SciELO - Brasil - Sexualidade, Gênero e Identidade - Questões para A Psicanálise Sexualidade, Gênero e Identidade - Questões para A Psicanálise
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Sumário
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fun…
Resumo Texto (PT) PDF
Artigos • Rev. latinoam. psicopatol. fundam. 22 (2) • Apr-Jun 2019 •
https://doi.org/10.1590/1415-4714.2019v22n2p215.4
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Sexualidade, gênero e identidade: questões para a
psicanálise
Resumos
O objetivo deste ensaio é analisar a forma pela qual as noções de sexualidade, gênero e
identidade colocam questões para a psicanálise, na medida em que problematizam formas de
subjetivação presentes em sua prática discursiva. Considerando a análise de Foucault a
respeito da formação do dispositivo da sexualidade e a discussão empreendida por Butler sobre
o problema da identidade nas discussões de gênero, pretende-se situar o lugar do complexo de
Édipo na constituição do sujeito em psicanálise e a crítica de Freud à moralização da
sexualidade na experiência moderna. Finalmente, a partir das noções de vulnerabilidade e de
despossessão de si, retomam-se os conceitos psicanalíticos de desamparo e de feminilidade
com o objetivo de pensar a importância de um pensamento da alteridade para a prática
psicanalítica.
Palavras-chave:
Sexualidade; gênero; identidade; alteridade
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Key words:
Sexuality; genre; identity; otherness
Le but de cet article est d’analyser la façon dont les notions de sexualité, de genre et d’identité
posent des questions à la psychanalyse, dans la mesure où elles problématisent les formes de
subjectivation présentes dans sa pratique discursive. En considérant l’analyse de Foucault sur
la formation du dispositif de la sexualité et la discussion de Butler sur le problème de l’identité
dans les discussions sur le genre, nous avons l’intention de situer la place du complexe d’Œdipe
dans la constitution du sujet dans la psychanalyse et la critique de Freud à la moralisation de la
sexualité dans l’expérience moderne. Enfin, à partir des notions de vulnérabilité et de
dépossession de soi, les concepts psychanalytiques de détresse et de féminité sont abordés
dans le but de réfléchir à l’importance d’une pensée d’altérité pour la pratique psychanalytique.
Mots clés:
Sexualité; genre; identité; altérité
El objetivo de este ensayo es analizar la forma en la que las nociones de sexualidad, género e
identidad plantean cuestiones para el psicoanálisis, en la medida en que problematizan formas
de subjetivación presentes en su práctica discursiva. Considerando el análisis de Foucault
sobre la formación del dispositivo de la sexualidad, y la discusión iniciada por Butler sobre el
problema de la identidad en las discusiones de género, se pretende situar el lugar del complejo
de Edipo en la constitución del sujeto en el psicoanálisis y la crítica de Freud a la moralización
del sujeto en la experiencia moderna. Finalmente, a partir de las nociones de vulnerabilidad y
de desposesión de sí, se reanudan los conceptos psicoanalíticos de desamparo y de
femineidad con el objetivo de pensar la importancia de un pensamiento de la alteridad para la
práctica psicoanalítica.
Palabras clave:
Sexualidad; género; identidad; alteridade
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Schlüsselwörter:
Sexualität; Geschlecht; Identität; Alterität
É pelo estudo, portanto, das formas de regulação das populações, isto é, de uma biopolítica, e
da maneira pela qual o poder se produz positivamente no Ocidente, que Foucault empreendeu
essa história da sexualidade na modernidade que constitui o primeiro volume de sua obra, A
Vontade de saber. Foi pelo estudo, finalmente, que foram delineadas algumas linhas de força
da constituição do que denominou dispositivo da sexualidade, e isso a partir de três direções
distintas.
A primeira é que, no nível do discurso, antes de silenciar e excluir as formas de saber sobre a
sexualidade, a modernidade produziu uma verdadeira injunção para falar sobre isso (
Foucault, 1976, pp. 25-49). Da pastoral católica à instituição da família, passando pela escola,
pela clínica médica e pela literatura libertina, o Ocidente exigiu essa passagem do sexo para o
discurso, de modo que, na institucionalização da confissão católica, nas arquiteturas e nos
documentos institucionais das escolas, na produção de todo um método clínico - orientado em
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torno da codificação clínica do “fazer falar”, dos postulados de uma causalidade geral e de um
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princípio etiológico latente, da criação de um método interpretativo e da medicalização da
sexualidade - observou-se menos uma restrição discursiva em relação ao sexo e mais uma
Brasil
multiplicação.
