Gramatiquinha Da Fala Brasileira A
Gramatiquinha Da Fala Brasileira A
Gramatiquinha Da Fala Brasileira A
Mário de Andrade
disse Mário de Andrade em poema antológico, BICENTENÁRIO BICENTENÁRIO
referindo-se a si mesmo e à identidade BRASIL BRASIL
brasileira: plural, múltipla, em constante devir.
Ao longo de sua vida, o autor de Macunaíma,
Pauliceia desvairada, entre outros tantos títulos
hoje clássicos, empreendeu busca constante da 1822 | 2022 1822 | 2022
“alma” do Brasil. Para tanto, valeu-se de várias No ano em que se celebram o Bicentenário
frentes: poesia, romance, crônica, fotografia, da Independência do Brasil e o Centenário
da Semana de Arte Moderna, a Fundação
história da arte, crítica literária, musicologia.
Ao lado de outros jovens iconoclastas, Mário de Andrade Alexandre de Gusmão tem orgulho em se
organizou A Semana de Arte Moderna de associar à primeira publicação do recém-
A gramatiquinha
1922, que renovou as artes e as letras nacionais, -criado Instituto Guimarães Rosa, a qual presta
A
permitindo reflexões inovadoras sobre o jovem merecida homenagem a Mário de Andrade.
Portaria nº 365 do Ministério das Relações Exteriores, de Nascido em São Paulo, em 9 de outubro
país que naquele momento completava cem
11 de novembro de 2021, dispõe sobre o Grupo de Trabalho do de 1893, sua precoce inclinação para a poesia foi
anos de vida.
da fala brasileira
Bicentenário da Independência, incumbido de, entre outras atividades, complementada por sólida formação musical,
Hoje, em 2022, ano do Bicentenário da
promover a publicação de obras alusivas ao tema. que o tornaria autoridade em teoria e história
Independência do Brasil, o Itamaraty e a
da música, com um olhar especial para as
FUNAG prestam tributo a Mário de Andrade,
Mário de Andrade
disse Mário de Andrade em poema antológico, BICENTENÁRIO BICENTENÁRIO
referindo-se a si mesmo e à identidade BRASIL BRASIL
brasileira: plural, múltipla, em constante devir.
Ao longo de sua vida, o autor de Macunaíma,
Pauliceia desvairada, entre outros tantos títulos
hoje clássicos, empreendeu busca constante da 1822 | 2022 1822 | 2022
“alma” do Brasil. Para tanto, valeu-se de várias No ano em que se celebram o Bicentenário
frentes: poesia, romance, crônica, fotografia, da Independência do Brasil e o Centenário
da Semana de Arte Moderna, a Fundação
história da arte, crítica literária, musicologia.
Ao lado de outros jovens iconoclastas, Mário de Andrade Alexandre de Gusmão tem orgulho em se
organizou A Semana de Arte Moderna de associar à primeira publicação do recém-
A gramatiquinha
1922, que renovou as artes e as letras nacionais, -criado Instituto Guimarães Rosa, a qual presta
A
permitindo reflexões inovadoras sobre o jovem merecida homenagem a Mário de Andrade.
Portaria nº 365 do Ministério das Relações Exteriores, de Nascido em São Paulo, em 9 de outubro
país que naquele momento completava cem
11 de novembro de 2021, dispõe sobre o Grupo de Trabalho do de 1893, sua precoce inclinação para a poesia foi
anos de vida.
da fala brasileira
Bicentenário da Independência, incumbido de, entre outras atividades, complementada por sólida formação musical,
Hoje, em 2022, ano do Bicentenário da
promover a publicação de obras alusivas ao tema. que o tornaria autoridade em teoria e história
Independência do Brasil, o Itamaraty e a
da música, com um olhar especial para as
FUNAG prestam tributo a Mário de Andrade,
1822 | 2022
A gramatiquinha
da fala brasileira
Ministério das Relações Exteriores
Diretora do Instituto
Guimarães Rosa Embaixadora Paula Alves de Souza
1822 | 2022
Mário de Andrade
A gramatiquinha
da fala brasileira
Brasília, 2022
Direitos de publicação reservados à
Fundação Alexandre de Gusmão
Ministério das Relações Exteriores
Esplanada dos Ministérios, Bloco H, Anexo II, Térreo
70170‑900 Brasília–DF
Tel.: (61) 2030-9117/9128
Site: gov.br/funag
E‑mail: [email protected]
Organizadora:
Aline Novais de Almeida
Colaboradores:
Ligia Rivello Baranda Kimori
Ataliba T. de Castilho
Sérgio Rodrigues
Equipe Técnica:
Fernanda Antunes Siqueira
Gabriela Del Rio de Rezende
Guilherme Monteiro
Henrique da Silveira Sardinha Pinto Filho
Kamilla Sousa Coelho
Luiz Antônio Gusmão
Mônica Melo
Revisão:
Júlia Godoy
Diagramação:
Denivon Cordeiro de Carvalho
ISBN: 978-85-7631-851-4
CDU 81´36=134.3
Prefácio ....................................................................................................................... 7
Mário de Andrade: gramático?
Ataliba T. de Castilho
Apresentação da edição....................................................................................17
Mário de Andrade e o arquivo da fala brasileira
Aline Novais de Almeida
Língua Brasileira............................................................................................ 39
Posfácio..................................................................................................................... 167
Mário e o meio do caminho eterno
Sérgio Rodrigues
Referências .............................................................................................................177
Sobre a organizadora......................................................................................207
Sobre os colaboradores.................................................................................209
Mário de Andrade: gramático?
7
Ataliba T. de Castilho
1 PINTO, Edith Pimentel. (Org.). O português do Brasil: textos críticos e teóricos, 1: 1920-
-1930: fontes para a teoria e a história. São Paulo: Edusp, 1978, p. LI-LII.
8
Mário de Andrade: gramático?
9
Ataliba T. de Castilho
10
Mário de Andrade: gramático?
essas afirmações logo depois: “Vale mais errar porém fazer do que
não errar e não fazer”.
(2) Na gramática, ou melhor, na Gramatiquinha, “não apresento o meu
trabalho como obra de técnica, porém obra de ficção”. Rejeitando,
assim, a percepção da gramática como uma ciência, MA opta
por entendê-la como uma arte – mas o fato é que, no andar da
carruagem, ele foi repassando os temas que fazem da Gramática
uma ciência. Assim, na leitura de sua Gramatiquinha, lá vamos nós,
de ambiguidade em ambiguidade. Nem poderia ser diferente, como
se verá a seguir.
3. Agenda da Gramatiquinha
Deixando de lado um enquadramento claro da Gramatiquinha entre as
ciências ou entre as artes, costume vigente em seu tempo, MA identifica
a agenda da gramática como (1) a classificação de expressões, mesmo
reconhecendo a precariedade dessas classificações; (2) o reconhecimento
da fluidez na separação entre as categorias gramaticais; (3) o estudo da
frase, (4) o estudo do pronome, (5) o estudo da pontuação, (6) gramática e
estilística, (7) gramática como um conjunto de usos.
11
Ataliba T. de Castilho
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Mário de Andrade: gramático?
13
Ataliba T. de Castilho
14
Mário de Andrade: gramático?
Conclusões
Nestas conclusões, vale a pena destacar que a agenda da gramática reflete
um “desentendimento” bem antigo entre os que defendem a homogeneidade
da língua e os que defendem sua heterogeneidade. MA não escapou a esse
binômio. Vejamos a coisa mais de perto.
Os gramáticos gregos contrastavam a onomasía (literalmente, “desig-
nação”), que é a expressão dos pensamentos tomada como um todo, como
um esquema geral, com o trópos (literalmente, “uso convencional”), que é a
expressão dos pensamentos tomada como um conjunto de usos individuais.
Os estoicos enfatizavam a língua como onomasía, entendendo-a como
um conjunto de regularidades, sustentando que a gramática deve ser mais
técnica, mais formal.
Os alexandrinos, mais filológicos, postulavam a língua como um trópos,
isto é, um conjunto de usos a partir dos quais se institui a norma; portanto, a
gramática deve ser mais empírica. Uns e outros lançaram uma polêmica que
ainda não terminou, e que passou à história como a oposição de analogistas
(os primeiros) aos anomalistas (os segundos).
Os analogistas, hoje podemos perceber, valiam-se da ciência clássica,
enquanto os anomalistas apostavam, avant la lettre, na ciência dos domínios
complexos. Basta ler hoje os gerativistas e os funcionalistas para encontrar
a feição moderna dessa polêmica. Em suma, sucedem-se os rótulos, mas
o modo de conceber a ciência parece girar sempre à volta da antinomia
onomasía, anomalismo, formalismo, gerativismo, ciência clássica/trópos, analogismo,
funcionalismo, ciência dos domínios complexos.
A oscilação entre o formal e o funcional, entre o geral e o individual,
entre o código e o uso, assinala toda a pesquisa linguística, em que se
pode detectar certo “movimento pendular”. Ora há uma concentração
no polo formal (vide o entendimento da língua como “estrutura/sistema/
forma” da década de 1950 [Estruturalismo] e de 1960 [Gerativismo]), ora
a concentração ocorre no polo funcional (vide o entendimento da língua
como “uso/comunicação/substância” da década de 1970 [Funcionalismo] e
de 1980 [Pragmática]).
Lembre-se, por fim, que MA não publicou sua Gramatiquinha. Aparen-
temente, com a intuição de publicá-la, MA foi preparando vários ensaios
15
Ataliba T. de Castilho
Ataliba T. de Castilho
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Mário de Andrade e o arquivo da
fala brasileira
17
Aline Novais de Almeida
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Mário de Andrade e o arquivo da fala brasileira
19
Aline Novais de Almeida
1 O artigo “A língua nacional” encontra-se na íntegra na seleta estabelecida para esta edição.
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Mário de Andrade e o arquivo da fala brasileira
2 O artigo “O baile dos pronomes” encontra-se na íntegra na seleta estabelecida para esta
edição.
21
Aline Novais de Almeida
mencionar que as mesmas notas que lhe deram subsídio para a escrita de
“O baile dos pronomes” são reapresentadas em um debate epistolar que tem
como interlocutor nada mais, nada menos que Sousa da Silveira. Na longa
missiva de 15 de fevereiro de 1935, o modernista responde às provocações
do filólogo, ora concordando com as considerações do especialista, ora
discordando, como no caso do proclítico. Afinal, Mário se encontra munido
de documentação para se contrapor:
No caso de iniciar períodos pelas variações pronominais, nada
lhe poderei conceder, apesar do meu desejo imenso de lhe ser
simpático. O sr. objeta que as pessoas duma determinada instrução
jamais dirão “Se encostara de-novo à janela”, as pessoas que não
dizem também “quem haverá de dizer”. Confesso que a não ser
num ou noutro raríssimo, que faz questão de purismo escrito,
literário, até no falar, em todas as camadas tenho encontrado
as variações pronominais iniciando a frase. Não só no Brasil,
ah!... Já não falo na primeira pessoa, “me parece”, “me senti”
absolutamente gerais. Na repetição de frases, em diálogo de
discussão, se escuta em camadas cultas embora não puristas,
coisas como […]3.
Portanto, a anotação extraída da leitura da resenha jornalística, o
artigo sobre próclise e a carta a Sousa da Silveira sublinham a relevância que
A gramatiquinha da fala brasileira ocupa nos últimos anos do escritor, que
desaparece em 25 de fevereiro de 1945. Esses escritos revelam, cada um a
seu modo, que o projeto tem um aspecto dinâmico por conta de sua mate-
rialidade, não obstante pareça estático. Percebe-se que o escritor modifica
a sua rota durante o trajeto da criação para redirecionar a documentação
para outros fins ou simplesmente porque deseja acrescentar documentos
mais atuais à coleção que ordena.
Vale pontuar que os documentos que compõem o dossiê também
possuem o caráter heteróclito. No manuscrito, não se efetivam somente
campanhas redacionais ou versões textuais que buscam estruturar o suposto
livro. Na contramão, ressalta-se a articulação de uma rede discursiva bastante
3 SENNA, Homero (Org.). Cartas de Mário de Andrade a Sousa da Silveira. Revista do Livro.
Ministério da Educação e Cultura, a. VII, n. 26, set. 1964, p. 122, grifo do autor (Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional).
22
Mário de Andrade e o arquivo da fala brasileira
23
Aline Novais de Almeida
24
Mário de Andrade e o arquivo da fala brasileira
25
Aline Novais de Almeida
vez que o interesse dos estudiosos no assunto, até então, estava limitado a
uma perspectiva mais regionalista e dialetológica da língua5.
Em 1937, durante sua gestão no Departamento de Cultura, Mário idealiza
e organiza o Congresso da Língua Nacional Cantada. O evento tem como
uma de suas principais preocupações escolher a língua-padrão para as artes
do dizer e do canto erudito nacionais, proposta que guarda obviamente
liames com sua Gramatiquinha. Em ambas as situações, no congresso e no
estudo em processo, busca-se consolidar a variedade linguística brasileira,
ainda que para diferentes fins. Em suma, o escritor decide ultrapassar as
barreiras dialetais para atingir uma possível “língua nacional”, conforme
aponta na parte final do Inquérito Geral Etnográfico:
As observações e pesquisas sobre a língua nacional não devem
ser feitas exclusivamente entre pessoas das classes proletárias,
entre analfabetos e pessoas rurais. Deve estender-se a todas as
classes, até mesmo aos cultos, mas sempre na sua linguagem
desleixadamente espontânea e natural. As observações só não
devem se estender aos indivíduos que timbram em falar certo.
