Possiveis e Desconhecidos A Cosmopolitic
Possiveis e Desconhecidos A Cosmopolitic
Possiveis e Desconhecidos A Cosmopolitic
Priscilla Mello2
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Apresentação – GT Deleuze 2019, Niterói, RJ
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Doutoranda em Antropologia Social (PPGAS/Museu Nacional/UFRJ)
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446). Desacelerar o pensamento visa nos precaver e permitir a existência de formas
geradoras de vida em multiplicidade, uma vez que sem essa hesitação, não pode haver
criação.
Não pretende ser universal. Volta-se a praticantes e situações concretas,
indiferentes às pretensões teóricas generalizantes que vêem os outros como “executantes
encarregados de ‘aplicar’ uma teoria ou de capturar sua prática como ilustração de uma
teoria”, aqueles que aprenderam a rir não das teorias, mas da “autoridade a elas
associada” (2018: 443). Sua maior preocupação é como construir uma forma de
apreender o mundo que não reproduza as características de uma tradição que transforma
em chave universal neutra válida para todos as práticas das quais se orgulha,
empreendimento típico da modernidade. Trata-se de uma reflexão acerca da arte dos
encontros e relações, entendendo que estes se dão necessariamente entre diferentes, pois
uma relação só é possível na diferença.
Nesta acepção, cosmos não nos remete a um mundo particular ou a uma
tradição particular, mas à insistência do “desconhecido que constitui esses mundos
múltiplos, divergentes” para ser um “operador de colocação em igualdade”. Igualdade
entendida como distinta de equivalência, a qual busca produzir uma gramática dos
encontros onde o pensamento coletivo se construa na presença de todos aqueles
implicados, dos invisíveis, das forças minoritárias, de modo que seja conferido às
tomadas de decisão ou movimentos reflexivos o seu “grau máximo de dificuldade, que
proíba qualquer atalho, qualquer simplificação, qualquer diferenciação a priori entre
aquilo que conta e aquilo que não conta” (2018: 463). Trata-se de articular numa
perspectiva eto-ecológica, necessidades e consequências divergentes e em conflito,
fruto de um “acontecimento cósmico”, um encontro, sem propor a existência de um
árbitro capaz de julgar a legitimidade de cada um. Para isso se faz imprescindível que o
observador assuma a posição de “um ‘não saber radical’ em relação ao que é do
‘interesse geral’”, assegurando que “toda proposição se apresente de um modo que a
exponha efetivamente, o mais efetivamente possível, e que todos os objetores-
proponentes tenham os meios de desdobrar plenamente a sua proposição” (2018: 451).
Como a química, é uma “arte da heterogeneidade” ou “colocação em presença
de corpos enquanto heterógenos” onde se evita a apresentação de papéis
estereotipados/essencializados uma vez que é em torno de cada problema que eles irão
se determinar (2018: 460). Não há dessa forma interesse pelo o que é previamente
definido, pelo o que é fixo, dado. Aqui também, pela recusa do fatalismo, se busca
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suscitar um ambiente onde, em lugar de se estar decepcionado, se objetiva “aprender a
descrever com precisão a maneira como as histórias pensadas como promissoras,
acabam por se voltar ao fracasso, à contrafação ou à perversão”, para construir uma
experiência e uma memória ativas, compartilháveis, criadoras de exigências políticas
(2018: 452). É essa experimentação, em sua forma textual, que a autora desenvolve no
livro “A feitiçaria capitalista” (Stengers, Pignarre 2011) acerca das lutas
antiglobalização de Seattle em 1999, por exemplo.
Assim, ao mesmo tempo em que há dentro de uma “aposta eto-ecológica
associada à ecologia política” a recusa de um árbitro externo que faça prevalecer o
interesse geral, na proposição cosmopolítica, recusa-se também qualquer tipo de
neutralidade metodológica de forma que os pesquisadores interessados têm de assumir o
risco de construir seus saberes de um modo que os torne “‘politicamente ativos’,
engajados na experimentação do que pode fazer a diferença entre sucesso e fracasso ou
contrafação” (Stengers 2018: 452). Trata-se de fazer pensar, se colocar em risco, não
estagnar o pensamento, mas fazê-lo correr. É se localizar dentro da perspectiva de uma
utopia, mas utopia esta não vinculada a promessas transcendentais simplistas, pois é
resistente às palavras de ordem e à denúncia. Aqui a utopia permite nos dirigirmos ao
mundo com outras questões, carregados pela memória de que vivemos em um meio
perigoso (2018: 452-453).
