Cadernos de Ciências Humanas.
vs. 11 e 12, ns. 20 e 21, jul./dez. 2008 e jan./jun. 2009, p. 83-126.
HEMINGWAY, Ernest. O velho e o mar. (Trad. Fernando de Castro Ferro). 51ª ed.
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
IKIMAERA, Witi. Encantadora de baleias. São Paulo: Barany, 2012.
LIMA, Rozeane A.; SIMÕES, Cristian José; ARAGÃO, Patrícia Cristina de. SABERES
INDÍGENAS EM INTERFACE COM O CONTEXTO ACADÊMICO: a cartilha
saberes xukuru, a cura pela natureza sagrada. Revista Ensino Interdisciplinar, v. 3, nº.
08, Maio/2017 UERN, Mossoró, RN.
MACHADO, Helena Cristina F. A construção social da praia. Sociedade e Cultura.
Cadernos do Nordeste. Série Sociologia, vol. 13, n. 1, 2000. P. 201-218.
637
Introdução
O jornal Diário Popular, localizado ao sul do país na cidade de Pelotas, assim
como outros veículos de informações, veiculava gostos e modos de viver da sociedade
pelotense. Em funcionamento desde 1890, no ano de 1980 não foi diferente. Tendo como
este ano o recorte temporal definido para este artigo, e a cidade de Pelotas como o recorte
espacial estabelecido, tem-se como objetivo, apresentar aqui o que foi encontrado nas
páginas deste jornal, referente aos ecos de um movimento de expressão no vestir das
mulheres, e identificar reflexos da moda mundial em Pelotas.
Ressalta-se que a busca se deu em um estudo maior, inserido na proposta de
pesquisa de mestrado305 que vem sendo desenvolvida desde junho de 2020, através do
Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural, da Universidade
Federal de Pelotas. Os resultados dizem respeito a quatro meses de 1980, são estes:
janeiro, abril, setembro e dezembro, meses que marcam as diferentes estações -
importante para estudos relacionados ao vestuário e a moda, além de que, os meses de
virada de ano possuem caráter nostálgico e retrospectivo.
A observação e os resultados deste estudo deram-se através de três elementos
analisados nos jornais: as notícias de comportamento; as colunas sociais e de moda; e os
anúncios de loja. Pode-se iniciar pensando nos ares de liberdade presentes no jornal
devido ao contexto político, e a expectativa era de encontrar esses ares refletidos na moda,
pois as pessoas se expressam e se comunicam através das escolhas que elas fazem do que
vão vestir, como vão vestir, onde vão usar, como vão usar, quando vão usar, sendo essas,
algumas das possibilidades de combinações entre o uso do vestuário, os objetivos e suas
finalidades.
É importante advertir que a utilização da imprensa impressa como fonte histórica,
compreendendo periódicos, jornais e revistas, é uma fonte intensa para estudar o
303
O presente trabalho está sendo realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
304
Mestranda em Memória Social e Patrimônio Cultural pela Universidade Federal de Pelotas. Designer de
Moda (IFSUL). Email: [email protected]
305
SILVEIRA, Laiana Pereira da. O vestuário como suporte de recordação: lembranças da juventude
pelotense (1980-1989). Universidade Federal de Pelotas: Pelotas, 2021 (em andamento), sob orientação da
Prof.ª Dr.ª Francisca Ferreira Michelon.
640
Diante dos apontamentos trazidos pela autora, optou-se por recorrer a pesquisa
documental devido a carência de bibliografia sobre vestuário e moda para o estudo sobre
sociedade local, durante o período aqui determinado. Portanto, a investigação em jornal
veio a complementar a pesquisa bibliográfica realizada anteriormente sobre os modos de
vestir e a hegemonia da moda na década de 1980 a nível mundial e nacional. Os
exemplares do jornal Diário Popular analisados ficam acondicionados no Acervo físico
de Documentação da Bibliotheca Pública Pelotense, e estão disponíveis para consulta
local gratuitamente mediante agendamento, e eles não se encontram disponíveis na versão
digital.
Para compreendermos as observações que serão apresentadas, é importante
esclarecer dois conceitos que muitas vezes ou são confundidos ou são considerados uma
única coisa: moda e vestuário. Volpi (2018) define por vestuário:
revolucionária feminina, como foi o caso da cidade de Salvador que registrava essa
prática em suas praias, na praia do Laranjal o cenário era diferente.
Diante deste fato, uma das primeiras constatações possíveis de ser feita é que o
comportamento das banhistas que frequentavam a praia do Laranjal era diferente das
banhistas de outros lugares do país. Porém, apesar de elas possuírem certo zelo ao não
aderirem a prática revolucionária, elas se adaptaram e encontraram outras formas de
atualizar os trajes de banho de forma inovadora à sociedade local, e pode-se comprovar
isso através do trecho retirado do jornal do dia 17 de janeiro de 1980. Se por um lado as
banhistas ainda não tinham adotado o topless, por outro, elas inseriram mudanças nos
trajes.
De acordo com Volpi (2018), “mais do que refletir a moda de um período, o
aspecto e a ordenação dessas formas vestimentares constituem a expressão individual e
as escolhas simbólicas de um grupo (VOLPI, 2018, p. 14), relacionando ao que foi
apresentado acima, as expressões individuais e as escolhas simbólicas do público que
frequentava as areias da praia do Laranjal no verão de 1980, mudaram de forma sutil em
consideração as expressões individuais e as escolhas simbólicas do público das praias de
Salvador, que foi a cidade aqui usada como comparativo, devido a observação realizada
nas páginas do jornal.
306
Traduzindo para o português, a expressão utilizada na área da moda significa “terno de poder”
644
E não era só no final de ano que essas informações de moda estavam presentes,
pois na coluna “Feminina” de 13 de abril também haviam menções sobre o que era moda
e o que a mulher poderia se inspirar na hora de consumir. Com a presença mais uma vez
do blazer, também tinham sugestões de tecidos que estavam em alta, como as sedas, os
veludos, o tweed, os vários tipos de malhas - características da aeróbica (Jornal Diário
Popular, Pelotas, 13 de abril de 1980). Já na coluna “Atualidades” de poucos dias antes,
09 de abril, evidenciava o sucesso da calça baggy de veludo, das combinações de xadrez,
vestidos retos com fendas, conjuntos de saia, blusa e sobretudo, e também a ênfase ficava
por conta de apostar no blazer (Jornal Diário Popular, Pelotas, 09 de abril de 1980).
Sobre essas questões de contrastes nos comportamentos predominantes da época,
assim como, a imagem que a mulher queria passar e a preocupação com o estilo de vida
saudável, Schmitt e Sanchez (2019) comentam que:
inclusão ou sua não inclusão em certos grupos sociais, culturais, religiosos, políticos ou
ainda profissionais (GODART, 2010, p. 36), portanto, as leitoras do jornal, cientes dessas
novas práticas, poderiam optar por adotar alguma delas através do consumo de uma ou
mais peças referentes ao estilo.
3. Anúncios de lojas
O terceiro elemento observado nas páginas do jornal, referente ao vestuário que a
sociedade utilizava na época, ou quais produtos eram oferecidos ao consumidor pelo
comércio local, foram os anúncios de loja. Através dos anúncios era possível perceber
quais lojas estavam em funcionamento, bem como, conhecer os produtos
comercializados, as formas de abordagem as leitoras e principalmente as informações
contidas nos anúncios, o diferencial nas propagandas ali veiculadas.
Ao longo dos meses observados, era comum encontrar anúncios da loja gaúcha
Renner, alguns anúncios do tamanho da página do jornal, outros um pouco menores, mas
sempre com tamanho consideravelmente atrativo aos olhos do leitor. Geralmente, os
anúncios vinham com elementos gráficos e também imagens dos produtos, roupas
femininas, infantis, cama, mesa, banho, entre outros produtos anunciados. Também era
comum chamadas bem destacadas sobre as promoções, as formas de parcelamento, e as
condições de pagamento. Além disso tudo, alguns anúncios vinham com pequenos textos
interagindo com o leitor.
Na Figura 1 (abaixo), por exemplo, a chamada à coleção de primavera feminina
era evidente, começando com a frase “em Lojas Renner tudo são flores” (Jornal Diário
Popular, Pelotas, 09 de setembro de 1980, p. 7), era possível observar que na imagem
haviam 4 modelos com looks bem estampados e floridos, a composição das peças
superiores são de tons claros e como elementos de cena haviam flores nas mãos de
algumas das modelos, o cenário ao fundo esquerdo podia se perceber algumas folhagens
também, representando bem a natureza, a leveza, a primavera.
646
Figura 1: Anúncio Lojas Renner em 1980 sobre a chegada da coleção feminina de primavera.