Ou melhor: tem muita importância em verificar e apontar as
vezes e casos em que mesmo estas pessoas “culteranistas”, por
desatenção momentânea pecam contra o português de Portugal
e das gramáticas.
Assim como há o cuidado com as referências bibliográficas, o inquérito
previa uma coleta de campo que igualmente contemplasse uma tecnicidade,
já que os informantes não cruzariam ao léu o caminho do pesquisador,
concretiza-se, pois, um perfil a ser interrogado. Mário já havia compreendido
quais grupos sociais forneceriam mais dados para a investigação e não
necessariamente são indivíduos das classes trabalhadoras (proletários e
rurais) ou menos escolarizadas, conforme já havia asseverado na carta a
Sousa da Silveira ao tratar da tendência do uso da próclise. De acordo com
seu entendimento, os informantes que “timbram em falar certo” seriam
menos produtivos para o fenômeno da língua nacional, compreendida
também, nos manuscritos d’A gramatiquinha, como língua e fala brasileira.
26
Mário de Andrade e o arquivo da fala brasileira
27
Aline Novais de Almeida
vida, que fosse alguma coisa mais terrestre que ficção, prazer
estético, a beleza divina6.
A deformação-estilização corresponde ao modo de vida escolhido
pelo modernista para se relacionar com a arte e o mundo. Para Mário é
imprescindível que as suas ações tenham valor utilitário e prático, afinal
de contas é como se estivesse em uma missão. Assim sendo, ele assume
conscientemente o risco de sacrificar a sua escritura, bem como abandonar
a ficção em favor de um projeto de “libertação” linguística que favoreça
o desenvolvimento de uma verdadeira língua literária brasileira. Em um
esboço de texto, alocado no envelope que recebe código alfanumérico
e identificação, “12-I – Ideias gerais”, o autor de Macunaíma detalha seu
entendimento acerca do que é estilizar:
Minha tentativa é útil. E é humana porque eu generalizo numa
só, universal, sem classes, unitária e única, e unânime a alma do
meu povo. Esses regionalistas ou “caipiristas” orgulhosos que
escrevendo contos-da-roça botavam uma escrita na boca dos
caboclos e outra limpinha e endomingada nos períodos que
propriamente lhes pertenciam são uns vaidosinhos de si. Vaidosos
embora não ponham reparo na própria vaidade. Vaidosos pela
separação que punham e salientavam entre os caboclos e eles.
E tolos não compreendendo a comoção forte humana das
expressões chamadas de incultas. E frouxos acima de tudo porque
incapazes de botar mãos na trabalheira ingrata, dura e de inteiro
sacrifício pessoal de organizar, codificar, qualificar, escolher,
fecundar e cultivar essas plantinhas do mato pra que fiquem
mais cheirando, mais brilhando e mais engrandecidas pela uni-
versalização. Falei de inteiro sacrifício pessoal... (grifo do autor)
Nesse excerto, Mário se opõe aos “regionalistas” e “caipiristas” que
também manejam a estilização literária. Na sua visão, a realização linguística
desses literatos reflete puramente vaidade, já que eles separam o que é
considerado certo e errado, culto e inculto, língua de caboclo e língua
limpinha e endomingada que sai da boca dos próprios. O modernista é
bastante enfático e rejeita essa solução estilística detectada nos “contos-
28
Mário de Andrade e o arquivo da fala brasileira
7 Mário distribuiu quase todos os documentos de sua coleta em 9 envelopes, os quais estão
identificados com uma disposição alfanumérica, a saber: 12-A, 12-B, 12-C, 12-D, 12-E,
12-F, 12-G, 12-H, 12-I. Contudo, o envelope 12-D está ausente no dossiê. Segue também
essa lógica da classificação dos envelopes a caderneta “Língua Brasileira 12” que acolhe os
planos, prefácios e notas de pesquisa.
29
Aline Novais de Almeida
30
Mário de Andrade e o arquivo da fala brasileira
Quando me sorris,
Visigoda e celta,
Dama culta e bela,
Língua de Aviz…
Fado de punhais
Inês e desventuras,
Lá onde costuras,
Multidão de ais.
Mel e amargura,
Fatias de medo,
Vinho muito azedo,
Tudo com fartura.
Cravos da paixão,
Com dores me serves,
Com riso me pedes
Vida e coração,
Vida e coração.
31
Aline Novais de Almeida
Mares-algarismos,
Onde um seu piloto
Rouba do ignoto
Almas e abismos.
E o gajeiro real,
Ao cantar matinas,
Acha três meninas
Sob um laranjal.
9 LÍNGUA BRASILEIRA. [Compositor e intérprete]. Tom Zé. In: Imprensa cantada. Tom
Zé. São Paulo: Trama, 2003, 1 CD, faixa 10.
32
Sobre esta edição
33
A gramatiquinha da fala brasileira
34
Sobre esta edição
35
A gramatiquinha da fala brasileira
36
A gramatiquinha da fala brasileira
Língua Brasileira
Índice
Introdução Cap. I
Fonologia
Lexiologia
Palavra Cap. V
Substantivo Cap. VI
(substantivo propriamente dito)
(pronome)
Verbo Cap.VII
(substantivo verbal)
Adjetivo Cap. VIII
(substantivo qualificativo)
Advérbio Cap. IX
Interjeições Cap. X
Partículas sintáticas Cap. XI
Artigo Cap. XII
Estilística
Lexiologia
Palavra Cap. V
Do Gênero Cap.VI
Do Número Cap. VII
Do Tempo Cap.VIII
Advérbio
Interjeição
etc2.
2 O autor não inclui numeração para os capítulos “Advérbio” e “Interjeição”, o que teste-
munha o inacabamento da obra.
Prefácio – Antes da Introdução um prefácio pequeno verdadeiramente
humilde. Esta é a primeira vez em que me sinto verdadeiramente tímido ao
publicar um livro e incerto sobre a validade deste. É certo que estudei até o
possível entre os acasos da minha vida autodidática a língua portuguesa de
que deriva em maior parte a nossa maneira de expressão, porém é também
certo que esse conhecimento não é suficiente pra eu me meter nas altas
cavalarias de escrever um livro de linguagem. Me parece francamente que
careci ter topete pra agir assim e o meu livro me parece a primeira real
mas não bem clarificada na consciência manifestação de cabotinismo
da minha vida artística. Outros é que deviam escrever este livro e tenho
consciência de que um dia a gramática da fala brasileira será escrita. Porém
certas considerações se não desculpam ao menos explicam o meu topete.
Outros deveriam escrever este livro, não tem dúvida, porém o certo é que
ninguém se abalançou a escrevê-lo. Inda mais: temos livros valiosos, como
Língua nacional de João Ribeiro, O dialeto caipira, de Amadeu Amaral, que
são verdadeiros convites pra falar brasileiramente. Porém os autores como
idealistas que são e não práticos, convidam, convidam porém principiam
não fazendo o que convidam. Não tiveram coragem. Eu tive a coragem e é o
que explica o meu valor funcional na literatura brasileira moderna. Não me
iludo absolutamente a respeito do valor das minhas obras. Sei que como arte
elas valem quase nada porém são todas exemplos corajosos e imediatamente
práticos do que os outros devem fazer ou... não devem fazer. Erros e verdades.
Fui obrigado a me meter num despropósito de assuntos e por isso a ficar
na epiderme de todos eles. Sobre poesia, poética, estética, arquitetura,
música, prosa, psicologia, pintura, e até linguagem escrevi. Numa época
como a nossa em que o conhecimento seguro de cada uma dessas criações
da vitalidade humana pede uma vida inteira, se deverá compreender que
era impossível pra mim criar obra duradoura. Não fiz mais que vulgarizar.
Não fiz mais que convidar os outros ao estudo moderno dessas criações
humanas. Porém convidei praticamente, com o meu exemplo e o sacrifício
das minhas vaidades naturais de escritor. Isso é muito bonito, franqueza
e posso dizer que quando penso em mim, o que não sucede raramente, eu
me sinto feliz. E nem a consciência exata dessas fraquezas apontadas, nem
a amargura dessas reflexões me diminui essa felicidade. Porque não sou
sujeito que se ilude e seria no mínimo ilusória considerar minha obra como
45
Mário de Andrade
manifestação duma arte, quando ela não passa da manifestação duma vida.
Continuo sendo feliz.
(1)
Um dos erros básicos de certas manifestações didáticas deste brasileirismo
está em que os dicionaristas criaram dicionários de brasileirismo e não
dicionário português-brasileiro.
(2)
Na realidade não tem grande diferença entre o brasileiro falado no Ceará, em
São Paulo e no Rio Grande do Sul. É uma diferença muito mais oral porque
a vocabular é pequena. A diferença vocabular é só aparentemente grande
e provém das necessidades locais. No Rio Grande do Sul tem um poder
de palavras relativas aos equinos e bovinos que os paulistas desconhecem
assim como nós nos trabalhos do café usamos muitos termos que o paraense
ignora. Nem são propriamente provincianismos porque não correspondem
a diferenciações de designação da mesma coisa, mas de coisas distintas.
E assim como os provincianismos são fatais dentro duma língua também é
fatal que com o contínuo aumento das relações interestaduais uma língua
geral compreensível por todo o país se estabelecerá. Quanto às diferenças
orais de pronúncia elas são realmente muito menores que a que existe
presentemente entre o português e o brasileiro.
(3)
O português comum é incontestavelmente mais estilista que o brasileiro
comum. As suas cartas são mais bem escritas, isto é, têm as ideias exprimidas
com maior clareza e rapidez. Será que o português é mais inteligente ou mais
artista que o brasileiro? É ridículo pensar isso. O que se dá é que o português
comum quando escreve, escreve o que aprendeu nas gramáticas e que ele
fala todo o dia, enquanto o brasileiro se vê obrigado a abandonar o que
fala todo o dia pra se lembrar das regras da gramática que mecanicamente
aprendeu na escola e de que pouco se utilizou. O brasileiro pra escrever
larga do chapelão, e da bota ou do simples paletó praciano e enverga fraque
didático. O português escreve como está, manga arregaçada e chinelo sem
46
Língua Brasileira
meia. Resultado: está a seu gosto, mexe-se bem. O brasileiro, coitado! Nem
pode sentar porque amassa o rabo do fraque.
(7)3
Cada um deve dar regras a si mesmo sobre a colocação do enclítico. É
o que fiz. Pois onde me dei essas regras? Pelo valor psicológico da frase.
Vem depois do verbo quando frase é vaga – ou fortemente imperativa.
João Ribeiro também observou isso na Língua nacional. Necessidade de
não se preocupar com a eufonia. As famosas leis da eufonia não são senão
assombrações. É simples questão de educação da orelha se acostumando.
Questão Mallarmé. Questão Gongora (?). Questão Osvaldo4 de Andrade
(Memórias sentimentais) o provam criando dicções personalíssimas que
depois não pareceram repugnantes. O caso das quintas na harmonia do
organum e depois de Rameau. É o caso dos estilos frei Salvador e Machado,
a diferença total. A famosa eufonia não passa duma generalização média
de fórmulas sintáticas determinadas por razões ou necessidades expressivas
psicológicas. Que variam.
(7A)
O melhor meio seria o governo entregar a normalização sintática contempo-
rânea a um grupo de homens de valor, tais como naturalmente se indicariam
os nomes dos senhores Mário Barreto, João Ribeiro, Amadeu Amaral — pelo
valor linguístico — e que pesquisassem no falar brasileiro certas determinações
fraseológicas mais ou menos gerais que pudessem ser estabelecidas como
normas de sintaxe nossa. Isso porém desde logo sem a utilização dessas
normas por escritores literários nacionais se tornava muito difícil. Carecia
que estes primeiro tentassem nas suas obras essa estilização. Não só porque
facilitariam a aceitação popular dessas normas pros semicultos que são a
praga e a maioria pavorosa como principalmente, sendo eles literários, isto
é possuindo a sensibilidade que colhe e adivinha as normas mais artísticas
(aqui artísticas significa: mais humanas) facilitariam grandemente o trabalho
47
Mário de Andrade
5 O autor tenta reproduzir, por meio da alteração do vocábulo original, a pronúncia dos
portugueses.
48
Língua Brasileira
pelos cochinchins ou norte-americanos. Acho que o que fez pela gente ele
fez pra ele e fez muito bem. Nada de gratidões pejorativas. E refletindo
historicamente acho que fez pouco... Porém só mesmo o Brasil é que perdoa
a dívida dos paraguais... Voltando: o espírito combativo sintético de Graça
Aranha criou o não-somos-a-câmara-mortuária-de-Portugal que não tem
nada de aproveitável. Acho engraçado essa mania de certa gente que pra
ser duma nação carece do dinamismo de qualquer ideia antagônica pra ser
nacional. Bobagem. Não se trata de nacionalismo reivindicador, minha
gente. Isto é ridículo. Se trata de ser brasileiro e nada mais. E pra gente
ser brasileiro não carece agora de estar se revoltando contra Portugal e se
afastando dele. A gente deve ser brasileiro não pra se diferençar de Portugal,
porém porque somos brasileiros. Brasileiros sem mais nada. Brasileiros.