No que concerne às práticas da sexualidade, igualmente (Foucault, 1976, pp. 50-67). Ora, se no
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antigo regime canônico e civil do direito, até o século XVII, os ditos desvios em relação à
sexualidade eram considerados todos, sem especificação, transgressões ao princípio jurídico e
religioso do matrimônio - isto é, tudo o que ultrapassava esse registro era considerado, de uma
forma global, infrações no domínio da sexualidade -, a partir do século XVIII, passou-se por
todo regime de especificações, devido sobretudo ao desenvolvimento da clínica médica, de
modo que a antiga figura do libertino se transformou na personagem do perverso, com seus
respectivos nomes e descrições psiquiátricos (Foucault, 1976, p. 60).
Em segundo lugar, em relação à psicanálise, é preciso dizer que Foucault identificou em sua
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prática discursiva, de maneira predominante, uma continuidade entre a teoria da sexualidade e
as práticas de confissão e de exigência de produção de verdades incidentes na scientia
sexualis. Ora, desde os escritos sobre as psiconeuroses de defesa até o que se poderia
identificar como últimos textos de Freud sobre as estruturas clínicas em psicanálise, isto é,
Neurose e psicose e A perda da realidade na neurose e na psicose, é sempre a partir da
compreensão de uma etiologia sexual das neuroses ou, ainda, da importância da sexualidade
nas formações do inconsciente que a clínica psicanalítica foi pensada (Freud, 1894/2010a, p. 3;
Freud, 1896/2010b, p. 62; Freud, 1924/2010c, pp. 283-284, Freud, 1924/2010d, pp. 299-300, 303).
Assim, se a psicanálise, por um lado, empregara ao longo de seu movimento, para utilizar um
termo adotado por Freud (1914/2005a, p. 249), uma concepção jurídica do poder, onde a pulsão
se relaciona com um mecanismo de defesa cujo estatuto é primordialmente caracterizado pela
negatividade, por outro, ela só pôde se constituir como discurso e definir em torno de seu objeto
inconsciente uma positividade, como forma de causalidade psíquica, sob a direção geral de um
dispositivo da sexualidade.
Seria, com Lacan (1959-1960/1986, p. 9), a experiência da psicanálise uma experiência mais
próxima de uma ética do que de uma ciência? (Foucault, 1983/2015, p. 114), essa é uma
questão que gostaríamos de colocar - sem necessariamente afirmar - o que seria desconsiderar
o próprio método genealógico - que a psicanálise seria uma modalidade moderna de ars
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erotica.
No entanto, se atentarmos para alguns de seus textos das duas décadas precedentes, pode-se
igualmente contemplar a presença de uma outra perspectiva. Mesmo que os “Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade”, de 1905, possa ser, sob muitos aspectos, aproximada a uma
obra científica sobre a sexualidade, é nesse mesmo texto que
Freud (1905/2006, pp. 98-104, 107-111, 133-137, 146-151) identifica a presença de uma
sexualidade nas crianças e, ao mesmo tempo, atribui à sexualidade, de forma geral, o caráter
de infantilidade. Ora, se por um lado Freud descreve a inscrição da sexualidade no corpo da
criança a partir de todo um desenvolvimento possível onde as pulsões se orientam através de
zonas erógenas para, num momento ulterior, atingir a genitalidade, esse investimento do corpo
não se dá sem se caracterizar por uma autonomia das funções sexuais em relação à anatomia,
como manifesta sua tese de uma sexualidade perverso e polimorfa (Poli, 2007, p. 13). Com
efeito, como se observa nas discussões em torno da tradução do termo Trieb, traduzido ora por
instinto - correspondendo a Instinkt - ora por pulsão, identifica-se em Freud a não
correspondência entre a sexualidade da psicanálise e a sexualidade do discurso médico,
baseado numa anatomia patológica (Foucault, 1963/2000, pp. 123-149).
