O Santuário Da Alma

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RICHARD J.

FOSTER
Autor de Celebração da disciplina

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Santuário da Alma
UMA JORNADA PELA

ORAÇÃO MEDITATIVA

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RICHARD J. FOSTER

Santuário da Alma
U M A JORNADA PELA

ORAÇÃO MEDITATIVA
02011, dc Riclurd J. Foster

V
Vida
Título do original
Sanctuary of lhe Soul
Copyright da edição brasileira 020 II. Editora Vida
EDITORA VIDA Edição publicada com permissão dc INTERVAWSITY PRE»
Rua Isidro Tinoco, 70 Tatuapl (Downers
Grove. IL)
CEP (0316-010 São Paulo. SP
Tel: 0 xx II 2618 7000
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www.cditoravida.com.br reservadas por Editora Vida.

PROIBIIM A REIKOOUçAO KJR QUAISQUER MEIOS,


SALVO EM DREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE.

Scripture quotations taken from Bíblia


Sagrada, Nova Versão Internacional, NVJ ®
Copyright © 1993, 2000 by International Bible
Editor responsável: Sônia Freire Lula Almeida
Society ®. Used by permission IBS-STL U.S.
Editor-assistente: Giselc Romáo da Cruz Santiago All rights reserved worldwide.
Tradução: Lucy Hiromi Kono Yamakami Edição publicada por Editora Vida,
Revisão dc tradução: Rosa Ferreira salvo indicação cm contrário.
Projeto gráfico c diagramação: Claudia Fatcl Lino
Capa: Laura Zdcrod Todas as citações bíblicas c dc terceiros foram
Imagens dc capa: Arco de pedra: jenny Home/ adaptadas segundo o Acordo Ortográfico da Língua
iStockphoto - Arvores c neve com gelo: IVjrtugucsa, assinado cm 1990, cm vigor
Llona Wcllmann/Trcvillion Images desde janeiro dc 2009.

1. edição: maio 2011

Escaneado e Convertido por


Samek Ocimas, 2019

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Foster, Richard J.
Santuário da alma: uma jornada pela oração meditativa / Richard J.
Foster; tradução dc Lucy Hiromi Kono Yamakami. — São Paulo: Editora
Vida. 2011.

Título original: Sanctuary of the Soul.


ISBN 978-85-383-0205-6

1. Oração — Cristianismo — Meditações 1. Título.


11-03343 CDD-248.32
índices para catálogo sistemático:
1. Oração : Prática cristã : Cristianismo 248.32
A William Luther Vaswig
Homem de oração
Grande amigo
Agradecimentos

Andamos sempre sobre os ombros daqueles que vieram antes de


nós. Essa dívida só aumenta quando tentamos pôr nossas ideias no pa¬
pel. Procurei expressar parte dessa dívida nas referências e notas deste
livro. É claro que isso só deixa entrever os escritores, pensadores e
oradores que me ensinaram ao longo de muitos anos. A maioria deles
viveu séculos atrás, mas agradeço a eles mesmo assim.
Tenho gratidão especial por minha assistente pessoal, Lynda
Graybeal, que leu todo o manuscrito ao mesmo tempo em que era
escrito e fez ótimos comentários e correções. Quero agradecer a
Howard Macy, Nathan Foster, Robert Bolton c Gayle Beebe por
me ajudarem a localizar as fontes de várias citações. Agradeço a Terri
Taylor por fornecer os detalhes da capela da Campina Quaere que eu
já tinha esquecido havia muito tempo. Expresso meu apreço a Cindy
Bunch, editora sénior da IntcrVarsity Press, que propôs a ideia deste
livro e teve grande interesse em seu desenvolvimento. Também
quero agradecer a todos os que demonstraram preocupação e oraram
por este projeto e por mim, do primeiro ao último dia de escrita.
Finalmente, tenho enorme dívida para com Carolynn, minha es¬
posa. Dia e noite, enquanto cu escrevia, Carolynn continuou enco-
rajando-mc, travando comigo debates veementes a respeito de certas
palavras c frases. Ela trouxe ao projeto uma combinação maravilhosa
de obstinação amorosa c provocadora. Ela é o amor da minha vida.
Sumário

Uma palavra introdutória ii

PARTEI
Lançando ofundamento
Capítulo 1 Deus falando, ensinando e agindo 17
Capítulo 2 Uma amizade familiar com Jesus 27
Capítulo 3 Descendo com a mente ao coração 35
Entrando na experiência: Adoração na Campina
Quaere 45
Capítulo 4 Presentes onde estamos 55

PARTE II
Entrando na oração meditation
Capítulo 5 Olhando para o Senhor 67
Capitulo (< Cuidado com o interior 75
Entrando na experiência: Jornada à caverna de São
Cutiberto 83

PARTEIII
Lidando com as dificuldades diárias
Capítulo 7 Mentes distraídas 97
( -apítulo 8 Como um leão que ruge 105
Capítulo 9 Uma miscelânea de perguntas 115
Entrando na experiência: Um encontro na praia dc
Jaiama 125

Palavras Finais 135


Livros úteis para sua jornada 140
Uma palavra introdutória

A meditação é a lingua da alma


e a linguagem do nosso espírito.1
— JEREMY TAYLOR

Jesus Cristo vive e está aqui cm pessoa para ensinar seu povo.
Não é complicado ouvir sua voz; não é difícil compreender seu vo¬
cabulário. Mas aprender a escutar bem c a ouvir corrctamcntc não
é tarefa simples.
Minha primeira experiência consciente de ouvir a voz de Jesus
ocorreu quando eu estava na faculdade. Brotou de um período de
frustração genuína. Por causa de uma formação acadêmica insufi¬
ciente e de um intelecto nada estelar, eu parecia ter de estudar muito
mais que todos os outros para me sair bem no curso. Alem disso
tudo, eu trabalhava em dois empregos de meio período para pôr
comida na mesa e comprar livros. Meu primeiro emprego foi numa
fábrica de enlatados, na turma da limpeza que entrava após o turno

Apud FOSTER, Richard J. Oração: o refúgio da alma. São Paulo:


Vida, 2008. p. 201.
SANTUáRIO DA ALMA

da noite. Eu trabalhava todos os dias, das quatro às seis da manhã,


limpando as máquinas a vapor, c voltava para a faculdade em cima da
hora de lavar a louça no refeitório, meu segundo emprego.
Era uma agenda perfeita, já que cu conseguia fazer tudo isso
antes da primeira aula às oito. Depois do almoço c do jantar, eu
lavava louça de novo, o que me permitia comer no refeitório. Na
— cpoca, muitos alunos reclamavam das refeições na faculdade... eu
não. Meus pais ficaram doentes e morreram cedo, de modo que
meus dois irmãos c cu vivíamos com qualquer coisa que conseguía¬
mos encontrar. Para mim, a comida da escola era um banquete.
Fora o trabalho c o estudo, eu e um colega havíamos formado
um ministério de nome um tanto estranho: “Sotaque Jovem”. Esse
ministério nos levava todo fim de semana a igrejas para falarmos
cinco ou seis vezes, começando na noite de sexta-feira e terminando
ao meio-dia de domingo; depois pulávamos no carro c voltávamos
ao campus. Além disso, cu ainda prestava algum serviço numa igreja
local... ah, e também estava envolvido no grémio estudantil... tudo
isso junto formava um fardo pesado para um jovem segundanista.
Mesmo assim, eu acreditava que cada uma daquelas tarefas era im¬
portante por várias razões: conseguir o dinheiro necessário, lapidar
minhas habilidades como orador e interagir com vidas preciosas.
Mas elas me deixavam pouco tempo para o lazer e as atividades so¬
ciais que pareciam ocupar grande parte da vida dos outros alunos.
E eu estava frustrado com minha aparente perda.
Certa noite, saí para fazer uma pausa nos estudos e caminhar um
pouco. Logo comecei a murmurar orações queixosas... meio parecidas
com os salmos de lamentação na Bíblia. Na realidade eu não estava
bravo, apenas frustrado. Eram orações do tipo “pobre de mim”. Meus
passos me levaram a um bosque das redondezas e, enquanto eu an¬
dava sob a luz da lua, as orações queixosas começaram a diminuir e
fui ficando cada vez mais quieto. Por fim, caí em silêncio absoluto.
Uma palavra introdutória

Um silêncio sereno, de ouvidos atentos. Foi então que Deus falou; as


palavras brotaram da serenidade e penetraram minha frustração.
Você sabe como conseguimos distinguir os bons preletores hu¬
manos pela qualidade da voz, pelo espírito com que falam e, claro,
pelo conteúdo transmitido? Acontece exatamente o mesmo com a
voz divina. A qualidade da voz de Deus é persuasiva e cncorajadora.
O espírito na voz de Deus é totalmente gracioso e misericordioso. -

E o conteúdo é sempre coerente com o que Deus já disse antes — te¬


mos um vasto testemunho bíblico com o qual confrontar as orienta¬
ções. Bem, não falo aqui de uma voz externa que pode ser captada por
equipamentos eletrónicos. Sem dúvida, isso é possível, já que a Bíblia
nos dá amplo testemunho. Mas falo aqui de um sussurro interno, de
palavras que tocam o fundo do coração, de um conhecimento interior.
“Você está frustrado com você mesmo”, 6 o que Deus parecia
dizer. “Tem pena de você mesmo porque não consegue realizar to¬
dos os seus sonhos. Mas, se você estiver comigo, não precisará ter
todos os seus sonhos realizados. Estar comigo é ter a maior e mais
completa satisfação. Se você estiver realmente comigo, estará no me¬
lhor lugar possível.”
Isso foi tudo. Nenhuma promessa de transformar minhas condi¬
ções de vida. Nenhuma garantia de riqueza e prosperidade e de todos
os meus desejos terrenos. Nenhuma promessa de mudar um único
detalhe. Ainda assim aquelas palavras dissiparam silenciosamente mi¬
nha frustração e venceram minha autopiedade. Saí do bosque com
uma nova cadência nos passos. Deus me falou pessoalmcntc, cm meu
íntimo. A voz do verdadeiro Pastor era totalmentc suficiente.

£003
Nas páginas seguintes vamos explorar de maneira mais com¬
pleta o que significa experimentar pcssoalmente o sussurro divi¬
no. Como Deus fala conosco? O que esperar... ou que esperança
SANTUáRIO DA ALMA

podemos acalentar? Há condições do coração c da mente que nos


abrem para a voz amorosa — c terrível — de Deus? Como desen¬
volver um sistema de escuta interior rico cm oração? Vamos abor¬
dar questões desse tipo c muitas outras.
Para concluir cada uma das três partes principais deste livro,
compartilho uma experiência pessoal que, espero, sirva para ilustrar
—— e expandir o que divido com vocês. Dou o nome de “Entrando na
experiência”, pois espero que minha história sirva de incentivo para
você buscar suas próprias experiências na oração meditativa.
PARTE I

Lanqando o fundamento
Ensina-mc a parar c ouvir
Ensina-me a concentrar minha atenção
Ensina-mc a usar o silêncio
Ensina-mc onde encontrar a paz

Ensina-mc a ouvir teu chamado


Ensina-mc a buscar tua Palavra
Ensina-mc a ouvir cm silencio
Coisas que jamais ouvi

Ensina-mc a ficar recolhido


Ensina-mc a estar cm sintonia
Ensina-mc a ser conduzido
Pois o silencio logo acabará

Quando, então, for hora de prosseguir


Permita-me trazer
Para o dia a dia c para cada momento
A paz de uma fonte silente
— KEN MEDEMA'
£003
Saíra Isaque a meditar no campo, ao cair da tarde.
— Génesis 24.63, Almeida Revista e Atualizada

* MEDEMA, Ken. Teach Me. TeachMe to Stop (and Listen). Waco: Word
Music, 1978.
Capítulo 1

Deus falando, ensinando e agindo

Um passo fundamental que podemos dar [...]


é aprender a meditar nas Escrituras— aprender
primeiro a ouvir a Palavra de Deus e deixar que ela
nos informe e finque raízes em nós. Isso pode ser
extremamente difícil, pois as igrejas não oferecem
cursos de meditação, mesmo sendo uma arte
que precisa ser aprendida com aqueles que já a
dominam e apesar do fato de que a tarefa suprema
da igreja seja ouvir a Palavra de Deus.
— ELIZABETH O’CONNOR'

A h, deixe-me dizer como Deus deseja nossa presença. Como


ilDcus anseia nos ouvir. Como Deus anela comunicar-se conos-
co. No centro do coração de Deus está a apaixonada disposição de
estar em comunhão amorosa com você... comigo. Do lado humano
dessa equação está a oração meditativa que nos conduz até essa co¬
munhão divino-humana.

O’CONNOR, Elizabeth. Search for Silence. Waco: Word, 1972. p. 118.


SANTUáRIO DA ALMA

Um lugar para ficar

O fundamento bíblico da meditação é comprovado na grande rea-


lidade exibida no centro do testemunho bíblico: a de que Deus fala,
ensina c age. Deus fez o Universo existir com um estrondo gerado por
suas palavras de ordem. Deus disse: “Haja luz”, e deu-se o big bang.
No jardim, Adão e Eva falavam com Deus, e Deus falava com
18 eles — estavam em comunhão. Aí veio a Queda e, de modo signifi¬
cativo, rompeu-se a experiência de comunhão perpétua, pois Adão
e Eva se esconderam de Deus. Mas Deus continuou buscando os fi¬
lhos rebeldes c, nas histórias de Caim e Abel, Noé e Abraão e tantos
outros, vemos Deus falando e agindo, ensinando e guiando.

Moisés aprendeu, ainda que mediante muitas hesitações e des¬


vios, a ouvir a voz de Deus e obedecer a sua Palavra. Aliás, as Es¬
crituras testificam que Deus falava com Moisés “face a face, como
quem fala com seu amigo” (Êxodo 33.11). Havia uma sensação de
relacionamento íntimo, de comunhão. Como povo, porém, os is¬
raelitas não estavam prontos para tanta intimidade. Logo que apren¬
deram um pouco a respeito de Deus, perceberam que estar em sua
presença era perigoso, de modo que disseram a Moisés: “Fala tu
mesmo conosco, e ouviremos. Mas que Deus não fale conosco, para
que não morramos” (Êxodo 20.19).
Isso marcou o início da grande linhagem de profetas e juízes,
que Moisés inaugurou. No entanto, serviu para limitar um pouco a
noção de proximidade de Deus, a percepção da nuvem durante o dia
e da coluna de fogo durante a noite.
Depois disso, já com Samuel, o povo clamou por um rei. Isso
deixou o profeta muito perturbado, mas Deus lhe disse que não de¬
sanimasse, argumentando: “Não foi a você que rejeitaram; foi a mim
que rejeitaram como rei” (ISamuel 8.7). Sob o governo de Moisés, os
israelitas rejeitaram a proximidade divina; sob a orientação de Samuel,
Daisfalando, atsinando e agindo

rejeitaram o governo direto de Deus. “Dê-nos um profeta, dê-nos um


rei, dê-nos um intermediário, para não precisarmos chegar pessoal¬
mente à presença de Deus”, foi praticamcnte o que disseram. É o que
acontece hoje. Não precisamos examinar muito a fundo a religião no
cenário contemporâneo para ver que ela está saturada do dogma do
mediador. “Dê-nos um pastor, dê-nos um sacerdote, dê-nos alguém
que faça isso por nós para podermos evitar a intimidade pessoal com
Deus e continuar colhendo os benefícios”, dizemos. 19

Ainda assim, na plenitude do tempoJesus veio e ensinou a reali¬


dade presente do Reino de Deus, demonstrando como poderia ser a
vida em seu Reino. Jesus tornou manifesto o anseio divino por reu¬
nir uma comunidade totalmente inclusiva de pessoas amorosas que
tenham Deus no centro como seu Sustentador maior e habitante
mais glorioso. Jesus estabeleceu uma comunidade viva que o reco¬
nheceria como Redentor e Rei, ouvindo-o em tudo e obedecendo-
,-lhe em todas as épocas.
Em seu relacionamento íntimo, Jesus com o Pai é o nosso mo¬
delo da realidade dessa vida de ouvir e obedecer constantes. “O Fi¬
lho não pode fazer nada de si mesmo; só pode fazer o que vê o Pai
fazer, porque o que o Pai faz o Filho também faz” (João 5.19). “Por
mim mesmo, nada posso fazer; eu julgo apenas conforme ouço”
(João 5.30). “As palavras que eu lhes digo não são apenas minhas. Ao
contrário, o Pai, que vive em mim, está realizando a sua obra” (João
14.10). Quando Jesus lhes orientou a permanecerem no Pai, os dis¬
cípulos conseguiam entender o que ele queria dizer. Jesus declarou
(e Deus continua declarando a nós hoje) que ele é o bom Pastor e
que suas ovelhas conhecem sua voz (João 10.4). Ele deixou claro
que o Consolador viria: o Espírito da verdade que guiaria seu povo a
toda a verdade (João 16.13).
Em seu segundo volume, Lucas deixa evidente que, após a res¬
surreição e a ascensão, Jesus continua agindo c ensinando, ainda
que as pessoas já não o possam ver a olho nu (Atos 1.1). Tanto Pedro
SANTUáRIO DA ALMA

quanto Estevão apontam Jesus cotno o cumprimento da profecia


de Dcuteronômio 18.15: de que um profeta como Moisés se le¬
vantaria para falar ao povo, c o povo o ouviria e a ele obedeceria
(Atos 3.22; 7.37).2 No livro de Atos vemos o Cristo ressuscitado e
triunfante ensinando c guiando seus filhos por meio do Espírito
Santo: levando Filipe a culturas não alcançadas (Atos 8), revelando
—— sua messianidade a Paulo (Atos 9), corrigindo Pedro acerca de seus
preconceitos raciais (Atos 10), guiando a comunidade dos fiéis para
fora de seu cativeiro cultural (Atos 15).
E a notícia maravilhosa é que Jesus não parou de agir e falar.
Ressuscitou e está trabalhando em nosso mundo.Ele não está ocio¬
so. Está vivo em nosso meio como Profeta para nos ensinar, como
Sacerdote para nos perdoar, como Rei para nos governar, como
Amigo para ficar do nosso lado.

Duas palavras enriquecedoras

Duas palavras hebraicas esclarecem e enriquecem nosso enten¬


dimento sobre oração meditativa: hagah e siach. Nossas traduções
em geral traduzem essas palavras simplesmente por “meditar”. Na
realidade, essas duas palavras gregas comportam uma variedade de
nuanças: murmurar, gemer, sussurrar, refletir, rever, cogitar e até
arrulhar como as pombas (Isaías 59.11).
Muitas vezes a ênfase dessas palavras está na reflexão silencio¬
sa sobre as obras de Deus na natureza (Salmos 143.5; 145.5) ou
sobre a Palavra de Deus (Salmos 119.15, 23, 27, 48, 78, 148). Ou¬
tras vezes envolve um murmúrio audível, especialmente quando
o objeto de nossa meditação é a Torá, ou a Lei de Deus: “Não

2 V. tb.: Dcuteronômio 18.15-18; Mateus 17.5; João 1.21; 4.19-25; 6.14;


7.37-40; Hebreus 1.1-13; 3.7,8; 12.25.
Dctisfalando, ensinando e agindo

deixe de falar as palavras deste Livro da Lei e dc meditar nelas de


dia e de noite, para que você cumpra fielmente tudo o que nele
está escrito” (Josué 1.8).
Essa passagem de Josué destaca um elemento central da con¬
cepção bíblica de meditação: a obediência.3 Trata-se de um contraste
marcante entre as váriasformas de meditação em muitas religiões ao
redor do mundo. A ênfase bíblica sempre está na mudança ética, na -
transformação do caráter, na obediência à Palavra do Senhor.
O filósofo Ken Bryson, da Nova Escócia, observa: “No Antigo
Testamento, a meditação move-se pelo silêncio para aninhar-se numa
espiritualidade de palavras, ou seja, preceitos, estatutos, palavras e
mandamentos da Torá”.4 Assim, no testemunho bíblico temos esta
natureza dual da meditação: quietude e ação. É por isso que procuro

sempre definir a meditação cristã em termos de “ouvir e obedecer”.


Sempre com essa ênfase dupla. Por um lado, somos chamados para o
silêncio, para a quietude, para aquietar as “atividades características das
criaturas”, como diziam com frequência os escritores antigos. Por ou¬
tro lado, somos chamados para a ação, para um comportamento corre¬
to, para obedecer à vontade e aos caminhos de Deus. Ouvir c obedecer.
Sempre ouvir e obedecer. É isso que aprendemos de hagali c siacli.
Ah, que nosso coração e nossa mente sejam impregnados do
anseio do salmista: “Que as palavras da minha boca c a meditação
do meu coração sejam agradáveis a ti, Senhor, minha Rocha e meu
Resgatador!” (Salmos 19.14).

3
Muitas das passagens que empregam as palavras hagah (71371) ou siach
(n'D)carrcgam essa ideia de obediência à vontade e aos caminhos de
Deus. V. Salmos 1.2; 49.3; 119.15; 119.48; 119.97; 119.99 c outros.
4
BHYSON, Ken A. Silence and Hebrew Meditation. Disponível cm:
<www.biblicalthcology.com/Rcscarcli/BrysonKA01.pdf>. Acesso cm:
5 mar. 2011.
SANTUáRIO DA ALMA

Além do terremoto, do vento c do fogo

Elias c sua experiência devastadora na gruta no monte Horcbe


podem tornar-sc um paradigma de meditação para nós. Uma metá¬
fora da oração que ouve, caso vocc prefira.
Talvez vocc se lembre da história registrada em IReis 18 e 19.
De como Elias triunfou sobre os profetas de Baal no monte Car-
22 melo. De como Jezabel tentou matá-lo. De como Elias fugiu para
salvar-se. De como, exausto e tomado pelo medo, Elias pediu a mor¬
te debaixo de um pé de giesta: “Já tive o bastante, SENHOR. Tira a
minha vida” (IReis 19.4). De como o anjo do SENHOR O tocou e
lhe deu um desjejum substancial... duas vezes. De como aquelas re¬
feições lhe deram forças para viajar quarenta dias e quarenta noites
até finalmente chegar a Horebe, o monte de Deus. E de como ele
entrou na gruta e lá passou a noite... desolado, solitário, derrotado.