Atenta a esses perigos, Stengers formula o primeiro sentido da proposição
cosmopolítica como o de complexificar os sentidos da ecologia política de maneira que
ela se torne inassimilável, que não possa ser reconhecida por seu opositores e nem
enquadrada como “livre composição de interesses” ou submetida à “intrusão indesejada
de uma transcendência” (2018: 455). Justamente porque a cosmopolítica investiga as
possibilidades de “emergência sem transcendência” (2018: 455). Como na química, a
atividade dos corpos, não pode ser atribuída a eles, mas depende das circunstâncias,
assim, “pertence à arte dos químicos criar tipos de circunstâncias nos quais os corpos se
tornarão capazes de produzir o que o químico deseja: arte de catálise, de ativação, de
moderação”. Trata-se de “aproveitar-se da propensão das coisas, dobrá-las”, de forma
que realizem desembaraçadamente o que se deseja, um fluxo. Desse modo, a
possibilidade de emergência encontra-se fora da oposição entre liberdade e submissão,
mas em um pensamento centrado na eficácia e atento ao oikos (Stengers 2005; 2009).
No encontro político não há nada de espontâneo, mas depende de um meio que
permite a aparição daquilo capaz de importar, sem que o seja de forma imposta. Está na
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ordem do acontecimento, e não na boa vontade individual ou coletiva (2018: 456-457),
mas daquilo que cria um “campo de possível”. Assim, a “ordem do mundo” é medida
em termos de eficácia: “constrange cada um a se produzir, a fabricar-se a si mesmo, a
partir de um modo que confere ao problema em torno do qual eles se reúnem o poder de
gerar pensamento, um pensamento que não pertencerá a ninguém e a ninguém dará
razão” (2018: 458).
Alerta sobre a importância dos modos de se proteger e fazer proliferar as regras
de prudência e desenfeitiçamento. Estar atento a uma feitiçaria que espreita e envenena
até o mais revolucionário dos devires, rompendo vínculos e capturando potências
criativas. O capitalismo não se preocupa com as denúncias3. Não se trata portanto de
aceitar a morte como destino inexorável, mas da possibilidade de um grito que se
propaga, que move, que abre outros mundos possíveis. Trata-se de escrever na presença
do capitalismo e na iminente destruição do mundo, mas implica necessariamente a
construção de outros agenciamentos enunciativos, vínculos, pertencimentos que
resistam tanto à fixidez-dureza como às linhas de abolição do capitalismo globalizado
para impulsionar processos de singularização, vida e criatividade.
Em sua proposição cosmopolítica, Stengers investiga e propõe caminhos, e
principalmente restrições, para exorcizar fantasmas atenta a existência de uma “ecologia
das ideias danosas” (Bateson apud Guattari 1990: 7) fruto do caráter parasitário do
capitalismo. Para isso, opera um diagnóstico dos devires, buscando vitalidades em
corpos doentes e envenenados pelo capital. Busca mais por formas de se abrir um
campo de possíveis, e menos, indicar um caminho ou encaminhar soluções. É na luta
contra os prováveis que tece uma pragmática especulativa (um e se transcendental) que
possui também um caráter performativo, ou seja, diz respeito à implementação de uma
técnica.
Com um estilo de escrita que nos soa contraintuitiva, onde a cada parágrafo seu
pensamento parece fazer mais uma torção, a reflexão proposta por Stengers é
preocupada com a temática do encontro, que é fundamentalmente o sentido de “espaço
cosmopolítico”. A filósofa nos indaga sobre como podemos elaborar uma “tecnologia
de coexistência entre práticas distintas” para exorcizar os fantasmas que nos rondam
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“se o capitalismo fosse colocado em perigo pela denúncia, ele já teria colapsado há muito tempo atrás”
(Stengers 2011: 11)
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como: universalismo, homogeneização, intolerância, fascismo, parasitismo4 e morte. No
mesmo sentido da filosofia da diferença em Deleuze e Guattari, lhe interessa a
possibilidade da existência de mundos múltiplos e na possibilidade do convívio de
heterogêneos enquanto heterogêneos, no seu caso uma tecnologia de coexistência entre
práticas distintas. Desse modo, as reflexões de Stengers podem nos ajudar a pensar a
antropologia como prática, visto que alteridade, encontro e diferença são questões que
atravessam o cerne da disciplina.