Fonte: Jornal Diário Popular, 09 de setembro de 1980. Acervo de Documentação Bibliotheca Pública
Pelotense.
Abaixo das 4 modelos com looks que refletiam a chegada da primavera, havia a
seguinte frase, “a primavera já está florindo em Lojas Renner. Nos tailleurs, nos macacões
em seda e em algodão, nas calças de brim, nos vestidos e blusas alegres como você. Vista
a moda de Lojas Renner para esta temporada e deixe a vida mais bonita” (Jornal Diário
Popular, Pelotas, 09 de setembro de 1980, p. 7), a loja não vendia apenas um objeto de
vestuário, ela vendia um estilo de vida ideal através das chamadas desenvolvidas paras as
propagandas, e esse ideal poderia ser alcançado ao consumir os produtos pela loja
comercializados.
Partindo do princípio de Douglas e Isherwood (2004), que o consumidor tem o
poder de escolha da mercadoria que irá investir, aqui as leitoras persuadidas a investirem
no estilo de vida ideal trazido pela propaganda da loja, tinha essa opção de escolha, de
querer transparecer alegria por meio do vestuário, visto que, “dentro do tempo e do espaço
disponíveis, o indivíduo usa o consumo para dizer alguma coisa sobre si mesmo, sua
família, localidade, seja na cidade ou no campo, nas férias ou em casa” (DOUGLAS;
ISHERWOOD, 2004, p. 116), e é o que podemos observar desde a época de veraneio,
647
aos eventos sociais e por fim nas mercadorias propagandeadas e oferecidas para consumo
das leitoras.
Considerações finais
Diante das informações e observações aqui apresentadas, trazidas através do
levantamento documental no jornal local Diário Popular, e por meio das relações
realizadas com o levantamento bibliográfico, pôde-se identificar que o jornal auxiliou na
verificação e construção de uma história da moda local do ano em questão. Os
levantamentos também possibilitaram estabelecer um comparativo entre as modas ditadas
como internacionais e nacionais, ao que era veiculado localmente, e percebeu-se que as
leitoras do jornal tinham acesso a informações atualizadas. As peças-chave desse início
de década, assim como, as apostas do que seria moda nas próximas estações, estavam
presentes nas páginas do jornal.
Os três elementos aqui utilizados como forma de leitura de uma fonte histórica,
contribuíram grandemente à pesquisa sobre os modos de vestir dos frequentadores da
cidade, passando por vários momentos, desde o veraneio e os trajes de banho utilizados
por moradores locais e turistas, às dicas de vestimenta aos eventos sociais, o que usar nos
bailes, e o que foi usado, e por fim, as lojas em funcionamento na cidade apresentavam
as leitoras produtos com um ideal de consumo atrelado. Conclui-se que pode notar a
relação existente entre a moda e a sociedade apresentada em vários momentos pelo jornal,
que tinha como objetivo principal informar, mas podia acabar influenciando nas práticas
de consumo e nos modos de vestir.
Referências
BRAGA, João. História da moda: uma narrativa. 4. ed. rev. São Paulo: Anhembi
Morumbi, 2004.
CAPELATO, Maria Helena Rolim. A imprensa na história do Brasil. São Paulo:
Contexto/EDUSP, 1998.
CAPELATO, Maria Helena Rolim. Os jornais enquanto fonte de pesquisa:
possibilidades de estudo a respeito do município de Uberaba/MG. In: XX Encontro
Regional de História - História em tempos de crise. Uberaba, 2016.
COCHRANE, Lauren. 50 ícones que inspiraram a moda: estilistas. São Paulo:
Publifolha, 2015.
DOUGLAS, Mary; ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia
do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004.
GODART, Frédéric. Sociologia da moda. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2010.
648
REED, Paula. 50 ícones que inspiraram a moda: 1980. São Paulo: Publifolha, 2014.
SCHMITT, Juliana; SANHEZ, Gabriel. Gênero e moda: do binarismo à tendência
agender. In: SILVA, Camila Borges; MONTELEONE, Joana; DEBOM, Paulo (orgs.).
A história na moda, a moda na história. São Paulo: Alameda, 2019. p. 229-246.
VOLPI, Maria Cristina. Estilo urbano: modos de vestir na primeira metade do século
XX no Rio de Janeiro. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2018.
Jornais
Diário Popular, Pelotas (RS), 17 de janeiro de 1980. Acervo da Bibliotheca Pública
Pelotense.
Diário Popular, Pelotas (RS), 19 de janeiro de 1980. Acervo da Bibliotheca Pública
Pelotense.
Diário Popular, Pelotas (RS), 09 de abril de 1980. Acervo da Bibliotheca Pública
Pelotense.
Diário Popular, Pelotas (RS), 13 de abril de 1980. Acervo da Bibliotheca Pública
Pelotense.
Diário Popular, Pelotas (RS), 09 de setembro de 1980. Acervo da Bibliotheca Pública
Pelotense.
Diário Popular, Pelotas (RS), 28 de dezembro de 1980. Acervo da Bibliotheca Pública
Pelotense.
649
Introdução
A manifestação do vestir, compreendida enquanto moda, pode ser efêmera
conforme analisou Lipovetsky (2009), ser também uma linguagem como propôs Barthes
(2005), mas para nós, a premissa maior é a relação do vestir com a espacialidade da pessoa
que utiliza a vestimenta, e entender tal contexto faz-nos retomar ao recorte espaço-
temporal de Goiás no início do século XIX.
Buscamos investigar como viviam as pessoas no território goiano nas décadas
iniciais do 1800, em especial, averiguar pelas escassas fontes, o que vestiam. A
intencionalidade parte na perspectiva de relações que foram se consolidando entre Goiás
após o fim do apogeu da mineração com as duas áreas mais promissoras naquele contexto,
seguindo o deslocamento do poder de Salvador para o Rio de Janeiro (1763).
Poucas são as informações sobre Goiás, e elas estão centradas basicamente em
relação ao comércio de escravos, além dos registros paroquiais que compreendiam
nascimentos advindos dos apontamentos de batistérios, das uniões formalizadas via
matrimônios nem sempre instituídos pelos laços afetivos e pelas causas mortis,
registradas em livros de óbitos. Nos livros de dízimos, o controle do que se produzia,
alimentos e animais, mas quase nenhuma importância era dispensada ao vestir.
Os primeiros apontamentos, mesmo que não sistematizados, sobre o que se vestia
em Goiás no século XIX foi realizado durante a visita de europeus que nos relatos de suas
“Viagens” nos proporcionam informações distintas das que povoavam a documentação
religiosa ou administrativa, mesmo considerando a visão impregnada de preconceitos
eurocêntricos que eles carregavam.
Destacaremos ao longo do artigo questões que relacionam as vestimentas à
Geografia, iniciada com uma breve discussão, para em seguida tratar dos relatos sobre o
vestir em Goiás no ano de 1819, a partir dos escritos dos viajantes Pohl (1976) e Saint-
Hilaire (1975), dialogando com outras pesquisas no intento de contextualizar o vestir ao
307
Doutorado e Mestrado em Geografia IESA/UFG. Graduação em História (UniEvangélica). Grupo de
Pesquisa Geografia Cultural: Territórios e Identidade (UFG). E-mail: [email protected]
308
Doutorado e Mestrado em Geografia IESA/UFG. Graduação em Ciências Sociais (UniEvangélica). E-
mail: [email protected]
650
longo do território goiano. Para finalizar breves abordagens sobre o consumir relacionado
ao vestir, uma vez que o comércio era bastante incipiente.
(1976, p. 112). Os laços com o sacerdote foram ainda demonstrados em duas outras
ocasiões, tendo as vestimentas como ponto forte. Inicialmente durante a Missa da Meia
Noite do Natal de 1818, ao mencionar que quando “o vigário trocou a casula pela capa de
asperges para dar-nos a beijar a imagem do Menino Jesus, sendo eu o primeiro leigo a
fazê-lo” (p. 113). Em outro momento relembra que “ainda conservo o chapelão de folhas
de palmeira que instou para que eu usasse como proteção contra o sol e toda vez que
pouso o olhar sobre o chapéu me recordo com emoção do bom homem” (p. 114).
A mudança da roupa do padre durante a cerimônia demonstra a importância ritual
exigida pelo momento da Missa do Galo e do instante voltado ao contato do sagrado com
os fiéis, materializado pela imagem conduzida pelo vigário. Na ocasião posterior aparece
o chapéu, fabricado na região e muito utilizado para amenizar o intenso sol do Planalto
Central do Brasil, com abas largas e confeccionado a partir de folhas de palmeiras que
compõem a flora do Cerrado e se caracteriza por ser fresco ao mesmo tempo que protetor.
O chapéu é um componente do vestuário goiano desde o período da mineração, mas com
intensificação a partir da transição para a agropecuária e era ainda produzido localmente
também em lã em vários dos arraiais visitados, como indicam os registros por eles
realizados.