Nós sabemos: às vezes as pressões da vida se acumulam e sen¬


timos vontade de gritar: “Chega pra lá, Elias. Deixe-me rastejar
para dentro da sua gruta e ficar com você”.5 Quem sabe você tam¬
bém tenha experimentado períodos de desânimo e depressão e de¬
sejado juntar-se a Elias na gruta. A gruta no monte Horebe é um
lugar de desespero, desolação e desalento.
Mas agora veremos por que a história de Elias no monte Horebe
é uma metáfora da oração meditativa. Deus persuade Elias a sair de
sua gruta de depressão e a subir o monte: “Saia e fique no monte, na
presença do Senhor, pois o SENHOR vai passar” (IReis 19.11). Essa
frase — “pois o Senhor vai passar” — faz lembrar outro monte: o
Sinai, onde Deus se encontrou com Moisés de maneira dramática
e entregou o que hoje conhecemos como os Dez Mandamentos.

5
V uma interpretação imaginativa e poética do episódio em: ROBERTS,
Arthur O. Move Over Elijah. Newberg: Barclay, 1967.
Deusfalando, ensinando c agindo

Lembramos bem da história, claro...Elias também. A sarça ardente. As


tábuas de pedra cortadas pelo dedo dc Deus. As lanças dos relâmpa¬
gos. Pedras despedaçadas. Árvores reduzidas a brasas. Ventos rugindo e
um trovão ensurdecedor percorrendo os desfiladeiros. Então lembra¬


mos — tais qual Elias como Moisés se escondeu na fenda da rocha
quando o Senhor Deus, o Todo-poderoso, passou por ali numa de¬
monstração de glória divina capaz de fazer qualquer coração sucumbir. _
23
E agora, aqui no monte Horebe, Deus vai passar por Elias. No
Sinai a presença de Deus manifestou-se com fenômenos naturais
que se sucediam como uma exibição imponente de pirotecnia. No
Horebe havia de fato ventos ferozes, terremotos demolidores e fogo
escaldante. Mas Deus não estava em nenhum deles. Certamente
Elias ficou perplexo. Não havia nada de Deus no terremoto, no ven¬
to ou no fogo. Foi só depois que passaram todos os fogos de artifício
e pairou uma quietude perfeita que Deus chegou para Elias numa
voz mansa e baixa, no sussurro divino, no “murmúrio de uma brisa
suave” (IReis 19.12). O Senhor fala a Elias não na ferocidade da na¬
tureza, mas no silêncio, “um sussurro calmo e suave” (IReis 19.12
Nova Tradução na Linguagem de Hoje).
No alto do monte Elias se apresenta diante de Deus com a má¬
xima humildade. Sua humildade brota do desespero visto em seu
pavor de Jezabel e em seu desejo de morrer. E é com esse coração
humilde que Elias ouve a d'var Yahwell, a Palavra do Senhor. O poeta
John GreenleafWhitticr escreveu:
Sopra sobre o calor de nosso desejo teu frescor e teu bálsamo;
Que os sentidos emudeçam, que a carne descanse;
Fala por meio do terremoto, do vento c do fogo,
Ó pequena voz suave da calmaria/'

6
WHITTIER,John Grecnleaf. Dear Lord and Father of Mankind. Hymns
for the Family of God. Nashville: Paragon, 1976. p. 422.
SANTUáRIO DA ALMA

Ah, que cm silente humildade adotemos o coração de Elias.


Que nós, com humilde coração, possamos acolher o conselho do
salmista: “Descanse no Senhor c aguarde por ele com paciência”
(Salmos 37.7).
Talvez você se lembre de que Elias ainda esteve cm outro
monte divino: o monte Hermom, o monte da transfiguração. Ali,
— no monte Hermom, Elias se pôs ao lado de Moisés — juntos re¬
presentavam a lei e os profetas. Ali, naquele monte, eles viram Je¬
sus, o Cristo, transfigurado: “Sua face brilhou como o sol, e suas
roupas se tornaram brancas como a luz” (Mateus 17.2). Ali, na¬
quele monte, Elias c Moisés tiveram uma conversa íntima com
Jesus, vivenciando a realização de todos os seus anseios e sonhos,
de tudo pelo qual haviam trabalhado (Mateus 17.3). Que conversa
extraordinária deve ter sido!

A história continua

Desde aquele momento, há dois milénios, os discípulos fiéis


de Jesus vêm testemunhando a realidade de uma vida com Deus, a
realidade do “nosso Cosmo comunicável”.7 Pobres de nós que hoje
conhecemos tão pouco o oceano da literatura sobre meditação cristã
escrita por crentes fiéis ao longo dos séculos! Da Igreja católica à pro¬
testante, da ortodoxa do Oriente à livre do Ocidente, somos instados
a “viver na presença dele [de Deus] em comunhão ininterrupta”.8
O místico russo, Teófano, o Recluso, disse: “Orar é descer com a
mente ao coração e ali ficar diante da face do Senhor sempre presen-

7 WILLARD, Dallas. Hearing God: Developing a Conversational Rela¬


tionship with God. Downers Grove: InterVarsity, 1999. p. 63. [Ouvin¬
do Deus. Viçosa: Ultimato, 2002.)
' Madame GUYON. Experimentando as profundezas de Jesus Cristo.
São Paulo: Vida, 2011. p. 15.
Deusfalando, ensinando c agindo

te, que tudo vê, dentro de ti”.9 Dietrich Bonhoeffer, mártir luterano
do século XX , ao ser indagado sobre por que meditava, respondeu:
“Porque sou cristão”.10 O testemunho das Escrituras e dos mestres
devocionais nos convidam a experimentar, nas palavras de Madame
Guyon, “as profundezas de Jesus Cristo”.11

25

9
TEóFANO, O Recluso. In: WAKE, Timothy (Ed.). The Art of Prayer: an
Orthodox Anthology. London: Faber & Faber, 1966. p. 1 10.
,l’
BONHOEFFEK, Dietrich. The Way to Freedom. New York: Harper 8c
Row, 1966. p. 57.
11
GUYON. Experimentando..., p. 32.
Capítulo 2
Uma amizade familiar com Jesus

O verdadeiro silencio é a chave para


o imenso coração chamejante de Deus.
— CATHERINE DE HUECK DOHERTY1

a oração meditativa seguimos rumo ao que Thomas à Kempis


N denominou “amizade familiar com Jesus”.2 Aprendemos a
mergulhar na luz e na vida de Cristo e a ficar confortáveis nessa
posição. Experimentamos a presença perpetua do Senhor (a “oni-
presença”, como dizemos) não só como um dogma teológico, mas
como uma realidade radiante. “Ele anda e conversa comigo” deixa
de ser um jargão da vida religiosa e se torna uma descrição sincera
da vida diária.
Por favor não me entenda mal: não estou falando de um rela¬
cionamento adocicado, volátil, entre dois camaradas. Esse tipo de

1 DOHERTY, Catherine de Hueck. Poustinia: Christian Spirituality of the


East for Western Man. Notre Dame: Avc Maria, 1983. p. 21. [Deserto
Vivo Poustinia. São Paulo: Paulinas, 1989. p. 29].
2 KEMPIS, Thomas à. The Imitation of Christ. Garden City: Image,
1955. p. 85. [Imitação de Cristo. Rio dc Janeiro: Ouro, 1969. p. 82].
SANTUáRIO DA ALMA

sentimentalidade insípida só manifesta como é pequeno nosso co¬


nhecimento, como estamos distantes do Senhor elevado c exaltado
que nos é revelado nas Escrituras. João nos diz cm Apocalipse que, ao
ver o Cristo triunfante, caiu a seus pés como que morto... o que nós
também deveríamos fazer (Apocalipse 1.17). A realidade de que falo
é semelhante à que os discípulos vivenciaram no cenáculo, quando
experimentaram ao mesmo tempo uma intensa intimidade e uma
28 reverência repleta de temor.
Um santuário interior em nosso coração

Na oração meditativa criamos o espaço emocional e espiritual


que permite a Deus construir um santuário interior emnosso coração.
O maravilhoso versículo “Eis que estou à porta c bato” foi escrito
originalmente para os que creem, não para os descrentes (Apocalipse
3.20). Jesus está batendo à porta do nosso coração — dia após dia,
hora após hora, momento após momento. Ele anseia cear conosco,
ter comunhão conosco. Deseja uma festa eucarística perpétua no
santuário interior do nosso coração. Jesus está batendo; a oração me¬
ditativa abre a porta.
O sábio apóstolo Paulo lembra-nos que já não somos estran¬
geiros e alienados na comunhão divina. Nós nos tornamos mem¬
bros da família de Deus, uma família baseada no sólido funda¬
mento dos apóstolos e profetas. Jesus mesmo é a pedra angular
principal e é por ele que “todo o edifício é ajustado e cresce para
tornar-se um santuário santo no Senhor. Nele vocês também estão
sendo edificados juntos, para se tornarem morada de Deus por seu
Espírito” (Efésios 2.21,22, grifos nossos).
Permita-me destacar a frase: meu coração, seu coração está
sendo transformado em “morada de Deus”.3 Bem, não sei quanto

Observe também a declaração bem direta de Paulo à comunidade cristã


de Corinto: “Vocês não sabem que são santuário de Deus e que o Espí¬
rito de Deus habita em vocês?” (ICoríntios 3.16).
Uma amizadefamiliar comJesus

a você, mas para tornar-se “morada de Deus” meu coração precisa


de algumas reformas importantes! Teresa de Ávila, refletindo sobre
o mal no próprio coração, orou certa vez: “Ó meu Senhor, uma vez
que parece estar determinado a salvar-me, rogo, Vossa Majestade
[...] não pensa que seria melhor [...] se a morada em que precisa
habitar continuamente não ficasse tão suja?”.4
Todo trabalho de formação é uma “obra no coração”, como _
29
os grandes clérigos puritanos denominaram. O coração humano
é a fonte de toda ação humana. É o centro de toda vontade e das
profundas realidades do espírito. John Flavel, puritano inglês do
século XVII, observou: “A maior dificuldade na conversão é ga¬
nhar o coração para Deus; e a maior dificuldade após a conversão
é manter o coração com Deus. [...] A obra no coração é de fato
uma obra árdua”.5

Duas realidades centrais

Quando consideramos a transformação do coração humano,


precisamos ter em mente duas realidades centrais. Para começar,
não podemos simplesmente programar nosso coração. Não con¬
seguimos programar o coração de ninguém. Há toda uma teolo¬
gia por trás dessas declarações. Não entrarei aqui nos menores
detalhes; apenas direi sem rodeios: você não é responsável pela
transformação do seu próprio coração. Nem eu. Isso pertence ao
domínio de Deus, e você e eu dependemos totalmente do Senhor
para realizar a obra de transformação do coração. Podemos desejar
que nosso coração seja transformado e buscar sua transformação.

4
TERESA DEÁVILA. In: ALVAREZ, Thomas (Ed.). The Prayers of Teresa of
Avila. Hyde Park: New City, 1995. p. 12.
5 FLAVEL,John. On Keeping the Heart. In: Christian Classics Ethereal
Library. Disponível cm: < www.ccel.org/cccl/flavel/kceping.ii.i.htrill>.
Acesso em: 7 mar. 2011.
SANTUARIO DA ALMA

Ccrtamcntc isso é bom. Mas a verdade é que não fazemos a trans¬


formação acontecer. É Deus quem faz.
Em segundo lugar, o próprio coração humano é parte do nosso
problema. Somos, todos nós c cada um de nós, um emaranhado
de motivações: esperança c temor, fé e dúvida, simplicidade e du¬
plicidade, honestidade e falsidade, franqueza e deslealdade. Deus
- conhece nosso coração de um modo que nunca conheceremos.
30 /

É preciso ter habilidades sobrenaturais para desfazer a confusão.


Deus é o único que pode separar o verdadeiro do falso. Só Deus
pode purificar as motivações do coração.
Como vocc vê, dependemos total e completamente de Deus
para realizar essa obra transformadora em nós: a obra da pureza
do coração, da conversão da alma, da formação interior, da trans¬
formação de vida. Esse trabalho solitário e interior dentro do co¬
ração é a realidade inais importante, mais real e mais duradoura
na vida humana.
Portanto, os apelos constantes dos mestres devocionais para
que o coração seja purificado são uma mensagem importante para
nós. Não é algo vão retornar ao nosso primeiro amor vez após vez.
É um ato de fé clamar continuamente a Deus, pedindo que nos
sonde e conheça nosso coração e arranque as raízes de cada um dos
males que nos inquietam (Salmos 139.23). Esse é um aspecto vital
da salvação do Senhor.
Deixe-me destacar mais uma vez esta realidade central: Deus
é o supremo formador e transformador do coração humano. Dito
isso, apresso-me em acrescentar que Deus, em sua graça, nos con¬
vida a participar dessa mais que elevada e profunda obra de trans¬
formação do coração. Lembre-se: Deus não entra sem convite. Se
alguns compartimentos do nosso coração nunca experimentaram
a cura pelo toque divino, talvez seja porque nunca acolhemos o
Escrutínio divino.
Uma amizadefamiliar tomJesus

Entrando na transformação do coração

Como essa obra de formação ocorre profundamente nos com¬


partimentos subterrâneos do coração?
Pelo lado divino da equação, só conseguimos enxergar vaga¬
mente através de um vidro. O agir de Deus no coração humano é
um mistério glorioso. A permissão da máxima liberdade e volição.
A busca em nós sem alarde e sem descanso. A extensão das gra- 31
ças e misericórdias que não merecemos, tampouco procuramos.
A concessão de saltos quânticos em amor, alegria, paz, paciência,
amabilidade, bondade, fidelidade, mansidão e domínio próprio.
E muito mais. Essa é a grande obra, mas somos severamente limita¬
dos quanto ao que podemos dizer ou mesmo compreender a res¬
peito dela. Só podemos curvar-nos cm reverência e louvor diante
da bondade divina.
Mas deixe-me explicar partindo do lado humano da equação.
Isso começa quando nos voltamos para a Luz de Jesus, quando
“obedecemos à Luz”, como dizem os autores antigos. Para alguns,
trata-se de um voltar, um voltar excruciantemente lento, até re¬
tornarmos por completo. Para outros, trata-se de algo instantâneo
e glorioso. Em ambos os casos, estamos começando a confiar em
Jesus, a aceitá-lo como nossa Vida. Nascemos dos céus, como le¬
mos em João 3.
Mas o fato de nascermos dos céus inclui, necessariamente,
sermos formados dos céus. Nascer espiritualmente é um come¬
ço — um começo glorioso, repleto de assombro. Não é o fim. É
preciso ocorrer uma obra muito intensa de formação antes de po¬
dermos suportar as chamas celestiais. É preciso muito treino antes
de sermos o tipo de pessoas que podem reinar de modo seguro e
absoluto junto de Deus.
Agora, então, somos introduzidos a esse novo relacionamento.
Como escreve Pedro, “vocês foram regenerados, não de uma semente
SANTUáRIO DA ALMA

perecível, mas imperecível, por meio da palavra de Deus, viva e per¬


manente” (1Pedro 1.23). Deus está vivo! Jesus é real e atua em todos
os detalhes da nossa vida.
Portanto começamos a orar, a entrar numa comunicação e co¬
munhão interativa com Deus. Mas no início nossa oração é des¬
confortável e hesitante. Como uma corrente alternada de eletri-
cidade, nossa atenção vagueia de um lado para outro, das glórias
divinas para as tarefas terreais do cotidiano. Daqui para lá, de lá
para cá. E muitas vezes essa alternância é pior — muito pior — que
a ausência de oração. Num momento nós nos deliciamos com os
santos mistérios e no momento seguinte nossa mente chafurda na
sarjeta dos desejos carnais.
Sentimo-nos fraturados e fragmentados. Como escreveu Thomas
Kelly, vivemos “num emaranhado intolerável de agitações que nos
deixam ofegantes”.6 Sentimos o empurra-empurra das muitas obri¬
gações e tentamos cumprir todas elas. E na maioria das vezes nos
vemos “infelizes, constrangidos, ansiosos, oprimidos e com medo
de sermos fúteis”.7
Entretanto, durante toda nossa busca e luta fazemos três coisas
continuamente:
Pedimos. Sempre pedimos. “Muda meu coração, ó Deus; tor¬
na-o sempre fiel. Muda meu coração, ó Deus; que eu possa ser
como és.” Pedimos, pedimos sempre.
Ouvimos. Sempre ouvimos. Como Elias, esperamos — duran¬
e o fogo
te o terremoto, o vento —
pela Voz que murmura suave¬
mente. Ouvimos, ouvimos sempre.

6
KELLY, Thomas R. A Testament of Devotion. San Francisco: Harpcr-
SanFrancisco, 1969. p. 100.
7 Ibid., p. 92.
Uma amizadefamiliar comJesus

Obedecemos. Sempre obedecemos. Obedecemos a Cristo em


todas as coisas. Obedecemos ao Espírito em todos os momentos.
Obedecemos às Escrituras de todas as maneiras. Obedecemos, obe¬
decemos sempre.
Por fim, ao longo do tempo c das experiências — às vezes de
muito tempo e muita experiência —
Deus começa a nos dar uma
tranquilidade surpreendente naquilo que Thomas Kelly chamou de ——
“o Centro divino”.8 Nas profundezas do nosso ser, as alternâncias
dão lugar a uma vida quase ininterrupta de humilde adoração diante
da presença viva de Deus.
“Não é um êxtase, mas serenidade, estabilidade, firmeza quanto
à orientação da vida”.9 Nas palavras de George Fox, tomamo-nos
homens e mulheres “consagrados”. Estamos desenvolvendo um há¬
bito de orientação divina. Isso não é perfeccionismo, mas progresso
crescente em nossa vida com Deus. O trabalho interior da oração
torna-se muito mais simples. Experimentamos enlevos de louvor
mais duradouros e um ouvir tranquilo nas profundezas do nosso
coração. Tudo o que é preciso para conduzir nosso coração a Deus
são pequenos vislumbres do céu e mansos sussurros de submissão.
Sem saber, estamos praticando a presença de Deus. Momentos
formais de oração apenas se juntam à estável corrente subterrânea
de adoração silenciosa que percorre todos os nossos dias. Por trás
do primeiro plano da vida cotidiana, continua o plano de fundo da
orientação celestial.
Essa é a formação do coração diante de Deus. Sem perceber,
nosso coração ganha um novo caráter. Foram-se os velhos impul¬
sos de manipulação, ira e vingança. Antes de tomarmos consciência,

8
KELLY, Thomas R. A Testament..., p. 3.
9
Ibid., p. 15.
SANTUáRIO DA ALMA

surgem novas reações de amor e alegria, paz e paciência, amabili¬


dade c bondade, fidelidade, mansidão c domínio próprio.
Nas palavras de Thomas Kelly, entramos na experiência de “uma
vida de paz c poder serenos. É simples. É maravilhoso. É triunfante.
É radiante. Não toma tempo, mas ocupa todo nosso tempo. E torna
o curso da nossa vida novo c vitorioso. Não precisamos ficar desvai-

— rados. Ele está no leme. E, quando nosso curto dia termina, descan¬
samos tranquilamente em paz, pois tudo está bem”.10
Essa c a transformação do coração humano que, a seu tempo e
a seu modo, nos levará irresistivelmente a uma “amizade familiar
com Jesus”.

10 KELLY, Thomas R. A Testament..., p. 100.


Capítulo 3

Descendo com a mente ao coração

Os mestres da vida espiritual advertem que, na


contemplação, precisamos fazer uso da imaginação.
Por exemplo, precisamos visualizar um incidente,
como o milagre da pesca, da maneira mais viva
possível. Precisamos estar mcntalmente presentes
como se interrompêssemos nossos passos e
estivéssemos testemunhando o fato. Isso é muito
útil porque traz vida ao evento e
o toma parte da nossa experiência interior.
— ROMANO GUARDINI1

Teófano, o Recluso, que encontramos rapidamente no capí¬


tulo primeiro, é muito conhecido na ortodoxia oriental, cspecifi-
camente na tradição ortodoxa russa. Teófano tinha personalidade
complexa e intrigante, mas hoje o conhecemos principalmentc
por seus escritos espirituais, em especial sobre oração. Suas homi¬
lias sobre oração, por exemplo, são um tesouro de ensinos sábios

GUARDINI, Romano. Prayer in Practice. Ncw\brk: Image, 1963. p. 102.


SANTUáRIO DA ALMA

c práticos. Menciono-o aqui porque usei uma frase de seu ensino


na abertura deste capítulo: “Orar é descer com a mente ao coração
e ali ficar diante da face do Senhor sempre presente, que tudo vê,
dentro de ti”.2
Essa declaração sublinha a habilidade singular de Teófano para
conter os ânimos de perspcctivas opostas. Um grupo, por exemplo,
insiste em que a oração só diz respeito à mente, ao racional, ao ce¬
rebral. O grupo de oposição diria: “Não e não! Orar é tão somente
assunto do coração, dos sentimentos, da intuição”. Teófano anula
esse dilema tomando a ideia principal de cada grupo e juntando-as
numa unidade: descemos com a mente ao coração.
A oração meditativa não violenta nossas faculdades racionais.
Tampouco nos confina no que é unicamente racional. Descemos
com a mente ao coração. Essa é uma descrição magnífica da combi¬
nação que buscamos na oração meditativa.