Ao considerar sobre esses debates, à proposição cosmopolítica interessa
expurgar aquilo que caracteriza as práticas modernistas, qual seja, o princípio de
desqualificação de todo conhecimento que não seja ele próprio. Stengers nos indaga: ao
retirarmos esse princípio, impondo uma restrição (2010a: 54-55), o que poderia ocorrer
a nossa forma de ver o mundo? A autora distingue a operação restritiva da imposição de
condições ou de coerção visto que não pretende limitar, mas possibilitar saídas criativas
a certas questões, nos permitindo escapar aos clichês analíticos. Assim, lhe foi possível
perseguir a singularidade criativa das assim chamadas práticas modernas sem reafirmar
a oposição/inversão hierárquica entre moderno e não-moderno. O que Stengers procura
é reterritorializar as práticas científicas sem seus efeitos de poder, vinculando-as ao
primado das consequências. Destarte, interroga como cada prática pode apresentar-se de
forma a não abrir mão de sua singularidade, mas ao mesmo tempo não pretender a
destruição das outras práticas e nem somente tolerá-las, o outro lado da mesma moeda
(Stengers 2010b: 303-311). “they won’t get me with the cave trick again” (p. 81-82);
“Não vão me pegar!”, é seu grito contra a inexorabilidade da caverna platônica. Para
isso buscar romper a dicotomia entre reafirmar o grande divisor (verdadeiro-falso,
razão-erro, ciência-ilusão) ou afirmar que a ciência é tão somente “uma prática (isto é,
ilusão) como outra qualquer” (2010a: 81-82).
Aqui nos é introduzido o desafio de “pensar com os desconhecidos” (unknowns).
Extirpar, ao ser atravessado pela ecologia das práticas, aquilo que permite ao filósofo,
ao antropólogo e a todas as práticas em sua versão modernista, julgar e desqualificar
(2010a: 72). É da própria noção de Verdade que Stengers nos desafia a correr. Nem
acreditar, nem desqualificar, mas operar um profundo agnosticismo. Segundo ela, o
caminho que distanciou os “humanos” da idolatria, do fetichismo e de tudo aquilo
através do qual os outros eram “pegos” ou “possuídos” é justamente a marca que
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Ao caráter parasitário do capitalismo poderíamos opor a simbiose como figura cosmopolítica por
excelência.
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evidencia o quanto aqueles vem sendo e continuam sendo pegos. Que efeitos são
gerados e quais venenos evitados ao insistirmos em um desconhecido? Trata-se de
deixar subsistir uma zona de indiscernibilidade. Nessa acepção, o desconhecido em
Stengers é tomado praticamente como sinônimo de cosmopolítica, sendo central a sua
proposição (2010a: 79).
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das religiões de matriz africana e, sobretudo, da linha cruzada do batuque no Rio
Grande do Sul, que em direção à proposta stengeriana. A expressão, assim utilizada, nos
remete à possibilidade de outras variáveis como, por exemplo, uma cosmopolítica
guarani ou uma cosmopolítica kayapó, etc. Desse modo, a expressão é mobilizada a
partir do diagnóstico sobre a presença de um tipo de cosmopolitismo afro-brasileiro, na
forma de uma variante do nomadismo deleuze-guattariano, diagnosticado pelo autor a
partir de sua análise dos encontros e formas de lidar com a diferença dentro da linha
cruzada (2008: 94). Ainda assim, o acontecimento trazido pelo autor e a forma como
opera sua descrição, em diversos sentidos tem cruzamentos e aproximações possíveis
com a proposição cosmopolítica stengeriana.
O livro é fruto de uma pesquisa de campo realizado por Anjos a partir de 1991
em uma comunidade negra próxima do centro de Porto Alegre, a Vila Mirim, uma
ocupação de quarenta anos à época do estudo. A vila estava ameaçada de remoção pela
construção de três avenidas, parte do plano de reforma urbana da Prefeitura Municipal
de Porto Alegre. A obra iria atingir 115 domicílios, onde residiam cerca de 130 famílias.
