SciELO - Brasil - Sexualidade, Gênero e Identidade - Questões para A Psicanálise Sexualidade, Gênero e Identidade - Questões para A Psicanálise

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Brasil

 Sumário
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fun…  
Resumo Texto (PT)  PDF
Artigos • Rev. latinoam. psicopatol. fundam. 22 (2) • Apr-Jun 2019 •
https://doi.org/10.1590/1415-4714.2019v22n2p215.4  

COPIAR
Sexualidade, gênero e identidade: questões para a
psicanálise

Sexuality, gender and identity:questions for psychoanalysis

Sexualité, genre et identité : questions à la psychanalyse

Sexualidad, género e identidad: cuestiones para el psicoanálisis

Sexualität, Geschlecht und Identität: Fragen an die Psychoanalyse

Luiz Paulo Leitão Martins

Resumos
O objetivo deste ensaio é analisar a forma pela qual as noções de sexualidade, gênero e
identidade colocam questões para a psicanálise, na medida em que problematizam formas de
subjetivação presentes em sua prática discursiva. Considerando a análise de Foucault a
respeito da formação do dispositivo da sexualidade e a discussão empreendida por Butler sobre
o problema da identidade nas discussões de gênero, pretende-se situar o lugar do complexo de
Édipo na constituição do sujeito em psicanálise e a crítica de Freud à moralização da
sexualidade na experiência moderna. Finalmente, a partir das noções de vulnerabilidade e de
despossessão de si, retomam-se os conceitos psicanalíticos de desamparo e de feminilidade
com o objetivo de pensar a importância de um pensamento da alteridade para a prática
psicanalítica.

Palavras-chave:
Sexualidade; gênero; identidade; alteridade

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This paper aims to analyze in what way the notions of sexuality, gender and identity pose
questions to psychoanalysis, as they problematize forms of subjectivation present in their
Brasil
discursive practice. Taking into account Foucault’s analysis of the formation of the device of
sexuality and Butler’s discussion on the problem of identity in gender discussions, we intend to
situate the place of theRevista
Oedipus complex in the de
Latinoamericana constitution of the Fun…
Psicopatologia subject in psychoanalysis and

Freud’s critique of the moralization of sexuality in modern experience. To conclude, based on
the notions of vulnerability and dispossession of the self, we revisit the psychoanalytic concepts
of helplessness and femininity to reflect on the importance of a thinking on otherness for
psychoanalytic practice.

Key words:
Sexuality; genre; identity; otherness

Le but de cet article est d’analyser la façon dont les notions de sexualité, de genre et d’identité
posent des questions à la psychanalyse, dans la mesure où elles problématisent les formes de
subjectivation présentes dans sa pratique discursive. En considérant l’analyse de Foucault sur
la formation du dispositif de la sexualité et la discussion de Butler sur le problème de l’identité
dans les discussions sur le genre, nous avons l’intention de situer la place du complexe d’Œdipe
dans la constitution du sujet dans la psychanalyse et la critique de Freud à la moralisation de la
sexualité dans l’expérience moderne. Enfin, à partir des notions de vulnérabilité et de
dépossession de soi, les concepts psychanalytiques de détresse et de féminité sont abordés
dans le but de réfléchir à l’importance d’une pensée d’altérité pour la pratique psychanalytique.

Mots clés:
Sexualité; genre; identité; altérité

El objetivo de este ensayo es analizar la forma en la que las nociones de sexualidad, género e
identidad plantean cuestiones para el psicoanálisis, en la medida en que problematizan formas
de subjetivación presentes en su práctica discursiva. Considerando el análisis de Foucault
sobre la formación del dispositivo de la sexualidad, y la discusión iniciada por Butler sobre el
problema de la identidad en las discusiones de género, se pretende situar el lugar del complejo
de Edipo en la constitución del sujeto en el psicoanálisis y la crítica de Freud a la moralización
del sujeto en la experiencia moderna. Finalmente, a partir de las nociones de vulnerabilidad y
de desposesión de sí, se reanudan los conceptos psicoanalíticos de desamparo y de
femineidad con el objetivo de pensar la importancia de un pensamiento de la alteridad para la
práctica psicoanalítica.

Palabras clave:
Sexualidad; género; identidad; alteridade

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Dieser Artikel analysiert auf welche Art und Weise die Begriffe Sexualität, Geschlecht und
Identität Fragen an die Psychoanalyse stellen, insoweit als sie die in ihrer diskursiven Praxis
Brasil
vorhandenen Formen der Subjektivierung problematisieren. In Anbetracht der Analyse von
Foucault über die Entstehung des Sexualitätsdispositives und Butlers Diskussion des
Identitätsproblems in der Genderdiskussion versuchen wir den Platz des Ödipus-Komplexes in
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fun… 
der Konstitution des Subjekts in der Psychoanalyse zu erörtern, sowie die Kritik Freuds an die
Moralisierung der Sexualität in der modernen Erfahrung. Zum Schluss greifen wir aufgrund der
Begriffe Verwundbarkeit und Enteignung des Selbst die psychoanalytischen Konzepte des
Aufhebens und der Weiblichkeit erneut auf, um die Bedeutung der Alterität für die
psychoanalytische Praxis zu erwägen.

Schlüsselwörter:
Sexualität; Geschlecht; Identität; Alterität

O objetivo deste ensaio é abordar as problemáticas da sexualidade e do gênero, observando


suas formações e desenvolvimentos ao longo da modernidade até o momento contemporâneo,
e indicar algumas questões lançadas a partir dessas problemáticas para a psicanálise enquanto
discurso e prática clínica. Sua organização seguirá dois momentos distintos: o primeiro
analisará como a sexualidade se constituiu como campo a partir do século XVIII na história do
Ocidente, e o segundo discutirá em que medida a noção de gênero, empregada posteriormente
nesse debate, retoma, por uma relação estreita, a concepção psicanalítica de sexualidade para
relançar a discussão em direção a uma problematização da identidade. A ordem de distribuição
desses momentos seguirá a orientação geral em torno da qual esse debate se deu, de modo
que, atravessando os problemas de sexualidade, gênero e identidade, buscar-se-á apresentar
como, a partir da segunda metade do século XX, foram desenvolvidas algumas interpelações
importantes em relação à psicanálise.