A imaginação santificada

Os mestres devocionais de quase todas as correntes nos aconse¬


lham que podemos descer com a mente ao coração mais facilmen¬
te por meio da imaginação.3 Talvez alguns raros indivíduos possam
meditar num vácuo de imagens, mas a maioria precisa estar ancora¬
da mais profundamente nos sentidos. Não podemos desprezar essa
rota mais simples e humilde até a presença de Deus. Jesus mesmo
ensinou dessa maneira, apelando constantemente à imaginação em

2 TEóFANO, o Recluso. In: WARE, Timothy (Ed.). The Art of Prayer: An


Orthodox Anthology. London: Faber & Faber, 1966. p. 110.
3
Exceções notáveis seriam o movimento iconoclasta do século VIII, os
quaeres do século XVII, os puritanos dos séculos XVII e XVIII e alguns
grupos fundamentalistas dos nossos dias.
Descendo com a mente oo coração

suas parábolas, e muitos dos mestres devocionais nos encorajam


igualmente nesse sentido.
O grande teólogo e pregador escocês Alexander Whyte in¬
centiva-nos a experimentar “os ofícios divinos e os esplêndidos
serviços da imaginação cristã”.4 Santa Teresa de Ávila disse: “Esse
era meu método de oração; já que eu não podia fazer reflexão
com meu entendimento, usava a imaginação para desenhar Cris- ——
to dentro de mim [...] Fazia muitas coisas simples desse tipo [...]
Creio que minha alma ganhou muito com isso, porque comecei
a praticar a oração sem saber do que se tratava”.5 Muitos de nós
conseguimos identificar-nos com as palavras dela, pois também
tentamos um acesso apenas cerebral e percebemos que é muito
abstrato, muito distante. E, mais, a imaginação ajuda-nos a an¬
corar os pensamentos e concentra nossa atenção. Francisco de
Sales observou que “por meio da imaginação confinamos nossa
mente dentro do mistério sobre o qual meditamos, para que não
possa divagar de um lado para outro, assim como trancamos um
pássaro na gaiola ou prendemos uma águia pela correia para que
pouse em nossa mão”.6
Alguns fazem objeções ao uso da imaginação, preocupados com
o fato de ela não ser digna de confiança e até poder ser usada pelo
maligno. Há bons motivos para preocupações, pois a imaginação,
como todas as nossas faculdades, participou da Queda. No entanto,
assim como podemos acreditar que Deus tem poder para tomar

4
WHYTE, Alexander. Lord, Teach Us to Pray. New York: Harper &
Brothers, [s.d.]. p. 249.
5
TERESA DE ÁVILA. The Complete Works of Saint Teresa ofJesus. New
York: Sheed & Ward, 1949, 1:9.4; v. tb. 4:10.
6 SALES, Francisco dc. Introduction to the Devout Life. New York:
Image, 1955. p. 84.
SANTUARIO DA ALMA

nossa razão (por mais decaída que seja), santificá-la e empregá-la


para os bons propósitos divinos, Deus também pode santificar a
imaginação e usá-la para os bons propósitos divinos. Obviamente, a
imaginação pode ser distorcida por Satanás, mas então todas as nos¬
sas faculdades também podem ser distorcidas. Deus nos criou com
uma imaginação c, como Senhor de toda a criação, pode redimi-la e
de fato a redime e usa para a obra de seu Reino.
Acreditar que Deus pode santificar e utilizar a imaginação
é simplesmente levar a sério a ideia cristã da encarnação. Deus se
amolda, se encarna de tal maneira em nosso mundo, que o Senhor
usa as imagens que conhecemos para nos ensinar acerca do mundo
que não vemos, do qual conhecemos tão pouco e sobre o qual tanta
dificuldade temos em compreender. Aliás, num sentido importante,
a fé é o ato supremo da imaginação santificada.

A. W. Tozer redigiu um ensaio intitulado “O valor da imagi¬


nação santificada” no qual escreveu: “Anseio por ver a imaginação
libertada de sua prisão e devolvida a seu devido lugar entre os Filhos
da nova criação”.7 À medida que entramos mais e mais nos cami¬
nhos de Deus — pensando segundo os pensamentos de Deus, tendo
prazer na presença divina experimentamos Deus mais e mais,
utilizando nossa imaginação para os bons propósitos divinos. Quan¬
do chegarmos a realmente nos alegrar em Deus, nossos desejos agra¬
darão cada vez mais ao Senhor, e esse é o motivo pelo qual eles se
realizarão (Salmos 37.4). Aliás, a experiência comum daqueles que
andam com Deus é de terem recebido imagens do que poderia ser,
do que deveria ser. Então, deixe-me encorajá-lo a permitir que o

7
TOZER, A. W. The Value of the Sanctified Imagination. Disponível
em:<http://lovestthoume.com/Books/13AM22.html>. Acesso em: 7
mar. 2011.
Dcsccndo com a wane ao coração

Senhor lhe dê muitas imagens e muitos quadros agradáveis dos


desejos dele para a humanidade.

A imagem do Deus invisível

Uma vez que mencionei a palavra “quadros”, gostaria de


à sua atenção uma extensão física da imaginação que tem
trazer
ajudado muitas pessoas: o uso de ícones. A tradição cristã que de-
senvolveu o entendimento mais sofisticado e prático dos ícones
é a Igreja ortodoxa oriental. O ícone, no pensamento ortodoxo
oriental, é considerado um tipo de janela entre o mundo terreno
e o espiritual.
Esse tema foi examinado de maneira definitiva no século VIII
no que foi chamado de controvérsia iconoclasta. O grande teólo¬
go João de Damasco, em sua obra A fonte do conhecimento, proveu
uma teologia clara cm favor do uso de ícones na devoção cristã. Em
resumo, ele ensinou que, antes de Deus assumir a forma humana
em Cristo, não era possível nenhum retrato material e, portanto,
seria blasfémia até mesmo contemplar alguma imagem. Depois que
Deus se encarnou, porém, tornou-se possível o retrato. Uma vez
que Cristo é Deus e fàz parte da comunidade divina, justifica-se ter¬
mos em mente a imagem de Deus encarnado. Assim, por causa da
encarnação de Cristo, o uso de imagens físicas de Jesus torna-se
parte de uma teologia plenamente encarnacional.
O sétimo concílio ecuménico de 787 (o último encontro real¬
mente “ecuménico”) resolveu a questão para a comunidade cristã,
aprovando o uso de ícones e outros símbolos como aspectos válidos
da adoração cristã. Ao expressar essa conclusão, o concílio teve o
cuidado de deixar clara uma distinção entre a veneração c a adora¬
ção de ícones: apoiando sua veneração e proibindo sua adoração. O
historiador Williston Walker declara que a veneração de ícones pode
SANTUáRIO DA ALMA

scr vista como “uma afirmação da doutrina calccdônia da plena e


distinta natureza humana de Cristo”.8
Uma âncora bíblica para essa perspectiva é o ensino de Paulo
cm Colossenses 1.15 de que Jesus é “a imagem [ícone] do Deus
invisível”. Quando contemplamos em amor o ícone, tentamos ir
além da imagem de madeira ou pintura e chegar à pessoa de Jesus
_ c, da pessoa de Jesus, à presença do Deus trino e uno. É algo muito
próximo de quando tocamos com amor uma fotografia de quem
gostamos; queremos de algum modo ir além do papel e chegar à
pessoa em si. Aliadas aos ícones, muitas vezes são usadas velas para
simbolizar Cristo como a luz do mundo.
A iconografia na tradição oriental não é uma oportunidade para
expressão artística, como estamos acostumados a ver nas tradições
personalizadas e criativas do Ocidente. As pinturas de ícones são
altamente estilizadas e apenas bidimensionais. Tudo isso tem por
objetivo evitar que transformemos os ícones em ídolos e visa a
levar-nos aíém da imagem, para a realidade por ela representada.
O ícone é uma “janela para o céu”, como se costuma dizer.9

Leitura para formação

É na meditação das Escrituras que encontramos o uso mais


frequente da “imaginação santificada”. Aliás, essa maneira de nos

8
Apud Foster, Richard. Rios de água viva: práticas essenciais das seis
grandes tradições da espiritualidade cristã. São Paulo: Vida, 2008. p. 463.
Veja uma breve descrição dos sete concílios ecuménicos nas p. 386-392.
9
Escrevo como alguém que não faz uso de ícones. Isso não resulta de con¬
vicção teológica — o assunto foi resolvido no sétimo concílio ecuménico.
É apenas uma questão de prática pessoal — nunca me pareceu que os
ícones falassem á minha condição. Se você quiser saber mais a respeito,
recomendo a obra de Henri J. M. NOUWEN, Behold the Beauty of the
Lord: Praying with the Icons (Notre Dame: Ave Maria, 2007).
Descendo com a mente ao coração

aproximarmos do texto sagrado possui uma história longa e honrada


entre o povo de Deus. Chega a ter um nome especial: lectio divina,
“leitura divina” ou “leitura espiritual”.
Que significa lectio divina? Bem, significa ouvir o texto das Es¬
crituras — realmente ouvir, de maneira obediente e silenciosa. Sig¬
nifica submeter-nos ao texto das Escrituras, permitindo que sua
mensagem flua para nosso interior, em vez de tentar dominá-la. -
Significa refletir sobre o texto das Escrituras, permitindo que tan¬
to nossa mente quanto nosso coração se envolvam completamente
com o significado da passagem. Significa orar o texto das Escrituras,
permitindo que a realidade bíblica faça brotar em nosso coração os
clamores de gratidão, confissão, lamento e petição. Significa aplicar
o texto das Escrituras, considerando como a Santa Palavra de Deus
fornece uma palavra pessoal nas circunstâncias de nossa vida. Signi¬
fica obedecer às Escrituras, sempre deixando os caminhos humanos
pelos caminhos eternos.
Acima de tudo, a lectio divina significa ver o texto das Escritu¬
ras, empenhar a imaginação santificada em toda a cena da Palavra
de Deus. São Francisco de Sales aconselhou: “Representa para tua
imaginação o mistério completo sobre o qual desejas meditar, como
se passasse em tua presença. Por exemplo, se desejas meditar sobre
nosso Senhor na Cruz, imagina que estás no monte do Calvário e
que ali vês e ouves tudo o que foi feito ou dito no dia da Paixão”.10
Alexander Whyte declarou: “Com sua imaginação ungida com óleo
santo, [...] abra o Novo Testamento. Uma hora você é o publicano;
outra hora, é o pródigo [...]; uma hora, você é Maria Madalena; outra

hora, Pedro no alpendre [...] até que todo o Novo Testamento lhe
seja totalmente autobiográfico”."

10
SALES, Francisco de. Introduction, p. 83.

" WHYTE, Alexander. Lord, Teach Us, p. 251.


SANTUáRIO DA ALMA

Lectio divina é uma leitura meditativa, espiritual, em que tanto


a mente como o coração são conduzidos ao amor de Deus. Henri
Nouwcn, quando estava em Harvard, mostrou-mc certa vez um
lindo quadro na parede de seu apartamento. O quadro retratava
uma mulher com a Bíblia aberta no colo, mas seus olhos estavam
voltados para cima, como que se contemplassem o céu. A ideia é
_ que na lectio estamos lendo as palavras c também ouvindo o Senhor
elevado e exaltado.
Ouvimos que, depois dos grandiosos eventos em torno do nasci¬
mento de Jesus, Maria “guardava todas essas coisas e sobre elas refletia
em seu coração” (Lucas 2.19). Na lectio aprendemos a fazer o mesmo.
Vamos supor que desejamos meditar na surpreendente decla¬
ração de Jesus, “Deixo-lhes a paz” (João 14.27). É claro que deve¬
mos estudar o contexto da declaração — quem disse, o que disse, o
ensino em torno dela. Podemos tentar reconstruir a cena do cená¬
culo. Podemos considerar o preço pelo qual nosso Cordeiro sacri¬
ficial está disposto a nos oferecer paz. Podemos até resolver encarar
de maneira mais pacífica um difícil confronto com nosso patrão ou
com um vizinho.
Com a lectio, porém, fazemos mais. Tentamos entrar na realidade
de que trata a passagem. Ruminamos a verdade de que Jesus nos está
enchendo com sua paz agora. O coração, a mente e o espírito são
despertados para sua paz que nos é infundida. Sentimos que todos
os sinais de medo são aquietados e superados pelo espírito “de po¬
der, de amor e de equilíbrio” (2Timóteo 1.7). Em vez de dissecar a
paz, entramos na paz. Somos envoltos, absorvidos, unidos por essa
paz. E o maravilhoso é que, nessa experiência, o ego fica totalmente
esquecido. Já não nos preocupamos em conseguir mais paz, pois
estamos presenciando a injeção de paz em nosso coração. Não nos
fatigamos inventando formas de agir pacificamente, pois os atos pa¬
cíficos brotam espontaneamente lá do fundo.
Descendo com a mente ao coração

Talvez queiramos meditar sobre a história da alimentação dos


cinco mil (Mateus 14.13-21; Marcos 6.30-44; Lucas 9.10-17). Po¬
demos ver a cena: a multidão, a encosta, as rochas, acima de tudo
o próprio Mestre. Ouvimos os sons à nossa volta: a balbúrdia das
crianças, a brisa suave soprando pela relva, um bebe chorando nos
braços da mãe, acima de tudo a voz acolhedora do próprio Jesus.
Vivenciamos a cena: a multidão empurrando e apertando, corações _
ávidos por ouvir uma palavra do Senhor, o nome do momento,
acima de tudo a voz tranquilizadora do Nazareno. Ficamos olhan¬
do enquanto a tarde cai e sentimos a fome entre as pessoas, mas
também sua relutância em ir embora. Vemos o desenrolar de toda
a cena: a discussão acerca do que fazer, os cinco pães e os dois
peixes, a bênção, o assombro quando todos os cinco mil, mais as
mulheres e as crianças, são alimentados. Nós nos deliciamos com
a maravilha daquilo tudo. O júbilo. Experimentamos tudo como
se realmente estivéssemos ali.
No fim, as multidões se dispersam, e Jesus sobe em direção
às montanhas. Estamos sós. Sentamos numa pedra, vendo as on¬
das que se sobrepõem na praia. Em nossa mente, repassamos o
que acaba de acontecer. Estamos quietos. Em seguida, Jesus vem
sentar-se numa pedra ao nosso lado. Juntos, ficamos quietos por
um tempo. Aí ele diz: “O que eu posso fazer por você?”. Então
contamos a ele... tudo o que está no nosso coração. Recebemos sua

cura e bênção. Mais uma vez nos aquietamos. Por fim nos volta¬
mos ao Mestre e perguntamos: “O que eu posso fazer por ti?” E
ouvimos... isso é lectio.
Muitas passagens das Escrituras podem fornecer a pedra de
toque para a oração meditativa: “Permaneçam no meu amor” (João
15.9); “Eu sou o bom pastor” (João 10.11); “Alcgrcm-sc sempre no
Senhor” (Filipenses 4.4); “Vocês são salvos pela graça, por meio da
fé” (Efésios 1.8); “Fortaleçam-se no Senhor e no seu forte poder”
SANTUáRIO DA ALMA

(Efésios 5.10); “Fui crucificado com Cristo” (Gálatas 2.20). E muitas


outras. Em cada caso, tentamos descobrir o Senhor perto de nós e
ansiamos por encontrar a presença de Deus.

Tão grande nuvem de testemunhas

Embora sempre queiramos afirmar a centralidade das Escritu-



-
ras, a lectio inclui mais que a Bíblia. Podemos aprender com a vida
dos santos e dos escritos procedentes de sua profunda experiência
com Deus. Lemos humildemente esses escritos porque sabemos
que Deus falou no passado. Lemos as Confissões, de Agostinho, eÀ
procura de Deus, de A. W. Tozer; Castelo Interior, de Teresa de Ávila,
e Discipulado, de Dietrich Bonhoeffer, porque sabemos que eles
andaram com Deus e podemos aprender com essas experiências.
Não é por acaso que a regra dos beneditinos fez da lectio parte es¬
sencial da vida diária. Essa leitura impregnada de oração nos edi¬
fica e nos fortalece. Estejamos lendo sobre William Wilberforce
da Inglaterra, Sundar Singh da índia, da irmã Basilea Schlink da
Alemanha, ou Ni To-sheng (Watchman Nee) da China, somos en¬
corajados na vida de fé.
Assim, seja por meio das Escrituras, dos ícones ou da vida de
cristãos fiéis ao longo dos séculos, sempre estamos procurando
“descer com a mente ao coração e ali ficar diante da face do Senhor”.
Entrando na experiência
Adoração na Campina Quaere
45
Quando entrei nas assembleias silenciosas do povo
de Deus, send entre eles um poder secreto que tocou
meu coração. E, quando me rendi àquele poder,
percebi que o mal em mim enfraquecia e o bem
crescia. Desse modo fui entretecido e unido a eles.
E ansiava mais e mais pelo aumento desse poder e
vida até conseguir sentir-me perfeitamente redimido.
— ROBERT BARCLAY1

Embora as experiências de meditação geralmente aconteçam


de forma individual, também podem ocorrer na adoração coletiva.
O poder de Cristo numa comunidade reunida pode ser tremendo.
A Presença avivadora rompe de algum modo o isolamento da nossa
vida individual e nos une de maneiras que jamais imaginaríamos
ou conseguiríamos criar por nós mesmos. Esta é a história de uma
dessas reuniões.
Eu fora convidado para ser o preletor de um encontro de uni¬
versitários em Sierra Mountains, na Califórnia. O nome do acam¬
pamento era “Campina Quaere”, um lugar que preserva a beleza
alpina natural — intencionalmente rústico e ainda mais charmoso
por esse motivo.

In: FREIDAY, Dean (Ed.). Barclay’s Apology in Modern English.


Manasquan: Sowers, 1980. p. 254.
SANTUáRIO DA ALMA

Já estivera ali antes. Minha conversão (“convencimento” é o


termo quaere) ao caminho de Cristo e primeiros passos no cristia¬
nismo se deram num ambiente evangélico quaere. Meus pais tive¬
ram uma formação eclética, combinando o movimento batista e a
Igreja de Cristo, mas, quando os dois ficaram scriamcntc enfermos
c acabaram morrendo, foram os quaeres que cercaram meus irmãos
_ e a mim com interesse e cuidados cristãos. Eles me ajudaram ainda
46
mais de maneira inesperada. Quando o dinheiro que eu havia reser¬
vado com tanto afinco para a aguardada faculdade foi pouco a pouco
sendo consumido pelas necessidades médicas da minha mãe, aquele
grupo de quaeres resolveu bancar minha faculdade. E eles realmente
bancaram — quatro anos de faculdade e três anos de pós-graduação.
Como você pode imaginar, meu débito para com eles era enorme.
Na adolescência eu ia à Campina Quaere todos os anos em
julho, desfrutando os passeios, os cultos na capela e todas as ativi¬
dades do acampamento. Todos os dias tínhamos uma hora inteira
de “disciplina do silêncio”; e foi ali que aprendi pela experiência a
oração da quietude.
Ah, e mais uma coisa que não fazia parte do programa regular
do acampamento: todas as manhãs, bem cedinho, eu subia a um pe¬
queno monte que dava vista para o acampamento e uma lagoa alpina.
Chamava-se “Jardim de Oração” e tinha, num extremo, uma cruz
rústica e, do outro, um suporte resistente feito à mão, com um livro
de registro para quem desejasse escrever comentários ou orações.
No “jardim” propriamente dito espalhavam-se pedras arredondadas
e meio enterradas na terra; folhas pontiagudas de pinheiro cobriam
o chão. Abetos vermelhos e brancos rodeavam a área. A cada manhã,
empacotado num agasalho quente com capuz, cu me sentava numa
pedra fria e me esforçava em minhas primeiras hesitantes tentativas
de oração. Pedia a cura de meus pais — o que não ocorreria. E de¬
corei 1Pedro 1.7: “Assim acontece para que fique comprovado que
Entrando na experiência

a fé que vocês têm, muito mais valiosa do que o ouro que perece,
mesmo que refinado pelo fogo, é genuína e resultará em louvor,
glória e honra, quando Jesus Cristo for revelado”. A Campina Qua¬
ere era um lugar especial para um adolescente cujos pais estavam
morrendo. E, além disso, foi ali, no Lugar de Inspiração — já se vão
quarenta e tantos anos agora — que pedi Carolynn em casamento.

47

Assim, quando me convidaram a falar na Campina Quaere, fi¬


quei sem dúvida honrado. Naquela época eu estava lutando para
finalizar minha tese de doutorado. A ocasião não podia ser mais
imprópria. Mesmo assim... acabei aceitando o convite. Sentia uma
pressão enorme — que eu próprio me impunha — para aceitar. Sa¬
bia que o sentimento era desnecessário, mas ainda assim me sentia
pressionado a falar.
Guardei os sentimentos para mim mesmo e comecei a me pre¬
parar para cumprir da melhor maneira possível a tarefa. Alguns
meses antes do retiro, os líderes do encontro se reuniram para
detalhar os planos. Levei esboços das minhas palestras, decidido
a mostrar aos encarregados como estava levando a sério minhas
responsabilidades. O dirigente da noite observou que, muitas ve¬
zes antes de uma reunião de planejamento, as pessoas fazem uma
breve oração pedindo orientação. “Em vez disso”, ele falou, “pro¬
ponho que realmente oremos pedindo orientação.” Então o grupo,
talvez de umas doze pessoas, entrou num momento surpreendente
de oração. O tempo todo — quem sabe uma hora — foi permea¬
do por um vigoroso silêncio. Lcram-se Escrituras. Ofereccram-
-se orações. Cânticos brotaram espontaneamente. Havia um doce
espírito entre nós c sabíamos que estávamos experimentando “a
Presença em nosso meio”.
SANTUáRIO DA ALMA

Foi então que Bill Cathcrs, missionário veterano de muitos anos,


olhou dirctamcnte para mim (talvez eu devesse dizer que ele olhou
dirctamcntc dentro de mim) e perguntou: “Richard, você está sendo
pressionado a falar nesse retiro?”. Ali estavam os sentimentos exatos
que eu abrigava desde que havia aceitado o convite. Fui flagrado. Bill
enxergou minha alma. Para ser mais exato, a condição da minha alma
revelou-se para Bill. A pergunta daquele missionário era simples e
48
direta e não carregava nenhum indício de censura ou zombaria. Di¬
tas com tanta gentileza, aquelas palavras abriram novas possibilidades
para mim e para todo o grupo. No fim, eu continuaria como preletor,
mas uma nova abertura em relação ao evento infiltrou-se em meus
sentimentos. Terminamos a reunião de planejamento com uma santa
cxpcctativa quanto ao que Deus nos daria no retiro.