Além disso, é preciso dizer, que, nesse mesmo ensaio, Freud (1905/2006, p. 82) apresenta uma
distinção importante entre a sexualidade dos antigos e a sexualidade dos modernos. A saber,
que enquanto para os antigos a sexualidade se ordenava em função das intensidades, pouco
importando a natureza objetal das formas de satisfação, para os modernos, mais importante do
que as intensidades seriam os objetos através dos quais a sexualidade seria vivida. Com efeito,
a constituição de uma “moral sexual ‘civilizada’” estaria na origem das “doenças nervosas dos
tempos modernos” (Freud, 1908/2005b, pp. 198-199, 203-205), de modo que, ao postular a
existência de uma sexualidade perverso e polimorfa no coração da subjetividade e ao indicar
que, em relação à pulsão, o que há de mais variável se situa no nível do objeto (
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, p. 170), que
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psicanálise crítica da Leia
sexualidade moderna. Longe de se reduzir às determinações de um desenvolvimento biológico
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da libido, bem como às formas pelas quais o Ocidente realizou a “moralização” da experiência
erótica, a experiência psicanalítica deveria permitir uma circulação da sexualidade, operada por
movimentos de desidentificação e potencializada por experimentações criativas (Poli, 2007, p.
Brasil
18).
Menos sob a forma psicológica do desejo, como caracterizou Foucault (1978/2011, pp. 389-390),
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haveria na psicanálise um espaço de abertura ao que, entre os corpos, se manifesta como
prazer? Seria possível, por essa via, pensar o segundo sentido do termo sujeição, proposto por
Foucault, quando ele se caracteriza como forma de resistência? (Foucault, 1976, pp. 90-92).
Talvez, entre os autores da tradição psicanalítica, Lacan tenha sido o que mais contribuiu para
a desconstrução, para empregar um termo caro a Derrida (1967, pp. 25-26), do complexo de
Édipo. Em primeiro lugar, foi Lacan quem, ao conceber um inconsciente estruturado como uma
linguagem (Lacan, 1953/1966d, p. 269), empreendeu uma leitura de Édipo a partir da noção de
estrutura. Isto é, segundo o autor, entre o bebê e seus pais, haveria muito mais a circulação de
um objeto como atributo de valor e a caracterização das figuras parentais como funções
simbólicas do que uma coincidência naturalizante entre o objeto psíquico e um determinado
órgão - se quisermos falar do primado do falo em Freud.
O segundo tempo de Édipo, para Lacan (1957-1958/1998, pp. 183-186, 192), é caracterizado por
um deslocamento do objeto fálico. Com efeito, e num primeiro momento, é precisamente o ir e
vir da mãe que permite à criança a simbolização da alteridade, de modo que a mãe não deve
ser complemente idêntica à criança - ela não é, nos termos de Lacan, completa em relação à
criança e nem a criança, inversamente, deve ser completa em relação à mãe. Pelo aparecer e
desaparecer da mãe, a criança percebe o simples fato de que sua mãe pode desejar alhures. O
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de ser. Ora, por sua Leia
No terceiro tempo de Édipo, quando o falo passa a ter um estatuto simbólico, o pai aparecerá
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como aquele capaz de promover a castração, logo a destituição do lugar de satisfação
imaginária ocupada pela mãe, mas também é ele quem permite, na função de doador, como
assinala Lacan, a assunção da criança à posição de sujeito - ainda que, dada a castração, essa
posição se manifeste como a de um sujeito barrado (Lacan, 1957-1958/1998, pp. 193-196). É
essa operação simbólica de Édipo, pela circulação do falo entre as funções materna e paterna,
que dará lugar à constituição do sujeito de desejo, para Lacan, de modo que longe de
simplesmente fazer equivaler a operação da função fálica presente no complexo de Édipo à
diferença anatômica entre os sexos, o psicanalista francês define a anatomia apenas como
suporte imaginário para a construção do fantasma. É, de fato, pela constituição simbólica do
sujeito e pela forma como o seu desejo será estruturado por uma determinada relação com o
objeto perdido, o objeto a, que a entrada e a saída de Édipo terão uma função determinante na
relação fantasmática do sujeito com aquilo que Lacan (1957-1958/1998, pp. 238-239, 245-247)
denominou de real.
Ora, se do lado homem, em sua fórmula da sexuação, o gozo fálico depende necessariamente
da existência de ao menos um cuja função fálica não tem incidência estruturante - o pai da
horda -, para que em seguida todos os homens sejam submetidos à ordem do falo, do lado
mulher, não existindo mulher em relação à qual o falo não opera, por outro lado ela permanece
não complemente determinada por essa função. A mulher, na fórmula de Lacan, é não toda,
portanto, inscrita na ordem fálica (Lacan, 1972-1973/ 1975 , pp. 30-36, 67-71). Haveria, por
essa via, a possibilidade de pensar um gozo específico da mulher, um gozo irredutível à
universalidade do falo, e que se manifesta, em Lacan, como gozo Outro, gozo essencialmente
determinado pela contingência e abertura à singularidade.