Saint-Hilaire, ao transpor os limites com Minas Gerais e chegar à Santa Luzia
relata:
meu arrieiro, José Mariano, vendeu às moças algumas bugigangas, mas
conforme o costume elas não vieram à nossa presença. O irmão serviu
de intermediário, levando a elas as mercadorias para escolha e
informando qual o preço que se dispunham a pagar. Não nos tínhamos
afastado mais do que nove léguas da fronteira, e no entanto José
Mariano já recebeu ali parte do pagamento em ouro em pó (1975, p.
23).
do que as irmãs ou mesmo mãe iam adquirir para uso. Atuavam como decisórios nas
aquisições, partindo de orientações, mas optando segundo suas vontades. O que indica
que para a moda adentrar às casas goianas, mediante os comerciantes volantes, passava
pelo crivo masculino; cabia ao homem escolher até mesmo o que as mulheres vestiam ou
portavam na composição vestimentar. Qualquer ingerência nos padrões culturais locais,
inclusive relacionados ao vestir, podia colocar a família em situação delicada diante dos
olhares e controles extremados que vigoravam no Brasil naquele período.
que o tecido era um diferenciador social no início do século XIX em Goiás, por isso a
menção à ancestralidade branca, que volta ao início da ocupação das terras goianas em
que o ouro consolidou, se não fortunas, alguns privilégios genealógicos.
Pohl ainda se dedicou a abordar a estamparia e textura presentes nas vestimentas
goianas, tanto as de casa como para as de rua, quando as mulheres usavam “vestidos de
chita com grandes flores” na rua e em casa eram comuns a homens e mulheres “blusa
listada”. Aos homens, no interior do lar “calças de algodão grosseiro” e para as mulheres
na rua “matos de lã grosseira”, oposição aos “vestidos de seda”. Indica também as cores
em evidência, predominante nos mantos: escarlate ou azul. Em relação aos ornamentos
de composição das vestimentas, curiosamente observa que mesmo as mulheres usavam
chapéus: “cobre-lhes a cabeça um chapéu de homem” e ainda “várias folhas ou contas de
ouro ornam-lhes o pescoço, e mesmo de noite não as retiram” (POHL, 1976, p. 145). A
presença de ornamentos em ouro indica distinção social, mesmo diante da penúria
econômica da maioria dos que habitavam Goiás no período, portá-los gerava, senão
prestígio, distinção social.
alimentá-los e ainda os mantinha ocupado durante o “dia do Senhor” pregado pela Igreja
Católica, assim ampliavam o lucro e não desobedeciam aos preceitos da religião oficial.
Não havia muita diferenciação entre as vestimentas dos goianos mais humildes,
as dos escravos e dos demais despossuídos espalhados pelo Brasil, como apontou o
viajante francês ao percorrer sítios nas proximidades de Bom Fim (atual Silvânia), onde
“o mais bem vestido trazia apenas calções de algodão e uma camisa do mesmo tecido,
traje habitual dos habitantes mais pobres do interior do Brasil” (p. 110).
Sobre o comércio no território goiano, mais precisamente, na capital, Cidade de
Goiás, a antiga Vila Boa, Saint-Hilaire fez as seguintes observações:
existe em Vila Boa (1819) um número considerável de lojas bem
abastecidas, as quais, como em todas as cidades do interior, vendem
indiscriminadamente mantimentos, miudezas e variados tipos de
tecidos. É no Rio de Janeiro que se abastece a maioria dos comerciantes
da cidade, os quais pagam exclusivamente com ouro os artigos que
recebem. O número de vendas é igualmente considerável, sendo
prodigiosa a quantidade de cachaça que nelas é vendida” (1975, p. 52).
Considerações finais
A História pode ser compreendida como o alinhavo de vivências e experiências
que nos antecederam e que transmitimos às novas gerações, em especial os quesitos que
achamos relevantes e que também extrapolam o grupo familiar indo em direção à
comunidade; o que caracteriza uma das possibilidades do patrimônio, entremeio aos
conhecimentos, os saberes e os fazeres, dos quais destacam sobremaneira a arquitetura,
658
Referências
BARTHES, Roland. Inéditos vol. 3: imagem e moda. Trad. Ivone Castilho Benedetti.
São Paulo: Martins Fontes, 2005.
CORRÊA, Margarida da Silva. Naturalistas e viajantes estrangeiros em Goiás (1800 a
1850). In: CHAUL, Nasr Fayad; RIBEIRO, Paulo Rodrigues (Orgs.). Goiás: identidade,
paisagem e tradição. Goiânia: Ed. UCG, 2001.
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades
modernas. Trad. Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
659
MAIA, Carlos Eduardo Santos. Geografia das vestimentas: dos clássicos às tendências.
In: Boletim Goiano de Geografia, vol. 35, num. 02, p. 195-216, 2015.
MAIA, Carlos Eduardo Santos. Moda: um fenômeno urbano. In: MAIA, Carlos Eduardo
Santos; MOREIRA, Jorgeanny de Fátima Rodrigues; TUMA, Raquel Lage (Orgs.).
Corpos cobertos desnudando espacialidades: vestimenta, roupa, traje, fantasia e
moda na Geografia. Jundiaí/SP: Paco Editorial, 2021.
POHL, Johann Emanuel. (1976). Viagem ao Interior do Brasil. Trad. Milton Amado e
Eugênio Amado. Itatiaia/EdUSP: Belo Horizonte/São Paulo, 1976.
SAINT-HILAIRE, Auguste de (1975). Viagem à Província de Goiás. Trad. Regina
Régis Junqueira. Itatiaia/EdUSP: Belo Horizonte/São Paulo, 1975.
SALLES, Gilka Vasconcelos Ferreira de. Economia e escravidão na Capitania de
Goiás. Goiânia: Cegraf/UFG, 1992.
VIDAL DE LA BLACHE, Paul. Les conditions géographiques des faits sociaux. In:
Annales de Géographie, t. 11, n° 55, 1902. pp. 13-23. Disponível em:
https://www.persee.fr/doc/geo_0003-4010_1902_num_11_55_18145. Acessado em: 20
fev. 2019.
660
Introdução
As cidades coloniais formadas no Brasil nos séculos XVIII e XIX possuíam como
uma de suas principais características as construções religiosas na paisagem urbana. Isso
ocorria pela forte presença do cristianismo na sociedade colonial. Durante aquele período,
a cultura religiosa exercia grande influência sobre o pensamento social; estabelecia um
sistema de crenças que erigia monumentos, os quais, por sua vez, historicamente
sustentaram memórias.
Desta forma ao indagarmos sobre a cidade de Mossãmedes, notamos que a mesma
se enquadra a estes parâmetros, ao repensarmos o passado histórico do município, é
perceptível por meio de suas imagens visuais, a forte presença da religiosidade desde a
formação da cidade, em suas estruturas físicas, arquitetônicas e espaciais.
No entanto é algo que vai além da estrutura urbana, perpassaram as estruturas
sociais, fazendo assim parte da constituição cultural deste aldeamento, sinais estes que
são tragos até os dias atuais. Ao observar a cidade hoje, percebe-se que a mesma se
modificou radicalmente em relação aos aspectos visuais, restando daquela época apenas
a bicentenária Igreja Matriz de São José, e as praticas culturais que são embasadas
fortemente na religião católica.
Desta forma o presente artigo tem por objetivo trabalhar o passado histórico da
cidade de Mossâmedes, sob um olhar das visualidades, buscando por meio delas verificar
como as suas origens históricas influenciam até os dias atuais. A paisagem pode dizer
muito sobre seu espaço, elucidando práticas sociais, culturais, patrimoniais, criando
lugares de memórias, materializando signos. Desta maneira ao observarem-se as imagens
visuais sobre Mossâmedes, o artigo buscará compreender as mudanças ocorridas na
paisagem durante o tempo, analisando a manutenção de alguns símbolos, certificando-se
como esses influenciam tanto na formação do seu patrimônio cultural, quanto em sua
memória social.
309
Mestranda em Estudos Culturais, Memórias e Patrimônios. Programa Mestrado Profissional (PROMEP),
pela Universidade Estadual de Goiás (UEG) Câmpus Cora Coralina. Contato: [email protected]
661
O uso das imagens é algo que vem sendo bastante explorado pelos historiadores,
ainda existem conflitos em relação aos métodos de utilização das fontes visuais, alguns
tratam as imagens como ilustração do texto, no entanto alguns pesquisadores a
consideram como o próprio documento a ser explorado.