20G8
Há muita animação sempre que 150 universitários se reúnem.
Eles logo estariam dispersos em faculdades e universidades de todo
o país. Mas durante aqueles poucos dias estavam reunidos para ado¬
ração e comunhão. Isso foi muito antes da revolução da internet, de
modo que estávamos realmente fora do mundo. Acho que havia um
telefone no pequeno escritório do acampamento, mas só era usado
em emergências. As bagagens foram logo largadas em cabanas rústi¬
cas. Vieram as palavras de boas-vindas; reataram-se velhas amizades.
O jantar foi servido.
No começo da noite seguimos todos para a capela da Campina
Quaere, um belo prédio em sua simplicidade. Toda a estrutura foi
feita com madeira do acampamento. O telhado de madeira forma¬
va um V invertido para aguentar as nevascas do inverno. O piso de
cimento descia em degraus até a frente, onde uma enorme janela
arqueada do chão ao teto dava vista para uma imaculada pradaria
Entrando na experiência

alpina, completamente cercada de sequoias e pinheiros. Os bancos


eram de toras grandes cortadas ao meio, de modo que metade ser¬
via de assento e metade, de encosto. Tão confortável quanto duro!
A capela acomodava cerca de 150 pessoas; assim, ao entrar, en¬
chemos confortavelmente o ambiente. Vindos de todas as partes,
finalmente estávamos reunidos. Mas ainda não estávamos juntos.
Isso ainda viria a acontecer.
49

Thomas Kelly observa que, para um grupo experimentar a


Shekinah de Deus, alguns indivíduos já precisam estar “unidos
profundamente no espírito de adoração [...] Neles e a partir de¬
les inicia-se o trabalho da adoração. A devoção espiritual de umas
poucas pessoas [...] é necessária para despertar o restante, para
ajudar os que entram no culto com pensamentos embaralhados,
atormentados e dispersos a se abrandarem e aquietarem, a ficarem
maleáveis e preparados para a obra de Deus e para sua Presença
Real”.2 Os líderes que se haviam reunido alguns meses antes para
o planejamento eram exatamente esses indivíduos. Eles chegaram
com o coração ardente, abrindo para todos nós as portas do culto,
da adoração, da submissão e da confissão.
O líder do nosso grupo de comunhão era um professor uni¬
versitário, um bom amigo de muitos anos. Depois de nos cum¬
primentar, ele deu três instruções para nossa adoração. Primeiro,
iríamos “centrar”. Segundo, procuraríamos juntos ser “unidos”
no poder de Deus. Terceiro, não correríamos na frente nem nos
deixaríamos atrasar, mas “seguiríamos” a orientação do Espírito

2
KELLY, Thomas. The Eternal Promise. New York: Harper & Row,
1966. p. 82-83.
SANTUáRIO DA ALMA

Santo, o verdadeiro Líder da nossa adoração. Essas três instruções


precisam de alguma explicação complementar.
No contexto quaere, “centrar” significa livrar-se de todas as dis¬
trações c sensações; estar totalmcntc presente no que está ocorrendo
aqui c agora; silenciar a mente, desaprumada por pensamentos diva-
gantes, c os lábios, repletos de muitas palavras.

so Estar “unidos” significa quebrar os muros de separação entre


as distintas personalidades; uma mistura do espírito e do coração
uns dos outros; experimentar na adoração a linguagem do “nós”,
em lugar do “eu”. George Fox segredou: “Pensem no que é eterno,
no que junta os corações, elevando-os ao Senhor, e vocês verão que
estão inscritos no coração uns dos outros”.3
Não se deixar adiantar nem atrasar, seguindo a liderança do Es¬
pírito, parece bem correto. Mas é um conselho essencial para al¬
cançarmos o equilíbrio entre dois extremos totalmente humanos do
entusiasmo desenfreado e da resistência hesitante. No século XVII,
William Penn admoestou os amigos de Jesus: “Portanto, irmãos, se¬
jamos cuidadosos para não corrermos adiante de nosso guia nem
nos tardar atrás dele; pois quem se apressa pode perder seu caminho
e quem se atrasa pode perder seu guia”.4
Essa advertência é desesperadamente necessária em nossa cul¬
tura contemporânea. Além disso, para seguirmos de fato esse conse¬
lho precisamos de uma atenção espiritual que quase não vemos hoje
nem nos é exigida. Robert Barclay escreveu: “Quando nos reunimos,

3 George Fox. Apud KELLY. The Eternal..., p. 79.


4
PENN, William. Preface to the Journal of George Fox. A Journal (1831).
Postado cm The Missing Cross to Purity. Disponível em <www.
hallvworthington.com/wjournal/journalintro2.html>. Acesso em: 12
mar. 2011, 04:21:00.
Entrando na experiência

deveria ser a grande tarefa de cada um c de todos esperar em Deus


[...] para sentir a presença do Senhor em nosso meio e conhecer a
verdadeira união em seu nome, de acordo com sua promessa”.5
A adoração e a sessão de planejamento que antecede o encontro
deram-me a liberdade de não ser predeterminado nem a falar nem
a permanecer calado. Em vez disso eu seria “batizado no sentido do
encontro”, como os quaeres costumam dizer.
51

Uma bênção maravilhosa de um ambiente como a Campina


Quaere era que o tempo era nosso amigo. Ninguém tinha uma
reunião para a qual correr ou o relógio para bater o ponto. Assim,
o que aconteceu em nosso culto continuou noite adentro. Eu não
tinha um relógio para conferir, mas hoje, relembrando a experiên¬
cia, imagino que nossa adoração tenha durado três ou quatro horas.
Não havia consciência do tempo, mas eu tive a clara percepção de
três movimentos distintos do Espírito em nossa experiência. Farei
o máximo para descrever esses movimentos, mas estou ciente de
que nesses assuntos as palavras são meras aproximações da reali¬
dade. A experiência foi inexplicável e não pode ser completamente
descrita em linguagem humana.
Após um período inicial de silêncio, várias pessoas de vários
lugares da sala irromperam num hino de louvor. Nós nos junta¬
mos a elas da melhor maneira possível. Observei em especial que
não eram os coros de experiência pessoal tão populares mesmo
naquela época. Eram, antes, hinos imponentes que engrandeciam a
maravilhosa bondade de Deus. O caráter de Deus. Sua misericór¬
dia. Sua fidelidade. E mais. Via-sc que cada um estava coberto por

5
Robert BARCLAY. Barclay’s Apology, p. 248.
SANTUáRIO DA ALMA

uma imensa sensação de adoração. Eu observava aquilo, admirado


por ver universitários tão enlevados pela percepção da Presença
cm seu meio. Também fui tomado por uma espécie de nova Vida e
Poder cobrindo todos nós. Suponho que esse período de cânticos
plenos de adoração, em exaltação à glória resplandecente de Deus,
tenha durado por volta de uma hora.
52 Em seguida, o teor da experiência de culto mudou por comple¬
to. Um silêncio recaiu sobre o grupo enquanto esperávamos diante
do Senhor. Então, sem nenhum tipo de interferência humana, as
pessoas passaram a se levantar e dizer palavras de confissão. Uma
após outra. Às vezes alguém se levantava e ia até outra pessoa na sala
e, juntos, diziam palavras de perdão e aceitação mútua. Lágrimas jor¬
ravam. O restante permanecia sentado, quieto, reverente, enquanto
essa obra de reconciliação prosseguia. Todos sentimos um fortale¬
cimento na graça e uma vitória sobre o espírito e o poder das tre-
vas. De novo, imagino que esse processo tenha continuado por uma
hora ou mais, mas não posso afirmar porque o tempo parecia estar
suspenso. Robert Barclay explica que, na adoração, há “um trabalho
de parto e uma luta interna [...] enquanto cada um procura vencer o
mal dentro de si”.6 Foi isso o que sentimos e experimentamos.
Depois, uma terceira experiência distinta começou a fluir sobre
o grupo. Cânticos de louvor e ação de graças eclodiram esponta¬
neamente. Havíamos sido arrebanhados para uma Vida e um Poder
mais vastos, e uma alegria profunda parecia brotar entre nós. Dessa
vez os cânticos eram completamente diferentes dos da primeira par¬
te da adoração. Uma experiência grupai de alegria, exultação e júbilo

permeava o ambiente e as pessoas. Enquanto eu observava o grupo,


pensei como aqueles cânticos teriam sido inadequados no início da

6
Robert BARCLAY. Barclay’s Apology, p. 248, 256.
Entrando na experiência

nossa adoração e como eram mais que adequados agora. Continuamos


desse modo por cerca de uma hora, e, naquele momento, a glória se
retirou e a reunião foi encerrada.

£003
Tive outras experiências dessa natureza depois daquela? Sim,
mas cada uma delas é original e difere das experiências anteriores. 53
Em Jesus temos um Mestre vivo que vem a nós cada vez de um
modo novo e vivo. Além disso, essas experiências têm sido raras e
distantes umas das outras.
Não é sábio corrermos em busca de enlevos como esse. A ado¬
ração pode ser completamente válida sem que haja arrepios ou
arroubos de êxtase. O grupo, assim como o indivíduo, precisa
aprender a enfrentar intempéries espirituais de todos os tipos com
serenidade na alma. Os enlevos são repletos de maravilhas, mas
entre esses picos é bem possível viajarmos em meio a sombras,
vales e desertos por meses e até anos. Tudo isso faz parte do que
significa andar com Deus.
Nossas orações, individuais ou coletivas, podem ser raramente
cheias de êxtase. Não importa. O que se exige é um coração voltado
para Deus. Karl Rahner disse bem: “Oração [...] é levantar o coração
e a mente para Deus em atos de amor constantemente renovados”.7
Se fizermos isso, teremos feito o suficiente.

7
RAHNER, Karl. On Prayer. New York: Paulist, 1965. p. 7.
Capítulo 4

Presentes onde estamos

O preço do verdadeiro recolhimento é a firme


resolução de não nos interessar voluntariamente
por nada que não seja útil a nossa vida interior.
— THOMAS MERTON1

Nos tempos bíblicos, as pessoas eram bem versadas na prática


da meditação; fazia parte do ar que respiravam. Hoje, porém, a
situação é bem diferente. A palavra em si não é estranha, mas a lin¬
guagem associada à palavra está do outro lado do oceano em relação
ao pensamento cristão. Relaciona-se a esvaziar a mente e fundir-se
com a consciência cósmica. Decerto, há um esvaziar no pensamento
cristão: um esvaziar de tudo o que se opõe ao caminho de Cristo.
O interior do copo e do prato precisa ser limpo, como ensina Jesus
(Mateus 23.26). A ênfase do ensino cristão acerca da meditação, po¬
rém, está em encher a mente e o coração com Deus, o Criador de
todas as coisas. Considere as palavras de Frederick W. Faber:

MERTON, Thomas. Spiritual Direction and Meditation. Collcgeville:


Liturgical, 1960. p. 69. [Espiritualidade, contemplação e paz. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1962.]
SANTUARIO DA ALMA

Apenas scntar-sc c pcnsar em Dcus,


All, que júbilo isso dá!
Pcnsar o pensamento,
O Nome respirar;
Na terra maior bem-aventurança não há.2

A tradição da meditação é antiga e profunda durante toda a vida


da igreja. Mas hoje, da pcrspcctiva cristã, são mínimos o ensino e a
prática séria, se é que existem. Assim, uma descrição simples dos três
passos básicos para a oração meditativa presta um auxílio imenso para
muitos. Este capítulo tratará do primeiro passo: recolhimento.

Compreendendo o recolhimento

Recolhimento implica recolher-nos até estarmos unificados e


inteiros. A ideia é deixar todas as distrações que se rivalizam, até
estarmos realmente presentes onde estamos. Às vezes ancorar nos¬
sa mente numa breve frase ou passagem das Escrituras nos ajuda
no recolhimento. Evelyn Underhill observou: “No recolhimen¬
to [...], os contempladores cristãos estabelecem na mente um dos
nomes ou atributos de Deus, um fragmento das Escrituras, um
momento da vida de Cristo, e permitem na verdade, encora-
jam — que essa contemplação, as ideias e os pensamentos que dela
fluem ocupem todo o campo mental”.3
Deixe-me alertá-lo desde já: o recolhimento não vem fácil nem
rapidamente. A maioria das pessoas vive de maneira tão fragmentada
que o recolhimento é um mundo estranho para nós. No momento
em que tentamos ser genuinamente contemplativos, obtemos uma

2
FABER, Frederick W. Apud TOZER, A. W. The Knowledge of the Holy.
San Francisco: Harper & Row, 1961. p. 12.
3
UNDERHILL, Evelyn. Mysticism. New York: Meridian, 1955. p. 314.
[Misticismo. [S.l.]: Diffusion Rosicrucienne, 2002.]
Presentes onde estamos

consciência dolorosa de quanto somos distraídos. Evelyn Underhill


observa: “O primeiro quarto de hora assim gasto em tentativa de
meditação será, de fato, um tempo de guerra; que deve pelo menos
convencer você de como sua atenção é desregrada e mal-educada,
de como sua vontade é miseravelmente ineficaz, de como você está
longe de comandar a própria alma”.4
Um dos mestres genuinamente sábios em recolhimento é
Romano Guardini. Ele é de tanta ajuda neste ponto específico que
é melhor ouvir seu conselho por inteiro:

A oração deve começar com esse recolhimento. Como já disse,


não é fácil. O fato de que normalmente possuímos pouco disso
toma-se dolorosamentc claro assim que fazemos a primeira ten¬
tativa. Quando tentamos compor-nos, a inquietação redobra em
intensidade, do mesmo modo que, à noite, quando tentamos dor¬
mir, cuidados e desejos nos assaltam com uma força que não têm
durante o dia. Quando queremos estar realmentc “presentes”,
sentimos como são poderosas as vozes que nos tentam desviar.
Logo que tentamos integrar-nos c obter domínio sobre nós mes¬
mos, experimentamos todo o impacto e significado da distração.
[...] Tudo depende desse estado de recolhimento. Nenhum es¬
forço para obtê-lo jamais é perdido. E, mesmo que um período
inteiro da nossa oração seja aplicado só para esse fim, o tempo
usado dessa forma terá sido bem empregado. Pois o próprio re¬
colhimento é oração. [...] Enfim, se de início conseguirmos nada
mais que a compreensão de como nos falta unidade interior, have¬
rá algum lucro, pois de algum modo teremos entrado cm contato
com aquele centro que desconhece a distração.5

' UNDERHILL, Evelyn. Practical Mysticism. New York: E. R Dutton,


1943. p. 52.
5
GUARDINI. Prayer in Practice, p. 20-21.
SANTUáRIO DA ALMA

No começo da nossa experiência de recolhimento, talvez quei¬


ramos assentar-nos confortavelmente c, então, de maneira lenta e
deliberada, deixar desaparecer todas as tensões c ansiedades. To¬
mamos consciência da presença de Deus no recinto. Sc ajudar, po¬
demos imaginar Cristo sentado na cadeira diante de nós, pois ele
realmente está presente. Se surgirem frustrações ou distrações, de-
_ sejaremos entregá-las nas mãos do Pai, para que ele próprio cuide
delas. Não significa suprimir nosso turbilhão interior, mas deixá-lo
lcntamentc desaparecer. Supressão implica subjugar, manter sob
controle, ao passo que no recolhimento deixamos ir, libertamos.
É muito mais que um relaxamento psicológico neutro. É uma ren¬
dição voluntária, um “autoabandono à Providência divina”, para
usar a frase de Jean-Pierre de Caussade.6
Exatamente porque o Senhor está presente conosco, podemos
relaxar e deixar de pensar em qualquer coisa, pois na Presença divina
nada de fato interessa, nada tem importância, a não ser ocupar-nos
com Deus. Deixamos que distrações e frustrações interiores derre¬
tam como a neve ao sol. Deixamos que Deus acalme as tempestades
enfurecidas do nosso interior. Deixamos que o grande silêncio de
Deus aquiete nosso coração ruidoso.

Uma alegre rendição

Muitas coisas acontecem no processo de recolhimento. Primei¬


ro, há uma alegre rendição ao Senhor, “o que é, o que era e o que há
de vir, o Todo-poderoso” (Apocalipse 1.8). Entregamos o controle
da nossa vida e do nosso destino. Num ato voluntário, decidimos
fazer as coisas do jeito de Deus, não do nosso.

6
CAUSSADE, Jean-Pierre de. Self-Abandonment to Divine Providence.
Várias edições. Também sob o título The Sacrament of the Present
Moment.
Presentes onde atamos

Rendemos nosso desejo de possuir e convidamos Deus a nos


possuir de tal maneira que sejamos verdadeiramente crucificados
com Cristo, mas também verdadeiramente vivificados por meio de
sua vida (Gálatas 2.20). Abandonamos nas mãos de Deus nossas am¬
bições imperialistas dc sermos maiores e mais admirados, mais ricos
e mais poderosos, mais santos e mais influentes.
Rendemos nossos cuidados e nossas preocupações. “Lancem so- _
59
bre ele toda a sua ansiedade, porque ele tem cuidado de vocês”, disse
Pfedro (IPedro 5.7).E é o que fazemos, exatamente porque sentimos o
cuidado amoroso de Deus. Somos capazes de deixar de ocupar o “pri¬
meiro lugar”, porque temos aquele que é o Primeiro cuidando de nós.
Pode ser útil imaginar uma caixa na qual depositamos toda
preocupação e todo cuidado. Quando fica cheia, embrulhamos,
colocamos um belo laço por cima e damos de presente ao Pai.
Deus a recebe e não podemos pegá-la de volta, pois é falta de edu¬
cação pegar de volta um presente dado.
Entregamos nossas boas intenções e grandes decisões, pois até
elas podem abrigar sementes de orgulho e arrogância. Antes de mor¬
rer, Madre Teresa de Calcutá disse: “Orem por mim, para que eu
não solte as mãos de Jesus, mesmo sob o pretexto de ministrar aos
pobres”.7 Suas palavras são sábias, pois, se soltarmos “as mãos de
Jesus”, perdemos tudo. Então, entregamos todas as distrações —
mesmo as boas distrações —
até sermos levados ao Amago.

Um espírito de arrependimento e confissão

A segunda coisa que acontece dentrodc nós quandoaprendemos


a nos recolher é que surge um espírito de arrependimento e confis¬
são. De repente, tomamos consciência — profunda consciência — de

7
MADRE TERESA. Major Addresses Delivered at the Conference on
Faith and Learning. North Newton: Bethel College, 1980. p. 85-86.
SANTUáRIO DA ALMA

nossos defeitos c muitos pecados. Todas as desculpas são removidas,


todas as justificativas são caladas. Brota no íntimo uma profunda e
piedosa tristeza decorrente dos pecados por ação ou omissão. Qual¬
quer ato ou pensamento que não possa permanecer diante da luz
vigilante de Cristo torna-se repulsivo não apenas para Deus, mas
também para nós. Assim, humilhados ao pé da cruz, confessamos
nossa necessidade e recebemos sua palavra graciosa de perdão.
60
Talvez você questione se o Senhor precisa mesmo ouvir nossa
confissão, uma vez que Deus já sabe todas as coisas. De fato não,
mas, como Soren Kierkegaard observou, “não Deus, mas você,
que faz a confissão, passa a saber algo por seu ato de confissão.”8 E o
que passamos a saber? Bem, uma coisa é que aprendemos um pouco
mais sobre nosso próprio coração. Uma razão pela qual não pode¬
mos controlar o coração é que não conhecemos as profundezas do
coração humano, principalmcnte o nosso. Mas, ao fazermos a con¬
fissão, Deus pode remover mais algumas camadas do nosso coração
e fazer-nos vislumbrar coisas que não sabíamos sobre nós mesmos.
Tudo isso faz parte do processo de transformação do coração.
Apresso-me a acrescentar que não apenas o pecado, o mal e a
perversão são revelados em nossa confissão, mas também a bondade, a
luz e a vida que não conhecíamos em nós. Gordon Cosby, renomado
pastor da Igreja do Salvador em Washington DC, escreveu: “Confis¬
são significa enfrentar e denunciar diante de Deus a escuridão que
há em nós; envolve também encarar e nomear diante de Deus a luz
interior que irrompe com brilho ainda maior. Sem um período prepa¬
ratório de confissão, não é possível um silêncio verdadeiro”.9

8
KIERKEGAARD, Soren. Purity of Heart is to Will One Thing. Trans.
Douglas V Stecre. New York: Harper & Bros., 1938. p. 51.
9
COSBY N. Gordon. In: Elizabeth O’CONNOR. Search for Silence.
Waco: Word, 1972. p. 12.
Prcseulcs onde cslamos

Para ajudar nossa confissão, podemos imaginar um caminho


acidentado cheio de pedras. Algumas são pequenos seixos, outras
são bem grandes e outras ainda estão quase totalmente enterradas,
de modo que não conseguimos saber qual é seu tamanho. Com o
coração compungido, convidamos o Senhor a remover cada pedra,
pois elas na verdade representam os muitos pecados e tristezas que
atrapalham nossa vida. Uma por uma, nosso Senhor amoroso as re- -

colhe, revelando-nos seu verdadeiro caráter e malignidade. A nossos


olhos, algumas parecem grandes e outras pequenas, mas o Senhor
nos ajuda a entender que, ao ser levantado, o menor pedregulho tem
o mesmo peso que a maior rocha. Algumas pedras que representam
pecados cometidos contra nós precisam ser escavadas e tiradas da
terra. Isso é doloroso, mas ao mesmo tempo restaurador. Quando

vemos o caminho totalmente limpo, alegramo-nos nessa obra glo¬


riosa do Senhor.