Com a problematização das formas de gozo a partir de uma discussão em torno das formas
pelas quais os sujeitos se constituem como homens ou mulheres, Lacan radicalizaria na
psicanálise uma perspectiva crítica em relação à centralidade do falo, de modo que o discurso
psicanalítico se deslocaria efetivamente da centralidade anatômica para a determinação
simbólica da sexualidade. É precisamente por essa via que a problemática do gênero incide na
psicanálise, de modo que, com as reflexões de Judith Butler, as interpelações ao discurso que
tem sua origem em Freud se deslocam do domínio da sexualidade para o domínio do gênero,
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a respeito daexperiência deidentidades
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em relação ao campo do desejo.
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A problemática do gênero e o pensamento da identidade
Brasil
Foi em 1987 que Judith Butler publicou, pela Columbia University Press, sua tese de doutorado,
defendida em 1984 e intitulada Sujeitos de desejo. Com efeito, de maneira bastante ambiciosa,
o livro pretendia traçarRevista
o que teria sido a recepção
Latinoamericana francesa ao longo
de Psicopatologia Fun…do século XX do
pensamento de Hegel, de maneira geral, e mais especificamente, de que forma a noção de
sujeito teria sido investida pela problemática do desejo. Ora, seria, portanto, questão para a
filósofa, retomar os diferentes autores do cenário francês em que o pensamento de Hegel teve
incidência, passando por Kojève e Hyppolite, num primeiro momento, para, depois de percorrer
a obra de Sartre, incidir nos autores que os anglo-saxões reuniram sob a expressão teoria
francesa contemporânea, isto é, Derrida, Lacan, Deleuze e Foucault.
Embora tenha, no decorrer desse livro, assinalado em diversas passagens como o estatuto
eminentemente negativo do desejo em Lacan, isto é, o desejo concebido como opacidade, fora
um verdadeiro motor no discurso psicanalítico para a subversão do sujeito e para o seu
descentramento (Butler, 1987, pp. 186-204), quando retomou os enunciados de Lacan em seu
livro posterior sobre os Problemas de gênero, em 1990, Butler (1999/1990, pp. 45-49, 55-73)
realizou uma crítica profunda da tradição psicanalítica, uma vez que, segundo a autora, a
psicanálise teria sido um dos discursos precursores na modernidade de uma matriz
heteronormativa para definir a identidade de gênero.
No entanto, embora essa leitura apareça de maneira evidente como uma crítica à perspectiva
lacaniana de compreensão do Édipo, ela não é apresentada sem a defesa de duas teses
importantes no mesmo livro, Problemas de gênero, que relançarão o debate da autora com a
psicanálise para outra direção, de modo que a problemática de gênero e sua relação com o
discurso psicanalítico ganhará doravante novos destinos possíveis.
A primeira tese significativa apresentada por Butler (1999/1990, pp. 9-11) nesse livro é que a
distinção entre sexo e gênero não coincide com a tradicional passagem apreciada pelos
estruturalistas da teoria francesa, que tem sua origem no pensamento de Lévi-Strauss, do
estado de natureza para o estado de cultura.
Se, no início de seu ensino, Lacan indicará precisamente a importância do campo simbólico
para definir aquilo que permite a passagem do indivíduo animal para a dimensão do sujeito
humano - o que fora retomado por Althusser (1964/1993, pp. 27-33) para definir precisamente o
objeto da psicanálise -, em seus últimos textos e seminários, igualmente, Lacan (1979/1987, pp.
1975-1976/2005 , pp. 116-118) não pensará o sujeito da psicanálise por outra via senão
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33-35; para garantir que você obtenha uma melhor experiência de navegação. Leia
sob a forma de um “falaser” (parlêtre), assujeitado à determinação do gozo do Outro e de sua
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corporeidade, “alíngua” (lalangue). A passagem da natureza para a cultura ou o que faz do
sujeito um sujeito humano, em Lacan, é precisamente o fato de ele ser um ser de linguagem,
Brasil
sendo o campo do simbólico um operador central na constituição das subjetividades.