Sentir, falar, pensar, agir, se exprimir naturalmente. Como brasileiro. Criar
esses antagonismos e lá se vai a integração no cosmos por água abaixo. Inda
mais: não-somos-a-câmara-mortuária-de-Portugal cria logo a ideia de se
diferençar forçadamente de Portugal o que é um erro. Nós descendemos
em muito de nós de Portugal. Temos é natural por hereditariedade muitos
costumes, expressões, jeitos, ações evolucionadas de portuga. Até intactos
quase, alguns... E vai a gente os afasta da expressão portuguesa. Por quê?
Por causa do não-somos-a-câmara-mortuária-de-Portugal. É um erro porque
esses sentimentos e costumes, expressões e ações são agora tão nossos como
dos portugas. Essas fórmulas são um perigo e o próprio Graça parece que
sentiu isso, quando no discurso que disse no banquete oferecido pra ele em
1925 por gregos e troianos acabou com o nacionalismo apressado e leviano
do discurso sobre “Espírito moderno”, falando que devíamos ser brasileiros
porque assim seríamos uma expressão nova de Humanidade (citar em grifo
a frase de Graça, exata, que tenho num recorte de jornal)6.
Nós somos as Juvenilidades Auriverdes!
As franjadas flâmulas das bananeiras,
as esmeraldas das araras,
os rubis dos colibris,
[...]
6 O discurso de Graça Aranha consta em um recorte que compõe a série Matéria Extraída de
Periódicos, no arquivo do escritor, Fundo Mário de Andrade. Além disso, na biblioteca do
escritor, no IEB, encontra-se o volume Espírito moderno que inclui o texto da conferência.
49
Mário de Andrade
(8)9
Não se trata de reagir. Trata-se de agir, que é muito mais viril e mais nobre.
(9)
Na Gramatiquinha um capítulo sobre psicologia da fala brasileira.
50
Língua Brasileira
(10)
Com prefixos como re (tornar a) a (negação) aplicáveis a verbos, substantivos,
adjetivos, a gente pode fazer um dilúvio de figurações expressivas que não
são propriamente neologismos, são antes expressões de momento, sem
valor vocabular registrável. Reamar = tornar a amar não é um novo verbo,
porque o prefixo não criou uma palavra que falte propriamente à língua,
como o caso de repetir; é uma expressão de momento, expressão composta
na realidade de duas palavras: o prefixo re e o verbo amar. São expressões
idiomáticas ocasionais e não palavras novas.
(11)
O que fala o brasileiro tem o direto em vista da expressão momentânea de
criar a voz ou vozes que quiser, sem que isso tenha propriamente que ver
com a língua brasileira mesmo se essa invenção vem escrita. É assim que a
todo momento em vista da expressão momentânea a gente escuta palavras
que não existem, não registradas e que não devem mesmo ser registradas
pelos vocabularistas porque não têm existência imprescindível. Porém
são perfeitamente vivas e justas essas expressões que se aparentam com os
neologismos, porque tiveram aplicação justa, porque partidas duma comoção
intensa que se afasta do convencionalismo dos símbolos verbais conhecidos,
enfim porque vivem. Porém a língua nem os linguistas não têm nada que ver
com ela nem ela com eles. Principalmente em vista da imitação de ruídos a
todo instante se criam expressões orais dessas. As crianças abundam desses
ruídos admiravelmente expressivos, admiravelmente vivos sem que tenham
vida gramatical. Se um indivíduo que detesta o gênero oratório de Rui
Barbosa, por exemplo, diz pra outro: deixe desses discursos ruibarbostas,
unindo propositalmente bosa e bosta, criou uma expressão cômica muito
legítima, forte, incisiva porém não criou uma palavra nova. Depois de
pronunciado ou escrito o pseudoadjetivo ruibarbosta deixou de existir.
Dessas criações efêmeras, existentes ou passíveis de existir até o infinito,
todo homem tem direito de fazer, são legítimas, perfeitamente exatas e até
aconselháveis. Porém estão fora da virtualidade perene da língua. Acontece às
vezes no entanto que expressões assim venham a adquirir dessa virtualidade
perene que nem fonfom, ruge-ruge e se universalizam dentro dum povo
51
Mário de Andrade
(12)
A tendência pra eliminar os pronomes dos verbos pronominais. Exemplo:
a que horas você levanta, hein? Ir embora.Vá embora!
(13)
Prefácio – Não se trata dum livro técnico nem pra técnicos. Homens pra
estes talvez sirva de alguma coisa porque geralmente são tão presos a leis
e regras convencionais, tem um espírito crítico tão pequenininho e lerdo
que a violência ingênua das minhas liberdades talvez contenha mais duma
sugestão pros tais. Porém embora estude com seriedade e constância a
minha língua e a língua dos meus antepassados, me parece cada vez mais
que não sei nada delas tal a barafunda que fazem em mim as comoções, as
esperanças, as ambições e as verdades e leis. Sou bem um leigo da matéria.
Não tenho pretensão nenhuma. Porém minha vida tem sido sempre essa
belíssima coisa que se chama agir com vivacidade e coragem. Ora diante
de todos aqueles que aconselhavam a intromissão de certos modismos e
certas fórmulas gramaticais dos brasileiros na tábua de leis linguísticas da
língua lusitana, eu tive a coragem conscientemente, seguindo a tradição e
o exemplo bonito de José de Alencar, tive a franqueza de agir em vez de
ficar no discurso “Irmãos, fazei!”. Sempre tive horror ao “Sejamos!”. Eu sou.
E é certo que desque me pus na fadiga de escrever brasileiramente, não fiz
caricatura nem pândega. Todas as manifestações de brasileirismo linguístico
que empreguei, empreguei sinceramente, não pra fazer comicidade nem
mostrar burradas de incultos. Estilizei com seriedade depois de muito matutar
e nem tudo aceitei porque se o povo pela sua incultura é por muitas partes
imbecil e estúpido, por essa mesma incultura que o livro de uma imundície
de preconceitos descobre aquelas fórmulas orais de expressão que encarnam,
refletem e explicam as sensibilidades caracteristicamente nacionais. Fui
sincero, paciente e estudioso nas minhas estilizações. Algumas, forçadas, que
usei, como Oropa e outras, pela própria maneira em que estão empregadas;
pela própria significação irônica da frase que as encerra, provam que eram
52
Língua Brasileira
depreciativas ou ironias-ataques, não coisa séria. Ainda mais uma coisa: muita
gente, até meus amigos, andaram falando que eu queria bancar o Dante e criar
a língua brasileira. Graças a Deus não sou tão ignorante nem tão vaidoso.
A minha intenção única foi dar a minha colaboração a um movimento
prático de libertação importante e necessária. Dar a minha solução pessoal
a um problema que pode comportar muitas soluções transitórias ocorrentes
e que só muito mais tarde, tenho inteligência bastante pra saber isso, terá
a sua solução definitiva-evolutiva que tem de ser inconsciente e unânime.
Se cada um, estudando com seriedade e trabalhando com afinco, desse a
sua solução pessoal e transitória a este problema, não dou vinte anos, o
elemento culto brasileiro, quero dizer a manifestação humana civilizada e
por isso representativa (não falo característica) do Brasil na civilização atual
já falaria, já escreveria e já teria gramáticas duma fala mais concorde com a
nossa nacionalidade original, a nossa sensibilidade, ideais e civilização. Isso
seria prático. Isso seria ter liberdade bem compreendida. Isso seria cultura
verdadeira. E sobretudo isso seria ser humano e enriquecer a Humanidade.
Assim fica entendido que isto não é uma obra científica. E ainda e sempre
uma obra de ficção organizada pelo amor que consagro à Humanidade e
nascida da comoção fortíssima que sempre faz nascer em mim a vida das
palavras.
(14)
Ir-se embora = locução verbal. De tomar esse caráter de locução verbal
vem o fui-se embora que parece formar o advérbio simbora. Na verdade
o conceito pessoal e flexionável do pronome é que desapareceu dentro da
locução inteiriça e imutável a não ser no verbo inicial que a temporiza.
(15)
Poude = mais uma flexão irregular de poder.
(16)
Que tal o concerto? Assim-assim. Ela tem uma voz mais-ou-menos. Assim-
-assim e mais-ou-menos são adjetivos qualificativos.
53
Mário de Andrade
(17)
Num capítulo chamado “Psicologia da língua brasileira”: Doçura, Lentidão,
Meiguice, Sensualidade, Ironia, Asperezas, Emboladas.
Olha o bambu do bambu bambu
Olha o bambo do bambu bambubê
Olha o bambo do bambú bambubá
Quero ver10 dizer 3 vezes bambubê bambulalá!11
Molenga língua. Indecisão passageira. Frases rápidas: Vênus bebia não.
Síntese oratória da conversa.
(18)
Esta gramática, pois que gramática implica no seu conceito o conjunto de
normas com que torna conscientes a organização duma ou mais falas, esta
gramática parece estar em contradição com o meu sentimento. É certo que
não tive jamais a pretensão de criar a fala brasileira. Não tem contradição. Só
quis mostrar que o meu trabalho não foi leviano, foi sério. Bem que matutei
e trabalhei pra dar pro meu estilo novo normas que organizassem-o. Se cada
um fizer também das observações e estudos pessoais a sua gramatiquinha
muito que isso facilitará pra daqui a uns cinquenta anos a salientar normas
gerais, não só da fala oral transitória e vaga porém da expressão literária
impressa, isto é, da estilização erudita da linguagem oral. Essa estilização
é que determina a cultura civilizada duma raça sob o ponto-de-vista
expressivo. Linguístico.
(19)
O estarem as palavras descriminadas pelas várias categorias, substantivos,
adjetivos, verbos etc. Não é senão um meio de fixação de conceito psicológico
perfeitamente exato porém não intangível. Quase todas as vozes podem
mudar de categoria tais como se apresentam ou por meio de partículas
categorizantes, que nem ear, izar, mente. Só as partículas adjuntivas de
palavras como preposições e conjunções têm categoria intangível, porém
54
Língua Brasileira
(20)
A palavra é uma entidade. O substantivo é uma entidade qualificativa.
O adjetivo é uma entidade limitativa. O verbo é uma entidade acionadora
e vitalizadora. O advérbio é uma entidade modalitativa e modificativa.
O pronome é uma entidade personalitativa. A preposição não é uma
entidade, é ligadura de entidades etc.
(21)
A frase é um substantivo. Mesmo se eu falo “Você é burro” eu criei um
substantivo, isto é, uma entidade qualificativa.
(22)12
Assim só essas vozes locucionais é que não podem variar de categoria porque
não são entidades independentes, não tem vida própria. Os adjetivos,
advérbios, substantivos etc. podem no entanto passar pra qualquer outra
categoria transitoriamente e sem perder o seu caráter psicológico. Vestem
uma fantasia, se mascaram momentaneamente, por uma precisão expressiva,
mas porém não perdem jamais a entidade psicológica que se esconde sob
o lupe.
55
Mário de Andrade
(23)
Nem uma só vez dar exemplos vulgares, gênero “Pedro matou Paulo”. Todo
exemplo será reflexão profunda. Será frase lírica adorável. Será julgamento
crítico. Será ataque ou sarcasmo. No máximo com brasileirismos raríssimo
dar exemplo palavra isolada, só quando já contiver lirismo.
(24)
Descrever minha comoção profunda com a palavra. Os cambiantes de sentido
da palavra pelas relações que adquire, pelas modificações que assume dentro
da frase. O poder da frase. Sua amabilidade. O valor da frase antipática.
O ardor de certas frases sensuais. Quando principiei escrevendo brasileiro
imediatamente minha frase se encompridou como um caipira, ficou longa,
de braços molengas, fala dengosa, renque. Não gostei de sopetão mais das
frases curtas – enérgicas, mas porém depois estas entraram de novo porque
me lembravam, gente [sarrista?], picurrucha, serelepe, gorducha.
(25)
Caráter estético da fala que emprego. O defeito do ineditismo. Carece
acabar com este (ver páginas soltas apensas a este livrinho)13.
(26)
Entre as formas compostas de adjetivos demonstrativos (Carlos Pereira,
p. 63) não esquecer “Esse um” e “Aquele um”.
(27)
Substantivo prático ou particular. Um grupo de entidades abstratas universais
reunidas formam então o verdadeiro substantivo, o prático, o que a gente
emprega e que é limitado. Exemplo: este meu Brasil gostoso. Esta última
frase é um verdadeiro substantivo composto – é transitório – é psicológico
– é limitativo – é concreto e realista.
56
Língua Brasileira
(28)
Uns pares de = vários.
(29)
Caracteres psicológicos do brasileiro: carinho, pegajosismo, sensualidade,
calor na sonoridade (escrito) verdadeira musicalidade no oral, que nem
com as crianças. O caipira quando fala, sobretudo o mulato canta que
nem criança. Comodismo, lentidão escarrapachada e acocorada. Fazer
considerações sobre isso em solução da rapidez moderna.