A sexualidade moderna e sua constituição como ciência


A publicação do primeiro volume de História da sexualidade, de Michel Foucault, em 1976, pela
editora Gallimard, na França, constituiu um marco bastante significativo para pensar as
relações da psicanálise com a sexualidade. Com efeito, depois das manifestações de maio de
1968 e, sobretudo, com a publicação em 1972, de Anti-Édipo, de Deleuze e Guattari, o discurso
psicanalítico já havia sido objeto de crítica e de discussão no cenário acadêmico e social
francês. No entanto, ainda que o livro de Foucault possa ser concebido na continuidade desse
movimento crítico, como um dos desdobramentos possíveis das discussões em torno da
sexualidade e da liberdade sexual da virada dos anos 1960 e 1970, ele constitui, de fato, uma
ruptura em relação a essa perspectiva, como veremos a seguir, de modo que a interlocução de
Foucault com a psicanálise tomará uma outra direção.

É preciso dizer, em primeiro lugar, que antes de abordar a problemática da sexualidade em


1976, e desde que anunciara o seu projeto de realizar uma genealogia do poder no Ocidente,
Foucault havia analisado a problemática do corpo a partir de uma história do nascimento das
prisões, onde o que estava em jogo era a maneira pela qual as formas de vigilância se
relacionaram com as formas de punição na história recente (Foucault, 1975). Com a publicação
do usa
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Vigiar e punir,
para em 1975, que
garantir o filósofo
vocêfrancês sistematizara
obtenha uma melhortodaexperiência
uma teoria sobre as
de navegação. Leia
relações de poder, esboçada por ele desde 1971 em seus cursos no Collège de France, em
que o corpo se tornara espaço Política dedoPrivacidade.
nossaprivilegiado exercício do poderOK(Foucault, 1973/1994a, pp.
468-470).
Com efeito, na passagem do sistema de suplícios do poder soberano das monarquias para um
sistema disciplinar de distribuição do poder, constitui-se, segundo Foucault (1975, p. 34)
Brasil
doravante uma microfísica do poder. Das fábricas às escolas, passando pelos hospitais, pelo
exército e pela família, os mecanismos de poder na modernidade teriam como objetivo atingir a
materialidade dos corpos por um
Revista sistema de controle
Latinoamericana e vigilância,Fun…
de Psicopatologia tal como delineado no projeto

do Panóptico de Bentham (Foucault, 1975, pp. 175-177). Se o que estava em questão no livro
de Foucault de 1975 era de fato a constituição de uma anatomia-política dos corpos, em 1976,
essa mesma genealogia do poder o conduziria a analisar a formação de uma biopolítica das
populações (Foucault, 1976, pp. 182-183). Menos a dimensão do indivíduo-corpo e mais a
dimensão do indivíduo-espécie, essa seria a perspectiva adotada pelo autor nos estudos sobre
a sexualidade, uma vez que se tornaria possível identificar em torno dessa problemática uma
estratégia global do exercício de poder sobre as populações (Foucault, 1975- 1976 / 1997 ,
pp. 223-224).

Outro aspecto definidor do projeto foucaultiano da história da sexualidade em 1976 é uma


concepção positiva das relações de poder (Foucault, 1976, pp. 16-17). Se considerarmos a
entrevista dada por Foucault em 1977, As relações de poder se passam no interior dos corpos,
vamos identificar que esse projeto estava presente no pensamento de Foucault desde a década
1960, quando analisara a problemática da loucura (Foucault, 1977/1994b, pp. 229-230). Uma
vez que em seus estudos sobre A história da loucura na Idade Clássica, Foucault havia
identificado desde o século XVII uma distribuição do pensamento ocidental entre a razão e a
desrazão (a partir do cogito cartesiano) e a exclusão da loucura através da constituição dos
Hospitais gerais - por meio do decreto real de 1656 na França e do internamento dos loucos
junto com os miseráveis e criminosos, numa verdadeira condenação social da ociosidade (
Foucault, 1972, pp. 56-91) -, o filósofo francês pretendia, pela mesma chave de leitura, estudar
dois domínios da sexualidade: uma sexualidade oficial ou autorizada e uma sexualidade
interdita. Como se a partir da divisão binária entre razão e desrazão fosse possível analisar
uma série de outros domínios da experiência moderna do pensamento, Foucault pretendia
aplicar o mesmo método que empregara para estudar a loucura à sexualidade. Todavia, com a
formalização da genealogia enquanto método (Foucault, 1971/1994c, pp. 136-156), seria
definida uma outra concepção em relação ao poder, esta não mais regida pela negatividade
(exclusão, interdição e proibição), mas pela positividade (produção, injunção e multiplicação). O
poder sobre a sexualidade antes de dizer “não”, constitui-se como uma verdadeira afirmação
positiva, de modo que, em relação ao sexo, o problema não deve se orientar a partir daquilo
que se exclui ou das formas pelas quais a exclusão é realizada, mas pelo que, através do
poder, representa um verdadeiro “sim” à sexualidade (Foucault, 1976, pp. 20-22).

É pelo estudo, portanto, das formas de regulação das populações, isto é, de uma biopolítica, e
da maneira pela qual o poder se produz positivamente no Ocidente, que Foucault empreendeu
essa história da sexualidade na modernidade que constitui o primeiro volume de sua obra, A
Vontade de saber. Foi pelo estudo, finalmente, que foram delineadas algumas linhas de força
da constituição do que denominou dispositivo da sexualidade, e isso a partir de três direções
distintas.

A primeira é que, no nível do discurso, antes de silenciar e excluir as formas de saber sobre a
sexualidade, a modernidade produziu uma verdadeira injunção para falar sobre isso (
Foucault, 1976, pp. 25-49). Da pastoral católica à instituição da família, passando pela escola,
pela clínica médica e pela literatura libertina, o Ocidente exigiu essa passagem do sexo para o
discurso, de modo que, na institucionalização da confissão católica, nas arquiteturas e nos
documentos institucionais das escolas, na produção de todo um método clínico - orientado em
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torno da codificação clínica do “fazer falar”, dos postulados de uma causalidade geral e de um
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princípio etiológico latente, da criação de um método interpretativo e da medicalização da
sexualidade - observou-se menos uma restrição discursiva em relação ao sexo e mais uma
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multiplicação.