No entanto, segundo Butler, essa distinção entre natureza e cultura aplicada para as
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fun…
discussões de gênero desconhece um elemento fundamental na análise histórica da
sexualidade e que consiste precisamente no fato de que o argumento da naturalidade do sexo,
investido pelo discurso biológico ou pela retórica da anatomia, não é nada mais do que o
resultado de um pensamento da cultura (Butler, 1999/1990, pp. 27-34). Retomando a definição
do dispositivo da sexualidade empreendida por Foucault, ela vai dizer que se o gênero é uma
construção da sociedade, o sexo é igualmente um produto da cultura. Ou seja, não há em torno
do sexo qualquer naturalidade biológica e toda suposta evidência em relação a esse domínio
sustentada por um discurso anatômico corresponde, na realidade, a estratégias de poder que
recorrem à legitimidade de um discurso dito científico para justificar imposições normativas.
A segunda tese importante proposta pela autora diz respeito especificamente à problemática do
gênero e à forma pela qual essa problemática incide política e filosoficamente numa discussão
sobre as identidades. Ora, se para Butler (1999/1990, p. 70) o movimento feminista, bem como
os movimentos contestatórios do que denominou de heterossexualidade compulsória, colocou
historicamente em questão as imposições de um modo binário e heterossexual para pensar o
sexo e o gênero, seria preciso contestar igualmente a própria necessidade de referir a
sexualidade dos sujeitos a um pensamento da identidade.
Como assinalou Joel Birman (2018, pp. 144-153), enquanto o movimento feminista nas décadas
de 1950 e 1960 contribuiu para a modificação da configuração familiar, onde a desigualdade de
direitos e de funções na família reproduzia um pensamento social fundado na estrutura do
patriarcado, o movimento homossexual, sobretudo entre os anos de 1965 e 1970, contra uma
sexualidade reduzida ao casal e à monogamia, defendeu a liberdade de escolha em relação
aos objetos e a reivindicação de direitos equivalentes. No entanto, considerando essa nova
definição da gramática do desejo, foi, de fato, o movimento dos transgêneros, a partir dos anos
1980, que colocou efetivamente em questão a problemática do gênero, de modo que foi a
contestação da própria noção de identidade que se tornou objeto de debate.
Seja pela recusa das normas impostas pela filiação - com a adoção de um novo nome -, seja
pela abdicação dos destinos dados pela anatomia - com a possibilidade de mudança real no
corpo -, os transexuais realocaram o paradigma do autoengendramento do sujeito no centro da
discussão de gênero. Pela via da nomeação no domínio do simbólico e pela modificação do
corpo em sua constituição biológica, o que o sujeito transexual produziu na contemporaneidade
foi a possibilidade de empreender uma recriação de si, baseada eminentemente na categoria
de desejo (Birman, 2018, p. 149).
A forma pela qual Butler retoma esse debate aponta não apenas para a necessidade jurídica de
reedificar uma identidade representativa capaz de justificar e valorizar a existência de outras
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formas de subjetivação, a que corresponderiam modalidades identitárias para além da lógica
mas Política
nossa
binária ou heteronormativa, também deparaPrivacidade.
a possibilidade deOKdefinir, em relação à
sexualidade, um domínio de experiências em que justamente a noção de identidade é colocada
em questão. Seria por uma desconstrução da relação necessária e fundante entre sexo, gênero
e identidade, que a autora, desde sua tese de doutorado até seus livros mais recentes, se
Brasil
esforçaria por pensar o estatuto político da alteridade no vivente, na medida em que, aberto ao
outro, o sujeito é essencialmente formado por aquilo que o destitui (Butler, 1999/1990, pp. 189-
190). Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fun…
Se sexualidade é justamente o nome desse domínio, onde, investido por saberes, poderes e
formas de dominação, se manifesta ao sujeito uma relação necessariamente mediada pela
presença do outro, o outro não deve ser aquilo que restitui ao sujeito sua identidade, mas sim, e
necessariamente, aquilo que diante do qual o sujeito se encontra exposto a uma dimensão
essencial de alteridade. O que está em jogo no encontro com o outro, nessa perspectiva, é a
despossessão do sujeito em relação a si (Butler, 2004, pp. 27-29), e a experiência do impasse
em representar a si mesmo pela via da identidade (Butler, 2005, pp. 41-43).
Por esse ponto de vista, se quisermos relançar a série de interpelações que as problemáticas
de sexualidade e de gênero impõem à psicanálise, é preciso dizer que a retomada do discurso
psicanalítico por Butler é testemunha de que o campo central por meio do qual a psicanálise
pensou o conceito de inconsciente em Freud e a subversão do sujeito em Lacan não foi outro
senão o do desejo. Esse domínio insubmisso à representatividade das identidades e irredutível
a toda e qualquer norma de uma heterossexualidade compulsória permanece precisamente
como sendo o lugar onde as subjetividades modernas são confrontadas com esse campo de
indeterminação da experiência e que no discurso de Freud aparece como desamparo (
Birman, 1999, pp. 162-166).