Segundo Meneses (2003), a história da fotografia e da imagem fotográfica é o
campo que melhor absorveu a problemática teórico-conceitual da imagem e a
desenvolveu intensamente, por conta própria. É também de acordo com o autor o campo
que mais tem demonstrado sensibilidade para a dimensão social e histórica dos problemas
introduzidos pela fotografia, multiplicando-se os enfoques: ideologia, mentalidades,
tecnologia, comercialização, difusão, variáveis políticas, instituição do observador,
marginalização social e etc.
É notável que a apesar do uso intenso das imagens, essa nova fonte de pesquisa
ainda passa por alterações e adaptações. Trabalhar com visualidades é um processo
complexo, requer cuidados e dedicação, no entanto seu uso se torna de suma significância
para o trabalho cientifico, agregando informações que talvez o documento escrito não
fosse capaz de disponibilizar.
662
As visualidades têm muito a nos dizer sobre a sociedade, tanto no tempo presente
quanto em relação ao seu passado, as pessoas registram aquilo que é considerado
importante para elas, à forma como organizam suas lembranças e memórias tem muito a
nos dizer sobre sua história. Desta forma o campo visual tem conquistado seu espaço a
cada dia, muitos trabalhos produzidos atualmente na academia possuem como fonte
histórica imagens produzidas no período pesquisado.
Ao refletir-se sobre as visualidades e suas dimensões um texto referência é do
autor Arthur Freitas, em seu artigo “História e imagem artística por uma abordagem
tríplice” o autor discorre sobre as fontes visuais, sobretudo as artísticas, na qual são vistas
em função de três dimensões: a formal, a semântica e a social, segundo o autor essa
prosaica constatação pede, um olhar ampliado. Neste texto o autor se propõe a levantar
três questões referentes às imagens e os seus sentidos, auxiliando desta forma o
historiador na compreensão das figuras e suas funções diante a historiografia.
Freitas (2004) levanta a dificuldade de ordem historiográfica que existe na
distinção entre história e história da arte, segundo ele sabe-se que os historiadores tout
court, termo utilizado pelo autor, “são muitas vezes mal equipados para lidar com o
material visual, muitos utilizando as imagens apenas de maneira ilustrativa” (Gaskell,
1992: 237), deixando de explora-las como o próprio documento, e não apenas como
ilustração das fontes textuais.
No entanto é preciso compreender que, nesse meio, somente há poucas décadas
vem ocorrendo uma espécie de abertura àqueles objetos de pesquisas que não se
expressam sob a forma de documentos textuais. De acordo com Freitas (2004) A imagem,
e por extensão a imagem artística, ganha estatuto documental a partir dos anos 1960, e
começa a dar alguns bons frutos segundo o autor, na década de 1980, com certas pesquisas
de Michel Vovelle, Georges Duby e, sobretudo, Carlo Ginzburg.
Partindo - se do pressuposto da imagem como fonte histórica o autor Freitas
(2004) em seu artigo vem desmembrando as dimensões das imagens, ele inicia
discorrendo sobre a dimensão formal, de acordo com ele a experiência estética, pelo
menos desde Kant, é uma experiência formal, no entanto, a noção de forma de acordo
com o autor possui três definições básicas, a forma perceptiva, que equivale a uma
experiência do sujeito frente ao mundo, sendo estritamente estética, a forma lógica, na
qual corresponde à recepção, organização e projeção, de certo modo, é uma forma teórica,
na medida em que procura organizar geometricamente a espacialidade de um dado
objeto.
663
Ao que se refere à dimensão social das imagens o autor diz que a mesma agora
em “suspensão semiótica, é descrita como um artefato que, entre as balizas temporais do
tempo e de sua produção e o tempo presente, demarcou uma trajetória material e
simbólica efetiva” (FREITAS, 2004:13). Para Freitas:
A imagem, agora entendida como uma prática social se constrói
curiosamente na precisa continuação da historicidade da forma plástica.
Ou seja: se a abordagem formal tem como teto a compreensão
estritamente material de um objeto que foi, de algum modo, construído
no tempo, é a abordagem social que prolonga esse teto ao descrever os
caminhos que esse objeto percorreu até o presente (FREITAS, 2004, p.
13).
impactos dos processos sociais, se tornando uma operação que atua num certo sentido,
cumprindo certos papéis. “São elas igualmente, que ao nos informar sobre o lugar dos
discursos, mesmo os visuais, nos remetem assim à genealogia dos espaços materiais e
simbólicos que envolvem a produção e a recepção da “fala” dos artistas” (FREITAS,
2004, p. 13).
Por ultimo a dimensão semântica, segundo Freitas (2004) refere-se aos conteúdos,
está possuí relação com as demais dimensões, já que a interpretação de uma imagem
visual necessita-se da compreensão tanto do contexto quanto de sua visualidade
específica- sua forma. A dimensão semântica surge dos significados atribuídos ao um
sistema de referências e valores de um observador, cria-se da construção subjetiva de um
conteúdo. Assim sendo, “quando um conteúdo é atribuído por um intérprete a uma forma
visual contextualizada, a imagem deixa de ser entendida como pura forma ou fato social,
e passa a funcionar como uma relação de atribuição, ou seja, como um signo” (FREITAS,
2004, p. 14).
A dimensão semântica está relacionada à forma como “lemos” o mundo, de
acordo com Baxandall (1991), citado por Freitas (2004, p. 15), “lemos o mundo conforme
nossa bagagem cognitiva, ou seja, conforme uma bagagem de modelos, categorias,
hábitos de dedução e analogia”, que adquirimos pela nossa própria experiência social de
mundo, bagagem está que se altera com cada nova experiência. Nota-se desta maneira
que a dimensão semântica está ligada a interpretação e a representação do mundo, por
meio de criação de signos, simbologias inteiradas a memória, tradição, cultura, identidade
e patrimônio.
As visualidades e suas diversas formas trazem consigo a possibilidade de uma
leitura dos espaços diferenciada e lúdica, as imagens são permeadas de significações,
representações, simbologias, interesses implícitos e explícitos de uma sociedade,
carregadas de subjetividades e conteúdos que a própria fonte textual, por muitas vezes,
não é capaz de comprovar. Por tanto, torna-se de suma importância utilizar-se de imagens
como fontes visuais em pesquisas históricas, dando espaço e reconhecimento para novas
informações até então não desveladas.
Desse modo no próximo subtítulo será trabalhada a história da cidade de
Mossâmedes, sob uma perspectiva das visualidades, buscando uma leitura imagética
sobre as origens do município, visando compreender as mudanças ocorridas em seu
cenário urbano e as influências ainda existentes do passado sobre o presente.
665
A partir desta citação é possível perceber que a cidade e sua formação se torna
uma arte, segundo os autores uma arte total, por meio dela podemos identificar vários
fatores, culturais, sociais, políticos e econômicos, parâmetros que são capazes de
explicitar a realidade, as vivências de uma sociedade, os anseios e motivações daqueles
que residem nesse espaço. A cidade é fruto do seu meio e das pessoas que vivem nela,
suas representações e significações estão presentes por toda parte, desde o seu traçado a
suas obras, esculturas, arquiteturas, edificações, igrejas, e artes.
São essas manifestações artísticas e culturais que agrega, valoriza e qualifica uma
cidade como patrimônio, são suas especificidades que contam a historia do seu povo, são
elas que dão vida a espaços muitas vezes até inutilizados, porém se tornam “lugares de
memória”, espaços que evocam lembranças nem sempre espontâneas de seu passado, esse
termo é criado pelo teórico Pierre de Nora, segundo o autor a memória não é espontânea
sendo assim é necessário criar-se lugares, arquivos, manter datas comemorativas,
organizar celebrações, notariar atas, porque essas operações não são naturais.
A preservação das memórias, das tradições, dos bens patrimoniais se torna
importante justamente porque são esses elementos que dão vida e suporte para as
667
geograficamente. A cruz é bem visível no que se remete a igreja, em sua volta as casas
governamentais, seriam, portanto, o contato destes povos com a civilização. Fica claro
pelo traçado e a estruturação arquitetônica que o objetivo estava interligado na
pacificação dos povos indígenas, se utilizando da catequização para conseguir este
objetivo.
Porém, a paisagem se modificou radicalmente, o que pra ser um pequeno vilarejo
indígena se tornou uma cidade, fato que ocorreu com inúmeros aldeamentos no Brasil;
sua transformação posterior em povoados e cidades. Quando se analisa as imagens sobre
a cidade de Mossâmedes nota-se que apesar das varias alterações, ainda existem símbolos
e representações presentes no cenário mossamedino. Símbolos estes que evocam as
origens históricas do município, assim como suas memórias, tradições, cultura e
patrimônio.
Ao se fazer uma leitura imagética da cidade, percebe-se que restou daquela época
apenas a bicentenária igreja Matriz e o traçado urbano que a envolve, elementos esses que
demonstram a permanência do catolicismo e justificam as influências que a religiosidade
ainda possuí sobre Mossâmedes.