No que concerne às práticas da sexualidade, igualmente (Foucault, 1976, pp. 50-67). Ora, se no
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antigo regime canônico e civil do direito, até o século XVII, os ditos desvios em relação à
sexualidade eram considerados todos, sem especificação, transgressões ao princípio jurídico e
religioso do matrimônio - isto é, tudo o que ultrapassava esse registro era considerado, de uma
forma global, infrações no domínio da sexualidade -, a partir do século XVIII, passou-se por
todo regime de especificações, devido sobretudo ao desenvolvimento da clínica médica, de
modo que a antiga figura do libertino se transformou na personagem do perverso, com seus
respectivos nomes e descrições psiquiátricos (Foucault, 1976, p. 60).

Se o Ocidente testemunhou uma injunção discursiva e uma implantação perversa da


sexualidade na individualidade dos corpos, foi através da constituição de uma ciência da
sexualidade que uma vontade de saber se delineou definitivamente em tornou do sexo na
história moderna (Foucault, 1976, pp. 70-98). Em oposição a uma modalidade de arte erótica
presente em sociedades antigas ou em sociedade ditas não ocidentais, ou pelo menos não
inteiramente ocidentalizadas, as sociedades ocidentais inventaram uma ciência da sexualidade,
de modo que, objeto de um discurso científico, a sexualidade, por essa via, se constituiu como
uma forma de sujeição dos indivíduos - sendo este o primeiro sentido do termo sujeito
empregado por Foucault. Como essa genealogia do poder sobre sexualidade impõe algumas
das primeiras questões para a psicanálise, é o que pretendemos abordar a seguir.

Com efeito, tradicionalmente, a psicanálise pensou a sexualidade por um ponto de vista do


poder concebido como forma de repressão. Se a partir de uma discussão em torno da tradução
do termo Verdrängung a comunidade psicanalítica operou um deslocamento importante em
relação à compreensão daquilo que Freud (Freud & Breuer, 1895/2002, pp. 216-217;
Freud, 1915/1988a, pp. 191-203) identificou primeiramente como modalidade de resistência à
análise para caracterizar, em seguida, como sendo o afastamento de determinado conteúdo
psíquico da consciência e o fato de mantê-lo à distância; se com a utilização do termo recalque
em vez de repressão para traduzir Verdrängung, buscou-se identificar os mecanismos
psíquicos ou estruturais por meio dos quais o sujeito é atravessado por um desejo constituído
pela lei (Lacan, 1957/1966a, pp. 514-518; 1960/1966b , p. 782); o que Foucault pretende
demonstrar é que foi sempre a partir de um ponto de vista jurídico do poder que se organizou a
relação entre pulsão e Verdrängung em psicanálise, independentemente se se traduz
Verdrängung por repressão ou por recalque. O que se manifesta nas diferentes acepções
atribuídas ao termo corresponde, na realidade, a uma concepção diferente do mecanismo das
pulsões, e não a uma modificação no que tange à compreensão do poder (Foucault, 1976, p.
109). A forma pela qual se dá o exercício do poder, em ambos os casos, é sempre em
psicanálise uma forma negativa, de modo que, nessa perspectiva, a tradição psicanalítica
pensaria as resistências do sujeito do ponto de vista de uma defesa.

Na mesma direção dessa interpelação de Foucault à psicanálise, identifica-se sua crítica ao


Anti-Édipo, de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Ora, se, por um lado, a submissão do desejo à
representação do triângulo edipiano - constituído entre a criança, a mãe e o pai -, tal como
apresentada pelos autores, representaria uma redução da produtividade do desejo a uma
estrutura moderna de familiarização, por outro, a desterritoralização, orientada por devires e
territoralizações que ultrapassam em muito a estrutura de Édipo, e ainda a retomada da
produtividade maquínica do inconsciente (Deleuze & Guattari, 1972, pp. 7-14, 29-43),
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negativo, enxerga na Leia
liberação da sexualidade a manifestação de formas de resistência. Todavia, para Foucault,
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tratar-se-ia ainda dos mesmos mecanismos de poder, previstos pelo dispositivo da sexualidade:
“Esse poder justamente não tem nem a forma da lei nem os efeitos do interdito. Ele procede, ao
contrário, pela multiplicação de sexualidades singulares. Ele não fixa fronteiras para a
Brasil
sexualidade. […] Ele produz e fixa o disparate sexual” (Foucault, 1976, pp. 64-65).

Em segundo lugar, em relação à psicanálise, é preciso dizer que Foucault identificou em sua
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prática discursiva, de maneira predominante, uma continuidade entre a teoria da sexualidade e
as práticas de confissão e de exigência de produção de verdades incidentes na scientia
sexualis. Ora, desde os escritos sobre as psiconeuroses de defesa até o que se poderia
identificar como últimos textos de Freud sobre as estruturas clínicas em psicanálise, isto é,
Neurose e psicose e A perda da realidade na neurose e na psicose, é sempre a partir da
compreensão de uma etiologia sexual das neuroses ou, ainda, da importância da sexualidade
nas formações do inconsciente que a clínica psicanalítica foi pensada (Freud, 1894/2010a, p. 3;
Freud, 1896/2010b, p. 62; Freud, 1924/2010c, pp. 283-284, Freud, 1924/2010d, pp. 299-300, 303).

Se Foucault identificou na passagem das exigências da confissão pastoral para os métodos de


escuta na clínica a exigência de trabalho em torno do falar sobre a sexualidade, é a partir de
uma concepção da sexualidade como campo mesmo em torno do qual toda interpretação e
medicalização do sujeito deve se dar que ele pôde afirmar: “A causalidade no sujeito, o
inconsciente do sujeito, a verdade do sujeito no outro que sabe, o saber nele daquilo que ele
mesmo não sabe, tudo isso pôde se desenvolver no discurso do sexo” (Foucault, 1976, p. 94).

Assim, se a psicanálise, por um lado, empregara ao longo de seu movimento, para utilizar um
termo adotado por Freud (1914/2005a, p. 249), uma concepção jurídica do poder, onde a pulsão
se relaciona com um mecanismo de defesa cujo estatuto é primordialmente caracterizado pela
negatividade, por outro, ela só pôde se constituir como discurso e definir em torno de seu objeto
inconsciente uma positividade, como forma de causalidade psíquica, sob a direção geral de um
dispositivo da sexualidade.

