Gramatiquinha Da Fala Brasileira A

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Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,

Mário de Andrade
disse Mário de Andrade em poema antológico, BICENTENÁRIO BICENTENÁRIO
referindo-se a si mesmo e à identidade BRASIL BRASIL
brasileira: plural, múltipla, em constante devir.
Ao longo de sua vida, o autor de Macunaíma,
Pauliceia desvairada, entre outros tantos títulos
hoje clássicos, empreendeu busca constante da 1822 | 2022 1822 | 2022
“alma” do Brasil. Para tanto, valeu-se de várias No ano em que se celebram o Bicentenário
frentes: poesia, romance, crônica, fotografia, da Independência do Brasil e o Centenário
da Semana de Arte Moderna, a Fundação
história da arte, crítica literária, musicologia.
Ao lado de outros jovens iconoclastas, Mário de Andrade Alexandre de Gusmão tem orgulho em se
organizou A Semana de Arte Moderna de associar à primeira publicação do recém-

A gramatiquinha
1922, que renovou as artes e as letras nacionais, -criado Instituto Guimarães Rosa, a qual presta

A
permitindo reflexões inovadoras sobre o jovem merecida homenagem a Mário de Andrade.
Portaria nº 365 do Ministério das Relações Exteriores, de Nascido em São Paulo, em 9 de outubro
país que naquele momento completava cem
11 de novembro de 2021, dispõe sobre o Grupo de Trabalho do de 1893, sua precoce inclinação para a poesia foi
anos de vida.

da fala brasileira
Bicentenário da Independência, incumbido de, entre outras atividades, complementada por sólida formação musical,
Hoje, em 2022, ano do Bicentenário da
promover a publicação de obras alusivas ao tema. que o tornaria autoridade em teoria e história
Independência do Brasil, o Itamaraty e a
da música, com um olhar especial para as
FUNAG prestam tributo a Mário de Andrade,

A gramatiquinha da fala brasileira


No contexto do planejamento da efeméride, a FUNAG criou composições folclóricas do interior do Brasil.
relançando um de seus mais importantes
a coleção “Bicentenário: Brasil 200 anos – 1822-2022”, abrangendo Andrade estreou em 1917 com Há uma gota de
projetos escriturais: A gramatiquinha da fala
brasileira. Embora pouco conhecida do grande publicações inéditas e versões fac-similares. O objetivo é recuperar, Aline Novais de Almeida (Org.) sangue em cada poema. Em 1922, lançou Pauliceia
Desvairada, considerado o marco fundador da
público (e nunca publicada em vida pelo autor), preservar e tornar acessível a memória diplomática sobre os duzentos poesia modernista brasileira, e tornou-se figura
a obra constitui estudo completo e autêntico da
anos da história do país, principalmente volumes que se encontram Edição comemorativa do Instituto Guimarães Rosa de proa da Geração de 22.
variante da língua portuguesa falada no Brasil,
esgotados ou são de difícil acesso. Com essa iniciativa, busca-se também Autodidata, explorou também os
abrangendo aspectos linguísticos, psicológicos
territórios da crítica de arte, antropologia,
e poéticos. incentivar a comunidade acadêmica a aprofundar estudos e diversificar
filosofia, linguística, jornalismo e fotografia.
Compreendida a princípio como língua as interpretações historiográficas, promovendo o conhecimento da Teve, ademais, atuação proeminente como
brasileira e, mais tarde, língua nacional, história diplomática junto à sociedade civil. diretor do Departamento de Cultura de São
tal variante tornou-se não só instrumento Paulo e como diretor do Instituto de Artes
linguístico para artistas e intelectuais do país, da Universidade do Distrito Federal, no Rio
mas também emblema que revela profundo de Janeiro. Bibliófilo e colecionador de arte
sentido de nossa identidade. Ao analisá-la, erudita e popular, reuniu um vasto e rico
A gramatiquinha ainda hoje se mantém atual, acervo. Em 25 de fevereiro de 1945, morreu
colocando na agenda temas essenciais à em sua residência em São Paulo, deixando
diplomacia brasileira: a defesa do idioma valioso legado de documentação sobre a cultura
português como entidade viva, patrimônio popular e, ao mesmo tempo, produção artística
imaterial compartilhado por todos os que representa verdadeiro ponto de inflexão na
Estados-membros da Comunidade dos Países poesia e na literatura de nosso país.
de Língua Portuguesa (CPLP), a partir do A auspiciosa escolha da Gramatiquinha
reconhecimento de suas particularidades para esta edição comemorativa já revela a
e de suas diferenças. Parafraseando Mário nascente vocação do IGR como impulsionador
de Andrade, a língua portuguesa não é una, do resgate, preservação e divulgação da cultura
não possui dono: é “trezentas, trezentas-e- ISBN 978-85-7631-851-4 brasileira nos planos nacional e internacional.
-cinquenta”. A Fundação Alexandre de Gusmão está pronta
9 788576 318514 >
para caminhar lado a lado com o Instituto
Embaixadora Paula Alves de Souza, Guimarães Rosa nesta jornada.
Diretora do Instituto Guimarães Rosa
Embaixadora Márcia Loureiro,
Presidente da Fundação Alexandre de Gusmão
Fundação Alexandre de Gusmão
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,

Mário de Andrade
disse Mário de Andrade em poema antológico, BICENTENÁRIO BICENTENÁRIO
referindo-se a si mesmo e à identidade BRASIL BRASIL
brasileira: plural, múltipla, em constante devir.
Ao longo de sua vida, o autor de Macunaíma,
Pauliceia desvairada, entre outros tantos títulos
hoje clássicos, empreendeu busca constante da 1822 | 2022 1822 | 2022
“alma” do Brasil. Para tanto, valeu-se de várias No ano em que se celebram o Bicentenário
frentes: poesia, romance, crônica, fotografia, da Independência do Brasil e o Centenário
da Semana de Arte Moderna, a Fundação
história da arte, crítica literária, musicologia.
Ao lado de outros jovens iconoclastas, Mário de Andrade Alexandre de Gusmão tem orgulho em se
organizou A Semana de Arte Moderna de associar à primeira publicação do recém-

A gramatiquinha
1922, que renovou as artes e as letras nacionais, -criado Instituto Guimarães Rosa, a qual presta

A
permitindo reflexões inovadoras sobre o jovem merecida homenagem a Mário de Andrade.
Portaria nº 365 do Ministério das Relações Exteriores, de Nascido em São Paulo, em 9 de outubro
país que naquele momento completava cem
11 de novembro de 2021, dispõe sobre o Grupo de Trabalho do de 1893, sua precoce inclinação para a poesia foi
anos de vida.

da fala brasileira
Bicentenário da Independência, incumbido de, entre outras atividades, complementada por sólida formação musical,
Hoje, em 2022, ano do Bicentenário da
promover a publicação de obras alusivas ao tema. que o tornaria autoridade em teoria e história
Independência do Brasil, o Itamaraty e a
da música, com um olhar especial para as
FUNAG prestam tributo a Mário de Andrade,

A gramatiquinha da fala brasileira


No contexto do planejamento da efeméride, a FUNAG criou composições folclóricas do interior do Brasil.
relançando um de seus mais importantes
a coleção “Bicentenário: Brasil 200 anos – 1822-2022”, abrangendo Andrade estreou em 1917 com Há uma gota de
projetos escriturais: A gramatiquinha da fala
brasileira. Embora pouco conhecida do grande publicações inéditas e versões fac-similares. O objetivo é recuperar, Aline Novais de Almeida (Org.) sangue em cada poema. Em 1922, lançou Pauliceia
Desvairada, considerado o marco fundador da
público (e nunca publicada em vida pelo autor), preservar e tornar acessível a memória diplomática sobre os duzentos poesia modernista brasileira, e tornou-se figura
a obra constitui estudo completo e autêntico da
anos da história do país, principalmente volumes que se encontram Edição comemorativa do Instituto Guimarães Rosa de proa da Geração de 22.
variante da língua portuguesa falada no Brasil,
esgotados ou são de difícil acesso. Com essa iniciativa, busca-se também Autodidata, explorou também os
abrangendo aspectos linguísticos, psicológicos
territórios da crítica de arte, antropologia,
e poéticos. incentivar a comunidade acadêmica a aprofundar estudos e diversificar
filosofia, linguística, jornalismo e fotografia.
Compreendida a princípio como língua as interpretações historiográficas, promovendo o conhecimento da Teve, ademais, atuação proeminente como
brasileira e, mais tarde, língua nacional, história diplomática junto à sociedade civil. diretor do Departamento de Cultura de São
tal variante tornou-se não só instrumento Paulo e como diretor do Instituto de Artes
linguístico para artistas e intelectuais do país, da Universidade do Distrito Federal, no Rio
mas também emblema que revela profundo de Janeiro. Bibliófilo e colecionador de arte
sentido de nossa identidade. Ao analisá-la, erudita e popular, reuniu um vasto e rico
A gramatiquinha ainda hoje se mantém atual, acervo. Em 25 de fevereiro de 1945, morreu
colocando na agenda temas essenciais à em sua residência em São Paulo, deixando
diplomacia brasileira: a defesa do idioma valioso legado de documentação sobre a cultura
português como entidade viva, patrimônio popular e, ao mesmo tempo, produção artística
imaterial compartilhado por todos os que representa verdadeiro ponto de inflexão na
Estados-membros da Comunidade dos Países poesia e na literatura de nosso país.
de Língua Portuguesa (CPLP), a partir do A auspiciosa escolha da Gramatiquinha
reconhecimento de suas particularidades para esta edição comemorativa já revela a
e de suas diferenças. Parafraseando Mário nascente vocação do IGR como impulsionador
de Andrade, a língua portuguesa não é una, do resgate, preservação e divulgação da cultura
não possui dono: é “trezentas, trezentas-e- ISBN 978-85-7631-851-4 brasileira nos planos nacional e internacional.
-cinquenta”. A Fundação Alexandre de Gusmão está pronta
9 788576 318514 >
para caminhar lado a lado com o Instituto
Embaixadora Paula Alves de Souza, Guimarães Rosa nesta jornada.
Diretora do Instituto Guimarães Rosa
Embaixadora Márcia Loureiro,
Presidente da Fundação Alexandre de Gusmão
Fundação Alexandre de Gusmão
BICENTENÁRIO
BRASIL

1822 | 2022

A gramatiquinha
da fala brasileira
Ministério das Relações Exteriores

Ministro de Estado Embaixador Carlos Alberto Franco França

Secretário­‑Geral Embaixador Fernando Simas Magalhães

Diretora do Instituto
Guimarães Rosa Embaixadora Paula Alves de Souza

Fundação Alexandre de Gusmão

Presidente Embaixadora Márcia Loureiro

Diretor do Centro de História


e Documentação Diplomática Embaixador Gelson Fonseca Junior

Diretor do Instituto de Pesquisa


de Relações Internacionais Ministro Almir Lima Nascimento

A Fundação Alexandre de Gusmão – FUNAG, instituída em 1971, é uma


fundação pública vinculada ao Ministério das Relações Exteriores e tem a finalidade
de levar à sociedade informações sobre a realidade internacional e sobre aspectos
da pauta diplomática brasileira. Sua missão é promover a sensibilização da opinião
pública para os temas de relações internacionais e para a política externa brasileira.
A FUNAG, com sede em Brasília, conta em sua estrutura com o Instituto
de Pesquisa de Relações Internacionais – IPRI e com o Centro de História e
Documentação Diplomática – CHDD, este último no Rio de Janeiro.
BICENTENÁRIO
BRASIL

1822 | 2022

Mário de Andrade

A gramatiquinha
da fala brasileira

Aline Novais de Almeida (Org.)

Brasília, 2022
Direitos de publicação reservados à
Fundação Alexandre de Gusmão
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H, Anexo II, Térreo
70170­­‑900 Brasília–DF
Tel.: (61) 2030-9117/9128
Site: gov.br/funag
E­‑mail: [email protected]
Organizadora:
Aline Novais de Almeida
Colaboradores:
Ligia Rivello Baranda Kimori
Ataliba T. de Castilho
Sérgio Rodrigues
Equipe Técnica:
Fernanda Antunes Siqueira
Gabriela Del Rio de Rezende
Guilherme Monteiro
Henrique da Silveira Sardinha Pinto Filho
Kamilla Sousa Coelho
Luiz Antônio Gusmão
Mônica Melo
Revisão:
Júlia Godoy
Diagramação:
Denivon Cordeiro de Carvalho

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

A553g Andrade, Mário de


A gramatiquinha da fala brasileira / Mário de Andrade ; Aline Novais de Almeida
(Org.) — Brasília: FUNAG, 2022.

209 p. : il., color. — (Bicentenário: Brasil 200 anos – 1822-2022)


Edição comemorativa do Instituto Guimarães Rosa

ISBN: 978-85-7631-851-4

1. Literatura brasileira. 2. Língua brasileira. 3. Língua portuguesa - Gramática.


4. Linguística — Historiografia. I. Título II. Almeida, Aline Novais de III. Coleção
IV. Fundação Alexandre de Gusmão

CDU 81´36=134.3

Depósito legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme Lei nº 10.994, de 14/12/2004.


Elaborado por Charlene Cardoso Cruz — 1/2909
Sumário

Prefácio ....................................................................................................................... 7
Mário de Andrade: gramático?
Ataliba T. de Castilho

Apresentação da edição....................................................................................17
Mário de Andrade e o arquivo da fala brasileira
Aline Novais de Almeida

Sobre esta edição...................................................................................................33

A gramatiquinha da fala brasileira ....................................................... 37

Língua Brasileira............................................................................................ 39

Ideias Para Capítulos Particulares.................................................... 63

Ideias Gerais Sobre Língua........................................................................99

Ideias Gerais .................................................................................................... 107

Inquérito Geral Etnográfico ...............................................................123

SELETA DE ARTIGOS DE MÁRIO DE ANDRADE:


DESDOBRAMENTOS D’A GRAMATIQUINHA DA FALA
BRASILEIRA ........................................................................................................... 131

Posfácio..................................................................................................................... 167
Mário e o meio do caminho eterno
Sérgio Rodrigues
Referências .............................................................................................................177

Dossiê de imagens................................................................................................ 185

Sobre a organizadora......................................................................................207

Sobre os colaboradores.................................................................................209
Mário de Andrade: gramático?

O que era, para Mário de Andrade, uma língua, uma gramática, ou


uma “gramatiquinha”, como ele preferiu? Neste prefácio, tento localizar
as respostas dadas por MA a essas perguntas.

1. O que é uma língua? Que língua falam os brasileiros?


O objeto da gramática do Português: Português de Portugal ou Português
do Brasil?
Mário de Andrade não desdenhou desse tópico, a que retorna segui-
damente, ora para zombar do Português de Portugal, ora mostrar por ele
uma admiração discreta.
Indo por aqui teremos logo outra pergunta: por que o Português
Brasileiro é como é? Por que ele se tornou diferente do Português Europeu,
e como isso aconteceu? Vejamos como MA se posicionou a esse respeito.
Na Linguística atual, a agenda respectiva se desdobrou em pelo menos
três direções:
(1) Já existe uma língua brasileira, que resultaria da evolução biológica
do Português Europeu.
(2) O Português Brasileiro é como é dadas as influências que recebeu
das línguas indígenas e africanas, sobretudo destas.
(3) O Português Brasileiro é uma continuação natural do Português
Europeu, refletindo hoje o que foi em Portugal o português arcaico
do século xv. De acordo com esta direção interpretativa, quem
mudou foi o Português Europeu, depois do século xviii, e nós
ficamos na nossa.

7
Ataliba T. de Castilho

Qual foi a posição de MA a respeito dos tópicos acima, mesmo não


sendo ele um linguista? Indico a seguir o que pude apurar.

1.1. Hipótese evolucionista: já existe uma língua brasileira, que resultaria


da evolução biológica do português europeu
MA aborda de modo participativo o tema do Português Brasileiro:
“Eu não falei: escrevamos brasileiro. Eu escrevi. Se alguma coisa me orgulha
é o poder intelectual maravilhosamente feliz com que eu cumpro os
mandamentos da minha fé”.
Admitida, em sua prática de escritor, a existência do Português
Brasileiro, seria de esperar que ele buscasse explicações para isso. Porém
não. Ele não se envolve nas hipóteses interpretativas dessa nova língua,
passando ao largo.
É bem certo que a hipótese evolucionista foi muito debatida a partir
de 1820, dado o prestígio da Biologia Evolutiva, e também por influência
do nacionalismo desencadeado pelo Romantismo: assim como do Latim
surgiu o Português Europeu, assim deste surgirá o Brasileiro, como línguas
distintas. A influência das línguas indígenas e das línguas africanas – uma
das manifestações da hipótese evolucionista – seria o fato deflagrador da
criação de uma nova língua no Brasil.
Autores da época, intensamente sacudida pelo nacionalismo, de que
resultaria a independência do país em relação a Portugal, apoiavam-se
em autores como Hovelacque e Whitney, este grandemente citado, para
sustentar sua posição.
Ora, Pinto mostrou que os primeiros defensores do “brasileiro” leram
mal Whitney, no qual se encontram afirmações como
a linguagem não é um fato natural, uma propriedade biológica,
mas um fato social [...]; [é preciso] reconhecer a sociedade como
árbitro soberano pelo qual se decide a questão de saber se uma
inovação passará à língua. É preciso que alguém comece: se não
o seguem, está abortada1.

1 PINTO, Edith Pimentel. (Org.). O português do Brasil: textos críticos e teóricos, 1: 1920-
-1930: fontes para a teoria e a história. São Paulo: Edusp, 1978, p. LI-LII.

8
Mário de Andrade: gramático?

Entendendo mal esses autores, afirmava-se que o surgimento do


brasileiro era uma questão de evolução natural, como aquela que ocorre
nas espécies. A influência das línguas indígenas e das línguas africanas,
um nicho ecológico inexistente em Portugal, terá um peso decisivo para a
criação de uma nova língua no Brasil.
Esta posição foi abandonada, mesmo após a volta do biologicismo na
Linguística contemporânea, por obra das pesquisas sobre língua e cérebro.

1.2. Hipótese crioulista: o Português Brasileiro deriva de um crioulo?


Eis aqui uma interpretação do Português Brasileiro bastante recorrente.
MA passou ao largo desse debate. O fato é que, de uma direção interpretativa
sobre o Português Brasileiro fundamentada numa percepção biológica da
língua, migramos para uma percepção social da língua: a língua é o que nós
somos. Ora, a nação brasileira é bastante mestiça, e isso deveria explicar
nossas diferenças em relação a Portugal.
Não tendo elaborado essa questão, ele a trocou por:

1.3. O Português Brasileiro deriva do Português Europeu clássico?


MA não sustenta claramente que o Português Brasileiro deriva do
Português Europeu clássico. Ele apenas exalta o modo português de escrever
e deprime o modo brasileiro, por ser imitativo: “O brasileiro pra escrever
larga do chapelão, e da bota ou do simples paletó praciano e enverga fraque
didático”. Ou seja, não é natural, não é espontâneo, escreve como que a
medo. E mais além:
Porém o escritor nacional desde que se vê célebre ou lido se
preocupa de escrever... à portuguesa.

Esta gramática, pois que gramática implica no seu conceito o


conjunto de normas com que torna conscientes a organização
duma ou mais falas, esta gramática parece estar em contradição
com o meu sentimento. É certo que não tive jamais a pretensão
de criar a fala brasileira. Não tem contradição. Só quis mostrar
que o meu trabalho não foi leviano, foi sério.
E mais além:

9
Ataliba T. de Castilho

Na medida do um bocado mais que o possível, estudei com


paciência a fala portuga. E não foi só nas gramáticas de todo
gênero não. Nenhum dos clássicos portugueses grandes deixei
de ler com paciência. Alguns me foram até familiares como o
doce Frei Luís de Sousa que eu gostava muito, Garrett, Camões,
Castelo Branco e Latino. Os outros lia mais por obrigação, com
verdadeira paciência, sobretudo Vieira e Castilho que jamais não
pude apreciar. De Camões sabia de-cor o introito dos Lusíadas,
a passagem de Inês, a dos doze de Inglaterra, a tempestade e o
Adamastor, além de pra mais de cinquenta sonetos. Também
se explica tanta decoração.
E mais além ainda: “Vaidosinhos veem que estão célebres no seu tempo
e querem ficar célebres pra toda vida. A melhor maneira é serem clássicos
não é?”.
O Português Europeu clássico deixa de ser visto como a fonte de
uma língua brasileira, virando objeto de vaidade, ou de marketing, como
diríamos hoje.

2. Gramática: ciência ou arte?


Houve um tempo em que, para demarcar um campo de estudos, os
autores iniciavam seu trabalho com a seguinte pergunta: este campo é uma
ciência ou uma arte?
Aparentemente, este modo de iniciar os livros preocupou Mário de
Andrade, como se pode ver pelas anotações de sua Gramatiquinha aqui
mencionadas.
Tão seguro em suas investidas artísticas e em suas atividades deinstitu-
cionalização da cultura, áreas em que ao longo de sua vida se mostrou um
verdadeiro mestre, MA parece inseguro ao lidar com a gramática, como se
pode ver abaixo.
(1) Ele não reconhece que está fazendo ciência: “Assim fica entendido
que isto não é uma obra científica. E ainda e sempre uma obra de
ficção organizada pelo amor que consagro à Humanidade e nascida
da comoção fortíssima que sempre faz nascer em mim a vida das
palavras”. Ou seja, a Gramatiquinha é Literatura. Por que será, então,
que ele denominou Gramatiquinha seu trabalho? Mas ele relativiza

10
Mário de Andrade: gramático?

essas afirmações logo depois: “Vale mais errar porém fazer do que
não errar e não fazer”.
(2) Na gramática, ou melhor, na Gramatiquinha, “não apresento o meu
trabalho como obra de técnica, porém obra de ficção”. Rejeitando,
assim, a percepção da gramática como uma ciência, MA opta
por entendê-la como uma arte – mas o fato é que, no andar da
carruagem, ele foi repassando os temas que fazem da Gramática
uma ciência. Assim, na leitura de sua Gramatiquinha, lá vamos nós,
de ambiguidade em ambiguidade. Nem poderia ser diferente, como
se verá a seguir.
3. Agenda da Gramatiquinha
Deixando de lado um enquadramento claro da Gramatiquinha entre as
ciências ou entre as artes, costume vigente em seu tempo, MA identifica
a agenda da gramática como (1) a classificação de expressões, mesmo
reconhecendo a precariedade dessas classificações; (2) o reconhecimento
da fluidez na separação entre as categorias gramaticais; (3) o estudo da
frase, (4) o estudo do pronome, (5) o estudo da pontuação, (6) gramática e
estilística, (7) gramática como um conjunto de usos.

3.1. Gramática como classificação de expressões


Assim MA se manifestou a respeito da Gramática como uma taxonomia,
como uma classificação de expressões:
(1) A palavra é uma entidade. O substantivo é uma entidade
qualificativa. O adjetivo é uma entidade limitativa. O verbo é
uma entidade acionadora e vitalizadora. O advérbio é uma en-
tidade modalitativa e modificativa. O pronome é uma entidade
personalitativa. A preposição não é uma entidade, é ligadura de
entidades etc.

(2) A frase é um substantivo. Mesmo se eu falo “Você é burro”


eu criei um substantivo, isto é, uma entidade qualificativa.

11
Ataliba T. de Castilho

Vê-se claramente que por “entidade” ele entende uma supracategoria,


suficientemente abstrata como que para abarcar todas as manifestações
das expressões.
Outras classificações: MA não se afastou do esforço classificatório
próprio das gramáticas. Alguns exemplos:
a) “Ir-se embora = locução verbal”
b) “Assim-assim e mais-ou-menos são adjetivos qualificativos”
c) “Entre as formas compostas de adjetivos demonstrativos (Carlos
Pereira, p. 63) não esquecer ‘Esse um’ e ‘Aquele um’”.
Gramática aqui é uma classificação de expressões, em que não convém
omitir algumas categorias.

3.2. Elenco das categorias gramaticais: fluidez dos limites entre as


categorias gramaticais
Ele percebeu claramente que as categorias gramaticais são fluidas,
flexíveis, pois o contexto sintático altera continuamente tais categorias:
a) Só as partículas adjuntivas de palavras como preposições
e conjunções têm categoria intangível, porém não são palavras
propriamente, são na realidade sufixos locucionais desse
substantivo grande que chamamos frase. Essas partículas só
assumem o conceito puro de palavra quando substantivadas
ou adjetivadas. Por exemplo: você é um indivíduo muito e. “E”
assume uma entidade qualificativa.

b) Os adjetivos, advérbios, substantivos, etc., podem, no


entanto, passar pra qualquer outra categoria transitoriamente
e sem perder o seu caráter psicológico. Vestem uma fantasia,
se mascaram momentaneamente, por uma precisão expressiva,
mas porém não perdem jamais a entidade psicológica que se
esconde sob o lupe.

c) A palavra é uma entidade. O substantivo é uma entidade


qualificativa. O adjetivo é uma entidade limitativa. O verbo
é uma entidade acionadora e vitalizadora. O advérbio é uma
entidade modalitativa e modificativa. O pronome é uma entidade

12
Mário de Andrade: gramático?

personalitativa. A preposição não é uma entidade, é ligadura de


entidades etc.

d) Assim quando chamo todas as palavras de abstratas e


mostro que se tornam transitoriamente concretas não destruo a
velha divisão gramatical em substantivos abstratos e concretos,
apenas faço a psicologia da palavra como entidade universal e
entidade particular.
Esta é uma observação importante, pela qual MA se antecipou à
percepção das palavras como representações das categorias cognitivas.
Neste sentido, sua Gramatiquinha se mostra singularmente moderna! Temos
as manifestações prototípicas de uma categoria, porém temos também as
manifestações marginais dessas mesmas categorias, a que ele se refere como
a psicologia da palavra, o que faz das línguas naturais objetos extremamente
complexos.

3.3. Gramática como estudo da frase


MA recomenda “observar, estudar psicologicamente bem isso (= a frase),
sobretudo em relação ao conceito de substantivo, verbo, qualificativo”.
Por outras palavras, a frase também é uma classe gramatical, talvez mais
complexa que as classes de palavras.

3.4. Gramática como estudo do pronome


Neste tópico, não encontraremos reflexões sobre os pronomes, nem uma
enumeração dos itens integrantes dessa classe. Ele apenas esboça alguma
reação, favorável, a começar a frase com pronome oblíquo, verdadeiro cavalo
de batalha das gramáticas normativas de então. Como sabemos, estudos
posteriores sobre essa sintaxe revelaram que ela é perfeitamente cabível no
Português Brasileiro, variedade em que os pronomes oblíquos são tônicos.
É o que ocorre em “nos faças essa caridade”, verso citado por MA.

3.5. Gramática como estudo da pontuação


Nesta seção, MA se limita a estudar o papel do hífen na formação
das palavras. Ele explica que o hífen “enfraquece o volume da palavra, lhe
diminui a plasticidade”. E nisto ficamos.

13
Ataliba T. de Castilho

3.6. Gramática e Estilística


O desenvolvimento moderno da Análise do Discurso providenciou um
lugar mais apropriado às considerações sobre o estilo. Mas ao tempo de
nosso autor, sempre se esperava que uma gramática contivesse uma seção
de Estilística, limitada ao que viria a chamar-se “Estilística literária”.
Como MA visualizava a Estilística? Aparentemente, como uma nova
Retórica, visto incluir ele aí o estudo das figuras de linguagem, de que ele
cita a Elipse, o Pleonasmo, o Anacoluto, a Imagem ou Tropo.
Entram aqui também os vícios da linguagem, endossando uma percepção
da gramática rejeitada em outros pontos de seu livro, ou seja, a gramática
como fiscalização de textos, como policiamento.
Os “neologismos vulgares” mencionados por ele se encaixam muito
bem na perspectiva do gramático-polícia.
MA retorna pouco além a essa função, quando classifica, repassa os
estilos “nobre”, “vulgar”, e assim por diante.

3.7. Gramática como um conjunto de usos: a questão dos brasileirismos


Brasileirismos são usos nossos:
Uma constatação importante é esta a que cheguei: não tem
“brasileirismos”. Desde que um fulano fale uma palavra e essa
palavra ou esse modismo se generalize, ele faz parte da língua.
Assim os chamados brasileirismos por simples bobagem de
comodismo gramatical, não são brasileirismos nem nada, são
palavras, sintaxes novas incorporadas à fala portuga e portanto
fazendo parte dela legitimamente. Pertencem à língua portuguesa.
Língua como uso literário:
É incontestável que as minhas sistematizações brasileiras de
qualquer espécie caracterizam por demais um estilo literário. E
pouco mais além: Se alguém se mete trabalhando a fala brasileira
em sua estilização literária, é lógico que vai ficar parecendo
um pouco comigo porém isso só prova uma coisa: é que a fala
brasileira é um fato pois que se um se parece com outro é porque
ela já possui certa unidade e certo caráter individualmente
original e dela só.

14
Mário de Andrade: gramático?

Conclusões
Nestas conclusões, vale a pena destacar que a agenda da gramática reflete
um “desentendimento” bem antigo entre os que defendem a homogeneidade
da língua e os que defendem sua heterogeneidade. MA não escapou a esse
binômio. Vejamos a coisa mais de perto.
Os gramáticos gregos contrastavam a onomasía (literalmente, “desig-
nação”), que é a expressão dos pensamentos tomada como um todo, como
um esquema geral, com o trópos (literalmente, “uso convencional”), que é a
expressão dos pensamentos tomada como um conjunto de usos individuais.
Os estoicos enfatizavam a língua como onomasía, entendendo-a como
um conjunto de regularidades, sustentando que a gramática deve ser mais
técnica, mais formal.
Os alexandrinos, mais filológicos, postulavam a língua como um trópos,
isto é, um conjunto de usos a partir dos quais se institui a norma; portanto, a
gramática deve ser mais empírica. Uns e outros lançaram uma polêmica que
ainda não terminou, e que passou à história como a oposição de analogistas
(os primeiros) aos anomalistas (os segundos).
Os analogistas, hoje podemos perceber, valiam-se da ciência clássica,
enquanto os anomalistas apostavam, avant la lettre, na ciência dos domínios
complexos. Basta ler hoje os gerativistas e os funcionalistas para encontrar
a feição moderna dessa polêmica. Em suma, sucedem-se os rótulos, mas
o modo de conceber a ciência parece girar sempre à volta da antinomia
onomasía, anomalismo, formalismo, gerativismo, ciência clássica/trópos, analogismo,
funcionalismo, ciência dos domínios complexos.
A oscilação entre o formal e o funcional, entre o geral e o individual,
entre o código e o uso, assinala toda a pesquisa linguística, em que se
pode detectar certo “movimento pendular”. Ora há uma concentração
no polo formal (vide o entendimento da língua como “estrutura/sistema/
forma” da década de 1950 [Estruturalismo] e de 1960 [Gerativismo]), ora
a concentração ocorre no polo funcional (vide o entendimento da língua
como “uso/comunicação/substância” da década de 1970 [Funcionalismo] e
de 1980 [Pragmática]).
Lembre-se, por fim, que MA não publicou sua Gramatiquinha. Aparen-
temente, com a intuição de publicá-la, MA foi preparando vários ensaios

15
Ataliba T. de Castilho

de temática gramatical, a serem incluídos aquando da edição – mas esta é


apenas uma hipótese. Tais ensaios foram oportunamente anexados a esta
edição por Aline Novais de Almeida.

Ataliba T. de Castilho

16
Mário de Andrade e o arquivo da
fala brasileira

Sem incorrer em exageros, é possível afirmar que A gramatiquinha


da fala brasileira pode ser considerada um dos mais importantes projetos
escriturais de Mário de Andrade (1893-1945). Embora pouco conhecida do
grande público, a obra revela um impacto profundo, a ponto de lhe impor
uma nova forma de pensar e escrever. Prova disso se dá em razão da lavra
do autor e da moderna literatura brasileira serem devedoras, de certo modo,
do legado desse trabalho que permaneceu inacabado, porém rondou as
preocupações de Mário durante os anos de 1922-1945.
Em síntese, A gramatiquinha da fala brasileira é um estudo que tenciona
compreender os aspectos linguísticos, psicológicos e poéticos da língua
portuguesa falada no Brasil. Formado por 348 fólios, o manuscrito contém
diferentes documentos de processo, a saber: planos, notas de trabalho,
esboços de texto e prefácios inseridos nas páginas de uma caderneta, mas
também fora dela; além de cartas, bilhetes, recortes de artigos extraídos
de periódicos, transcrição datiloscrita de matéria jornalística portuguesa,
fichas bibliográficas e até o volante de propaganda de um cabaret paulistano.
Esse conjunto de documentos que perfaz o manuscrito está salvaguardado
no Fundo Mário de Andrade, série Manuscritos, localizado no arquivo do
escritor, no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo
(IEB-USP), sob o código MA-MMA-51.
O manuscrito d’A gramatiquinha recebe, em 1982, um pioneiro estudo
acadêmico: a tese de livre-docência de Edith Pimentel Pinto intitulada
Gramatiquinha – texto e contexto, defendida na área de Filologia e Língua
Portuguesa. À luz da textologia, a pesquisadora detém-se nos originais e
concretiza, a partir do plano da obra, como em um quebra-cabeça, uma

17
Aline Novais de Almeida

montagem que visa eliminar o aspecto lacunar do projeto de Mário; ademais,


inclui um longo ensaio analítico. Em 1990, a tese converte-se na publicação
A gramatiquinha de Mário de Andrade: texto e contexto. Vale lembrar que em
1981 a revista paulistana Polímica, sem apresentar autor e obra, transcreve em
suas páginas a “Introdução” e um trecho do “Capítulo I” d’A gramatiquinha.
Em 2013, com base na crítica genética e nas perspectivas codicológica e
arquivística no trato com o manuscrito, os originais voltam a figurar como
corpus de mais uma investigação acadêmica, dessa vez na área de Literatura
Brasileira: o mestrado de Aline Novais de Almeida, A edição genética d’A
gramatiquinha da fala brasileira de Mário de Andrade, sob orientação de Telê
Ancona Lopez. A dissertação advém do projeto temático Fapesp/IEB e
FFLCH-USP (2006-2011), Estudo do processo de criação de Mário de Andrade
nos manuscritos de seu arquivo, em sua correspondência, em sua marginália e em
suas leituras, coordenado também pela professora Telê.
A edição genética delineia uma proposta bem diferente da ordenação
realizada pela estudiosa Pimentel Pinto. Por se tratar de uma abordagem
geneticista do texto, a finalidade é tentar apreender a ordem dos originais
ainda que submetidos ao inacabamento; para isso, transcreve-se todos os
documentos, sem intervir na fidedignidade do manuscrito. Dessa forma,
elege uma transcrição mais conservadora – a diplomática – justaposta ao
fac-símile dos documentos. O elemento imagético, por exemplo, não é
incorporado à montagem efetuada pela docente. Em suma, o ordenamento
genético conta com: 1) classificação arquivística atualizada e rigorosa para
apreensão da organicidade da obra de acordo com as prerrogativas do
projeto literário do autor; 2) análise de cunho genético que decodifica e
apresenta as três etapas da escritura e os tipos de rasuras; 3) inserção de
notas de pesquisa que elucidam matrizes, explícitas e implícitas, notas
marginais das leituras do escritor e relações com outros manuscritos ou
séries do Fundo Mário de Andrade.
Ora, se a edição genética busca conjecturar um itinerário do trajeto da
criação a partir da análise e da interpretação dos documentos de processo,
notabiliza-se, todavia, que o resultado conquistado, de feição científica,
circunscreve-se a um grupo de pesquisadores iniciados nos pressupostos
da crítica genética e na metodologia empregada em edições similares.
A despeito de todo trabalho intelectual despendido nesse tipo de projeto, o

18
Mário de Andrade e o arquivo da fala brasileira

efeito pode limitar o ingresso amplo de leitores, na medida em que precisam


lidar com um aparato genético que dá suporte à edição, bem como uma
transcrição ortográfica isenta de atualizações.
Assim, no intento de instaurar uma nova proposta editorial, o Itamaraty
– por meio de sua representação diplomática junto à Comunidade dos Países
de Língua Portuguesa (CPLP) –, decide democratizar o acesso à publicação
d’A gramatiquinha da fala brasileira. Sendo, pois, uma obra representativa de
temas centrais do pensamento artístico e cultural do país, o título de Mário
de Andrade não só promove a variante linguística brasileira, como também
acena um gesto precursor, já que indica um ponto de vista pluricêntrico
da língua portuguesa.
Diante dessa parceria com o Itamaraty, a concepção editorial é outra.
As montagens anteriores não são modelos, contudo apontam caminhos
que ajudam na compreensão do manuscrito. Os pressupostos teóricos e
críticos não se sobrepõem ao texto do autor; antes, as inovações linguísticas
e estilísticas do autor de Macunaíma são preservadas. Ao mesmo tempo,
adota-se uma transcrição não conservadora, visto que os parágrafos, as
translineações e a ortografia não precisam espelhar os documentos. Em
síntese, o foco principal dessa nova edição d’A gramatiquinha é oferecer uma
obra estabilizada, cuja leitura ocorra de maneira fluída e atraia o maior
número de interessados em conhecer a variante brasileira pelo viés de um
dos maiores escritores do século XX.
*
Ainda que durante a vida do escritor os originais d’A gramatiquinha
não tenham logrado publicação pelo seu inacabamento e, por conseguinte,
permanecido arquivados – no primeiro momento na casa do escritor
e, posteriormente, a partir de 1968, no IEB-USP –, não são papéis que
simplesmente foram engavetados e esquecidos. Trata-se de uma “obra
em preparo”, um work in progress que o acompanhou até seus anos finais.
Em decorrência das incorporações documentais, sugere-se que houve
uma consulta permanente ao material reunido, uma vez que se configura
uma espécie de inventário de formas linguísticas que está à disposição do
pesquisador. Em uma nota de trabalho, que traz como fonte o jornal carioca

19
Aline Novais de Almeida

Diário de Notícias de 1942, destaca-se o permanente caráter “em obras” do


estudo:
Pronome
Rui Barbosa
Um menino escreveu num livro que o pai lhe dera: “Me foi dado
por meu pai em outubro de 1860” Diário de Notícias, 9-VIII-1942
[fólio 54].
Essa nota ilustra que nos anos 1940 o vínculo do escritor com a sua
Gramatiquinha permanecia vivo. Se não para terminar o projeto, restava
ainda o empenho em continuar a documentar a fala brasileira. Com um
olhar arguto para o tema da língua que já estudava há muitos anos, desde
Pauliceia desvairada (1922), Mário rastreia tal fenômeno linguístico em suas
leituras ordinárias e nas páginas dos livros que formam sua biblioteca pessoal.
Em geral, esse contato com os impressos produz registros pertinentes, como
no caso da resenha “A caricatura de Rui Barbosa pelo Sr. Homero Pires”,
de Luis Viana Filho. Durante a leitura desse texto, a identificação de uma
expressiva colocação pronominal impulsiona o escritor-leitor a anotar;
chama a sua atenção a estrutura sintática desviante “Me foi dado”, escrita
justamente pelo ainda menino Rui Barbosa, consagrado representante da
gramática lusitana.
Cabe pontuar que Rui Barbosa é convocado em outros documentos
d’A gramatiquinha; sua presença reside, por exemplo, na nota de número 11 da
caderneta “Língua Brasileira 12”, quando o autor de Macunaíma aponta um
trocadilho bem espirituoso a respeito da oratória do acadêmico baiano: “Se
um indivíduo que detesta o gênero oratório de Rui Barbosa, por exemplo, diz
pra outro: deixe desses discursos ruibarbostas, unindo propositalmente bosa
e bosta, criou uma expressão cômica muito legítima, forte [...]”. O modernista
não crava somente ironias quanto ao célebre polímato, reconhece o valor
de sua linguagem nas letras, como em seu texto “A língua nacional” (1940):
“Ora Rui Barbosa, mesmo como linguagem, é um valor brasileiro. Se a sua
sintaxe era escravizadamente lusitana, sempre é certo que justo pela sintaxe
é que a expressão nacional menos se afasta das normas gerais da língua”1.