Quando se busca informações sobre a cidade de Mossâmedes tanto em jornais,
cartões postais, internet, folhetos, site da prefeitura do município, redes sociais, é
669
com Amaral (1998) a festa é um forte elemento constitutivo do modo de vida, é uma das
linguagens favoritas do povo brasileiro. A autora afirma também que a festa é uma das
vias privilegiadas no estabelecimento de mediações da humanidade, e que a festa
brasileira se liga essencialmente à religião e que desde o período colonial, a sociabilidade
brasileira encontra-se estreitamente relacionada à realização de festas.
O município de Mossâmedes tem como um dos seus referenciais justamente esta
promoção de festas religiosas, sempre datadas no mesmo período do ano, as mesmas
representam um momento de solenidade da cidade para com os seus santos, além de se
tornar um espaço de relações e trocas de memórias envolvidas por um rito de tradição.
Sendo assim, quando analisamos as visualidades da cidade de Mossâmedes desde
as origens históricas, perpassando pelas imagens do tempo presente, é notório como as
mudanças e permanências da paisagem no cenário mossamedino são capazes de elucidar
a cultura da cidade, tanto ao que se refere ao seu passado, quanto as suas praticas sociais
culturais, as memórias, lembranças, tradições e patrimônios, representados pelas suas
imagens e dimensões visuais.
As imagens possuem a capacidade de elucidar símbolos, sentimentos, memórias
e lembranças dos espaços representados por elas, ao se fazer uma análise minuciosa e
historiográfica das figuras, encontra-se informações que o próprio documento textual não
é capaz de demonstrar. Desta forma ao fazer-se uma leitura visual da cidade de
Mossâmedes é possível encontrar elementos que contém a sua história, assim como o seu
presente e as influências que seu passado histórico ainda exerce sobre ela.
Considerações finais
Ao trabalharem-se visualidades, os historiadores entram em contato com uma
trama cultural, carregada de signos, percepções, conteúdos subjetivos, percebidos e
captados sobre a ótica do observador, sejam fotógrafos, pintores, desenhistas, arquitetos,
museólogos ou curadores, ambos carregam consigo uma bagagem social e cultural,
limitando-os a perspectivas, interpretações do mundo sob suas “lentes”.
Desta maneira, ao utilizarem-se as imagens como fontes visuais se tornam
necessárias as problematizações de suas dimensões, formas, volumes, linhas, contextos e
sentidos. Porém apesar de todo o cuidado necessário com essa tipologia de fonte, seu uso
enriquece o trabalho científico, possibilitando leituras das paisagens sociais, culturais e
patrimoniais, não realizadas anteriormente pelos documentos escritos.
671
Referências
A. Bessa, D. Cunha, D. Loureiro, H. Barreira, M. coelho, M. Resende e M. Melo. O
PAPEL DA HISTÓRIA DA ARTE NUMA CIDADE PATRIMÔNIO MUNDIAL.
ESTUDO DE CASO: O PORTO. Actas do Seminário Centros Históricos: Passado e
Presente, pp. 199 a 205.
AMARAL, Rita de Cássia de M. P. Festa à Brasileira. Significado do festejar, no país
que “não é sério”. Tese (Doutorado em Antropologia) – PPGAS/USP, São Paulo, 1998.
FREITAS, Arthur – HISTÓRIA E IMAGEM ARTÍSTICA: POR UMA ABORDAGEM
TRÍPLICE. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n° 34, julho-dezembro de 2004, p. 3-
21.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos – HISTORICIZANDO COLEÇÕES E
MUSEUS ETNOGRÁFICOS. Antropologia dos objetos: coleções, museus e
patrimônios, pp. 44-57, 1999.
HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. In: O Semeador e o Ladrilhador. São
Paulo: Companhia das Letras, 1995. Cap. 4, p. 93-138.
MENEZES, Ulpiano T. Bezerra – FONTES VISUAIS, CULTURA VISUAL,
HISTÓRIA VISUAL. BALANÇO PROVISÓRIO, PROPOSTAS CAUTELARES.
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, n° 45, pp. 11-36 – 2003.
MONTEIRO, Ofélia Sócrates. História de São José de Mossâmedes. (Produção
Caseira) 1951.
672
Introdução
A pintura mural ou pintura parietal pode ser enxergada como um elemento que
interliga arquitetura e arte, pois é produzido tendo como suporte não uma tela, mas sim
as paredes de uma edificação. Segundo o dicionário CORONA LEMOS, “Pintura Mural”
é o termo que designa o tratamento particular produzido por um artista para determinada
parede ou muro, como parte integrante da decoração do ambiente (1972, p. 375).
As Pinturas Murais são verdadeiros registros documentais da história, da
economia, da cultura, da estética e dos modos de viver e habitar das sociedades em que
foram produzidas. É o que explica Fábio Galli Alves - técnico em restauro responsável
pelo inventário das pinturas murais em Pelotas-RS -. O autor endossa que “[...] esses bens
integrados à arquitetura incorporam intenções que transcendem o mero desempenho da
função inculcada por sua forma, dando-lhes novos sentidos sempre como marcas da
cultura que os trouxe à luz” (ALVES, 2014, p.2).
Não é a toa que este elemento artístico vem fazendo parte documental da história
da humanidade. Autoras como Eny Feijó Pinheiro (2014) e Márcia Braga (2003),
defendem que a pintura mural é uma das mais antigas formas de arte, pois reflete a história
do homem desde o Paleolítico.
Da Pré-História ao Renascimento, do Barroco ao Romantismo, as pinturas foram
adquirindo diferentes significâncias, mas sempre constituindo repertório histórico e
documental capaz de facilitar a compreensão de inúmeros aspectos sociais ao longo do
tempo.
Um exemplo disso está na arte decorativa do Barroco que, segundo Hannah
Levy, traz na pintura, principalmente dos tetos, um reflexo do caráter abstrato do regime
Absolutista, em voga na época “[...], pois a decoração barroca é, ao mesmo tempo,
310
Trecho da Dissertação de Mestrado intitulada “As pinturas murais no casario de Penedo, Alagoas: um
inventário da produção muralista do século XIX” defendida em 04 de dezembro de 2015. Disponível no
endereço eletrônico:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Mestrado_em_Preservacao_Dissertacao_PEREIRA_
Mariana_Aline_Barbosa.pdf.
311
Mestra em Preservação do Patrimônio pelo IPHAN, RJ-Brasil. Graduada em Arquitetura e Urbanismo
pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL), AL-Brasil. Contato: [email protected].
673
afirmação e negação do teto; ao mesmo tempo ela fecha e alarga o espaço; ela é
simultaneamente, limitação e negação de todos os limites” (LEVY, 1941, p.281).
Outro exemplo de como as pinturas refletem o período histórico e o contexto
social em que se inserem está na reflexão que Valéria Salgueiro faz no texto “A Arte de
Construir a Nação: Pintura de História e a Primeira República (2002)” quando cita que
os aspectos externos, mas “A forma e o aspecto dos edifícios (interior e exterior) definidos
pela sua estrutura, volume, estilo, escala, materiais, cor e decoração” (Carta de
Washington, 1987).
Já, os princípios do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios - ICOMOS
para a Preservação e Conservação – Restauro das Pinturas Murais (2003), em seu Artigo
1°, defende que o princípio básico para a preservação das pinturas murais é a produção
de um inventário das pinturas (sejam elas visíveis ou não). E a existência de uma
legislação que viabilize não apenas a proteção das pinturas, mas que preveja recursos para
a pesquisa, levantamento, monitoramento e captação dos valores atribuídos pela
sociedade (ICOMOS, 2003, p.2).
No Brasil, contudo, até a década de 1980, o conceito de “Bens Integrados” não
era utilizado. Segundo a museóloga Lygia Martins Costa (2000, p.47) até o final daquela
década, o IPHAN tinha uma visão simplista na qual o patrimônio cultural dividia-se em
dois eixos; o eixo dos bens imóveis (tratado pelos arquitetos) e dos bens móveis (tratado
pelos museólogos e historiadores da arte). Entre esses dois eixos havia uma lacuna onde
se inseriam os bens que estavam atrelados à arquitetura, mas não eram imóveis. Tratam-
se não apenas de pinturas murais, mas também de revestimentos em azulejo, retábulos,
altares e demais ornatos fixos.
Art. 216.
IV - As obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços
destinados às manifestações artístico-culturais;
V - Os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.
(BRASIL, 1988).
O Inventário
Para iniciar a pesquisa em solo penedense foram necessários recortes iniciais e
a compreensão da lógica temporal da cidade. Deste modo, o primeiro recorte estabelecido
foi o espacial, limitando-se ao levantamento das edificações contidas dentro do polígono
de tombamento federal podendo se estender ao seu entorno imediato. Este polígono,
estabelecido no processo IPHAN n° 1201-T-86, corresponde ao tombamento do Conjunto
Urbano e Paisagístico de Penedo (Ver Figura 01).