Aceitando os caminhos de Deus

Uma terceira realidade que abre caminho em nosso coração ao


experimentarmos o recolhimento é a aceitação dos caminhos divi¬
nos entre os seres humanos. Veja bem, uma coisa é amar a Deus;
bem diferente é amar o modo de Deus fazer as coisas. A Bíblia é
clara ao dizer que os caminhos de Deus não são os nossos, que os
pensamentos de Deus não são os nossos (Isaías 55.8). Esta passagem
serve para explicar os caminhos divinos:

Assim como a chuva e a neve


descem dos céus
c não voltam para eles sem regarem a terra
e fazerem-na brotar c florescer,
para ela produzir semente
para o semeador
SANTUáRIO DA ALMA

c pão para o que come,


assim também ocorre com a palavra
que sai da minha boca:
ela não voltará para mim vazia,
mas fará o que desejo
c atingirá o propósito para o qual a enviei.
(Isafas55.10.il)
62
Os caminhos divinos são como a chuva e a neve: caem suave-
mente e penetram a terra... e fazem brotar a vida. Que diferença em
relação a nossos meios, que admitem o desejo de abrir a cabeça do ou¬
tro para colocar um pouco de juízo! Mas, veja bem, o modo de Deus

agir é todo paciência e amor, todo graça e misericórdia. Nosso modo


de agir é todo dominação e controle, todo manipulação e astúcia.
Com o conhecimento interior que nasce da amizade com Je¬
sus, começamos a ver que os caminhos de Deus são completamente
bons. Nossa impaciência, nossa rebelião, nossa não aceitação dão
lugar a uma receptividade dócil aos estímulos santos. Isso não é re¬
signação estoica à “vontade de Deus”. É entrar no ritmo do Espírito.
É o reconhecimento de que os mandamentos divinos foram dados
“para que sempre fôssemos bem-sucedidos” (Deuteronômio 6.24).
É deixar o nosso caminho e dizer sim ao caminho de Deus, sem má
vontade porque sabemos que é o melhor caminho.
Para ajudar nosso senso de aceitação dos caminhos divinos, po¬
demos imaginar-nos numa praia maravilhosa, observando as pegadas
de Deus na areia. Devagar, começamos a colocar nossos pés nas pe¬
gadas. Em alguns pontos, as passadas parecem grandes demais para
nossa pequena compleição; cm outros, elas parecem tão pequenas,
quase infantis. Em sua infinita sabedoria, Deus nos força quando
precisamos estar no limite da aventura e nos contém quando preci¬
samos de maior atenção e tranquilidade. Ao seguirmos a direção de
Presentes onde estamos

Deus, entramos cada vez mais na passada divina, virando onde Deus
vira, aceitando os caminhos divinos c achando-os totalmente bons.
Estamos presentes no lugar em que estamos? Infclizmente, te¬
mos de admitir que geralmente ficamos bem longe de onde estamos.
Talvez nossa mente esteja ruminando um problema no escritório
quando devíamos estar atentos aos nossos filhos. Ou estamos men¬
tal e emocionalmente ausentes, pensando numa pescaria quando
devíamos estar cuidando das pessoas ao nosso redor. Ou, quando co¬
meçamos a orar, estamos em qualquer lugar, menos na presença de
Deus. O recolhimento é o aspecto da oração meditativa que nos
pode ajudar a estar de maneira mais completa no lugar onde esta¬
mos. À medida que isso se torna um padrão de vida, vemos que
vivemos de maneira mais plena, íntegra e completa.
PARTE II

Entrando na oração meditativa


Ele mesmo 6 minha contemplação;
Ele é meu prazer.
A ele busco acima de mim;
Dele alimento meu interior.
Ele é o campo cm que trabalho;
Ele é o fruto por que labuto.
Ele c minha causa;
Ele c meu efeito.
Ele c meu princípio;
Ele c meu fim sem fim.
Ele c, para mim, eternidade.
— ISAQUE DE ESTELA*
£003
Que as palavras da minha boca
e a meditação do meu coração
sejam agradáveis a ti,
SENHOR, minha Rocha e meu Resgatador!
— Salmos 19.54

* ESTELA, Isaque de. Apud POOLEY, Roger; SEDDON, Philip (Ed.). The
Lord of the Journey: A Reader in Christian Spirituality. London:
Collins Liturgical, 1986. p. 36.
Capítulo 5

Olhando para o Senhor

A melhor tradição contemplativa tende


com frequência a passar do ouvir para
um olhar tranquilo.
— HANS URS VON BALTHASAR1
Quando aprendemos pela experiência a graça do recolhimen¬
to, começamos a nos mover para o segundo passo da oração me-
ditativa, “olhar para o Senhor”. O que significa isso? Olhar para o
Senhor diz respeito a um fitar interno do coração fixado em Deus,
o Centro divino. Desfrutamos o calor da presença de Deus. Fica¬
mos embebidos no amor e no cuidado divino. A alma, introduzida
no Lugar Santo, fica imobilizada com o que vê.

Duas testemunhas antigas

Talvez a melhor maneira dc compreendermos esse passo na ora¬


ção meditativa seja ouvir os relatos dc testemunhas dc tal experiência.

BALTHASAR, Hans Urs Von. Prayer. San Francisco: Ignatius, 1986. p. 28.
SANTUáRIO DA ALMA

Uma delas é Richard Rollc de Hampole, escritor inglês, tradutor da


Bíblia c eremita do século XIV Que pessoa mais intrigante! Ele estu¬
dou cm Oxford, onde aprendeu latim. Também aprendeu ali sobre o
pecado, de modo que deixou Oxford para reorganizar suas prioridades.
Inventou um grosseiro hábito de eremita feito com um capuz de chuva
do pai c duas túnicas da irmã. Quando a irmã viu o que ele havia feito,
gritou: “Meu irmão está louco! Meu irmão está louco!”.2 Mais tarde,
68
numa igreja da localidade, após a missa e com a bênção do celebrante,
Richard subiu ao púlpito c pregou um sermão “de tal sinceridade e
beleza, que ‘a multidão não conseguia refrear as lágrimas’, dizendo que
‘nunca haviam ouvido um sermão com tal virtude e poder’”.3
Mas passemos agora à experiência de olhar para o Senhor. Roile
testificou que, quando seu coração passou a fitar o Senhor, ele ex¬
perimentou um calor intenso em torno do coração, como se de fato
estivesse queimando.

Era também um calor real, não imaginário, e era como sc [meu


coração] estivesse mesmo em chamas. Fiquei admirado com
a maneira pela qual o calor aumentou de repente e como essa
nova sensação trouxe um grande e inesperado conforto. Preci¬
sei apalpar meu peito para me certificar de que não havia moti¬
vos físicos para aquilo!4

Depois de verificar que não havia causa material para a sensação,


mas que era pura dádiva gratuita de Deus, Richard acrescentou:

Fiquei absolutamente maravilhado e queria que meu amor fos¬


se ainda maior. E esse anseio era ainda mais urgente por causa

2 ROLLE, Richard. The Fire of Love. Trad. Clifton Wolters. New York:
Penguin, 1981. p. 13.
3
Ibid., p. 13-14.
4
Ibid., p. 45.
Olhando para o Senhor

do maravilhoso efeito e da doçura interior com que essa chama


espiritual alimentou minha alma. Antes da infusão desse con¬
forto, eu nunca havia pensado que nós, exilados, pudéssemos
conhecer tal calor, tamanha era a doçura da devoção que des¬
pertou. Aquilo acendeu minha alma, como se um verdadeiro
fogo estivesse ali queimando.5

Bem, imagino que poucos terão algum dia as sensações físicas —


69
que Rolle experimentou, mas todos podemos buscar olhar para o
Senhor com o coração.
A segunda testemunha é Madame Jeanne Guyon, mãe e aris¬
tocrata francesa do século XVII. Seu discípulo mais famoso, Fran¬
çois Fénelon, difundiu seus ensinos por toda a França e além-fron¬
teiras. O esplêndido livro de Guyon, Experimentando as profundezas
de Jesus Cristo,6 contém ensinos úteis para nós na experiência de
olhar para o Senhor.
Para aprendermos a olhar para o Senhor, Guyon nos ensina a
usar as Escrituras, mas não do modo com que aprendemos na lectio
divina. Aqui as Escrituras são usadas para aquietar a mente. Come¬
çamos, diz Guyon, lendo uma passagem das Escrituras, mas, depois
de ler, fazemos uma pausa. Guyon explica: “A pausa deve ser bem
tranquila. Você faz uma pausa para poder posicionar sua mente
no Espírito. Você posiciona sua mente interiormente em Cristo”.—
É preciso lembrar, explica Guyon, que você não lê as Escrituras
para obter algum entendimento, mas para “voltar sua mente das

5
ROLLE, Richard. The Fire of Love, p. 45.
6
São Paulo: Vida, 2011. [Escrito em 1685, esse livro tinha originalmcn-
tc um título um tanto extenso: Um método de oração curto e muitofácil que
todos podem praticar com a máximafacilidade e chegar em pouco tempo, por meio
dele, a um altograu deperfeição. Por ter escrito esse livro, Guyon ficou presa
por pouco mais de sete anos.]
SANTUáRIO DA ALMA

coisas exteriores para as partes profundas do seu ser. Você não está
lá para aprender ou para ler; você está lá para experimentar a pre¬
sença do seu Senhor!”.7
Depois que sentimos a presença do Senhor, o conteúdo da
nossa leitura cumpriu sua finalidade. Agora mantemos nosso cora¬
ção na presença de Deus. Fazemos isso apenas c tão somente pela
fé, diz Guyon:

Sim, pela fé vocc pode manter seu coração na presença do Senhor.


Agora, aguardando na presença dele, volte toda a sua atenção para
o seu espírito. [...] (O Senhor é encontrado somente em seu espíri¬
to, no recesso do seu ser, no Santo dos Santos; ali é onde ele habi¬
ta. Certa vez o Senhor prometeu vir c fazer morada em você (João
14.23). Ele prometeu estar com quem o adora e faz a sua vontade.
O Senhor estará com você no seu espírito. Foi Santo Agostinho
que disse, certa vez, haver perdido muito tempo no começo de sua
experiência cristã tentando encontrar o Senhor exteriormente, em
vez de se voltar para o seu próprio interior.)*

Então, aqui na presença de Deus, olhamos para o Senhor. Te¬


mos plena consciência da presença de Deus porque, como Guyon
nos ensina, todos os sentidos externos tomaram-se “calmos e tran¬
quilos”. Já não nos fixamos em pensamentos superficiais da mente;
“ao contrário, doce e silenciosamente, ela fica ocupada com o que
você leu e com aquele toque da presença de Deus”.9
Como? Vamos voltar agora ao conteúdo daquilo que lemos nas
Escrituras? Bem, sim e não. Não é que pensamos no que lemos, ex¬
plica Guyon; o que acontece é que nos alimentamos do que lemos.

7
GUYON. Experimentando..., p. 19.
* Ibid., p. 20.
9
Ibid., p. 20.
Olhando para o Senhor

Do princípio ao fim, precisamos disciplinar nossa mente a se aquie¬


tar diante do Senhor. Precisamos permitir descanso à nossa mente.

Esse conceito de “alimentar-se”, mas não pensar, fica um pouco


distante da minha experiência vivida. No entanto, há mais. A próxima
orientação de Guyon é a mais importante de todas: “Nesse estado de
verdadeira paz, absorva o que você provou. [...] Neste estado calmo,
em paz e simples, apenas tome o que se apresenta como nutrição”.10
71

Arrombando a porta

Não sei de você, mas fico meio sem fôlego com toda essa con¬
versa sublime. E sem ação. Só estou tentando dar conta desta sema¬
na. Talvez você também. Muitas vezes parece que nossa meditação
nunca vence nossa frustração com a louça suja acumulada na pia ou
com a prova de química na semana que vem. O que fazer, então?
Bem, quero muito incentivar você a não se desesperar nem
desistir. Em vez disso, gostaria de sugerir três maneiras simples

— talvez eu deva dizer elementares de arrombar a porta para
contemplar o Senhor.
O primeiro recurso é ficar quieto na presença do reflexo da gló¬
ria de Deus que vemos na criação. Isso não é uma espécie de panteís¬
mo infantil; pelo contrário, é o reconhecimento de que a ordem
criada, ainda que afetada pela Queda, reflete um pouco da bondade
e glória de Deus. Como bem expressa Paulo, “desde a criação do
mundo os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua na¬
tureza divina, têm sido vistos claramcnte, sendo compreendidos
por meio das coisas criadas” (Romanos 1.20).
Um dos motivos pelos quais tanto amamos a criação é que ela
sempre cumpre a vontade do Pai. Árvores c esquilos, cervos c águias,

10
GUYON. Experimentando..., p. 20.
SANTUáRIO DA ALMA

todos estão ocupados em cumprir a vontade de Deus. Às vezes, de¬


pois de um dia imerso na malícia c na depravação da sociedade
humana, digo a um velho amigo de caminhadas: “Vamos pegar a
trilha e encontrar um pouco da vontade do Pai”. Elizabeth Barrett
Browning declarou:

A Terra está abarrotada do Ccu,


72 E cada sarça comum arde com Deus;
Mas só quem vê tira os sapatos."

Com frequência, especialmente quando estou escrevendo, faço


uma pausa e ando por um desfiladeiro próximo. Minhas únicas
companhias são uma bengala de sequoia entalhada e um frasco de
água. Na primavera esse desfiladeiro se enche de visões e cheiros
de magnolias e esporinhas, tremoceiros e flores do campo. No in¬
verno, porém, dominam os tons terra. Até o pinheiro ponderosa é
mais escuro no inverno, misturando-sc com os marrons dos carva¬
lhos gambel e mognos da montanha.
A ausência de folhas e flores fazem as encostas do desfiladeiro
subir íngremes. Elas estão sempre ali, é claro, mas no inverno en¬
chem o cenário como sentinelas gigantes. Aprecio a rigidez e durabi¬
lidade das rochas.Muitas vezes passo a mão sobre uma delas, crivada
de pedras cimentadas por pressões milenares.
Gosto de descer sozinho ao desfiladeiro logo depois de ne¬
var. É provável que eu não veja nenhum Homo sapiens. Mas vou
ouvir o riacho gorgolejando debaixo do gelo. De maneira curiosa,
esse murmúrio perpétuo me acalma. Sem dúvida, outros sons so-

11 BROWNING, Elizabeth Barrett. Aurora Leight. London: J. Milter,


1864. Postado em A Celebration of Women Writers. University of
Pennsylvania.Disponívelem: <http://digital.library.upcnn.edu/women/
barrett/aurora/aurora.html>. Acesso ein: 14 mar. 2011, 12:02:54.
Olhando para o Scnlior

bejarão: tâmias e esquilos revirando a vegetação rasteira atrás de


comida c, lá no alto das árvores, o grasnar da águia e do gaio, do
pintassilgo americano e do junco de olhos escuros. Tenho certeza
de que encontrarei grande variedade de pegadas na neve; um lem¬
brete de que tenho muito mais vizinhos do que jamais conseguirei
ver ou escutar.
Mas são as árvores que mais me prendem a atenção e me le-
vam a um silêncio completo. É a paciência das árvores — impo¬
-
nentes, quietas, carregadas de neve. As árvores me deixam entrever
a paciência cósmica de Deus. Ali, entre as árvores vejo o Senhor, o
Criador das árvores.
Um segundo recurso que nos ajuda a entrar na experiência de
olhar para o Senhor são as músicas de adoração. Para mim a música
é muitas vezes a linguagem do olhar. Será muito útil se você encon¬
trar músicas que o levem metaforicamente do pátio externo para o
interno e então para o Santo dos Santos (veja Êxodo 37—40).
Agora, cantar e adorar não são propriamente o mesmo que
olhar... mas talvez sejam uma entrada. No ato de olhar para o Se¬
nhor, a música funciona em parte como o ensino de Guyon acerca
do uso das Escrituras. Assim que a música nos leva ao Propiciatório,
cumpriu seu papel. Nesse ponto a deixamos para trás e atentamos
para o Senhor. Aqui olhamos simples e puramente para o Senhor.
Não quero insistir em algum tipo ou estilo particular de música.
“Com salmos, hinos e cânticos espirituais, cantando e louvando de
coração ao Senhor” — é assim que Paulo a descreve (Efcsios 5.19).
E isso é suficiente para mim.
Acho que quero acrescentar uma ressalva. As músicas “altas” c
“animadas” raramente nos inspiram. Pelo contrário, elas nos incitam
e enfatizam emoções superficiais. Com certeza há momentos para
essas experiências; mas não aqui, não na contemplação. Assim, su¬
giro músicas de adoração que nos conduzam para dentro, não para
SANTUáRIO DA ALMA

fora. Depois disso, tenho certeza de que vocc encontrará a música


tnais adequada para levá-lo a essa experiência.
Um terceiro recurso. Um recurso rcalmcntc simples. Há oca¬
siões cm que entramos em experiências mais profundas do que é pos¬
sível descrever com palavras humanas. O sábio apóstolo Paulo nos
diz que “o próprio Espírito intercede por nós com gemidos inexpri-
- míveis” (Romanos 8.26). E com frequência há anseios interiores que
não podem ser devidamente expressos em linguagem humana. Para
alguns, o dom de línguas, ou glossolalia, torna-se um meio pelo qual
nosso espírito pode contemplar o Santo de Israel. Em outros momen¬
tos, entramos no que Santa Teresa de Ávila chamou de “a oração da
quietude”,'2 em que todas as palavras se tornam supérfluas. No silên¬
cio olhamos para o Senhor. As palavras não são necessárias para que
haja comunhão. Acima de tudo descansamos no “silêncio maravilho¬
so, terrível, gentil, amoroso, totalmente abrangente” de Deus.13

12 TERESA DE ÁVILA. The Interior Castle. Trans. Kicran Kavanaugh c Oti-


lio Rodriguez. New York: Paulist, 1979. p. 73 e muitos outros trechos.
[Castelo interior ou moradas. São Paulo: Pautus, 2010.]
13 DOHERTY. Poustinia, p. 216.
Capítulo 6
Cuidado com o interior

Permaneça quieto c escute a voz de Deus. Deixe


seu coração de tal maneira preparado, que o Espírito
possa imprimir cm você tantas virtudes quantas
ele desejar. Deixe todo o seu interior escutá-lo.
Silenciar todos os impulsos externos e terrenos e os
pensamentos puramente humanos dentro dc nós 6
essencial, se desejamos ouvir a voz de Deus.
— FRANçOIS FéNELON'

Quando experimentamos a graça unificadora do recolhimento


e a graça libertadora da contemplação do Senhor, somos levados ao
terceiro passo da oração meditativa, a oração auditiva.
Neste ponto, a palavra “passo” pode induzir a um erro. Pode dar
a entender algo demasiadamente nítido, como se fosse possível fazer
distinção clara entre um passo c outro. Não é o caso. Todos esses mo¬
vimentos ou aspectos da oração meditativa estão relacionados entre si

FéNELON, François. Apud FOSTER, Richard J. Oração: o refúgio da


alma. São Paulo: Vida, 2008. p. 231.
SANTUáRIO DA ALMA

c respingam uns sobre os outros. O que estamos descrevendo é uma


experiência de vida e, como todas as experiências de vida, esta não
pode ser definida de maneira tão rígida. O Senhor é o Criador de
infinitas possibilidades c às vezes pode transformar nossos pequenos
passos num grande salto ou nos ensinar a pular, a saltitar ou, ainda,
a ficarmos quietos. Sempre cm grata obediência, seguimos a voz do
verdadeiro Pastor.
76
Quando chegamos à oração auditiva, afastamos todos os obstá¬
culos do coração, todos os planos da mente, todas as vacilações da
vontade. Há um silenciar de todos os “impulsos externos e terre¬
nos”, conforme nos lembra Fénelon. A frase ilustrativa de S. João
da Cruz, “estando minha casa sossegada”,2 instrui a aquietar-nos de
todos os sentidos físicos e emocionais. As experiências de recolhi¬
mento e contemplação do Senhor fizeram seu trabalho. Agora esta¬
mos prontos para uma atenção interior ao mover divino. No âmago
da nossa existência, sentimo-nos mais vivos c mais ativos do que
quando nossa mente está saturada por coisas e mais coisas. Algo lá
no fundo despertou e está chamando nossa atenção. Nosso espírito
faz o máximo de silêncio, está alerta e pronto para ouvir.
No monte da Transfiguração, a voz do Senhor veio de den¬
tro da nuvem brilhante e ofuscante dizendo: “Este é o meu Filho
amado em quem me agrado. Ouçam-nol” (Mateus 17.5, grifo meu).
E, assim, escutamos, escutamos de verdade.

Discernindo a voz viva de Deus

Agora quero recuar um pouco só para considerar como pode¬


mos fazer distinção entre a voz viva de Deus e, digamos, nossos

2
JOáO DA CRUZ. Noite escura da alma. Disponível em: chttp://
pt.wikipedia.Org/wiki/Jo%C3%A3o_da_Cruz#Pensamentos>. Acesso
cm: 14 mar. 2011, 13:05:21. [N. do T.]
Cuidado com o interior

próprios pensamentos aleatórios ou mesmo a influência do maligno.3


Fiz uma declaração rápida sobre isso bem no começo do livro, mas ó
hora de explorar um pouco mais essa ideia.4
A primeira coisa a dizer sobre isso é que não existe fórmula que
resolva. Cinco passos fáceis ou dez lições rápidas simplesmente não
bastam para um relacionamento vivo. Os bem conhecidos ensina¬
sobre a ação combinatória e confirmadora das Escrituras,
mentos ——
as circunstâncias e a disposição internas como meios de orientação
certamente são úteis, mas insuficientes. Precisamos de mais. Preci¬
samos de um conhecimento pessoal. Usando a expressão incisiva de
Edward John Carnell, precisamos de “um vínculo filial”.5
Jesus deixou claro que suas ovelhas podem ouvir e reconhecer
sua voz (João 10.11-15). A pergunta é: Como? Como passamos a
discernir a voz viva de Deus? A resposta é enganosamente simples.
Aprendemos a discernir a voz de Deus pela experiência. As ovelhas
(ou nossos animais de estimação) aprendem a reconhecer a voz de
seu dono por meio da experiência. Os bebés também logo apren¬
dem a reconhecer a voz de seus pais. Jesus, por meio do Espírito
Santo, nos guiará a toda a verdade. Mas, para receber essa orientação
e saber que ela vem do Espírito Santo, precisamos de certa familia¬
ridade, algum relacionamento pessoal com nosso “Mestre interior”.