1 O artigo “A língua nacional” encontra-se na íntegra na seleta estabelecida para esta edição.

20
Mário de Andrade e o arquivo da fala brasileira

Voltando às questões pronominais, Mário publica em 1941 “O baile


dos pronomes”, no jornal O Estado de S. Paulo. O texto integra o volume
O empalhador de passarinho, seleta de artigos preparada pelo autor, mas
publicada no ano seguinte de sua morte. Em linhas gerais, o articulista
realiza uma defesa do uso do pronome átono no início da sentença, isto é,
o proclítico. Para tanto, elenca um desfile de notas de trabalho colhido, a
princípio, para sua Gramatiquinha, o qual endossa a presença da próclise em
textos populares e eruditos, registros brasileiros e até lusitanos. As provas
colhidas pontuam que o valor psicológico do ritmo interfere na colocação
pronominal. Convém ressaltar que esse conjunto de documentos que
migra d’A gramatiquinha para o artigo recebe materialmente a “marca” do
reaproveitamento, já que sobre o texto dessas notas o autor acrescenta, a
lápis azul, o termo “usado”. A vontade de escrever “O baile dos pronomes”
surge de um incentivo indireto do amigo Bandeira, conforme salienta no
próprio artigo:
Mas um dos que mais me atenazaram foi Manuel Bandeira.
Concordando em princípio comigo, me conhecendo suficiente-
mente pra não me atribuir mais que a modéstia de contribuição
e experiências pessoais, me deixava tonto com duvidinhas e
restriçõezinhas que pingavam a cada carta semanal que então
recebia dele, bons tempos... Uma dessas dúvidas foi justamente
a de que hoje vou produzir neste artigo as provas que ajuntei.
Ele achava que eu não tinha direito de generalizar pra toda a
série dos pronomes, o caso do “Me parece”, que só frequentava
a primeira pessoa do singular. Mas me saí brilhantemente e o
grande poeta pernambucano teve a franqueza de reconhecer que
eu estava bem escudado, embora discutisse algumas das provas
apresentadas por mim2.
Talvez o que faltasse para Mário divulgar publicamente suas ideias
acerca da fala brasileira fosse um estofo acadêmico, apesar de seus escritos,
ficcionais ou não, já plasmarem suas concepções linguísticas arrojadas
e, consequentemente, produzirem certa resistência dos seus leitores,
principalmente daqueles mais próximos. Nesse sentido, é imprescindível

2 O artigo “O baile dos pronomes” encontra-se na íntegra na seleta estabelecida para esta
edição.

21
Aline Novais de Almeida

mencionar que as mesmas notas que lhe deram subsídio para a escrita de
“O baile dos pronomes” são reapresentadas em um debate epistolar que tem
como interlocutor nada mais, nada menos que Sousa da Silveira. Na longa
missiva de 15 de fevereiro de 1935, o modernista responde às provocações
do filólogo, ora concordando com as considerações do especialista, ora
discordando, como no caso do proclítico. Afinal, Mário se encontra munido
de documentação para se contrapor:
No caso de iniciar períodos pelas variações pronominais, nada
lhe poderei conceder, apesar do meu desejo imenso de lhe ser
simpático. O sr. objeta que as pessoas duma determinada instrução
jamais dirão “Se encostara de-novo à janela”, as pessoas que não
dizem também “quem haverá de dizer”. Confesso que a não ser
num ou noutro raríssimo, que faz questão de purismo escrito,
literário, até no falar, em todas as camadas tenho encontrado
as variações pronominais iniciando a frase. Não só no Brasil,
ah!... Já não falo na primeira pessoa, “me parece”, “me senti”
absolutamente gerais. Na repetição de frases, em diálogo de
discussão, se escuta em camadas cultas embora não puristas,
coisas como […]3.
Portanto, a anotação extraída da leitura da resenha jornalística, o
artigo sobre próclise e a carta a Sousa da Silveira sublinham a relevância que
A gramatiquinha da fala brasileira ocupa nos últimos anos do escritor, que
desaparece em 25 de fevereiro de 1945. Esses escritos revelam, cada um a
seu modo, que o projeto tem um aspecto dinâmico por conta de sua mate-
rialidade, não obstante pareça estático. Percebe-se que o escritor modifica
a sua rota durante o trajeto da criação para redirecionar a documentação
para outros fins ou simplesmente porque deseja acrescentar documentos
mais atuais à coleção que ordena.
Vale pontuar que os documentos que compõem o dossiê também
possuem o caráter heteróclito. No manuscrito, não se efetivam somente
campanhas redacionais ou versões textuais que buscam estruturar o suposto
livro. Na contramão, ressalta-se a articulação de uma rede discursiva bastante

3 SENNA, Homero (Org.). Cartas de Mário de Andrade a Sousa da Silveira. Revista do Livro.
Ministério da Educação e Cultura, a. VII, n. 26, set. 1964, p. 122, grifo do autor (Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional).

22
Mário de Andrade e o arquivo da fala brasileira

difusa em torno da fala brasileira, conquistada em virtude de uma gama


documental, mas também de uma postura interdisciplinar que Mário traz a
lume. Em vista disso, existem cogitações que tornam a obra simultaneamente
filosófica, política, histórica, antropológica e artística. Em um dos esboços
de prefácio, situado na caderneta “Língua Brasileira 12”, ou “livro de notas”
como o autor se refere, elucida-se a vocação dele à poligrafia:
Fui obrigado a me meter num despropósito de assuntos e por isso
a ficar na epiderme de todos eles. Sobre poesia, poética, estética,
arquitetura, música, prosa, psicologia, pintura, e até linguagem
escrevi. Numa época como a nossa em que o conhecimento seguro
de cada uma dessas criações da vitalidade humana pede uma vida
inteira, se deverá compreender que era impossível pra mim criar
obra duradoura. Não fiz mais que vulgarizar. Não fiz mais que
convidar os outros ao estudo moderno dessas criações humanas.
A partir de um sentimento de mea-culpa, Mário tenta no prefácio
antecipar as possíveis críticas que receberia acerca do projeto ainda em curso,
já que investido de um espírito polígrafo aventurou-se por diversas áreas do
conhecimento e, conforme afirma, há chances de cair na superficialidade
das matérias sobre as quais escreve. Para além da exposição da insegurança
do autor, o excerto sinaliza que a existência dos polígrafos no Brasil está
associada à rarefação das instituições artísticas e culturais. No início do
século XX, a especialização dos saberes apresenta grau ínfimo, devido às
raras políticas públicas educacionais, artísticas e culturais. Tal panorama
compelia os intelectuais a se lançarem em diferentes áreas do conhecimento
para suprir as lacunas existentes.
Desse modo, evidencia-se o quanto a produção do modernista implica
um formato mais aberto e não voltado à especialização. Somado a isso, cabe
assinalar que há documentos no dossiê d’A gramatiquinha que manifestam
um tipo de recolha menos científica e cuidadosa, o que dificulta inclusive a
localização das matrizes ou a proveniência das oitivas; por outro lado, há uma
parcela documental mais sistematizada em relação aos exemplares da variante
brasileira. Isso se dá pela presença de dados e fontes mais especificados nas
anotações, uma vez que Mário dispõe de uma imensa biblioteca particular
a sua disposição e de colaboradores que enviam sugestões bibliográficas

23
Aline Novais de Almeida

ou contribuições várias, como é o caso de Pio Lourenço Corrêa, Manuel


Bandeira e Sousa Silveira, para citar apenas alguns nomes.
A respeito de Sousa da Silveira, consta entre os documentos d’A gramati-
quinha, uma bibliografia por ele elaborada com nomes célebres da linguística,
a saber: Vendryes, Dauzat, Bourciez, Leite de Vasconcelos, Brunot, entre
outros. A lista dos livros chegou às mãos do modernista graças a Bandeira
que intermediou o pedido, pois o filólogo era também professor no Colégio
Pedro II, no Rio de Janeiro. Com um bilhete inserido ao final da listagem,
provavelmente de setembro de 1925, o amigo pernambucano afirma:
Mario ocupadíssimo
Aqui está a lista feita pelo Sousa da Silveira. Estudando aqueles
cinco batutas, que encabeçam a lista, você fica o bicho!
Ciao
M [fólio228]
Muitas notas preliminares d’A gramatiquinha – geralmente folhinhas
de papel de qualidade inferior destacadas de bloco de bolso – trazem as
mesmas referências listadas na Bibliografia de leituras iniciada pra Pancada do
ganzá. Para cada livro ou artigo indicado nessa imensa seleção bibliográfica,
o autor atribui um número em algarismo arábico. A Bibliografia de leituras,
como o próprio título diz, é um aporte teórico para um estudo que escritor
preparava relativo ao folclore brasileiro; a maioria dos títulos está disponível
em sua biblioteca e muitos receberam notas marginais. Embora o estudo
tenha permanecido inconcluso, a seleção e a organização da bibliografia se
ampliaram de modo a auxiliar o pesquisador no preparo de outros projetos.
O procedimento consistia em anotar, geralmente nas notas prévias, apenas
o número inscrito na Bibliografia de leituras, acompanhado da(s) página(s)
ou do volume, quando o livro apresenta mais de um.
À vista disso, compreende-se que para alcançar as fontes bibliográficas
mobilizadas, o leitor precisa dominar o modus operandi empregado por Mário
para se documentar, senão muitas referências podem passar desapercebidas
por estarem codificadas pela numeração da Bibliografia de leituras. Afora essa
metodologia que se desvela no manuscrito, há o Inquérito Geral Etnográfico,
especificamente o esboço de um “Formulário das pesquisas folclóricas
– Língua Nacional”, ou seja, um questionário estruturado que objetiva

24
Mário de Andrade e o arquivo da fala brasileira

investigar, de maneira pormenorizada, as ocorrências da língua nacional


em três eixos: o vocabulário, a fonética e a sintaxe.
Ainda que tenha natureza de esboço – um autógrafo do autor a grafite,
com diversos tipos de rasuras –, o formulário denota uma tentativa de
padronização da coleta documental. Tal fato sugere que Mário absorveu
novos conhecimentos técnicos, provavelmente do período em que manteve
intensa relação com Dina Dreyfus Lévi-Strauss e Claude Lévi-Strauss e, em
conjunto, criaram a Sociedade de Etnografia e Folclore (1937-1941). Os jovens
professores integravam a comitiva da “missão francesa”, cujo propósito era
ministrar cursos na recém-fundada Universidade de São Paulo (1934). No
mesmo contexto de chegada dos intelectuais franceses à São Paulo em 1935,
o modernista assume a direção do Departamento de Cultura do Município
(1935-1938), o que facilita, em termos institucionais, a colaboração do casal
com o escritor. A convite do Departamento de Cultura, Dina Dreyfus é
contratada como professora do Curso de Etnografia, circunstância que
desempenha um papel fundamental para orientação teórica e prática de
Mário nas suas pesquisas ou naquelas financiadas e preparadas pelo órgão
público que dirigia4.
Em razão da análise documentária, verifica-se que o autor de Macunaíma
estava, a princípio, investido de uma função etnográfica mais intuitiva e, na
metade dos anos 1930, já sinalizava uma certa profissionalização. Isso não
significa que as investigações por ele encabeçadas antes do contato mais
científico com as práticas de pesquisa, sobretudo a respeito da língua e da
linguagem, tivessem menor valor. Ao contrário disso, o trabalho de Mário é
pioneiro no campo da linguística, na medida em que o conjunto documental
reunido esboça uma espécie de teoria da linguagem, que certamente
antecedeu a hipótese saussuriana acerca da dicotomia fala e língua. Esse
fato se justifica pela ausência nos manuscritos da sua Gramatiquinha e na
sua biblioteca de qualquer indício do Cours de linguistique générale de 1916.
Ademais, destaca-se seu caráter inaugural na área da sociolinguística, uma

4 A pesquisadora Luísa Valentini focaliza, em sua dissertação de mestrado, a relação de Mário


de Andrade com os dois intelectuais franceses e as conquistas, no campo da antropologia,
que essa interlocução propiciou. Cf.:VALENTINI, Luísa. Um laboratório de antropologia: o
encontro entre Mário de Andrade, Dina Dreyfus e Claude Lévi-Strauss (1935-1938) – FFLCH-USP.

25
Aline Novais de Almeida

vez que o interesse dos estudiosos no assunto, até então, estava limitado a
uma perspectiva mais regionalista e dialetológica da língua5.
Em 1937, durante sua gestão no Departamento de Cultura, Mário idealiza
e organiza o Congresso da Língua Nacional Cantada. O evento tem como
uma de suas principais preocupações escolher a língua-padrão para as artes
do dizer e do canto erudito nacionais, proposta que guarda obviamente
liames com sua Gramatiquinha. Em ambas as situações, no congresso e no
estudo em processo, busca-se consolidar a variedade linguística brasileira,
ainda que para diferentes fins. Em suma, o escritor decide ultrapassar as
barreiras dialetais para atingir uma possível “língua nacional”, conforme
aponta na parte final do Inquérito Geral Etnográfico:
As observações e pesquisas sobre a língua nacional não devem
ser feitas exclusivamente entre pessoas das classes proletárias,
entre analfabetos e pessoas rurais. Deve estender-se a todas as
classes, até mesmo aos cultos, mas sempre na sua linguagem
desleixadamente espontânea e natural. As observações só não
devem se estender aos indivíduos que timbram em falar certo.
Ou melhor: tem muita importância em verificar e apontar as
vezes e casos em que mesmo estas pessoas “culteranistas”, por
desatenção momentânea pecam contra o português de Portugal
e das gramáticas.
Assim como há o cuidado com as referências bibliográficas, o inquérito
previa uma coleta de campo que igualmente contemplasse uma tecnicidade,
já que os informantes não cruzariam ao léu o caminho do pesquisador,
concretiza-se, pois, um perfil a ser interrogado. Mário já havia compreendido
quais grupos sociais forneceriam mais dados para a investigação e não
necessariamente são indivíduos das classes trabalhadoras (proletários e
rurais) ou menos escolarizadas, conforme já havia asseverado na carta a
Sousa da Silveira ao tratar da tendência do uso da próclise. De acordo com
seu entendimento, os informantes que “timbram em falar certo” seriam
menos produtivos para o fenômeno da língua nacional, compreendida
também, nos manuscritos d’A gramatiquinha, como língua e fala brasileira.

5 No que concerne ao diálogo de Mário com a sociolinguística, ver: RODRIGUES, Angela


Cecília de Souza. Mário de Andrade: um precursor dos estudos sociolinguísticos no Brasil.
Revista Itinerários. Araraquara, n. 7, 1994, p. 137-153.

26
Mário de Andrade e o arquivo da fala brasileira

De todo modo, essa concepção de língua nacional torna-se não só um


importante instrumento linguístico para artistas e intelectuais do país,
mas igualmente um emblema que revela o sentido de ser brasileiro para
Mário e seus companheiros modernistas. Na nota de número 7A de sua
caderneta, o escritor esclarece o que significa “ser brasileiro” ao se afastar
do entendimento puramente nacionalista:
Acho engraçado essa mania de certa gente que pra ser duma
nação carece do dinamismo de qualquer ideia antagônica pra ser
nacional. Bobagem. Não se trata de nacionalismo reivindicador,
minha gente. Isto é ridículo. Se trata de ser brasileiro e nada
mais. E pra gente ser brasileiro não carece agora de estar se
revoltando contra Portugal e se afastando dele. A gente deve
ser brasileiro não pra se diferençar de Portugal, porém porque
somos brasileiros. Brasileiros sem mais nada. Brasileiros. Sentir,
falar, pensar, agir, se exprimir naturalmente. Como brasileiro.
Nessa direção, a partir de variadas fontes, o escritor recolhe exemplares
da língua nacional nos estudos de filólogos e gramáticos, nos cronistas
viajantes, nas cartas de amigos ou de desconhecidos, nas canções populares,
nas obras de poetas, romancistas e cordelistas, nos trabalhos de campo, ou
seja, nas oitivas. O conjunto documental revela o desejo de dar materialidade
à fala brasileira, o que leva a considerar que, além do trabalho ter um viés
etnográfico, o comportamento do pesquisador também se assemelha ao
de um etnógrafo. Como participante de uma missão, Mário lançou-se em
uma viagem etnográfica que objetiva algo maior, algo que dá sentido a sua
própria existência. No gesto de se documentar, mira-se em uma utilidade
prática e transitória. A busca do escritor consistia em encontrar formas
lexicais, sintáticas e semânticas que deflagrassem a realidade vocal brasileira
para que em posse delas estilizasse a língua literária. Em sua famosa
conferência “O movimento modernista”, realizada em 1942, Mário utiliza
o termo deformar para se referir ao processo de estilização que operou em
suas práticas de escrita:
Deformei, ninguém não imagina quanto, a minha obra – o que não
quer dizer que se não fizesse isso ela seria melhor... Abandonei,
traição consciente, a ficção, em favor de um homem-de-estudo
que fundamentalmente não sou. Mas é que eu decidira impregnar
tudo quanto fazia de um valor utilitário, um valor prático de

27
Aline Novais de Almeida

vida, que fosse alguma coisa mais terrestre que ficção, prazer
estético, a beleza divina6.
A deformação-estilização corresponde ao modo de vida escolhido
pelo modernista para se relacionar com a arte e o mundo. Para Mário é
imprescindível que as suas ações tenham valor utilitário e prático, afinal
de contas é como se estivesse em uma missão. Assim sendo, ele assume
conscientemente o risco de sacrificar a sua escritura, bem como abandonar
a ficção em favor de um projeto de “libertação” linguística que favoreça
o desenvolvimento de uma verdadeira língua literária brasileira. Em um
esboço de texto, alocado no envelope que recebe código alfanumérico
e identificação, “12-I – Ideias gerais”, o autor de Macunaíma detalha seu
entendimento acerca do que é estilizar:
Minha tentativa é útil. E é humana porque eu generalizo numa
só, universal, sem classes, unitária e única, e unânime a alma do
meu povo. Esses regionalistas ou “caipiristas” orgulhosos que
escrevendo contos-da-roça botavam uma escrita na boca dos
caboclos e outra limpinha e endomingada nos períodos que
propriamente lhes pertenciam são uns vaidosinhos de si. Vaidosos
embora não ponham reparo na própria vaidade. Vaidosos pela
separação que punham e salientavam entre os caboclos e eles.
E tolos não compreendendo a comoção forte humana das
expressões chamadas de incultas. E frouxos acima de tudo porque
incapazes de botar mãos na trabalheira ingrata, dura e de inteiro
sacrifício pessoal de organizar, codificar, qualificar, escolher,
fecundar e cultivar essas plantinhas do mato pra que fiquem
mais cheirando, mais brilhando e mais engrandecidas pela uni-
versalização. Falei de inteiro sacrifício pessoal... (grifo do autor)
Nesse excerto, Mário se opõe aos “regionalistas” e “caipiristas” que
também manejam a estilização literária. Na sua visão, a realização linguística
desses literatos reflete puramente vaidade, já que eles separam o que é
considerado certo e errado, culto e inculto, língua de caboclo e língua
limpinha e endomingada que sai da boca dos próprios. O modernista é
bastante enfático e rejeita essa solução estilística detectada nos “contos-

6 ANDRADE, Mário de. O movimento modernista. In:______. Aspectos da literatura brasileira.


5 ed. São Paulo: Martins, 1974, p. 254.

28
Mário de Andrade e o arquivo da fala brasileira

-da-roça”, na medida em que ensaia o “universal” por meio do seu “sacrifício


pessoal”. Segundo suas palavras, a sua “trabalheira ingrata” consiste em:
“organizar, codificar, qualificar, escolher, fecundar e cultivar essas plantinhas
do mato”.
Vale mencionar que no envelope “12-I” – que armazena o esboço de
texto supracitado – o autor acrescenta ao lado do nome Gramatiquinha
outra possibilidade de titulação de seu projeto escritural: “Gramatiquinha
ou Tratado do estilo”. Esse título alternativo também se repete no envelope
“12-G – Ideias para capítulos particulares”. O acréscimo se mantém unica-
mente nesses dois envelopes7, não obstante a abordagem da estilização faça
parte da discussão do autor no manuscrito.
Por fim, é preciso salientar a perspectiva poética em que esse estudo
inacabado repousa. Como uma obra do espírito, isto é, intelectual, engenhosa
e racional, A gramatiquinha da fala brasileira é uma proposta concebida para
o próprio uso de Mário de Andrade. Embora seja projetada como uma
gramática, ideia que não avança muito como demonstram os documentos
que sistematizam os supostos capítulos, o caminho escolhido não é o da
prescrição e das normas que a titulação parece sugerir. O título é uma
armadilha, trata-se de um excesso que se opera pela diminuição, pela redução,
quer dizer, um menos que é mais. O emprego do diminutivo acaba por
subverter a própria ideia de gramática, pois o uso do hipocorístico demarca
um sensível, um deslocamento para o poético. Nessa dimensão da poesia,
é possível reconhecer uma relação íntima e afetiva com a linguagem. Em
um dos esboços de “Prefácio”, localizado na caderneta “Língua Brasileira
12”, assevera-se:
Assim fica entendido que isto não é uma obra científica. E ainda
e sempre uma obra de ficção organizada pelo amor que consagro
à Humanidade e nascida da comoção fortíssima que sempre faz
nascer em mim a vida das palavras.

7 Mário distribuiu quase todos os documentos de sua coleta em 9 envelopes, os quais estão
identificados com uma disposição alfanumérica, a saber: 12-A, 12-B, 12-C, 12-D, 12-E,
12-F, 12-G, 12-H, 12-I. Contudo, o envelope 12-D está ausente no dossiê. Segue também
essa lógica da classificação dos envelopes a caderneta “Língua Brasileira 12” que acolhe os
planos, prefácios e notas de pesquisa.

29
Aline Novais de Almeida

O escritor explicita que a sua Gramatiquinha está no campo da ficção.


Desse modo, ele especifica um contorno literário para o seu estudo da fala
brasileira, afastando-se do óbvio prisma científico que acomoda as gramáticas.
Além de validar o aspecto ficcional do seu projeto, enfatiza o vínculo amoroso
que possui com a pesquisa linguística, fato que o impulsiona a levá-la adiante.
O modernista encara como verdadeiro serviço humanitário o seu interesse
nessa matéria, a ponto de as palavras o comoverem, são entidades vivas. Em
outro documento do manuscrito, no esboço da “Introdução”, o autor de
Macunaíma mais uma vez reconfigura a sua empreitada escritural. Volta a
reafirmar a condição ficcional, porém com uma novidade: associa seu livro
em preparo ao gênero idílio. Isso permite aproximar A gramatiquinha ao seu
romance idílio Amar, verbo intransitivo, publicado em 1927, mas elaborado
desde 1923:
Livro de ficção (meus idílios com a fala) — Minhas intenções
tentando estilização da fala brasileira desde a pseudoculta
(explicar diferença que faço entre cultura e civilização) até a
inconsciente popular. — Estilização não paulista.
Amar, verbo intransitivo é um romance experimental que está assentado
sob a óptica do abrasileiramento da língua literária. Em sua composição
linguística, busca-se alcançar uma concepção generalizante, universal, isto
é, a “estilização não paulista”. Nesse sentido, a conexão entre as duas obras
não é indevida, visto que em ambas se defende a estilização literária e ainda
repousa o elemento amoroso. No caso da narrativa, o idílio é moderno e
crivado de ironias, já que se desenha um drama psicológico freudiano que
traz à cena a protagonista Fräulein, professora de língua alemã e de amor.
A imigrante de origem germânica é contratada pela família Sousa Costa
para iniciar sexualmente o primogênito Carlos. Já n’A gramatiquinha, o idílio
amoroso também é situado, porém de outra maneira. O contato de Mário
com a fala brasileira é permeado por uma inquietude investigadora que, no
entanto, o conduz a um estado de contemplação idílica, por se tornar um
lugar prazeroso, de satisfação artística e intelectual. Puro lirismo gramatical,
propício para eclosão da poesia8.

8 Nos documentos do manuscrito d’A gramatiquinha, identificam-se pelo menos quatro


poemas em meio às notas de pesquisa e aos esboços: “Olha o bambu do bambu bambu”,
“Fiori de lá Pá”, “A todo instante” e “Louvação”.

30
Mário de Andrade e o arquivo da fala brasileira

Outro artista que também encontra um idílio com a fala brasileira é


Tom Zé. Prova disso, é que o músico compôs a canção “Língua brasileira”
para seu álbum Imprensa cantada (2003). Faixa 10 do disco cujo título
remonta, em certa medida, às tensões que se inscrevem n’A gramatiquinha,
a canção reacende a discussão em torno do português brasileiro a partir de
uma letra que costura satiricamente importantes momentos históricos. Em
2022, ano do centenário da Semana de Arte Moderna e do Bicentenário da
Independência do Brasil, o coletivo Ultralíricos inspirado exatamente na
canção “Língua brasileira”, estreia o musical de título homônimo no Sesc
Consolação em São Paulo. O espetáculo é resultado da parceria criativa
de Tom Zé – compondo novas canções – com o diretor Felipe Hirsch e
o coletivo Ultralíricos, além da consultoria geral do professor e tradutor
Caetano Galindo. Esses dois trabalhos artísticos recentes evidenciam o
quanto a obra de Mário de Andrade permanece viva e movente.
Língua brasileira

Quando me sorris,
Visigoda e celta,
Dama culta e bela,
Língua de Aviz…

Fado de punhais
Inês e desventuras,
Lá onde costuras,
Multidão de ais.

Mel e amargura,
Fatias de medo,
Vinho muito azedo,
Tudo com fartura.

Cravos da paixão,
Com dores me serves,
Com riso me pedes
Vida e coração,
Vida e coração.

31
Aline Novais de Almeida

Babel das línguas em pleno cio,


Seduz a África, cede ao gentio,
Substantivos, verbos, alfaias de ouro,
Os seus olhares conquistam do mouro.

Mares-algarismos,
Onde um seu piloto
Rouba do ignoto
Almas e abismos.

Verbo das correntes


Com seu candeeiro
Todo marinheiro
Caça continentes.

E o gajeiro real,
Ao cantar matinas,
Acha três meninas
Sob um laranjal.

Última das filhas,


Ventre onde os mapas
Bordam suas cartas
Linhas Tordesilhas,
Linhas Tordesilhas.

Em nossas terras continentais


A cartomante abre o baralho,
Abismada vê, entre o sim e o não
Nosso destino ou um samba-canção9.

Aline Novais de Almeida

9 LÍNGUA BRASILEIRA. [Compositor e intérprete]. Tom Zé. In: Imprensa cantada. Tom
Zé. São Paulo: Trama, 2003, 1 CD, faixa 10.

32
Sobre esta edição

Para o estabelecimento do texto, esta edição tomou como texto-


-base o manuscrito d’A gramatiquinha da fala brasileira, localizado na série
Manuscritos Mário de Andrade, no arquivo do escritor, no Instituto de
Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo. Além disso, cotejou os
originais com a dissertação de mestrado Edição genética d’A gramatiquinha
fala brasileira de Mário de Andrade, de Aline Novais de Almeida, defendida
em 2013 na FFLCH-USP, sob orientação de Telê Ancona Lopez. Nessa
pesquisa acadêmica, consta a transcrição diplomática integral dos 348 fólios
que compõem o manuscrito, acompanhados dos fac-símiles no intento
de apresentar as etapas do trajeto da criação e a classificação das rasuras.
Recorreu, para confrontação quando necessário, à publicação de Edith
Pimentel Pinto, A gramatiquinha de Mário de Andrade: texto e contexto (1990),
trabalho pioneiro que traz a lume um ensaio analítico, bem como organiza
os originais em uma montagem a partir do plano da obra.
Do extenso conjunto documental, a proposta editorial escolheu fólios
com discussão mais assentada e um tanto desenvolvida, desconsiderando
sobretudo as notas de trabalho que perfazem uma coleção de exemplos
da variante brasileira. Essa materialidade constitui-se de fichas de leitura,
recortes de artigos sobre o tema extraídos de periódicos, cartas como registro
linguístico, indicações bibliográficas codificadas, entre outras. Anotações
dessa natureza guardam um aspecto ainda mais fragmentário e preliminar
que se afasta do interesse desta edição. Sob esses critérios, selecionou os
textos alocados pela ordenação numérica (12) e alfa-numérica (12-G, 12-H,
12-I), organização prévia estabelecida pelo escritor, somado ao esboço de
inquérito que está fora dessa disposição:
- caderneta Língua Brasileira 12;
- envelope 12-G – Ideias para capítulos particulares;

33
A gramatiquinha da fala brasileira

- envelope 12-H – Ideias gerais sobre língua;


- envelope 12-I – Ideias gerais;
- Inquérito Geral Etnográfico.
Por julgar importante a fluidez textual e o alcance de um público-
-leitor amplo, a edição optou por atualizar a ortografia, segundo as normas
vigentes no país. Paralelamente, preservou o cuidado do autor em estililizar
palavras e expressões da língua falada no Brasil, assim como acolheu as
suas idiossincrasias linguísticas: pra, pro, de deveras, desque, inda, sube,
doiramento, chacra, de-cor, boca-da-noite, grupos-escolares, ponto-de-vista,
bom-dia, até-logo, entre outras.
As grafias de “si”, “sinão”, “siquer”, “quasi”, “milhor”, “milhormente” – que
mimetizam a fonética do português brasileiro – não foram acatadas, pois
apesar da constância nos documentos do manuscrito possuem flutuação
em outros espaços de escrita, como na imprensa. No mais, essas formas
interferem na clareza do texto e, consequentemente, prejudicam a leitura.
Preservou a pontuação do autor marcadamente afeita à expressão de
seu estilo que suprime, sempre que possível, as vírgulas. Por outro lado, há
momentos em que o uso dos sinais de pontuação mostrou-se pertinente e,
por tal razão, foi empregado. É preciso ressaltar que desvios gramaticais
evidentes foram corrigidos no texto, a saber: acordos nominais e verbais,
excesso de elemento sintático, trocas fonológicas comuns, lapsos entre a
forma verbal e substantiva (“expressão” por “expressam”).
No caso das maiúsculas, buscou sistematizá-las apenas em início dos
parágrafos ou mantê-las nas situações em que o autor decidiu empregá-las
para enfatizar ideias. Dentre as decisões editoriais, as abreviações foram
desenvolvidas, como em “ex”, “S. Paulo”, “G. Dias”; igualmente as abreviações
hoje incorretas foram ajustadas, é o caso da palavra página que passa a
figurar como “p.”.
Sobre os elementos gráficos, manteve as sublinhas traçadas pelo autor em
palavras e expressões. O itálico, por sua vez, destinou-se aos títulos de obras
e aos estrangeirismos. Nas raras situações em que a leitura dos vocábulos é
duvidosa ou ilegível, estabeleceu, respectivamente: a hipótese entre colchetes
acompanhada de ponto de interrogação, e a solução [ilegível]. Quanto às
notas rodapé, distinguiu três tipos na edição: “Nota MA” (Nota de Mário de

34
Sobre esta edição

Andrade) que traz indicações do próprio autor no manuscrito; a “Tradução


livre” de citações em francês presentes nos documentos e para elucidações
consideradas relevantes, a edição foi acrescida de notas de pesquisa.
No propósito de expandir as reflexões de Mário de Andrade sobre
a fala/língua brasileira, a edição compôs uma seleta de artigos do autor
publicados em periódicos e, posteriormente, coligidos em livros; além do
texto “A língua-padrão” e o discurso do modernista na abertura do Primeiro
Congresso da Língua Nacional Cantada (1937). Convém ressaltar que
esses textos originalmente não pertencem a sua Gramatiquinha, nem fazem
parte de qualquer plano dessa obra inacabada. Ou seja, figuram como um
desdobramento do tema, um exercício crítico que traz a público parcelas
de sua longa pesquisa linguística.
Assim sendo, a edição apurou os textos-base dessa seleta na versão
disponibilizada em volumes organizados tanto em vida como postumamente.
Para isso, utilizou duas publicações d’O empalhador de passarinho, uma impressa
(2002) e outra digital (2012), somado à dissertação de mestrado de Marina
Dasmasceno de Sá O empalhador de passarinho, de Mário de Andrade: edição
de texto fiel e anotado (2013). Incluiu as coletâneas Vida literária (1993) e Táxi
e crônicas no Diário Nacional (1976). Por fim, valeu-se dos Anais do Primeiro
Congresso da Língua Nacional Cantada (1938).
*
Agradecimentos
Andréa Jamilly Rodrigues Leitão
Bruno Miranda Zétola
Carlos Augusto de Andrade Camargo
Eliane Robert Moraes
Elisabete Marin Ribas
João Marcelo Costa Melo
Krishna Mendes Monteiro
Lilian Cristina do Nascimento Pinho
Luciano de Jesus Gonçalves
Marcos Antonio de Moraes

35
A gramatiquinha da fala brasileira

Márcia Dias de Oliveira Leme


Marina Damasceno de Sá
Miguel Paiva Lacerda
Paula Alves de Souza
Simone Rodrigues Vianna Silva
Telê Ancona Lopez

36
A gramatiquinha da fala brasileira
Língua Brasileira
Índice

Introdução Cap. I

Fonologia

Fonética, Prosódia e Ortografia1 Cap. II-IV

Lexiologia

Palavra Cap. V
Substantivo Cap. VI
(substantivo propriamente dito)
(pronome)
Verbo Cap.VII
(substantivo verbal)
Adjetivo Cap. VIII
(substantivo qualificativo)
Advérbio Cap. IX
Interjeições Cap. X
Partículas sintáticas Cap. XI
Artigo Cap. XII

1 No “Índice”, Mário de Andrade articula capítulos distintos para “Fonética”, “Prosódia” e


“Ortografia”, mas ao reler seu plano reformula a estrutura e registra: “É melhor tudo num
só capítulo”. Apesar da observação do autor, a numeração subsequente dos capítulos não
se altera.
Partículas determinativas Cap. XIII
(adjetivos determinativos)
Numerais Cap. XIV
Preposições Cap. XV
Conjunções Cap. XVI
Formação das palavras Cap. XVII

Sintaxe

Dicção e seus elementos Cap. XVIII
Frase Cap. XIX
Emprego do substantivo Cap. XX
Psicologia do pronome Cap. XXI
Psicologia da ação Cap. XXII
(verbo)
Psicologia do limite Cap. XXIII
(adjetivo, advérbio)
Psicologia das partículas sintáticas Cap. XXIV
Pontuação Cap. XXV

Estilística

Frase ou verso Cap. XXVI


Figuração Cap. XXVII
Vícios Cap. XXVIII
Prosa e poesia Cap. XXIX
Psicologia da fala brasileira Cap. XXX
E se na Lexiologia, pois que eu vou já fazer uma distinção e mudança
importante, tirando as partículas sintáticas do número das palavras reais, se
em vez de capítulos especiais sobre substantivo, verbo, adjetivo, pronome,
eu fizesse capítulos sobre: Do Gênero (o indivíduo se considerando em si,
aqui entram considerações sobre masculino e feminino quer no substantivo,
quer no adjetivo, quer no pronome (refletir bem se no brasileiro não tem
casos parecidos com os citados por Dauzat, Philosophie du langage, grifo,
p. 213)). Do Número (o indivíduo se considerando em sociedade. Aqui
entram plural e singular no substantivo, no pronome, no adjetivo, no verbo,
ver nota sobre Dauzat que vem linhas atrás). Do Tempo (o indivíduo se
considerando em relação ao tempo)? Esboço de capitulação pra Lexiologia.