É preciso, no entanto, se perguntar, e isso a partir de ditos e escritos posteriores de Foucault,


se, desse ponto de vista, a psicanálise permanece inteiramente inscrita na tradição que
identificara sob a forma de scientia sexualis ou se, diferentemente de uma ciência, a psicanálise
poderia se orientar em função de uma estética da existência (Birman, 1997, p. 89), aproximando
o quadro definido pela sexualidade em Freud de uma experiência erótica. Com efeito, quando
se perguntara na aula de 6 de janeiro de 1982 de seu curso no Collège de France sobre A
hermenêutica do sujeito, em relação ao trabalho necessário do sujeito sobre si para ter acesso
à verdade, no caso das antigas práticas de cuidado, e não apenas isso, mas também sobre os
efeitos sobre o sujeito pelo fato de ele dizer a verdade sobre si, Foucault localizara
precisamente nas elaborações de Lacan uma das formas modernas de retomada de antigas
questões presentes na tradição da espiritualidade (Foucault, 1981-1982/2001, pp. 31-32). Que o
sujeito como tal não tenha direito nem seja capaz de ter acesso à verdade, que, para ter acesso
à verdade, seja preciso “que o sujeito se modifique, se transforme, se desloque, torne-se, em
certa medida e até certo ponto, outro que não ele mesmo” (Foucault, 1981-1982/2001, p. 18),
essas foram algumas das questões que Lacan colocou, na medida em que pensou a
especificidade da experiência psicanalítica a partir das relações entre o sujeito e a verdade (
Lacan, 1960/1966b, pp. 815-816; Lacan, 1966c, p. 864).

Seria, com Lacan (1959-1960/1986, p. 9), a experiência da psicanálise uma experiência mais
próxima de uma ética do que de uma ciência? (Foucault, 1983/2015, p. 114), essa é uma
questão que gostaríamos de colocar - sem necessariamente afirmar - o que seria desconsiderar
o próprio método genealógico - que a psicanálise seria uma modalidade moderna de ars
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erotica.

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A psicanálise como crítica da sexualidade moderna
Quando se analisa a forma pela qual a problemática da sexualidade se inscreve na obra de
Freud, é preciso dizer que sua última concepção da sexualidade - ou, se se quiser, das formas
Brasil
pelas quais o sujeito homem ou mulher se reconhece como sujeito de uma sexualidade - se
orienta a partir da referência que ele faz à citação de Napoleão: “a anatomia é o destino” (
Freud, 1923/2002a, p. 121).
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Com efeito, desde a formulação da segunda tópica da metapsicologia na década de 1920,


Freud, nos diferentes artigos em que retomou a questão da sexualidade infantil desenvolvida
incialmente na década de 1900, identificou na diferença anatômica entre os sexos o principal
fator de determinação dos destinos do complexo de Édipo nas formas de subjetivação. A
retomada do caso clínico do pequeno Hans e as elaborações em torno da fase fálica,
conduziram-no a identificar na presença ou na ausência do pênis, enquanto órgão, as
consequências psíquicas das diferenças de subjetivação no homem e na mulher, de forma que
as identificações do sujeito, as relações que estabelece com os objetos e, finalmente, as
modalidades de saída do complexo de Édipo, seriam determinadas pelas formas distintas de
reconhecimento da castração e pelas posições subjetivas adotadas pelo homem e pela mulher
diante da angústia de castração (Freud, 1923/2002b, pp. 114-116; Freud, 1923/2002a, pp. 118-
119, Freud, 1925/2002c, pp. 130-132).

Da “Organização genital infantil” a “Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica


entre os sexos”, passando por “A dissolução do complexo de Édipo”, é essa concepção geral a
propósito da diferença sexual que orienta a teoria freudiana, de modo que relacionar a
sexualidade à anatomia seria uma das formas possíveis pelas quais o ideal da ciência
permaneceria de maneira predominante na obra de Freud (1933/2004, pp. 267-268).

No entanto, se atentarmos para alguns de seus textos das duas décadas precedentes, pode-se
igualmente contemplar a presença de uma outra perspectiva. Mesmo que os “Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade”, de 1905, possa ser, sob muitos aspectos, aproximada a uma
obra científica sobre a sexualidade, é nesse mesmo texto que
Freud (1905/2006, pp. 98-104, 107-111, 133-137, 146-151) identifica a presença de uma
sexualidade nas crianças e, ao mesmo tempo, atribui à sexualidade, de forma geral, o caráter
de infantilidade. Ora, se por um lado Freud descreve a inscrição da sexualidade no corpo da
criança a partir de todo um desenvolvimento possível onde as pulsões se orientam através de
zonas erógenas para, num momento ulterior, atingir a genitalidade, esse investimento do corpo
não se dá sem se caracterizar por uma autonomia das funções sexuais em relação à anatomia,
como manifesta sua tese de uma sexualidade perverso e polimorfa (Poli, 2007, p. 13). Com
efeito, como se observa nas discussões em torno da tradução do termo Trieb, traduzido ora por
instinto - correspondendo a Instinkt - ora por pulsão, identifica-se em Freud a não
correspondência entre a sexualidade da psicanálise e a sexualidade do discurso médico,
baseado numa anatomia patológica (Foucault, 1963/2000, pp. 123-149).

Além disso, é preciso dizer, que, nesse mesmo ensaio, Freud (1905/2006, p. 82) apresenta uma
distinção importante entre a sexualidade dos antigos e a sexualidade dos modernos. A saber,
que enquanto para os antigos a sexualidade se ordenava em função das intensidades, pouco
importando a natureza objetal das formas de satisfação, para os modernos, mais importante do
que as intensidades seriam os objetos através dos quais a sexualidade seria vivida. Com efeito,
a constituição de uma “moral sexual ‘civilizada’” estaria na origem das “doenças nervosas dos
tempos modernos” (Freud, 1908/2005b, pp. 198-199, 203-205), de modo que, ao postular a
existência de uma sexualidade perverso e polimorfa no coração da subjetividade e ao indicar
que, em relação à pulsão, o que há de mais variável se situa no nível do objeto (
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Freud, cookies para garantir
, p. 170), que
Freud você obtenha apresenta
manifestadamente uma melhor umaexperiência de navegação.
psicanálise crítica da Leia
sexualidade moderna. Longe de se reduzir às determinações de um desenvolvimento biológico
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da libido, bem como às formas pelas quais o Ocidente realizou a “moralização” da experiência
erótica, a experiência psicanalítica deveria permitir uma circulação da sexualidade, operada por
movimentos de desidentificação e potencializada por experimentações criativas (Poli, 2007, p.
Brasil
18).