O processo de resistência à remoção durou quase dez anos, envolvendo parte
significativa dos moradores, agente públicos e entidades do movimento negro, como o
Movimento Negro Unificado (MNU). Segundo o autor: “de um total de 113 domicílios
cadastrados na faixa de remoção seis eram terreiros; uma mãe-de-santo liderava a
resistência à remoção; as reuniões da Comissão dos Moradores ocorriam no terreiro
dessa mãe-de-santo”. Sua pesquisa, portanto, envolve todo o processo de disputa
política, os agentes e conflitos envolvidos, assim como carrega simultaneamente a
dimensão religiosa ali presente. A aproximação de Anjos com o campo se deu em um
primeiro momento como militante do MNU, depois sua contribuição se estende como
filho-de-santo no terreiro da mãe-de-santo que liderava o processo de resistência da vila.
Sua etnografia possui dois ângulos de análise principais: por um lado há a
narração de situações concretas de disputa, focando na atuação dos sujeitos que lá se
encontram, por outro, centra-se nos aspectos cerimoniosos ou ritualísticos seja na
política, na religião ou diluídos na cotidianidade (Anjos 2006: 14). Assim, sujeitos em
interação e situações cotidianas exemplares com relação ao acontecimento são os
ângulos a partir dos quais o autor analisa o cruzamento de política e religião, buscando
entender como a filosofia dos afro-religiosos envolvidos impacta as práticas e
interpretações que estes mobilizam no processo de resistência e em seu cotidiano (2006:
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15). É assim que Anjos pode desenvolver as noções de encruzilhada e de raça como
percurso nômade, por exemplo.
Toda prática científica é sujeita a riscos. Podemos dizer, que um risco inerente à
prática antropológica é o de o pesquisador se expor a forças as quais não compreende ou
não sabe manejar. Os riscos fazem parte da própria viabilidade do estudo. Portanto, não
há como não estar vulnerável, na medida em que a não exposição aos riscos
impossibilita o próprio desenvolvimento da pesquisa em si. Esse movimento na
antropologia trata de colocar-se sob o risco dos outros, e é fundamentalmente o oposto
do que Stengers vai chamar de maldição da tolerância (2010b: 303-311).
A tolerância é um movimento típico do pensamento estatal e fruto da mesma
operação que produz tanto a intolerância quanto a indiferença, tríade da qual a
proposição cosmopolítica busca resistir e escapar. A tolerância, atitude vergonhosa que
passa por bondosa, consiste em aceitar os equívocos dos outros, na medida em que se
supõe que eles vivem em estado de crença ou de ingenuidade, que o “ocidente” teria
perdido há muito tempo. É outra face da arrogância universalista que caracteriza as
práticas modernistas, que só aceitam algo desde que se pareça com aquilo que fazem,
desqualificando os outros (Goldman 2016). Dessa forma, a tolerância bloqueia qualquer
possibilidade de aprendizado e de se produzir uma ecologia das práticas. Uma
alternativa a essa postura seria a de sentir vergonha e de se colocar na posição de
aprendiz (Barbosa Neto, Goldman 2017).
Como proposto por Barbosa Neto e Goldman (2017), a partir da leitura de Primo
Levi e Deleuze, sentir vergonha diz respeito a não ser capaz de impedir a existência do
horror e às vezes até mesmo lhe fazer concessões. “Somos manchados por esse horror”,
“somos seus herdeiros”, mas essa vergonha não tem nada a ver com o sentimento de
culpa, que só conduz a um suposto direito arrogante de julgar quem é culpado e quem é
inocente. Ou ao duplo absurdo de julgar que todos ou ninguém são culpados. A culpa
pode nos acompanhar por toda a nossa existência, temos até uma ciência que a coloca
como fundamento da nossa existência, e permite que as respostas ao horror possam ser
debatidas, postergadas, analisadas, etc., e colocada sob o duvidoso signo da bondade, da
justiça, e da concessão. Mas a vergonha exige e provoca respostas imediatas, a vergonha
é intolerável. E é intolerável porque se defronta com o próprio intolerado. A vergonha é,
na verdade, uma poderosa força do pensamento.