Lexiologia

Palavra Cap. V
Do Gênero Cap.VI
Do Número Cap. VII
Do Tempo Cap.VIII
Advérbio
Interjeição
etc2.

2 O autor não inclui numeração para os capítulos “Advérbio” e “Interjeição”, o que teste-
munha o inacabamento da obra.
Prefácio – Antes da Introdução um prefácio pequeno verdadeiramente
humilde. Esta é a primeira vez em que me sinto verdadeiramente tímido ao
publicar um livro e incerto sobre a validade deste. É certo que estudei até o
possível entre os acasos da minha vida autodidática a língua portuguesa de
que deriva em maior parte a nossa maneira de expressão, porém é também
certo que esse conhecimento não é suficiente pra eu me meter nas altas
cavalarias de escrever um livro de linguagem. Me parece francamente que
careci ter topete pra agir assim e o meu livro me parece a primeira real
mas não bem clarificada na consciência manifestação de cabotinismo
da minha vida artística. Outros é que deviam escrever este livro e tenho
consciência de que um dia a gramática da fala brasileira será escrita. Porém
certas considerações se não desculpam ao menos explicam o meu topete.
Outros deveriam escrever este livro, não tem dúvida, porém o certo é que
ninguém se abalançou a escrevê-lo. Inda mais: temos livros valiosos, como
Língua nacional de João Ribeiro, O dialeto caipira, de Amadeu Amaral, que
são verdadeiros convites pra falar brasileiramente. Porém os autores como
idealistas que são e não práticos, convidam, convidam porém principiam
não fazendo o que convidam. Não tiveram coragem. Eu tive a coragem e é o
que explica o meu valor funcional na literatura brasileira moderna. Não me
iludo absolutamente a respeito do valor das minhas obras. Sei que como arte
elas valem quase nada porém são todas exemplos corajosos e imediatamente
práticos do que os outros devem fazer ou... não devem fazer. Erros e verdades.
Fui obrigado a me meter num despropósito de assuntos e por isso a ficar
na epiderme de todos eles. Sobre poesia, poética, estética, arquitetura,
música, prosa, psicologia, pintura, e até linguagem escrevi. Numa época
como a nossa em que o conhecimento seguro de cada uma dessas criações
da vitalidade humana pede uma vida inteira, se deverá compreender que
era impossível pra mim criar obra duradoura. Não fiz mais que vulgarizar.
Não fiz mais que convidar os outros ao estudo moderno dessas criações
humanas. Porém convidei praticamente, com o meu exemplo e o sacrifício
das minhas vaidades naturais de escritor. Isso é muito bonito, franqueza
e posso dizer que quando penso em mim, o que não sucede raramente, eu
me sinto feliz. E nem a consciência exata dessas fraquezas apontadas, nem
a amargura dessas reflexões me diminui essa felicidade. Porque não sou
sujeito que se ilude e seria no mínimo ilusória considerar minha obra como

45
Mário de Andrade

manifestação duma arte, quando ela não passa da manifestação duma vida.
Continuo sendo feliz.
(1)
Um dos erros básicos de certas manifestações didáticas deste brasileirismo
está em que os dicionaristas criaram dicionários de brasileirismo e não
dicionário português-brasileiro.

(2)
Na realidade não tem grande diferença entre o brasileiro falado no Ceará, em
São Paulo e no Rio Grande do Sul. É uma diferença muito mais oral porque
a vocabular é pequena. A diferença vocabular é só aparentemente grande
e provém das necessidades locais. No Rio Grande do Sul tem um poder
de palavras relativas aos equinos e bovinos que os paulistas desconhecem
assim como nós nos trabalhos do café usamos muitos termos que o paraense
ignora. Nem são propriamente provincianismos porque não correspondem
a diferenciações de designação da mesma coisa, mas de coisas distintas.
E assim como os provincianismos são fatais dentro duma língua também é
fatal que com o contínuo aumento das relações interestaduais uma língua
geral compreensível por todo o país se estabelecerá. Quanto às diferenças
orais de pronúncia elas são realmente muito menores que a que existe
presentemente entre o português e o brasileiro.

(3)
O português comum é incontestavelmente mais estilista que o brasileiro
comum. As suas cartas são mais bem escritas, isto é, têm as ideias exprimidas
com maior clareza e rapidez. Será que o português é mais inteligente ou mais
artista que o brasileiro? É ridículo pensar isso. O que se dá é que o português
comum quando escreve, escreve o que aprendeu nas gramáticas e que ele
fala todo o dia, enquanto o brasileiro se vê obrigado a abandonar o que
fala todo o dia pra se lembrar das regras da gramática que mecanicamente
aprendeu na escola e de que pouco se utilizou. O brasileiro pra escrever
larga do chapelão, e da bota ou do simples paletó praciano e enverga fraque
didático. O português escreve como está, manga arregaçada e chinelo sem

46
Língua Brasileira

meia. Resultado: está a seu gosto, mexe-se bem. O brasileiro, coitado! Nem
pode sentar porque amassa o rabo do fraque.

(7)3
Cada um deve dar regras a si mesmo sobre a colocação do enclítico. É
o que fiz. Pois onde me dei essas regras? Pelo valor psicológico da frase.
Vem depois do verbo quando frase é vaga – ou fortemente imperativa.
João Ribeiro também observou isso na Língua nacional. Necessidade de
não se preocupar com a eufonia. As famosas leis da eufonia não são senão
assombrações. É simples questão de educação da orelha se acostumando.
Questão Mallarmé. Questão Gongora (?). Questão Osvaldo4 de Andrade
(Memórias sentimentais) o provam criando dicções personalíssimas que
depois não pareceram repugnantes. O caso das quintas na harmonia do
organum e depois de Rameau. É o caso dos estilos frei Salvador e Machado,
a diferença total. A famosa eufonia não passa duma generalização média
de fórmulas sintáticas determinadas por razões ou necessidades expressivas
psicológicas. Que variam.

(7A)
O melhor meio seria o governo entregar a normalização sintática contempo-
rânea a um grupo de homens de valor, tais como naturalmente se indicariam
os nomes dos senhores Mário Barreto, João Ribeiro, Amadeu Amaral — pelo
valor linguístico — e que pesquisassem no falar brasileiro certas determinações
fraseológicas mais ou menos gerais que pudessem ser estabelecidas como
normas de sintaxe nossa. Isso porém desde logo sem a utilização dessas
normas por escritores literários nacionais se tornava muito difícil. Carecia
que estes primeiro tentassem nas suas obras essa estilização. Não só porque
facilitariam a aceitação popular dessas normas pros semicultos que são a
praga e a maioria pavorosa como principalmente, sendo eles literários, isto
é possuindo a sensibilidade que colhe e adivinha as normas mais artísticas
(aqui artísticas significa: mais humanas) facilitariam grandemente o trabalho

3 Possivelmente, o autor descarta as notas 4, 5 e 6, pois não figuram na caderneta “Língua


Brasileira 12” nem aparecem no conjunto do manuscrito d’A gramatiquinha da fala brasileira.
4 Forma como o autor por vezes se refere ao modernista Oswald de Andrade.

47
Mário de Andrade

desses cientistas. Porém o escritor nacional desde que se vê célebre ou lido


se preocupa de escrever... à portuguesa. Vaidosinhos veem que estão célebres
no seu tempo e querem ficar célebres pra toda vida. A melhor maneira é
serem clássicos não é? Pois então querem ficar clássicos porque depois os
preconceitos humanos fazem o resto. Lá vem um gramático e diz: o grande
fulano dizia “fui à cidade” pois então se diga “fui à cidade” e não “fui na
cidade”. Aquele qualificativo grande é póstumo porém pra vaidade desses
escritores chegados é bem presente e está ressoando na orelhinha com tanto
gosto, ai! Pois que os célebres continuem a escrever à purrtuguez(a)5. Falo
só pros rapazes. Cada um que dê a sua estilização, a sua solução e se chegará
um dia a essa normalização geral tirada do pouco que acertaram e do muito
que erraram. Vale mais errar porém fazer do que não errar e não fazer. Os
escritores nacionais célebres têm às vezes incitado, aconselhado a libertação
nossa de Portugal. João Ribeiro. Graça Aranha. Principiam por um erro:
opor Brasil a Portugal. Não se trata disso. Se trata de ser brasileiro e não
nacionalista. Escrever naturalmente brasileiro sem nenhuma reivindicação
nem queixa. E o pior é que continuam dentro das regrinhas bem portuguesas
como João Ribeiro e mesmo o senhor Graça Aranha. Este no entanto,
muito mais artista, transplanta pro seu estilo um fogo, uma cor, uma luz,
uma eloquência que tradicionalizam Euclides, clarificando-o. Está muito
bem mas Graça porém ainda é pior que João Ribeiro nas suas pregações.
Depois que entrou pro Modernismo o Graça Aranha adquiriu um espírito
combativo juvenilíssimo e de deveras bonito apesar dos erros que enchem a
pregação dele. Erra mas faz e isso é que é importante. É um valor. Realmente
seria preferível que errasse menos porém isso me parece irremediável: numa
época primitivística, de início de tendências caóticas como a da gente, ele
tem a mania das fórmulas tonitruantes. Ora a fase assim onde as tentativas
surgem e morrem com o movimento ondular das vozes o espírito que estuda
tem de ser analítico e não sintético. É assim que logo Graça aconselhando
o brasileirismo pros brasileiros criou a fórmula-assombração “Não somos a
câmara mortuária de Portugal” [eminentemente?] errada e que não é mais
do que palavriado inútil. Inútil não: contraproducente. Não pensem que
vou defender Portugal e me tornar simpático pros portugas nacionalistas
não. Não tenho por Portugal nenhuma ternura maior que a que tenho

5 O autor tenta reproduzir, por meio da alteração do vocábulo original, a pronúncia dos
portugueses.

48
Língua Brasileira

pelos cochinchins ou norte-americanos. Acho que o que fez pela gente ele
fez pra ele e fez muito bem. Nada de gratidões pejorativas. E refletindo
historicamente acho que fez pouco... Porém só mesmo o Brasil é que perdoa
a dívida dos paraguais... Voltando: o espírito combativo sintético de Graça
Aranha criou o não-somos-a-câmara-mortuária-de-Portugal que não tem
nada de aproveitável. Acho engraçado essa mania de certa gente que pra
ser duma nação carece do dinamismo de qualquer ideia antagônica pra ser
nacional. Bobagem. Não se trata de nacionalismo reivindicador, minha
gente. Isto é ridículo. Se trata de ser brasileiro e nada mais. E pra gente
ser brasileiro não carece agora de estar se revoltando contra Portugal e se
afastando dele. A gente deve ser brasileiro não pra se diferençar de Portugal,
porém porque somos brasileiros. Brasileiros sem mais nada. Brasileiros.
Sentir, falar, pensar, agir, se exprimir naturalmente. Como brasileiro. Criar
esses antagonismos e lá se vai a integração no cosmos por água abaixo. Inda
mais: não-somos-a-câmara-mortuária-de-Portugal cria logo a ideia de se
diferençar forçadamente de Portugal o que é um erro. Nós descendemos
em muito de nós de Portugal. Temos é natural por hereditariedade muitos
costumes, expressões, jeitos, ações evolucionadas de portuga. Até intactos
quase, alguns... E vai a gente os afasta da expressão portuguesa. Por quê?
Por causa do não-somos-a-câmara-mortuária-de-Portugal. É um erro porque
esses sentimentos e costumes, expressões e ações são agora tão nossos como
dos portugas. Essas fórmulas são um perigo e o próprio Graça parece que
sentiu isso, quando no discurso que disse no banquete oferecido pra ele em
1925 por gregos e troianos acabou com o nacionalismo apressado e leviano
do discurso sobre “Espírito moderno”, falando que devíamos ser brasileiros
porque assim seríamos uma expressão nova de Humanidade (citar em grifo
a frase de Graça, exata, que tenho num recorte de jornal)6.
Nós somos as Juvenilidades Auriverdes!
As franjadas flâmulas das bananeiras,
as esmeraldas das araras,
os rubis dos colibris,
[...]

6 O discurso de Graça Aranha consta em um recorte que compõe a série Matéria Extraída de
Periódicos, no arquivo do escritor, Fundo Mário de Andrade. Além disso, na biblioteca do
escritor, no IEB, encontra-se o volume Espírito moderno que inclui o texto da conferência.

49
Mário de Andrade

os abacaxis, as mangas, os cajus


[...]
Todos para a fraterna música do Universal!7
Está certo (citar meu artigo, “Pernambuco8”, anterior a Graça). Ora aplicando
o caso à língua o que a gente tem de fazer é isso: ter a coragem de falar
brasileiro, sem se amolar com a gramática de Lisboa. Dar cada um a sua
solução pessoal de falar brasileiro pra que depois um dia os gramáticos
venham a estabelecer a gramática do Rio de Janeiro. Está certo. Vejam
bem: falei “sem se amolar com a gramática de Lisboa” e não “se opondo
à gramática de Lisboa”. Não se trata de reação contra Portugal. Trata-se
duma independência natural, sem reivindicações, sem nacionalismos, sem
antagonismos, simplesmente, inconscientemente. Não se trata de reagir.
Trata-se de agir, que é muito mais viril e mais nobre. Se trata de “ser”.
O brasileiro tem direito de ser. Os escritores chegados, os que queiram ficar
que fiquem no seu cuidadinho covarde do porquê João de Barros escreveu
assim. A gente, os que não chegamos, os que não nos encasquetamos de
ficar porém de andar, construamos o nosso ninhinho de barro no galho
do ipê, vamos fazer de joão-de-barros de penas morenas, vivendo com
gostosura a realidade sem covardias desta terra que é da gente e que nos
está fazendo. Amém.

(8)9
Não se trata de reagir. Trata-se de agir, que é muito mais viril e mais nobre.

(9)
Na Gramatiquinha um capítulo sobre psicologia da fala brasileira.

7 Versos iniciais do oratório profano “As enfibraturas do Ipiranga”, fecho performático de


Paulicéia desvairada, de 1922. No confronto do manuscrito com a edição de 2013, identifica-se
a presença de variantes. Cf: ANDRADE, Mário de. As enfibraturas do Ipiranga. In:______.
Poesias completas. Edição de texto apurado, anotada e acrescida de documentos por Tatiana
Longo Figueiredo e Telê Ancona Lopez. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, v. 1, p. 114.
8 Artigo não localizado.
9 No manuscrito, o autor desloca esta nota para integrar a nota 7A.

50
Língua Brasileira

(10)
Com prefixos como re (tornar a) a (negação) aplicáveis a verbos, substantivos,
adjetivos, a gente pode fazer um dilúvio de figurações expressivas que não
são propriamente neologismos, são antes expressões de momento, sem
valor vocabular registrável. Reamar = tornar a amar não é um novo verbo,
porque o prefixo não criou uma palavra que falte propriamente à língua,
como o caso de repetir; é uma expressão de momento, expressão composta
na realidade de duas palavras: o prefixo re e o verbo amar. São expressões
idiomáticas ocasionais e não palavras novas.

(11)
O que fala o brasileiro tem o direto em vista da expressão momentânea de
criar a voz ou vozes que quiser, sem que isso tenha propriamente que ver
com a língua brasileira mesmo se essa invenção vem escrita. É assim que a
todo momento em vista da expressão momentânea a gente escuta palavras
que não existem, não registradas e que não devem mesmo ser registradas
pelos vocabularistas porque não têm existência imprescindível. Porém
são perfeitamente vivas e justas essas expressões que se aparentam com os
neologismos, porque tiveram aplicação justa, porque partidas duma comoção
intensa que se afasta do convencionalismo dos símbolos verbais conhecidos,
enfim porque vivem. Porém a língua nem os linguistas não têm nada que ver
com ela nem ela com eles. Principalmente em vista da imitação de ruídos a
todo instante se criam expressões orais dessas. As crianças abundam desses
ruídos admiravelmente expressivos, admiravelmente vivos sem que tenham
vida gramatical. Se um indivíduo que detesta o gênero oratório de Rui
Barbosa, por exemplo, diz pra outro: deixe desses discursos ruibarbostas,
unindo propositalmente bosa e bosta, criou uma expressão cômica muito
legítima, forte, incisiva porém não criou uma palavra nova. Depois de
pronunciado ou escrito o pseudoadjetivo ruibarbosta deixou de existir.
Dessas criações efêmeras, existentes ou passíveis de existir até o infinito,
todo homem tem direito de fazer, são legítimas, perfeitamente exatas e até
aconselháveis. Porém estão fora da virtualidade perene da língua. Acontece às
vezes no entanto que expressões assim venham a adquirir dessa virtualidade
perene que nem fonfom, ruge-ruge e se universalizam dentro dum povo

51
Mário de Andrade

ou do mundo. Então passam a ser palavras legítimas, isto é, símbolos de


convencionalismo universal. Então devem ser registradas.

(12)
A tendência pra eliminar os pronomes dos verbos pronominais. Exemplo:
a que horas você levanta, hein? Ir embora.Vá embora!

(13)
Prefácio – Não se trata dum livro técnico nem pra técnicos. Homens pra
estes talvez sirva de alguma coisa porque geralmente são tão presos a leis
e regras convencionais, tem um espírito crítico tão pequenininho e lerdo
que a violência ingênua das minhas liberdades talvez contenha mais duma
sugestão pros tais. Porém embora estude com seriedade e constância a
minha língua e a língua dos meus antepassados, me parece cada vez mais
que não sei nada delas tal a barafunda que fazem em mim as comoções, as
esperanças, as ambições e as verdades e leis. Sou bem um leigo da matéria.
Não tenho pretensão nenhuma. Porém minha vida tem sido sempre essa
belíssima coisa que se chama agir com vivacidade e coragem. Ora diante
de todos aqueles que aconselhavam a intromissão de certos modismos e
certas fórmulas gramaticais dos brasileiros na tábua de leis linguísticas da
língua lusitana, eu tive a coragem conscientemente, seguindo a tradição e
o exemplo bonito de José de Alencar, tive a franqueza de agir em vez de
ficar no discurso “Irmãos, fazei!”. Sempre tive horror ao “Sejamos!”. Eu sou.
E é certo que desque me pus na fadiga de escrever brasileiramente, não fiz
caricatura nem pândega. Todas as manifestações de brasileirismo linguístico
que empreguei, empreguei sinceramente, não pra fazer comicidade nem
mostrar burradas de incultos. Estilizei com seriedade depois de muito matutar
e nem tudo aceitei porque se o povo pela sua incultura é por muitas partes
imbecil e estúpido, por essa mesma incultura que o livro de uma imundície
de preconceitos descobre aquelas fórmulas orais de expressão que encarnam,
refletem e explicam as sensibilidades caracteristicamente nacionais. Fui
sincero, paciente e estudioso nas minhas estilizações. Algumas, forçadas, que
usei, como Oropa e outras, pela própria maneira em que estão empregadas;
pela própria significação irônica da frase que as encerra, provam que eram

52
Língua Brasileira

depreciativas ou ironias-ataques, não coisa séria. Ainda mais uma coisa: muita
gente, até meus amigos, andaram falando que eu queria bancar o Dante e criar
a língua brasileira. Graças a Deus não sou tão ignorante nem tão vaidoso.
A minha intenção única foi dar a minha colaboração a um movimento
prático de libertação importante e necessária. Dar a minha solução pessoal
a um problema que pode comportar muitas soluções transitórias ocorrentes
e que só muito mais tarde, tenho inteligência bastante pra saber isso, terá
a sua solução definitiva-evolutiva que tem de ser inconsciente e unânime.
Se cada um, estudando com seriedade e trabalhando com afinco, desse a
sua solução pessoal e transitória a este problema, não dou vinte anos, o
elemento culto brasileiro, quero dizer a manifestação humana civilizada e
por isso representativa (não falo característica) do Brasil na civilização atual
já falaria, já escreveria e já teria gramáticas duma fala mais concorde com a
nossa nacionalidade original, a nossa sensibilidade, ideais e civilização. Isso
seria prático. Isso seria ter liberdade bem compreendida. Isso seria cultura
verdadeira. E sobretudo isso seria ser humano e enriquecer a Humanidade.
Assim fica entendido que isto não é uma obra científica. E ainda e sempre
uma obra de ficção organizada pelo amor que consagro à Humanidade e
nascida da comoção fortíssima que sempre faz nascer em mim a vida das
palavras.

(14)
Ir-se embora = locução verbal. De tomar esse caráter de locução verbal
vem o fui-se embora que parece formar o advérbio simbora. Na verdade
o conceito pessoal e flexionável do pronome é que desapareceu dentro da
locução inteiriça e imutável a não ser no verbo inicial que a temporiza.

(15)
Poude = mais uma flexão irregular de poder.

(16)
Que tal o concerto? Assim-assim. Ela tem uma voz mais-ou-menos. Assim-
-assim e mais-ou-menos são adjetivos qualificativos.

53
Mário de Andrade

(17)
Num capítulo chamado “Psicologia da língua brasileira”: Doçura, Lentidão,
Meiguice, Sensualidade, Ironia, Asperezas, Emboladas.
Olha o bambu do bambu bambu
Olha o bambo do bambu bambubê
Olha o bambo do bambú bambubá
Quero ver10 dizer 3 vezes bambubê bambulalá!11
Molenga língua. Indecisão passageira. Frases rápidas: Vênus bebia não.
Síntese oratória da conversa.

(18)
Esta gramática, pois que gramática implica no seu conceito o conjunto de
normas com que torna conscientes a organização duma ou mais falas, esta
gramática parece estar em contradição com o meu sentimento. É certo que
não tive jamais a pretensão de criar a fala brasileira. Não tem contradição. Só
quis mostrar que o meu trabalho não foi leviano, foi sério. Bem que matutei
e trabalhei pra dar pro meu estilo novo normas que organizassem-o. Se cada
um fizer também das observações e estudos pessoais a sua gramatiquinha
muito que isso facilitará pra daqui a uns cinquenta anos a salientar normas
gerais, não só da fala oral transitória e vaga porém da expressão literária
impressa, isto é, da estilização erudita da linguagem oral. Essa estilização
é que determina a cultura civilizada duma raça sob o ponto-de-vista
expressivo. Linguístico.

(19)
O estarem as palavras descriminadas pelas várias categorias, substantivos,
adjetivos, verbos etc. Não é senão um meio de fixação de conceito psicológico
perfeitamente exato porém não intangível. Quase todas as vozes podem
mudar de categoria tais como se apresentam ou por meio de partículas
categorizantes, que nem ear, izar, mente. Só as partículas adjuntivas de
palavras como preposições e conjunções têm categoria intangível, porém

10 Nota MA: “ver nota 31”.


11 A quadra citada assemelha-se ao poema “O samba”, de Ascenso Ferreira, publicado em
Catimbó.

54
Língua Brasileira

não são palavras propriamente, são na realidade sufixos locucionais desse


substantivo grande que chamamos frase. Essas partículas só assumem o
conceito puro de palavra quando substantivadas ou adjetivadas. Por exemplo:
você é um indivíduo muito e. “E” assume uma entidade qualificativa. Outro
exemplo: o sim de você me botou pressa no desejo. Assim só essas vozes
locucionais é que não podem variar de categoria porque não são entidades
independentes, não têm vida própria. Os adjetivos, advérbios, substantivos
etc. podem no entanto passar pra qualquer outra categoria transitoriamente
e sem perder o seu caráter psicológico. Vestem uma fantasia, se mascaram
momentaneamente, por uma precisão expressiva, mas porém não perdem
jamais a entidade psicológica que se esconde sob o lupe.

(20)
A palavra é uma entidade. O substantivo é uma entidade qualificativa.
O adjetivo é uma entidade limitativa. O verbo é uma entidade acionadora
e vitalizadora. O advérbio é uma entidade modalitativa e modificativa.
O pronome é uma entidade personalitativa. A preposição não é uma
entidade, é ligadura de entidades etc.

(21)
A frase é um substantivo. Mesmo se eu falo “Você é burro” eu criei um
substantivo, isto é, uma entidade qualificativa.

(22)12
Assim só essas vozes locucionais é que não podem variar de categoria porque
não são entidades independentes, não tem vida própria. Os adjetivos,
advérbios, substantivos etc. podem no entanto passar pra qualquer outra
categoria transitoriamente e sem perder o seu caráter psicológico. Vestem
uma fantasia, se mascaram momentaneamente, por uma precisão expressiva,
mas porém não perdem jamais a entidade psicológica que se esconde sob
o lupe.

12 No manuscrito, o autor desloca esta nota para integrar a nota 19.

55
Mário de Andrade

(23)
Nem uma só vez dar exemplos vulgares, gênero “Pedro matou Paulo”. Todo
exemplo será reflexão profunda. Será frase lírica adorável. Será julgamento
crítico. Será ataque ou sarcasmo. No máximo com brasileirismos raríssimo
dar exemplo palavra isolada, só quando já contiver lirismo.

(24)
Descrever minha comoção profunda com a palavra. Os cambiantes de sentido
da palavra pelas relações que adquire, pelas modificações que assume dentro
da frase. O poder da frase. Sua amabilidade. O valor da frase antipática.
O ardor de certas frases sensuais. Quando principiei escrevendo brasileiro
imediatamente minha frase se encompridou como um caipira, ficou longa,
de braços molengas, fala dengosa, renque. Não gostei de sopetão mais das
frases curtas – enérgicas, mas porém depois estas entraram de novo porque
me lembravam, gente [sarrista?], picurrucha, serelepe, gorducha.

(25)
Caráter estético da fala que emprego. O defeito do ineditismo. Carece
acabar com este (ver páginas soltas apensas a este livrinho)13.

(26)
Entre as formas compostas de adjetivos demonstrativos (Carlos Pereira,
p. 63) não esquecer “Esse um” e “Aquele um”.

(27)
Substantivo prático ou particular. Um grupo de entidades abstratas universais
reunidas formam então o verdadeiro substantivo, o prático, o que a gente
emprega e que é limitado. Exemplo: este meu Brasil gostoso. Esta última
frase é um verdadeiro substantivo composto – é transitório – é psicológico
– é limitativo – é concreto e realista.

13 As “páginas soltas apensas a este livrinho” referem-se a um conjunto de fólios numerados


sob o título “Início” alocadas na caderneta “Língua Brasileira 12”.

56
Língua Brasileira

(28)
Uns pares de = vários.

(29)
Caracteres psicológicos do brasileiro: carinho, pegajosismo, sensualidade,
calor na sonoridade (escrito) verdadeira musicalidade no oral, que nem
com as crianças. O caipira quando fala, sobretudo o mulato canta que
nem criança. Comodismo, lentidão escarrapachada e acocorada. Fazer
considerações sobre isso em solução da rapidez moderna.

(30)
Será total a diferenciação entre brasileiro e português (línguas). Total
não pode ter sendo falas do mesmo berço comum. Quando muito talvez
daqui a século como entre português e espanhol. Não é razão pra que não
principiemos.

(31)
É curioso que, sem saber disso, os primeiros versos que fiz, ou pelo menos
de que tenho memória foram também uma embolada legitimíssima. Isso
foi no tempo dos quatorze pros quinze quando o amar passou dos simples
beijos escondidos nos cabelos maravilhosos de Maria ou das marretas
sintomáticas, meio sem ser de lado, que dava numa outra Maria, tenho a
fatalidade das Marias na vida minha!... criadinha na tia do número 1. Tinha
conhecido uma liberobadaroana, naquele tempo... Se chamava Geny. Pois
eu andava sempre cantando estes versos admiravelmente expressivos e que
são um exemplo perfeito e equilibradíssimo do processo da sublimação
freudiana. Vou grafar a embolada pelas entidades psicológicas dos vocábulos
que sentia dentro de mim. Vai:
Fiori de la Pá
Geni transférdi güide nôs pigórdi
Geni trâns!14 Feligüinórdi
Geny!...

14 Nota MA: “Neste ‘Geni trâns!...’ eu era possuído por um êxtase inconcebível. Erguia a voz,
dava uma fermata e sofria”.

57
Mário de Andrade

E foram os únicos que me ficaram da meninice... Únicos bem, não. Me lembro


duma quadra de que só resta em mim o último verso. Também sintomático?
Não sei. Vai: O moço pegou na faca e disse: “Oh! Morte”.

(32)
É incontestável que eu escrevendo na língua artificial e de ninguém em que
escrevo atualmente por assim dizer escapoli da possibilidade de errar. Isso
não tem dúvida não porém a gente carece notar duas coisas:
Primeiro: posso dizer com certa sinceridade que sei ou pelo menos já sube
escrever o português. Dou como livro escrito nessa fala a minha Escrava
que não é Isaura. Livro publicado com certa afobação só me desculpo nele
da barafunda de acentos que por vezes saíram bem falseados. A culpa
não foi minha que nesse tempo inda eu não sabia rever provas não. Afora
isso me escapoliu um “poude” por “pôde”, cacoete em que cochilei uma
feita no volume. Porém é certo que sabia da ortografia legítima como a
gente constatará pelos livros anteriores. Agora escrevo conscientemente
“poude”. O outro erro, também de ortografia nem me lembro mais qual é.
Afora esses, duvido que possam me mostrar erro de deveras erro no livro.
Podem chicanar com pontos de controvérsia, erro mesmo, erro garanto
que ninguém não acha nenhum. Na medida do um bocado mais que o
possível, estudei com paciência a fala portuga. E não foi só nas gramáticas
de todo gênero não. Nenhum dos clássicos portugueses grandes deixei de
ler com paciência. Alguns me foram até familiares como o doce Frei Luís de
Sousa que eu gostava muito, Garrett, Camões, Castelo Branco e Latino. Os
outros lia mais por obrigação com verdadeira paciência, sobretudo Vieira e
Castilho que jamais não pude apreciar. De Camões sabia de-cor o introito
dos Lusíadas, a passagem de Inês, a dos doze de Inglaterra, a tempestade e
o Adamastor, além de pra mais de cinquenta sonetos. Também se explica
tanta decoração. Uma feita assuntei pasmo no tempo que a gente perde
fazendo a barba todo santo dia. Me lembrei de decorar coisas bonitas.
Camões e o Bilac adorado naqueles tempos de dantes foram os que decorei
mais. Porém até a “Benvinda” de Macedo Papança papei inteirinha. Fiquei
até dizedor de festinhas sonorosas duma sociedade católica. Sonetos então,
sabia pra mais de cem! Ah! Tempos em que sonhei possuir um estilo que
docinho como o de Frei Luís de Sousa fosse elegante que nem Garrett e

58
Língua Brasileira

relumeante que nem Latino Coelho!... Ora eu, como toda a gente, desconfio
um bocado de quem não sabe uma coisa e se bota falando mal dela. Que
importância fundamentada tem agora que um indivíduo inculto fale mal
da cultura? Bem pouca se o indivíduo não ficar apenas no senso comum do
lugar-comum. Porém eu sei o português. Ou pelo menos sube, que, palavra,
quando principiei vivendo de vida nova nunca mais que não peguei em
certos famanados. Minha biblioteca está povoada de hic-jacet s15. Pois é. Se
eu deixei de escrever em português bem que posso pois falar que foi por
causa de ter adquirido uma convicção nova.
Segundo: é incontestável que com a estilização de fala brasileira feita por
mim, estilização em que além de generalização de modismos sintáticos
brasileiros e ilações que tiro deles, entram ainda modismos esporádicos
colhidos de pessoas que escuto, cartas que recebo, livros, jornais, anúncios
etc. que leio e mais as variações e fantasias estilísticas que me são próprias...
Vou começar outra frase porque essa está ficando manguari por demais.
É incontestável que com a estilização de fala brasileira que é a minha
contribuição pessoal pra codificação futura do brasileiro, ninguém não me
pode pegar em erro. Basta ver as modificações açus16 de estilo, de modismos
vocabulares e de ortografia dum livro meu pra outro, pra se ver que tudo
saiu assim porque eu quis. Mas também por outro lado, se não me podem
acusar de erro, também é certo que não me deixei adormecer nos braços
molengos da facilidade. Minha fala é dificílima até. Requerem (?) e requer
estudo constante, prática mensal de centenas de vocabulários apensos a
quanto livro regionalista surge por aí tudo, e muita observação pessoal.
E muita codificação e generalização pessoal. É muita paciência de observação
psicológica. E uma universalidade brasileira que jamais ninguém nunca não
poderá chamar de regional. Se muitos que tentam o que eu tento despencam
pra facilidade e pro regionalismo, eu não. Posso dizer sem vaidade porém

15 O autor utiliza o termo latino hic jacet, particípio presente do verbo jacere –“ estar estendido,
estar deitado, estar pousado no chão”, seguido da letra “s”, para marcar o plural de “aqui
jaz”. Dessa maneira, indica que sua biblioteca está povoada de defuntos. Cf.: HOUAISS,
Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Editora Objetiva, 2009, p. 1122.
16 O autor utiliza a grafia antiga “assús” para este termo de origem tupi que significa “de
grande porte; avultado; volumoso”. Cf.: HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles,
p. 44.

59
Mário de Andrade

com consciência que não. Ora com o conhecimento prévio da fala portuga,
com o estudo paciente das falas brasileiras e com a estilização penosa delas,
creio que tenho três perdões bons da libertação do erro em que contra a
vontade me vejo. Posso escrever o que me vier na cachola, até coisa que eu
mesmo reconheça ser erro em brasileiro, sem que ninguém não possa com
justiça me acusar de erro. Pelo simples fato de que ninguém não sabe o
que foi consciente e o que foi falsificação, num estilo tão extravagante que
nem o meu. Sob esse ponto estou na situação dum primitivo. E por isso
escrevo mesmo que nem primitivo, naquilo, em que o posso ser, isto é, sem
a preocupação de que isto é erro e isto não. Minhas preocupações de língua
escrita são outras. O que ficará das milietas17 de processos empregados por
mim? Não posso maliciar isso não. Pode até não ficar nada. Pode porque
tudo é possível porém duvido. Que importância tem um processo de compra,
uma norma de falcoeiro, uma carta quatrocentista pra fala portuga de agora?
Importância bibliográfica, importância pra estudioso, importância sem
importância. Isso eu serei, passado um século ou dois. Que bem me importa,
gente! Que bem me importa? Importância tem pra mim mas é minha vida e
minha eficiência na vida contemporânea que vivo. Nessa garanto que sube
representar um destino. E que esse destino era bem o meu tudo me está
provando: uma consciência, uma segurança de mim que me deixa dormir
bem, uma curiosidade faminta de mundos, uma alegria sem parada. E tudo
isso: terra pra um jardim de cento e tantos amigos que até fazem me iludir:
confundo amigos com bugalhos, dou bom-dia pra motorneiro, até-logo pra
garçom, me rio pra todo o mundo e cá neste peito batido sem aguentar
meus penares. Vida assim condena Deus e Deus condena? É possível que os
mártires do mundo tenham pena do que evita e combate a dor... Porém o
perdão existe, também pros que amaram por demais. Eu.
*

17 A palavra “milietas”, que significa muitos (as), também foi empregada em Macunaíma,
o herói sem nenhum caráter, conforme indica Noslen N. Pinheiro em sua dissertação. Cf.:
PINHEIRO, Noslen Nascimento. A expressividade dos neologismos sintagmáticos de Mário de
Andrade – FFLCH-USP.