3
Guardarei a discussão das tentações dc Satanás c seus lacaios para o
Capítulo 8.
4
Neste pequeno livro não é possível desenvolver o assunto em detalhes.
Por isso, sugiro Dallas WILLARD, Ouvindo Deus (Viçosa: Ultimato,
2002). Eu o considero um dos melhores livros já escritos sobre orien¬
tação divina e, ccrtamentc, o melhor dos últimos anos. As ideias desta
seção são fortemente inspiradas nessa obra.
3
CARNELL, Edward John. Christian Commitment: An Apologetic.
New York: Macmillan, 1957. p. 273 c vários outros trechos.
SANTUáRIO DA ALMA

Devemos explorar um pouco mais o tema da familiarida¬


de. Dallas Willard escreve que “certos fatores distinguem a voz de
Deus, assim como qualquer voz humana pode ser distinguida
de outra”/’ Ele prossegue listando esses fatores: a qualidade da voz de
Deus, o espírito da voz Deus e o conteúdo da voz de Deus.
_

A respeito da primeira característica, ele observa: “A qualidade


da voz divina é mais uma questão de peso ou impacto de uma im-
78
pressão cm nossa consciência. Uma força clara, firme c tranquila
com que as mensagens divinas impactam nossa alma, o mais íntimo
do nosso ser, nos predispõe à aprovação e até à submissão”.7 Então,
uma sensação de autoridade divina é característica da voz do Senhor.
Diz E. Stanley Jones: “A voz divina interior não discute, não tenta
convcncc-lo. Ela apenas fala e se legitima”.8
O segundo aspecto é o espírito da voz de Deus. Esse espírito,
diz o dr. Willard, “é um espírito de paz e confiança sublimes, de ale¬
gria, de doce razoabilidade e boa vontade. É, cm suma, o espírito de
Jesus”.9 A breve epístola de Tiago o descreve da seguinte maneira:
“Mas a sabedoria que vem do alto c antes de tudo pura; depois, pa¬
cífica, amável, compreensiva, cheia de misericórdia e de bons frutos,
imparcial e sincera” (Tiago 3.17).
O terceiro aspecto é o conteúdo da voz de Deus. “O conteúdo
de uma palavra que realmente vem de Deus sempre se conformará
e será coerente com as verdades acerca da natureza e do Reino de
Deus que são claras na Bíblia.”10 Deus nunca nos guiará no sentido
contrário ao que ele disse ou fez no passado. Todavia, não estamos

6
WILLARD. Ouvindo Deus, p. 174.
7 Ibid., p. 175.
8
JONES, E. Stanley. A Song of Ascents. Nashville: Abingdon, 1979. p. 190.
9
WILLARD. Op. cit., p. 177.
10
Ibid., p. 178.
Cuidado com o interior

olhando para os incidentes ou costumes locais encontrados na Bí¬


blia. Em vez disso, estamos voltados para os princípios perenes das
Escrituras. Por isso é tão importante que tenhamos uma boa com¬
preensão de todo o teor das Escrituras. São esses três elementos,
portanto — qualidade, espírito e conteúdo
aprender a discernir a voz de Deus.
que nos ajudarão a

É claro que o fato de Deus falar conosco não é garantia de que


o ouviremos corretamente. Posso dizer, por uma amarga experiên- 79
cia, que entenderemos errado algumas vezes. Mas isso faz parte de
nosso aprendizado, que exige tempo e experiência até distinguir¬
mos a voz do verdadeiro Pastor.
Agora sei que tudo isso em tese parece um tanto complicado. Na
prática, contudo, flui muito naturalmente. Jesus está aqui em pessoa
para nos ensinar. Aprenderemos se tivermos coração humilde.
Isso nos traz à mente uma das primeiras coisas que acontecem
conosco quando esperamos diante do Senhor: recebemos pela gra¬
ça um espírito ensinável. Digo “pela graça” porque, sem um espíri¬
to ensinável, qualquer palavra do Senhor que venha para nos guiar
à verdade também pode endurecer nosso coração. O faraó, você se
lembra, ouviu a palavra do Senhor c ela serviu para endurecer seu co¬
ração. Sem dúvida também resistiremos a toda e qualquer instrução,
a menos que sejamos dóceis. Mas, se rcalmente estivermos “dispostos
a obedecer”, a palavra do Senhor é vida e luz para nós (Isaías 1.19).

Os sussurros divinos

O que podemos esperar quando ouvimos? Os sussurros divinos


são tão soberanamente pessoais e individuais, que não posso ter a
pretensão de saber o que Deus gostaria de dizer a você. Mas cu o
encorajaria a estar aberto a duas coisas: o comum e o extraordinário.
O quero dizer? Deixc-mc exemplificar.
Nos primeiros dias das minhas experiências cm ouvir o Senhor,
senti uma ordem clara de telefonar a um amigo, capelão numa facul¬
dade local, e ver como ele estava. A palavra trazia as marcas de uma
SANTUáRIO IJA ALMA

suave autoridade que cu havia aprendido a identificar como a voz do


Senhor. Anotei a ideia numa folha de papel e continuei minha oração.
Pouco depois liguei para meu amigo. Vocc precisa entender que eu era
seu pastor, então a primeira coisa que falei foi: “Ron, não estou ligando
para pedir alguma coisa! Só estou querendo saber como você está”.
Sua resposta me surpreendeu. “Estou muito feliz que você te-
nha ligado!...” E vieram à tona as necessidades profundas e angus¬
tiantes de seu coração. O que aconteceu me deu a segurança de que
eu estava no caminho certo nesse ouvir a Deus. Mas a palavra dada
era muito simples, muito comum. Nenhum holofote. Nenhuma
ordem que fizesse abrir a terra. Apenas uma palavra simples que
levou conforto e cura a um amigo.
-

Comum... e extraordinário. George Washington Carver foi um


dos nossos grandes cientistas e geralmente orava dirigindo-se a Deus
como “Sr. Criador”. Certa noite, ele andava pela floresta e orou: “Sr.
Criador, por que fizeste o Universo?”. Carver parou para ouvir e foi
isso o que escutou: “Pequeno homem, essa pergunta é grande demais
para você. Tente outra!”. Na noite seguinte, ele entrou na floresta e
orou: “Sr. Criador, por que fizeste o homem [isto é, a raça humana]?”.
Então parou para ouvir e escutou o seguinte: “Pequeno homem, essa
pergunta ainda é grande demais para você. Tente outra!.” Na tercei¬
ra noite. Carver foi à floresta e orou: “Sr. Criador, por que fizeste o
amendoim?”. E foi isto o que ele ouviu: “Pequeno homem, essa per¬
gunta está de acordo com o seu tamanho. Escute e eu vou ensiná-lo”.
E talvez você saiba que George Washington Carver inventou cerca de
300 maneiras de usar o amendoim." Comum. Extraordinário.

11 A história oficial no Monumento a George Washington Carver diz


que Carver contou esse episódio muitas vezes cm várias versões. Uma
fonte online é “George Washington Carver”, Jesus Christ Saves Minis¬
tries. Disponível em: <www.michaelnewdow.com/GeorgeWashington
Carvcr.htm>. Acesso em: 14 mar. 2011, 07:24:02.
Cuidado com o interior

É claro que não devemos surpreender-nos quando o sussurro de


Deus nos leva a atos simples de serviço e bondade. Somos dirigidos
a entregar um buquê de flores a um conhecido que esteja adoentado.
Somos impelidos a limpar a calçada para um vizinho deficiente. Acor¬
damos silenciosamente de manhã c fazemos o café da nossa esposa. A
vida diária comporta milhares de oportunidades de serviço desse tipo.
Também não devemos ficar surpresos com o fato de que o sus- —
surro de Deus é geralmente destinado a nós somente e atende às
nossas necessidades mais profundas. Precisamos de paz? Deus nos
sussurra a Paz divina. Precisamos de força? Deus nos sussurra a For¬
ça divina. A palavra que nos é dada sempre carrega consigo uma zoê,
ou seja, uma vida plena, que é Vida de verdade!
Um dos meus mentores favoritos sobre oração auditiva é Frank
Laubach, o grande estadista missionário e “apóstolo da alfabetização
para o bilhão silencioso”. Seus livros estão simplesmente abarrota¬
dos de experiências de ouvir o Senhor.12 Aqui está uma experiência
de seus primeiros dias no trabalho de alfabetização, quando estava
sozinho na pequena ilha de Mindanao, nas Filipinas. A experiência
é melhor citada na íntegra.

24 de maio de 1930
Esta foi uma semana de maravilhas. [...] Contarei algumas das
maravilhas em breve. Mas, neste momento, você precisa ouvir
mais sobre esta noite solene. O dia tinha sido rico, mas exte¬
nuante, de modo que subi à “Colina do Sinal”, atrás da minha
casa, falando e ouvindo a Deus o tempo todo morro acima na

12
Laubach escreveu quase 100 livros, dos quais 15 tratam da oração. Al¬
guns dos mais conhecidos são Letters by a Modern Mystic, Learning
the Vocabulary of God, You Are My Friends, Game with Minutes.
Prayer: The Mightiest Force in the World c Channels of Spiritual
Power.
SANTUáRIO DA ALMA

ida, morro abaixo na volta c durante toda aquela maravilhosa


meia hora lá no topo. E Deus respondeu! Deixei minha língua
livre c dela fluiu uma poesia de longe muito mais bela que qual¬
quer outra que cu já tivesse escrito. Ela fluiu por meia hora, sem
pausas c sem que falhasse uma única sílaba. Eu escutava abisma¬
do c cheio de alegria c gratidão. Eu queria um ditafone, pois sa¬
bia que não seria capaz de lembrá-la — e não sou. Talvez alguém
pergunte “Por que Deus gastou sua poesia só com você se você
82
não podia guardá-la?”. Vocc terá de fazer essa pergunta a Deus.
Só sei que ele fez isso c fico feliz em recordar.13

Um santuário portátil

O objetivo, claro, é trazer esse estado de oração auditiva ao


curso das experiências diárias. Em todas as coisas da vida — con¬
trolar o talão de cheques, passar o aspirador na sala, visitar os vizi¬
nhos ou parceiros comerciais —, pode haver uma atenção interior
ao sussurro divino. Os grandes mestres da vida interior são esma¬
gadoramente unânimes em seu testemunho dessa verdade. Isso é
bem representado nas famosas palavras do Irmão Lourenço: “A hora
dos negócios não me é diferente da hora da oração e, nos ruídos
e barulhos da minha cozinha, enquanto várias pessoas pedem vá¬
rias coisas ao mesmo tempo, tenho Deus em grande tranquilidade,
como se eu estivesse ajoelhado para o santíssimo sacramento”.14
Na vida diária, carregamos um santuário portátil.

13
LAUBACH, Frank C. Letters by a Modern Mystic. Colorado Springs:
Purposeful Design, 2007. p. 30.
14 IRMãO LOURENçO. The Practice of the Presence ofGod. Old Tappan:
Revcll, 1985. p. 9. [Praticando a Presença de Deus. Rio de Janeiro:
Danprewan, 2004.]
Entrando na experiência
Jornada à caverna de São Cutiberto
83
Ó meu divino Mestre, ensina-me essa linguagem
muda que diz tantas coisas.
— JOãO NICOLAU GROU'

Estou sentado numa pedra na entrada da caverna de São Cuti¬


berto, empenhando-me para entender os acontecimentos dos últi¬
mos cinco dias.
Volto o pensamento para o começo da nossa odisseia, quando
nosso voo da British Airways aterrissou no aeroporto Heathrow,
de Londres, na manhã de segunda-feira, 10 de setembro de 2001.
Viajava comigo Glandion Carney, líder cristão afro-americano de
Birmingham, Alabama. Glandion cresceu na região da Baía de São
Francisco, durante os anos radicais de Huey Newton, cofundador
do Partido dos Panteras Negras, c Eldridgc Cleaver, autor de Soul
on Ice [Alma no gelo]. “Cresci na época em que Newton e Cleaver
eram heróis”, explica Glandion, “ícones de liberdade e luta”. Ele me
conta que era uns 7,5 centímetros mais alto naquele tempo por causa
do cabelo estilo afro. Mas hoje Glandion é carcca, e sua fala c mansa.
Ainda guarda, contudo, aquele diferencial, do engajamento social,
que sempre apreciei nele. Viemos juntos à Inglaterra, trazendo uma

Gnou,Jean-Nicholas. How to Pray. Trans. Joseph Dalby. Cambridge,


U.K.: James Clarke, 1982. p. 23.
SANTUáRIO DA ALMA

mensagem de vida e esperança, mas não tínhamos ideia de que uma


mensagem infernal de morte e destruição chegaria em poucas horas.

Manhã ensolarada de terça-feira e nosso pequeno grupo de cin¬


co pessoas viaja para uma casa de retiros isolada em NorthYorkshire.
84 O centro urbano mais próximo é a vila de Masham. Paramos para
que Glandion pudesse comprar alguns “legítimos chocolates in¬
gleses”. Ele compra cinco barras de chocolate Cadbury, e todos os
outros caçoam abertamente por causa dessa aquisição. A Igreja de
Sta. Maria, no centro de Masham, foi fundada no século VII, e a
estrutura atual é basicamente normanda, com anexos do século XV.
Bem perto estão as ruínas da Abadia de Jerval. Fundada em 1156,
Jerval fazia parte da ordem cisterciense, um dos grandes movimen¬
tos de renovação na história, liderado por Bernardo de Claraval. Foi
destruída e pilhada na Dissolução dos Mosteiros durante o reinado
de Henrique VIII, e tudo o que resta hoje são essas magníficas ruí¬
nas situadas entre os campos que se estendem por Yorkshire Dales.
A literatura da região me diz que a abadia tem mais de 180 espécies
de flores silvestres espremidas entre suas paredes e escombros.
Nosso destino fica num caminho estreito, apertado o bastante
para que eu agradeça por não haver outros veículos vindo em dire¬
ção contrária. Nós cinco rolamos para fora do carro e nos esticamos.
O outro membro do grupo nos encontra na casa de retiros. É um dia
espetacular, um dia pelo qual anseio há um bom tempo. Por cerca
de dez anos observei os acontecimentos na Inglaterra e na Irlanda,
imaginando quando seria o tempo certo para uma versão britânica
do RENOVARE (= renovar), nosso ministério de renovação. Toda
vez que eu atravessava o Atlântico, encontrava líderes cristãos e fazia
amizades, sempre esperando pelo tempo certo.
Entrando na experiência

Chegou a hora. Viemos a esta pequena casa de retiros para


assinar os papéis oficiais que fazem da RENOVARE Inglaterra e
Irlanda uma instituição beneficente registrada na Grã-Bretanha.
Glandion e cu representamos o braço norte-americano do minis¬
tério. Quatro britânicos serão nossos membros fundadores e farão
parte da equipe ministerial: James Catford, que logo será nosso
presidente; Joyce Huggett, escritora britânica de certo renome;
Roy Searle, líder da Northumbria Community; e Rob Warner, ba¬
tista fundador de igrejas que desenvolveu um ministério criativo
em Wimbledon.

A casa de retiros é aconchegante — na medida para nosso


grupo de seis. O velho muro externo de pedra cerca a casa, a resi¬
dência do caseiro e um moinho de madeira desativado. As colinas
ao redor são de um verde vivo, perfeitas para criar ovelhas, o que,
disseram, é colinas também
a principal atividade da região. As
tornam nossos celulares complctamcntc inúteis. Não há como
contatar o mundo exterior, nem sentimos necessidade disso. A
conversa é cordial e animada. Estamos começando uma nova em¬
preitada em relação à qual temos grandes esperanças. Rimos de
como raspamos as carteiras só para conseguir juntar as dez libras
necessárias para o registro no governo. A adoração é doce, e o
planejamento é visionário. Depois de um almoço descontraído,
à base de ensopado de carneiro, espalhamos os documentos na
mesa. Glandion e eu observamos os outros quatro assinar seus
nomes, instituindo a RENOVARE Inglaterra e Irlanda. Cantamos
a doxologia e fazemos orações de agradecimento.

As horas seguintes são cheias de planos c sonhos para o futuro.


Temos ousadia suficiente para esperar que um novo movimento
de renovação varra as Ilhas Britânicas? Temos sim e planejamos de
acordo. No final da tarde paramos para descansar e a maioria resolve
SANTUâHIO DA ALMA

escalar o maior morro da região. Lá do alto, James decide ver se há


sinal para conectar o celular.

£003
Ali no topo de um morro sobre um vale verdejante de North
Yorkshire, ouvimos as primeiras palavras desconcertantes do que
86 havia acontecido no mundo lá fora. Aquilo está além da nossa
compreensão e contrasta fortemente com o clima quieto e pastoril
à nossa volta.
O casal que cuida da casa de retiros é gentil e nos convida a en¬
trar;nós nos apinhamos em seu pequeno apartamento para, juntos,
assistirmos em silêncio às imagens de homens e mulheres vestidos
como executivos saltarem para a morte certa. Repetidamcnte, a te¬
levisão mostra a sequência de aviões comerciais chocando-se contra
o World Trade Center. Devastação injustificada. Horror absoluto.
Choque completo. Ficamos ali... parados, mudos.
Ainda estamos tentando organizar nossa mente sobre o que
aconteceu quando a BBC transmite as palavras do primeiro minis¬
tro Tony Blair: “Os mais terríveis e chocantes eventos aconteceram
nos Estados Unidos da America na última hora; dois aviões se¬
questrados foram deliberadamente atirados contra o World Trade
Center. Temo que mal possamos imaginar o terror e a carnificina
ali, e os muitos inocentes que perderam a vida. Sei que vocês se
unirão a mim ao enviar as mais profundas condolências ao pre¬
sidente Bush e ao povo americano em nome do povo britânico
nesse terrível acontecimento. Esse terrorismo de massa é o novo
mal cm nosso mundo atual. Ele c praticado por fanáticos que são
absolutamente indiferentes à santidade da vida humana, e nós, as
democracias do mundo, temos de nos unir para enfrentá-los jun¬
tos e erradicar esse mal do nosso mundo”.
Entrando na experiência

Logo ouvimos a notícia especial transmitida pela administração


aérea federal paralisando todas as operações aéreas norte-america¬
nas. “Em vigor imediatamente, até maiores esclarecimentos, estão
proibidas as operações de voo no sistema do espaço aéreo nacional
por aeronaves civis dos Estados Unidos e aeronaves civis e milita¬
res estrangeiras, exceto para emergências médicas, militares do país,
aplicação da lei e voos de evacuação de emergência.”
87
O que significa tudo isso? E o que aconteceu com o voo 93 da
United Airlines, que desapareceu do radar em algum lugar na Pen-
silvânia? Perplexidade e perguntas proliferam. Para nós, uma coisa é
certa. Glandion e eu não voltaremos aos EUA tão cedo.

Continuamos o planejamento por mais um dia e meio, mas os


trágicos acontecimentos na cidade de Nova York e em Washington,
D.C., nunca se afastam da nossa mente.

£003
Em vez de voltar para Londres, Glandion e eu decidimos tomar
um trem para o norte até a Northumbria, especificamente a peque¬
na ilha de Lindisfarne. Nos primeiros anos de incursão das missões
cristãs celtas nos reinos anglo-saxões, Lindisfarne serviu de centro
nervoso. De fato, as histórias das façanhas missionárias que ema¬
nam daqui impressionaram tanto a imaginação popular que, com o
tempo, Lindisfarne passou a receber um outro nome, “Ilha Santa”, e
assim é chamada até hoje.
A Ilha Santa está ligada para sempre aos nomes de Sto. Adão e
São Cutiberto. Adão foi o primeiro grande líder missionário que,
vindo de lona, na costa oeste da Escócia, escolheu Lindisfarne, na
costa leste da Inglaterra, como sua base. O atrativo mais impres¬
sionante da ilha hoje é a grande estátua de Adão segurando a tocha
do evangelho com a mão estendida, tendo uma cruz celta atrás da
SANTUáRIO DA ALMA

cabeça, como uma grinalda. Mais tarde, Cutiberto seguiu os passos


de Adão e, tendo crescido na região, de certo modo causou impacto
ainda mais profundo que Adão. Subo a uma elevação rochosa na
Ilha Santa c perto dali consigo ver uma ilha muito menor conhecida
como Ilha de São Cutiberto. Quando a maré baixa, uma ponte de
areia liga a Ilha Santa à Ilha de São Cutiberto, e era para lá que Cuti-
- berto se retirava quando procurava isolamento total.
88
Em viagens anteriores eu tinha conhecido a Northumbria
Community, uma vigorosa expressão de fé cristã na Northumbria
que se levantara em anos recentes.2 Sempre me sinto renovado e
em casa quando consigo estar com esse grupo singular. A Nor¬
thumbria Community é uma reunião de pessoas de origens ecléti¬
cas: católicos, anglicanos, batistas, sem-igreja e outros. Eles tentam
incorporar conscientemente “os caminhos antigos” da fidelidade
cristã que parecem gravados em cada pedra e erguidos do solo dos
montes Cheviot na Northumbria. Buscam a expressão prática mo¬
derna de um novo monasticismo, com raízes nos votos de “dispo¬
sição e vulnerabilidade”, e mantêm uma fidelidade intransigente
aos imperativos do Sermão do Monte.
A Northumbria Community é, por intenção, uma comuni¬
dade geograficamente dispersa. Mas o centro fica bem perto, em
Hetton Hall, uma casa grande com um jardim de oração fechado
com pedras, duas pequenas “poustinias"3 para orações em particular

2
A Northumbria Community compilou um livro dc oração, Celtic Daily
Prayer, que é a base dc sua vida comunitária. Escrevi uma introdução
para a edição americana (San Francisco: HarperSanFrancisco, 2002),
apresentando uma versão mais antiga da história de minha viagem à
Caverna de São Cutiberto.
3
Poustinia é uma espécie de cabine ou cômodo rusticamente mobiliado
onde alguém se isola para orar c jejuar na presença de Deus. [N. do R.]
Entrando na experiência

e a capela da comunidade. Hetton Hall é onde Glandion e eu per¬


manecemos nos dias subsequentes, enquanto esperamos a retomada
dos voos internacionais. Gosto especialmente da cozinha espaço¬
sa, com sua mesa de jantar de madeira desgastada pelo tempo que
provavelmente poderia acomodar duas dúzias de pessoas, se neces¬
sário. Sempre há o que fazer em Hetton Hall... e muitas oportuni¬
dades para conversar e orar.
89

£003
Abrigada no alto dos montes Kyloe, acima de Hetton Hall,
está a caverna de Cutiberto. Eu li as histórias sobre essa caverna,
mas nunca a tinha visto de verdade. Bem agora, enquanto escrevo
estas palavras, tenho à minha frente uma pequena aquarela da ca¬
verna de Cutiberto que lembra minha passagem por lá. Ganhei a
pintura de uma das minhas companheiras na comunidade, Brenda
Grace. É Brenda quem se voluntária e me leva para ver a caverna.
Arrasto Glandion comigo, a despeito de suas reclamações de que,
para ele, longa caminhada significa sair do carro para ir ao Starbucks
tomar café.