O respeito também pode ser uma imagem útil, sendo inclusive muitas vezes
mobilizada pelos movimentos de luta contra o racismo religioso, mas Stengers observa
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como se aproxima excessivamente do sentido de tolerância que repudia. Um outro
sentido para respeito, diferente de tolerância seria de honrar uma verdade sem construir
do outro lado o erro, um agir no mundo sem julgá-lo. Uma outra dimensão do respeito
seria sua atuação como um restrição, como um pharmakon o qual é preciso ter cuidado
ao manejar (2010a: 28-41). Como observado por Barbosa Neto e Goldman (2017), a
arte do respeito exige uma cuidadosa arte da dosagem, aproximação e afastamento,
implica em fronteiras o que não significa que sejam fixas ou imutáveis, mas que não
podem deixar de existir, pois são a condição de preservação da diferença e
consequentemente da possibilidade de uma relação. O sentimento de invulnerabilidade,
de se ignorar os limites, o desconhecido, só pode levar ao isolamento ou à destruição,
assim, o respeito se torna interessante não como exigência hierárquica e submissão ao
universal, mas como obrigação no qual nos engajamos existencialmente – leva o sujeito
a se obrigar e não a obrigar outrem.
No evento cosmopolítico narrado por Anjos de resistência da Vila Mirim, há um
choque entre forças majoritárias e minoritárias e o embate entre modos de existência
distintos. O autor consegue compor uma descrição antropológica em que escapa da
maldição da tolerância, assim como da intolerância, desqualificação ou
sobrecodificação. De fato busca aprender algo a partir das práticas e experiências
concretas das pessoas no campo, lendo-os sob o signo de uma ecologia das práticas e
pragmática de seus efeitos. Se por um lado isso não ocorre na parte do texto que
segundo o autor consiste em sua tese central, por outro, no livro há uma descrição
minuciosa acerca do processo de resistência atenta aos embates entre os agentes
envolvidos. Anjos consegue fazer uma descrição atenta aos riscos de captura aos
moradores envolvidos na luta ao descrever os embates entre os grupos que desejam
permanecer e aqueles que desejam ser removidos. Anjos descreve em detalhes as
divergências, opiniões, mudança de opinião, alianças. Desse modo, elabora uma
cartografia do acontecimento em suas diversas camadas sem assumir a posição de
árbitro.
Ao descrever a ação do poder público vemos que o modo como este poder atua
no processo de remoção da comunidade é justamente no sentido oposto àquele proposto
por Stengers quando esta afirma a necessidade de que se faça presente todos aqueles
implicados pelas tomadas de decisões. O poder público aparece como surdo às
demandas dos moradores ainda que os tolere e respeite como ocorre na visita do prefeito
à comunidade (Anjos 2006: 63-75). O jornal da prefeitura descontextualiza as falas,
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transformando-as em “interesses evidentes”, sendo evidenciada a criação de uma
memória de apagamento, a expurgação de um sentido de nós (2006: 50): “o poder
define fronteiras, não tanto no espaço, mas sobretudo no tempo: entre as redes de
relações que se estabeleceram ao longo de quarenta anos e o futuro da Mirim na vila
Rubem Berta” (2006: 55). Ao mesmo tempo, Anjos explora os agenciamentos coletivos
de resistência daqueles que lutam pela permanência, em uma narrativa complexa, rica
em torções, onde nada é óbvio.
Toda uma outra dimensão do trabalho diz respeito à forma como o autor vai
rediscutir o conceito de sincretismo, explorando a noção de encruzilhada e sua relação
com os processos de (re)territorialização e desterritorialização da subjetividade.
Segundo ele: “a encruzilhada é um ponto ambíguo na religiosidade afro-brasileira
porque ali tanto pode ser o começo, a abertura de um fluxo, quanto o fim de um
território existencial. Ali onde é preciso começar a vida, o perigo de se bloquear o fluxo,
o perigo de não se começar o processo de subjetivação, o corpo da terra despido de
subjetividade, o puro processo nômade” (Anjos 2006: 19). Na encruzilhada, bem e mal
coexistem e se conectam a noções como abertura e fechamento de caminhos. O
cemitério, também surge como uma encruzilhada, neste caso entre vida e morte,
passado e presente ou presente e futuro; e também surge o próprio corpo do filho-de-
santo enquanto encruzilhada.