No entanto, somente no polígono de tombamento federal havia 810 imóveis com
arquitetura típica dos séculos XVII, XVIII, XIX, XX e XXI. O repertório arquitetônico
deste trecho da cidade era muito diverso, mas a produção muralista correspondente ao
período do século XIX, além de ser a maior amostragem encontrada em Penedo,
relacionava-se a uma época de significativo desenvolvimento econômico e social na
cidade.
A Penedo do século XIX (e início do século XX) foi marcada por transformações
urbanas, econômicas, sociais, políticas e culturais e, nesse contexto, as pinturas murais
foram verdadeiro reflexo da opulência do período. Em todo o país, desde o
estabelecimento do Império (1822), houve um período de reconfiguração de toda a nação.
A camada social que emergia com o cultivo, a importação e a exportação de diversos
gêneros passou a importar também os elementos culturais que estavam em voga no velho
mundo “mundo europeu”:
678
O contato com o mundo externo deu ao Brasil impulso para distanciar-se “[...]
de suas estruturas anteriores e lhe permitia, gradativamente, chegar a essa consciência de
sua independência e de sua afirmação como império autônomo [...]” (BARATA, 1960, p.
476). Na arquitetura, o reflexo disso foi o desapego às formas coloniais e o gosto pelo
Ecletismo. Nos interiores “[...] um mobiliário de gênero formal, junto às paredes
decoradas com papel colado, com dunquerques, espelhos, jarras de louça e, em certos
casos, o piano” (REIS FILHO, 2004, p.40).
As antigas alcovas coloniais deram lugar a ambientes espaçosos e ricamente
adornados porque naquele momento as casas eram feitas para receber. “[...] eram abertas
às visitas dos estranhos não apenas as salas e saletas de entrada, como ocorria nos velhos
sobrados coloniais, mas também saletas de música e capelas, corredores e salas de jantar
[...]” (REIS FILHO, 2004, p. 118).
Em Penedo não foi diferente, segundo Caroatá, o século XIX significou um
período pacífico e afortunado em Penedo “[...] onde prosperou o commercio [sic] com o
aumento da população e da cultura, cresceu a vila, fundaram-se os templos, começou a
aparecer a riqueza [...]” (CAROATÁ, 1872, p. 6).
Neste momento, os sobrados penedenses passaram por um processo
denominado, pela museóloga Carmen Lucia Dantas (2011, p. 211) como “capeamento
estilístico”, onde as fachadas ganhavam ornamentação neoclássica enquanto os interiores
permaneciam coloniais.
Sobre os hábitos e a ornamentação dos interiores destas residências há poucos
registros. O pouco que se sabe está na memória dos descendentes daquelas famílias que
vivenciaram a época de ouro da cidade de Penedo nos fins do século XIX e início do
século XX. Os moradores mais antigos relatam que era comum trazer pintores de outras
cidades ou mesmo países para executar as pinturas murais que enobreciam os ambientes
internos do casario.
Há relatos da chegada em navios de pintores vindos dos grandes centros, ou
mesmo de outros países. Estes ficavam conhecidos como “O pintor italiano”, “O pintor
português”, e logo os senhores que contratavam seus serviços ficavam famosos na cidade
por serem afortunados e de gosto requintado, capazes de trazer pintores do velho mundo
apenas para ornamentar suas casas (CALUMBY, 2014).
679
Figura 02 – Ficha de Inventário do Chalé dos Figura 03 – Ficha de Inventário Chalé dos
Loureiros - descrição da edificação. Loureiros - descrição das pinturas da varanda.
'
Fonte: Mariana Barbosa, 2015. Fonte: Mariana Barbosa, 2015.
Considerações finais
Este inventário trouxe ao conhecimento do IPHAN uma análise qualitativa e
quantitativa deste repertório e mostrou o cenário crítico em que os remanescentes deste
patrimônio se encontram. Há poucos exemplares restantes e, entre os que restam, uma
parcela significativa já está descaracterizada.
Constatou-se que as pinturas murais estão em risco iminente, pois o tombamento
do conjunto urbano não implica na preservação dos ambientes internos de seu casario, e
nenhuma das edificações inventariadas é tombada isoladamente em nenhum nível.
Compreende-se que o proprietário tem o dever de zelar pela preservação e conservação
de seu imóvel, contudo não há políticas de gestão que efetivem isso e não existem ações
que incentivem a proteção e conscientizem a população da relevância desses bens. É
possível então afirmar que esse repertório está sim, a ponto de ser destruído.
Considerando que a relevância desses bens se comprova através dos dados
inventariados, é possível apreender que, enquanto elementos integrados, eles contribuem
para a concepção geral da edificação, da linguagem impressa naquele patrimônio material
imóvel, e da imagem refletida da sociedade que o projetou e usufruiu.
Desde modo essas pinturas podem funcionar como mais um elemento valorativo
para a produção arquitetônica do século XIX na cidade de Penedo. Por este motivo, ambos
os bens, imóveis e integrados, podem ser utilizados como reforço mútuo da necessidade
de preservação de um e do outro.
Este inventário pode servir de subsídio para diretrizes futuras em prol da
preservação desses bens. A partir do conhecimento desse repertório, é possível implantar
ações de divulgação, educação patrimonial, e conservação preventiva, além de viabilizar
o tombamento e facilitar a sua gestão em possíveis obras de reforma e restauração.
As Pinturas Murais de Penedo são um verdadeiro relicário de uma cidade que
alcançou os tempos áureos da transição do país de colônia para Império e, mais tarde,
para República. Penedo é um verdadeiro amálgama de memórias, culturas e histórias
refletidas em seu casario tanto da porta para fora, quanto da porta para dentro.
Referências
ALVES, Fábio Galli; SANTOS, Carlos Alberto Avila. As decorações murais nos
ambientes internos dos prédios Ecléticos de Pelotas/RS. In: XXXIV Colóquio do
Comitê Brasileiro de História da Arte, 2014. Uberlândia. Anais... Universidade Federal
de Pelotas, 2014.
685
BARATA, Mário. As Artes Plásticas de 1808 a 1889. In: HOLANDA, Sérgio Buarque
de. História Geral da Civilização Brasileira. São Paulo: Difusão Europeia dos Livros.
1960. Tomo II. V.5, (Volume Brasil Monárquico), p.475-492.
BRAGA, Márcia. Conservação e restauro: Pedra, Pintura Mural e Pintura sobre tela.
Vol. 1. Editora Rio: Rio de Janeiro, 2003.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 1988.
BRASIL. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) – Processo
de Tombamento da Cidade de Penedo. Rio de Janeiro, 1996.
BRÊDA, José Maurício. Os Genes e os Memes de vovô. Jornal Gazeta de Alagoas,
Maceió, 12 de março de 2011. N° 2339, Seção SABER – Artigos.
CALUMBY, Julieta. Sobre a vinda de pintores estrangeiros a Penedo. [Entrevista
cedida a] Mariana Barbosa, Penedo, 2014.
CAROATÁ, José Próspero Jehovah da Silva. Revista do Instituto Archeologico e
Geographico Alagoano. N°2. Maceió: TYP do Jornal das Alagoas, 1874.
Carta de Veneza. II CONGRESSO INTERNACIONAL DE ARQUITETOS E
TÉCNICOS DE MONUMENTOS HISTÓRICOS. Veneza, 1964. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Veneza%201964.
pdf. Acesso em 23 de set. 2015.
Carta de Washington. CARTA INTERNACIONAL PARA A SALVAGUARDA DAS
CIDADES HISTÓRICAS – ICOMOS, Washington, 1987. Disponível em:
http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Carta%20de%20Washington%201
9 87.pdf. Acesso em 23 de set. 2015.
CORONA, Eduardo; LEMOS, Carlos A. C. Dicionário da Arquitetura Brasileira.1°
Edição. São Paulo: EDART, 1972.
COSTA, Lygia Martins. Bens Integrados – Conceituação e Exemplos (1992). In:
Inventário Nacional de Bens Móveis e Integrados: Manual de Preenchimento.
Brasília, IPHAN, 2000, p.47.
DANTAS, Cármen Lúcia. Igrejas e Sobrados seculares. In: Alagoas Memorável –
Patrimônio Arquitetônico. Instituto Arnon de Mello, 2011.
ICOMOS. Princípios do ICOMOS para a Preservação e Conservação – restauro
das Pinturas Murais. 14° Assembléia Geral – Victoria Falls, Zimbabwe: 2003.
LEVY, Hannah. A Propósito de Três Teorias do Barroco. In: Revista do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, N° 5, 1941, p.259-284.