60
Língua Brasileira

Tem traço-de-união18:
I. As palavras duplas em que no plural primeiro termo se pluraliza;
II. As palavras duplas em que no plural se daria mudança de sonoridade
(força) na consoante inicial do segundo termo, r ou s19;
III. As palavras triplas: traço-de-união;
IV. As palavras em que o primeiro termo é “sem”, “circum”, “recém” conservam
o m embora unida: semvergonha, recémchegado, circumnavegar.

Palavras acentuadas:
I. Esdrúxulas de uso menos comum;
II. Palavras suscetíveis de duas acentuações diferentes com significados
diversos, acentua-se todas pra facilitar a visibilidade imediata, exemplo:
“saía”, apesar de grave.

18 Embora não estejam numerados, os dois últimos tópicos – “Tem traço-de-união” e “Palavras
acentuadas” – são subsequentes às notas presentes na caderneta. Trata-se provavelmente de
um acréscimo do autor pelo uso da tinta preta, instrumento de escrita raro no manuscrito.
19 Nota MA: “Em todo caso verbos como entressorrir em vez de traço-de-união terão o s
duplicado pra melhormente ressaltar a entidade verbal.”

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Ideias Para Capítulos Particulares
Capítulo I – Introdução20

Nota 1 – Nota 7A – Nota 13 – Nota 18 – Nota 2321 – Nota 24 – Nota 3022


*
Livro de ficção (meus idílios com a fala) — Minhas intenções tentando
estilização da fala brasileira desde a pseudoculta (explicar diferença que
faço entre cultura e civilização) até a inconsciente popular. — Estilização
não paulista (folha solta apensa ao livro de notas “Língua Brasileira”23).
*
Dizer que eu não falo de tudo o que continua na mesma. Salvo se me leva a
reflexões íntimas especiais. Este é um livro de ficção e ninguém não aprende
gramática nele, é lógico.
*
A censura de que “ninguém fala como eu escrevo” é besta. Primeiro: escrita
nunca não foi igual a fala. Tem suas leis especiais. Depois: se trata dum estilo
literário, se fosse igual ao dos outros não é estilo literário, não é meu. Isso só
é elogio, mostra que é estilização. Agora quero saber quem que nega o meu
estilo ter raízes fundas nas expressões do meu povo desde a pseudoculta até
a ignara popular? A única objeção que pode valer é a feiúra. Porém isto já

20 No plano inicial, sob o título de “Índice”, o autor apresenta a integralidade do livro. No


entanto, muitos capítulos não foram levados a cabo – ausentes ou incompletos –, em
virtude disso, não figuram nesta edição.
21 A nota 23, referenciada nos esboços de capítulo, está sempre sublinhada a lápis vermelho.
22 Geralmente a cada capítulo, o autor seleciona da caderneta “Língua Brasileira 12” notas
pertinentes ao tópico discutido.
23 Trata-se das folhas avulsas alocadas na caderneta “Lingua Brasileira 12” sob o título “Início”.

65
Mário de Andrade

sei que é puro preconceito não só porque o belo é transitório como porque
julgam da beleza do meu estilo não em si porém comparando, o que não é
absolutamente maneira de julgar uma coisa nova.
*
Nas censuras vejo antes de mais nada a samanguice (figurado), preguiça
de tentar e sobretudo a vaidade de não ir atrás, de não dar a impressão de
ser discípulo. Tudo vaidade. Pois saibam que não tenho a impressão de ser
primeiro. E no entanto por mais que não queiram parceiros e inimigos tenho
sido o primeiro em muita coisa nestes brasis, em mais coisas que se imagina.
Não por ser o primeiro a tentar, porém por ser o primeiro a “acreditar”. Eu
tenho fé. Por isso, se dois ou três tinham tentado numas poesias umas ou
três em verso-livre, eu não tentei, não falei “Façam!”, nem “Sejamos!”. Eu
fiz um livro inteirinho. Não tentei. Acreditei no verso-livre. Eu não disse
sejamos brasileiros. Eu fui. Eu não falei: escrevamos brasileiro. Eu escrevi.
Se alguma coisa me orgulha é o poder intelectual maravilhosamente feliz
com que eu cumpro os mandamentos da minha fé. De ser o primeiro não
tenho orgulho nenhum. Não só porque ser primeiro nunca pressupôs ser
genial como também porque já vejo muita gente fazendo melhor que eu
fiz e faço. Porém no regime feioso e panema do sejamos, não fiquei não.
*
Mostrar que o perigo pra quem se mete numa coisa destas é principiar
inventando coisas sem nenhuma ligação com a realidade existente. Embora
tomando cuidado não me livrei desse defeito e é por isso que não apresento
o meu trabalho como obra de técnica porém obra de ficção. Porém sempre
uma observação inda tenho que fazer: é que estudando a psicologia dos
termos e das frases, não destruo nenhuma das leis e normas gramaticais
universais. Assim quando chamo todas as palavras de abstratas e mostro que
se tornam transitoriamente concretas não destruo a velha divisão gramatical
em substantivos abstratos e concretos, apenas faço a psicologia da palavra
como entidade universal e entidade particular. Este livro evidentemente é
pra quem já sabe não é pra grupos-escolares.
*

66
Ideias Para Capítulos Particulares

Início24
Brasil corpo espandongado, mal costurado que não tem o direito de se
apresentar como pátria porque não representando nenhuma entidade
real, de qualquer caráter que seja nem racial, nem nacional, nem sequer
sociológica é um aborto desumano e anti-humano. Nesse mostrengo político
existe uma língua oficial emprestada e que não representa nem a psicologia,
nem as tendências, nem a índole, nem as necessidades, nem os ideais do
simulacro de povo que se chama o povo brasileiro. Essa língua oficial se chama
língua portuguesa e vem feitinha de cinco em cinco anos dos legisladores
lusitanos. O governo encomenda gramáticas de lá e os representantes da
nossa maquinária política, os chamados empregados públicos que com
mais acerto se chamariam de empregados governamentais, presidentes,
deputados, senadores, chefes-de-seção etc. etc. etc. são martirizados pela
obrigação diária de falar essa coisa estranha que de longe vem. Só por eles,
os empregados governais de graduação rica, essa língua e escrita e mais
ou menos, muito menos, falada. Escrevem-a também os escritores, casta
hedionda de falsários pedantes que malempregam os dotes de lirismo
e de inteligência que possuem. Têm também os doutores, um poder de
hominhos serelepes e casuístas, sobretudo safados que muita gente imagina
falando essa moda importada, a tal de língua portuguesa. É mentira – com
exceção duns trinta ou quarenta os doutores não falam a língua oficial
nem nenhuma língua. Língua é o instrumento mais ou menos plausível
com que a gente matuta. Língua é uma expressão espontânea do homem
e ordenada unicamente pelas precisões inconscientes da fisio-psicologia
humana. Nem a língua oficial que com muito custo a gente pode fazer
entrar nesse conceito, os doutores falam e escrevem. Porque as invenções
instintivas do ser maculam na infinita maioria dos casos a escritura dos
doutores. Isso quando eles param nas cidades macotas, Rio Grande, Manaus,
Rio de Janeiro. Essa maculação fez da escritura dele uma coisa hedionda
como realidade porque é um pensamento, isto é, uma realidade psicológica
buscando se expressar sem naturalidade, sem espontaneidade de expressão.
Uma merda. Quanto aos outros doutores, os que vão parar nas cidadinhas
pingando por certas partes mais cabeludas do corpão brasileiro, esses num

24 De acordo com a indicação do autor, aqui se inserem as “folhas soltas”, esboço de ensaio
sob o título “Início”.

67
Mário de Andrade

momento se deixam possuir pela terra e pelo povo que os rodeiam, falam a
língua que vem do povo e da terra, e escrevem mais pobrinho uma língua
mais verdadeira já, em que se é certo que a influência da gramática lisboeta
demonstra o funcionamento dos pronomes e dos adjetivos, sempre uma
expressão mais pura transparece que é suor de caipira no [esto?] e brisa
vaga cheirando mato natural. A língua gramatical portuguesa adotada
violentamente pelo governo e pelo pedantismo dos literatos do Brasil é uma
língua linda, rica e meio virgem quando pronunciada do jeito lusitano e
escrita por escritor lusitano. Falada do jeito brasileiro e gramaticalmente à
portuguesa é uma coisa falsa, desonesta e duma feiura morna. Essa é pois a
língua do elemento oficial graduado do nosso país. Juntos nessa língua, que
só se encontra na minoria governamental e literária, o Brasil sendo como
agorinha já (“agorinha já” vem na boca de gente do povo em Sertões do Iguaçu
de César Martinez) falei em corpo mal costurado, tem um poder de outras
línguas representando com menos estupidez e mais fatalidade certas outras
minorias de que se compõe esta nação falsa. Tem por exemplo o italiano,
tem o alemão, tem o japonês, tem os diversos linguajares regionais que aliás
não chegam bem a formar línguas de-verdade. Tem ainda o guarani. E tem
o espanhol paraguaio de toda essa região maravilhosa da margem brasileira
do Paraná, região [ilegível] onde o português e a fala brasileira em qualquer
das manifestações dela, são inteiramente e totalmente desconhecidas, onde
só se fala o paraguaio e o guarani. Com que direito hediondo de conceito
de pátria se poderá dizer que essa região onde a gente que trabalha e sofre
é paraguaia, a língua e os costumes são paraguaios, o comércio é paraguaio
ou vem da influência argentina, com que direito hediondo essa região nós
fazemos nossa? Essa região é paraguaia, pertence à nação dos paraguaios e nós
não temos o direito de dizê-la nossa porque nada fazemos e nada sofremos
por causa dela. A vida é ação e sofrimento não é orgulho nem ambição
de grandeza. A vida é trabalho ganhando direito de vida, coisa chique e
voluptuosa. Esse trabalho, esse sofrimento, essa vida pelas regiões vastas
de sertão no Iguaçu, é paraguaia e eu me envergonho de dizer que possuo
mais dinheiro que o carecido pra viver. Essa região fala a língua hispano-
-paraguaia. Aliás o japonês de Cotia, o italiano de Abaixo-o-Piques, o alemão
de Santa Catarina e o paraguaio de Guaíra são felizes ao menos nisso que
falam a língua natural deles, se expressam com realidade. Meu dó grande

68
Ideias Para Capítulos Particulares

vai só pra esses desinfelizes que martirizados pela moda se impuseram a


sina triste de viverem sem pensamento psicológico a vida toda. As línguas
psicológicas já são instrumentos imperfeitos que, conferem os tratadistas,
representam mal e convencionalmente o pensamentear da gente. Que se
falar então dessa língua oficial que não pode ser psicológica pra nós, que é
moda pura sem transformação nem mesmo exterior nenhuma? (lamentar
esses mártires). Que resta de todas estas verificações iniciais e que com
algum exagero de descriminação unicamente representam a nossa atualidade
linguística brasileira? Tem de tudo isso que se entrechoca e sua no [esto?] de
se expressar um bafo gostoso, inda muito tenuínho é certo, que vai subindo
pro céu. Esse bafo é a fala brasileira. Fala que nasce desinfeliz coitada,
pois nunca será pura nem unida dados os erros sociológicos que formam
a pseudonação brasileira, que talvez se unifique só literariamente e então
com muito mais sinceridade e realidade venha a se tornar enfim a língua
oficial do Brasil. De que Brasil? Do Brasil que por esse tempo de então será o
Brasil e que eu não posso imaginar bem o que será. Talvez uma coisa grande
e verdadeira que terá como limites do sul o horizonte São Paulo-Paraná.
Talvez porém eu não posso imaginar o que será o Brasil verdadeiro de então.
É possível que tudo o que é o Brasil de agora continue... Isso só mesmo se
de sopetão um surto de progresso maravilhoso, de energia soberana ou de
errados sentimentos patrióticos conseguirem unificar como pátria o que
hoje está designado falsamente nos mapas como pátria brasileira. Voltem
pra fala nossa.
*
Referir o caso do português no trem de Jaú para São Paulo, que conversando
com um menino brasileiro, depois de perguntar tal pessoa em que ano
estava, perguntou:
— E o menino?
— Menino... Que menino... Ele está no 3º ano.
O menino não compreendera a pergunta e o portuga desapontou o menino
também e não chegaram à compreensão.
*

69
Mário de Andrade

Geralmente é um erro citar exemplos de chamados clássicos, gente que


viveu até quinhentos anos atrás de nós. A língua evoluciona e os exemplos
devem ser tirados dos escritores bons atuais. É incontestável que os nossos
compositores de gramáticas fazem as suas regras observando muito mais
os escritores chamados clássicos da língua que o falar dos nossos dias.
A gente percebe muito bem que se eles podem aduzir em favor das regras
deles alguns exemplos de Camões, de Vieira e de Padre Manuel25 Bernardes,
pronto, se dão por satisfeitos e estão convencidos de que a regra existe.
Basta observar um pouco os gramáticos pra perceber esse defeito grave e
primacial. Geralmente quando muito eles citam os estilistas tradicionais,
Herculano, Castilho e quando muito Gonçalves Dias e Machado de Assis os
mais patriotas. Quem que cita os estilistas naturais que buscaram escrever
com naturalidade da fala comum do tempo deles? Quem cita Álvares de
Azevedo, Casemiro, Eça, Fialho, António Nobre, e sobretudo quem cita os
vivos a não ser o caso excepcional de Rui Barbosa aliás citado mais como
tendência ou convite a tal meneio de sintaxe do que como prova deste?...

25 Nome acrescentado para facilitar a identificação do escritor citado.

70
LEXIOLOGIA
Capítulo V – A palavra

Nota 19 – Nota 20 – Nota 23


*
Distinguir a palavra das partículas sintáticas que são as preposições, as
conjunções, os artigos, os adjetivos determinativos.
*
Palavra ou substantivo. Depois vem as divisões dos substantivos em
substantivos diretos ou propriamente ditos; substantivos pronominais;
substantivos qualificativos; substantivos verbais ou dinâmicos; substantivos
modificadores ou adverbiais = Apesar disso (explicar bem como isso é
verdadeiro pelo estudo psicológico das palavras isoladas (não esquecer que
estou na Lexiologia)) aceito a divisão comum por mais clara e eficiente.
A minha sendo produto de puros amores meus. Só que tiro da denominação
genérica de Palavras, os artigos, as conjunções, as preposições que passam
a ser Partículas Sintáticas.
*
Não esquecer de estudar La vie des mots; Gourmont26.

26 Arsène Darmesteter é autor de La vie de mots: étudieé dans leurs signications. O escritor
francês Rémy de Gourmont, por sua vez, configura outra sugestão de estudo.

71
Capítulo VI – Substantivo

Nota 27 – Nota 23
*
Os pronomes são uma subdivisão dos substantivos.
*
Abstratos e concretos27. Todos os substantivos são abstratos em si, são
universalizações. Os termos só se tornam concretos quando particularizados.
Assim cada palavra pode ser concreta ou abstrata. Exemplos de substantivos
abstratos: “Postretutas e famias sacolejam” (Oswald de Andrade, “Bonde”,
Pau Brasil, p. 56). Exemplo de substantivo concreto: “Quando, Maria, vês de
minha fronte, negra ideia voando no horizonte, as asas desdobrar” (Castro
Alves, 1, p. 24). Aqui a imagem concretizou a palavra abstrata ideia da mesma
forma com que no exemplo anterior postretutas se inclui na categoria das
abstrações por não ter adquirido essência limitativa e realística. Se falo
“Quando o Brasil entrou na Guerra Grande tive um remorso curto e violento”
remorso é concreto porque está delimitado e realista. Porém no “não tive
remorso por não tomar parte na Isidora” já remorso é abstrato. “Meu forde”
é concreto. “Fordes na rua” é abstrato. “Os fordes de Pauliceia” é concreto.
*
Fazer a psicologia do “você”. Mostrar o caráter inconstante dele. Sensual mas
delicado. Íntimo mas discreto. É como se fosse um tu indireto, é como se

27 Antes desse trecho, há apenas menção ao título “Os números” e, por tal razão, suprime-se
o tópico.

73
Mário de Andrade

fosse um tu na 3ª pessoa. Aspereza do vòcê portuga com Ó aberto e o nosso


vôcê28 mais silencioso, mais em segredo, como se não carecesse ninguém saber.
*
O que caracteriza o substantivo é a sua essência de entidade absoluta, abstrata,
isolada. Pode não ter relação, o que não se dá com as outras palavras. Assim
a entidade substantiva é expressa por uma palavra só. Daí o se ligar com
traço-de-união tudo o que é uma entidade abstraível, um substantivo enfim.
Se escreve guarda-chuva, pé-de-moleque, fruta-do-conde. Da mesma forma
se deverá escrever Rio-de-Janeiro, São-Paulo, S-Paulo (subentendendo o
ponto de abreviatura), Santa-Ana-do-Livramento etc.

28 O autor enfatiza a diversidade fonética nas variantes portuguesa e brasileira do “você” a


partir do uso dos acentos distintos.

74
Capítulo X – Interjeição

A interjeição é o único remanescente esporádico da linguagem primitiva e


que permaneceu nas línguas organizadas, pra expressar os casos de sentimento
intenso por demais em que a gente perde toda organização psicológica de
civilização e de cultura, e o homem primitivo, o selvagem que a gente tem
dentro de si aparece. Quanto mais culto e mais civilizado o homem menos
interjeições tem sua linguagem. Nas línguas organizadas a interjeição não
tem qualificação nem classificação relacional dentro da frase porque ela é
um ato reflexo quase que puramente fisiológico ao passo que as linguagens
seja inconscientemente seja subconscientemente são organizações de
ordem intelectual. Nas línguas organizadas a interjeição não se organizou,
permaneceu infinitamente variável, subjetiva e individualística, também
universal (dado o seu caráter de ato reflexo) e é a única parte do discurso que
tem significação internacional por isso mesmo que isenta de organização. Por
vezes ela tenta tomar caráter nacional ou simplesmente regional como em
“Puxa!”, “Puta vida!” etc. etc. Mesmo aí, ela é de significação internacional
dada a flexão oral intensiva que a realiza. Porém mesmo essas interjeições
linguísticas estão por assim falar fora da organização linguística. Nas
linguagens organizadas a interjeição foi transformada intelectualmente
em frases de caráter interjectivo, de admiração, espanto, raiva etc. Da sua
universalidade notar o caráter expressivo da interjeição. Distinção entre
o espanto romântico e o espanto selvagem dos primitivos. A riqueza de
interjeições da fala brasileira. Temos não só “Ah!” e “Oh!” por exemplo,
mas “Ah Eh Ih Oh Uh”.

75
Capítulo XI – Partículas
sintáticas

Notar como o que eu chamo de partículas sintáticas (sintáxicas?) são


verdadeiros morfemas (ver definição de morfema em Philosophie du langage,
Dauzat, p. 212) da frase e não da palavra. Ora eu considero a frase como
uma entidade substantiva.

77
Capítulo XVII – Formação das
palavras

Nota 10 – Nota 11 – Nota 23


*
Aqui depois de Etimologia falar sobre neologismos.
*
Palavras transitórias
Ôh, as palavras transitórias, elas possuem essa riqueza sublime de sugestão
e de mistério que envolve os adventícios, os estranhos que a gente encontra
na rua... Elas não possuem essa dubiedade, essa certeza incerta das pessoas
familiares que a gente imagina de conhecer e vai, conhece mesmo porém
conhece sempre meio errado. A palavra transitória não. Ela é decisiva.
A gente toma conta dela inteirinho, conhece-a duma vez porque tudo
ignorando dela nós não possuímos senão os dados exteriores, os dados
físicos e as potências assombradas da nossa imaginação. Então cria uma
história livre e o estrangeiro apenas entrevisto é inteirinho da gente. Porém
basta refletir um poucadinho, pronto, se percebe que nada é verdade e que
a palavra transitória é ignorada. Donde veio? Quem é? Que quer dizer?
Parece que não quer dizer nada no entanto viveu que nem uma fulguração
na inteligência da gente. Ota29 vida carecida de estrangeira, vida comovida,
vida revelante, vida dum momento só... E não tem nada nela de místico, nada
que não seja bem da vida da Terra. Não possui talqualmente as palavras de

29 Trata-se de uma interjeição brasileira que “exprime admiração, espanto”. Cf.: HOUAISS,
Antônio; VILLAR, Mauro de Salles, p. 1404.

79
Mário de Andrade

vida aparentemente fixa, essa penetração, essa colher-torta do raciocínio e


dos afeiçoamentos, pela qual uma coisa se vai modificando na gente pouco
a pouco, a gente chega a querer bem o que no princípio era antipático ou
indiferente. Não, é como um desses encontros de bonde, de mostrador,
de cadeira vizinha no teatro, um olhar cruzado e simpatia ou antipatia
imediata. Se gosta ou não se gosta. Olhar que morre nascendo ou que acaba
na posse completa dum momento físico delirante. Depois ela partiu. E só
ficou uma memória esquecida. Ou um desejo doendo muitas vezes. Pode
morrer, não ser lembrada mais... Doutras vezes a gente vive buscando a tal
na multidão apressada amontoada dos períodos e das dicções. Parece que na
outra calçada... Era ela sim! Aquele boá... Não era não. Passou no automóvel
15-066. Não passou não. E como era mesmo?... Já não me lembro bem. E a
palavra transitória está bem morrida pra expressão dum autor querido ou
nossa mesma. Nasceu e teve a fatalidade dum momento voluptuoso, louco,
de criação. E a gente matutar nisso é bom que dói!...

80
SINTAXE
Capítulo XIX – Frase

Nota 5 – Nota 23 – Nota 27


*
A frase é sempre uma entidade substantiva? Observar, estudar psicologica-
mente bem isso, sobretudo em relação ao conceito de substantivo, verbo,
qualificativo. Pois senão a frase pode ser entidade verbal, exprimir ação
por exemplo “matei o bicho” ou entidade adjetiva, exprimir qualificação;
exemplo: “Está dormindo, siô!”.
*
Sobre as palavras compostas escreve Bréal “Il faut que malgré la présence de
deux termes, le composé fasse sur l’esprit l’impression d’une idée simple”30
(Philosophie du langage, Dauzat, p. 214). Ora a frase dá essa impressão duma
ideia simples. “Vá pentear mico” não se pode tirar nada, nem pôr que não
prejudique isso. Considerações em estilística sobre isso mostrando quanto
a frase literária na sua maioria infinita é impura por causa de tudo o que
a gente bota nela pra enfeitar. Citar exemplos desse ridículo na prosa de
Ronald em Estudos brasileiros. Defender o defeito na poética por necessidade
rítmica.
*
Da mesma forma que é o acento tônico que dá unidade pra palavra é o
acento principal que dá unidade pra frase e a reúne numa grande palavra só.

30 Tradução livre: É preciso que apesar da presença de dois termos, a composição impregne
o espírito de uma ideia simples.

81
Capítulo XXI – Psicologia do
pronome31

Nota 7 – Nota 23
*
Pra quem diz que só iniciamos frase com o pronome “me”, o que aliás não
teria importância pois generalizo concludentemente uma regra popular,
lembrar porém a estrofe:
Somos pobres miseráveis
Não temos nem pra comer
Pode arranjar uma sombra
Até o dia amanhecer?!...
Nos faças esta caridade
Deus há de lhe agradecer.

(História do menino da floresta, do poeta Heitor Martins de Athayde, p. 12).

Desses livrinhos editados no Recife, literatura popular em que publicaram


poetas populares como Leandro Gomes de Barros, Cordeiro Manso e
ainda João Martins de Athayde. Também no volume Bento, o milagroso de
Beberibe, vem uma Peleja de Antonio Baptista e Manoel Cabeceira, inventada

31 O autor desloca este fólio originalmente agrupado no envelope “12-G – Tratado de estilo
ou ideias para capítulos particulares” para o envelope “12-C – Me parece e outras sintaxes”.

83
Mário de Andrade

ou registrada por Leandro Gomes de Barros. Cabeceira a horas tantas canta


assim, se gabando:
Fiz Romano atropelar-se
E fiz Germano correr
Abocanhei Ugulino
Porém não pude o morder32.

32 Nota MA: a lápis azul, “usado” sobre o texto e cruzeta.

84
Capítulo XXII – Psicologia da ação

Nota 14 – Nota 23
*
Regência de verbos pela preposição de
Os verbos dever, prometer, inventar “Você inventou de fazer isso agora
aguente”; “Prometi de ir porém não contava com a doença”; “Você deve
de fazer isso”.
Projeto da regra – Nos verbos seguidos de outro infinito e que incorrem
na significação de estar obrigado a deve ter havido contaminação: Dever
por Estar na obrigação de; Inventar por Lembrar-se de; Prometer por ?

85
Capítulo XXV – Pontuação

Hífen
O hífen enfraquece o volume da palavra lhe diminui a plasticidade. Torna
mais lenta a visibilidade, e intelectualiza criticamente a compreensão da
palavra chamando a atenção pros seus componentes. Ora a palavra depois de
ter entidade própria deixa de ter sensorial e sensitivamente uma composição
pra se tornar um dinamismo integral e único. Vive só e vive por si. Se é
certo que tomada isoladamente ela faz nascer um dilúvio de associações de
imagens e de ideias de toda casta, lirismos curiosos que nem mostrei em
poemas tais como “Flamingo”, “Escrivaninha”, “Jorobabel”33 etc., dentro dum
pensamento ela vive integral, sem decomposição, sem composição. Os alemães
é que praticam racionalmente jamais empregando o hífen intelectualista,
gramatical e prejudicial. Se de fato na fala da gente carecemos às vezes dele
pra evitar pronúncias erradas e mesmo facilitar a compreensão que nem
em sub-literatura pra não ficar a sílaba bli que estragava a história, as mais
das vezes o hífen é desnecessário e pau. Deve desaparecer o mais possível
do corpo das palavras. Nada de guarda-chuvas! Empreguemos guardassois.
No entanto tem um caso corrente em que o hífen é que traz a entidade
do vocábulo à mostra. Nos compostos de 3 ou mais vocábulos e partículas.
Máquina-de-escrever, sala-de-espera que um meu amigo alemão chama de
sala-de-esperança. Engano providencial.

33 Os três poemas autorais integram o livro Losango cáqui ou afetos militares de mistura com os
porquês de eu saber alemão (1926).

87
ESTILÍSTICA
Capítulo XXVI – Frase ou verso

Nota 21 – Nota 23
*
Falta da vogal muda no brasileiro e o decassílabo passando por isso a
endecassílabo legítimo, que nem em italiano.
*
Nas Mil e uma noites (Douce amie, p. 83) está dito: “La prose c’est de la broderie
sur soie, et les vers sont des colliers de perles34”.
*
Ver considerações que devem entrar aqui e estão na folha solta igual a esta:
“Frase” Capítulo XIX, Sintaxe.
*
Folha solta “Pensamento e frase”35.

34 Tradução livre: A prosa é o bordado sobre a seda, e os versos são colares de pérolas.
35 No manuscrito, não há fólio com esse título.

89
Capítulo XXVII – Figuração

Nota 23
*
Elipse – Pleonasmo – Anacoluto – Imagem ou Tropo
*
Estudar a imagem em Catulo, e na poesia legitimamente popular. Estudá-la
nos índios Poranduba, contos dos Caxinauás, poemas primitivos citados
[junto?] os poemas de Anchieta. Estudá-la nos românticos e nos contos
populares.

91
Capítulo XVIII – Vícios

Atacar os arcaísmos, as palavras rebuscadas e pedantes, os termos científicos


e inúteis desque o livro não seja técnico.
*
Na realidade não tem vícios de linguagem. Só tem escrever bem ou mal.
E notem que escrever bem significa escrever expressivo e não escrever bonito.
E principalmente na literatura que a boniteza é uma consequência. Quem
faz intencionalmente a boniteza, pode conseguir o pomposo, a cadência, o
brilho, a sonoridade porém tudo isso são impressões que a boniteza deixa
atrás de si, não são a própria boniteza. E isso é de deveras tão verdade que os
escritores que em prosa procuram escrever bonito, um Álvares de Azevedo,
um Euclides da Cunha, um Ronald de Carvalho, sempre se enganaram a
respeito da Boniteza e em vez dela realizaram o deslumbramento mais
facilmente perceptível, mais dinamicamente imediato que nos lembra a
Boniteza: pompa, luxo, brilho, ardor, sonoridade, cadência, chiquismo.
Nenhum foi em busca da lealdade, da familiaridade, da intimidade, da graça.
Procuraram o que era mais fácil de achar. O principal vício de linguagem é a
demostração imediata que o indivíduo procura escrever bonito. “Bucentauro
dogal num canal de Veneza” é vício de linguagem. Eis um trecho de Ronald
de Carvalho todo ele construído de vícios de linguagem: (citar toda a página
169 dos Estudos Brasileiros I, e um pouco da página seguinte). Tudo é poesia
aí, poesia falsa, com ideias críticas de fantasia ou quando não são fantasia
pura, são ideias que em vez de aparecerem com a sua fisionomia natural
puseram máscara e um vestido, puxa! Que custou 22 contecos. Não vale nada.
*

93
Mário de Andrade

Neologismos Vulgares
O que tem de mais bonito pro homem é a realidade de presença dele. Carece
viver com inteireza o momento que passa e se adaptar a ele recebendo tudo
o que ele inventa pra expressar a sua intensidade passageira. É ridículo e se
enfraquece aquele que se recusa a empregar esses termos e essas expressões
cheias de vida que nascem e morrem falenamente: um brilho excepcional, vivo
e puf! Já se acabou. Foram um ano, dois, às vezes dez de existência e só isso.
As expressões duma língua mudam rapidamente, mudam constantemente
e em pouco tempo já são outras. Carece aproveitar o seu momento de vida
oral e se expressar sem acreditar que sejam vulgarismos nem se importar
de serem falenismos, falas como “cutuba”, “o tal de Mellinho”, “pra burro”
etc. Os que se recusam a esta vivacidade tão expressiva, tão expressiva
sobretudo porque é a constância do presente, sob pretexto de que são
expressões vulgares, são transitórias, e não se encontram nos clássicos das
épocas diversas, desconhecem todo o poder de vulgarismos que está nos
clássicos e principalmente se negam a si mesmos com essa mania de escrever
em expressões que mantiveram direito de eternidade através de Camões,
Vieira, Herculano, Gonçalves Dias, Machado de Assis e Rui Barbosa, o mais
bonito direito do homem na Terra que é o direito de envelhecer e se cobrir
do respeito da velhice venerável. A gente carece envelhecer. A velhice não é
somente uma das essências da genialidade como é também um dos caracteres
da nobreza humana. E isso é tão certo que estão caducos de antemão,
estão corocas e aluados os que bancam de clássicos sem terem vivido pela
expressão oral o momento deles. Só os que vivem presentes no tempo têm
direito de envelhecer. Envelhecer não é o mesmo que ser coroca e caducar.
Coroca é a lua que às vezes a gente enxerga às 8 horas da manhã, caduca a
lua branca das 16 horas. São ridículas e inúteis até como decoração. Porém
o sol envelhecendo da boca-da-noite esse é venerável, é velho e conserva
com drama comovido o seu presente antigo. Isso é envelhecer.

94
Capítulo XXIX – Prosa e poesia

A utilização nacionalizada do lugar-comum.“As folhas do mato acreano”


por “mais inumeráveis que as areias da praia” que é universal. Em todas as
poesias, histórias folclóricas as variantes são condicionamentos nacionais,
geográficos etc. Assim a utilização do lugar-comum nacionalizado é um
benefício. Torna inconsciente a permanência da nossa vida geográfica e
racial dentro da personalidade expressiva.
*
Estilo
Estilo nobre e estilo familiar – não há razão pra distinções como esta
mais. O homem tem de ver um reflexo da sociedade e o estilo com todas
as suas fatalidades subjetivas e pessoais, tem de ser social ou socializável.
E no tempo de hoje tem de ser socialista ou comunista refletindo o povo.
Senão o escritor se torna um extrapedantemente [pomposo?] e isolado na
torre-de-marfim. Atacar aqui os extras. O estilo familiar é o único estilo.
A aristocracia intelectual, única possível. Não se mostra na vestimenta,
porém na elevação ou na utilidade das inteligências. O estilo familiar é o
único possível e já basta a estilização fatal proveniente não só dos tiques
pessoais ao modo de expressão de cada um como a sistematização necessária
e lógica que a escrita possui inerente a si pra darem a esse estilo familiar, ou
melhormente falando, esse estilo natural aquelas diferenças essenciais de
manifestação pelas quais toda escrita se diferencia de qualquer falação ou
conversa. Nessas estilizações e sistematizações está o que evita as vulgaridades
e as repetições da fala quando transposta em escritura e nisso a ascendência
aristocrática desta sobre a primeira se manifesta e determina. O estilo
nobre conduz fatalmente à expressão preconcebida e o que é muito pior à
expressão sem expressividade, bamba, romba e sem pontaria. Dentro dessa

95
Mário de Andrade

familiaridade, dessa naturalidade geral do estilo é claro que ele se apresenta


um despropositado de modalidades provindas da ideia que tem de falar,
todos porém com a mesma chaneza, sem a mínima preocupação de parecer
nobre, com a mesma ignorância de si mesmo que é o único dom verdadeiro
da nobreza e da elegância. Com a mesma naturalidade o elegante de verdade
veste pijama e dorme, brim-de-linho e aplaude o Paulistano, esmoque e
janta no Esplanada, casaca e dança no baile desta senhora.