Menos sob a forma psicológica do desejo, como caracterizou Foucault (1978/2011, pp. 389-390),
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haveria na psicanálise um espaço de abertura ao que, entre os corpos, se manifesta como
prazer? Seria possível, por essa via, pensar o segundo sentido do termo sujeição, proposto por
Foucault, quando ele se caracteriza como forma de resistência? (Foucault, 1976, pp. 90-92).

Talvez, entre os autores da tradição psicanalítica, Lacan tenha sido o que mais contribuiu para
a desconstrução, para empregar um termo caro a Derrida (1967, pp. 25-26), do complexo de
Édipo. Em primeiro lugar, foi Lacan quem, ao conceber um inconsciente estruturado como uma
linguagem (Lacan, 1953/1966d, p. 269), empreendeu uma leitura de Édipo a partir da noção de
estrutura. Isto é, segundo o autor, entre o bebê e seus pais, haveria muito mais a circulação de
um objeto como atributo de valor e a caracterização das figuras parentais como funções
simbólicas do que uma coincidência naturalizante entre o objeto psíquico e um determinado
órgão - se quisermos falar do primado do falo em Freud.

Se tomarmos as elaborações desenvolvidas por Lacan no seminário de 1957-1958, intitulado


As formações do inconsciente, vamos encontrar ali a caracterização de diferentes momentos de
incidência da estrutura de Édipo na constituição subjetiva da criança (Lacan, 1957-1958/1998,
pp. 179-212), e isso depois de ele ter desenvolvido no seminário sobre As psicoses, entre 1955
e 1956, e no importante artigo “De uma questão preliminar a todo tratamento possível da
psicose”, os conhecidos Esquemas R e I para pensar a incidência da metáfora paterna, o
significante representante do pai, o Nome-do-Pai, na passagem do triângulo imaginário (bebê,
mãe e falo) para o triângulo simbólico (sujeito barrado, lei e objeto a) (Lacan, 1955-1956/1981,
pp. 349-363; Lacan, 1958/1966e, pp. 553-554, 571-575). Em 1957-1958, com efeito, Lacan
retoma essa passagem necessária entre os campos do imaginário e do simbólico, onde no
centro havia localizado a banda de realidade, mais tarde denominada de banda do real, para
falar dos diferentes tempos de Édipo, fundamentais para a constituição do sujeito em
psicanálise.

No primeiro tempo de Édipo, portanto, na relação entre a criança e a mãe, encontra-se a


circulação de um objeto de valor que é o falo, de modo que, se por um lado a criança atribui à
mãe a presença desse objeto, dessa espécie de atributo ou qualidade, por outro ela pretende
ela mesma se tornar o falo, alienando-se ao desejo da mãe. É nessa fase que se dá, segundo
Lacan, a constituição do narcisismo, de modo que, pela circulação do objeto fálico entre a mãe
e a criança, esta última permanece assujeitada ao desejo daquela (Lacan, 1957-1958/1998, pp.
181-183, 188-190, 192). Se a criança se constitui como eu imaginário, a mãe, por sua vez, não
aparece senão para a criança sob a forma de imagem especular. É essa configuração, com
efeito, que podemos observar no caso do pequeno Hans, quando Hans atribui não apenas a
objetos e a coisas inanimadas a presença do falo, mas também à própria mãe, que o confirma (
Freud, 1909/1999, pp. 94-95).

O segundo tempo de Édipo, para Lacan (1957-1958/1998, pp. 183-186, 192), é caracterizado por
um deslocamento do objeto fálico. Com efeito, e num primeiro momento, é precisamente o ir e
vir da mãe que permite à criança a simbolização da alteridade, de modo que a mãe não deve
ser complemente idêntica à criança - ela não é, nos termos de Lacan, completa em relação à
criança e nem a criança, inversamente, deve ser completa em relação à mãe. Pelo aparecer e
desaparecer da mãe, a criança percebe o simples fato de que sua mãe pode desejar alhures. O
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palavra a mãe manifesta que seu objeto de desejo não se reduz nem se identifica com o ser da
criança, é em torno da introdução de outra personagem nesse cenário que a interdição do
Brasil
incesto será efetivamente realizada.

No terceiro tempo de Édipo, quando o falo passa a ter um estatuto simbólico, o pai aparecerá
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fun…
como aquele capaz de promover a castração, logo a destituição do lugar de satisfação
imaginária ocupada pela mãe, mas também é ele quem permite, na função de doador, como
assinala Lacan, a assunção da criança à posição de sujeito - ainda que, dada a castração, essa
posição se manifeste como a de um sujeito barrado (Lacan, 1957-1958/1998, pp. 193-196). É
essa operação simbólica de Édipo, pela circulação do falo entre as funções materna e paterna,
que dará lugar à constituição do sujeito de desejo, para Lacan, de modo que longe de
simplesmente fazer equivaler a operação da função fálica presente no complexo de Édipo à
diferença anatômica entre os sexos, o psicanalista francês define a anatomia apenas como
suporte imaginário para a construção do fantasma. É, de fato, pela constituição simbólica do
sujeito e pela forma como o seu desejo será estruturado por uma determinada relação com o
objeto perdido, o objeto a, que a entrada e a saída de Édipo terão uma função determinante na
relação fantasmática do sujeito com aquilo que Lacan (1957-1958/1998, pp. 238-239, 245-247)
denominou de real.