(30)
Será total a diferenciação entre brasileiro e português (línguas). Total
não pode ter sendo falas do mesmo berço comum. Quando muito talvez
daqui a século como entre português e espanhol. Não é razão pra que não
principiemos.
(31)
É curioso que, sem saber disso, os primeiros versos que fiz, ou pelo menos
de que tenho memória foram também uma embolada legitimíssima. Isso
foi no tempo dos quatorze pros quinze quando o amar passou dos simples
beijos escondidos nos cabelos maravilhosos de Maria ou das marretas
sintomáticas, meio sem ser de lado, que dava numa outra Maria, tenho a
fatalidade das Marias na vida minha!... criadinha na tia do número 1. Tinha
conhecido uma liberobadaroana, naquele tempo... Se chamava Geny. Pois
eu andava sempre cantando estes versos admiravelmente expressivos e que
são um exemplo perfeito e equilibradíssimo do processo da sublimação
freudiana. Vou grafar a embolada pelas entidades psicológicas dos vocábulos
que sentia dentro de mim. Vai:
Fiori de la Pá
Geni transférdi güide nôs pigórdi
Geni trâns!14 Feligüinórdi
Geny!...
14 Nota MA: “Neste ‘Geni trâns!...’ eu era possuído por um êxtase inconcebível. Erguia a voz,
dava uma fermata e sofria”.
57
Mário de Andrade
(32)
É incontestável que eu escrevendo na língua artificial e de ninguém em que
escrevo atualmente por assim dizer escapoli da possibilidade de errar. Isso
não tem dúvida não porém a gente carece notar duas coisas:
Primeiro: posso dizer com certa sinceridade que sei ou pelo menos já sube
escrever o português. Dou como livro escrito nessa fala a minha Escrava
que não é Isaura. Livro publicado com certa afobação só me desculpo nele
da barafunda de acentos que por vezes saíram bem falseados. A culpa
não foi minha que nesse tempo inda eu não sabia rever provas não. Afora
isso me escapoliu um “poude” por “pôde”, cacoete em que cochilei uma
feita no volume. Porém é certo que sabia da ortografia legítima como a
gente constatará pelos livros anteriores. Agora escrevo conscientemente
“poude”. O outro erro, também de ortografia nem me lembro mais qual é.
Afora esses, duvido que possam me mostrar erro de deveras erro no livro.
Podem chicanar com pontos de controvérsia, erro mesmo, erro garanto
que ninguém não acha nenhum. Na medida do um bocado mais que o
possível, estudei com paciência a fala portuga. E não foi só nas gramáticas
de todo gênero não. Nenhum dos clássicos portugueses grandes deixei de
ler com paciência. Alguns me foram até familiares como o doce Frei Luís de
Sousa que eu gostava muito, Garrett, Camões, Castelo Branco e Latino. Os
outros lia mais por obrigação com verdadeira paciência, sobretudo Vieira e
Castilho que jamais não pude apreciar. De Camões sabia de-cor o introito
dos Lusíadas, a passagem de Inês, a dos doze de Inglaterra, a tempestade e
o Adamastor, além de pra mais de cinquenta sonetos. Também se explica
tanta decoração. Uma feita assuntei pasmo no tempo que a gente perde
fazendo a barba todo santo dia. Me lembrei de decorar coisas bonitas.
Camões e o Bilac adorado naqueles tempos de dantes foram os que decorei
mais. Porém até a “Benvinda” de Macedo Papança papei inteirinha. Fiquei
até dizedor de festinhas sonorosas duma sociedade católica. Sonetos então,
sabia pra mais de cem! Ah! Tempos em que sonhei possuir um estilo que
docinho como o de Frei Luís de Sousa fosse elegante que nem Garrett e
58
Língua Brasileira
relumeante que nem Latino Coelho!... Ora eu, como toda a gente, desconfio
um bocado de quem não sabe uma coisa e se bota falando mal dela. Que
importância fundamentada tem agora que um indivíduo inculto fale mal
da cultura? Bem pouca se o indivíduo não ficar apenas no senso comum do
lugar-comum. Porém eu sei o português. Ou pelo menos sube, que, palavra,
quando principiei vivendo de vida nova nunca mais que não peguei em
certos famanados. Minha biblioteca está povoada de hic-jacet s15. Pois é. Se
eu deixei de escrever em português bem que posso pois falar que foi por
causa de ter adquirido uma convicção nova.
Segundo: é incontestável que com a estilização de fala brasileira feita por
mim, estilização em que além de generalização de modismos sintáticos
brasileiros e ilações que tiro deles, entram ainda modismos esporádicos
colhidos de pessoas que escuto, cartas que recebo, livros, jornais, anúncios
etc. que leio e mais as variações e fantasias estilísticas que me são próprias...
Vou começar outra frase porque essa está ficando manguari por demais.
É incontestável que com a estilização de fala brasileira que é a minha
contribuição pessoal pra codificação futura do brasileiro, ninguém não me
pode pegar em erro. Basta ver as modificações açus16 de estilo, de modismos
vocabulares e de ortografia dum livro meu pra outro, pra se ver que tudo
saiu assim porque eu quis. Mas também por outro lado, se não me podem
acusar de erro, também é certo que não me deixei adormecer nos braços
molengos da facilidade. Minha fala é dificílima até. Requerem (?) e requer
estudo constante, prática mensal de centenas de vocabulários apensos a
quanto livro regionalista surge por aí tudo, e muita observação pessoal.
E muita codificação e generalização pessoal. É muita paciência de observação
psicológica. E uma universalidade brasileira que jamais ninguém nunca não
poderá chamar de regional. Se muitos que tentam o que eu tento despencam
pra facilidade e pro regionalismo, eu não. Posso dizer sem vaidade porém
15 O autor utiliza o termo latino hic jacet, particípio presente do verbo jacere –“ estar estendido,
estar deitado, estar pousado no chão”, seguido da letra “s”, para marcar o plural de “aqui
jaz”. Dessa maneira, indica que sua biblioteca está povoada de defuntos. Cf.: HOUAISS,
Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
Editora Objetiva, 2009, p. 1122.
16 O autor utiliza a grafia antiga “assús” para este termo de origem tupi que significa “de
grande porte; avultado; volumoso”. Cf.: HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles,
p. 44.
59
Mário de Andrade
com consciência que não. Ora com o conhecimento prévio da fala portuga,
com o estudo paciente das falas brasileiras e com a estilização penosa delas,
creio que tenho três perdões bons da libertação do erro em que contra a
vontade me vejo. Posso escrever o que me vier na cachola, até coisa que eu
mesmo reconheça ser erro em brasileiro, sem que ninguém não possa com
justiça me acusar de erro. Pelo simples fato de que ninguém não sabe o
que foi consciente e o que foi falsificação, num estilo tão extravagante que
nem o meu. Sob esse ponto estou na situação dum primitivo. E por isso
escrevo mesmo que nem primitivo, naquilo, em que o posso ser, isto é, sem
a preocupação de que isto é erro e isto não. Minhas preocupações de língua
escrita são outras. O que ficará das milietas17 de processos empregados por
mim? Não posso maliciar isso não. Pode até não ficar nada. Pode porque
tudo é possível porém duvido. Que importância tem um processo de compra,
uma norma de falcoeiro, uma carta quatrocentista pra fala portuga de agora?
Importância bibliográfica, importância pra estudioso, importância sem
importância. Isso eu serei, passado um século ou dois. Que bem me importa,
gente! Que bem me importa? Importância tem pra mim mas é minha vida e
minha eficiência na vida contemporânea que vivo. Nessa garanto que sube
representar um destino. E que esse destino era bem o meu tudo me está
provando: uma consciência, uma segurança de mim que me deixa dormir
bem, uma curiosidade faminta de mundos, uma alegria sem parada. E tudo
isso: terra pra um jardim de cento e tantos amigos que até fazem me iludir:
confundo amigos com bugalhos, dou bom-dia pra motorneiro, até-logo pra
garçom, me rio pra todo o mundo e cá neste peito batido sem aguentar
meus penares. Vida assim condena Deus e Deus condena? É possível que os
mártires do mundo tenham pena do que evita e combate a dor... Porém o
perdão existe, também pros que amaram por demais. Eu.
*
17 A palavra “milietas”, que significa muitos (as), também foi empregada em Macunaíma,
o herói sem nenhum caráter, conforme indica Noslen N. Pinheiro em sua dissertação. Cf.:
PINHEIRO, Noslen Nascimento. A expressividade dos neologismos sintagmáticos de Mário de
Andrade – FFLCH-USP.
60
Língua Brasileira
Tem traço-de-união18:
I. As palavras duplas em que no plural primeiro termo se pluraliza;
II. As palavras duplas em que no plural se daria mudança de sonoridade
(força) na consoante inicial do segundo termo, r ou s19;
III. As palavras triplas: traço-de-união;
IV. As palavras em que o primeiro termo é “sem”, “circum”, “recém” conservam
o m embora unida: semvergonha, recémchegado, circumnavegar.
Palavras acentuadas:
I. Esdrúxulas de uso menos comum;
II. Palavras suscetíveis de duas acentuações diferentes com significados
diversos, acentua-se todas pra facilitar a visibilidade imediata, exemplo:
“saía”, apesar de grave.
18 Embora não estejam numerados, os dois últimos tópicos – “Tem traço-de-união” e “Palavras
acentuadas” – são subsequentes às notas presentes na caderneta. Trata-se provavelmente de
um acréscimo do autor pelo uso da tinta preta, instrumento de escrita raro no manuscrito.
19 Nota MA: “Em todo caso verbos como entressorrir em vez de traço-de-união terão o s
duplicado pra melhormente ressaltar a entidade verbal.”
61
Ideias Para Capítulos Particulares
Capítulo I – Introdução20
65
Mário de Andrade
sei que é puro preconceito não só porque o belo é transitório como porque
julgam da beleza do meu estilo não em si porém comparando, o que não é
absolutamente maneira de julgar uma coisa nova.
*
Nas censuras vejo antes de mais nada a samanguice (figurado), preguiça
de tentar e sobretudo a vaidade de não ir atrás, de não dar a impressão de
ser discípulo. Tudo vaidade. Pois saibam que não tenho a impressão de ser
primeiro. E no entanto por mais que não queiram parceiros e inimigos tenho
sido o primeiro em muita coisa nestes brasis, em mais coisas que se imagina.
Não por ser o primeiro a tentar, porém por ser o primeiro a “acreditar”. Eu
tenho fé. Por isso, se dois ou três tinham tentado numas poesias umas ou
três em verso-livre, eu não tentei, não falei “Façam!”, nem “Sejamos!”. Eu
fiz um livro inteirinho. Não tentei. Acreditei no verso-livre. Eu não disse
sejamos brasileiros. Eu fui. Eu não falei: escrevamos brasileiro. Eu escrevi.
Se alguma coisa me orgulha é o poder intelectual maravilhosamente feliz
com que eu cumpro os mandamentos da minha fé. De ser o primeiro não
tenho orgulho nenhum. Não só porque ser primeiro nunca pressupôs ser
genial como também porque já vejo muita gente fazendo melhor que eu
fiz e faço. Porém no regime feioso e panema do sejamos, não fiquei não.
*
Mostrar que o perigo pra quem se mete numa coisa destas é principiar
inventando coisas sem nenhuma ligação com a realidade existente. Embora
tomando cuidado não me livrei desse defeito e é por isso que não apresento
o meu trabalho como obra de técnica porém obra de ficção. Porém sempre
uma observação inda tenho que fazer: é que estudando a psicologia dos
termos e das frases, não destruo nenhuma das leis e normas gramaticais
universais. Assim quando chamo todas as palavras de abstratas e mostro que
se tornam transitoriamente concretas não destruo a velha divisão gramatical
em substantivos abstratos e concretos, apenas faço a psicologia da palavra
como entidade universal e entidade particular. Este livro evidentemente é
pra quem já sabe não é pra grupos-escolares.