Para Anjos, a experiência da incorporação representa o pensamento da diferença
elevado a seu mais alto grau, um “ato intelectual desterritorializante, em que um sujeito
residual cede o corpo e a consciência a uma entidade que não mais coincide com o eu. A
diferença é carregada para dentro do sujeito a ponto deste não poder mais se suportar
como tal.”; “Trata-se de uma experiência radical de alteridade: o ‘outro’ introduzido no
‘mesmo’”. As entidades se ocupam do cavalo-de-santo, fazem do seu corpo um
território no qual podem cavalgar, de forma que o terreiro é o lugar de “sobreposição de
territórios”, onde o próprio corpo está na “encruzilhada do ‘eu cotidiano’ e das
entidades que o ‘ocupam’” (2006: 20-21). A partir desta imagem, o autor sustenta a
ideia de que na religiosidade de matriz africana existe uma lógica substancialmente
diferente das cosmovisões ocidentais, que não obedece, como afirmado por Bastide, ao
princípio da identidade e da não-contradição, próprio ao pensamento ocidental (apud
Anjos 2006: 22). Primeiramente, essa religiosidade apresenta, segundo o autor, um
outro patrimônio que não é a dissolução das raças numa mestiçagem em que as
diferenças são homogeneizadas. Sua lógica rizomática: “ao invés de dissolver as
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diferenças, conecta o diferente ao diferente deixando as diferenças subsistirem como
tais”; nesse sentido, “um caboclo permanece diferenciado de um orixá mesmo se
cultuados no mesmo terreiro e sob o mesmo nome próprio” (2006: 22). Em segundo
lugar e paralelamente, Anjos não vê nessa experiência a presença de “essências
identitárias pertencentes a indivíduos, mas territórios simbólicos de intensidade
diversas, passíveis de serem percorridos por multiplicidades de raças e indivíduos”
(2006: 22).
Interessam-lhe os percursos nômades observando que dos jogos das diferenças
na religiosidade afro-brasileira se desprende uma modalidade de não-essencialização
das raças, que nem por isso deixa de se fazer como “espaço de devir histórico das
raças”. Diferentemente de outros autores que veem nessa característica um impasse à
organização política, Anjos vê no nomadismo das formas religiosas de matriz africana a
“possibilidade de organização política sem os riscos de asfixia burocrática por fixação
demasiadamente mecânica numa identidade essencializada”, fruto de uma forma distinta
de se constituir enquanto grupo político, onde o processo de desterritorialização-
reterritorialização é constante (Anjos 2008: 92). A pergunta que atravessa sua reflexão é
como articular essas duas dimensões ao mesmo tempo que nos engajamos na luta por
políticas públicas antirracistas como as ações afirmativas. Afirma que: “Sendo a
racialidade vivenciada como um ponto de vista que se ‘ocupa’ de um corpo, como
intensidade histórica que se faz corpo, a distribuição de gradientes dessa intensidade é
possível para efeitos compensatórios sem que as linhas assim traçadas constituam
essências” (Anjos 2006: 23).
Levando em conta a ecologia das práticas de Stengers, precisaríamos estar
atentos aos riscos presentes no conceito de raça como percurso nômade, quando esta é
inserida em um ambiente insalubre, propenso à proliferação de vírus como a defesa da
meritocracia individualista e o apagamento da luta contra o racismo. Talvez nos fosse
interessante pensar o conceito de raça como um pharmakon, que pode curar ou
desvitalizar, a depender das condições ecológicas e das forças agenciadas. Se criada
para segregar, é reapropriada e reterritorializada pelos movimentos de negritude como
potência de cura e força, um reclaim (Stengers 2011: 135), retomadas. Por outro lado,
sua territorialização demasiadamente dura/rígida, aos modos do poder estatal, pode
emperrar uma potência vital, força criativa de outros mundo possíveis, espaço estriado
por excelência (Deleuze & Guattari, 2012). Ao mesmo tempo, é o ocidente, com seus
universais, e as forças capitalística, ao desmanchar todos os vínculos de pertencimento
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(Stengers 2010a, 2011; Haraway 1995), o maior representante da total
desterritorialização, o não-localizado, o olhar privilegiado, não marcado. Talvez seja
exatamente a possibilidade de criação de territórios existenciais em movimento que
consiste a potência das forças minoritárias. “Que a terra devenha a leve”.
Essa atenção parece surgir de forma mais explícita em outro trabalho do
antropólogo acerca da festa e devoção a Nossa Senhora dos Navegantes em Porto
Alegre, na qual há a coexistência de duas figuras femininas: Maria e Iemanjá (Anjos;
Oro 2008). Aqui há uma aproximação mais nítida com a proposição cosmopolítica de
Stengers na forma como a análise da procissão é desenvolvida pelos autores. Neste caso
é a procissão, os sujeitos e as forças que lhe atravessam que constituem o
acontecimento, o evento cosmopolítico, geografia de intensidades sobre a qual os
autores vão percorrer seguindo humanos e não-humanos.