Assim, enquanto abordara a importância de Édipo na constituição do sujeito, Lacan redefinira


as relações entre o corpo e o imaginário pela introdução do estatuto simbólico da fala e da
linguagem nas formações do inconsciente, mantendo por essa mesma via, no horizonte das
possibilidades de subjetivação em psicanálise, o complexo edipiano indicado por Freud. A partir
dos anos de 1970, seja com o seminário Ou pior, de 1971-1972, seja com o seminário Mais,
ainda, de 1972-1973, não será nem Édipo o romance familiar do indivíduo moderno, nem o falo
o único determinante para as orientações do gozo. Se em 1970, no seminário O avesso da
psicanálise, Lacan (1969-1970/1991, pp. 110-111, 140-153) propusera toda uma série de lições
onde a figura do pai, enquanto mestre, apareceria como castrada - o que deveria indicar para o
sujeito uma forma de subjetivação para além do complexo de Édipo -, nos dois seminários a
partir de 1971, postulará, concernente aos modos de sexuação, a existência de um gozo
suplementar ao gozo fálico e irredutível à sua lógica universalizante (Lacan, 1971-1972/2011, pp.
25-48, 111-121; Lacan, 1972-1973/ 1975 , pp. 61-82).

Ora, se do lado homem, em sua fórmula da sexuação, o gozo fálico depende necessariamente
da existência de ao menos um cuja função fálica não tem incidência estruturante - o pai da
horda -, para que em seguida todos os homens sejam submetidos à ordem do falo, do lado
mulher, não existindo mulher em relação à qual o falo não opera, por outro lado ela permanece
não complemente determinada por essa função. A mulher, na fórmula de Lacan, é não toda,
portanto, inscrita na ordem fálica (Lacan, 1972-1973/ 1975 , pp. 30-36, 67-71). Haveria, por
essa via, a possibilidade de pensar um gozo específico da mulher, um gozo irredutível à
universalidade do falo, e que se manifesta, em Lacan, como gozo Outro, gozo essencialmente
determinado pela contingência e abertura à singularidade.

Com a problematização das formas de gozo a partir de uma discussão em torno das formas
pelas quais os sujeitos se constituem como homens ou mulheres, Lacan radicalizaria na
psicanálise uma perspectiva crítica em relação à centralidade do falo, de modo que o discurso
psicanalítico se deslocaria efetivamente da centralidade anatômica para a determinação
simbólica da sexualidade. É precisamente por essa via que a problemática do gênero incide na
psicanálise, de modo que, com as reflexões de Judith Butler, as interpelações ao discurso que
tem sua origem em Freud se deslocam do domínio da sexualidade para o domínio do gênero,
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a respeito daexperiência deidentidades
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em relação ao campo do desejo.
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A problemática do gênero e o pensamento da identidade
Brasil
Foi em 1987 que Judith Butler publicou, pela Columbia University Press, sua tese de doutorado,
defendida em 1984 e intitulada Sujeitos de desejo. Com efeito, de maneira bastante ambiciosa,
o livro pretendia traçarRevista
o que teria sido a recepção
Latinoamericana francesa ao longo
de Psicopatologia Fun…do século XX do

pensamento de Hegel, de maneira geral, e mais especificamente, de que forma a noção de
sujeito teria sido investida pela problemática do desejo. Ora, seria, portanto, questão para a
filósofa, retomar os diferentes autores do cenário francês em que o pensamento de Hegel teve
incidência, passando por Kojève e Hyppolite, num primeiro momento, para, depois de percorrer
a obra de Sartre, incidir nos autores que os anglo-saxões reuniram sob a expressão teoria
francesa contemporânea, isto é, Derrida, Lacan, Deleuze e Foucault.

Embora tenha, no decorrer desse livro, assinalado em diversas passagens como o estatuto
eminentemente negativo do desejo em Lacan, isto é, o desejo concebido como opacidade, fora
um verdadeiro motor no discurso psicanalítico para a subversão do sujeito e para o seu
descentramento (Butler, 1987, pp. 186-204), quando retomou os enunciados de Lacan em seu
livro posterior sobre os Problemas de gênero, em 1990, Butler (1999/1990, pp. 45-49, 55-73)
realizou uma crítica profunda da tradição psicanalítica, uma vez que, segundo a autora, a
psicanálise teria sido um dos discursos precursores na modernidade de uma matriz
heteronormativa para definir a identidade de gênero.

Com o desenvolvimento de Lacan em torno da diferença sexual, a psicanálise não contribuiria


senão para atribuir um estatuto hierárquico de poder ao falo na constituição psíquica dos
sujeitos e nas formas de organização do gozo, de forma que se o lado masculino da sexuação
em Lacan seria marcado por uma relação positiva entre a subjetividade e uma modalidade
fálica do gozo, do lado feminino, a dita abertura para o gozo Outro só poderia constituir uma
experiência negativa da sexualidade, a qual não prescreve nada mais que a realidade de uma
falta ou de uma ausência (Butler, 1990/1999, pp. 60-61). A formação dos sujeitos no lado mulher
- se considerarmos a descrição de um gozo Outro em Lacan que só é capaz de se enunciar
pela via de um suplemento ou de uma alteridade quase não conceituada - justificaria a
permanência de uma hierarquia entre os sexos na psicanálise, mesmo que Lacan tenha
tentado descolar a noção de sexualidade da perspectiva anatômica presente em Freud,
baseada na superposição do pênis ao falo e no estatuto privilegiado da presença e da atividade
masculinas.

No entanto, embora essa leitura apareça de maneira evidente como uma crítica à perspectiva
lacaniana de compreensão do Édipo, ela não é apresentada sem a defesa de duas teses
importantes no mesmo livro, Problemas de gênero, que relançarão o debate da autora com a
psicanálise para outra direção, de modo que a problemática de gênero e sua relação com o
discurso psicanalítico ganhará doravante novos destinos possíveis.

A primeira tese significativa apresentada por Butler (1999/1990, pp. 9-11) nesse livro é que a
distinção entre sexo e gênero não coincide com a tradicional passagem apreciada pelos
estruturalistas da teoria francesa, que tem sua origem no pensamento de Lévi-Strauss, do
estado de natureza para o estado de cultura.