*
66
Ideias Para Capítulos Particulares
Início24
Brasil corpo espandongado, mal costurado que não tem o direito de se
apresentar como pátria porque não representando nenhuma entidade
real, de qualquer caráter que seja nem racial, nem nacional, nem sequer
sociológica é um aborto desumano e anti-humano. Nesse mostrengo político
existe uma língua oficial emprestada e que não representa nem a psicologia,
nem as tendências, nem a índole, nem as necessidades, nem os ideais do
simulacro de povo que se chama o povo brasileiro. Essa língua oficial se chama
língua portuguesa e vem feitinha de cinco em cinco anos dos legisladores
lusitanos. O governo encomenda gramáticas de lá e os representantes da
nossa maquinária política, os chamados empregados públicos que com
mais acerto se chamariam de empregados governamentais, presidentes,
deputados, senadores, chefes-de-seção etc. etc. etc. são martirizados pela
obrigação diária de falar essa coisa estranha que de longe vem. Só por eles,
os empregados governais de graduação rica, essa língua e escrita e mais
ou menos, muito menos, falada. Escrevem-a também os escritores, casta
hedionda de falsários pedantes que malempregam os dotes de lirismo
e de inteligência que possuem. Têm também os doutores, um poder de
hominhos serelepes e casuístas, sobretudo safados que muita gente imagina
falando essa moda importada, a tal de língua portuguesa. É mentira – com
exceção duns trinta ou quarenta os doutores não falam a língua oficial
nem nenhuma língua. Língua é o instrumento mais ou menos plausível
com que a gente matuta. Língua é uma expressão espontânea do homem
e ordenada unicamente pelas precisões inconscientes da fisio-psicologia
humana. Nem a língua oficial que com muito custo a gente pode fazer
entrar nesse conceito, os doutores falam e escrevem. Porque as invenções
instintivas do ser maculam na infinita maioria dos casos a escritura dos
doutores. Isso quando eles param nas cidades macotas, Rio Grande, Manaus,
Rio de Janeiro. Essa maculação fez da escritura dele uma coisa hedionda
como realidade porque é um pensamento, isto é, uma realidade psicológica
buscando se expressar sem naturalidade, sem espontaneidade de expressão.
Uma merda. Quanto aos outros doutores, os que vão parar nas cidadinhas
pingando por certas partes mais cabeludas do corpão brasileiro, esses num
24 De acordo com a indicação do autor, aqui se inserem as “folhas soltas”, esboço de ensaio
sob o título “Início”.
67
Mário de Andrade
momento se deixam possuir pela terra e pelo povo que os rodeiam, falam a
língua que vem do povo e da terra, e escrevem mais pobrinho uma língua
mais verdadeira já, em que se é certo que a influência da gramática lisboeta
demonstra o funcionamento dos pronomes e dos adjetivos, sempre uma
expressão mais pura transparece que é suor de caipira no [esto?] e brisa
vaga cheirando mato natural. A língua gramatical portuguesa adotada
violentamente pelo governo e pelo pedantismo dos literatos do Brasil é uma
língua linda, rica e meio virgem quando pronunciada do jeito lusitano e
escrita por escritor lusitano. Falada do jeito brasileiro e gramaticalmente à
portuguesa é uma coisa falsa, desonesta e duma feiura morna. Essa é pois a
língua do elemento oficial graduado do nosso país. Juntos nessa língua, que
só se encontra na minoria governamental e literária, o Brasil sendo como
agorinha já (“agorinha já” vem na boca de gente do povo em Sertões do Iguaçu
de César Martinez) falei em corpo mal costurado, tem um poder de outras
línguas representando com menos estupidez e mais fatalidade certas outras
minorias de que se compõe esta nação falsa. Tem por exemplo o italiano,
tem o alemão, tem o japonês, tem os diversos linguajares regionais que aliás
não chegam bem a formar línguas de-verdade. Tem ainda o guarani. E tem
o espanhol paraguaio de toda essa região maravilhosa da margem brasileira
do Paraná, região [ilegível] onde o português e a fala brasileira em qualquer
das manifestações dela, são inteiramente e totalmente desconhecidas, onde
só se fala o paraguaio e o guarani. Com que direito hediondo de conceito
de pátria se poderá dizer que essa região onde a gente que trabalha e sofre
é paraguaia, a língua e os costumes são paraguaios, o comércio é paraguaio
ou vem da influência argentina, com que direito hediondo essa região nós
fazemos nossa? Essa região é paraguaia, pertence à nação dos paraguaios e nós
não temos o direito de dizê-la nossa porque nada fazemos e nada sofremos
por causa dela. A vida é ação e sofrimento não é orgulho nem ambição
de grandeza. A vida é trabalho ganhando direito de vida, coisa chique e
voluptuosa. Esse trabalho, esse sofrimento, essa vida pelas regiões vastas
de sertão no Iguaçu, é paraguaia e eu me envergonho de dizer que possuo
mais dinheiro que o carecido pra viver. Essa região fala a língua hispano-
-paraguaia. Aliás o japonês de Cotia, o italiano de Abaixo-o-Piques, o alemão
de Santa Catarina e o paraguaio de Guaíra são felizes ao menos nisso que
falam a língua natural deles, se expressam com realidade. Meu dó grande
68
Ideias Para Capítulos Particulares
69
Mário de Andrade
70
LEXIOLOGIA
Capítulo V – A palavra
26 Arsène Darmesteter é autor de La vie de mots: étudieé dans leurs signications. O escritor
francês Rémy de Gourmont, por sua vez, configura outra sugestão de estudo.
71
Capítulo VI – Substantivo
Nota 27 – Nota 23
*
Os pronomes são uma subdivisão dos substantivos.
*
Abstratos e concretos27. Todos os substantivos são abstratos em si, são
universalizações. Os termos só se tornam concretos quando particularizados.
Assim cada palavra pode ser concreta ou abstrata. Exemplos de substantivos
abstratos: “Postretutas e famias sacolejam” (Oswald de Andrade, “Bonde”,
Pau Brasil, p. 56). Exemplo de substantivo concreto: “Quando, Maria, vês de
minha fronte, negra ideia voando no horizonte, as asas desdobrar” (Castro
Alves, 1, p. 24). Aqui a imagem concretizou a palavra abstrata ideia da mesma
forma com que no exemplo anterior postretutas se inclui na categoria das
abstrações por não ter adquirido essência limitativa e realística. Se falo
“Quando o Brasil entrou na Guerra Grande tive um remorso curto e violento”
remorso é concreto porque está delimitado e realista. Porém no “não tive
remorso por não tomar parte na Isidora” já remorso é abstrato. “Meu forde”
é concreto. “Fordes na rua” é abstrato. “Os fordes de Pauliceia” é concreto.
*
Fazer a psicologia do “você”. Mostrar o caráter inconstante dele. Sensual mas
delicado. Íntimo mas discreto. É como se fosse um tu indireto, é como se
27 Antes desse trecho, há apenas menção ao título “Os números” e, por tal razão, suprime-se
o tópico.
73
Mário de Andrade
74
Capítulo X – Interjeição
75
Capítulo XI – Partículas
sintáticas
77
Capítulo XVII – Formação das
palavras
29 Trata-se de uma interjeição brasileira que “exprime admiração, espanto”. Cf.: HOUAISS,
Antônio; VILLAR, Mauro de Salles, p. 1404.
79
Mário de Andrade
80
SINTAXE
Capítulo XIX – Frase
30 Tradução livre: É preciso que apesar da presença de dois termos, a composição impregne
o espírito de uma ideia simples.
81
Capítulo XXI – Psicologia do
pronome31
Nota 7 – Nota 23
*
Pra quem diz que só iniciamos frase com o pronome “me”, o que aliás não
teria importância pois generalizo concludentemente uma regra popular,
lembrar porém a estrofe:
Somos pobres miseráveis
Não temos nem pra comer
Pode arranjar uma sombra
Até o dia amanhecer?!...
Nos faças esta caridade
Deus há de lhe agradecer.
31 O autor desloca este fólio originalmente agrupado no envelope “12-G – Tratado de estilo
ou ideias para capítulos particulares” para o envelope “12-C – Me parece e outras sintaxes”.
83
Mário de Andrade
84
Capítulo XXII – Psicologia da ação
Nota 14 – Nota 23
*
Regência de verbos pela preposição de
Os verbos dever, prometer, inventar “Você inventou de fazer isso agora
aguente”; “Prometi de ir porém não contava com a doença”; “Você deve
de fazer isso”.
Projeto da regra – Nos verbos seguidos de outro infinito e que incorrem
na significação de estar obrigado a deve ter havido contaminação: Dever
por Estar na obrigação de; Inventar por Lembrar-se de; Prometer por ?
85
Capítulo XXV – Pontuação
Hífen
O hífen enfraquece o volume da palavra lhe diminui a plasticidade. Torna
mais lenta a visibilidade, e intelectualiza criticamente a compreensão da
palavra chamando a atenção pros seus componentes. Ora a palavra depois de
ter entidade própria deixa de ter sensorial e sensitivamente uma composição
pra se tornar um dinamismo integral e único. Vive só e vive por si. Se é
certo que tomada isoladamente ela faz nascer um dilúvio de associações de
imagens e de ideias de toda casta, lirismos curiosos que nem mostrei em
poemas tais como “Flamingo”, “Escrivaninha”, “Jorobabel”33 etc., dentro dum
pensamento ela vive integral, sem decomposição, sem composição. Os alemães
é que praticam racionalmente jamais empregando o hífen intelectualista,
gramatical e prejudicial. Se de fato na fala da gente carecemos às vezes dele
pra evitar pronúncias erradas e mesmo facilitar a compreensão que nem
em sub-literatura pra não ficar a sílaba bli que estragava a história, as mais
das vezes o hífen é desnecessário e pau. Deve desaparecer o mais possível
do corpo das palavras. Nada de guarda-chuvas! Empreguemos guardassois.
No entanto tem um caso corrente em que o hífen é que traz a entidade
do vocábulo à mostra. Nos compostos de 3 ou mais vocábulos e partículas.
Máquina-de-escrever, sala-de-espera que um meu amigo alemão chama de
sala-de-esperança. Engano providencial.
33 Os três poemas autorais integram o livro Losango cáqui ou afetos militares de mistura com os
porquês de eu saber alemão (1926).
87
ESTILÍSTICA
Capítulo XXVI – Frase ou verso
Nota 21 – Nota 23
*
Falta da vogal muda no brasileiro e o decassílabo passando por isso a
endecassílabo legítimo, que nem em italiano.
*
Nas Mil e uma noites (Douce amie, p. 83) está dito: “La prose c’est de la broderie
sur soie, et les vers sont des colliers de perles34”.
*
Ver considerações que devem entrar aqui e estão na folha solta igual a esta:
“Frase” Capítulo XIX, Sintaxe.
*
Folha solta “Pensamento e frase”35.
34 Tradução livre: A prosa é o bordado sobre a seda, e os versos são colares de pérolas.
35 No manuscrito, não há fólio com esse título.
89
Capítulo XXVII – Figuração
Nota 23
*
Elipse – Pleonasmo – Anacoluto – Imagem ou Tropo
*
Estudar a imagem em Catulo, e na poesia legitimamente popular. Estudá-la
nos índios Poranduba, contos dos Caxinauás, poemas primitivos citados
[junto?] os poemas de Anchieta. Estudá-la nos românticos e nos contos
populares.
91
Capítulo XVIII – Vícios
93
Mário de Andrade
Neologismos Vulgares
O que tem de mais bonito pro homem é a realidade de presença dele. Carece
viver com inteireza o momento que passa e se adaptar a ele recebendo tudo
o que ele inventa pra expressar a sua intensidade passageira. É ridículo e se
enfraquece aquele que se recusa a empregar esses termos e essas expressões
cheias de vida que nascem e morrem falenamente: um brilho excepcional, vivo
e puf! Já se acabou. Foram um ano, dois, às vezes dez de existência e só isso.
As expressões duma língua mudam rapidamente, mudam constantemente
e em pouco tempo já são outras. Carece aproveitar o seu momento de vida
oral e se expressar sem acreditar que sejam vulgarismos nem se importar
de serem falenismos, falas como “cutuba”, “o tal de Mellinho”, “pra burro”
etc. Os que se recusam a esta vivacidade tão expressiva, tão expressiva
sobretudo porque é a constância do presente, sob pretexto de que são
expressões vulgares, são transitórias, e não se encontram nos clássicos das
épocas diversas, desconhecem todo o poder de vulgarismos que está nos
clássicos e principalmente se negam a si mesmos com essa mania de escrever
em expressões que mantiveram direito de eternidade através de Camões,
Vieira, Herculano, Gonçalves Dias, Machado de Assis e Rui Barbosa, o mais
bonito direito do homem na Terra que é o direito de envelhecer e se cobrir
do respeito da velhice venerável. A gente carece envelhecer. A velhice não é
somente uma das essências da genialidade como é também um dos caracteres
da nobreza humana. E isso é tão certo que estão caducos de antemão,
estão corocas e aluados os que bancam de clássicos sem terem vivido pela
expressão oral o momento deles. Só os que vivem presentes no tempo têm
direito de envelhecer. Envelhecer não é o mesmo que ser coroca e caducar.
Coroca é a lua que às vezes a gente enxerga às 8 horas da manhã, caduca a
lua branca das 16 horas. São ridículas e inúteis até como decoração. Porém
o sol envelhecendo da boca-da-noite esse é venerável, é velho e conserva
com drama comovido o seu presente antigo. Isso é envelhecer.
94
Capítulo XXIX – Prosa e poesia
95
Mário de Andrade
96
Capítulo XXX – Psicologia da
fala brasileira
97
Ideias Gerais Sobre Língua
Língua Brasileira
Inda não existe. No entanto na pronúncia temos já uma língua inteiramente
apartada da fala portuga. Essa pronúncia e toda a fenomenologia fonética já
nos teriam levado pra outra fala se não fosse reação erudita. Os benefícios e
os males da erudição. A falsa erudição que não tem coragem pra ir pra diante
pela observação dos fatos, porém se orgulha de mostrar que ficou pra trás
por saber o passado e ter lido nos livros. O fato é que se nossa fala oral se
diferencia bem já da portuga, então língua literária é que não temos mesmo
nada de nada porque mesmo um Castro Alves, um Álvares de Azevedo, um
Alencar, um Machado de Assis, um Monteiro Lobato, um Ribeiro Couto,
um Prudente de Morais, neto, pra ir até os mocinhos aparecendo, que
escrevem numa fala desprevenida de gramática clássica, e bem brasileiros
na prosa, sem querer, inconscientemente se deixam levar pelas tradições
adquiridas na escola e no convívio dos livros. E dessas tradições a mais pior
é o preconceito dos olhos. Os olhos... Mal danado que eles fazem pra gente...