96
Capítulo XXX – Psicologia da
fala brasileira

Nota 2 – Nota 3 – Nota 4 – Nota 17 – Nota 25 – Nota 29 – Nota 23

97
Ideias Gerais Sobre Língua
Língua Brasileira
Inda não existe. No entanto na pronúncia temos já uma língua inteiramente
apartada da fala portuga. Essa pronúncia e toda a fenomenologia fonética já
nos teriam levado pra outra fala se não fosse reação erudita. Os benefícios e
os males da erudição. A falsa erudição que não tem coragem pra ir pra diante
pela observação dos fatos, porém se orgulha de mostrar que ficou pra trás
por saber o passado e ter lido nos livros. O fato é que se nossa fala oral se
diferencia bem já da portuga, então língua literária é que não temos mesmo
nada de nada porque mesmo um Castro Alves, um Álvares de Azevedo, um
Alencar, um Machado de Assis, um Monteiro Lobato, um Ribeiro Couto,
um Prudente de Morais, neto, pra ir até os mocinhos aparecendo, que
escrevem numa fala desprevenida de gramática clássica, e bem brasileiros
na prosa, sem querer, inconscientemente se deixam levar pelas tradições
adquiridas na escola e no convívio dos livros. E dessas tradições a mais pior
é o preconceito dos olhos. Os olhos... Mal danado que eles fazem pra gente...
Já miram dum jeito a coisa escrita. Veem de outra, acham feio. E levam a
gente a afirmações como essa que tanta gente me faz de que não fala pra e
sim para. Quando lê, sei que lê para. Porém é incontestável que a dicção pra
é geral e até geral não só entre brasileiros como até entre portugas. Porém
não discuto fatos especiais agora. A verdade é que a gente não possui ainda
uma fala brasileira distinta. A gente inda está naquela fase de desagregação
da fala portuga em que a fenomenologia poucas normas gerais apresenta.
Tudo se resume a fenômenos pessoais. Um fala assim, outro fala assado. Por
exemplo a fala italo-luso-brasileira de São Paulo. É incrível o desperdício
de fatos individuais que a gente pode colher. A deformação cômica obtida
pela literatura de Juó Bananere, a própria fotografia instantânea com que
Alcântara Machado codaquisou certas expressões individuais “Amassou
o bonde”; “Escuta só o frio” (aliás a meninada italiana tem propensão
pro escuitar com i) e outras mais gerais “Se o doutor me promete ficar
quieto — compreende? — e o negócio etc.” (Brás, Bexiga e Barra Funda,
p. 128)36 representam fatos mais de grupo ou sempre puramente individuais.
Os ítalo-brasileiros falam coisas extraordinárias. Fiquei bem uns seis meses
freguês dum barbeirinho ruim das Perdizes só pra escutar a fala dele que
era uma gostosura de imprevisto com os seus “soddisfeito”, “quatros dia”

36 Incluído título da obra para facilitar a identificação.

101
Mário de Andrade

etc. etc. A fala brasileira inda está na fase de desagregação individual. É o


que, sob o ponto-de-vista linguístico, justifica a fala que emprego na minha
literatura, fala-experiência, fala pessoal com codificações discricionárias
pessoais, e que portanto mais pessoais mais se tornam artísticas.
*
Uma constatação importante é esta a que cheguei: não tem “brasileirismos”.
Desde que um fulano fale uma palavra e essa palavra ou esse modismo se
generalize, ele faz parte da língua. Assim os chamados brasileirismos por
simples bobagem de comodismo gramatical não são brasileirismos nem nada,
são palavras, sintaxes novas incorporadas à fala portuga e portanto fazendo
parte dela legitimamente. Pertencem à língua portuguesa. Assim não é contra
a língua portuguesa que eu reajo. Eu só raciocino isto: a gente é um povo livre,
um povo com entidade social, falando a sua fala. Ora que que tem que ver
essa fala com o português! É nossa fala, pouco me importa agora que venha
dum pai portuga com tangente pelas fêmeas negras e tapuias. É minha fala.
É minha? É! Então falo o brasileiro, observando o brasileiro que se fala no
Brasil e introduzindo nele minha individualidade.
*
No ponto sobre os que falam que os que aceitam e praticam também a mesma
tentativa são meus discípulos ou imitadores. É uma crítica leviana e duma
pretensão ridícula de impertinência. Começa por que nada que emprego
é meu. Se não tivesse os poetas românticos meu “pra” seria meu. Porém
nesse caso o pra não existiria. É incontestável que as minhas sistematizações
brasileiras de qualquer espécie caracterizam por demais um estilo literário.
Porém isso é circunstância passageira que não auroriza absolutamente a
censura. Desque a gente empregue normalmente certos motivos que eu
quase que sozinho empreguei literariamente um tempo essa característica
desaparece. E daí é que quero ver aonde tais críticos irão buscar nos que
concordam comigo as provas de imitação.
*

102
Ideias Gerais Sobre Língua

Os “meus alunos”:
Se alguém se mete trabalhando a fala brasileira em sua estilização literária,
é lógico que vai ficar parecendo um pouco comigo porém isso só prova
uma coisa: é que a fala brasileira é um fato pois que se um se parece com
outro é porque ela já possui certa unidade e certo caráter individualmente
original e dela só. A associação de imagens que faz com que a gente lendo
estilização literária de fala brasileira lembre o primeiro ou os primeiros que
fizeram isso a sério (falam “no pra do Mário” como se isso me pertencesse,
e já não estivesse em porcentagem comovente nos românticos do Brasil) é
uma associação fatal. O problema inda está queimando na lembrança dos
que perceberam as primeiras tentativas, estas são raríssimas por enquanto
e inda não se generalizaram, quando a gente topa com uma logo pensa na
outra que já viu, é associação fatal e não tem validade crítica nenhuma
como prova de imitação vulgar. É uma concordância apenas, fulano viu
alguém trabalhar num problema e dar algumas soluções deste, se concorda
com elas, usa-as. Porque concorda. Se eu afirmo que “um e um são dois”
não é porque imite ninguém mas porque concordei com a verdade que o
professor de aritmética me ensinou. Se fulano escreve “que deve-se”, “Sente
nessa cadeira”, “me acho”, “vou na cidade”, “falou pra mim” etc. etc., não é
porque me imite porém porque concorda com o que ele imagina verdades
da fala brasileira, é que eu imitei da fala oral dos outros. Outras causas que
impedem a generalização atual e rápida da fala brasileira:
A vaidade de querer ser o primeiro;
O preconceito do passado;
A preguiça de mudar uma sinceridade do costume por uma sinceridade
nova inda só na inteligência;
A falta de conhecimentos;
A preguiça de aprender;
O medo da moda não pegar e as obras perigarem não durando;
A vontade de ser eterno e clássico.
*

103
Mário de Andrade

Evolução da língua e da sociedade no Brasil


(Citar Meillet na cita, Philosophie du langage, p. 192)
Brasil colônia nós falamos o português de Portugal. O estilo de Santa
Rita Durão, Cláudio Manuel Gonzaga se confunde com o estilo da língua
literária de Portugal. Fase de absorção em que o Brasil era colônia, domínio
dominado por Portugal.
Brasil romântico, prurido de liberdade, primeira liberdade, a política, a mais
consciente de todas as liberdades, e por isso mesmo que consciente um pouco
forçada. Nesta fase pelo milagre da libertação nos falamos o brasileiro, e a
língua falada pelos nossos poetas, com a ligeira exceção de Gonçalves Dias
(e assim mesmo!) é a língua falada pelo povo. Fase caótica primitiva em
que o Brasil é livre, cai no patriotismo indianista, se afasta inteiramente de
Portugal e dá as tendências essenciais da futura fala brasileira.
Brasil civilizado. Com a segunda metade do século XIX sobretudo com o fim
do século, Brasil republicano, o país vai se civilizando. É a fase consciente de
imitação em que nós nos apropriamos da civilização alheia por imitação em
todos os domínios. Republicanizamo-nos das adaptações com a civilização
americana que era republicana. No domínio da língua a imitação inda é mais
nefasta. Queremos falar, não falar bem, mas falar certo. Desprezamos os
chamados erros de gramática dos românticos e quisemos falar o português
da metrópole como o ensinavam não os escritores propriamente porém
os gramáticos de lá. Não falamos como na fase colonial o português de
Portugal, dos portugueses, porém o português gramatical. Basta examinar
os escritores portugueses e brasileiros do final do século XIX e sobretudo
dos primeiros 20 anos deste século XX pra notar que tem entre eles uma
distinção profunda de estilo, são inconfundíveis, os portugueses, mesmo os
mais estilizadores como Latino ou Antero de Figueiredo se caracterizando
pela naturalidade ágil e facilidade saborosa (Eça, Fialho, Ortigão) de dicção
e nós pela dificuldade, pelo peso, pelo pernosticismo complicado que
chegou ao clímax com certos acadêmicos e sobretudo com certos bobos
da Revista de Língua Portuguesa. Escrevíamos mal porém nunca ninguém
soube tanto as regras gramaticais do português como esses escritores. Se
não me engano foi Cândido de Figueiredo que escreveu com razão que
os brasileiros estudavam mais a sua língua que os portugas. Essa fase de
civilização em que falamos conscientemente a mais desumana língua que

104
Ideias Gerais Sobre Língua

é possível se imaginar, duma espécie de língua do P, vápá planpantarpar


bapatapataspas, língua de criação consciente, de cultura consciente, de
expressão falsa, inteiramente divorciada das nossas condições naturais quer
fonéticas, quer semansiológicas, só se explica e só se perdoa, mesmo com
os seus maiores representantes, Machado de Assis ou Rui Barbosa, só se
perdoa pela natural evolução, sociológica que sofríamos e que impunha a
gente um período de importação estrangeira, de doiramento exterior das
nossas coisas públicas. Doiramento pra inglês ver, coisa da muita precisão
num artigo novo e sem muita aceitação no mercado como era e em muitas
condições inda é o Brasil diante do universo. Sossegados com a aparência
bonita parece que agora uma fase nova principia em que a civilização vai
ser substituída pela cultura em que sob o ponto-de-vista de língua, passados
os exageros característicos das primeiras tentativas, exageros a que a gente
é levado naturalmente pelo entusiasmo da descoberta, a gente voltará a
escrever a língua que fala, chegando inconscientemente um dia a conjugar de
novo sob o ponto-de-vista da expressão verbal, o povo e a elite escrevedora.
(Estudos pra uma Gramatiquinha da fala brasileira)

105
Ideias Gerais
A contradição de que eu não falo como escrevo é das mais rápidas, mais
tolas e pueris que conheço. Ninguém nunca não falou como escreve. E se
qualquer escritor, mesmo nos mais aparentemente naturais, se a gente os
frequenta põe logo reparo na distinção que existe entre a maneira deles
escreverem e a de falarem. Sempre em todos os tempos teve duas línguas,
a língua geral e a língua literária, aquela falada e esta escrita. Sei que esta
distinção inda pode ser mais especializada e que são mais numerosas ainda
as línguas simultâneas duma fala só porém essa divisão primeira me basta
pra argumentar. Enfim ninguém escreve como fala e eu sou como todos.
Porém sucede que a maioria pra escrever veste fraque, alguns casacas e o
resto o paletó de domingo, ao passo que eu me dispo até do paletó semanal.
E não é falta de educação não. Porque se uma tentativa destas se generaliza
toda gente creio que está em condições de compreender que daí em diante,
maleducado vai ficar o que veste casaca, fraque ou paletó domingueiro, ao
passo que o em mangas de camisa é que fica o que está certo, o que está com
todos, o que está na moda. E a linguagem em mangas de camisa é que fica
a língua literária, a língua eternizada e a língua nobre duma raça num dos
seus períodos. Agora que mostrei o que tem de desarrazoado nos outros
e em mim igualmente, mostro por onde me separo razoavelmente deles.
A língua literária dum povo, a língua escrita, estilizada, enfeitada, não passa
dum dos muitos preconceitos fatais sem os quais não existe vida social. O que
eu faço pois, e sei muito bem disso, não é senão substituir um preconceito
por outro. Porém o meu preconceito é mais útil, mais humano e mais nobre.
Mais útil mesmo do que os que já escrevem o brasileiro das cidades cultas
ver um Ribeiro Couto, um Couto de Barros etc. porque ajudo a divulgar e a
unanimizar na gente culta ou europeamente, ou antes universalmente culta
do meu povo, os modismos, as expressões, a psicologia da gente inculta desse
mesmo povo meu. Modismos e psicologia e palavras, fortes, francas virgens
e incontestavelmente enriquecedoras e ignoradas. Aliás é falso que mesmo
os dois Coutos e os mais que escrevem com a naturalidade aparente deles,
representem a fala oral da gente praciana e culta brasileira, porque esta gente
vive enchendo a boca de “pras”, de “me pareces” etc. etc. e eles jamais não
escreveram isso. Por causa das gramáticas de Lisboa que adquiriram como
preconceito incontestavelmente portuga desde os “bancos escolares”. Minha
tentativa é útil. E é humana porque eu generalizo numa só, universal, sem
classes, unitária e única, e unânime a alma do meu povo. Esses regionalistas

109
Mário de Andrade

ou “caipiristas” orgulhosos que escrevendo contos-da-roça botavam uma


escrita na boca dos caboclos e outra limpinha e endomingada nos períodos
que propriamente lhes pertenciam são uns vaidosinhos de si. Vaidosos
embora não ponham reparo na própria vaidade. Vaidosos pela separação que
punham e salientavam entre os caboclos e eles. E tolos não compreendendo
a comoção forte humana das expressões chamadas de incultas. E frouxos
acima de tudo porque incapazes de botar mãos na trabalheira ingrata, dura
e de inteiro sacrifício pessoal de organizar, codificar, qualificar, escolher,
fecundar e cultivar essas plantinhas do mato pra que fiquem mais cheirando,
mais brilhando e mais engrandecidas pela universalização. Falei de inteiro
sacrifício pessoal... Torno a falar sim porque carece que toda a gente fique
sabendo que não tenho a mínima pretensão de criar a língua literária de
deveras brasileira não só porque sei bem conscientemente das minhas
forças como sei que se mesmo elas fossem as dum gênio guaçu, nunca
nenhum gênio criou uma língua humana porém apenas e tão somente um
estilo pessoal e mais do que isso apenas a mão de zinco pregada na parede
da vendinha da esquina e indicando o “É por alí” dos grandes caminhos
humanos. Juro que sei que minha escritura toda morrerá porque me metendo
num mato virgem são grandes, enormes os meus descaminhos e extravios
de exageros, contradições, erros, inviabilidades. Que bem me importa isso
tudo. Me dei o destino que me competia e é por isso que enquanto toda
a gente se enfara, se amola, se bestifica, se queixa e se sente infeliz eu sou
e proclamo que sou feliz. Eu fiz da minha arte um elemento de utilidade
transitória e é por isso que mais que todos num momento dado ou mesmo
o único nesse momento eu fui o mais tradicionalmente artista de todos
os artistas brasileiros. Porque a pedra de escândalo que fui, era apenas e
todos perceberam isso um instinto alegre de vitalidade, uma confissão de
coragem, uma demonstração de verdade sem acomodações com nenhum
passado que não fosse o presente. E porque se não fui exemplar fui uma
lição, coisa muito mais vital, mais ardida e mais humana que o exemplo.
O meu destino é esse e é nobre. Meus livros morrem e eu lhes dou me rindo
sem nenhuma saudade o Requiescat37. Assim foi com o verso-livre, assim
foi quando dentro do uso à tonta do verso-livre repus o uso da métrica,

37 Trata-se da fração da frase latina Requiescat in pace (RIP), que significa “descanse em paz”.
Cf.: HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles, p. 1650.

110
Ideias Gerais

assim foi com a nacionalização impessoal do assunto e da inspiração desde


Pauliceia e especialmente as “Enfibraturas do Ipiranga”, e ainda assim foi
com a fala brasileira de que a primeira pretensão minha já vem no “Prefácio”
de Pauliceia teoricamente e praticamente nos versos dela. Tudo dentre os
modernistas, se entende. Porém parece que estou reivindicando honras e
glórias... Não foi essa minha intenção. Apenas pretendi mostrar que me
dei o destino da mão de zinco ou pintada das vendas e das encruzilhadas.
É POR AÍ. Aí e não aqui entende-se. Eu mostrei direções e não imitações.
Jamais não tive a vaidade idiota de que os outros caíssem na imitação de
mim. Porém que seguissem o caminho que me afigurou bom. Bom pra mim
quer dizer justo e humano. Universal. Substituí pra mim um preconceito
por outro. Porém sou brasileiro e substituí dentro de mim brasileiro um
preconceito luso por um preconceito universal e humanamente brasileiro.
*
Todas as palavras de todas as línguas do mundo pertencem à fala brasileira.
Se entenda: a fala brasileira é um meio que a gente brasileira possui pra se
fazer entender abstratamente portanto é lógico que um meio de expressão
humana não pode ser objeto de nenhum diletantismo. A língua tem de servir,
isso carece jamais não esquecer. Assim quando a gente brasileira empregar
uma palavra de outra língua essa palavra deve de ter uma justificativa
expressional ou moral. Por exemplo se observe as palavras Constatar e
Evoluir que falam os puristas não pertencem à lingua portuguesa de que
a da gente provém por linha reta. Essas palavras podem não se justificar
expressionalmente porém se justificam moralmente. Pra me exprimir não
careço de Evoluir porque possuo já Evolucionar, nem Constatar por causa
de Verificar. Mas tem no homem certas precisões obscuras ou por outra
certas transitoriedades provindas do preconceito, do hábito, de muitas coisas
que são humanas e fatais. O erudito que se opõe a elas faz papel de besta.
Devido a essas precisões e transitoriedades as palavras evoluem, alargam ou
diminuem de significação. Um ou outro cheio de leitura francesa suponhamos
que principiou estabanadamente empregando o verbo Constatar pelos seus
sucedâneos portugas. Outro fez a mesma coisa no Porto. Outro em Recife
etc. e tal. Quem pode afirmar mesmo que isso foi só por leviandade? Eu
não atiro a primeira pedra não. É possível que quando o emprego do verbo
Constatar principiou, já seus sucedâneos portugueses estivessem (não se pode

111
Mário de Andrade

explicar muitos casos psicológicos da Semântica) estivessem restringindo


o sentido. Daí uma precisão inconsciente porém imediata e fatal de criar
uma palavra que pudesse significar Constatar. O leitor de francês empregou
a palavra Constatar. Sucedesse o caso assim ou não, o certo é que tinha
indiscutivelmente precisão pra língua humana portuguesa dessa palavra. Ela
se generalizou num átimo, e até quem não sabe francês a emprega hoje. Bom.
Eu sei português e sei que Constatar não tem justificativa nos quinhentistas
que escreveram bem (aqui sinônimo inteirinho de bonito). Sei que o povo
em 1628 não careceu dessa palavra pra se exprimir. Sei pois coisas históricas
e gramaticais. Sou cheio de sabença. E sei que em 1928 já a palavra Constatar
é de meu povo. Se principio combatendo esse costume, fico anti-humano,
menos expressivo e menos social. Sou pernicioso falando Verificar ou coisa
que o valha no instante em que Constatar é o lugar-comum do meu povo, é
a realidade expressiva dele. Eu que não tenho a mesma inconsciência poderei
ficar completamente satisfeito com Verificar. Porém eu me expresso pros
outros e não pra mim mesmo. Tem por isso pra mim a obrigação moral
de me sujeitar aos caminhos que minha gente segue. É incontestável essa
precisão moral de se humanizar e não se separar do rebanho na expressão.
Hoje em dia quem falar Evolucionar por Evoluir não passa dum pedante,
dum semostrador, dum erudito. Humanamente falando ele é imoral. Quanto
às precisões expressivas de se usar palavras de outras falas, elas são muitas.
Por exemplo melting-pot, hall (ou hol, abrasileiradamente) futebol etc.
pertencem pra fala brasileira tanto como mão, parafuso e jaçanã. Aqui foi
a coisa existida e sem acepção brasileira que justifica a expressão. Se eu falo
também: “na hora amarela no Nilo o felá sua modorrando”, bem que podia
não empregar felá, botar um circunlóquio, ou Camarada, ou Colono, ou
Campônio. Porém empregando felá a frase fica logo egipciada, muito mais
até que pelo emprego do termo Nilo. Fui expressivo. E tem outros casos
ainda como até o simples embate de sons... Me lembro dum maluco dum
poetastro francês que andou por aqui pornografando e que enrabichado
pela palavra luar a empregava em vez do horroroso clair de lune nos versos
dele. O poeta era ruim, os versos detestáveis porém o indivíduo era homem
e desta vez teve razão. E uma notinha explicativa, pronto, a palavra fica
compreensível pra transitoriedade afetiva ou artística de caso.
*

112
Ideias Gerais

De fato uma tentativa que nem a minha em parte grande vai de encontro a
um fenômeno histórico da fala humana que já me parece possível de terminar.
Os filólogos andaram se preocupando um tempo e andam ainda em entroncar
as falas diferentes em poucas línguas mais e talvez seja possível reunir estas
numa fala primitiva única. Se deu incontestavelmente à medida que o
mundo civilizado histórico se alastrava uma ramificação e desmembramento
contínuo de falas raciais, coisa que com a verificação das falas americanas já
fundamentalmente distintas das línguas neolatinas e inglesa pelo espírito,
a gente pode falar que culmina nos tempos de agora. Porém38 como todo
apogeu já traz na bagagem o micróbio da própria destruição dele, se nota
agora já uma tendência absolutamente contrária à ramificação das falas.
A tendência nova principiando é justamente uma concentração e a orientação
pra volta a umas poucas línguas somente, anglo-americano, francês, alemão,
espanhol. O francês na arrancada final pra ramificação universal das falas
se tornou língua oficial do mundo. Fenômeno histórico perfeitamente
explicável que é mais uma do desmembramento: careceram duma língua que
humanizasse o mundo e como o francês por certas razões estava na ponta,
se serviram fatalmente do francês. Porém a tendência pra concentração se
manifesta e sucedeu que o francês por muitas razões ainda perdeu a primazia
que tinha. Muitos falam levianamente que o inglês vai tomar o lugar de
língua universal... Está certo porém isso é metade da verdade, só. De certo
que pras relações humanas sempre que terá uma fala mais ou menos aceita
como oficial porém isso não basta pra explicar o fenômeno e a barafunda
concentrante de agora.
Não é o inglês só não que derroca a primazia do francês porém o alemão
cujas palavras também já comparecem com muita frequência na fala de
outros povos, que toda a gente principia estudando mais. É o espanhol
preocupando o universo por causa do peso sulamericano etc. É possível que
duma futura concentração em, e sobretudo, mistura de poucas falas se venha
universalmente a adotar uma língua única porém esses futuros hipotéticos não
podem ter valor crítico pra minha tese de momento. O que vale constatar é
mesmo só que manifesta-se hoje a tendência não pra universalização duma

38 Ao continuar o texto no verso do fólio, o autor não completa a palavra, deixando escrito,
no anverso, apenas “Po-”. Conjectura-se o uso do “porém” pelo teor do período e por sua
constância no manuscrito.

113
Mário de Andrade

língua só (inglês) porém que umas 4 ou 5 línguas principiam preocupando


cotidianamente o ato humano universal, a influenciarem ele portanto. Ora
diante disso, qualquer tentativa prática de mais seccionamento que nem a
formação da fala brasileira seccionada da portuguesa é mais idealismo pra
cima do mundo, e um verdadeiro esforço passadista, no valor integral deste
termo mal-usado. E não tem dúvida que é. Porém não é possível a gente
não aceitá-lo porque fenômenos desses duram séculos e atilhos de séculos e
repugna a toda realidade humana e nacional que fiquemos seccionados da
nossa realidade e esperando que o fenômeno concentrante se dê pra então
adotarmos uma das línguas troncos futuras. Isto inda seria mais idealismo
ou, melhor: isto é que seria idealismo e panemice. A formação e estabilização
duma fala brasileira até viria corroborar na tendência concentrante apenas
vagamente esboçada por causa que a acentuação da mixórdia implica
necessariamente a reação contra ela e mais uma fala implica maior precisão
de poucas línguas gerais que seriam então obrigatórias pra todo indivíduo
universal. A tentativa de formação completa duma fala brasileira vai de
fato contra a possível tendência universal de agora porém ao mesmo tempo
ajuda essa tendência. É um “contra” propício.

*
Qualificativos
Em nossa fala (na fala da gente) o qualificativo vem quase sempre depois
do substantivo. Isso se dá porque na nossa língua (com exceção dos cultos
e semicultos) quando a gente fala as palavras inda possuem valor real e
não puramente literário, sonoro, artístico, isto é de enfeite quer rítmico
(artistificando o cadenciar da fala) quer sonoro (artistificando a melodia
da fala) quer luminoso (artistificando o colorido da fala). Assim quando o
caipira fala num “campo grande” é porque o campo é guaçu mesmo, não é
como o literato que fala em “grandes campinas” coisa que a gente lê sem
refletir nem por reparo no valor modificador de “grandes”. “Campo grande”
assume pois a valência duma entidade substantiva, duma palavra só em que
a parte mais geral da entidade vem na frente e a parte particularizadora vem
depois lhe completando a significação. Eis a diferença. O qualificativo nas
unhas dos literatos e dos cultos perdeu quase que todo o valor. Não pertence

114
Ideias Gerais

mais pra fala, isto é, pra expressão duma ideia, se tornou enfeite puro.
E que a anteposição do qualificativo é coisa de gente culta, se pode observar
até estudando certas entidades substantivas que nem “grande homem” e
“homem grande”, “boa mulher” e “mulher boa”. Em “grande homem” e “boa
mulher” formas cultas se entende coisas subjetivas, qualidades que o povo
dirá por eufemismos? Circunlóquios etc. Em “homem grande”, “mulher
boa” (brasileirismo) temos qualidades físicas, coisas objetivas, tamanho de
marmanjo e gostosura de corpo das cunhãs. Embora o povo careça mais de
grandes-homens que os cultos e os literatos ele nunca não falará que Dom
Pedro II, Catulo Cearense, Carlos Chagas foram ou são grandes homens
porém agradecerá mais lírico ou mais objetivo, falando que “Dom Pedro
II foi um santo” ou foi “um homem santo”, “um imperador santo”, nunca
falará “um santo homem”, “um santo imperador”. Catulo será “um cantador
de marca”, “um cantador grande” (Alexandre terrível, Castro forte), Chagas
foi “um homem bom”, “um curandeiro de primeira” etc. etc. Isso quando
venha a ter conhecimento de homens de valor tamanho...
Agora: não tem dúvida que também muitas vezes o próprio povo emprega
o qualificativo na frente do substantivo. Isso na maioria dos casos sucede
quando o qualificativo é de expressão essencialmente abstrata, quero dizer
não modifica objetivamente a entidade. Jamais um homem sem preconceito
não dirá “uma feia dona”, “uma boa (no sentido físico) mulher”. Sucede
porém às vezes que fale “num bom imperador”. Porém mesmo isso é raro.
Em geral quando antepõe o qualificativo o povo o substantiva logo falando
que “Dom Pedro foi um bom de imperador” ou falando no “valente do
gatuno”. Também antepõe o qualificativo por força expressiva, quando ele
assume uma importância excepcional: “Maria deu um baita soco na chuva
e caiu na prantina do amor”.

*
Explicar bem o que chamo de “povo”, é o desprovido de qualquer preconceito
ou influência literária.
*

115
Mário de Andrade

Esboço de carta a Ronald de Carvalho39


A língua40 foi feita para servir. E nada mais. Até o século XIX jamais se fez
da escrita uma obra-de-arte. A língua era o meio para construir aquelas
obras de arte que são mais especializadamente da inteligência, isto é aquelas
em que a sensibilidade é desenvolvida por juízos e ideias. Assim a língua
era direta. Não valia por si mesma. Era ancila e servia. Assim ela conseguiu
tornar-se a máquina admirável e perfeita justamente nos países em que o
pensamento se desenvolvia melhor. A língua Ronald tem de ser uma máquina
para exprimir nosso pensamento. E daí aparecem os estilistas admiráveis
de antes do século XIX e que não cansam nunca. Porque a literatura (no
bom sentido da palavra) é como a arquitetura tem de servir. Em todas as
épocas em que a arquitetura foi feita para servir deu máquinas admiráveis
e sublimes: no Egito, na Grécia, em certo gótico, no românico, em certo
florentino com Miguel Anjo na São Pedro (primitivo traçado), em certo
árabe, no teatro de Garnier, na fábrica norte-americana, em certas casas-
-de-morada alemãs atuais. Quando ela foi tomada como obra-de-arte em si,
quando procuraram construir a beleza arquitetônica, a arquitetura morreu.
Há obras belas sem dúvida nesses períodos mas que cansam, que se tornam
fades, cacetes enjoativas. Heidelberg, Louvre, São Paulo de Londres, o portal
do Maschio Angioino de Napolés, todo o gótico espanhol, todo o barroco
de todos os países, grandíssima parte das obras renascentes. Os verdadeiros,
legítimos estilos arquitetônicos foram aqueles que nasceram da necessidade
prática e não do preconceito pedante de construir belo. Em vez de belo
ficou o bonito. Bonito incontestável, que agrada sensualmente, que engana,
mas que cansa, que não é natural, que obriga a posições incômodas, como
as cadeiras Luís XV. Porque a arquitetura é um utênsil que tem de servir.
É assim que o estilo grego é admiravelmente grego e o gótico espantosamente
medieval. Agora você pegue um desses hediondos sobrados da avenida Rio
Branco e compare. Mas o Hotel Glória com todos os seus enfeites, apesar
dos seus enfeites, é belo. Por que? Porque foi feito para o que é. Da mesma

39 A carta inacabada de Mário de Andrade a Ronald de Carvalho tem local e data atestados
como: São Paulo, setembro de 1922. Esse esboço tem dupla natureza, pois integra a série
Manuscritos – onde se localiza A gramatiquinha da fala brasileira –, além de estar catalogado
na série Correspondência Mário de Andrade.
40 No manuscrito, a palavra “língua” está sublinhada a lápis vermelho.

116
Ideias Gerais

forma a língua até aparecerem os Chateaubriands et caterva de todas as


línguas. Então foi um descalabro. A língua tornou-se arte em si. Perdeu a
expressão direta que tinha. Foi então que surgiu a Literatura. A máquina
virou cadeira Luís XV. Bela? Bela, não há dúvida. Leia Chateaubriand.
Encanta. No fim de meia hora enoja. E Flaubert. E o parnasianismo. E Eça de
Queirós. E Euclides da Cunha. E todos os escritores de literatura. A literatura
assim é uma arte menor. E se presta muito mais para certa compreensão
de poesia, cansativa sempre. Mallarmé, parnasianismo. Agora pega nos
escritores diretos, que fizeram da língua um instrumento para servir ao
pensamento. Você encontra então os legítimos estilos, que não são postiços,
que não são cansativos. Você encontra Machado de Assis. Você encontra
o Graça da Correspondência, que não sei por que malazartes escreveu com
a luz do meio-dia. No teu livro há uma tendência muito grande para fazer
literatura. Cuidado. Escreve direto. Incomoda-te menos com o balanço da
frase. E menos ainda com a entrada dos violinos e o solo de corno inglês.
Já tens uma claridade excelente. Só tu entre os modernizantes, mais: só tu
no Brasil eu vejo atualmente que possa atingir a maravilhosa perfeição que
o Graça atingiu na Correspondência. Só na Correspondência, obra-prima dele.
A claridade do Graça, a sua calma torrencial, digo conscientemente a calma
torrencial, só tu as tens. Mas o Graça na Correspondência escreve direto. Não
tem senão raríssimas frases. Não tem literatura. O estilo dele é então a língua-
-máquina que serviu as qualidades excelsas que ele possui: o entusiasmo, a
confiança, a vivacidade psicológica, o domínio sobre os exasperos sensuais
e sobretudo a claridade. Tu és o herdeiro dessas qualidades excelsas. Não
temo que te percas. Sei quem és. Mas um aviso de amigo dado nunca fez
mal a ninguém. E só pensar que talvez eu venha contribuir para que atinjas
mais cedo a tua perfeição dá-me a felicidade. Sabe com quem eu me lembro
de te comparar na tua literatura (mau sentido da palavra)? Com o Menotti.
Não falo de pensamento, já se vê. Falo fazer literatura. Pois o Menotti é
muito melhor que tu. Porque tem mais sonoridade, mais sensualidade, maior
plasticidade oral. Então surgem aqueles contrastes de ouro e negro, de roxo
e verde, aqueles solados de violinos e maravilhosos tutti. No fim de meia
hora cansa. Tu não cansas porque dentro de ti há pensamento. Mas num
livro como este, de vulgarização (não dou a esta palavra sentido pejorativo
algum, todos nos somos vulgarizadores, não pensadores pessoais) um livro
como este, aos que já sabem do que falas se cansam. Eu admiro com toda

117
Mário de Andrade

a força os dois primeiros estudos. São de admirável plano e como estavas


em terreno muito palmilhado por ti foste ao fim pelo caminho mais curto.
A sucessão dos planos não é apenas harmoniosa, é a mais reta e econômica.
O quarto estudo é excelente. O terceiro apenas regular. E regular porque
trata bem do século XIX, senão seria sofrível. Mas como estou mais ou menos
inteirado do que falas, quando a literatura começa tenho uma irritação, um
sentimento de quem assiste a encher uma linguiça. Sei perfeitamente para
que circunstância certas páginas foram escritas. Quiseste para conferências
a público ignaro dos teus assuntos (México) e para celebrações de centenário
ser amável e agradável. Mas eu creio que fizeste mal em não dar uma nota
sobre isso. Não precisava prefácio. No fim do livro. Ronald, eu jamais agrado
por agradar, se eu agrado é porque a minha verdade calha agradar, sou bruto
como provinciano e nesse ponto faço questão de não me civilizar, deixa que
eu te diga uma vez por todas isto: tu és a inteligência mais harmoniosa que
conheço, como harmonia das faculdades intelectivas és superior mesmo
ao Graça, por isso estás no dever de dar toda as tuas forças pessoais para
dignificar o formidável destino que Deus te deu. Tu vais ficar. Outros,
principalmente eu, somos desses que vivem aos saltos através das idades,
como o Egito, como os negros, como os medievais. Transitórios. Acontece
que em certas épocas essas manifestações humanas voltam à moda, porque
as tendências do momento mais ou menos correspondem ao que elas
realizaram. Mas não têm aquela expansão firme, serena, perene que tem a
Grécia, o século XIII sua filosofia, o século XVII literário francês, o XVIII
musical alemão (isto só alguns, para explicar) e homens como Aristóteles,
Dante, Pascal e muitos outros. Ponho de parte a questão da genialidade
porque acho a palavra gênio uma estupidez sem sentido. Os gênios são
homens como nós. Harmonia de inteligência como eles muitos cotidianos
têm. Nos coristas de teatro mesmo de terceira ordem encontram-se vozes
estupendas. O que falta é o trabalho. Meu Deus! O gênio é verdadeiramente
uma longa paciência. Quanto a esses Goyas, Rimbauds, Nietzsches são uns
geniosos isso é que são: sem harmonia, algumas das faculdades criadoras
extraordinariamente desenvolvidas e todo o resto falho, pobre, mesquinho,
miserável. Ronald, eu sei que estás na condição de ser assim o homem que41
*

41 Escritura interrompida.

118
Ideias Gerais

“On n’a pas établi de lois en sémantique42” (Dauzat, La philosophie du langage,


p. 293).
A indecisão de significado de certas palavras brasileiras por enquanto e a
impossibilidade de determiná-las já. A gente só pode consagrar essas palavras
nas variantes de sentido que possuem até que se fixem... ou desapareçam .
O fenômeno de dissimilação parcialmente ou essencialmente repousa num
estado psíquico: verificação de Mauricio Grammont (Dauzat, La philosophie
du langage, p. 294).
*
José Joaquim Nunes no Compêndio de gramática histórica portuguesa (p. 2)
enumera as diversas feições duma só língua. Entre as faladas, de deveras a
gente pode afirmar que essas feições variam de classe pra classe, de ofício
pra ofício, a fala dos jóqueis, a fala dos médicos, a fala dos fadistas, a dos
gatunos, a das mocinhas etc. etc. O engraçado é a gente gramática dar a essas
feições o nome de “línguas” à língua falada, à literária etc., diferençando uma
de outra como se fossem outras tantas falas. O que prova que entre dialeto,
línguas e sublinguas tem uma confusão e entrelaçamento de conceitos.
Também a fala brasileira não é diferente da portuga, é apenas distinta desta.
*
No último capítulo antes de “Conclusion” de Dauzat tem muitas razões
provando o absurdo das regras em uso, o absurdo das regras em geral etc.
Devo me aproveitar muito dele.
*
Principiar prefácio e durante o livro todo afirmar em refrão a minha
ignorância da língua portuguesa – causas: clássicos ilegíveis de paus e
burríssimos em geral. Dizer as exceções – elogio de Frei Luís como língua
– todos eles com exceção Camões são estilos à procura de assunto e nunca
acharam assunto –outras causas: deficiência de estudos escolares e em seguida
a pressão da vida – defender a horas tantas os gramáticos no que, eles, têm
de bom – assim ninguém espere uma gramática. O título é pra atrapalhar.
*

42 Tradução livre: Não se estabeleceram leis em semântica.

119
Mário de Andrade

Na realidade não têm palavras que sejam integralmente catalogáveis dentro


dessas categorias de substantivos, verbos e adjetivos e mesmo advérbios
que os gramáticos inventaram. Amar, amor, amoroso, amorosamente são
de deveras uma só palavra flexionada segundo a função que tem de exercer
pra explicar oralmente um juízo. Só as partículas é que poderão se catalogar
porque escapam à subjetividade, não são personalidades do discurso, são
elos dessas personalidades. Aqui vem pois uma interrogação aflitiva. E os
pronomes? Será que fazem parte das partículas?
*
Uma passagem irônica sobre galicismos, dizendo que somos amigos dos
franceses desque Ferdinand Jean Denis andou pelos Brasis no início da nossa
vida histórica. Os indígenas gostavam muito dos franceses... (Dicionário
histórico geográfico, p. 768) não tem dúvida que os franceses se chamavam
mairs43 (organizadores) pros toupinambours. Quanto aos portugas não
passavam de perós44, esfomeados e patetas tubarões.
*
Não falar nem uma vez em regras. Nem tão pouco em normas se possível.
Falar só em “Constâncias”.
*
Aquelas palavras terríveis de Joaquim Nabuco em Minha formação: “A
escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do
Brasil” (Joaquim Nabuco, Minha formação, p. 216). Escravidão do preconceito
auditivo, escravidão do preconceito tradicional, e sobretudo escravidões da
preguiça e da ignorância. E escravidão da rivalidade também. Porque com
os tempos de agora quem não tem a ilusão de que foi o primeiro a fazer
uma coisa aqui, faz questão de não seguir os outros. E banca o contraditor
mesmo que a verdade esteja queimando a gente, bobos!...
*

43 Termo empregado à época da colonização, uma “alcunha dada aos franceses pelos indígenas
brasileiros”. Cf.: HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles, p. 1218.
44 Termo empregado como “nome que os índios davam aos portugueses, nos primeiros tempos
da colonização”. Cf.: HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles, p. 1478.