PEREIRA, Sônia Gomes. Arte Brasileira no Século XIX. Belo Horizonte: C/Arte,
2008.
PINHEIRO, Eny Feijó. As Pinturas das Residências Santistas no início do século XIX.
Revista Brasileira de Arqueometria, Restauração e Conservação. Vol. I, Nº 2, pp.
028- 031. Disponível em:
http://www.restaurabr.org/arc/arc02pdf/06pinturasparietais.pdf Acesso em novembro de
2014.
REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro de Arquitetura no Brasil. 10.ed. São Paulo:
Editora Perspectiva, 2004.
686
Introdução
Este artigo faz parte do processo de investigação sobre as possibilidades da
utilização da ferramenta de levantamento aerofotogramétrico, que fará parte da pesquisa
de mestrado apresentada pelo autor (1) ao PACPS – Programa de Pós Graduação em
Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável da Escola de Arquitetura da UFMG, com
o título provisório: Documentação e Monitoramento do Conjunto Arquitetônico da
Pampulha com a utilização de Fotogrametria obtida através de Veículo Aéreo não
Tripulado, e está inscrito na linha de Pesquisa Patrimônio Cultural que engloba Técnicas
de Reconstrução Tridimensional, Realidade Virtual e Prototipagem aplicadas à
preservação e extroversão do patrimônio cultural. A pesquisa busca compreender o estado
da arte das Tecnologias da Ciência da Informação especificamente em documentação por
imagens obtidas através de Vants e sua aplicação no espaço de memória, procurando
relacionar questões referentes a Ciência da Conservação, a Ciência da Informação e a
Educação Patrimonial no contexto brasileiro.
Documentação Iconográfica
A documentação iconográfica é utilizada há milhares de anos como forma de
representação e documentação de nossa história através de técnicas e ferramentas de
levantamento e ilustrações que foram se transformando ao longo do tempo. As
representações dos artefatos históricos ocorrem há séculos e são recursos de grande
importância para a documentação e preservação da memória cultural assim como a sua
extroversão. A palavra iconografia (εικονογραφία) vem do grego "eykon", imagem,
e "graphia"314, escrita, sendo uma forma de descrever algum objeto ou fato, através de
imagens, ou seja, uma linguagem visual.
312
UFMG. Arquiteto, Mestrando no Programa de Pós Graduação em Ambiente Construído e Patrimônio
Sustentável. Contato: [email protected]
313
UFMG. Arquiteto, Doutor em Artes (ênfase em Conservação Preventiva), Docente do PPG em Artes e
do PPG em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável da UFMG; Pesquisador do
LACICOR/CECOR/EBA/UFMG. Contato: [email protected]
314
https://pt.wikipedia.org/wiki/Iconografia
688
Esta evolução tecnológica é conhecida como Revolução Industrial que pode ser
dividida até este momento em quatro fases conforme as mudanças tecnológicas, políticas
e sociais: a primeira é caracterizada pelas mudanças nos sistemas de produção e o
surgimentos das máquinas a vapor, a segunda revolução ocorre a partir da segunda metade
do século XIX até o fim da segunda guerra mundial e é identificada pelo aperfeiçoamento
das técnicas desenvolvidas na primeira. Neste período irá surgir a fotografia e o cinema
e que consequentemente altera os levantamentos, os registros patrimoniais assim como a
linguagem das exposições.
Já, a terceira revolução industrial corresponde ao período após Segunda Guerra
Mundial, também é conhecida por alguns autores como Revolução Técnico-Científica-
Informacional e está relacionada com a cultura de massa. Segundo GERMANA (2018),
as evoluções tecnológicas mais recentes e cada vez mais rápidas, também estão mudando
gradualmente a cultura e abordagem operacional do patrimônio, conforme ela nos conta,
as inovações centradas na digitalização incluem uma variedade de novidades, reunidas
pela chamada quarta revolução industrial que, em algumas opiniões podem ser lidas como
a continuação da terceira e, em outras como uma nova tendência.
Segundo SCHWAB (2016) a quarta revolução industrial altera a maneira de se
pensar, comunicar e se relacionar com os objetos devido as mudanças tecnológicas como
a inteligência artificial, a robótica, os veículos autônomos, a impressão em 3D, a
nanotecnologia, a biotecnologia, a ciência dos materiais, o armazenamento de energia, a
computação quântica, entre outras.
Estamos em uma era, em que as informações são transmitidas entre objetos
distintos, de um código para o outro, do analógico para o digital, da máquina para o
homem (LÉVY, 1993).
coquinho da região além de uma paisagem preservada as margens do rio Cipó. Ao longo
de sua história, este local se torna referência para o desenvolvimento da comunidade, que
até hoje mantém suas comemorações tradicionais e missas celebradas na capela da
fazenda. A fazenda do Cipó conta com o Espaço Cultural Nhá Rita, criado em 2005 com
o objetivo de salvaguardar a memória local, contanto hoje com um banco de dados com
mais de 1000 bens materiais e imateriais que contém fotos, registros de tradições, objetos
e fragmentos documentais que fazem parte da história local e da própria história da cultura
mineira. Com o apoio da ong Baí, o espaço recebe o Ecomuseu do Cipó, onde são
realizadas oficinas de educação patrimonial, registro de tradições e valorização da cultura
local, tornando- se referência para as comunidades rurais, localizadas em seu entorno
assim como para a exploração do turismo sustentável, valorizando a memória e
reforçando a economia da região.
Figura 7. Modelo 3 D
Considerações finais
Foi observado que as árvores atrapalham muito o levantamento e que neste estudo
de caso os resultados seriam melhores se tivesse sido levantado uma construção por voo,
serviu como forma de investigação para definir uma metodologia que será aplicada na
pesquisa e no aerolevantamento do Conjunto Arquitetônico da Pampulha, que tem como
objetivo verificar as possibilidades do uso de câmeras RGB que são encontradas em
smartphoes, tablets e vants, para que pequenas comunidades possam realizar sua própria
documentação, o monitoramento e até mesmo a extroversão do seu patrimônio com base
técnica, científica e com um custo relativamente baixo, contribuindo desta forma com a
ciência brasileira.
Referências
ALBERTI, L. B. L'Architettura (De Re Aedificatoria) Testo latino e traduzione a
cura di Giovanni Orlandi, Introduzione e note di Paolo Portoghesi. Milano: 1966,
Edizioni in Polifilo, v. 1, 1452.
BARBARO, D. I Dieci Libri Dell’ Arghitettura: Tradoitti e comentadi. Milano: 1987
- Edizioni il polifilo, 1567.
CALABRESE, M. et al. Integrated and Predictive Systems for Preventive. Studies in
Conservation, v. 63, p. 43-50, 11 set. 2018.
CHOAY, F. A Alegoria do Patrimônio. Tradução de Luciano Vieira Machado. São
Paulo: Unesp, 2001.
GERMANA, M. L. Technology and Architectural Heritage: Dynamic Connections. In:
GERMANA, M. L. Conservation of Architectural Heritage - A Culmination of
Selected Research Papers from the Second International Conference on
Conservation of Architectural Heritage. Egypt: Springer, 2018. p. 77-92.
HIDALGO, J. M. R. De la reconstrucción tradicional a la virtual. Una visión desde la
Arqueología. Virtual Archaeology Review, v. 1, n. 1, p. 163-167, Abril 2010. ISSN
697
315
Mestrando em História pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Contato:
[email protected]
316
Disponível em:
https://seculoxx.ibge.gov.br/images/seculoxx/arquivos_download/populacao/1950/populacao1950aeb_09
_a_19.pdf . Acesso: 29/06/2021
317
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/20/aeb_1970.pdf . Acesso: 29/06/2021
699
318
Disponível em: https://www.olinda.pe.gov.br/ Acesso 03/07/2021
700
A cidade de Olinda, por toda a sua rica história e suas celebrações momescas,
permanece no imaginário de inúmeras pessoas, sobretudo dos seus inúmeros visitantes e
dos moradores mais antigos, despertando um sentimento alegre e acolhedor de nostalgia.
São recordações afetuosas da região, que, inclusive, inspiram obras de artistas das mais
diferentes vertentes, como, por exemplo, a letra da música Olinda, Cidade Eterna,
composta por Capiba, que fala sobre os aspectos da cidade do presente, comparando-os
com o passado:
Porém, embora o passado seja algo que não podemos mais vivenciar, podemos,
ao menos, tentar representá-lo, através do uso das imagens. Desse modo, pretendemos
fazer o estudo das cidades, levando em consideração a memória coletiva, tendo como
suporte a relação entre a História e a Fotografia.
As imagens expostas nesta comunicação são consequência de pesquisas realizadas
através de consultas na Brasiliana Fotográfica, do Diário de Pernambuco e dos acervos
privados dos moradores, como os expostos na internet, através da página do Facebook
chamada Olinda de Antigamente. Ao final do Mestrado, pretendemos produzir, como
produto, um catálogo das imagens coletadas, a fim contribuir com a historiografia, para
futuras pesquisas.
