Comentário Quilomba

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“O racismo não é biológico, mas discursivo” (p. 130).

Grada Kilomba adota em


Memórias de uma Plantação, a escrita como ato político de existência e resistência no
combate ao racismo. O livro como resultado da tese de doutoramento dá significativa
contribuição para os estudos decolonialistas. Ela (como pesquisadora e mulher negra) não
é objeto, mas sujeito. Por isso, a fenomenologia adotada como ‘método’ atravessa em
caráter multidisciplinar: a psicanálise, a filosofia, antropologia e outro saberes para
escancarar o racismo cotidiano por meio da fala (entrevistas); e contribuir também para
os estudos antirracistas. A descolonização da ciência. O conhecimento não é universal.
É com destaque que, ainda na introdução, Grada Kilomba demarca a condição de
sujeito e a temporalidade de sua escrita. “Este livro pode ser entendido como uma forma
de ‘tornar-me sujeito’ porque nesses escritos procuro exprimir a realidade psicológica do
racismo cotidiano como me foi dito por mulheres negras, baseada em nossos relatos
subjetivos, autopercepções e narrativas biográficas – na forma de episódios” (p.29). Esse
trecho de introdução considero significativo, pois, ao mesmo tempo que é ela (sujeito)
também somos nós (mulheres negras) e que numa pesquisa acadêmica que sofreu críticas
por pretensa falta de método, Grada Kilomba valoriza a experiência fenomenológica da
subjetividade, no relato.
[...]
O livro é distribuído em 14 capítulos que se interconectam no objetivo de desvelar
o racismo cotidiano. E ao problematizar sobre o racismo cotidiano fica a percepção clara
de que nenhuma ‘opinião’, gesto, teoria é válida se a mesma limitar e/ou eliminar a
existência do outro.
O livro apresenta a ideia de o racismo ao longo do tempo transmutar ou ditar
formulações de existência, por exemplo: de uma teoria biológica para a projeção da
negação e até mesmo o tangenciamento com a percepção xenofóbica.
O capítulo 1 traz a construção do negro como ‘outro’ como representação mental
daquilo que o indivíduo branco não deseja ser. Essa condição de ‘outro’ não só
desumaniza, como desloca no tempo discursivo e no espaço.
Na perspectiva da linguagem ou do discurso como potência de ser, em capítulos
adiantes algo interessante defendido pela Grada Kilomba é que discussões de raça e
gêneros não podem ser dissociados. Daí ela desenvolve algumas observações ao
movimento feminista que podem ser interessantes na discussão em sala.
O livro é tão rico que cada capítulo poderia ser dedicada uma aula. Sobre a
linguagem e com ela está inserida no cotidiano é destacado a imposição da língua, no
caso a portuguesa que marca o gênero e, mesmo no pior grau traz palavras de cunho
negativo como mulata (mula) ou mestiço (cão sem raça) que são transportados a condição
dos sujeitos negros e que assimilam essa negatividade e estão postas no cotidiano. A
máscara de Anastácia é outro elemento cerceador do ato político da fala, do discurso.
[...]
Um capítulo que gostaria muito de aprofundar em sala é o último “Descolonizando
o eu”. O Trauma é raramente discutido dentro do racismo, segundo Kilomba, e isso indica
como os discursos ocidentais negligenciam as marcas da opressão. Pensei muito como na
pesquisa, se as coisas que negligencio não tem muito mais para me dizer do que minhas
escolhas postas. Mas, ela sinaliza caminhos para essa descolonização do eu. A negação;
a frustração; ambivalência; identificação e a reparação. Essas etapas são fundamentais
para descolonizar o nosso olhar para a sociedade.
No capítulo dedicado ao suicídio, mais uma vez remete-se a noção de tornar-se
sujeito, pois, na invisibilidade e no deslocamento da sociedade branca o corpo negro não
cabe. O livro é sem dúvida um chamamento para a agenda antirracista, e, principalmente
um exercício para revisarmos nosso olhar diante da nossa sociedade, da família, trabalho
e qualquer outro espaço que se estabeleça cotidiano, pois, ali estará a manutenção de
memória de opressão.

é validada se esta limitar a existência do outro

da abordagem na pesquisa e das entrevistas coletadas que dão os recortes necessários as


análises não a afasta, mas a potencializa como pesquisadora junto do cuidado ao explicar de
como procedeu com as escolhas durante o percurso.

“A língua, por mais poética que possa ser, tem também uma
dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de
poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o
lugar de uma identidade.

1. A máscara
O primeiro capítulo, “A máscara”, traz uma imagem bastante conhecida, de
Anastácia, uma mulher escravizada no Brasil. A máscara física do período de
escravidão é “substituída”, nos dias de hoje, por uma máscara simbólica. Afinal,
quem pode falar? E quem pode falar sem ser desqualificado? Quem conta as
histórias, como as conta, como representa o Outro? Estas reflexões podem se
conectar com uma famosa palestra de Chimamanda Ngozie Adichie, “O perigo
da história única”.

Neste capítulo, Grada Kilomba também fala sobre o processo de consciência da


branquitude e perpetuação do racismo, o que achei bem interessante e didático:
negação; culpa; vergonha; reconhecimento; reparação.
2. Quem pode falar?
No segundo capítulo, “Quem pode falar?”, a autora comenta sobre como o
conhecimento branco é visto como universal e objetivo, enquanto que o
conhecimento fora deste “padrão” branco é encarado como específico e
subjetivo.