120
Ideias Gerais

Lívio Andrônico, Pacúvio, Névio e principalmente Énnio são os que


transformaram o sermo vulgaris em fala literária, o latim que conhecemos.
Esse papel é que os corajosos de hoje estão destinados a representar (José
Joaquim Nunes, Compêndio de gramática histórica portuguesa, p. 3).

121
Inquérito Geral Etnográfico
Formulário das pesquisas
folclóricas – Língua Nacional45

I – A Língua

1. Vocabulário — Formar um vocabulário, o mais completo possível, dos


brasileirismos vocabulares da região, com as suas respectivas significações.
a) nomes dados ao Diabo;
b) nomes dados à aguardente;
c) nomes dados aos animais peculiares à região, nomes de doenças, nomes
dados aos humanos (cabra, cabrocha), às raças (caboclos, índios, bife),
aos estrangeiros (carcamano), aos ofícios (carapina, engraxate, regatão),
às partes do corpo (munheca, cangote, osso do pai-João por ânus), nomes
de identificação por defeito físico, cacoete, posição social etc. dados ao
indivíduo (Maria Cavadeira, nova-seita aos protestantes, João Gago etc.)
indicando os que são depreciativos;

45 O esboço do “Formulário das pesquisas folclóricas – Língua Nacional” surge motivado


pela convocatória do Departamento de Cultura, dirigido por Mário de Andrade, que
prevê a publicação de pesquisas para “maior conhecimento do povo brasileiro”, sugerindo
determinados assuntos, entre eles: “a) Língua nacional: Vocabulário (incluindo gestos;
vocabulários profissionais; nomenclaturas de partes de objetos; interjeições e palavreados
de comunicação com animais; linguagem familiar; linguagens secretas; gírias etc.). Sintaxe
– Fonética.”. Para incentivar possíveis colaboradores, o Departamento propõe um prêmio
em dinheiro para as duas melhores comunicações. Todos podem colaborar com trabalhos,
inclusive o corpo de jurados, embora impedidos de ganhar a premiação; a comissão
julgadora compunha-se dos professores e etnógrafos Mário de Andrade, Dina Levi-Strauss,
Samuel Lowrie, Plínio Ayrosa e Artur Ramos. Cf.: ARQUIVO ETNOGRÁFICO. Revista
do Arquivo Municipal. Prefeitura de São Paulo, Departamento de Cultura, a. 3, v. 30, dez.
1936, p. 25-30.

125
Mário de Andrade

d) nomes dados aos pelos dos animais domésticos (cavalo cardão-rosado


etc.); às andaduras (cavalo trotão); às partes dos animais comidos; às
peculiaridades individuais do animal e do homem (rabicó, quatrolhos etc.);
e) nomes de reconhecimento individual dos animais domésticos (o cachorro
Leão, a vaca Estrela etc.);
f) gritos usados com os animais (isca!, ecô! etc.);
g) nomes dados aos acidentes geográficos (Noruega, fundão, varjota etc.);
h) nomes dados aos ventos da região (sulão, noroeste etc.);
i) nomes dados às estações climáticas ou as suas peculiaridades (tempo das
águas, enchente de Páscoa, chuva parajá, céu escampado etc.);
j) nomes dados aos objetos e às partes dos objetos;
k) nomes dados aos trabalhos, às maneiras de trabalhar, aos instrumentos
de trabalho e às partes deles;
l) as interjeições e seus significados.

1.1. Semântica — sentidos particulares tornados na região por palavras


gerais da língua.
> palavras-falenas – palavras surgidas de repente na região, por uma razão
qualquer, vulgarizadas rápido e rápido desaparecidas;
> familiarismos – palavras de uso exclusivo duma família ou poucas mais,
principalmente relativos às partes pudendas e suas funções;
> vozes de carinho;
> de namoro;
> de pêsames, felicitações etc.;
> variação nas palavras por etimologia popular;
> quantitativos indefinidos (imundície, poder etc. pra significar muitos);
> variações de gênero (a puíta e o puíta), aplicação das flexões de gênero
especialmente nos comuns-de-dois e nos epicenos (crianço, estudanta);
> abundância regional do emprego do diminutivo (adeusinho, atéloguinho,
dorrmindinho etc.);
> os superlativos “demais” e “por demais” (Esse menino chora por demais,
Já fui demais lá);

126
Inquérito Geral Etnográfico

> os aumentativos (troncudo, baludo etc.);


> variações de pluralização (os cachorro, as paixão, as mões por as mãos,
os bólsos por
os bôlsos ou a vice-versa, os miôlos por os miólos etc. etc.);
> italianismos vocabulares;
> anglicismos penetrados principalmente com o cinema (òquêi = O.K.,
gudibai e gudibí = good bye, trinque = drink;
> espanholismos produzidos principalmente pela penetração do tango ou
pela proximidade de fronteiras (= adiós, me voy, bueno);
> adjetivos substantivados ( o velho por meu pai etc.);
> emprego de “mais grande”, “mais maior”, “mais menor”, “pecurrucho”,
“pequitito”, “pequinininho”, “poucadinho”, “mais mió”, “mais peior” etc.;
> “mais” significando “com” (eu fui mais ele por fui com ele);
> nomes dados ao dinheiro (contecos, por contos de réis, bagarotes por
milréis etc.);
> maneiras de tratamento (vassuncê, vossuncê, vòsmicê, vòcemecê, nhá,
nhã etc.);
> existência regional do “tu” ou sua substituição pelo “você”;
> emprego de isso, essa por isto, esta (“Essa noite tive um sonho” verso
popular querendo
dizer Esta noite etc.);
> emprego de “o que” por “que” e “quem que” por “quem” nas interrogações;
> emprego de “pego” por “pegado” particípio passado;
> emprego de “pasmo” por “pasmado” particípio passado (fiquei pasmo);
> emprego de “de modos que”, “de formas que”, “de maneiras que”;
> emprego de “desque” por “desde que”;
> locuções e partículas comparativas (ficou que nem um homem, ou ficou
vê homem ou ficou feito um homem, ficou direito um homem, ficou talqual
um homem, ficou talqualmente um homem, ficou tal-e-qual um homem);
> significações de “tudo” (nóis tudo, por aí tudo).

127
Mário de Andrade

2. – Fonética — Dar uma descrição e exemplificação geral, o mais completo


possível, da pronúncia da região.
a) diversas cores de cada vogal;
b) peculiaridades consonantais;
c) conjugação dos verbos (hé-de por há-de);
d) existência ou inexistência de sílabas átonas/ mudas nas palavras graves
e esdrúxulas;
e) encurtamento das palavras proparoxítonas (chacra por chácara, abobra
e abobrinha, princ’pe por príncipe);
f) fusão ou encurtamento de partículas do discurso ou sílabas de palavras
(Eu vou no-turno por eu vou no no-turno, sodade por saudade, erisipa por
erisipela, cine por cinema etc.);
g) timbre, nasalação etc;
h) ritmo, rapidez etc;
i) altura, variabilidade, riqueza, pobreza, monotonia da elevação dos sons
(agudos, graves, médios) e da sua intensidade (fortes, médios, pianos,
murmurantes, sussurrantes) na pronúncia geral e comum, nas ocasiões de
falar em público, na família, nas paixões (cólera, amor, ironia, carinho,
caçoada), nos estados de relação (de pais pra filhos e vice-versa, de moços
pra moços, de velhos pra crianças, de pobres pra ricos, de patrões pra
empregados etc. etc.);
j) ciciosidade;
k) troca de consoantes, de vogais (ispanhol por espanhol, ingrêis por inglês);
l) pronúncia do r, substituição do r pela vogal i (pôico por porco, poblema
por problema);
m) a pronúncia do lh (recolher e recoiê);
n) transformação do ô em u e vice-versa (mucambo por mocambo, fonção
por função, muinho por moinho, pueta por poeta, fugão por fogão);
o) pronúncia do s (môchca por mosca, uj pretuj por os pretos), inexistência
dele para a pluralização;
p) tio e tíu, fríu e fri-o – transformação de dissílabos em ditongos;
q) compromisso entre i e u (oiro e ouro etc.);

128
Inquérito Geral Etnográfico

r) valor longo ou breve da primeira vogal nos ditongos crescentes “ia”, “ie”,
‘io”, “iu”, “ua”, “ué”, “uê” e “ui”, ocasionando o desdobramento em duas
sílabas do ditongo, ou sua possibilidade (qui-abo, inqui-eto, mi-ôlo, pi-
-ólhos, mi-údo, casu-al, pu-eta, pu-êra, su-íno);
s) valor longo ou breve da primeira vogal nos tritongos, ocasionando o
desdobramento ou não do tritongo em duas sílabas;
t) manifestações de epêntese (adevogado por advogado, abissulutamente
por absolutamente, fulô por flor);
u) manifestações de assimilação regressiva (inlustre por ilustre);
v) manifestações de síncope (meidia por meio-dia etc.);
x) variações de “para” (pra, prá, prô etc.) são gerais ou não na região?;
w) pronúncias de rúim ou ruím? “múi” ou “múin” por muito?

3. – Sintaxe – Dar uma enumeração geral e exemplificação dos brasileirismos


sintáxicos da região.
a) colocação de pronomes;
b) variação dos pronomes (pra mim sentar por para eu sentar etc.);
c) exclusão dos pronomes nos verbos pronominais (sente por sente-se, cansei
muito na viagem por cansei-me etc.);
d) italianismos (somos em cinco);
e) a expressão “maior do mundo” é sistematizada na região como superlativo,
pra significar “grandíssimo”, “muitíssimo” etc., e não mais como comparativo?
“dei um soco maior do mundo que isso ele despenhô todinho que nem jaca”;
f) nas regiões onde persiste o “tu” segunda pessoa do singular, determinar
a flexão verbal que o acompanha (tu vais ou tu vai), idêntica observação
mesmo entre as pessoas cultas, em linguagem desleixadamente espontânea;
g) obliteração dos possessivos em casos como “na casa do sr.” (na sua casa),
“na saída Joaquim viu o pai dele” (viu seu pai), “a fazenda de você já está
colonizada” (sua fazenda) etc.;
h) emprego de “será” interrogativo (Será que vai chover?);
i) emprego de “enquanto que” no povo analfabeto;
j) emprego de “quando senão quando” pra significar de repente;

129
Mário de Andrade

k) concordância de coletivos em geral, do coletivo de 1ª pessoa “a gente”


(A gente vai com ele) e de 3ª pessoa (Aquela gente andam com coisa);
l) lugares-comuns comparativos (ficou uma fera, chorou como bezerro
desmamado) especialmente os que de qualquer forma apresentem referências
locais ou regionais (espírito bandeirante, cara de mico);
m) emprego do presente do indicativo pelo futuro (Se você for lá, fecha
o tempo por fechará o tempo, amanhã eu vou na sua casa por irei a..., só
me caso com ela quando..., se me oferecerem um chope, recuso). Outras
observações sobre a ausência da noção exata do tempo futuro e sua confusão
com o presente na linguagem popular analfabeta;
n) emprego do imperfeito do indicativo pelo condicional (Se você fosse lá,
fechava o tempo, só me casava com ela se... , se me oferecessem um chope,
recusava);
o) análise geral do emprego do imperativo; emprego do indicativo nos
imperativos negativos (não demora não!);
p)46
*
A língua nacional
As observações e pesquisas sobre a língua nacional não devem ser feitas
exclusivamente entre pessoas das classes proletárias, entre analfabetos e
pessoas rurais. Deve estender-se a todas as classes, até mesmo aos cultos,
mas sempre na sua linguagem desleixadamente espontânea e natural.
As observações só não devem se estender aos indivíduos que timbram em
falar certo. Ou melhor: tem muita importância em verificar e apontar as
vezes e casos em que mesmo estas pessoas “culteranistas”, por desatenção
momentânea pecam contra o português de Portugal e das gramáticas.

46 Escritura interrompida.

130
SELETA DE ARTIGOS DE MÁRIO DE ANDRADE:
DESDOBRAMENTOS D’A GRAMATIQUINHA DA
FALA BRASILEIRA
Brasileiro e português1

A última reforma ortográfica da Academia deu ocasião de novo a


que se abrissem as velhas portas da secular quizília entre portugueses e
brasileiros. Queixas daqui e queixas do “outro lado de lá”. Ofensinhas daqui
e d’além-mar. Isso pelo menos prova que inda existe no mundo um povo
que se preocupa com brasileiro, além da ganância capitalista. Esse povo é
o português.
Aliás é muito engraçado a gente reparar como as relações de nação pra
nação que existem entre brasileiros e portugas, permaneceram extremamente
gênero “família”. Sentimentos, ideias, conceitos que exprimem essas relações
estão sempre intimamente afeiçoados à espécie de relações de pais e filhos,
padrinhos e afilhados, tios e sobrinhos.
Desconfio que isso vem de duas coisas: do estado saudosista e reivindi-
cador que move a consciência portuguesa duns tempos para cá e da nossa
quase nenhuma faculdade de nos sentirmos uma nação e agirmos como tal.
É verdade que faz uns dois anos, um movimento desastrado dum jornal
literário espanhol, provocou entre argentinos e espanhóis um movimento
de briga literária muito parecido com as rusgas familiares nossas, porém
isso é exemplo raro: as maneiras de agir entre Argentina e Espanha, entre
os Estados Unidos e a Inglaterra, são duma virilidade e duma liberdade
muito mais internacionais que as entre Portugal e Brasil. Diplomática,
econômica, intelectualmente, nós e os portugueses inda vivemos quase que
só no regime do abraço, do puxão de orelha e do presentinho de aniversário,
é cômico. Mesmo nações pequenininhas hispano-americanas, agem pra com
a Espanha muito mais nacionalmente que nós brasileiros pra com Portugal.

1 Esta crônica foi publicada no Diário Nacional, São Paulo, em 5 de fevereiro de 1930; compõe
ainda a coletânea Táxi e crônicas no Diário Nacional (1976).

133
Mário de Andrade

Mas não se pense que estou indicando isso como um mal pra nós. Mal
é não termos uma consciência nacional verdadeira, isso acho indiscutível.
Quanto às nossas relações pra com os portugas, que continuem como estão,
é gostoso. Queixas, briguinhas... Portugal grita de lá: “Eu sou o maior!”.
O Brasil secunda de cá: “Eu sou mais grande”. E os dois ficam feridíssimos,
com uma vontade enorme de dar um bofete no outro, dizendo por dentro
uma porção de palavrões, que a etiqueta jornalística não aceita.
Eu sei que Portugal não nos lê e que a gente lê Portugal. Sei por outro
lado que nós estropiamos o português que um campônio de Mesquitela
não estropia. São sempre as fatalidades que existem dentro das casas de
família. O filho sempre teve vontade de saber mais do pai, que o pai do
filho. Simplesmente porque dentro de casa o filho é claramente o que é, não
esconde nem tendências nem defeitos, ao passo que o pai dentro de casa
sempre foi um artista fingidor, se dando personalidade inexata, só pra filho
ver. Assim, sempre que fora de casa nos contam alguma coisa dos nossos
pais, a gente devora o reconto com sofreguidão. E quanto a estropiarmos a
língua portuguesa, jamais não houve pai neste mundo que não censurasse
o palavreado que os filhos trazem da enorme e didática rua.
Eu considero a superioridade intelectual portuguesa real, embora
muito discutível. É certo que a nossa literatura já é mais rica, mais variada,
porém a portuguesa apresenta um fundo de criação, um peso racial que nós
não apresentamos. Percorrendo a literatura brasileira, a gente não se livra
da impressão de que a infinita maioria dos livros são meros produtos de
diletantismo. Podiam não existir que não fazia mal. Nós nos orgulhamos da
nossa poesia, incontestavelmente muito mais bonita que a portuguesa... Até
isso prova nossa inferioridade: não temos em que pensar, fazemos poesia.
Com exceção da Inglaterra, país mais lírico do mundo como já dizia o
autor de Os gatos, em qualquer terra de deveras intelectual, a poesia viveu
sempre na subalternidade da prosa. Enquanto formos poetas e 30 milhões
de poetas, seremos apenas filhotes de Portugal. É gostoso. E os portugueses
são tão gozados!...

134
Exposição de motivos1

(Lida na sessão de instalação do Congresso, pelo professor Mário


de Andrade, relator do Anteprojeto apresentado pela Divisão de
Expansão Cultural, do Departamento de Cultura.)

Não sei,

Meus Senhores,

se estais bem conscientes da insensatez maravilhosa da nossa decisão de


nos reunirmos neste Congresso da Língua Nacional Cantada. Enquanto
a política rosna lá fora, fundando imperialismos absurdos, nacionalismos
estufados e mil e uma facetas, por onde se odiarem os homens; através dos
espaços arejados os congressos se correspondem na insensatez aparente
da paz, do saber e da arte. É o Congresso Internacional de Folclore de
Paris, é o Congresso das Cidades e Poderes organizado por Bruxelas, é o
Congresso da Expansão Portuguesa no Mundo, em Lisboa. É o Congresso

1 Conjectura-se que além da leitura do discurso, é de Mário de Andrade – idealizador e


organizador do evento –, a autoria do texto. Cf.: EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS. Anais
do Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada. Prefeitura do Município de São Paulo,
Departamento de Cultura, 1938, p. 707-708. O Primeiro Congresso da Língua Nacional
Cantada, realizado nos dias 7 a 14 de julho de 1937 no Theatro Municipal de São Paulo,
promovido pelo Departamento de Cultura, sob a gestão do modernista, tinha como
objetivo estabelecer as normas de pronúncia da língua nacional cantada, precisamente
para a declamação, o canto e o teatro eruditos. Os congressistas escolheram a pronúncia
carioca como língua-padrão; entre as sessões ordinárias nas áreas de linguística, musicologia,
fonética, fonologia, Mário expõe o trabalho “Os compositores e a língua nacional” e o
inclui integralmente nesses anais.

135
Mário de Andrade

da Língua Nacional Cantada, o primeiro congresso musical do Brasil, que


neste momento abre a sua semana de pesquisas e de arte, nesta, de todos
vós, cidade de São Paulo.
Seja, portanto, senhores, a primeira palavra do Departamento de Cultura
neste lugar, uma palavra de paz. Seja principalmente esta primeira palavra
uma de altiva indignação pelo contraste absurdo entre as forças e ambições
humanas que procuram fazer a vida numa construção de tropeços belígeros
e ódios combativos, e nós que a estamos fazendo naquilo em que a vida mais
exatamente se humaniza, arte e saber. Cerrai um pouco os vossos espíritos,
senhores, na contemplação desses ensanguentados livros que são as histórias
universais e nacionais. É certo que, há medo, e como que envergonhados
do gasto de tempo em futilidades, de alguns decênios para cá, esses livros
monstruosos já começam a dedicar algumas páginas, em tipo menor de
impressão, às conquistas da ciência e da arte; mas, apesar disso, o que são
essas histórias? São descrições de batalhas e de guerras ferozes, são análises
complacentes de destruições em que, a cada palavra de paz deverá entender-
-se uma raça vencida, uma nação espoliada, uma facção humilhada. A paz,
aquilo em que cada um de nós se perde escutando músicas ou escandindo
hiatos, a paz desses livros é sinônimo de vitória e de conquista sangrenta.
E tanto arte e ciência perturbavam a animalidade desses livros que se podem
ser de homens, poderiam ser também de abutres, de leões ou de formigas,
tanto arte e ciência escandalizavam a moral dessas histórias da irracionalidade
humana, que foi necessário escreverem-se histórias especiais (a verdadeira
história espedaçada), que se intitularam, para uso dos especialistas, e não para
uso dos homens: “História da Medicina”, “Semântica”, “Sintaxe Histórica”
ou “História da Música”.
Quando Bartolomeu de Gusmão voou pela primeira vez, quando
Oswaldo Cruz saneou o Rio de Janeiro, quando Euclides da Cunha descreveu
Os sertões ou Carlos Gomes a Fosca, nenhum sangue correu nem os homens
se odiaram mais. E se acaso, nos perfeitos momentos de humanidade vamos
em busca do Brasil e sua verdadeira significação histórica no mundo,
jamais o encontraremos na Guerra do Paraguai ou 1889, mas em Gusmão,
no Butantan, em Castro Alves ou na São Francisco da São João del-Rei.
Haverá, portanto, pelo menos duas maneiras de se fazer a História,
a maneira sensata de los Conquistadores, e a maneira insensata dos

136
Seleta de artigos

institutos culturais... E é de crer-se também que os processos sejam muito


idênticos, pois que se vemos hoje, com frequência as pátrias militarizarem
suas criancinhas, não estaremos nos também militarizando as vogais?
A diferença é simplesmente cronológica. A militarização das crianças
é uma ambição de agora já, a militarização das vogais constrói futuro.
Quer isto dizer: a militarização das vogais estará futuramente no número
daquelas citações, estará entre os Bartolomeu de Gusmão, os Manguinhos,
os Alberto Nepomuceno que dão a verdadeira significação histórica do
Brasil na legítima, na profunda, na incomparável humanidade dos homens.
Vamos, portanto, fazer um bocado mais de História do Brasil. Para isso,
sem perda de mais minuto, passo a relatar a proposta de escolha de uma
língua-padrão para as artes nacionais da palavra, feita pelo Departamento
de Cultura da Municipalidade de São Paulo.

137
A língua-padrão1
Faz parte da cultura duma nacionalidade a organização consciente de seus
processos essenciais de se manifestar. Entre estes processos de manifestação
culta estão a linguagem e a arte. Pode-se dizer que não existe país algum
civilizado que não procure conhecer, estabelecer e tradicionalizar as suas
manifestações filológicas e artísticas.
A largueza dramática do Brasil, os interesses e diferenciações regionais
de vária espécie, a pouquidade das nossas artes incipientes, ainda não
permitiram que entre nós, tanto a língua do país como a sua linguagem
artística se organizasse dentro dum critério culto que fosse ao mesmo
tempo nacional e estético. A própria escritura da língua, a não ser em casos
individualistas do passado, só de uns dois decênios para cá, principiou se
libertando normalmente e sem revoltas exageradas de regras gramaticais
que não correspondiam à realidade nacional. Mais desastrosa ainda se
mostra a incúria brasileira a respeito da nossa linguagem artística. A fala
nacional, perturbada por fortes diferenciações fonéticas regionais, ainda
não se definiu em suas manifestações artísticas, nem no teatro nem na
declamação nem no canto.
Não pensa o Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada contrapor-
-se de forma alguma às diferenciações fonéticas de uma e outra região do
país. Além das considerações estéticas que podem ver uma riqueza nessa
diversidade, ela antes de mais nada é fatal – uma força que nenhuma pessoa
nem entidade coletiva conseguirá destruir. O que não se pode porém deixar à
tonta e sem nenhum critério civilizador são as manifestações eruditas da arte
de falar, que em todos os países civilizados são fixadas pelo consenso duma
tradição feliz ou pela determinação de quaisquer organismos competentes.
É sabido que na Itália existe uma maneira artística de pronunciar o italiano,
no teatro ou na declamação. Na França uma longa tradição do bem falar
se estabeleceu nos teatros, com o exemplo normativo da Comédie Française
e do Conservatório de Paris. Na Alemanha a linguagem do Hannover foi

1 As normas que pautam a língua-padrão cantada foram redigidas, segundo as discussões


plenárias no congresso, pelos professores-congressistas Antenor Nascentes, Luis Heitor
Correia de Azevedo e Mário de Andrade. Cf.: LÍNGUA-PADRÃO. In: Anais do Primeiro
Congresso da Língua Nacional Cantada. Prefeitura do Município de São Paulo, Departamento
de Cultura, 1938, p. 55-60.

139
Mário de Andrade

escolhida para o teatro erudito, como a que mais correspondia foneticamente


à pureza da língua alemã.
No caso do Brasil impõe-se a escolha dessa língua-padrão a ser usada
nas artes de dizer. Quem quer frequente o teatro nacional ficará desagra-
davelmente ferido ante a diversidade de pronúncias que se entrechocam
no ar. Essa diversidade deriva em parte de atores estaduanos que, trazendo
consigo suas pronúncias regionais e não fazendo nenhum esforço para unificar
essas pronúncias em benefício do equilíbrio e da unidade fonética tornam a
obra-de-arte um mistifório malsoante, irregular de estilo e de sonoridade,
muitas vezes, por isso, de penosa compreensão para o ouvinte. E que dizer-
-se então da quantidade de artistas, Portugueses, Espanhóis e Italianos, ou
ainda mesmo Brasileiros filhos de estrangeiros, que surgem numerosamente
no palco nacional, num desprezo cego do bem dizer, e que carreiam para
a nossa linguagem sons espúrios, sotaques estrambóticos, desnorteando
a naturalidade e a pureza da língua! Se o choque de pronúncias regionais
constitui já um grave defeito de ordem estética, essas pronúncias estran-
geiradas são um gravíssimo perigo. O teatro nacional se constitui por isso
em violento impurificador da linguagem brasileira, num péssimo exemplo,
numa lição desastrosa, e tanto mais desastrosa que amável. E o teatro, essa
arma poderosíssima de lições e de exemplos, largado ao léu do acaso pelos
governos, manejado à pressa por artistas acossados pela precisão de viver,
tornou-se um eterno exemplo de desleixo e impureza linguística, que erigiu
a linguagem mal falada em norma de erudição nacional. Não há dúvida que
os artistas do palco brasileiro se preocupam em pronunciar claro as suas
palavras. Mas a arte de dizer, a dicção, não consiste apenas na emissão clara
dos fonemas. Carece não esquecer que não existe fonema sem timbre nem
palavra sem sonoridade racial. Carece não esquecer principalmente que uma
palavra com seus fonemas claramente batidos, muitas vezes se torna mais
incompreensível que outra de prolação mais descuidada, porém dotada de
timbre racial que a afeiçoou.
No caso do Brasil a todas essas considerações de ordem estética, ainda
outra, grave, se ajunta de ordem social. País cuja unidade se conserva
por efeitos quase de milagre pois que as razões de religião e de língua
são insuficientes para explicá-la; país cuja perigosa vastidão geográfica,
cujo crescimento irregular, cujos interesses econômicos, cujo homem
excessivamente individualista, cujos ventos climáticos, tudo tende a dispersar
numa poeira de nações americanas, idênticas às que tiveram a língua e a
religião de Espanha: o Brasil encontrará porventura nessa língua-padrão

140
Seleta de artigos

escolhida, que de norte a sul se normalizará no seu teatro e no seu verso


declamado, um orgulho de consentimento nacional, um treino de disciplina,
uma organização consciente, um fator verdadeiro de unidade. Não haverá
por certo um Italiano que não se ajunte a outro Italiano por mais distante em
sua pronúncia dialetal ao pensar na bela língua da Itália. É possível também
imaginar que todos os Brasileiros um dia, já acostumados civilizadamente à
pronúncia duma só linguagem, mais disciplinados por esse esforço consciente
de unificação, sintam o mesmo orgulho do Italiano, ante a nossa língua
admirável, convertida em obra-de-arte pelo consenso unânime de todos nós.
Resta ainda um problema a apresentar. A união da palavra e do som
musical constitui perenemente uma das grandes dificuldades tanto da arte
de compor como da arte de cantar. A pronúncia das palavras, a prolação das
consoantes e das vogais têm suas exigências próprias, tanto de âmbito oral
como de ruídos consonânticos. Ora estas exigências entram imediatamente
em conflito com as exigências de claridade e pureza do som musical emitido
pela voz humana e com as exigências da evolução melódica. É costume, por
isso, nos países civilizados, em que existe realmente uma arte nacional de
cantar, estatuir-se uma acomodação entre a prolação fonética e a emissão
musical da voz, de forma a conservar a clareza das palavras sem prejudicar
muito a pureza do som cantado. Como, de maneira geral, é o canto que
se prejudica se acrescido dos ruídos extemporâneos das consoantes e a
variabilidade das vogais, compensa-se este sacrifício geral da música,
modificando sistematicamente os fonemas que mais prejudicam a pureza da
emissão musical da voz. Evita-se com a modificação discreta da pronúncia,
a voz sacudida e a irregularidade dos registros.
No caso do Brasil o estabelecimento normalizado da pronúncia cantada
se impõe, da mesma forma e pelos mesmos motivos que a escolha da
língua-padrão. E tanto mais, que as diferenciações regionais e a desatenção
a este problema da parte dos nossos cantores e professores de canto, de
colaboração com a precariedade ortográfica da língua, estão levando o nosso
canto erudito à maior barafunda vocal que se pode imaginar. Na realidade
as vogais escritas correspondem muito pouco às vozes variadíssimas da
pronúncia. Principalmente o “e” e o “o” escritos, por assim dizer não têm
em muitos casos significação nenhuma para a pronúncia, aquele trocado
pelo “i” e o “o” pelo “u”. Quando essas vogais terminam palavras graves, essa
troca já se sistematizou. Em outras ocorrências porém, a incerteza torna-se
prodigiosamente infiel no próprio canto erudito, e é comum ouvir cantores

141
Mário de Andrade

nacionais cantarem “ortograficamente”, cantarem como se escreve e não como


se pronuncia, sem nenhum respeito nem pela linguagem nem pela música.
Levado por todas estas preocupações e animado pelo desejo de bem
servir a causa da nacionalidade brasileira nas artes da linguagem e do canto,
[apresentamos as?] Normas:
a) considerando que a irregularidade de pronúncia duma língua afeta
perigosamente as artes do dizer e do canto;
b) considerando que o estabelecimento e fixação duma língua-padrão virá
por um termo à anormalidade de pronúncia que atualmente se verifica no
teatro, na declamação e no canto da língua nacional;
c) considerando que a fixação dessa língua-padrão é um elemento civilizador
e um processo de cultura;
d) considerando que a fixação dessa língua-padrão será mais um fator
patriótico de unidade nacional;
e) considerando que dentro das pronúncias regionais do Brasil faz-se mister
escolher uma que apresente ao mesmo tempo as melhores credenciais
nacionais, filológicas e artísticas;
f) considerando que a pronúncia “carioca” do Distrito Federal apresenta-se
como a mais evolucionada dentre as pronúncias regionais do Brasil;
g) considerando ser ela a mais rápida e consequentemente a mais incisiva
de todas;
h) considerando ser ela a que mais apresenta “tonalidades próprias de
bastante relevo”, no dizer do professor Renato Mendonça;
i) considerando ser ela a de maior musicalidade na pronúncia oral, ao
mesmo tempo que dá menos a impressão do “falar cantado”, na observação
do professor Mário Marroquim;
j) considerando ser a pronúncia carioca a mais elegante, a mais essencialmente
urbana dentre as nossas pronúncias regionais;
l) considerando ser ela provavelmente, por ter se fixado na capital do país,
um produto inconsciente, uma síntese oriunda das colaborações de todos
os Brasileiros, e por isso mesmo a mais adaptável a todos eles;
m) considerando ser ela, por ser a da capital a que os Brasileiros afluem, a
mais fácil de ser ouvida e propagada e a que mais probabilidades tem para
se generalizar.

142
Seleta de artigos

O Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada resolve considerar


a pronúncia carioca a mais perfeita do país e propô-la como língua-
-padrão a ser usada no teatro, na declamação e no canto eruditos do Brasil.
O Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada obtempera porém que
as pronúncias regionais quando sirvam para efeitos de caracterização, podem
e mesmo devem ser usadas no teatro, na declamação e no canto regionais,
e mesmo, no caso de aparecerem personagens regionais no teatro erudito.

143
A língua radiofônica1

Recentemente a Diretoria Geral dos Correios e Telégrafos, a quem


incumbe na Argentina a radiodifusão, nomeou uma Comissão de Estudo e
Reorganização Geral do Serviço. Esta comissão dividiu inteligentemente o
seu trabalho em vários capítulos, que não interessa aqui saber se foram bem
ou mal tratados. Mas entre os problemas a resolver, incluiu o da linguagem
usada nos rádios argentinos, principalmente pelos speakers, pelas peças de
teatro radiofônico e pelos tangos e demais canções em gíria de favelas.
Não podendo, por si, resolver com clareza o assunto, provavelmente por
impossibilidade de acordo entre seus membros, a comissão resolveu abrir
um inquérito entre as mais notáveis instituições culturais argentinas.
O divertido é que de novo as respostas variaram de tal forma que, ao invés
de decidir, a comissão resolveu publicar todas elas! E o problema da língua
radiofônica castelhano-argentina ficou sem direção e provavelmente o ficará
por toda a vida. Mas não se dirige uma língua viva!...
Examinemos o inquérito. Constava das quatro perguntas seguintes,
formuladas pela comissão:
a. Devem ser aceitos na transmissão os vícios de pronúncia
correntes, ou será necessário impor a pronúncia culta?
b. Convém difundir comédias dialogadas em linguagem familiar?
c. Convém difundir teatro rural em linguagem regional?
d. Convém difundir canções escritas na geringonça arrabaldeira?

1 Este artigo foi publicado n’O Estado de S. Paulo, em 3 de março de 1940 e na Revista da
Academia Paulista de Letras, em 12 de março de 1943; compõe ainda a coletânea de artigos
O empalhador de passarinho (1946).