Já miram dum jeito a coisa escrita. Veem de outra, acham feio. E levam a
gente a afirmações como essa que tanta gente me faz de que não fala pra e
sim para. Quando lê, sei que lê para. Porém é incontestável que a dicção pra
é geral e até geral não só entre brasileiros como até entre portugas. Porém
não discuto fatos especiais agora. A verdade é que a gente não possui ainda
uma fala brasileira distinta. A gente inda está naquela fase de desagregação
da fala portuga em que a fenomenologia poucas normas gerais apresenta.
Tudo se resume a fenômenos pessoais. Um fala assim, outro fala assado. Por
exemplo a fala italo-luso-brasileira de São Paulo. É incrível o desperdício
de fatos individuais que a gente pode colher. A deformação cômica obtida
pela literatura de Juó Bananere, a própria fotografia instantânea com que
Alcântara Machado codaquisou certas expressões individuais “Amassou
o bonde”; “Escuta só o frio” (aliás a meninada italiana tem propensão
pro escuitar com i) e outras mais gerais “Se o doutor me promete ficar
quieto — compreende? — e o negócio etc.” (Brás, Bexiga e Barra Funda,
p. 128)36 representam fatos mais de grupo ou sempre puramente individuais.
Os ítalo-brasileiros falam coisas extraordinárias. Fiquei bem uns seis meses
freguês dum barbeirinho ruim das Perdizes só pra escutar a fala dele que
era uma gostosura de imprevisto com os seus “soddisfeito”, “quatros dia”
101
Mário de Andrade
102
Ideias Gerais Sobre Língua
Os “meus alunos”:
Se alguém se mete trabalhando a fala brasileira em sua estilização literária,
é lógico que vai ficar parecendo um pouco comigo porém isso só prova
uma coisa: é que a fala brasileira é um fato pois que se um se parece com
outro é porque ela já possui certa unidade e certo caráter individualmente
original e dela só. A associação de imagens que faz com que a gente lendo
estilização literária de fala brasileira lembre o primeiro ou os primeiros que
fizeram isso a sério (falam “no pra do Mário” como se isso me pertencesse,
e já não estivesse em porcentagem comovente nos românticos do Brasil) é
uma associação fatal. O problema inda está queimando na lembrança dos
que perceberam as primeiras tentativas, estas são raríssimas por enquanto
e inda não se generalizaram, quando a gente topa com uma logo pensa na
outra que já viu, é associação fatal e não tem validade crítica nenhuma
como prova de imitação vulgar. É uma concordância apenas, fulano viu
alguém trabalhar num problema e dar algumas soluções deste, se concorda
com elas, usa-as. Porque concorda. Se eu afirmo que “um e um são dois”
não é porque imite ninguém mas porque concordei com a verdade que o
professor de aritmética me ensinou. Se fulano escreve “que deve-se”, “Sente
nessa cadeira”, “me acho”, “vou na cidade”, “falou pra mim” etc. etc., não é
porque me imite porém porque concorda com o que ele imagina verdades
da fala brasileira, é que eu imitei da fala oral dos outros. Outras causas que
impedem a generalização atual e rápida da fala brasileira:
A vaidade de querer ser o primeiro;
O preconceito do passado;
A preguiça de mudar uma sinceridade do costume por uma sinceridade
nova inda só na inteligência;
A falta de conhecimentos;
A preguiça de aprender;
O medo da moda não pegar e as obras perigarem não durando;
A vontade de ser eterno e clássico.
*
103
Mário de Andrade
104
Ideias Gerais Sobre Língua
105
Ideias Gerais
A contradição de que eu não falo como escrevo é das mais rápidas, mais
tolas e pueris que conheço. Ninguém nunca não falou como escreve. E se
qualquer escritor, mesmo nos mais aparentemente naturais, se a gente os
frequenta põe logo reparo na distinção que existe entre a maneira deles
escreverem e a de falarem. Sempre em todos os tempos teve duas línguas,
a língua geral e a língua literária, aquela falada e esta escrita. Sei que esta
distinção inda pode ser mais especializada e que são mais numerosas ainda
as línguas simultâneas duma fala só porém essa divisão primeira me basta
pra argumentar. Enfim ninguém escreve como fala e eu sou como todos.
Porém sucede que a maioria pra escrever veste fraque, alguns casacas e o
resto o paletó de domingo, ao passo que eu me dispo até do paletó semanal.
E não é falta de educação não. Porque se uma tentativa destas se generaliza
toda gente creio que está em condições de compreender que daí em diante,
maleducado vai ficar o que veste casaca, fraque ou paletó domingueiro, ao
passo que o em mangas de camisa é que fica o que está certo, o que está com
todos, o que está na moda. E a linguagem em mangas de camisa é que fica
a língua literária, a língua eternizada e a língua nobre duma raça num dos
seus períodos. Agora que mostrei o que tem de desarrazoado nos outros
e em mim igualmente, mostro por onde me separo razoavelmente deles.
A língua literária dum povo, a língua escrita, estilizada, enfeitada, não passa
dum dos muitos preconceitos fatais sem os quais não existe vida social. O que
eu faço pois, e sei muito bem disso, não é senão substituir um preconceito
por outro. Porém o meu preconceito é mais útil, mais humano e mais nobre.
Mais útil mesmo do que os que já escrevem o brasileiro das cidades cultas
ver um Ribeiro Couto, um Couto de Barros etc. porque ajudo a divulgar e a
unanimizar na gente culta ou europeamente, ou antes universalmente culta
do meu povo, os modismos, as expressões, a psicologia da gente inculta desse
mesmo povo meu. Modismos e psicologia e palavras, fortes, francas virgens
e incontestavelmente enriquecedoras e ignoradas. Aliás é falso que mesmo
os dois Coutos e os mais que escrevem com a naturalidade aparente deles,
representem a fala oral da gente praciana e culta brasileira, porque esta gente
vive enchendo a boca de “pras”, de “me pareces” etc. etc. e eles jamais não
escreveram isso. Por causa das gramáticas de Lisboa que adquiriram como
preconceito incontestavelmente portuga desde os “bancos escolares”. Minha
tentativa é útil. E é humana porque eu generalizo numa só, universal, sem
classes, unitária e única, e unânime a alma do meu povo. Esses regionalistas
109
Mário de Andrade
37 Trata-se da fração da frase latina Requiescat in pace (RIP), que significa “descanse em paz”.
Cf.: HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles, p. 1650.
110
Ideias Gerais
111
Mário de Andrade
112
Ideias Gerais
De fato uma tentativa que nem a minha em parte grande vai de encontro a
um fenômeno histórico da fala humana que já me parece possível de terminar.
Os filólogos andaram se preocupando um tempo e andam ainda em entroncar
as falas diferentes em poucas línguas mais e talvez seja possível reunir estas
numa fala primitiva única. Se deu incontestavelmente à medida que o
mundo civilizado histórico se alastrava uma ramificação e desmembramento
contínuo de falas raciais, coisa que com a verificação das falas americanas já
fundamentalmente distintas das línguas neolatinas e inglesa pelo espírito,
a gente pode falar que culmina nos tempos de agora. Porém38 como todo
apogeu já traz na bagagem o micróbio da própria destruição dele, se nota
agora já uma tendência absolutamente contrária à ramificação das falas.
A tendência nova principiando é justamente uma concentração e a orientação
pra volta a umas poucas línguas somente, anglo-americano, francês, alemão,
espanhol. O francês na arrancada final pra ramificação universal das falas
se tornou língua oficial do mundo. Fenômeno histórico perfeitamente
explicável que é mais uma do desmembramento: careceram duma língua que
humanizasse o mundo e como o francês por certas razões estava na ponta,
se serviram fatalmente do francês. Porém a tendência pra concentração se
manifesta e sucedeu que o francês por muitas razões ainda perdeu a primazia
que tinha. Muitos falam levianamente que o inglês vai tomar o lugar de
língua universal... Está certo porém isso é metade da verdade, só. De certo
que pras relações humanas sempre que terá uma fala mais ou menos aceita
como oficial porém isso não basta pra explicar o fenômeno e a barafunda
concentrante de agora.
Não é o inglês só não que derroca a primazia do francês porém o alemão
cujas palavras também já comparecem com muita frequência na fala de
outros povos, que toda a gente principia estudando mais. É o espanhol
preocupando o universo por causa do peso sulamericano etc. É possível que
duma futura concentração em, e sobretudo, mistura de poucas falas se venha
universalmente a adotar uma língua única porém esses futuros hipotéticos não
podem ter valor crítico pra minha tese de momento. O que vale constatar é
mesmo só que manifesta-se hoje a tendência não pra universalização duma
38 Ao continuar o texto no verso do fólio, o autor não completa a palavra, deixando escrito,
no anverso, apenas “Po-”. Conjectura-se o uso do “porém” pelo teor do período e por sua
constância no manuscrito.
113
Mário de Andrade
*
Qualificativos
Em nossa fala (na fala da gente) o qualificativo vem quase sempre depois
do substantivo. Isso se dá porque na nossa língua (com exceção dos cultos
e semicultos) quando a gente fala as palavras inda possuem valor real e
não puramente literário, sonoro, artístico, isto é de enfeite quer rítmico
(artistificando o cadenciar da fala) quer sonoro (artistificando a melodia
da fala) quer luminoso (artistificando o colorido da fala). Assim quando o
caipira fala num “campo grande” é porque o campo é guaçu mesmo, não é
como o literato que fala em “grandes campinas” coisa que a gente lê sem
refletir nem por reparo no valor modificador de “grandes”. “Campo grande”
assume pois a valência duma entidade substantiva, duma palavra só em que
a parte mais geral da entidade vem na frente e a parte particularizadora vem
depois lhe completando a significação. Eis a diferença. O qualificativo nas
unhas dos literatos e dos cultos perdeu quase que todo o valor. Não pertence
114
Ideias Gerais
mais pra fala, isto é, pra expressão duma ideia, se tornou enfeite puro.
E que a anteposição do qualificativo é coisa de gente culta, se pode observar
até estudando certas entidades substantivas que nem “grande homem” e
“homem grande”, “boa mulher” e “mulher boa”. Em “grande homem” e “boa
mulher” formas cultas se entende coisas subjetivas, qualidades que o povo
dirá por eufemismos? Circunlóquios etc. Em “homem grande”, “mulher
boa” (brasileirismo) temos qualidades físicas, coisas objetivas, tamanho de
marmanjo e gostosura de corpo das cunhãs. Embora o povo careça mais de
grandes-homens que os cultos e os literatos ele nunca não falará que Dom
Pedro II, Catulo Cearense, Carlos Chagas foram ou são grandes homens
porém agradecerá mais lírico ou mais objetivo, falando que “Dom Pedro
II foi um santo” ou foi “um homem santo”, “um imperador santo”, nunca
falará “um santo homem”, “um santo imperador”. Catulo será “um cantador
de marca”, “um cantador grande” (Alexandre terrível, Castro forte), Chagas
foi “um homem bom”, “um curandeiro de primeira” etc. etc. Isso quando
venha a ter conhecimento de homens de valor tamanho...
Agora: não tem dúvida que também muitas vezes o próprio povo emprega
o qualificativo na frente do substantivo. Isso na maioria dos casos sucede
quando o qualificativo é de expressão essencialmente abstrata, quero dizer
não modifica objetivamente a entidade. Jamais um homem sem preconceito
não dirá “uma feia dona”, “uma boa (no sentido físico) mulher”. Sucede
porém às vezes que fale “num bom imperador”. Porém mesmo isso é raro.
Em geral quando antepõe o qualificativo o povo o substantiva logo falando
que “Dom Pedro foi um bom de imperador” ou falando no “valente do
gatuno”. Também antepõe o qualificativo por força expressiva, quando ele
assume uma importância excepcional: “Maria deu um baita soco na chuva
e caiu na prantina do amor”.
*
Explicar bem o que chamo de “povo”, é o desprovido de qualquer preconceito
ou influência literária.
*
115
Mário de Andrade
39 A carta inacabada de Mário de Andrade a Ronald de Carvalho tem local e data atestados
como: São Paulo, setembro de 1922. Esse esboço tem dupla natureza, pois integra a série
Manuscritos – onde se localiza A gramatiquinha da fala brasileira –, além de estar catalogado
na série Correspondência Mário de Andrade.
40 No manuscrito, a palavra “língua” está sublinhada a lápis vermelho.
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Ideias Gerais
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Mário de Andrade
41 Escritura interrompida.
118
Ideias Gerais
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Mário de Andrade
43 Termo empregado à época da colonização, uma “alcunha dada aos franceses pelos indígenas
brasileiros”. Cf.: HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles, p. 1218.