Se, no início de seu ensino, Lacan indicará precisamente a importância do campo simbólico
para definir aquilo que permite a passagem do indivíduo animal para a dimensão do sujeito
humano - o que fora retomado por Althusser (1964/1993, pp. 27-33) para definir precisamente o
objeto da psicanálise -, em seus últimos textos e seminários, igualmente, Lacan (1979/1987, pp.
1975-1976/2005 , pp. 116-118) não pensará o sujeito da psicanálise por outra via senão
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sob a forma de um “falaser” (parlêtre), assujeitado à determinação do gozo do Outro e de sua
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corporeidade, “alíngua” (lalangue). A passagem da natureza para a cultura ou o que faz do
sujeito um sujeito humano, em Lacan, é precisamente o fato de ele ser um ser de linguagem,
Brasil
sendo o campo do simbólico um operador central na constituição das subjetividades.

No entanto, segundo Butler, essa distinção entre natureza e cultura aplicada para as
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fun…
discussões de gênero desconhece um elemento fundamental na análise histórica da
sexualidade e que consiste precisamente no fato de que o argumento da naturalidade do sexo,
investido pelo discurso biológico ou pela retórica da anatomia, não é nada mais do que o
resultado de um pensamento da cultura (Butler, 1999/1990, pp. 27-34). Retomando a definição
do dispositivo da sexualidade empreendida por Foucault, ela vai dizer que se o gênero é uma
construção da sociedade, o sexo é igualmente um produto da cultura. Ou seja, não há em torno
do sexo qualquer naturalidade biológica e toda suposta evidência em relação a esse domínio
sustentada por um discurso anatômico corresponde, na realidade, a estratégias de poder que
recorrem à legitimidade de um discurso dito científico para justificar imposições normativas.

Assim, se a sexualidade, para Foucault, como desenvolvemos, é uma invenção moderna, o


sexo, longe de se manifestar como o que haveria de mais primitivo e natural, na medida em que
se refere a uma simples experiência do instinto, só pode ser definido em função do cruzamento
de uma série de procedimentos de saber-poder. Dizer que o sexo é natural ou produto de uma
natureza é se utilizar da suposta legitimidade do discurso biológico para justificar a imposição
de uma concepção de sexualidade que se define culturalmente pela forma de um pensamento
binário e de uma heteronormatividade (Butler, 1999/1990, pp. 69-70).

A segunda tese importante proposta pela autora diz respeito especificamente à problemática do
gênero e à forma pela qual essa problemática incide política e filosoficamente numa discussão
sobre as identidades. Ora, se para Butler (1999/1990, p. 70) o movimento feminista, bem como
os movimentos contestatórios do que denominou de heterossexualidade compulsória, colocou
historicamente em questão as imposições de um modo binário e heterossexual para pensar o
sexo e o gênero, seria preciso contestar igualmente a própria necessidade de referir a
sexualidade dos sujeitos a um pensamento da identidade.

Como assinalou Joel Birman (2018, pp. 144-153), enquanto o movimento feminista nas décadas
de 1950 e 1960 contribuiu para a modificação da configuração familiar, onde a desigualdade de
direitos e de funções na família reproduzia um pensamento social fundado na estrutura do
patriarcado, o movimento homossexual, sobretudo entre os anos de 1965 e 1970, contra uma
sexualidade reduzida ao casal e à monogamia, defendeu a liberdade de escolha em relação
aos objetos e a reivindicação de direitos equivalentes. No entanto, considerando essa nova
definição da gramática do desejo, foi, de fato, o movimento dos transgêneros, a partir dos anos
1980, que colocou efetivamente em questão a problemática do gênero, de modo que foi a
contestação da própria noção de identidade que se tornou objeto de debate.

Seja pela recusa das normas impostas pela filiação - com a adoção de um novo nome -, seja
pela abdicação dos destinos dados pela anatomia - com a possibilidade de mudança real no
corpo -, os transexuais realocaram o paradigma do autoengendramento do sujeito no centro da
discussão de gênero. Pela via da nomeação no domínio do simbólico e pela modificação do
corpo em sua constituição biológica, o que o sujeito transexual produziu na contemporaneidade
foi a possibilidade de empreender uma recriação de si, baseada eminentemente na categoria
de desejo (Birman, 2018, p. 149).

A forma pela qual Butler retoma esse debate aponta não apenas para a necessidade jurídica de
reedificar uma identidade representativa capaz de justificar e valorizar a existência de outras
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formas de subjetivação, a que corresponderiam modalidades identitárias para além da lógica
mas Política
nossa
binária ou heteronormativa, também deparaPrivacidade.
a possibilidade deOKdefinir, em relação à
sexualidade, um domínio de experiências em que justamente a noção de identidade é colocada
em questão. Seria por uma desconstrução da relação necessária e fundante entre sexo, gênero
e identidade, que a autora, desde sua tese de doutorado até seus livros mais recentes, se
Brasil
esforçaria por pensar o estatuto político da alteridade no vivente, na medida em que, aberto ao
outro, o sujeito é essencialmente formado por aquilo que o destitui (Butler, 1999/1990, pp. 189-
190). Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fun… 

Se sexualidade é justamente o nome desse domínio, onde, investido por saberes, poderes e
formas de dominação, se manifesta ao sujeito uma relação necessariamente mediada pela
presença do outro, o outro não deve ser aquilo que restitui ao sujeito sua identidade, mas sim, e
necessariamente, aquilo que diante do qual o sujeito se encontra exposto a uma dimensão
essencial de alteridade. O que está em jogo no encontro com o outro, nessa perspectiva, é a
despossessão do sujeito em relação a si (Butler, 2004, pp. 27-29), e a experiência do impasse
em representar a si mesmo pela via da identidade (Butler, 2005, pp. 41-43).

Por esse ponto de vista, se quisermos relançar a série de interpelações que as problemáticas
de sexualidade e de gênero impõem à psicanálise, é preciso dizer que a retomada do discurso
psicanalítico por Butler é testemunha de que o campo central por meio do qual a psicanálise
pensou o conceito de inconsciente em Freud e a subversão do sujeito em Lacan não foi outro
senão o do desejo. Esse domínio insubmisso à representatividade das identidades e irredutível
a toda e qualquer norma de uma heterossexualidade compulsória permanece precisamente
como sendo o lugar onde as subjetividades modernas são confrontadas com esse campo de
indeterminação da experiência e que no discurso de Freud aparece como desamparo (
Birman, 1999, pp. 162-166).