3. Dizendo o indizível
O terceiro capítulo, “Dizendo o indizível”, para mim trouxe uma ótima explicação
de porque não existe “racismo reverso”. A autora não construiu a linha de
raciocínio querendo explicar isso, mas foi algo que pensei imediatamente com
a leitura. Grada Kilomba apresenta três características do racismo: construção
de diferença; diferenças construídas estão inseparavelmente ligadas a valores
hierárquicos; poder. As duas primeiras características constituem preconceito,
mas o racismo surge quando unimos o preconceito com o poder.

4. Racismo genderizado
Neste capítulo, a autora começa a trazer alguns depoimentos de situações reais,
vividas por ela mesma ou pelas mulheres que entrevistou em sua pesquisa. Há
a descrição de uma situação em que, após uma consulta médica, ainda quando
criança, ela foi “convidada” a trabalhar para a família do médico durante uma
viagem.

Aqui, Grada Kilomba comenta sobre intersecção entre raça e gênero, como estas
questões são inseparáveis e sempre entrelaçadas. E também sobre como o
feminismo branco é visto como universal, enquanto o feminismo negro é visto
como específico.

5. Políticas espaciais
O quinto capítulo de “Memórias da Plantação” aborda episódios em que
mulheres negras, seja na Europa ou nos Estados Unidos, são questionadas
sobre “de onde elas vêm”, o que causa uma sensação de não-pertencimento.

“Ser observada e questionada são formas de controle”

6. Políticas de cabelo
Este capítulo fala sobre a situação que mulheres negras sofrem de serem
tocadas por desconhecidos, especialmente em seus cabelos. Desta forma, elas
vivem uma experiência de invasão, em que são tratadas como objeto público.
Grada Kilomba comenta ainda sobre padrões dominantes de beleza e de como
o cabelo de mulheres negras é muitas vezes associado a sujeira ou a selvageria.

7. Políticas sexuais
O sétimo capítulo de “Memórias da Plantação” aborda a questão das piadas
racistas, que coloca as pessoas negras em um espaço de subordinação. Também
fala sobre a “castração” simbólica do homem negro e sobre a figura da “mãe
negra” como uma representação ideal da relação que a branquitude deseja com
mulheres negras.

8. Políticas da pele
Grada Kilomba comenta sobre a questão da fobia racial, da “incapacidade” de
uma pessoa em ver “raça”. Ser negro é visto como algo negativo, então quando
uma pessoa negra não corresponde a estes estereótipos racistas, ou se tem um
nível de amizade com o interlocutor, ela passa a não ser vista como negra.

A autora ainda discorre sobre o uso de termos preconceituosos para se referir


a pessoas que são fruto de relacionamentos “inter-raciais”, e que são
comparativos a termos usados para animais, como “mestiço”.

9. A palavra N. e o trauma
N., neste caso, é o termo “Neger”, que carrega uma conotação bastante negativa.
Ele não tem ligação apenas com a cor da pele, mas é ligado à expansão europeia,
trazendo consigo a carga da história da escravização e colonização.

“Experencia-se o presente como se estivesse no passado. Por


um lado, cenas coloniais (o passado) são reencenadas através
do racismo cotidiano (o presente) e, por outro lado, o
racismo cotidiano (o presente) remonta cenas do
colonialismo (o passado)”

10. Segregação e contágio racial


Este capítulo de “Memórias da Plantação” fala sobre algumas situações como a
guetificação. As pessoas brancas definem a área que elas irão ocupar, e também
a área em que as pessoas negras ficarão confinadas. Há uma relação entre
limpeza e sujeira: quando está em seu local “certo”, tudo bem, mas ao sair de
seu local, fica-se “sujo”.
11. Performando negritude
A autora comenta sobre a carga de pessoas negras tornarem-se representantes
de sua raça quando estão num espaço que não é comumente ocupado por
pessoas negras. Desta forma, elas sentem uma pressão em mostrar o tempo
todo que são tão ou mais competentes do que as outras.

Há também relatos sobre a insistência de outras pessoas saberem qual a sua


origem (ainda que se tenha nascido naquele país mesmo). São questionadas
seguidamente sobre seus ancestrais (“E seus pais? E seus avós?”), até que se
chegue a uma origem africana e supra a necessidade do interlocutor de “ouvir
uma história exótica”. Essas perguntas não levam em conta que invocam um
passado traumático de ruptura e perda, associado a histórias de escravização.

12. Suicídio
Este capítulo de “Memórias da Plantação” fala sobre o estereótipo da mulher
negra de superforte, dedicada e que tem um amor incondicional. E de como a
vida destas mulheres acaba tendo uma carga pesada, pelo racismo e
isolamento. Tanto que o tema do suicídio apareceu de forma recorrente entre
as entrevistadas.

13. Cura e transformação


Grada Kilomba traz algumas situações em que mulheres negras enfrentaram o
racismo cotidiano e se posicionaram. Também comenta sobre a história de
ruptura, do passado traumático, que une negras e negros de todo o mundo.

14. Descolonizando o eu
Na conclusão do livro, a autora traz algumas questões interessantes e
pertinentes. Por exemplo, quando uma pessoa negra sofre uma situação de
racismo, em vez da questão “O que você fez?”, seria melhor substituí-la por “O
que o racismo fez com você?”. Desta forma permite-se que o sujeito negro se
ocupe de si mesmo.

Grada Kilomba finaliza com os cinco mecanismo de defesa do ego para, enfim,
tornar-se sujeito: negação; frustração; ambivalência; identificação;
descolonização.
Concluindo
Trouxe aqui um breve resumo dos temas abordados em “Memórias da
Plantação”, de Grada Kilomba, e recomendo fortemente que este livro seja lido.
Esta postagem não chega nem perto da profundidade com que ela aborda cada
questão, que merece ser lida com atenção e cuidado.

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