145
Mário de Andrade

Entre as instituições consultadas estavam a Faculdade de Filosofia


e Letras, a Academia Argentina de Letras, a Inspetoria Geral de Ensino,
o Conselho Nacional de Educação, a Sociedade Argentina de Escritores,
o Museu Social, o Círculo de Imprensa, a Sociedade Geral de Autores, o
Conselho Nacional Feminino, a Ação Católica, a Sociedade de Estudos
Linguísticos etc.
Em última análise as respostas foram todas prudenciais, e, pelo seu tom
hesitante, bastante acacianas. Percebe-se que muitos dos respondedores,
pelos seus preconceitos tradicionalistas e culteranistas, ou por um maior
bom-senso compreensivo das fatalidades vitais, tinham vontade de recusar
tudo ou aceitar tudo. Mas não tiveram a coragem de o fazer, com medo
do ridículo ou de uma realidade futura que os desmentisse. Derivou disso
um grande número de respostas acomodatícias, que impediu a comissão
de tomar qualquer medida que se aparentasse a uma decisão. Achei mais
simpáticos em seu pragmatismo destemido os grupos católicos e femininos,
que não se importaram de mandar bom-senso e conhecimento às urtigas,
pra resolverem de acordo com os seus interesses. Tanto mulheres como
católicos se demonstraram francamente conservadores e tradicionalistas. As
mulheres acharam que “é necessário impor as formas cultas” da linguagem e,
por julgamento unânime, afirmaram “a necessidade urgente de suprimir as
comédias em linguagem familiar assim como as canções escritas em gíria”.
O mais admirável é terem feito exceção para as comédias em linguagem
rural, garantindo que esta linguagem “é uma forma típica do caráter localista
dessas comédias e vêm sempre cheia de arcaísmos nobres (sic) e expressões
felizes”. Os da Ação Católica, ainda foram mais radicais, pois que quanto às
comédias regionalistas só as permitiram em “caso excepcional”, derivado de
“um real valor artístico”. Os tangos, “isso deveria ser absolutamente proibido”.
Afora esse negativismo pragmático de mulheres e católicos, os demais
foram hesitantemente liberdosos. A resposta mais clarividente foi a de
Ricardo Rojas, nem era de esperar outra coisa do grande escritor. A bem
dizer... não disse nada, não respondeu. Limitou-se a dar opiniões pessoais
sobre certos gêneros de canções e pronúncias argentinas, terminando com
estas considerações justíssimas:
Desgostam-me censuras prévias e regulamentações em matéria
de arte. Sei que a nossa decomposição nacional é profunda, e

146
Seleta de artigos

que transcende ao rádio, ao folclore e à linguagem. Tanto mais


que se se puder transmitir apenas o academicamente correto,
não seria permitida a radiodifusão do Martin Fierro. Como se
vê, o problema é por demais complexo e depende de cada caso
particular, mais que de normas gerais. Só me ocorre lembrar,
pra concluir, que nos livros se aconselham certos remédios que
podem fazer mal aos doentes.
Amado Alonso, do Instituto de Filologia, tem estas considerações finais:
O pitoresco (de linguagem) está bem como pitoresco e no seu
lugar limitado; mas fora disso todo o pessoal dos rádios deve
praticar as formas cultas do idioma e deve colaborar pra que se
afirme no público o respeito e o agrado pelo bem dizer.
Esta resposta, sutilmente defeituosa a meu ver, sintetiza com admirável
claridade o sentir geral dos respondedores. No fundo, como pessoas
cultíssimas que são e acostumadas às manifestações cultas da linguagem,
lhes desagrada o linguajar radiofônico e desejariam proibi-lo pra todo o
sempre, salvando-se dessa forma a linguagem de Cervantes. De Cervantes
e não a linguagem castelhano-argentina viva...
Vejamos o que há de sutilmente defeituoso na conclusão de Amado
Alonso. Diz ele que o “pitoresco de linguagem”, isto é, certos defeitos (não
os considero absolutamente “defeitos”, são manifestações diferentes, fatais)
tanto de pronúncia como de vocabulário e sintaxe, estão bem no seu campo
limitado. E acrescenta que fora disso “todo o pessoal de rádio deve praticar
as formas cultas do idioma”. Ora, eu me pergunto: a radiofonia, a coisa
radiofônica, não será também um “campo limitado”, com um pitoresco que
lhe e próprio? Aliás não se trata de “pitoresco”, trata-se de uma verdade
natural de expressão, que aos que a não têm é que parecerá pitoresca.
A língua, no seu sentido, digamos, abstrato, é uma propriedade de todo
o grupo social que a emprega. Mas isto é uma mera abstração, essa língua
não existe. O tempo, os acidentes regionais, as profissões se encarregam de
transformar essa língua abstrata numa quantidade de linguagens concretas
diversas. Cada grupinho, regional e profissional, se utiliza de uma delas.
Deus me livre negar a existência de uma língua “culta”. Mas esta é exclusiva
apenas de um dos grupinhos do grande grupo social. Essa é a língua escrita,
por excelência, tradicionalista por vício, conservadora por cacoete específico

147
Mário de Andrade

de cultismo. Ou de classe. Mas já está mais que observado que os mesmos


indivíduos que escrevem nessa língua culta, muitas vezes se esquecem dela
quando falam. Essa língua escrita não é a mesma que a linguagem da classe
burguesa, que é falada e não tem pretensões aristocráticas de bem falar.
E existem as linguagens dos sentimentos, que fazem um burguesinho ter
com a mulher um linguajar amoroso muito especial, ou ter tal linguagem nos
momentos de cólera que jamais, como vocabulário e sintaxe, ele empregaria
na festa de aniversario da filhinha. E finalmente existem as linguagens
profissionais, a linguagem do carreiro, do sapateiro, do advogado.
Ora, existe a linguagem do rádio também. O simples problema de
alcançar o maior número de pessoas, de lhes ser acessível e as convencer a
todas, obriga o rádio a uma linguagem mista, complexa, de um sabor todo
especial, a começar pelo “Amigo ouvinte”, que da linguagem dos púlpitos
passou para a do rádio. Uma observação: hoje todo o rádio brasileiro (pelo
menos o carioca) emprega o “você” em relação ao ouvinte. Não parece
absurdo? Qualquer acadêmico se arrepiará com essa familiaridade quase
ofensiva, com que o speaker se dirige a pessoas que não conhece. Mas foram as
exigências mesmas da radiofonia que levaram à generalização do você, como
fórmula de tratamento radiofônico. Foram as exigências de alcançar o maior
número de pessoas de todas as classes, foram as exigências de simpatizar,
as de familiaridade etc. Mas o você não é um tratamento absolutamente
geral no Brasil. Em certas regiões, e no próprio Rio de Janeiro, a forma mais
frequente de intimidade é o “tu”. Mas o você tinha utilidades psicológicas
e gramaticais que levaram, inconscientemente, os locutores cariocas a
empregá-lo. Era familiar, era simpatizante, mas sem exagero de intimidade.
E além disso tinha plural, que o tu a bem dizer não tem. O “vós” era de
todo em todo inaceitável para a radiodifusão cotidiana, pois só usado na
linguagem oratória ou perseverado desatentamente em fórmulas de reza.
E nem me refiro à gíria radiofônica, usada na comunicação interna
dos estúdios. Já lembrei, neste jornal, o exotismo desagradável da nossa
linguagem musical. Pois cantores e instrumentistas de rádio, muitos deles
jamais tendo lido uma artinha, estão criando toda uma terminologia
musical brasileiríssima, muito mais lógica que a culta. E como os fenômenos
musicais, cultos ou populares, são os mesmos, sucede aparecerem, nessa
terminologia radiofônica, vozes que podiam perfeitamente substituir, com

148
Seleta de artigos

vantagem de nacionalidade, as empregadas na terminologia culta. É o caso,


por exemplo, do “Fundo de canto”, expressão que ouvi faz pouco de um
rapaz radiofônico, pra designar uma segunda linha de polifonia, de função
subalterna. É admiravelmente expressiva, e não temos nada que a substitua
na terminologia culta.
Assim, está nascendo dentro da língua castelhana, como dentro da
língua portuguesa, e provavelmente dentro de todas as demais línguas, uma
nova linguagem, a linguagem radiofônica. Como a dos engenheiros, como a
dos gatunos, como a dos amantes, como a usada pela mãe com o filho que
ainda não fala, essa linguagem radiofônica tem suas características próprias
determinadas por exigências ecológicas e técnicas. Não podendo me estender
mais, termino apontando apenas a característica que mais nos importa nesse
artigo. A linguagem radiofônica tinha que se manifestar necessariamente
anticulta, como de fato se manifesta. O rádio, como a oratória e o teatro,
mas sem possuir destes o poderoso elemento plástico, é um instrumento
de convencer. Dizem-no instrumento de educar. Prefiro dizer que ele se
utiliza, como atitude educacional, só do elemento de convicção. Em sentido
muito geral e nada pejorativo, determinado pelas próprias circunstâncias da
sua vida, o rádio é um instrumento de anúncio. Tanto anuncia uma canção
como um ato governamental e, comercialmente agora, o remédio mais
eficaz contra o reumatismo. A cultura do rádio, baseada no voo infixável da
palavra falada, moldada por elementos próprios, como o da minutagem, que
tem de ser curta não por interesses, econômicos apenas, mas psicológicos,
de fadiga, de audição desprovida dos elementos plásticos da oratória etc.,
a cultura do rádio jamais será uma cultura... culta. Ora, isto leva o rádio
à disputa e ainda à delimitação do que se poderia chamar, em linguagem
atualíssima, o seu “espaço vital”. Tendo de convencer, tendo de anunciar, e
para o maior número, o rádio abandonou com muita habilidade política o
seu público mais restrito: abandonou as pessoas cultas. Não apenas porque
eram em menor número, mas especialmente porque as mais intelectualmente
difíceis e mais financeiramente custosas de convencer. Um exemplo basta.
Convencer a uma pessoa culta, em música, exige grandes orquestras, apuro
de ensaios, musicistas consumados. E jamais essa pessoa ficará plenamente
convencida e satisfeita porque a transmissão jamais iguala a realidade. E então
em filosofia, em literatura, em matemáticas etc., a dificuldade era maior.
O rádio é por essência instrumento de mediana, a que podem com interesse,

149
Mário de Andrade

utilidade e vaidade subir as pessoas incultas, mas a que as pessoas cultas se


fatigam em descer. Foi, pois, o rádio obrigado a abandonar totalmente a
parte culta do público e a não considerá-la como participante do seu “espaço
vital”. A geografia do rádio não alcança as montanhas elevadas da cultura.
Fica-se pelos vales, pelos platôs largos e pelos litorais. Daí a sua linguagem
particular, complexa, multifária, mixordiosa, com palavras, ditos, sintaxes
de todas as classes, grupos e comunidades. Menos da culta, pois que desta
ele apenas normalmente se utiliza daquelas 100 palavras e poucas normas
em que ela coincide com todas as outras linguagens, dentro dessa abstração
que é a Língua.

150
A língua viva1

A verdade mais verdadeira deste mundo é que o meu último artigo


sobre a linguagem radiofônica, jamais eu tive intenção de escrever. Sucedeu
porém que no ato de lançar sobre o papel, o artigo que vai aqui, saiu outro.
Logo depois de uns poucos metros de escritura, meu pensamento descobriu
um atalho, quis saber onde que ia parar e deu naquele abismo ousado da
linguagem radiofônica, provocada pelas condições sociais do rádio. Paciência.
A honestidade, agora, me obriga a divulgar o que tinha a dizer e não foi dito.
No inquérito sobre o “problema do idioma na radiodifusão”, organizado
entre as mais credenciadas instituições culturais argentinas pela Diretoria
Geral dos Correios e Telégrafos, eu tive a impressão, tanto pelas perguntas
como pelas respostas, que a principal realidade do assunto não entrou nas
cogitações de ninguém. Não houve uma clara e realista consciência de
que a linguagem usada por milhares de pessoas, já por si diferentes uma
das outras e ainda por cima diferenciadas por profissões, situação social
etc., é necessariamente um instrumento vivo, em eterno fazer-se, a que
qualquer coisa modifica, transforma ou acrescenta. Ainda mais: não se
levou exatamente em conta que, dentro dessa língua total, a linguagem
culta funciona mais ou menos como uma língua morta, de tendências
necessariamente conservadoras que a fixam pelo estudo e a estratificam
pelo cultivo da tradição. A linguagem culta funciona bem exatamente
como durante muito tempo funcionou o latim, depois de nascerem e se
estabilizarem as línguas românicas: era o instrumento oficial e transcendente,
grafado no papel, único usado entre as pessoas cultas nos seus trabalhos

1 Este artigo foi publicado n’O Estado de S. Paulo, em 10 de março de 1940 e na Revista da
Academia Paulista de Letras, em 12 de março de 1943; compõe ainda a coletânea de artigos
O empalhador de passarinho (1946).

151
Mário de Andrade

de erudição. O indivíduo que dentro de casa e na rua falava o castelhano


ou o português vivos, escrevia em latim morto o seu livro sobre botânica.
Este é muito exatamente o papel da linguagem culta dentro de uma
língua. E o indivíduo brasileiro que na rua diz “me parece” ou em casa
pede a uma visita: “Se sente, faz favor”, escreverá logo depois “parece-me”
e “sente-se”, isto é, uma língua morta estratificada, que ele não se pensa no
direito de mudar. Por quê? Porque essa linguagem culta é a língua cujas leis
ele decorou no colégio, é a língua estabelecida e fixada pelos clássicos, é a
tradição. E ainda existe uma razão mais ponderável: é que a transformação
dessa linguagem, as modificações introduzidas individualmente dentro
dela, podem se tornar incompreensíveis ou de impossível aceitação por
centenas de outras pessoas de outras regiões, pra quem o trabalho também
foi escrito. Se eu escrevo umas ideias novas sobre Kant, é certo que não me
dirijo ao meu barbeiro e compadre, nem mesmo a minha mãe ou mulher,
nem talvez ao meu amigo mais íntimo, dono de todos os meus segredos desde
a infância e atualmente corretor de café em Santos. Mas, sem sequer lhes
caber o nome, estou me dirigindo a vários professores de Coimbra, a todos
os filósofos de língua espanhola que também conhecem o português. Esta
é a razão mais ponderável da estratificação e imutabilidade da linguagem
culta. É uma língua morta que tira da sua rigidez cadavérica as melhores
razões de sua vitalidade.
Esta muito bem. Mas parecerá imediatamente às pessoas que me
conhecem que afirmando estas fáceis verdades, me coloco em enorme
contradição comigo mesmo, pois sempre tenho sido em minha vida literária
um deslocador, um destroncador, um destruidor dessa linguagem culta,
com os meus insuportáveis “erros” de português.
Mas não há contradição alguma. O fato da linguagem culta se assemelhar
a uma língua morta e manifestar tendências, algumas falsas e algumas
utilitárias, para a estratificação, é apenas uma verdade fácil e preliminar.
Outras verificações se ajuntam a essa verdade preliminar, que, à revelia dos
indivíduos, obrigam a linguagem culta a ir se modificando com os tempos.
O espírito de épocas diferentes, as influências exteriores, as invenções
novas, por exemplo, são outros tantos elementos poderosos que modificam
cronologicamente a linguagem culta imutável. Uma pessoa de hoje que
pretendesse usar a linguagem culta de Frei Luís de Sousa, não o poderia

152
Seleta de artigos

fazer – a menos que fosse um pobre de espírito, tão excessivamente pobretão


que não tivesse nada a dizer. Porque o pensamento e a sensibilidade de hoje
não podem se conter dentro do vocabulário e muito menos dentro do estilo
de Frei Luís de Sousa. Mas não quero dizer com isto que a linguagem culta
se enriquece com os tempos. Ela só pode se enriquecer dentro de uma só
época e em relação a esta época. Com efeito, o vocabulário contemporâneo
e o estilo atual seriam absolutamente inúteis pra Camões. Se ele os tivesse
à mão, antes de mais nada, não seria Camões! Mas imaginando a hipótese
que o fosse, isto é, fosse o mesmo gênio que foi, com o sentimento e a
cultura do tempo dele, ele deixaria de parte tudo o que possuímos e nos é
imprescindível, pra usar apenas o vocabulário e sempre o estilo que criou.
O que hoje possuímos não o enriqueceria.
Além destas circunstâncias sociais que levam a linguagem culta a se
modificar com o correr dos tempos, há que não esquecer ainda os imperativos
individuais do escritor. Isto é muito importante porque é o que marca
melhor a cisão da linguagem culta em duas manifestações profundamente
diversas: a linguagem científica e a linguagem artística. Está claro que não
é a mesma coisa escrever uma comunicação sobre a moléstia de Chagas
e uma poesia de amor. As exigências universalistas da verdade científica
obrigam a linguagem culta a se estratificar o mais possível, de forma a
ser imediatamente e insensivelmente compreensível a todos quantos a
praticam. Ao passo que as exigências individualistas da arte permitem à
linguagem artística uma mobilidade extrema. Dentro dela, a simplicidade,
por exemplo, não é preceito de Albalat, a que obedecem cegamente apenas
os academizantes. A simplicidade não é preceito: é qualidade que uns têm,
outros não. Como preceito irrevogável, ela alcança muitas vezes o simplismo
e o simplório. Eu afirmo que pregar a simplicidade como ideal de perfeição
literária e norma objetiva de julgamento de obras-de-arte... objetivas, é
uma penúria. Quando a simplicidade é um atingimento de estilo, como no
Machado de Assis do Memorial de Aires, muito que bem: é uma admirável
qualidade. Porém se imagine o que seria a simplicidade, mesmo apenas
de dicção, para um Dante, um Shakespeare, como pra um Mallarmé e um
Stephan George, pra um Euclides da Cunha como um Murilo Mendes. E pra
um Kant, de um lado, e pra um Joyce, do outro! Impor a simplicidade como
garantia até de profundeza, como faz Sergio Milliet (O Estado de S. Paulo,
18-XI-44), é simplesmente um academismo. É dormir conformistamente

153
Mário de Andrade

sobre um quarto de dúzia de leizinhas de mestre-escola, sem reverificá-las


a cada passo da evolução das individualidades e a cada objetividade de cada
obra. O quartanista ginasiano bem-comportado também escreve simples.
Não por atingimento porém: por incapacidade.
E é nisto que residiu a falha principal do inquérito argentino: ele
esqueceu totalmente a mobilidade da linguagem culta usada pela arte. Como
o inquérito só perguntava sobre a pronúncia culta e as linguagens regionais,
familiares ou arrabaldeiras, os respondedores, repudiando ou aceitando estas
linguagens, em oposição à linguagem culta, se esqueceram de verificar que
é em todas essas linguagens que o artista colhe o melhor da sua expressão
literária. Além da sua própria sensibilidade, é na fonte riquíssima de todas
as linguagens parciais de uma língua, que o artista vai encontrar o termo
novo, o modismo, a expressão justa, a sutileza sintáxica, que lhe permitem
fazer da sua linguagem culta, um exato instrumento da sua expressão, da
sua arte. E isto é que se faz necessário esclarecer e compreender, porque é a
fonte da eterna incompreensão e ridícula briga entre os críticos e censores de
um lado e o artista verdadeiro do outro. E é também o que faz evolucionar
a linguagem culta. Em vez (ai!), o criticóide pega da poesia ou do conto e o
confere pela bitola de Herculano e Garrett. Dá urros. E o próprio artista,
levado pelas próprias circunstâncias psicológicas da criação, os seus interesses
de ser aplaudido e ser amado pela maioria, foge da expressão nova colhida
dos italianos da sua terra, dispensa o termo que lhe deu a criada e que a
sua sensibilidade exigia (pois que o lembrou instintivamente), e recoloca
o pronome ou em vez de “camarão” diz “bonde”, hesita meio desesperado,
mas como está com intenções de lutar por uma cadeira na Academia, acaba
corrigindo pra “veículo a tração elétrica”.
Esta é a verdade única honesta. A linguagem culta, especialmente
quando artística, é também uma língua viva. É mesmo a única língua viva
que congraça em sua entidade todas as linguagens parciais de uma língua.
E das outras... Ela tem o direito de empregar qualquer voz, qualquer
modismo, qualquer sintaxe. As linguagens parciais não têm este direito.
Se em São Paulo, falando com minha mana paulista, eu lhe peço que vá
na “camarinha” buscar meus chinelos, eu estarei tão anarquista e pedante
como se lhe falasse no estilo de Camões. Mas como artista, eu quero o meu
direito de empregar “camarinha” no meu conto ou na minha poesia, seja pra

154
Seleta de artigos

efeitos de regionalismo, seja pra efeitos de pitoresco ou de comicidade, ou


seja mesmo para efeitos de sonoridade ou de ritmo. E ainda o emprego da
palavra pode ser um simples e utilíssimo fato de psicologia pessoal. Viajei
pelo Nordeste, lá dormi em muitas camarinhas, lá empreguei a palavra pra
me fazer mais imediatamente compreendido, lá sonhei, lá me iludi, lá sofri.
A palavra pode pois surgir em mim sem necessidade estilística nenhuma,
flor do meu próprio jardim. E eu, como artista, tenho o direito de me
expressar com ela. Ela é uma verdade que me liberta e me esclarece. Tudo
mais e falsificação e falsidade. Que um português não me compreenda, que
um paulista mesmo não me compreenda?... Eu os forçarei a me compreender
se por acaso for um verdadeiro artista.
Post-scriptum – Esta claro que nenhuma destas minhas ousadias justifica a
ignorância. O escritor é o indivíduo que se expressa pela linguagem alfabética,
isto é, a linguagem culta. É preciso, pois, que ele conheça preliminarmente
essa linguagem que lhe vai servir de instrumento de expressão. É quase
lapalissada afirmar que só tem direito de errar quem conhece o certo.
Só então o erro deixa de o ser, pra se tornar um ir além das convenções,
tornadas inúteis pelas exigências novas de uma nova expressão. O resto é
academismo, e é interesse pessoal, não da obra-de-arte.

155
A língua nacional1

A filologia brasileira tem progredido prodigiosamente nestes últimos


tempos. Quem, há vinte anos atrás, pegava num livro de filologia escrito por
brasileiro, noventa e nove vezes sobre cem, tinha a mesma sensação de quem
folheia um álbum de retratos antigos de parentes. O parente, no caso, o avô
respeitável e muito barbado, de sobrecasaca e alguma parecença, era a bonita
língua portuguesa. Estudos, em geral pouco originais, mas frequentemente
doutíssimos, sobre a língua que Portugal falou e fala. Quem se lembraria
nunca de citar uma sintaxe de Castro Alves, vote! Com exceção bastante
rareada dos colecionadores de brasileirismos vocabulares, tudo o mais era
a cultura dos clássicos portugueses, em que a língua se represara inutilizada
e fixa, incapaz de fecundar mais mundos. E isto se passava justamente no
Novo Mundo...
Tenho aqui sobre a mesa uma dezena de volumes de filologia, saídos o
ano passado ou já este ano, e é o novo mundo. Todos eles, sem discrepância
de um só, versam assuntos brasileiros. Mesmo quando se trata do professor
Arcy Tenório d’Albuquerque, tão preso ao clássico e à tradição, e de linguagem
tão arrevezada, o assunto que ele buscou desta vez foi A linguagem de Rui
Barbosa (Schmidt Editor, Rio). E o professor Arcy Tenório d’Albuquerque
vem zangado, com razão reivindicando para o baiano o direito de um lugar
entre os maiores clássicos da língua. “Sobejam-lhe qualidades para ser
ocupante de posição de realce, entre os clássicos de maior renome. A sua
linguagem é pura, quase imaculada, assaz difícil e restolhar-lhe uma falsia
entre a ofuscante pedraria valiosa com que se entretecem os seus períodos”.

1 Este artigo foi publicado n’O Diário de Notícias, em 14 de abril de 1940; compõe ainda a
coletânea de artigos Vida literária (1993).

157
Mário de Andrade

E, ao acaso: “Ele enricou a nossa literatura com milentas páginas que são
jóias ofirinas”...
Ora Rui Barbosa, mesmo como linguagem, é um valor brasileiro. Se
a sua sintaxe era escravizadamente lusitana, sempre é certo que justo pela
sintaxe é que a expressão nacional menos se afasta das normas gerais da
língua. Talvez mesmo seja esta a razão que mais nos impede, por enquanto,
de chamar à linguagem falada deste lado do Atlântico, de “língua brasileira”,
como bem observa o professor Antenor Nascentes nos seus Estudos filológicos
(Civilização Brasileira, Rio, 1939). Neste seu livro, o professor Nascentes (este
já um valor de primeira ordem) relata o ganancioso caso de alguns deputados
do Distrito Federal e da também extinta Câmara Nacional, provavelmente
jejunos de assuntos mais salvadores da pátria, terem mandado chamar à
linguagem que falamos de “língua brasileira”. Não é possível. O bom senso
não nos permite tomar semelhante liberdade com a ciência.
O próprio Rui Barbosa que foi um neologista assanhado, criou uma
prodigiosa coleção de vozes novas que na infinita maioria poderiam ser
inventadas por qualquer minhoto, igualmente imaginoso e verborrágico.
É impossível tomar por brasileirismo, verbos como “mitridatizar”,
“rebarbarizar”, “sobrepovoar”, em que nem um só elemento deixa de ser
preliminarmente luso. O senhor Tenório d’Albuquerque pacientemente
nos mostra o jogo mirífico de prefixos, com que o baiano criava os seus
verbos novos. Aliás, eu ainda me pergunto se será justo averbar, como
“neologismos”, essas palavras inventadas de passagem por um indivíduo,
que, mesmo ele, nunca mais as repetirá na sua vida e livros. A língua é fato
social, e o neologismo só o é quando adotado por uma comunidade. Rui
Barbosa, no furor bacântico das suas objurgatórias, se servia frequentemente
da palavra inventada na hora, “cachimbear”, “verminar”, “prestimanear”,
verdadeira virtuosidade oratória de ótimo efeito. Mas quem mais usou desses
verbos? Que comunidade os adotou? São antes palavras-falenas, palavras
que nascem e morrem no instante, com que todos nós... ruibarboseamos
no calor das convicções.
O professor Nascentes, embora num ou noutro capítulo destes Estudos
filológicos aborde os fenômenos da linguagem, preferiu mais se conservar
no campo da história da filologia. O seu esboço histórico sobre a filologia
portuguesa no Brasil é o trabalho mais completo que temos no assunto.

158
Seleta de artigos

Embora defensável, não pude comigo sem lastimar o critério adotado de só


recensear a filologia das gerações passadas. É certo que, de outra maneira,
o ilustre professor do Pedro II se veria obrigado a citar o próprio nome
várias vezes, pelas excelentes obras que já nos deu, mas para meu instinto
de justiça, um esboço histórico da filologia brasileira que cala o nome
de Antenor Nascentes e desse mestre admirável de profundeza e agudez
crítica, de honestidade e cultura que é Sousa da Silveira, fica poderosamente
incompleto.
Aliás, como achega não menos valiosa e pormenorizada ao trabalho
do professor Nascentes, surgiram agora em livros os trabalhos histórico-
-bibliográficos do professor Artur Neiva, sobre os vocabulários de
brasileirismos. É também o trabalho mais completo de seu assunto que
conheço.
Artur Neiva é tupinólogo apaixonado. O restante do seu ótimo livro
Estudos da língua nacional (Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1940) é
todo ele dedicado à influência do tupi-guarani em nossa língua, destrinçando
o significado e a etimologia de numerosas palavras, analisando autores e
fatos. O ilustre cientista descansa dos seus trabalhos no estudo da língua,
e o faz com uma cultura, uma visão prática e uma paciência notáveis.
Ainda no terreno da tupinologia tivemos o ano passado um manual
bastante prático do senhor Cristóvão de Mauriceia, para uso do senhor
Toda-a-gente, sobre os Nomes geográficos aborígenes. Não é trabalho original,
embora útil para uso rápido. Nele o dicionarista, de acordo com a tradição
mais corrente e renitente, considera a palavra Araraquara, tão encontradiça
em nossa toponímia, como significando “refúgio de araras”. Ora é contra isso
que se revoltou um nativo da cidade paulista de Araraquara, Mota Coqueiro,
pseudônimo que já não pode mais ocultar nos meios linguísticos o senhor·Pio
Lourenço Corrêa. A sua Monografia da palavra Araraquara (Tipografia
Camargo, São Paulo, 1940), já agora em terceira edição, fortemente revista
e melhorada, nos vem provar que o disseminado topônimo significa “lugar
onde nasce o sol”, “morada do sol”. O acuradíssimo trabalho do senhor Pio
Lourenço Corrêa é dos ensaios mais finos e hábeis de psicologia linguística
que conheço em português. O monografista parece que esgotou os argumentos
em favor da sua tese, mas creio que pelo menos, um ainda lhe escapou. No
lendário ameríndio, creio que justamente na Amazônia, onde a palavra

159
Mário de Andrade

Araraquara também ocorre como nome de serrania (por desgraça irrespirável


não posso ter aqui comigo, no Rio, os meus fichários e meus livros, para
esclarecer mais esta afirmativa) existe a crendice de que é um “daimônio” ou
um feiticeiro que tira a noite ou o dia (ara) do buraco, da toca (quara). Nada
mais natural, pois, que o índio designasse, determinadamente, as furnas,
tocas e noruegas de certas serras, como o buraco onde o sol vive, “Araquara”,
nome que, pelo menos em São Paulo, foi mais primitivo, substituído depois
por Araraquara. Mas isto é apenas um grãozinho no areião de argumentos
ajuntados pelo senhor Pio Lourenço Corrêa, num livro muito bem escrito,
o qual veio demonstrar que, de raro em raro, aparece algum filólogo que,
além de escrever correto, escreve bem...
E por falar em psicologia linguística, não posso esquecer o professor
Cândido Jucá, Filho, que em 1933 nos deu um bom escudo sobre psicologia
como determinente de evolução sintática. Seu último trabalho, de louvabilís-
sima paciência A pronúncia brasileira (Coeditora Brasílica, Rio, 1939), ensina
a pronúncia nacional da língua a franceses, ingleses e alemães. Ainda este
mesmo professor assina um dos trabalhos da interessantíssima Miscelânea
de estudos (Rio, 1939), coordenada em 1938 pelos amigos e discípulos desse
grande filólogo que é o professor Manuel Said Ali, em sua homenagem.
São trabalhos de vário valor e vário assunto, mas quase todos eles versando
problemas da língua nacional do Brasil. E este é, para mim, o progresso
admirável da filologia brasileira contemporânea, a sua utilidade nacional.
Já não são mais estudos de português, mas incontestavelmente de língua
nacional. Talvez a maioria dos filólogos de 1920 morresse de estupor vendo
um professor do Pedro II, como o senhor Nascentes, afirmar calmamente
que a exigência de colocação dos pronomes à portuguesa, é coisa para nós
relegada ao domínio das bizantinices anacrônicas. Vencemos já uma for-
midável etapa. Agora só nos falta o passo definitivo, que será ver tais e tão
doutos filólogos “errarem” também a colocação dos seus pronomes. “Me
parece” que nada mais poderíamos desejar então...

160
O baile dos pronomes1

Vai acesa em São Paulo a preocupação da “língua brasileira”; e de um


clássico como o senhor Mota Coqueiro, como de um novíssimo como o senhor
Mário Neme, têm sido muitos este ano, nos jornais e revistas do Estado,
os depoimentos e as contribuições a respeito deste nosso gostoso falar e
dificílimo escrever. Esta inquietação nova, creio que em grande parte se deve
ao discurso em que o senhor Cassiano Ricardo lançou a “língua brasileira”
na Academia Idem, no qual, aliás, com a generosidade costumeira, ele me
tratou com tanta elegância intelectual. Achei prudente, portanto, retribuir
a atenção que o distinto acadêmico me dispensou, com estes comentários
sobre o pronome átono iniciando frase.
Há pouco menos de 20 anos atrás, quando também as minhas impa-
ciências de moço me levavam a falar em “língua brasileira”, e não, mais
comodamente para minha consciência, em “língua nacional” como hoje
falo, foi esse um dos problemas que mais me preocuparam. Tempo vivo
aquele, em que os meus próprios amigos mais sábios caíam em cima de
mim por causa dos meus abrasileiramentos de linguagem... Eram discussões
verdadeiramente angustiosas, sobretudo por causa da incompreensão e
da leviandade de julgamento que levavam os meus próprios amigos, às
vezes, a imaginar que eu estava querendo “criar” a língua nacional e cousas
assim. Foi uma incompreensão inicial destas que me levou a quase romper
relações com um dos meus amigos mais queridos, Renato Almeida, o autor
da História da música brasileira. Com outro, o douto calmante filosófico
do nosso grupo, Couto de Barros, resolvemos ambos discutir na máquina

1 Este artigo foi publicado n’O Estado de S. Paulo, em 7 de outubro de 1941 e na Revista da
Academia Paulista de Letras, em 12 março de 1942; compõe ainda a coletânea de artigos O
empalhador de passarinho (1946).

161
Mário de Andrade

de escrever, evitando de vez o numeroso “Não falei isso!” das discussões


bocórias. Couto de Barros me apareceu à noite, sentou à minha Remington
e gravou o primeiro argumento. Lhe respondi do mesmo jeito. E assim se
travou uma das discussões mais acaloradas que já tive, sem que uma só
palavrinha machucasse o ar dormido do bairro.
Mas um dos que mais me atenazaram foi Manuel Bandeira. Concordando
em princípio comigo, me conhecendo suficientemente pra não me atribuir
mais que a modéstia de contribuição e experiências pessoais, me deixava
tonto com duvidinhas e restriçõezinhas que pingavam a cada carta semanal
que então recebia dele, bons tempos... Uma dessas dúvidas foi justamente
a de que hoje vou produzir neste artigo as provas que ajuntei. Ele achava
que eu não tinha direito de generalizar pra toda a série dos pronomes, o
caso do “Me parece”, que só frequentava a primeira pessoa do singular. Mas
me saí brilhantemente e o grande poeta pernambucano teve a franqueza
de reconhecer que eu estava bem escudado, embora discutisse algumas das
provas apresentadas por mim.
Porque, a meu ver, muito embora o caso compareça também na língua
escrita de Portugal, o problema do pronome oblíquo iniciando frase, não
é apenas uma questão de maiúscula. Muitas vezes no próprio decorrer da
frase a tendência se revela. Pois não se trata apenas de iniciar realmente
a frase, com a sua maiúscula erguendo orgulhosamente o pronome átono:
o fenômeno é muito principalmente de ritmo, não só de ritmo no tempo,
como também de ritmo psicológico. Assim, num dos mais bonitos sambas
nacionais, o “Vejo lágrimas”, publicado em disco Columbia n. 22-65-B, o
cantor argumenta:
Se choras por alguém
Que te enganou:
“Te” conforma, pois Jesus
Também se conformou2.

2 Este exemplo colhido como prova constitui uma das notas de trabalho que integra o
manuscrito d’A gramatiquinha da fala brasileira. Sobre o texto da nota, o autor acrescenta
a lápis azul o termo “usado”, sinalizando a incorporação do documento ao artigo. Mário
de Andrade procede igualmente com todas as referências bibliográficas fornecidas neste
artigo.

162
Seleta de artigos

Num caso destes, se não estivesse presente ao poeta e ao cantor a


constância rítmico-verbal brasileira, tudo o levaria a dizer “conforma-te”, não
só o movimento musical que para em som mais longo no fim de “enganou”,
como a própria pontuação intelectual da frase. Com efeito, terminada
uma proposição dubitativa, o sentido do texto não conclui sobre ela, mas
inicia outra proposição que é um conselho, e que o sentido inteiro do texto
anterior, mesmo sem a proposição dubitativa, era suficiente para justificar.
Mas na publicação impressa do texto, o poeta, a quem decerto puxaram
as orelhas, substituiu o “Te conforma” por um paciente “Tem paciência”...
Já desde os tempos de Gregório de Matos, essa tendência se manifestava.
Num dos sonetos ao governador Antônio Luís, ele escreve:
Com olhos sempre postos na ordinária,
“Vos” dou os parabéns...
Sintaxe que, embora gramaticalmente aceitável, juro que muito
gramaticóide evitaria, tal a ênfase com que o pronome enclítico, iniciando
o verso, e refugiando a posposição, nos fere portuguesmente o ouvido e o
olhar. Da mesma forma, em propostas de caráter enumerativo, cada uma
delas é bem uma frase isolada e não é a vírgula que pode nos dar satisfação
sintáxica. Como neste passo de Darci Azambuja em No galpão: “mas o gambá
pediu muito, ‘se’ ajoelhou, fez muita lábia”... E eis mais um bom e insistente
caso popular, com o Se e o Lhe, publicado no folheto paraíbano “Conselhos
de Padre Cícero a Lampião”:
Disse-lhe (sic) o padre: — Meu filho,
Não persista no pecado,
Deixa a carreira dos crimes,
“Se” torne regenerado,
Se me promete deixar,
“Lhe” prometo trabalhar
Pra (sic) você ser perdoado.
Primor de estilo pachorrentamente padresco, como se vê... Enfim ainda
a tendência pode ser entrevista no caso do pronome intercalado entre o
verbo auxiliar e o no infinito. Se observe este exemplo deliciosamente

163
Mário de Andrade

ofensivo, que colho no folheto da literatura de cordel nordestina, Bento, o


milagroso de Beberibe:
Fiz Romano atropelar-se (sic)
E fiz Germano correr,
Abocanhei Ugolino
Porém não pude “o” morder.
Mas vamos aos casos insofismáveis. A obliquação do pronome da
primeira pessoa do singular, quase nem merece exemplos, por todos
reconhecida como normal em nossa língua. Não citarei dela nenhum exemplo
popular. Mário Marroquim já os recenseou com riqueza em A língua do
Nordeste. Lembro apenas três exemplos eruditos. Nas Minas de prata, José
de Alencar, patrono santo da língua brasileira, faz Estácio dizer ao amigo
velho: “— ‘Me’ guiareis com a vossa experiência” (Garnier, volume I, p. 67).
Aluízio de Azevedo também aceita que um dos seus personagens do Cortiço
diga ao vendeiro: “— ‘Me’ avie, seu Domingos!” (Garnier, p. 57). E vemos
Fagundes Varela encampar a sintaxe no Evangelho nas selvas:
— Naída! — Padre, “vos” espero, vamos.
— O que fazias, filha? — “Me” lembrava...
E ainda no Canto VI, bem psicologicamente, são usados os dois ritmos
numa só frase: “‘Me’ interrogaste em nome do Senhor... ‘cala-te’ e escuta”.
A segunda pessoa também dará exemplos numerosíssimos. “Te
vejo, te procuro” inicia Gonçalves Dias uma das estrofes dos “Arpejos”,
insofismavelmente. E ainda nas pródigas Minas de prata (volume III, p. 168),
Raquel ameaça o pai judeu: “Te denunciarei sim!” Nos Matizes (1887) F. A.
Nogueira da Gama inicia a fala da cidade do Rio se dirigindo a São Paulo:
“Te saúdo, caipirinha”... E outro paulista da gema, Brasílio Machado, nas
suas Madressilvas de 1876, nos oferece uma poesia intitulada “Te esqueceste”,
que é da maior força... Aliás, creio que foi João Ribeiro quem analisou
primeiramente a diferenciação psicológica entre o mansinho “Se sente”
nosso e o mais imperativo “Sente-se” desses portugueses, durante vários
séculos acostumados a mandar nas suas colônias. Eu reconheço o valor da
psicologia organizando as sintaxes nacionais, mas tenho um pouco de medo
disso. Levaria a generalizações monótonas e sem sabor estilístico. Creio
que o fenômeno das diferenciações sintáxicas é muito mais um problema

164
Seleta de artigos

fonético de ritmo verbal. Silva Ramos (Revista de Cultura, ano 1, volume


I, p. 22) fornece argumentação justamente contrária ao valor imperativo
do enclítico: “A mim, por exemplo, diz ele, ser-me-ia impossível, falando
ou escrevendo, iniciar uma proposição por pronome átono, e, entretanto,
tendo uma vez, posto em dúvida a um colega que um projeto de lei que nos
interessava tivesse parecer favorável, ele me atirou com um ‘te garanto que
ele será aprovado’, com tal intimativa ferindo com ênfase o pronome, que
confesso me senti mais garantido”... E pra acabar com o Te, colho na Revista
da Academia (fevereiro, 1933), um exemplo folclórico de Goiás:
“Te” compreendo, morena
Já sei que queres dizer,
Como canguçu ou tigre,
Felizes temos de ser.
Com a terceira pessoa do singular, cito primeiro um exemplo erudito,
o doutor Severino de Sá Brito nos seus Trabalhos e costumes dos gaúchos, que
na página 30 assim abre um parágrafo: “Se cultivava muito milho, também
feijões, abóboras, melancias”... Semieruditamente, um anúncio de cabaré
paulistano avisa os concorrentes dum campeonato de tango: “Se recebem
(sic) as inscrições na gerência”. E Mário Marroquim nos fornece um exemplo
popular:
“Se” vendo o compadre pobre
Naquela vida apertada...3
No plural, a primeira pessoa é reconhecida por Lúcio Cardoso na
boca de um homem do alto São Francisco, em Maleita: “Nos salve agora”.
Conheço outro exemplo impresso, num folheto recifense História do menino
da floresta do célebre cantador Martins de Ataíde, em frase brasileira até
debaixo d’água:
“Nos” faças esta caridade,
Deus há de lhe (sic) agradecer.