Se foi no dispositivo da sexualidade que Foucault identificara a formação moderna de uma


sociedade que confessa e de subjetividades assujeitadas a um funcionamento positivo do
poder que impõe uma injunção a dizer, uma distribuição perversa da sexualidade e, finalmente,
uma concepção da experiência erótica atravessada pelo discurso científico, é no mesmo campo
da sexualidade que se impõe a afirmação de uma experiência não complemente submissa às
formas normativas do desejo. Manifestando aquilo que do sujeito permanece como índice de
vulnerabilidade, no caso de Butler, ou expressando a indeterminação daquilo que Freud
identificara com a noção de desamparo, a experiência da sexualidade, na medida em que se
desenvolve no horizonte do encontro do sujeito com o outro, permite a afirmação radical de um
pensamento da alteridade, irredutível a toda identidade.

Considerações finais
De maneira predominante, como vimos, a psicanálise em Freud, por um lado, abordou a
problemática da sexualidade e sua importância na determinação do psiquismo a partir da
referência masculina, em que é pela presença ou pela ausência do falo que se determina o
modo de constituição dos sujeitos de desejo. Como encontramos no final do texto de Freud
sobre “A organização genital infantil”, de 1923, sob o primado do falo, essa constituição se
orienta em função de uma polaridade entre masculino e feminino, de modo que do lado
masculino se encontram as dimensões do sujeito, da atividade e da possessão do pênis,
enquanto do lado feminino se identificam a figura de um objeto, o modo de operação da
passividade e, finalmente, a definição de uma órgão negativo, a vagina, cuja função não seria
outra senão alojar o pênis (Freud, 1923/2002b, p. 116). Por essa via, com efeito, o modo de
subjetivação feminino, ou aquilo que em psicanálise se chamou de feminilidade, só pôde
aparecer sob a forma de uma negatividade ou de uma ausência, como assinalou Joel
Birman
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umadiante do qual
melhor toda análise
experiência chega ao
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fim (Freud, 1937/2010e, pp. 52-55), ao positivar a feminilidade para além de suas formas
negativas, Birman (1999, nossa Política
pp. 10-11 ; 2001 dep. Privacidade. OK o véu dessa experiência e
244) pretende levantar
demonstrar em que consiste o solo fundamental da experiência psicanalítica.
Ora, se o registro do falo faz referência às pretensões de domínio de uma racionalidade que se
orienta a partir da totalização e da universalidade de um modelo de desejo, o feminino deve ser
Brasil
um domínio da sexualidade onde se torna possível a manifestação daquilo que resiste e não se
inscreve nesse projeto universal. É, com efeito, a dissolução dessa perspectiva, em que a
relação do sujeito consigo mesmo
Revista e com os outros
Latinoamericana é mediada pela
de Psicopatologia ordem fálica, aquilo a que a
Fun… 
noção psicanalítica de castração faz referência, de modo que não seriam apenas as mulheres
as formas de subjetivação submetidas à castração, mas igualmente os homens. E quando
Birman (1999, pp. 11-12; 2001 , p. 240) pretende positivar a categoria de feminilidade não se
trata de forma alguma de pensar uma forma de subjetivação onde a referência ao falo
permanece no horizonte da gramática de desejo; isso porque ser ou ter o falo só poderia
corresponder à superioridade daquele que o detém - manifesta sob a forma da arrogância
masculina -, e não ser ou não ter o falo faria alusão apenas à dimensão da inferioridade
feminina - manifesta sob a forma da inveja do pênis.

O que estaria em questão, de fato, na feminilidade em psicanálise, para Birman, é o modo pelo
qual a angústia da castração se torna comum a toda e qualquer forma de sexuação, uma vez
que ela se situa justamente no centro da experiência dos sujeitos com a sexualidade, onde a
dimensão do encontro com o outro conduz à referência fundamental do desamparo. De modo
que “se o ofício de psicanalisar implica conduzir as subjetividades a uma modalidade específica
de desfalicização, denominada por Freud de experiência de castração”, a noção psicanalítica
de feminilidade “seria uma outra maneira de se referir a isso” (Birman, 1999, pp. 12-13).
Confrontado com esse campo da experiência sexual, que no limite da representação manifesta
o que na psicanálise se apresenta como imponderável e indizível, o sujeito em análise aposta
na abertura possível daquilo que, para além do automatismo da repetição, imposto pela gozo
fálico, autômaton, o conduz para o que é acaso e contingente, tiquê (Lacan, 1964/1973, pp. 53-
54).

Efetivamente, é a assunção subjetiva da experiência de castração o que condensa a


especificidade do discurso e da prática psicanalíticas, na medida em que, referida à
sexualidade, ela se dirige para esse campo de abertura e alteridade que constitui a feminilidade
(Birman, 2001, p. 240). Por essa via e contra o modelo fálico e universal do pensamento da
identidade sexual, a experiência psicanalítica se define como afirmação de um espaço
fundamental de produção da diferença na constituição dos sujeitos, no interior do qual, para
além do modelo científico de conhecimento da sexualidade, abre-se um campo contingente de
experimentação, que, irredutível à representação, se recusa à adoção de toda e qualquer
identidade.

Se o que define a psicanálise é, portanto, a relação do sujeito com um domínio da experiência


em que ele mesmo se encontra descentrado e atravessado por uma condição de despossessão
e vulnerabilidade, é essa possibilidade de devir outro de si mesmo, isso porque em estreita
relação com a alteridade, que se encontra definida no horizonte da experiência psicanalítica.
Ora, e esse devir outro não pode ser prescritivo nem se organizar em função de uma norma
identitária, de modo que só se organizará em função de uma estética da existência.

Financiamento/Funding: Este trabalho não recebeu apoio / This work received no funding.
Citação/Citation: Leitão Martins, L. P. (2019, junho). Sexualidade, gênero e identidade: questões
para a psicanálise. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 22(2), 215-237.
http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2019v22n2p215-4
.

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Editoras/Editors: Profa. Dra. Ana Maria R. G. Oda e Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação
» Publicação nesta coleção
29 Jul 2019
» Data do Fascículo
Apr-Jun 2019

Histórico
» Recebido
01 Dez 2018
» Aceito
31 Jan 2019

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution
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