Em 651, o jovem pastor Cutiberto usava esta caverna como


abrigo durante a noite enquanto vigiava as ovelhas. Certa noite,
ele viu um facho de luz cortando a escuridão e coros das hostes
celestiais descendo à terra c levando com elas uma alma de gran¬
de brilho. Na manhã seguinte, Cutiberto soube que Adão, bispo
de Lindisfarne, havia morrido na hora exata em que tivera aquela
visão espantosa. Imediatamente, Cutiberto deixou suas tarefas
de pastor e se dirigiu ao mosteiro cm Melrose, onde se consa¬
grou ao treinamento para o ministério cristão. Com o tempo, ele
tomaria o lugar de Adão c promoveria a causa cristã de maneira
imensurável.
SANTUáIUO 1>A ALMA

Brenda nos leva de carro pelos montes Kyloe até o fim da es¬
trada. Paramos o carro e seguimos uma trilha que serpenteia relvas
viçosas c pinheiros verdejantes. Deixo que Glandion e Brenda an¬
dem um pouco à frente. Neste momento, o que desejo é o silêncio
da floresta.
Na caverna, Brenda está ansiosa para nos levar adiante, para o
alto do promontório rochoso de onde se vê a Ilha Santa e, ao lon¬
ge, as Ilhas Fame, famosas pelas façanhas celtas. Quando chegamos
ao topo, o vento do mar do Norte nos atinge com força, e sei que
Brenda quer voltar logo para HettonHall. Glandion gostaria de ficar
mais tempo, mas, sem o carro de Brenda, a caminhada de volta seria
consideravelmente longa. Resolvo seu dilema explicando que pla¬
nejo caminhar algum tempo pelas trilhas no monte e depois ficarei
na caverna. Glandion resolve voltar com Brenda, uma decisão que
acolho com prazer, pois neste momento anseio por solitude.
Eles se vão e eu realmente caminho pelo monte observan¬
do o mar do Norte. O pico está literalmente coberto de urze
até onde a vista alcança. Ouvi histórias sobre “a urze nas monta¬
nhas”, mas nada me prepara para a beleza pura de seu esplendor
roxo. Várias vezes sinto-me obrigado a parar, ajoelhar e observar
a flor delicada em forma de sino que a urze produz. Há milhões
e milhões dessas flores e essa quantidade me dispersa, de modo
que olhar de perto uma planta ou mesmo um pequeno botão me
ajuda a absorver seu encanto.
Finalmente, chego à caverna. Estou completamente só; ne¬
nhum turista ou visitante perturba meu momento aqui. De iní¬
cio, exploro os aspectos físicos da caverna: o granito cinzento co¬
berto por musgos, samambaias c exuberantes flores cor-de-rosa
ao longo de suas paredes, a cruz artcsanal simples numa fenda na
rocha. Há grafites na caverna, mas grafites britânicos adequados
— em sua maioria datas habilmente gravadas na rocha. As datas
Entrando na experiência

mais antigas estão excessivamente gastas para eu conseguir ler,


mas anoto algumas das mais recentes —
isto é, recentes para os
padrões da história britânica... 1818 David Doucle... 1819 W. H.
W... 1849... 1861... 1890.
No entanto, não cheguei até aqui para explorar a caverna, mas
para orar. Trouxe na mochila equipamento suficiente para passar a
noite; logo cedo, contudo, soube que vários membros da comunida- -
de se reuniriam na caverna durante a noite e é de se esperar que eu
me junte a eles. Por isso, meu tempo aqui é necessariamente mais
curto do que eu esperava. Ainda assim, tenho muito tempo e espaço
para fazer a oração de Dag Hammarskjõld:

Dá-me um espírito puro — para que eu te possa ver!


Dá-me um espírito humilde — para que eu te possa ouvir!
Dá-me um espírito amoroso — para que eu te possa servir!

Dá-me um espírito fiel para que cu possa permanecer em ti!4

A oração de Hammarskjõld leva-me à minha própria experiên¬


cia de oração meditativa.
Passaram-se quatro dias desde os terríveis acontecimentos
de Onze de Setembro, quando torres e fortalezas caíram. Minha
mente repete vez após outra as imagens insuportáveis de aviões
comerciais transformados em mísseis devastadores e das Torres
Gêmeas, primeiro em chamas e, depois, desmoronando, levando
milhares à sepultura.
Neste momento-chave da história americana, estou longe...
longe numa costa distante, longe do meu país, da minha família, dos

4
HAMMAKSKJõLD, Dag. Markings. Trans. Leif Sjõberg and W H. Auden.
New York: Ballantine, 1993. p. 83. Versão em português disponível em:
<http://tribodcjacob.blogspot.com/2009/09/oracao-de-dag-harnmar-
skjold.htmI>. Acesso em: 16 mar. 2011.
SANTUáRIO DA ALMA

amigos e dc concidadãos. E, apesar de estar longe, também estou lá...


lá em Manhattan e em Washington. Também sinto dor, angústia e
profunda descrença.
A justaposição das cenas dc horror passando na minha men¬
te e a silenciosa serenidade da caverna dc Cutiberto é surreal. Penso
como o mal ostensivo, uma vez manifesto, produzirá, por sua própria
_ natureza, mais mal. Por terríveis que sejam as cenas dos últimos
92 dias, pode ser apenas o começo. Neste momento, o mal desenfreado
parece tão poderoso, tão esmagador. O que eu... (ou qualquer um...)
posso orar numa hora dessa? Apenas o clamor atemporal do coração:
Kyrie eleison; Senhor, tenha misericórdia.
Este cenário pastoril, esta caverna silenciosa, parece muito dis¬
tante do terror de aço retorcido e incandescente, de famílias subi¬
tamente separadas, de pais e mães que nunca voltarão para casa, de
choros angustiados e olhares incrédulos. Então, eu me lembro de
que, há muito tempo, durante o reinado de terror dos vikings, foi
exatamente para esta caverna que muitos fugiram, carregando consi¬
go o corpo de Cutiberto, na esperança de preservá-lo da profanação.
De repente, sem aviso, vilas inteiras foram arrasadas, homens aca¬
baram massacrados, mulheres foram estupradas e crianças termina¬
ram sendo levadas como escravas. Este lugar também conheceu os
horrores do mal bruto. De fato, “não há esconderijo aqui embaixo”.5
Então, bem no meio da minha meditação, escuto um som de
esperança, um som tão inesperado que me assusta. É o canto de uma
cotovia. Ouvi isso mesmo? Esta não é a estação do ano nem o lugar
em que eu esperaria ouvir uma cotovia. Mas lá está de novo, o tri¬
nado melodioso, inconfundível e claro. Tão simples, tão claro, tão
forte. A ave canta para mim a beleza, a esperança, um futuro além de
todo o mal e toda a destruição. Talvez seja, e pela fé assumo que seja,

5
“There’s No Hiding Place Down Here” é uin negro spiritual tradicional,
compilado em 1907. [N. do T.)
Entrando na experiência

uma palavra de encorajamento vinda do coração amoroso de Deus.


E, assim, a canção da cotovia me libera para começar a orar a fim de
que o oceano de escuridão que nos parece engolir hoje venha a ser,
no tempo c no modo de Deus, subjugado pelo oceano muito maior
da luz c da vida que vem de Deus.
Assim seja. Amém.

93
PARTE III

Lidando com as dificuldades diárias


Descansa, ó alma: eis o Senhor ao lado;
Paciente leva, e sem queixar-te a cruz.
Deixa o Senhor tomar de ti cuidado:
Ele não muda, o teu fiel Jesus!
Prossegue, ó alma: o Amigo celestial
Protegerá teus passos no espinhal!
— KATHARINA VON SCHLEGEL’

Como cu amo a tua lei!


Medito nela o dia inteiro.
— Salmos 119.97

‘ SCHLEGEL, Kathcrina von. “Be still my soul”. In: Hymns for the Family
ofGod. Nashville: Paragon, 1976. p. 77. (“Descansa, ó alma”. Trad. Isaac
Nicolau Salum. In: Salmos e hinos. 5. ed. Rio de Janeiro: Igreja Evan¬
gélica Fluminense, 1975.]
Capítulo 7
Mentes distraídas

Neste exato momento seus pensamentos estão


zumbindo como um enxame de abelhas. A redução
deste complexo agitado a uma unidade parece uma
tarefa além de toda força humana. Mas a situação
não é tão desesperadora quanto se supõe. Tudo
acontece apenas na periferia da mente, onde ela toca
o mundo das aparências e reage a ele. No centro há
uma quietude que nem você é capaz de romper.
— Evelyn Underhill'

Em 1994, Sven Birkerts escreveu The Gutenberg Elegies [Elegias


a Gutenberg], em que previu que em cerca de uma década a revo¬
lução eletrónica teria mudado nosso mundo, deixando-o irreconhe¬
cível: “Nadaremos em impulsos e dados — um microchip nos fará
ofertas praticamente irrecusáveis”2.

' UNDERHILL, Evelyn. Practical Mysticism. New York: E. P. Dutton,


1915. p. 37-38.
2
BIRKERTS, Sven. The Gutenberg Elegies: The Fate of Reading in an
Electronic Age. New York: Farrar, Straus and Giroux, 1994. p. 193.
SANTUáIIIO DA ALMA

Hoje sabemos como sua previsão era precisa. Clicamos em uma


infinidade de links de internet, executamos multitarefas em diferentes
mídias, escrevemos um blog diariamente, checamos nosso e-mail de
hora cm hora, enviamos mensagens de texto a amigos e outras pessoas
ao longo do dia.Estudos de ncurocicncia3 mostram que as vias neurais
do nosso cérebro estão se ajustando a essa nova realidade, de maneira
que nossa capacidade de atenção contínua está diminuindo.
98
Claro, em toda parte escutamos as pessoas reclamando do
mundo conectado — como a vida ficou complicada e como isso
é frustrante —sem deixar, contudo, de utilizar cada invenção tecno¬
lógica disponível. A verdade é que apreciamos nossa glutonaria
tecnológica. Tudo é muito interessante e estimulante.
Na verdade, a cultura da internet é só uma questão superficial.
Nosso problema é bem mais essencial. Essa questão mais básica, mais
profunda, pode ser resumida cm uma palavra: distração. A distração é
o principal problema espiritual dos nossos dias. A internet, é claro,
não causou esse problema; as pessoas já eram distraídas bem antes
de seu surgimento. Blaise Pascal observou: “A única causa da infe¬
licidade do homem é que ele não sabe ficar quieto em seu quarto”.4
O fato de nossas agendas estarem lotadas e de sermos constante¬
mente bombardeados por múltiplos estímulos apenas revela que
sucumbimos à mania moderna que nos mantêm perpetuamente
distraídos. No momento em que procuramos entrar no silêncio

1
Veja Nicholas CARR, The Shallows: What the Internet Is Doing to
Our Brains (New York: W. W. Norton, 2010). Se você está interessado,
também pode consultar Eric R. KANDEL, In Search of Memory: The
Emergence of a New Science of Mind; Norman DOIDGE, The Brain
That Changes Itself; e David J. BULLER, Adapting Minds.
4 PASCAL, Blaise. The Pensées. Trans. Thomas Krailsheimer. New York:
Penguin, 1965. p. 37.
Mcnles tlislrafilas

criativo da oração mcditativa, cada assunto premente clama por nos¬


sa atenção. Temos um coração barulhento.
Infelizmcnte, nossos cultos cristãos de adoração não ajudam
muito nesse sentido. Hoje, em sua maioria, eles se tornaram uma
grande distração bem produzida. A adoração que deveria levar-nos
à presença de Deus tornou-se pouco mais que uma forma organi¬
zada de nos afastar da presença divina. Não é de admirar que, para
começar a aprender a oração meditativa, precisemos de ajuda para 99

controlar nossa mente distraída.

Pequenos começos
O primeiro conselho que eu daria em relação a uma mente
distraída é que devemos manter a calma com nós mesmos. Não
desenvolvemos um coração barulhento da noite para o dia; além
disso, levará tempo e paciência para aprendermos uma concentra¬
ção sincera. Dietrich Bonhoeffcr oferece um conselho sábio exata-
mente sobre esse assunto:

A primeira coisa a lembrar 6 não ficar impaciente consigo mesmo.


Não se intimide cm desespero pelo vaguear dos seus pensamen¬
tos. Apenas cada dia e espere pacientemente. Se seus
sente-se a
pensamentos ficam fugindo, não tente restringi-los. Não há pro¬
blema em deixá-los correr para seu destino; depois, entretanto,
incorpore às suas orações o lugar ou a pessoa para o qual eles se
desviam. Assim você retomará de onde parou, e os minutos de tais
digressões não serão desperdiçados nem atrapalharão sua oração.5

O murmúrio interior que experimentamos no momento em


que tentamos ficar quietos e ouvir o Senhor sem dúvida nos diz algo
sobre nossa própria distração. Não é errado dedicar todo o tempo de

5
BONHOEFFER, Dietrich. The Way to Freedom. New York: Harper &
Row, 1966. p. 60-61.
SANTUáRIO DA ALMA

nossa meditação para aprender sobre nosso caos interior. Além dis¬
so, às vezes precisamos ser firmes, ainda que gentis, falando palavras
de paz à nossa mente apressada a fim de instruí-la em um caminho
mais disciplinado. Muitas vezes tenho à mão uma lista de coisas a
fazer e simplesmente anoto as tarefas que estão desviando minha
atenção até que todas tenham vindo à tona. Aí os pensamentos agi¬
tados podem acalmar-sc e eu consigo ficar tranquilo.
100
Se um assunto em particular parece intrometer-se em nossa
meditação, podemos perguntar ao Senhor se essa intromissão tem
algo a nos ensinar. Isto é, favorecemos o intruso, tornando-o objeto
da nossa meditação.
Agora, se precisamos tratar com seriedade o problema de uma
mente distraída, devemos começar nossa preparação antes da me¬
ditação propriamente dita. Nas circunstâncias contemporâneas, é
importante encontrar meios para crucificar o espírito da distração.
Uma forma inicial pode ser praticar um sabbath de todas as mídias
eletrónicas. Sugiro um jejum de todos os dispositivos digitais uma
hora por dia, um dia por semana, uma semana por ano. Veja se isso
ajuda a acalmar sua distração interna. Tenho uma amiga que, quando
lidera retiros, pede aos participantes que entreguem (e não apenas
desliguem) seus celulares, blackberries e iPads. Ela diz que, quando
faz esse pedido, as pessoas olham para ela como se tivesse acabado
de lhes pedir que cortem o braço direito.

Palavras que dançam de beleza

Quero oferecer um conselho que pode a princípio parecer es¬


tranho, mas serve para disciplinar a mente distraída. Estou falando
da leitura seletiva de poesias. Três coisas tornam a poesia especial¬
mente útil para acalmar nossa mente.

Primeiro, a poesia nos surpreende com sua economia de pa¬


lavras e beleza de linguagem. Isso é incomum em nosso mundo
repleto de palavras, no qual publicitários e políticos constantemente
Mentes distraídas

prostituem a linguagem cm troca de vendas ou votos. Palavras es¬


colhidas com cuidado c escritas com beleza nos desaceleram e nos
fazem concentrar a atenção cm assuntos essenciais.
Segundo, se você sc parece um pouco comigo, simplesmente
não entende o que o poeta está dizendo na primeira leitura. Isso nos
força a parar, voltar e ler as palavras de novo. E de novo. Sc formos
pacientes, nossa mente agitada lentamcnte se tornará envolvida com
101
o poema. Frequentemente um poema tem duplo sentido e levamos
um tempo para ultrapassar o texto da superfície e ir mais fundo, até
chegar à questão que o poeta objetiva. Finalmente, quando come¬
çamos a entender o texto, percebemos que toda a agitação da nossa
mente acalma consideravelmente.

Terceiro, a mente com frequência fica fascinada pela metáfora


do poema. A metáfora, como lhe é peculiar, parte de duas coisas
bem diferentes para mostrar um ponto em que elas são semelhan¬
tes. Estamos empregando uma metáfora quando chamamos de
mouse [rato] aquele pequeno e acinzentado dispositivo de compu¬
tador que usamos todo dia. Ou pense em Robert Frost, que com¬
para nossa vida a uma jornada: “A estrada divergiu naquele bosque
— e eu segui pela que mais ínvia me pareceu, e foi o que fez toda a
diferença”.6 Nossa mente se fascina diante da imagem de bifurca¬
ção na estrada, e isso nos faz concentrar a atenção enquanto pensa¬
mos nas escolhas que temos de fazer na vida. Assim a metáfora no
poema ajuda a centrar uma mente distraída.
Gostaria de recomendar brevemente três poetas: os clássicos
John Donne e George Herbert e um poeta contemporâneo chama¬
do Robert Siegel. É lógico que você pode ter o seu poeta favorito, ou
talvez você mesmo goste de escrever poesia.

6
FROST, Robert. The Road not Taken. Mountain Interval, várias edições.
[A estrada não trilhada. Trad. Renato Suttana. Disponível em <http://
www.arquivors.com/rfrost.htm>. Acesso em 17 mar. 2011, 21:01:12].
SANTUáRIO IJA ALMA

John Donne (1573-1631) é provavelmente o maior dos poe¬


tas metafísicos do século XVII. Nós o conhecemos pelas famosas
linhas: “Nenhum homem é uma ilha, inteiramente isolado [...]. E
por isso não perguntai: Por quem os sinos dobram; eles dobram por
vós”.7 Gosto dele em especial por suas imagens vivas e emoções con¬
tundentes. Considere este fragmento de seus Holy Sonnets [Sonetos
de Meditação]:

Golpeia meu coração. Deus trino, pois tu


Apenas bates, sopras, lustras e procuras concertar;
Para que eu possa mc erguer e ficar de pé, derruba-me; e dobra
Tua força para quebrar, arrebentar, queimar e fazer-me novo.8

George Herbert (1593-1633) era contemporâneo de Donne.


Escreveu um livro excelente sobre formação espiritual no contexto
pastoral, The Country Parson [O pároco do campo]. Mas, em meio a

toda a mediocridade de sua vida paroquial nascimentos e mortes,
casamentos desfeitos e pais ansiosos, dezenas de visitas pastorais e

incontáveis xícaras de chá Herbert também escrevia poesias mais


que surpreendentes. Seus poemas têm algo que acalma nossa mente
e nosso coração. Você pode ter uma ideia com uma pequena seleção
de sua vasta coletânea de poemas chamada The Temple [O templo]:

Se como uma Flor desabrocha e morre,


Desejavas oferecer-me para algum bem,
Antes que eu fosse no extremo da geada
Congelado em botão.9

7
DoNNE.John. Meditation 17. Várias edições. [Meditações. São Paulo:
Landmark, 2007.]
8
DoNNE.John. Holy Sonnet 14. Várias edições.
9
HERBERT, George. The Temple. Várias edições.
Mciilcs distraídas

Robert Siegel é um maravilhoso poeta da atualidade. Já está


sendo comparado a Keats c outros. Não estou qualificado para co¬
mentar tais assuntos, mas me sinto profundamente atraído por sua
habilidade cxccpcional de ver, no mundo natural, pequenas epifa¬
nias da vida comum. Ele escreve sobre todos os tipos de assunto,
mas, quando se volta para a ordem criada, acontece algo misterio¬
so, quase místico. Considere este poema, que dá título a seu mais
novo livro: 103

Chamas amarelas tremulam


sobre o alimentador.
Um Pentecostes de pintassilgos.10

Alguns chamam a poesia de “linguagem de Deus”. Eu entendo


por quê.

Uma meditação simples, para focar a mente

É quase um sacrilégio passar de palavras que foram lapidadas,


cinzeladas e polidas para algo tão prosaico como um exercício de
meditação. Entretanto, quero fomcccr-lhc uma ferramenta simples
para lidar com a mente distraída. Por falta de nome melhor, chamo
esse exercício de meditação de “saca-rolhas”.11
Encontre um local confortável que seja livre de distrações. Pode
ser sua cadeira preferida. Em sua imaginação talvez você queira co¬
locar Jesus na cadeira à sua frente. Ele sorri e acena.

10
SIEGEL, Robert. A Pentecost of Finches. Brcwste: Paraclete, 2006. p. 68.
Outros livros de poesia de Robert Siegel incluem In a Pig’s Eye e
The Waters Under the Earth.
11 Em Celebração da disciplina, descrevo outro exercício de medita¬
ção com propósito semelhante, chamado simplesmente “palmas para
baixo, palmas para cima” (p. 63). Você, lógico, pode ficar à vontade
para criar seus próprios exercícios de meditação.
SANTUáRIO DA ALMA

Comece lendo ou recitando em sua mente uma das passagens


bíblicas preferidas, talvez o Pai Nosso ou o salmo 23. Imagine que há
rolhas cm todos os dez dedos das mãos e dos pés e, quando estiver
pronto, saque essas rolhas e assista à cena enquanto um líquido turvo
escorre para um ralo no meio da sala. O líquido representa todas as
distrações e inquietações que ocupam sua mente. Os arrependimen-
- tos de ontem, as responsabilidades de hoje, os medos de amanhã. En¬
quanto o líquido escorre, você observa o nível baixar, babar e babar
até que tudo se vai. Então você recoloca as rolhas, e Jesus, sorrindo,
se aproxima, tira o tampo da sua cabeça e começa a enchê-lo com um
líquido brilhante e cristalino. O líquido representa a Palavra de Deus,
que preenche você de tal forma que não há em você nenhum espaço
em lugar algum para distração de nenhum tipo. Seu corpo está cheio
da Palavra de Deus. Sua mente está cheia da Palavra de Deus. Seu
coração está cheio da Palavra de Deus. Todas as distrações se foram, e
nessa postura você ouve a Palavra do Senhor.
François Fénelon escreveu:

Deus não para de falar, mas o barulho das criaturas lá fora, e


da nossa paixão aqui dentro, nos ensurdece e cessa nosso
ouvir. Devemos silenciar cada criatura, devemos silenciar a
nós mesmos, para ouvir no silêncio profundo da alma inteira
a voz inefável do cônjuge. Devemos curvar a orelha, porque é
uma voz gentil e delicada, ouvida apenas por aqueles que já não
ouvem qualquer outra coisa.12

Ah, que você possa,que eu possa, não ouvir nenhuma outra coisa.

12 FéNELON, François. Christian Perfection. Minneapolis: Bethany


House, 1975. p. 155-156.
Capítulo 8
Como um leão que ruge

Há dois erros equivalentes e opostos em que nossa


raça pode cair no que diz respeito aos demónios.
Uma é não acreditar cm sua existência. A outra 6
acreditar c sentir um interesse excessivo e doentio
por eles. Os mesmos demónios ficam igualmente
satisfeitos pelos dois erros e, portanto, contemplam
um materialista e um mágico com o mesmo prazer.