Primeiramente criam um lugar de enunciação, um nós, a partir de uma série de
restrições no sentido stengeriano do termo: recusam o lugar de “autorizado
religiosamente para falar sobre as devoções em pauta”, um possível proselitismo;
também recusam o “distanciamento crítico”, um sociologismo; evitam “legislar sobre o
sincretismo”, assumir o lugar de juiz sobre o as práticas; e, como postura ativa, tomam
seus interlocutores religiosos como plenamente teóricos, portadores de filosofias plenas
com as quais o antropólogo tem algo a aprender (Anjos; Oro 2008: 5). Dessa forma
buscam a não-desqualificação das práticas com as quais entram em contato e nem
estabilizar a divergência, ou seja, buscam manter a multiplicidade de posicionamentos e
interpretações. Seu objetivo é descobrir “regimes insuspeitos de problematização,
anunciação, denúncia e diplomacia” (Anjos; Oro 2008: 5).
Oa autores apostam em uma desestabilização das posições clássicas de
“antropólogo” e “nativo”, para que aquele apareça como um “aprendiz”, disposto a ser
afetado e experimentar as gramáticas nativas de composição de mundos comuns.
Também, os autores definem seu texto como sendo sincrético da mesma forma que o
objeto sob análise, repetindo o procedimento diplomático de seus interlocutores de
modo a “misturar e separar porções cósmicas” (Anjos, Oro 2008: 6). Aceitam a
presença de zonas de indiscernibilidade para operar um inventário de atualização dos
possíveis, buscando, assim como Stengers, esconjurar a captura dos conceitos e nos
fazer pensar.
Assim como no livro “No Território da Linha Cruzada” (Anjos 2006), a
preocupação por trás da etnografia é entender como se dão os processos de
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(re)territorialização e desterritorialização e seus agenciamentos possíveis, neste caso,
desde a chegada dos portugueses e da santa à cidade até chegar às dimensões envolvidas
na procissão nos dias de hoje e sua relação com as religiosidades de matriz africana.
Lidando com temporalidades amplas, não há interesse em diferenciar narrativas míticas
e histórias reais, mas focar sobre os “efeitos dos procedimentos de intensificação da
presença”. A pergunta pragmática do livro é acerca do que torna mais intensa a presença
da força que move o acontecimento, religando pessoas, eventos e ícones em torno da
procissão, e o que a desvitaliza (Anjos; Oro 2008: 10).
Após um histórico acerca da chegada da imagem da santa, da organização da
festa e do ciclo festivo, os autores elaboram sua análise acerca do sincretismo afro-
católico que lhe envolve dando destaque à presença de elementos como a melancia
(Anjos; Oro 2008: 32), a existência da procissão fluvial em paralelo e o sincretismo
entre Nossa Senhora dos Navegantes e Iemanjá a partir da diversidade de olhares
envolvidos na procissão. Sob o prisma católico, vemos surgir novamente a maldição da
tolerância em procedimentos de purificação e um respeito vazio às religiosidades de
matriz africana. Fruto de uma vontade de poder, anexação, o sincretismo é percebido
sob o registro da cordialidade, como um favor (Anjos; Oro 2008: 22). Ao mesmo
tempo, evidencia-se a capacidade de diplomacia dos segmentos minoritários da festa, a
habilidade que possuem para contornar os constrangimentos majoritários e possibilitar
os mundos em comum resultantes dessa negociação (Anjos; Oro 2008: 98).
A série de restrições estabelecidas pelos autores e sua descrição minuciosa e em
câmera lenta nos apresenta uma multiplicidade de possibilidades, complexificam suas
análises e impedem a emergência de dicotomias simplistas, sendo um forte exemplo da
potencialidade que a proposição cosmopolítica stengeriana, inspirada pelos princípios
da ecosofia, pode ter à pesquisa antropológica.
Referências bibliográficas
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13
ANJOS, José Carlos Gomes dos. 2008. A filosofia política da religiosidade afro-
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13 (jan./jun. 2008), p. 77-96
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BARBOSA NETO, Edgar Rodrigues e GOLDMAN, Marcio. 2017. A maldição da
tolerância e a arte do respeito. Por uma gramática afroindígena dos afetos.
Apresentação no Núcleo de Antropologia Simétrica, PPGAS/MN/UFRJ, em 17 de
novembro de 2017
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