3 Única referência que não figura entre as notas de trabalho coletadas para A gramatiquinha
da fala brasileira. No entanto, busca o exemplo na leitura d’A língua do Nordeste (1934), de
Mário Marroquim, obra em sua estante com notas marginais.

165
Mário de Andrade

Da segunda pessoa, além das Minas de prata (volume III, p. 400) em que
vem a pergunta: “Vos serve este meio?”, conheço uma quadra paulista da
dança de São Gonçalo (Revista do Arquivo, número XXXIII, p. 108) que canta:
“Vos” peço, meu São Gonçalo,
Com muito gosto e alegria,
Aceitai esta promessa
E também nossa romaria.
Com Lhe e Lhes, não me ocorre exemplo, é mais provável ter eu perdido
alguma nota. Mas assim como nos Açores, nas festas do Espírito Santo, o
povo, se referindo à coroa, diz ao Imperador:
“A” coloque no altar
E junto o seu cetro lindo, etc.
(verso, aliás, de origem erudita). Mota (Sertão alegre, p. 89) colheu na boca
dum cantador o romance em que vem:
O padre disse: — “O” protejo!
protegendo com a mesma energia a sintaxe nacional. Com tudo isso, como
esquecer o epigrama de Alberto Ramos...
— Me dá! — Dá-me! — Me dá! digo eu — Erra, imbecil!
Bruto! Erro em Portugal, acerto no Brasil!

166
Mário e o meio do caminho
eterno

Ainda sofremos, em diversos aspectos da nossa vida cultural, com a


assombração do que chamo de fantasma colonial. E é no plano da
língua que esse fantasma faz seus maiores estragos (Marcos Bagno1)

“Porém eu sei o português. Ou pelo menos sube.” Na sua mistura de


reverência e irreverência, seriedade e deboche, esse trechinho pleno de
maravilhas pode ser lido como uma espécie de súmula da Gramatiquinha da
fala brasileira, o livro inconcluso em que um dia Mário de Andrade sonhou
sistematizar a “fala brasileira” – para depois negar que houvesse sonhado,
pois afinal lhe faltava conhecimento para se meter “nas altas cavalarias
de escrever um livro de linguagem” – e que ficou para sempre no meio do
caminho, parecendo construção e já ruína.
O meio do caminho é um lugar adequado para o autor. Não porque
ele favorecesse a ponderação morna, a mediania – muito pelo contrário.
É que, antecipando tendências com seu característico espírito visionário e
sem medo da ousadia, do passo maior que a perna que leva ao tropeço (“Vale
mais errar porém fazer do que não errar e não fazer”), Mário de Andrade
conjurou nessas anotações um futuro ainda não inteiramente atingido: o
de uma nação enfim unificada por uma língua oficial que seja a língua do
Brasil. “De que Brasil?”, ele se pergunta. “Do Brasil que por esse tempo de
então será o Brasil e que eu não posso imaginar bem o que será.”

1 BAGNO, Marcos. Gramática de bolso do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial,
2013.

167
Sérgio Rodrigues

É significativo que cem anos se interponham entre a presente edição


da Gramatiquinha e a Semana de Arte Moderna de 1922. Se rodarmos a
história para trás a partir desta, o mesmo número redondo nos depositará
na Independência, marco fundador da soberania política do país. Isso situa
a figura imensa e ocupadíssima de Mário, com seus muitos braços metidos
nas mais diversas frentes do trabalho de modernização da cultura nacional,
bem no meio, isto é, numa posição cronologicamente equidistante entre o
começo da viagem e o agora. Por viagem entenda-se, no caso, um processo
tumultuado, cheio de marchas e contramarchas e ainda inconcluso: o da luta
do português brasileiro por seu direito pleno a ser o idioma que de fato é.
É claro que o autor da Gramatiquinha não se encontrava sozinho na
empreitada. A nacionalização da língua era uma pauta dos escritores
modernistas, como havia sido, com mais moderação, de importantes
escritores românticos. Mais do que isso, estava no ar do tempo e até na
cultura de massa. “Tudo aquilo que o malandro pronuncia/ Com voz
macia é brasileiro/ Já passou de português”, cantava Noel Rosa num samba
de 1933 (“Não tem tradução”). “O período que vai de 1920 a 1945 é, sem
contestação, o mais denso e tenso de toda a história da língua portuguesa
no Brasil”, afirma Edith Pimentel Pinto no livro2 em que compila artigos
daquele período sobre um objeto designado por nomes tão diversos como
brasileiro, fala brasileira, língua brasileira, língua nacional, idioma nacional,
língua pátria, língua vernácula, português brasileiro, brasilina (como propôs
Monteiro Lobato) ou brasiliano (na preferência de Roquette Pinto). Com a
nomenclatura, variavam também as ideias sobre o grau de autonomia que
teria a variante brasileira em relação ao português europeu.
Não poderia ser diferente, dada a complexidade linguística da matéria.
Se o elenco da peça era vasto e os pontos de vista, múltiplos, é provável que
nenhum outro personagem do drama tenha ardido na chama da causa com a
mesma febre do autor de Macunaíma – livro de 1928 que, buscando integrar
falares das mais diversas regiões brasileiras numa síntese anárquica, serviu
de vitrine para grande parte da pesquisa vocabular que Mário de Andrade
empreendia em livros, imprensa, correspondências, viagens, conversas.
A questão lhe parecia ao mesmo tempo existencial e cívica. Enquanto não

2 PINTO, Edith Pimentel (Org.). O português do Brasil: textos críticos e teóricos, 2: 1920-1945:
fontes para a teoria e a história. São Paulo: Edusp, 1981.

168
Mário e o meio do caminho eterno

se unificasse pela língua nacional o Brasil seria, para ele, nada além de uma
“pseudonação”.
É por isso que, correndo o risco de esticar um pouco além da conta a
metáfora do meio do caminho, podemos afirmar que a figura alta e desajeitada
daquele jovem poeta paulistano está até hoje plantada ali, à beira da estrada.
Como a “mão de zinco pregada na parede da vendinha da esquina”, na
curiosa imagem cunhada por ele mesmo, indica a direção para os falantes
que vêm depois. Não faz isso porque seus argumentos sejam cientificamente
sólidos ou o colecionismo de usos e costumes linguísticos que empreendeu,
exaustivo ou metódico. É sobretudo a temperatura emocional de seu texto
que, vista de hoje, parece mais atual do que nunca.
Com mais método, paciência e conhecimento de causa trabalhavam
naquele momento sobre o vocabulário da língua brasileira nomes como
Amadeu Amaral, Antenor Nascentes e Mário Marroquim. Mário de Andrade
estava pronto a reconhecer a primazia dos especialistas: “Fui obrigado a me
meter num despropósito de assuntos e por isso ficar na epiderme de todos
eles”, desculpa-se. Contudo, num movimento típico, dá um jeito de virar do
avesso a humildade extrema para, num passe de mágica, transformá-la em
orgulho pimpão. É o que faz logo na abertura do prefácio da Gramatiquinha:
Outros é que deviam escrever este livro e tenho consciência de
que um dia a gramática da fala brasileira será escrita. Porém certas
considerações se não desculpam ao menos explicam o meu topete.
Outros deveriam escrever este livro, não tem dúvida, porém o
certo é que ninguém se abalançou a escrevê-lo. Inda mais: temos
livros valiosos, como Língua nacional de João Ribeiro, O dialeto
caipira, de Amadeu Amaral, que são verdadeiros convites para
falar brasileiramente. Porém os autores como idealistas que são
e não práticos, convidam, convidam porém principiam não
fazendo o que convidam. Eu tive a coragem e é o que explica o
meu valor funcional na literatura moderna.
Estudiosos já apontaram que a Gramatiquinha tem valor desigual quando
tomada nos termos de uma ciência linguística que dava seus primeiros passos
no país – e que seu autor, autodidata esparramado, não dominava. É provável
que a obra projetada por Mário nem mesmo pretendesse ser compreendida
desse modo: na instigante leitura proposta pela professora Aline Novais

169
Sérgio Rodrigues

de Almeida, organizadora desta edição, trata-se antes de mais nada de um


empreendimento poético. Eu acrescentaria a isso uma dimensão política,
panfletária, condizente com o papel assumido por Mário como agitador
cultural. No “Prefácio interessantíssimo”, manifesto que escreveu para
acompanhar os poemas de Pauliceia desvairada (1922), ele já tratava da língua
em termos semelhantes: “Pronomes? Escrevo brasileiro. Se uso ortografia
portuguesa é porque, não alterando o resultado, dá-me uma ortografia”.
Sinuoso em relação ao projeto da Gramatiquinha, que afirmava para logo
negar e vice-versa, Mário chegou mesmo a dizer que se tratava de obra de
ficção: “Este é um livro de ficção e ninguém não aprende gramática nele, é
lógico”. Em outros momentos, dava a entender que nunca tivesse pretendido
escrevê-lo – manobra diversionista em que seu amigo Paulo Duarte não
acreditava nem por um minuto: “Já se afirmou que Mário de Andrade jamais
cogitou fazer este livro. Isto é desmentido desde que anunciado como livro
em preparação em várias de suas obras e todos aqueles que conviveram com
Mário de Andrade sabem que a Gramatiquinha era um dos projetos mais
vivos dele”3.
Se traz lacunas, hesitações e deslizes no varejo das teses linguísticas sobre
o que constituiria o português brasileiro, parece evidente que no atacado
– nas intuições, na verve, na revolta e na paixão, sobretudo nesta – a obra
inacabada de Mário de Andrade sobre a “fala brasileira” continua capaz
de inspirar quem trabalha para descolonizar consciências e encurtar uma
distância que, tanto tempo depois, insiste em se perpetuar entre direito e
fato. Tanto no sistema de ensino quanto no senso comum, vai perdurando
o abismo entre uma norma-padrão idealizada, lusófila e em grande parte
arbitrária, e a língua de sabor brasileiro – tenha o nome que tiver, português
brasileiro ou brasileiro só – que há séculos falamos e escrevemos na vida
real, aí incluídos falantes com elevado grau de instrução. Mário chamava
essa luta de “movimento de libertação necessária”:
Nesse monstrengo político [o Brasil] existe uma língua oficial
emprestada e que não representa nem a psicologia, nem as
tendências, nem a índole, nem as necessidades, nem os ideais
do simulacro de povo que se chama o povo brasileiro. Essa
língua oficial se chama língua portuguesa e vem feitinha de

3 DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. São Paulo: Todavia, 2022.

170
Mário e o meio do caminho eterno

cinco em cinco anos dos legisladores lusitanos. O governo


encomenda gramáticas de lá e os representantes da nossa
maquinária política, os chamados empregados públicos que
com mais acerto se chamariam de empregados governamentais,
presidentes, deputados, senadores, chefes-de-seção etc. etc. etc.
são martirizados pela obrigação diária de falar essa coisa estranha
que de longe vem. [...] Escrevem-a também os escritores, casta
hedionda de falsários pedantes que malempregam os dotes de
inteligência e de lirismo que possuem.
Por trechos como esse, compreende-se quem corra o risco do ana-
cronismo e tente vestir Mário com o jaleco de um sociolinguista avant la
lettre, precursor de um campo de estudos que só se constituiria a partir de
meados do século passado, quando o autor da Gramatiquinha já estava morto.
Certas antecipações são mesmo impressionantes. Quando defende o verbo
“constatar”, um galicismo, das acusações dos puristas, Mário demonstra
uma lucidez que em seu tempo era incomum até entre escritores de mente
aberta: “Sei que o povo em 1628 não careceu dessa palavra para se exprimir.
[...] E sei que em 1928 já a palavra Constatar é de meu povo. Se principio
combatendo esse costume, fico anti-humano, menos expressivo e menos
social”.
Indo além da condenação racional do purismo, acrescentava que
ser contra o uso de palavras como aquela era fazer “papel de besta”. Não
hesitava sequer em invocar um argumento moral: “Humanamente falando
ele [o erudito purista] é imoral”. O tempo lhe deu razão. Há muitas décadas
não ocorre a ninguém negar ao verbo “constatar” – como a tantos outros
estrangeirismos perfeitamente aclimatados – documentos de cidadania
na língua portuguesa. Mesmo assim, argumentos como aqueles de Mário
precisariam ser novamente invocados por linguistas brasileiros tempos
depois, em reação ao estapafúrdio – e felizmente malogrado – projeto de
lei 1676/1999, do deputado Aldo Rebelo4.
Impressionado com essas e outras tiradas da Gramatiquinha, decidi
perguntar a um dos mais destacados sociolinguistas brasileiros o que ele
pensa da ideia de que Mário de Andrade intuiu antes da hora alguns dos

4 FARACO, Carlos Alberto (Org.). Estrangeirismos: guerras em torno da língua. São Paulo:
Parábola Editorial. 2001.

171
Sérgio Rodrigues

fundamentos de sua especialidade. Descubro sem surpresa que o autor


do best-seller Preconceito linguístico concorda entusiasticamente com esse
juízo: “Mário de Andrade era um cara muito inteligente, muito perspicaz,
e muito do que a sociolinguística ia dizer depois ele disse: que não existe
língua uniforme, que a língua varia de acordo com a classe social, o lugar
de origem, o estilo de fala...”, me disse Marcos Bagno em entrevista por
telefone. “Valeria a pena fazer um trabalho sobre o Mário na perspectiva
da sociolinguística variacionista, mas vou deixar isso para a juventude”,
acrescentou, rindo.
Mais do que linguística ou mesmo política, a questão da fala brasileira
ganha com frequência, para o autor da Gramatiquinha, contornos morais
e existenciais:
Não se trata de reação contra Portugal. Trata-se duma
independência natural, sem reivindicações, sem nacionalismos,
sem antagonismos, simplesmente, inconscientemente. Não se
trata de reagir. Trata-se de agir, que é muito mais viril e mais
nobre. Se trata de “ser”. O brasileiro tem o direito de ser.
Ora, o “direito de ser” tem uma força filosófica que se impõe sobre
todas as outras. Dando um breve mergulho etimológico na palavra “paixão”
(ligada ao grego páthos, sofrimento, como na Paixão de Cristo), voltamos
à tona com a tese de que o tom apaixonado de Mário nessas notas traduz
uma dor profunda. Sua formação católica e devota não parece alheia ao
modo como ele equaciona expressão verbal e alma, nem ao ar de mártir que
assume quando se declara pronto a oferecer a própria obra em sacrifício
para nos salvar da falsidade suprema – a de sermos forçados a nos expressar
numa língua que não nos traduz:
Juro que sei que minha escritura toda morrerá porque me metendo
num mato virgem são grandes, enormes os meus descaminhos e
extravios de exageros, contradições, erros, inviabilidades. Que
bem me importa isso tudo. [...] Eu fiz da minha arte um elemento
de utilidade transitória e é por isso que mais que todos num
momento dado ou mesmo o único nesse momento eu fui o mais
tradicionalmente artista de todos os artistas brasileiros. Porque
a pedra de escândalo que fui, era apenas e todos perceberam isso
um instinto alegre de vitalidade, uma confissão de coragem,

172
Mário e o meio do caminho eterno

uma demonstração de verdade sem acomodações com nenhum


passado que não fosse o presente. [...] O meu destino é esse e é
nobre. Meus livros morrem e eu lhes dou me rindo sem nenhuma
saudade o Requiescat.
Mário de Andrade adoeceu de Brasil. Ao seu modo intenso, messiânico,
paternal e abrangente, buscou se fazer nada menos que um instrumento
que facilitasse o nascimento de uma nação. Sonhou parir ou ao menos
auxiliar no parto de uma alta cultura de matriz popular verdadeiramente
brasileira, coisa gigantesca e de bordas indefinidas da qual a língua teria
de ser, naturalmente, uma dimensão crucial. Me parece inegável que,
como observa Edith Pimentel Pinto, a Gramatiquinha “acusa as marcas dos
ideais e a feição dos propósitos de Mário de Andrade”5, mas talvez se deva
acrescentar que acusa também os sintomas de um profundo padecimento.
Mesmo quando se oferece como mártir, o gesto de Mário é antes de
tudo artístico. Suas reflexões linguísticas estavam enraizadas na estética.
Ele acreditava que o papel da literatura modernista seria o de – cada
escritor estilizando a seu modo o jeito brasileiro de falar – ir aos poucos
pavimentando o caminho para que os gramáticos do futuro pudessem por
fim sistematizá-lo.
Bem que matutei e trabalhei pra dar pro meu estilo novo formas
que organizassem-o. Se cada um fizer também das observações
e estudos pessoais a sua gramatiquinha muito que isso facilitará
pra daqui a uns cinquenta anos a salientar normais gerais, não
só da fala oral transitória e vaga porém da expressão literária
impressa, isto é, da estilização erudita da linguagem oral.
Afinal, concluía, essa estilização “é que determina a cultura civilizada
duma raça sob o ponto de vista expressivo. Linguístico”. A aposta na arte
literária como manancial de abonações representava um cálculo sensato e
condizente com a história universal das gramáticas desde a Antiguidade.
E deve ser registrado que a literatura brasileira caminhou decisivamente
nessa direção, embora a radicalidade com que, àquela altura da vida, Mário
de Andrade “deformava” seu estilo para abrasileirá-lo lhe tenha rendido
reprimendas e narizes torcidos de colegas que viam naquilo um exagero.

5 PINTO, Edith Pimentel. A gramatiquinha de Mário de Andrade: texto e contexto. São Paulo:
Duas Cidades; Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

173
Sérgio Rodrigues

Manuel Bandeira foi um de seus amigos mais críticos, e o debate que travaram
sobre o brasileiríssimo uso do pronome oblíquo em início de frase, que já
estava presente em José de Alencar, inspira a deliciosa crônica “Baile dos
pronomes”, incluída neste volume.
Numa carta pessoal, Guimarães Rosa iria mais longe, apontando no
estilo de Mário “o desejo de ‘abrasileirar’ a todo custo a língua, de acordo com
postulados que sempre achei mutiladores, plebeizantes e empobrecedores
da língua, além de querer enfeiá-la, denotando irremediável mau gosto”6.
Reconheça-se que o próprio autor da Gramatiquinha se tornaria mais
conservador com o passar do tempo, tanto nas formulações teóricas quanto
na prática da escrita. Seja como for, a literatura brasileira dos últimos cem
anos pode ser acusada de muita coisa, menos de negligenciar a estilização de
uma certa coloquialidade. E no entanto o futuro seria um pouco diferente
do que Mário imaginava: também aqui o gesto se deteve, inconcluso.
No meio do caminho tinha, por exemplo, a famosa pedra de seu amigo
Carlos Drummond de Andrade: “No meio do caminho tinha uma pedra/
Tinha uma pedra no meio do caminho” (“No meio do caminho”, poema do
livro Alguma poesia, de 1930). Aquele “ter” impessoal abonava um uso familiar
disseminado entre falantes brasileiros de todos os estratos socioeducacionais
– e que, apesar da chancela do maior poeta da nacionalidade, permaneceria
empacado no meio do caminho da aceitação pela gramática culta.
Sim, o século XXI vai envelhecendo e a pedra gramatical de Carlos
ainda está lá, feito o monolito do filme 2001, uma odisseia no espaço, a nos
desafiar. Experimente qualquer jovem brasileiro escrever em sua redação de
vestibular que “tinha uma pedra no meio do caminho” para ver o que lhe
acontece. A subversão casuística do velho critério de validação gramatical
pelos clássicos revolta o linguista Carlos Alberto Faraco, que lembra os
cascudos gramaticais aplicados por Napoleão Mendes de Almeida em
Drummond e pergunta: “Como promover positivamente a língua se até
nossos monumentos literários são assim achincalhados?”7. O autor tem
sido eloquente em seu alerta contra o que chama, num trocadilho feliz, de

6 Carta de 03/11/1964 a Mary Lou Daniel. Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP
– Fundo João Guimarães Rosa: JGR-CC-01,64.
7 FARACO, Carlos Alberto. História sociopolítica da língua portuguesa. São Paulo: Parábola
Editorial, 2016.

174
Mário e o meio do caminho eterno

norma curta, “essa coleção de preceitos categóricos que se autojustificam,


que recusam a norma real, que desmerecem o trabalho dos escritores, dos
bons dicionaristas e gramáticos e que excluem qualquer diversificação de
suas fontes”8.
Aparentemente, não há força, entre nós, que quebre a norma curta
como referência ideológica. Não foram suficientes a crítica e a
prática dos escritores modernistas na década de 1920 e dos que
vieram depois. Não tem sido suficiente a pesquisa sistemática,
pela linguística brasileira contemporânea, de nossa norma
culta/comum/standard falada e escrita. Não tem sido suficiente
o trato mais arejado e flexível que nossos melhores gramáticos
têm dado aos fatos da língua culta, reinterpretando preceitos
da nossa tradição gramatical.
O resultado é aquilo que Faraco diagnostica como “esquizofrenia
linguística”, mal de um país que fala e escreve numa língua mas reverencia
outra, abstrata e irreal. E que, claro, “erra” o tempo todo segundo os
critérios arbitrários de uma norma-padrão fixada no século XIX, quando
o conservadorismo derrotou de forma acachapante os primeiros arroubos
autonomistas dos escritores românticos, assustando as elites brancas do
jovem país com a ameaça de que o português virasse pretoguês. É essa a
ideologia linguística ainda em voga, que permeia salas de aula, consultórios
gramaticais, equipes editoriais de revisão e provas recheadas de pegadinhas,
levando nove em dez brasileiros a acreditar na falácia cômica de que “o
português é a língua mais difícil do mundo”.
Transtorno dismórfico corporal é um distúrbio que faz pessoas sem
nenhum problema estético, frequentemente até mesmo muito bonitas, se
verem como um catálogo de imperfeições físicas, com riscos sérios à saúde.
O Brasil sofre de um mal análogo, o transtorno dismórfico linguístico.
A gente se olha no espelho da língua e não gosta da imagem refletida ali.
Fazer harmonização facial com injeções diárias de anglicismo é uma das
respostas ao problema. Suspirar por um passado alternativo – “Ah, por que
não fomos colonizados pelos holandeses...” – é outra.

8 Idem. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.

175
Sérgio Rodrigues

Talvez seja o caso de lembrar que estamos em 2022. É justamente essa


lerdeza, essa demora, esse meio do caminho eterno que dá atualidade à
fúria santa do Mário da Gramatiquinha, levando-a a soar mais pertinente a
ouvidos de hoje do que a moderação adquirida pelo autor em seus artigos
linguísticos da maturidade. Corta para Marcos Bagno:
Até hoje, quando as pessoas dominadas por esse fantasma [o
fantasma colonial] fazem alguma comparação entre o português
brasileiro e o português europeu, as diferenças – inevitáveis –
que aparecem são sempre vistas como distorções, deturpações,
maus-tratos que nós, brasileiros rudes e mestiços (o racismo
também é um dos alimentos preferidos do fantasma colonial),
cometemos contra a língua portuguesa.9
Me ocorre que a frase poderia estar na Gramatiquinha. Fantasiando
um pouco, chego a ter certeza de que uma versão bem próxima dela estava
mesmo, escrita a lápis de ponta rombuda naqueles garranchos de Mário,
em algum papelzinho que se perdeu.

Sérgio Rodrigues

9 BAGNO, op. cit.

176
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A gramatiquinha da fala brasileira

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VARELA, Fagundes. Evangelho nas selvas. In: Obras completas. Edição
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VEJO LÁGRIMAS. [Compositor Osvaldo Vasques e Ventura; intérprete
Moreira da Silva]. [s.l.] Columbia n. 22165 – B, 1933, 1 Disco.

184
DOSSIÊ DE IMAGENS
Dossiê de imagens

Capa da caderneta “Língua Brasileira 12” com planos, prefácios e notas (Arquivo do
Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência:
MA-MMA-051-1).

187
Mário de Andrade

Página inicial da caderneta com o primeiro plano (“Indice”) d’A gramatiquinha (Arquivo do
Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência: MA-
-MMA-051-2).

188
Dossiê de imagens

Caderneta aberta: o registro das notas 3 e 7 testemunha a supressão das notas 4, 5 e 6 (Arquivo
do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência:
MA-MMA-051-6-7).

189
Mário de Andrade

Esboço de texto sob o título “Início” (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo
Mário de Andrade, código de referência: MA-MMA-051-22).

190
Dossiê de imagens

Ofício da Diretoria do Bloco dos Caprichosos à Comissão Julgadora do Carnaval Paulista (1937),
item no envelope 12-A – Documentos Populares (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros
USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência: MA-MMA-051-36).

191
Mário de Andrade

Recorte de jornal: Athayde, Tristão de. A língua brasileira I. O Jornal. Rio de Janeiro, 8 abr. 1928.
Documento no envelope 12-B – Artigos Alheios (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros
USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência: MA-MMA-051-39).

192
Dossiê de imagens

193
Mário de Andrade

Nota de trabalho: anúncio impresso do salão de dança paulistano Dancing Neptuno; sobre
o anúncio, marcas autógrafas de Mário. Documento no envelope 12-C – Me parece e outras
sintaxes (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código
de referência: MA-MMA-051-86).

194
Dossiê de imagens

Nota de trabalho: registro de oitiva sob a rubrica “Língua – Particípio passado como substantivo”.
Documento no envelope 12-F – Brasileirismos vocabulares (Arquivo do Instituto de Estudos
Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência: MA-MMA-051-111).

195
Mário de Andrade

Nota de trabalho: recolha de brasileirismo na poesia de Gonçalves Dias. Documento no envelope


12-F – Brasileirismos vocabulares (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo
Mário de Andrade, código de referência: MA-MMA-051-113).

196
Dossiê de imagens

Nota de trabalho: referência bibliográfica sob o código “n. 339”, disposta na Bibliografia de
leituras iniciada para a Pancada do Ganzá. Documento no envelope 12-F – Brasileirismos
vocabulares (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade,
código de referência: MA-MMA-051-114).

197
Mário de Andrade

Esboço de texto: reunião de notas prévias para o preparo do “Capítulo XXX – Psicologia da
fala brasileira”. Documento no envelope 12-G – Ideias para capítulos particulares (Arquivo
do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência:
MA-MMA-051-216).

198
Dossiê de imagens

Nota de trabalho: bilhete de Pio Lourenço Corrêa a Mário de Andrade [Araraquara, ant. 7 de maio
de 1927?]. Documento no envelope 12-H – Ideias gerais sobre língua (Arquivo do Instituto de
Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência: MA-MMA-051-229).

199
Mário de Andrade

Envelope 12-I – Ideias gerais: recurso para armazenar conjunto documental (Arquivo do
Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência: MA-
-MMA-051-231).

200
Dossiê de imagens

Nota de trabalho: recomendações para si sob o título “Gramatinha”. Documento no envelope


12-I – Ideias gerais (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade,
código de referência: MA-MMA-051-255).

201
Mário de Andrade

Esboço da primeira página do Inquérito Geral Etnográfico: “Formulário das pesquisas folclóricas
– Língua Nacional” (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade,
código de referência: MA-MMA-051-258).

202
Dossiê de imagens

Mário e a escuta das ruas: primeira viagem etnográfica ao Norte do Brasil – Mercado de Belém,
23 mai. 1927 (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP –Fundo Mário de Andrade,
código de referência: MA-F-0185).

203
Mário de Andrade

Mário, homem público: instalação solene do Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada,
realizado de 7 a 14 de julho de 1937 no Theatro Municipal de São Paulo. Mário enquanto lia
a “Exposição de motivos” ao lado de intelectuais e autoridades políticas (Arquivo do Instituto
de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência: MA-F-1564).

204
Dossiê de imagens

Redoma da criação: Mário em sua escrivaninha [1938]. Compõem o registro fotográfico a tela
A colona, de Cândido Portinari, e a escultura Oxê de Xangô, do interno Augusto, do Hospital
Juliano Moreira, estado da Paraíba. (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo
Mário de Andrade, código de referência: MA-F-1873).

205
Sobre a organizadora

Aline Novais de Almeida, que realizou a pesquisa, organizou o volume,


estabeleceu texto e notas e assina a apresentação, é bacharel e licenciada
em Letras pela FFLCH-USP, onde defendeu mestrado sobre Mário de
Andrade (2013) e doutorado sobre Murilo Mendes (2019). Especialista em
Tecnologias, Comunicação e Técnicas de Ensino (2018) pela UTFPR. Membro
do Conselho Científico e da equipe editorial da Manuscrítica. Revista de
Crítica Genética. Atua como professora e pesquisadora cujo principal campo
de interesse gravita em torno da literatura brasileira, com particular ênfase
no modernismo, tema de seus artigos e palestras.

207
Sobre os colaboradores

Lígia Rivello Baranda Kimori, que contribuiu com o estabelecimento de


texto e as notas de pesquisa, é bacharel e licenciada em Letras pela FFLCH-
-USP, onde se especializou em língua francesa (2007). Defendeu mestrado
(2014) e doutorado (2020) sobre Mário de Andrade na mesma instituição.
Atua como professora, tradutora de francês e pesquisadora de temáticas
concernentes à crítica genética, à literatura brasileira e ao modernismo,
conteúdo de seus artigos.

Ataliba T. de Castilho, que escreveu o prefácio, é bacharel e licenciado


em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo (1956-1959), curso de
especialização em Filologia Românica (1960), doutor em Linguística (1966)
e livre-docente pela mesma universidade (1993). Desenvolveu pesquisas de
pós-doutoramento nas Universidades de Coimbra, Texas em Austin, Cornell,
Aix-en-Provence, San Diego na Califórnia, Padova, Georgetown University.
Lecionou Linguística Portuguesa nas Universidades do Texas em Austin
(1970), UNESP, então denominada CESESP (1961-1975), UNICAMP (1975-
-1991), USP (1992-2017). Escreveu seis livros, organizou 17, resultantes dos
dois projetos coletivos que coordenou (Projeto de Gramática do Português
Falado, Projeto de História do Português Brasileiro), publicou 92 artigos e
muitas resenhas. Professor Emérito da Universidade de São Paulo.

Sérgio Rodrigues, que preparou o posfácio, é escritor e jornalista, autor,


entre outros livros, do romance O drible, livro do ano de 2013 no prêmio
Portugal Telecom (atual Oceanos), e do almanaque linguístico Viva a língua
brasileira! (2016), ambos lançados pela Companhia das Letras. Mantém uma
coluna semanal sobre língua e linguagem na Folha de S. Paulo.

209
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Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,
disse Mário de Andrade em poema antológico,
referindo-se a si mesmo e à identidade

Mário de Andrade
brasileira: plural, múltipla, em constante devir. BICENTENÁRIO BICENTENÁRIO
Ao longo de sua vida, o autor de Macunaíma, BRASIL BRASIL
Pauliceia desvairada, entre outros tantos títulos
hoje clássicos, empreendeu busca constante da
“alma” do Brasil. Para tanto, valeu-se de várias
frentes: poesia, romance, crônica, fotografia, 1822 | 2022 1822 | 2022
história da arte, crítica literária, musicologia. No ano em que se celebram o Bicentenário
Ao lado de outros jovens iconoclastas, da Independência do Brasil e o Centenário
organizou A Semana de Arte Moderna de
1922, que renovou as artes e as letras nacionais,
Mário de Andrade da Semana de Arte Moderna, a Fundação
Alexandre de Gusmão tem orgulho em se
permitindo reflexões inovadoras sobre o jovem associar à primeira publicação do recém-

A gramatiquinha
país que naquele momento completava cem -criado Instituto Guimarães Rosa, a qual presta
anos de vida.
Hoje, em 2022, ano do Bicentenário da
Independência do Brasil, o Itamaraty e a
A Portaria nº 365 do Ministério das Relações Exteriores, de
11 de novembro de 2021, dispõe sobre o Grupo de Trabalho do
merecida homenagem a Mário de Andrade.
Nascido em São Paulo, em 9 de outubro
de 1893, sua precoce inclinação para a poesia foi

da fala brasileira
Bicentenário da Independência, incumbido de, entre outras atividades,
FUNAG prestam tributo a Mário de Andrade, complementada por sólida formação musical,
promover a publicação de obras alusivas ao tema. que o tornaria autoridade em teoria e história
relançando um de seus mais importantes
projetos escriturais: A gramatiquinha da fala da música, com um olhar especial para as

A gramatiquinha da fala brasileira


No contexto do planejamento da efeméride, a FUNAG criou composições folclóricas do interior do Brasil.
brasileira. Embora pouco conhecida do grande
público (e nunca publicada em vida pelo autor), a coleção “Bicentenário: Brasil 200 anos – 1822-2022”, abrangendo Andrade estreou em 1917 com Há uma gota
publicações inéditas e versões fac-similares. O objetivo é recuperar, de sangue em cada poema. Em 1922, lançou
a obra constitui estudo completo e autêntico da
variante da língua portuguesa falada no Brasil,
Edição comemorativa do Instituto Guimarães Rosa Pauliceia Desvairada, considerado o marco
preservar e tornar acessível a memória diplomática sobre os duzentos
abrangendo aspectos linguísticos, psicológicos anos da história do país, principalmente volumes que se encontram fundador da poesia modernista brasileira, e
e poéticos. tornou-se figura de proa da Geração de 22.
esgotados ou são de difícil acesso. Com essa iniciativa, busca-se também Autodidata, explorou também os
Compreendida a princípio como língua
incentivar a comunidade acadêmica a aprofundar estudos e diversificar territórios da crítica de arte, antropologia,
brasileira e, mais tarde, língua nacional,
tal variante tornou-se não só instrumento as interpretações historiográficas, promovendo o conhecimento da filosofia, linguística, jornalismo e fotografia.
linguístico para artistas e intelectuais do país, história diplomática junto à sociedade civil. Teve, ademais, atuação proeminente como
mas também emblema que revela profundo diretor do Departamento de Cultura de São
sentido de nossa identidade. Ao analisá-la, Paulo e como diretor do Instituto de Artes
A gramatiquinha ainda hoje se mantém atual, da Universidade do Distrito Federal, no Rio
colocando na agenda temas essenciais à de Janeiro. Bibliófilo e colecionador de arte
diplomacia brasileira: a defesa do idioma erudita e popular, reuniu um vasto e rico
português como entidade viva, patrimônio acervo. Em 25 de fevereiro de 1945, morreu
imaterial compartilhado por todos os em sua residência em São Paulo, deixando
Estados-membros da Comunidade dos Países valioso legado de documentação sobre a cultura
de Língua Portuguesa (CPLP), a partir do popular e, ao mesmo tempo, produção artística
reconhecimento de suas particularidades que representa verdadeiro ponto de inflexão na
e de suas diferenças. Parafraseando Mário poesia e na literatura de nosso país.
de Andrade, a língua portuguesa não é una, A auspiciosa escolha da Gramatiquinha
não possui dono: é “trezentas, trezentas-e- para esta edição comemorativa já revela a
-cinquenta”. nascente vocação do IGR como impulsionador
do resgate, preservação e divulgação da cultura
ISBN 978-85-7631-851-4
brasileira nos planos nacional e internacional.
Embaixadora Paula Alves de Souza, A Fundação Alexandre de Gusmão está pronta
Diretora do Instituto Guimarães Rosa 9 788576 318514 >
para caminhar lado a lado com o Instituto
Guimarães Rosa nesta jornada.

Embaixadora Márcia Loureiro,


Fundação Alexandre de Gusmao Presidente da Fundação Alexandre de Gusmão

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