44 Termo empregado como “nome que os índios davam aos portugueses, nos primeiros tempos
da colonização”. Cf.: HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles, p. 1478.
120
Ideias Gerais
121
Inquérito Geral Etnográfico
Formulário das pesquisas
folclóricas – Língua Nacional45
I – A Língua
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Mário de Andrade
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Inquérito Geral Etnográfico
127
Mário de Andrade
128
Inquérito Geral Etnográfico
r) valor longo ou breve da primeira vogal nos ditongos crescentes “ia”, “ie”,
‘io”, “iu”, “ua”, “ué”, “uê” e “ui”, ocasionando o desdobramento em duas
sílabas do ditongo, ou sua possibilidade (qui-abo, inqui-eto, mi-ôlo, pi-
-ólhos, mi-údo, casu-al, pu-eta, pu-êra, su-íno);
s) valor longo ou breve da primeira vogal nos tritongos, ocasionando o
desdobramento ou não do tritongo em duas sílabas;
t) manifestações de epêntese (adevogado por advogado, abissulutamente
por absolutamente, fulô por flor);
u) manifestações de assimilação regressiva (inlustre por ilustre);
v) manifestações de síncope (meidia por meio-dia etc.);
x) variações de “para” (pra, prá, prô etc.) são gerais ou não na região?;
w) pronúncias de rúim ou ruím? “múi” ou “múin” por muito?
129
Mário de Andrade
46 Escritura interrompida.
130
SELETA DE ARTIGOS DE MÁRIO DE ANDRADE:
DESDOBRAMENTOS D’A GRAMATIQUINHA DA
FALA BRASILEIRA
Brasileiro e português1
1 Esta crônica foi publicada no Diário Nacional, São Paulo, em 5 de fevereiro de 1930; compõe
ainda a coletânea Táxi e crônicas no Diário Nacional (1976).
133
Mário de Andrade
Mas não se pense que estou indicando isso como um mal pra nós. Mal
é não termos uma consciência nacional verdadeira, isso acho indiscutível.
Quanto às nossas relações pra com os portugas, que continuem como estão,
é gostoso. Queixas, briguinhas... Portugal grita de lá: “Eu sou o maior!”.
O Brasil secunda de cá: “Eu sou mais grande”. E os dois ficam feridíssimos,
com uma vontade enorme de dar um bofete no outro, dizendo por dentro
uma porção de palavrões, que a etiqueta jornalística não aceita.
Eu sei que Portugal não nos lê e que a gente lê Portugal. Sei por outro
lado que nós estropiamos o português que um campônio de Mesquitela
não estropia. São sempre as fatalidades que existem dentro das casas de
família. O filho sempre teve vontade de saber mais do pai, que o pai do
filho. Simplesmente porque dentro de casa o filho é claramente o que é, não
esconde nem tendências nem defeitos, ao passo que o pai dentro de casa
sempre foi um artista fingidor, se dando personalidade inexata, só pra filho
ver. Assim, sempre que fora de casa nos contam alguma coisa dos nossos
pais, a gente devora o reconto com sofreguidão. E quanto a estropiarmos a
língua portuguesa, jamais não houve pai neste mundo que não censurasse
o palavreado que os filhos trazem da enorme e didática rua.
Eu considero a superioridade intelectual portuguesa real, embora
muito discutível. É certo que a nossa literatura já é mais rica, mais variada,
porém a portuguesa apresenta um fundo de criação, um peso racial que nós
não apresentamos. Percorrendo a literatura brasileira, a gente não se livra
da impressão de que a infinita maioria dos livros são meros produtos de
diletantismo. Podiam não existir que não fazia mal. Nós nos orgulhamos da
nossa poesia, incontestavelmente muito mais bonita que a portuguesa... Até
isso prova nossa inferioridade: não temos em que pensar, fazemos poesia.
Com exceção da Inglaterra, país mais lírico do mundo como já dizia o
autor de Os gatos, em qualquer terra de deveras intelectual, a poesia viveu
sempre na subalternidade da prosa. Enquanto formos poetas e 30 milhões
de poetas, seremos apenas filhotes de Portugal. É gostoso. E os portugueses
são tão gozados!...
134
Exposição de motivos1
Não sei,
Meus Senhores,
135
Mário de Andrade
136
Seleta de artigos
137
A língua-padrão1
Faz parte da cultura duma nacionalidade a organização consciente de seus
processos essenciais de se manifestar. Entre estes processos de manifestação
culta estão a linguagem e a arte. Pode-se dizer que não existe país algum
civilizado que não procure conhecer, estabelecer e tradicionalizar as suas
manifestações filológicas e artísticas.
A largueza dramática do Brasil, os interesses e diferenciações regionais
de vária espécie, a pouquidade das nossas artes incipientes, ainda não
permitiram que entre nós, tanto a língua do país como a sua linguagem
artística se organizasse dentro dum critério culto que fosse ao mesmo
tempo nacional e estético. A própria escritura da língua, a não ser em casos
individualistas do passado, só de uns dois decênios para cá, principiou se
libertando normalmente e sem revoltas exageradas de regras gramaticais
que não correspondiam à realidade nacional. Mais desastrosa ainda se
mostra a incúria brasileira a respeito da nossa linguagem artística. A fala
nacional, perturbada por fortes diferenciações fonéticas regionais, ainda
não se definiu em suas manifestações artísticas, nem no teatro nem na
declamação nem no canto.
Não pensa o Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada contrapor-
-se de forma alguma às diferenciações fonéticas de uma e outra região do
país. Além das considerações estéticas que podem ver uma riqueza nessa
diversidade, ela antes de mais nada é fatal – uma força que nenhuma pessoa
nem entidade coletiva conseguirá destruir. O que não se pode porém deixar à
tonta e sem nenhum critério civilizador são as manifestações eruditas da arte
de falar, que em todos os países civilizados são fixadas pelo consenso duma
tradição feliz ou pela determinação de quaisquer organismos competentes.
É sabido que na Itália existe uma maneira artística de pronunciar o italiano,
no teatro ou na declamação. Na França uma longa tradição do bem falar
se estabeleceu nos teatros, com o exemplo normativo da Comédie Française
e do Conservatório de Paris. Na Alemanha a linguagem do Hannover foi
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Mário de Andrade
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Seleta de artigos
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Mário de Andrade
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Seleta de artigos
143
A língua radiofônica1
1 Este artigo foi publicado n’O Estado de S. Paulo, em 3 de março de 1940 e na Revista da
Academia Paulista de Letras, em 12 de março de 1943; compõe ainda a coletânea de artigos
O empalhador de passarinho (1946).
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Mário de Andrade
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Seleta de artigos
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Mário de Andrade
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Seleta de artigos
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A língua viva1
1 Este artigo foi publicado n’O Estado de S. Paulo, em 10 de março de 1940 e na Revista da
Academia Paulista de Letras, em 12 de março de 1943; compõe ainda a coletânea de artigos
O empalhador de passarinho (1946).
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Mário de Andrade
152
Seleta de artigos
153
Mário de Andrade
154
Seleta de artigos
155
A língua nacional1
1 Este artigo foi publicado n’O Diário de Notícias, em 14 de abril de 1940; compõe ainda a
coletânea de artigos Vida literária (1993).
157
Mário de Andrade
E, ao acaso: “Ele enricou a nossa literatura com milentas páginas que são
jóias ofirinas”...
Ora Rui Barbosa, mesmo como linguagem, é um valor brasileiro. Se
a sua sintaxe era escravizadamente lusitana, sempre é certo que justo pela
sintaxe é que a expressão nacional menos se afasta das normas gerais da
língua. Talvez mesmo seja esta a razão que mais nos impede, por enquanto,
de chamar à linguagem falada deste lado do Atlântico, de “língua brasileira”,
como bem observa o professor Antenor Nascentes nos seus Estudos filológicos
(Civilização Brasileira, Rio, 1939). Neste seu livro, o professor Nascentes (este
já um valor de primeira ordem) relata o ganancioso caso de alguns deputados
do Distrito Federal e da também extinta Câmara Nacional, provavelmente
jejunos de assuntos mais salvadores da pátria, terem mandado chamar à
linguagem que falamos de “língua brasileira”. Não é possível. O bom senso
não nos permite tomar semelhante liberdade com a ciência.
O próprio Rui Barbosa que foi um neologista assanhado, criou uma
prodigiosa coleção de vozes novas que na infinita maioria poderiam ser
inventadas por qualquer minhoto, igualmente imaginoso e verborrágico.
É impossível tomar por brasileirismo, verbos como “mitridatizar”,
“rebarbarizar”, “sobrepovoar”, em que nem um só elemento deixa de ser
preliminarmente luso. O senhor Tenório d’Albuquerque pacientemente
nos mostra o jogo mirífico de prefixos, com que o baiano criava os seus
verbos novos. Aliás, eu ainda me pergunto se será justo averbar, como
“neologismos”, essas palavras inventadas de passagem por um indivíduo,
que, mesmo ele, nunca mais as repetirá na sua vida e livros. A língua é fato
social, e o neologismo só o é quando adotado por uma comunidade. Rui
Barbosa, no furor bacântico das suas objurgatórias, se servia frequentemente
da palavra inventada na hora, “cachimbear”, “verminar”, “prestimanear”,
verdadeira virtuosidade oratória de ótimo efeito. Mas quem mais usou desses
verbos? Que comunidade os adotou? São antes palavras-falenas, palavras
que nascem e morrem no instante, com que todos nós... ruibarboseamos
no calor das convicções.
O professor Nascentes, embora num ou noutro capítulo destes Estudos
filológicos aborde os fenômenos da linguagem, preferiu mais se conservar
no campo da história da filologia. O seu esboço histórico sobre a filologia
portuguesa no Brasil é o trabalho mais completo que temos no assunto.
158
Seleta de artigos
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Mário de Andrade
160
O baile dos pronomes1
1 Este artigo foi publicado n’O Estado de S. Paulo, em 7 de outubro de 1941 e na Revista da
Academia Paulista de Letras, em 12 março de 1942; compõe ainda a coletânea de artigos O
empalhador de passarinho (1946).
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Mário de Andrade
2 Este exemplo colhido como prova constitui uma das notas de trabalho que integra o
manuscrito d’A gramatiquinha da fala brasileira. Sobre o texto da nota, o autor acrescenta
a lápis azul o termo “usado”, sinalizando a incorporação do documento ao artigo. Mário
de Andrade procede igualmente com todas as referências bibliográficas fornecidas neste
artigo.
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Seleta de artigos
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Mário de Andrade
164
Seleta de artigos
3 Única referência que não figura entre as notas de trabalho coletadas para A gramatiquinha
da fala brasileira. No entanto, busca o exemplo na leitura d’A língua do Nordeste (1934), de
Mário Marroquim, obra em sua estante com notas marginais.
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Mário de Andrade
Da segunda pessoa, além das Minas de prata (volume III, p. 400) em que
vem a pergunta: “Vos serve este meio?”, conheço uma quadra paulista da
dança de São Gonçalo (Revista do Arquivo, número XXXIII, p. 108) que canta:
“Vos” peço, meu São Gonçalo,
Com muito gosto e alegria,
Aceitai esta promessa
E também nossa romaria.
Com Lhe e Lhes, não me ocorre exemplo, é mais provável ter eu perdido
alguma nota. Mas assim como nos Açores, nas festas do Espírito Santo, o
povo, se referindo à coroa, diz ao Imperador:
“A” coloque no altar
E junto o seu cetro lindo, etc.
(verso, aliás, de origem erudita). Mota (Sertão alegre, p. 89) colheu na boca
dum cantador o romance em que vem:
O padre disse: — “O” protejo!
protegendo com a mesma energia a sintaxe nacional. Com tudo isso, como
esquecer o epigrama de Alberto Ramos...
— Me dá! — Dá-me! — Me dá! digo eu — Erra, imbecil!
Bruto! Erro em Portugal, acerto no Brasil!
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Mário e o meio do caminho
eterno
1 BAGNO, Marcos. Gramática de bolso do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial,
2013.
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Sérgio Rodrigues
2 PINTO, Edith Pimentel (Org.). O português do Brasil: textos críticos e teóricos, 2: 1920-1945:
fontes para a teoria e a história. São Paulo: Edusp, 1981.
168
Mário e o meio do caminho eterno
se unificasse pela língua nacional o Brasil seria, para ele, nada além de uma
“pseudonação”.
É por isso que, correndo o risco de esticar um pouco além da conta a
metáfora do meio do caminho, podemos afirmar que a figura alta e desajeitada
daquele jovem poeta paulistano está até hoje plantada ali, à beira da estrada.
Como a “mão de zinco pregada na parede da vendinha da esquina”, na
curiosa imagem cunhada por ele mesmo, indica a direção para os falantes
que vêm depois. Não faz isso porque seus argumentos sejam cientificamente
sólidos ou o colecionismo de usos e costumes linguísticos que empreendeu,
exaustivo ou metódico. É sobretudo a temperatura emocional de seu texto
que, vista de hoje, parece mais atual do que nunca.