319
Fonte: https://analisedeletras.com.br/paulo-molin/olinda-cidade-eterna/
702
Esta imagem foi retirada na frente do antigo quartel, no início dos anos 70,
provavelmente nas férias de verão, quando os olindenses costumavam frequentar a praia.
Este cenário mostra a cidade em crescimento habitacional, onde podemos observar
também a presença de carros estacionados ao longo da orla e de casas à beira-mar.
Adiante, o mesmo local, contudo, foi alvo da especulação imobiliária de
empreiteiras, que aos poucos foram derrubando as casas e construindo edifícios, já no
final da década de 70
703
Era nestas praias que a juventude dos anos Rebeldes reunia-se ao sabor
do sol e do mar, durante o duro período do qual passava o Brasil.
Mesmo hoje, os jovens ainda reúnem-se na orla olindense, a contemplar
este mar verde esmeralda, ainda que com seu espaço físico já tão
modificado pelo passar dos anos. Já não temos mais os anos rebeldes
do passado, exceto nas lembranças de quem os vivenciou, e mesmo hoje
ainda guarda a lembrança, deste velho e belo mar d'Olinda, que tantos
segredos fora ele confidente. (Disponível em:
https://www.facebook.com/Olindadeantigamente/photos/praia-de-
olinda-anos-70cart%C3%A3o-postal-antigo-retratando-orla-do-bairro-
novo-e-cas/229364907268430/ . Acesso: 29 de Julho de 2021.
Quando a página faz o comentário de que o cenário atual está modificado, ficando
apenas na lembrança daqueles que vivenciaram à época, percebe-se a intenção em
demostrar que local hoje em dia parece irreconhecível.
Nos anos 80, nesse mesmo local, já percebemos uma maior concentração de edifícios
no local:
704
Considerações finais
Tivemos como objetivo nesta comunicação apresentar aos leitores as mudanças que
a orla de Olinda tem sofrido, fazendo uma comparação entre o passado e o presente.
Acreditamos que a construção do nosso catálogo imagético, que está atualmente em
construção no Mestrado Profissional em História da Unicap, poderá ser uma fonte de
pesquisa para os interessados nos estudos das cidades, memórias e transformações
urbanas. Estamos avaliando a possibilidade de realizar entrevistas com os moradores que
vivenciaram estas transformações, pois consideramos extremamente importante ouvir os
atores sociais que carregam consigo memórias vivas do espaço que residem. Conforme
cita Maurice Halbwachs, “recorremos a testemunhos para reforçar ou enfraquecer,
também para completar o que sabemos de um evento sobre o qual já temos alguma
informação” (HALBWACHS, 2006, p. 29).
Referências
BARROS, José D’Assunção. História e memória – uma relação na confluência entre
tempo e espaço. Revista MOUSEION, vol. 3, n.5, Jan-jul. /2009.
BAERS, João. Olinda conquistada. Recife: Typographia de Laemmut & C.
Editores,1898.
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Trad.: Diogo Mainardi. São Paulo: Cia. das
Letras, 1990.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. 2. ed. São Paulo: Centauro, 2006.
NASCIMENTO, Eliane Maria Vasconcelos do. Olinda: uma leitura histórica e
psicanalítica da memória sobre a cidade. Tese (Doutorado) - Universidade Federal da
Bahia, faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Salvador, 2008
707
Introdução
Neste estudo analisamos as fotografias do imigrante francês Sr. Jorge Ruffier para
compreender como os sujeitos vivenciaram os modos modernos de sociabilidade, entre
os anos 1910 e 1930, no Balneário Cassino – primeira estância de banhos do Rio Grande
do Sul, construído junto ao Oceano Atlântico, a 23 quilômetros da cidade do Rio Grande.
A principal fonte visual desta pesquisa é a dos originais fotográficos, tal como
foram produzidos no passado, organizados em álbuns, os quais foram recebidos pela
pesquisadora para a guarda no ano de 2008. Os álbuns do Sr. Ruffier possuem fotografias
realizadas por ele e outras em que disponibilizou a câmera para alguém com a intenção
de estar presente na imagem.
Abordamos a fotografia como realidade da representação e memória, e
defendemos que ao analisar uma fotografia estamos diante de uma segunda realidade, o
documento. Adotamos uma metodologia de análise iconológica e interpretação
iconográfica apoiados no livro “Fotografia e História”, de Boris Kossoy.
O Sr. Ruffier nasceu no Rio de Janeiro no ano de 1885, filho de mãe belga e pai
francês, foi registrado no consulado francês daquela cidade, e obteve o status de cidadão
francês. Antes de completar um ano de idade mudou-se com os pais para Bruxelas, na
Bélgica. Em 1900 seu pai o matriculou em uma escola municipal, onde adquiriu as noções
necessárias para desempenhar a profissão de mecânico-eletricista. Em maio de 1903
retornou ao Rio de Janeiro, onde desempenhou diversos cargos. Em 1910 foi contratado
pela Cie. Française du Port de Rio Grande do Sul para trabalhar como engenheiro
elétrico, e desembarcou no município do Rio Grande em novembro do mesmo ano
trazendo consigo uma câmera fotográfica.
320
Este artigo deriva da minha tese de doutorado, intitulada “Rio Grande - RS no início do século XX:
análise do cotidiano da sociedade burguesa em registros fotográficos e escritos de um imigrante francês”,
defendida em 2019 no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa
Catarina. https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/215571
321
Professora nos cursos de Geografia Licenciatura e Bacharelado da Universidade Federal de Pelotas.
Doutora em Geografia pela Universidade Federal de Santa Catarina.
709
Figura 2 – Casa da família Ruffier no Balneário Cassino e banhos de mar na praia, 1924.
Durante o verão, as famílias tinham o hábito de permanecer à beira mar. Para isso,
alugavam barracas individuais nas quais ficavam os apetrechos dos vilegiaturistas. Estas
barracas eram utilizadas para a troca da roupa de banho e guardar os equipamentos
necessários para o lazer na praia, tais como cadeiras, guarda-sóis, lonas e estacas que
eram armadas proporcionando sombra e privacidade. Observamos que as barracas eram
de madeira e possuíam rodas, se necessário poderiam ser movidas para o local escolhido
para os banhos de mar (figura 6).
715
Em dezembro de 1926, o Sr. Ruffier fretou um ônibus para levar a sua família
para o início do veraneio no Cassino, e registrou a chegada deste na frente do seu chalé,
como mostra a fotografia abaixo (figura 8). Ainda há o registro em fotografia de um avião
aterrissado na praia, próximo ao chalé da família Ruffier, em primeiro de janeiro de 1931
(figura 9).
717
que estaria por vir. Ao analisar as fotografias do Sr. Ruffier sustentamos que as imagens
junto ao mar fornecem indícios da vida balneária. Assim, a fotografia se apresenta como
objeto de imersão e meio de experimentação e descoberta do espaço.
Considerações finais
O processo que originou as fotografias do Sr. Ruffier tem como cenário o contexto
econômico, social, político e cultural onde vivia, portanto desvela fragmentos do real por
meio do assunto registrado. Buscamos entrelaçar a memória pessoal e histórica, e
compartilhar narrativas que apresentam o vivido. As fotografias são rastros que
materializam e representam uma cidade que se modernizava, confirmando o interesse dos
sujeitos em vivenciar o balneário como lazer.
O acervo fotográfico do Sr. Ruffier nos permitiu analisar as interações entre a
modernização do Rio Grande, decorrente da industrialização, e as novas cotidianidades
desfrutadas no Balneário Cassino. Nesta fase da modernidade, Rio Grande passou a ser
gerenciado por uma visão fundamentada no discurso técnico-científico. Os engenheiros
e empreendedores industriais foram os divulgadores desse discurso, pois produziam o
conhecimento sobre as novas técnicas que influenciaram a criação do Balneário Cassino.
O Sr. Ruffier se mostrava alinhado com estas ideias.
Referências
BITTENCOURT, Ezio da Rocha. Da rua ao teatro, os prazeres de uma cidade:
sociabilidades e cultura no Brasil Meridional – panorama da História de Rio Grande. 2.
ed. Rio Grande: Ed. da FURG, 2007.
ENKE, Rebecca Guimarães. O espetáculo do mar em uma estação balneária no Rio
Grande do Sul - A vilegiatura marítima na Villa Sequeira/Praia do Cassino (1885-
1960). 2013. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.
KOSSOY, Boris. Fotografia & História. 5. ed. São Paulo: Ateliê Editorial, 2014.
RUFFIER, Jorge. Caderno de memórias. Rio Grande.
719