Considerações finais
De maneira predominante, como vimos, a psicanálise em Freud, por um lado, abordou a
problemática da sexualidade e sua importância na determinação do psiquismo a partir da
referência masculina, em que é pela presença ou pela ausência do falo que se determina o
modo de constituição dos sujeitos de desejo. Como encontramos no final do texto de Freud
sobre “A organização genital infantil”, de 1923, sob o primado do falo, essa constituição se
orienta em função de uma polaridade entre masculino e feminino, de modo que do lado
masculino se encontram as dimensões do sujeito, da atividade e da possessão do pênis,
enquanto do lado feminino se identificam a figura de um objeto, o modo de operação da
passividade e, finalmente, a definição de uma órgão negativo, a vagina, cuja função não seria
outra senão alojar o pênis (Freud, 1923/2002b, p. 116). Por essa via, com efeito, o modo de
subjetivação feminino, ou aquilo que em psicanálise se chamou de feminilidade, só pôde
aparecer sob a forma de uma negatividade ou de uma ausência, como assinalou Joel
Birman
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você éobtenha
um rochedo
umadiante do qual
melhor toda análise
experiência chega ao
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fim (Freud, 1937/2010e, pp. 52-55), ao positivar a feminilidade para além de suas formas
negativas, Birman (1999, nossa Política
pp. 10-11 ; 2001 dep. Privacidade. OK o véu dessa experiência e
244) pretende levantar
demonstrar em que consiste o solo fundamental da experiência psicanalítica.
Ora, se o registro do falo faz referência às pretensões de domínio de uma racionalidade que se
orienta a partir da totalização e da universalidade de um modelo de desejo, o feminino deve ser
Brasil
um domínio da sexualidade onde se torna possível a manifestação daquilo que resiste e não se
inscreve nesse projeto universal. É, com efeito, a dissolução dessa perspectiva, em que a
relação do sujeito consigo mesmo
Revista e com os outros
Latinoamericana é mediada pela
de Psicopatologia ordem fálica, aquilo a que a
Fun…
noção psicanalítica de castração faz referência, de modo que não seriam apenas as mulheres
as formas de subjetivação submetidas à castração, mas igualmente os homens. E quando
Birman (1999, pp. 11-12; 2001 , p. 240) pretende positivar a categoria de feminilidade não se
trata de forma alguma de pensar uma forma de subjetivação onde a referência ao falo
permanece no horizonte da gramática de desejo; isso porque ser ou ter o falo só poderia
corresponder à superioridade daquele que o detém - manifesta sob a forma da arrogância
masculina -, e não ser ou não ter o falo faria alusão apenas à dimensão da inferioridade
feminina - manifesta sob a forma da inveja do pênis.
O que estaria em questão, de fato, na feminilidade em psicanálise, para Birman, é o modo pelo
qual a angústia da castração se torna comum a toda e qualquer forma de sexuação, uma vez
que ela se situa justamente no centro da experiência dos sujeitos com a sexualidade, onde a
dimensão do encontro com o outro conduz à referência fundamental do desamparo. De modo
que “se o ofício de psicanalisar implica conduzir as subjetividades a uma modalidade específica
de desfalicização, denominada por Freud de experiência de castração”, a noção psicanalítica
de feminilidade “seria uma outra maneira de se referir a isso” (Birman, 1999, pp. 12-13).
Confrontado com esse campo da experiência sexual, que no limite da representação manifesta
o que na psicanálise se apresenta como imponderável e indizível, o sujeito em análise aposta
na abertura possível daquilo que, para além do automatismo da repetição, imposto pela gozo
fálico, autômaton, o conduz para o que é acaso e contingente, tiquê (Lacan, 1964/1973, pp. 53-
54).
Financiamento/Funding: Este trabalho não recebeu apoio / This work received no funding.
Citação/Citation: Leitão Martins, L. P. (2019, junho). Sexualidade, gênero e identidade: questões
para a psicanálise. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 22(2), 215-237.
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Referências
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Editoras/Editors: Profa. Dra. Ana Maria R. G. Oda e Profa. Dra. Sonia Leite
Datas de Publicação
» Publicação nesta coleção
29 Jul 2019
» Data do Fascículo
Apr-Jun 2019
Histórico
» Recebido
01 Dez 2018
» Aceito
31 Jan 2019
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution
NonCommercial, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que sem
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