Com mais método, paciência e conhecimento de causa trabalhavam
naquele momento sobre o vocabulário da língua brasileira nomes como
Amadeu Amaral, Antenor Nascentes e Mário Marroquim. Mário de Andrade
estava pronto a reconhecer a primazia dos especialistas: “Fui obrigado a me
meter num despropósito de assuntos e por isso ficar na epiderme de todos
eles”, desculpa-se. Contudo, num movimento típico, dá um jeito de virar do
avesso a humildade extrema para, num passe de mágica, transformá-la em
orgulho pimpão. É o que faz logo na abertura do prefácio da Gramatiquinha:
Outros é que deviam escrever este livro e tenho consciência de
que um dia a gramática da fala brasileira será escrita. Porém certas
considerações se não desculpam ao menos explicam o meu topete.
Outros deveriam escrever este livro, não tem dúvida, porém o
certo é que ninguém se abalançou a escrevê-lo. Inda mais: temos
livros valiosos, como Língua nacional de João Ribeiro, O dialeto
caipira, de Amadeu Amaral, que são verdadeiros convites para
falar brasileiramente. Porém os autores como idealistas que são
e não práticos, convidam, convidam porém principiam não
fazendo o que convidam. Eu tive a coragem e é o que explica o
meu valor funcional na literatura moderna.
Estudiosos já apontaram que a Gramatiquinha tem valor desigual quando
tomada nos termos de uma ciência linguística que dava seus primeiros passos
no país – e que seu autor, autodidata esparramado, não dominava. É provável
que a obra projetada por Mário nem mesmo pretendesse ser compreendida
desse modo: na instigante leitura proposta pela professora Aline Novais
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Sérgio Rodrigues
3 DUARTE, Paulo. Mário de Andrade por ele mesmo. São Paulo: Todavia, 2022.
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Mário e o meio do caminho eterno
4 FARACO, Carlos Alberto (Org.). Estrangeirismos: guerras em torno da língua. São Paulo:
Parábola Editorial. 2001.
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Sérgio Rodrigues
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Mário e o meio do caminho eterno
5 PINTO, Edith Pimentel. A gramatiquinha de Mário de Andrade: texto e contexto. São Paulo:
Duas Cidades; Secretaria de Estado da Cultura, 1990.
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Sérgio Rodrigues
Manuel Bandeira foi um de seus amigos mais críticos, e o debate que travaram
sobre o brasileiríssimo uso do pronome oblíquo em início de frase, que já
estava presente em José de Alencar, inspira a deliciosa crônica “Baile dos
pronomes”, incluída neste volume.
Numa carta pessoal, Guimarães Rosa iria mais longe, apontando no
estilo de Mário “o desejo de ‘abrasileirar’ a todo custo a língua, de acordo com
postulados que sempre achei mutiladores, plebeizantes e empobrecedores
da língua, além de querer enfeiá-la, denotando irremediável mau gosto”6.
Reconheça-se que o próprio autor da Gramatiquinha se tornaria mais
conservador com o passar do tempo, tanto nas formulações teóricas quanto
na prática da escrita. Seja como for, a literatura brasileira dos últimos cem
anos pode ser acusada de muita coisa, menos de negligenciar a estilização de
uma certa coloquialidade. E no entanto o futuro seria um pouco diferente
do que Mário imaginava: também aqui o gesto se deteve, inconcluso.
No meio do caminho tinha, por exemplo, a famosa pedra de seu amigo
Carlos Drummond de Andrade: “No meio do caminho tinha uma pedra/
Tinha uma pedra no meio do caminho” (“No meio do caminho”, poema do
livro Alguma poesia, de 1930). Aquele “ter” impessoal abonava um uso familiar
disseminado entre falantes brasileiros de todos os estratos socioeducacionais
– e que, apesar da chancela do maior poeta da nacionalidade, permaneceria
empacado no meio do caminho da aceitação pela gramática culta.
Sim, o século XXI vai envelhecendo e a pedra gramatical de Carlos
ainda está lá, feito o monolito do filme 2001, uma odisseia no espaço, a nos
desafiar. Experimente qualquer jovem brasileiro escrever em sua redação de
vestibular que “tinha uma pedra no meio do caminho” para ver o que lhe
acontece. A subversão casuística do velho critério de validação gramatical
pelos clássicos revolta o linguista Carlos Alberto Faraco, que lembra os
cascudos gramaticais aplicados por Napoleão Mendes de Almeida em
Drummond e pergunta: “Como promover positivamente a língua se até
nossos monumentos literários são assim achincalhados?”7. O autor tem
sido eloquente em seu alerta contra o que chama, num trocadilho feliz, de
6 Carta de 03/11/1964 a Mary Lou Daniel. Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP
– Fundo João Guimarães Rosa: JGR-CC-01,64.
7 FARACO, Carlos Alberto. História sociopolítica da língua portuguesa. São Paulo: Parábola
Editorial, 2016.
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Mário e o meio do caminho eterno
8 Idem. Norma culta brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola Editorial, 2008.
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Sérgio Rodrigues
Sérgio Rodrigues
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REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, A. Tenório de. A linguagem de Rui Barbosa. Rio de janeiro:
Schmidt Editor, 1939.
ALENCAR, José de. As minas de prata. Nova edição revista por Mário de
Alencar. Rio de Janeiro; Paris: Livraria Garnier, 1926, volume II.
ALMEIDA, Aline Novais de. Edição genética d’A gramatiquinha fala brasileira
de Mário de Andrade. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) –
FFLCH-USP/ Fapesp. Orientadora: Telê Ancona Lopez, 2013.
ALMEIDA, Renato. História da música brasileira. Rio de Janeiro: F. Briguiet,
1926.
ALVES, Castro. Obras completas. Edição crítica com introdução bibliográfica
e anotações de Afrânio Peixoto. Rio de Janeiro; São Paulo; Belo Horizonte:
Livraria Francisco Alves, 1921, 2º volume.
AMARAL, Amadeu. O dialeto caipira. São Paulo: Casa editora ‘O livro’, 1920.
ANAIS DO PRIMEIRO CONGRESSO DA LÍNGUA NACIONAL
CANTADA. Prefeitura do Município de São Paulo, Departamento de
Cultura, 1938.
ANDRADE, Mário de. Poesias completas. Edição de texto apurado, anotada
e acrescida de documentos por Tatiana Longo Figueiredo e Telê Ancona
Lopez. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013, volume 1-2.
______. O empalhador de passarinho[E-book]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2012.
______. O empalhador de passarinho. 4 ed. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2002.
______. O empalhador de passarinho. São Paulo: Livraria Martins Editora,
1946, XX Volume das Obras Completas.
______. Vida literária. Pesquisa, estabelecimento de texto, introdução e notas
por Sônia Sachs. São Paulo: Hucitec; Edusp, 1993.
______. Gramatiquinha brasileira. Polímica: revista semestral de crítica e
criação. São Paulo, Editora Moraes, n. 3, 1981, p. 45-49.
______. Táxi e crônicas no Diário Nacional. Estabelecimento de texto, introdução
e notas Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1976.
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A gramatiquinha da fala brasileira
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Referências
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A gramatiquinha da fala brasileira
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Referências
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A gramatiquinha da fala brasileira
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DOSSIÊ DE IMAGENS
Dossiê de imagens
Capa da caderneta “Língua Brasileira 12” com planos, prefácios e notas (Arquivo do
Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência:
MA-MMA-051-1).
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Mário de Andrade
Página inicial da caderneta com o primeiro plano (“Indice”) d’A gramatiquinha (Arquivo do
Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência: MA-
-MMA-051-2).
188
Dossiê de imagens
Caderneta aberta: o registro das notas 3 e 7 testemunha a supressão das notas 4, 5 e 6 (Arquivo
do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência:
MA-MMA-051-6-7).
189
Mário de Andrade
Esboço de texto sob o título “Início” (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo
Mário de Andrade, código de referência: MA-MMA-051-22).
190
Dossiê de imagens
Ofício da Diretoria do Bloco dos Caprichosos à Comissão Julgadora do Carnaval Paulista (1937),
item no envelope 12-A – Documentos Populares (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros
USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência: MA-MMA-051-36).
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Mário de Andrade
Recorte de jornal: Athayde, Tristão de. A língua brasileira I. O Jornal. Rio de Janeiro, 8 abr. 1928.
Documento no envelope 12-B – Artigos Alheios (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros
USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência: MA-MMA-051-39).
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Dossiê de imagens
193
Mário de Andrade
Nota de trabalho: anúncio impresso do salão de dança paulistano Dancing Neptuno; sobre
o anúncio, marcas autógrafas de Mário. Documento no envelope 12-C – Me parece e outras
sintaxes (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código
de referência: MA-MMA-051-86).
194
Dossiê de imagens
Nota de trabalho: registro de oitiva sob a rubrica “Língua – Particípio passado como substantivo”.
Documento no envelope 12-F – Brasileirismos vocabulares (Arquivo do Instituto de Estudos
Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência: MA-MMA-051-111).
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Mário de Andrade
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Dossiê de imagens
Nota de trabalho: referência bibliográfica sob o código “n. 339”, disposta na Bibliografia de
leituras iniciada para a Pancada do Ganzá. Documento no envelope 12-F – Brasileirismos
vocabulares (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade,
código de referência: MA-MMA-051-114).
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Mário de Andrade
Esboço de texto: reunião de notas prévias para o preparo do “Capítulo XXX – Psicologia da
fala brasileira”. Documento no envelope 12-G – Ideias para capítulos particulares (Arquivo
do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência:
MA-MMA-051-216).
198
Dossiê de imagens
Nota de trabalho: bilhete de Pio Lourenço Corrêa a Mário de Andrade [Araraquara, ant. 7 de maio
de 1927?]. Documento no envelope 12-H – Ideias gerais sobre língua (Arquivo do Instituto de
Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência: MA-MMA-051-229).
199
Mário de Andrade
Envelope 12-I – Ideias gerais: recurso para armazenar conjunto documental (Arquivo do
Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência: MA-
-MMA-051-231).
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Dossiê de imagens
201
Mário de Andrade
Esboço da primeira página do Inquérito Geral Etnográfico: “Formulário das pesquisas folclóricas
– Língua Nacional” (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade,
código de referência: MA-MMA-051-258).
202
Dossiê de imagens
Mário e a escuta das ruas: primeira viagem etnográfica ao Norte do Brasil – Mercado de Belém,
23 mai. 1927 (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP –Fundo Mário de Andrade,
código de referência: MA-F-0185).
203
Mário de Andrade
Mário, homem público: instalação solene do Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada,
realizado de 7 a 14 de julho de 1937 no Theatro Municipal de São Paulo. Mário enquanto lia
a “Exposição de motivos” ao lado de intelectuais e autoridades políticas (Arquivo do Instituto
de Estudos Brasileiros USP – Fundo Mário de Andrade, código de referência: MA-F-1564).
204
Dossiê de imagens
Redoma da criação: Mário em sua escrivaninha [1938]. Compõem o registro fotográfico a tela
A colona, de Cândido Portinari, e a escultura Oxê de Xangô, do interno Augusto, do Hospital
Juliano Moreira, estado da Paraíba. (Arquivo do Instituto de Estudos Brasileiros USP – Fundo
Mário de Andrade, código de referência: MA-F-1873).
205
Sobre a organizadora
207
Sobre os colaboradores
209
Copyright © Fundação Alexandre de Gusmão
@funagbrasil
Mário de Andrade
brasileira: plural, múltipla, em constante devir. BICENTENÁRIO BICENTENÁRIO
Ao longo de sua vida, o autor de Macunaíma, BRASIL BRASIL
Pauliceia desvairada, entre outros tantos títulos
hoje clássicos, empreendeu busca constante da
“alma” do Brasil. Para tanto, valeu-se de várias
frentes: poesia, romance, crônica, fotografia, 1822 | 2022 1822 | 2022
história da arte, crítica literária, musicologia. No ano em que se celebram o Bicentenário
Ao lado de outros jovens iconoclastas, da Independência do Brasil e o Centenário
organizou A Semana de Arte Moderna de
1922, que renovou as artes e as letras nacionais,
Mário de Andrade da Semana de Arte Moderna, a Fundação
Alexandre de Gusmão tem orgulho em se
permitindo reflexões inovadoras sobre o jovem associar à primeira publicação do recém-
A gramatiquinha
país que naquele momento completava cem -criado Instituto Guimarães Rosa, a qual presta
anos de vida.
Hoje, em 2022, ano do Bicentenário da
Independência do Brasil, o Itamaraty e a
A Portaria nº 365 do Ministério das Relações Exteriores, de
11 de novembro de 2021, dispõe sobre o Grupo de Trabalho do
merecida homenagem a Mário de Andrade.
Nascido em São Paulo, em 9 de outubro
de 1893, sua precoce inclinação para a poesia foi
da fala brasileira
Bicentenário da Independência, incumbido de, entre outras atividades,
FUNAG prestam tributo a Mário de Andrade, complementada por sólida formação musical,
promover a publicação de obras alusivas ao tema. que o tornaria autoridade em teoria e história
relançando um de seus mais importantes
projetos escriturais: A gramatiquinha da fala da música, com um olhar especial para as