— C. S. LEWIS'

Há entidades que residem em nosso universo e vão bem além


do que podemos ver, tocar e cheirar. Há entidades espirituais imen¬
sas. Deus, é claro. E anjos, mensageiros de Deus. A Bíblia é na ver¬
dade um livro cheio de anjos. Por favor, não estou referindo-me a
seres brancos e fofos com túnicas esvoaçantes e asas de penas. Tam¬
bém não me refiro aos nus infantis dc Rafael ou, pior ainda, aos

LEWIS, C. S. The Screwtape Letters. New York: Macmillan, 1980.


p. 3. (Cartas de um diabo a seu aprendiz. São Paulo: Martins Fontes,
2009.).
SANTUáRIO DA ALMA

querubins gordinhos dos clip arts dc hoje. Não, na Bíblia, quando


um anjo entra em cena, primeiro precisa acalmar o pânico dos hu¬
manos. Quando o anjo Gabriel apareceu a Zacarias, o relato diz que
este “perturbou-se e foi dominado pelo medo” (Lucas 1.12). Além
disso, a população de anjos é evidcntcmcntc enorme, pois Apoca¬
lipse diz que em torno do trono de Deus estão “milhares de milha-
_ res e milhões de milhões” de anjos (Apocalipse 5.11).
ui’.
Anjos são, então, seres espirituais dc poder considerável, per¬
tencem a uma ordem maior que a dos seres humanos, mas, como
eles, são dotados de livre-arbítrio e não estão imunes à tentação e
ao pecado. Assim, Satanás e seus demónios entram em cena. Eles
são anjos cujo líder é Satanás —
que por abuso de seu livre-
-arbítrio caíram e se tornaram inimigos de Deus. E nossos. Satanás
recebe muitos nomes na Bíblia: o Diabo, Belzebu, o príncipe deste
mundo, o príncipe do poder do ar, entre outros (Mateus 10.25,
João 14.30, Efésios 2.2).
Usei uma das descrições bíblicas de Satanás como título deste
capítulo. Pedro dá a descrição: “O Diabo, o inimigo de vocês, anda
ao redor como leão, rugindo e procurando a quem possa devorar”
(1Pedro 5.8). Assim, fica claro que a maldade diabólica de Satanás e
de seus servos é algo a ser considerado.
Mas devemos lembrar que Satanás não é coigual a Deus. Satanás
é um ser criado, um anjo caído. Não tem poder supremo. Tèm conhe¬
cimento limitado. C. S. Lewis disse bem: “Satanás, o líder ou ditador
dos diabos, não é o ente oposto a Deus, mas, sim, ao arcanjo Miguel”.2
É verdade, Satanás é “um leão que ruge”, mas quero lembrar
você dc que há outro Leão que é maior do que Satanás: Jesus, “o
Leão da tribo dc Judá, a Raiz de Davi” (Apocalipse 5.5). Esse é o
Leão que venceu a morte, o pecado e o inferno. João declara: “Para

2 LEWIS, C. S. The Screwtape..., p. vii.


Como um leão que ruge

isso o Filho dc Deus se manifestou: para destruir as obras do Diabo”


(ljoão 3.8). E de novo: “Aquele que está em vocês d maior do que
aquele que está no mundo” (ljoão 4.4). Tiago laconicamentc nos
admoesta: “Resistam ao Diabo, c ele fugirá de vocês” (Tiago 4.7).
Digo tudo isso para que você esteja ciente de Satanás e suas
obras diabólicas de destruição, mas também para que você não te¬
nha medo excessivo de suas obras. Essa consciência é importante 107
à medida que nos aprofundamos cm nosso entendimento e nossa
experiência de oração. Satanás e seus servos procuram a nossa des¬
truição e nos atacarão até mesmo em momentos de oração... talvez
especialmente em momentos de oração. Dessa forma, tudo o que
pudermos aprender sobre Satanás e seus caminhos de engano nos
fortalecerá para não sermos desviados do caminho.

Aprendendo com Jesus

Jesus é o Mestre da vida e seu conhecimento experiencial de


Satanás e de suas táticas pode instruir-nos de diversas maneiras. A
passagem principal é a que relata os quarenta dias de Jesus no de¬
serto. Naquele único evento vemos uma vida pondo em prática a
habilidade em derrotar o mal.
Notamos no início que é o Espírito — não Satanás — que leva
Jesus ao deserto. O Espírito é responsável por tudo o que ocorre.
Jesus jejua por quarenta dias c só então Satanás tem permissão para
chegar a ele. O jejum era para o fortalecimento espiritual do Mestre,
e o Espírito não permite que Satanás se aproxime de Jesus até que
este esteja em seu momento mais forte.

Deus permite que o maligno venha a Jesus com três grandes


tentações —
tentações com as quais Jesus sem dúvida havia lidado
mais de uma vez na carpintaria e as quais enfrentaria novamente ao
longo de seu ministério como rabino. Mas essas não são tentações
SANTUáIUO IJA ALMA

apenas pessoais; são também tentações para que Jesus interfira nas

três instituições sociais mais proeminentes da época a económica,
a religiosa c a política.3
A tentação económica procura induzir Jesus a transformar pe¬
dras em pão — Jesus, o glorioso padeiro dos milagres, providencia¬
ria “pão maravilhoso” para si mesmo c para as massas. Que tentação
em um mundo faminto! Mas Jesus sabe como essas soluções são
108
breves e assim rejeita a opção de viver só do pão.
A tentação religiosa visa fazer Jesus pular do ponto mais alto do
templo e, ao ter anjos segurando-o no ar, receber o selo de aprova¬
ção de Deus em seu ministério. O resgate divino dramático dentro
dos limites sagrados do templo certamente garantirá apoio leal da
hierarquia sacerdotal. Nessa ocasião, Satanás até reforça seu apelo
citando as Escrituras. Mas Jesus vê a tentação de Satanás como ela
de fato é e desafia diretamente a religião institucionalizada não
apenas aqui no deserto, mas em todo seu ministério

sempre
que ela se torna idólatra ou opressiva.
O objetivo final de Satanás é revelado em sua terceira tenta¬
ção, a promessa de “todos os reinos do mundo e o seu esplendor”
se tão somente Jesus se prostrar e o adorar (Mateus 4.8-10). Essa
tentação no topo da montanha representa a possibilidade de deter a
força política mundial — não apenas a força coerciva, mas também
a glória e a aclamação de ocupar o ponto mais alto do mundo em
influência e status. Satanás sabe que isso se encaixa perfeitamen¬
te nas esperanças messiânicas da época: um Salvador que acabará
com a opressiva ocupação romana. Mas Jesus sabe que dominação

3
Veja um aprofundamento dessa linha dc pensamento cm Donald B.
KRAYBILL, The Upside-Down Kingdom (Scottdalc: Herald, 1978).
V. também: RichardJ. FOSTER, Rios de água viva: práticas essenciais
das seis grandes tradições da espiritualidade cristã (São Paulo: Vida,
2008). p. 21-46.
Como um leão que ruge

e força não são os meios de Deus agir. Ele rejeita o poder coercivo
porque pretende demonstrar um novo tipo de poder, uma nova
maneira de governar. Servir, sofrer, morrer —
essas são as formas
messiânicas do poder de Jesus. Portanto, Jesus resiste bravamente:
“Retire-se, Satanás! Pois está escrito: ‘Adore o Senhor, o seu Deus,
e só a ele preste culto’ ” (Mateus 4.10).
Naqueles quarenta dias no deserto, Jesus rejeita a esperança po¬
109
pular judaica de um Messias que alimentará os pobres, desfrutará a
aprovação celestial miraculosa e se livrará das nações opressoras. Ao
fazer isso, ele reduz a influência das três grandes instituições sociais
de seus dias... c dos nossos — a economia exploradora, a religião ma¬
nipuladora e a política coerciva. Nós também precisamos aprender a
derrotar Satanás exatamente nesses domínios.
E há mais. OsEvangelhos contam muitas histórias de como Jesus
confronta o mal em várias formas, não apenas expulsando demónios,
mas curando doenças de todos os tipos e administrando o remédio do
evangelho a mentes obscurecidas. “Jesus foi por toda a Galilcia [...],
pregando as boas-novas do Reino e curando todas as enfermidades
e doenças entre o povo. Notícias sobre ele se espalharam por toda
a Síria, e o povo lhe trouxe todos os que estavam padecendo vários
males e tormentos: endemoninhados, epiléticos e paralíticos; e ele os
curou” (Mateus 4.23,24). As palavras do apóstolo Paulo certamente
são verdadeiras: emJesus Deus “nos resgatou do domínio das trevas e
nos transportou para o Reino do seu Filho amado, em quem temos a
redenção, a saber, o perdão dos pecados” (Colossenses 1.13).
No capítulo 10 de Lucas temos uma visão privilegiada da derro¬
ta do poder satânico. Jesus havia enviado primeiro os 12 e depois os
70, com a seguinte instrução: “Curem os doentes que ali houver c
digam-lhes: O Reino de Deus está próximo de vocês” (Lucas 10.9).
Eles retornam deslumbrados, dizendo: “Senhor, até os demónios se
submetem a nós, em teu nome” (Lucas 10.17). E, seguro de que o
SANTUáRIO DA ALMA

poder de derrotar a maldade demoníaca é transferível a discípulos


comuns, Jesus exclama: “Eu vi Satanás caindo do céu como relâm¬
pago” (Lucas 10.18).
Jesus está aqui vendo os poderes satânicos sendo esmagados.
Também é uma visão profética do último dia, quando aquele que
é chamado Fiel e Verdadeiro, montado num cavalo branco de ba¬
talha, irá adiante vencendo e para vencer, c “em seu manto e em
no sua coxa está
escrito este nome: REI DOS REIS E SENHOR DOS
SENHORES” (v. Apocalipse 19.11-16). Naquele dia da vitória
completa e final, Satanás e todos os seus servos serão derrotados de
uma vez por todas: “O Diabo [...] foi lançado no lago de fogo que
arde com enxofre” (Apocalipse 20.10).

Considerações práticas

Agora, quero voltar nossa atenção para diversos assuntos práti¬


cos a respeito das forças demoníacas e da vida de oração. Primeiro,
estamos todos cientes do grande interesse hoje por toda uma série
de práticas ocultas: bruxaria, astrologia, a busca por espíritos guias,
quiromancia, leituras de tarô, tabuleiros Ouija e adivinhações de to¬
dos os tipos. Odeio ser tão direto sobre o assunto, mas essas práticas
são proibidas aos seguidores de Cristo. Forças espirituais demonía¬
cas podem influenciar e até mesmo habitar tais práticas.
A comunidade israelita primitiva enfrentou muitas dessas mes¬
mas práticas nas nações que a rodeavam, e Deus foi bem direto sobre
o assunto: “Não permitam que se ache alguém entre vocês que quei¬
me em sacrifício o seu filho ou a sua filha; que pratique adivinhação,
ou se dedique à magia, ou faça presságios, ou pratique feitiçaria ou
faça encantamentos; que seja médium, consulte os espíritos ou con¬
sulte os mortos” (Deuteronômio 18.10,11). Lembre-se quando o rei
Saul consultou a médium em En-Dor. Ele deparou com entidades
espirituais para as quais não estava preparado, c o desfecho da histó¬
ria não foi nada bom (ISamuel 28).
Como um leão que ruge

Segundo, cm orações por endemoninhados aconselho muita cau¬


tela. Com frequência esses cenários estão abarrotados daqueles que se
julgam “exorcistas” c se precipitam para o santo dos santos da alma
de outra pessoa. Tais exorcistas muitas vezes estão intoxicados com os
fenômenos espirituais c geralmcnte não têm nenhuma compaixão real
por aquele por quem estão orando. Se formos movidos por compaixão
genuína, entraremos na ponta dos pés e ouviremos em oração. Sc uma
111
pessoa tem preocupação ou temor com respeito à influência demonía¬
ca, podemos fazer uma simples oração de fé no amor de Jesus e repu¬
diar esse espírito perturbador, seja ele real seja imaginário, entregando-
-o nas mãos de Jesus. Depois oramos pedindo que a luz e o amor de
Jesus Cristo preencham todos os espaços vazios da pessoa.4
Terceiro, não devemos dar muito crédito a Satanás. Descobri
que fazemos muito bem o trabalho de nos derrotar sem nenhuma
ajuda de Satanás. Certa vez uma querida conhecida minha, tomada
por medos, traumas incontroláveis e influências espirituais malignas,
procurou um bom amigo meu, que era bem treinado no ministério
compassivo para com os endemoninhados. Ele ouviu em silêncio a
estranha história daquela mulher. Por fim colocou suas mãos na ca¬
beça dela de modo sacramental e orou em silêncio. Sem gritos nem
ordens firmes, exerceu simplesmente um ministério de oração reple¬
to de misericórdia. A mulher suspirou e se acalmou... e a cura entrou
em sua alma. Mais tarde meu amigo simplesmente explicou: “Ah, ela
tinha uma ferida gigante c um demónio minúsculo”.
Quarto, recomendo orações de proteção para tudo o que faze¬
mos e sempre que oramos. Entidades espirituais proliferam nesta

* Sc você quiser aprofundar-sc nesse assunto, sugiro: Agnes SANFORD,


The Healing Gifts of the Spirit (New York: J. B. Lippincott, 1966)
(Os dons de cura do Espírito Santo. São Paulo: Paulinas, 1992] e
John WiMDEK, Power Healing (San Francisco: Harper & Row, 1987).
SANTUáRIO IM ALMA

nossa ordem criada e nem todos são benevolentes. Satanás e seus


servos buscam nossa queda e destruição. Assim pedimos à Santa
Trindade e a todas as hostes celestiais que nos cerquem e nos guar¬
dem de todo mal: físico, espiritual, emocional. Aqui está uma ora¬
ção de proteção que aprecio muito c que vem da tradição celta de
Lindisfarne, no nordeste da Inglaterra:

112 Cerca-me, Senhor,


mantém a proteção perto
e o perigo longe.

Cerca-me, Senhor,
mantém a luz perto
e a escuridão longe.

Cerca-me, Senhor,
mantém a paz no interior,
mantém o mal fora.

Em nome do Pai,
do Filho
e do Espírito Santo. Amém.5

Com frequência oro por proteção de uma forma profunda¬


mente cristocêntrica:

Ó Senhor, oro para que tu...


me cerques com a luz de Jesus Cristo,
me cubras com o sangue de Jesus Cristo e
me seles com a cruz de Jesus Cristo.
Por isso oro em nome de Jesus Cristo.
Amém.

5
Celtic Daily Prayer. San Francisco: HarperSanFrancisco, 2002. p. 33.
Esta oração de proteção foi extraída de Aidan Compline.
Como um leão que ruge

Em tudo isso, nunca precisamos temer. O Deus onipotente


Pai, Filho e Espírito Santo — irá cercar-nos, proteger-nos e guar¬

dar-nos de toda má influência. Podemos contar com isso.

Uma palavra final

Quero encerrar este capítulo retomando a passagem da primei¬


ra epístola de Pedro de onde vem a frase “como um leão que ruge”.
113
Pedro certamente não mede palavras ao falar sobre as artimanhas do
Diabo e a realidade do sofrimento humano. Mas a mensagem prin¬
cipal desta passagem está firmemente fixada na grande realidade do
poder soberano de Deus sobre todas as coisas. Essa é a mensagem
que precisa ganhar raízes profundas em nosso coração e em nossa
mente. Ouça:

Portanto, humilhem-sc debaixo da poderosa mão de Deus, para


que ele os exalte no tempo devido. Lancem sobre ele toda a sua
ansiedade, porque ele tem cuidado de vocês.
Estejam alertas e vigiem. O Diabo, o inimigo de voccs, anda ao
redor como leão, rugindo e procurando a quem possa devorar.
Resistam-lhe, permanecendo firmes na fé, sabendo que os
irmãos que vocês têm em todo o mundo estão passando pelos
mesmos sofrimentos.
O Deus de toda a graça, que os chamou para a sua glória etema
em Cristo Jesus, depois de terem sofrido durante um pouco de
tempo, os restaurará, os confirmará, lhes dará forças e os porá
sobre firmes alicerces. A ele seja o poder para todo o sempre.
Amém. (IPedro 5.6-11)
Capítulo 9

Uma miscelânea de perguntas

Entramos de joelhos na saleta sagrada. Aquietamos


nossos pensamentos e palavras e dizemos “Senhor,
ensina-nos a orar”. Dá-nos teus santos desejos e
deixa nossa oração ser o próprio eco da tua vontade.
— A. B. SIMPSON1

A cultura contemporânea é ótima para nos treinar em quase


toda e qualquer coisa... menos em oração. Assim, quando intenta¬
mos seriamente crescer em nossa experiência da oração meditativa,
surge inevitavelmente uma profusão de perguntas. É possível que
você tenha muitas em mente agora. Portanto, neste capítulo quero
tratar as perguntas mais comuns.

Você pode dar uma definição simples e direta


de oração meditativa?

A oração em geral é a comunicação interativa que ocorre entre


Deus e nós, humanos. A oração meditativa é, especificamente, a

SIMPSON, A. B. The Life of Prayer. Harrisburg, Penn.: Christian,


1967. p. 9.
SANTUáRIO DA ALMA

parte auditiva dessa comunicação. Levamos mente e coração à pre¬


sença de Deus e então ouvimos o Senhor.

Como começar se eu nunca fiz isso antes?

Sugiro que você comece com um versículo da Bíblia. Por exem¬


plo, Salmos 23.1: “O SENHOR é o meu pastor; de nada terei falta”.
Leia-o em espírito de oração duas ou três vezes e então espere em
116
silêncio, ouvindo qualquer coisa que o Senhor queira ensinar ou
qualquer experiência que Deus deseje dar a você. É bem direto, mes¬
mo. Estamos simplesmente aprendendo a desenvolver uma relação
dialógica com Deus — nós falamos com Deus, e Deus fala conosco.

Você pode compartilhar um pouco sobre sua experiência


em oração meditativa?

Agora mesmo estou tentando algo um pouco novo para mim,


e para fazer isso preciso primeiro encontrar uma Bíblia em que eu
não tenha feito marcações! Pego um salmo curto com não mais de 15
versículos. O salmo 29 é um bom exemplo. Faço três leituras dele.
Na primeira vez, leio em voz alta para mim mesmo, depois disso fico
quieto por alguns instantes. Na segunda leitura, uso uma caneta
marca-texto e destaco qualquer versículo ou frase que fale sobre a mi¬
nha situação. Faço isso em espírito de oração, confiando que o Senhor
concentrará minha atenção no que realmente preciso. Depois da lei¬
tura fico completamente quieto mais uma vez por alguns instantes.

Na terceira leitura, na verdade não leio o salmo todo, apenas


as passagens que marquei na segunda leitura. Enquanto leio pela
terceira vez, um único versículo ou frase geralmente se destaca, e é
a essa passagem que dedico minha atenção. No caso do salmo 29, a
frase que me atraiu foi “Adorem o SENHOR no esplendor da sua san¬
tidade” (29.2b). Anoto esse versículo ou frase em um pequeno car¬
tão que eu possa carregar comigo ao longo do dia. Mas não terminei
Uma miscelânea de perguntas

ainda. Tendo voltado minha atenção a uma passagem em particular,


sento cm silêncio para ouvir o Senhor. O que estou fazendo? Estou
esperando no Senhor. Estou atento ao Senhor. Estou olhando para
o Senhor. A parte de leitura da minha meditação deve ter tomado
15 minutos, agora o esperar em silêncio, a parte auditiva, tomará,
talvez, outros 15. É comum eu ter uma xícara de café comigo para
beber lentamente enquanto escuto. Como entre bons amigos, não é
117
preciso haver palavras. Ainda assim, procuro estar atento a qualquer
ensinamento ou experiência que o Senhor me queira trazer.

Sou mãe de um recém-nascido. É possível praticar a oração


meditativa nessas condições?

Não, não no sentido usual. Eu diria o mesmo para pais recentes.


Quem tem um recém-nascido em casa já é felizardo só de chegar ao
fim do dia! E seu sono é constantemente interrompido durante a
noite. Então sugiro que você não se aflija. O Senhor conhece o seu
coração c entende sua situação. Afinal, Deus estabeleceu a combina¬
ção mãe-bebê em primeiro lugar. Se você está amamentando, tem
uma bela imagem da transferência de vida... enquanto seu pequeni¬
no recebe vida diretamente de seu corpo, você pode sussurrar uma
oração para receber vida do Senhor. Isso basta. Em um ano ou dois,
seu bebê não precisará mais de atenção constante como agora, e você
poderá voltar a uma prática regular de oração.

Sempre que tento meditar, acabo dormindo.


Algum conselho?

É uma triste realidade que muitos vivemos sob tanta pressão emo¬
cional que, basta começarmos a aliviar a tensão, e o sono toma conta
de nós. A solução definitiva para esse problema é aprender a estar em
sintonia com nosso corpo e nossas emoções. Precisamos aprender que
alerta total e relaxamento total são estados perfeitamente compatíveis.
SANTUáRIO DA ALMA

Acho, porém, que a maioria não consegue aprender isso de primeira.


Assim, sugiro que, se você se pegar dormindo quando estiver tentan¬
do meditar, em vez de se culpar e se condenar, aceite o sono com gra¬
tidão, pois sem dúvida você precisa dele. Além disso, como observou
o Irmão Lourenço: “Aqueles que foram inspirados pelo Espírito Santo
avançam mesmo enquanto dormem”.2 No tempo certo você verá que
esse problema recuará para o segundo plano.
118

Você tem passagens preferidas da Bíblia que usa


para meditação?

Percorro toda a Bíblia; às vezes me concentro em personagens


do Antigo Testamento, às vezes nos salmos ou nos profetas, às vezes
nos atos de compaixão de Jesus, às vezes nas parábolas de Cristo,
às vezes na cruz e na ressurreição, às vezes nas epístolas, e assim
por diante. Não tenho uma parte preferida. Mas deixe-me apresen¬
passagens que compõem uma espécie de kit para iniciantes.
tar sete
Você pode separar uma semana e usar uma passagem por dia ou,
melhor ainda, meditar em uma passagem por semana e então passar
à próxima na segunda semana e assim por diante, totalizando sete
semanas de passagens para meditação. Sugiro as sete grandes passa¬
gens “Eu sou” de Jesus. Não se esqueça de incluir toda a passagem
em sua meditação.

“Eu sou o pão da vida” (João 6.35-40).


“Eu sou a luz do inundo” (João 8.12-20).
“Eu sou a porta” (João 10.1-10).
“Eu sou o bom pastor” (João 10.11-18).

2 IRMáO LOURENçO. The Practice of the Presence of God. Trans.


John J. Delaney. New York: Doubleday, 1977. p. 57. [Praticando a
Presença de Deus. Rio de Janeiro: Danprewan, 2004.]
Uma miscelânea de perguntas

“Eu sou a ressurreição e a vida” (João 11.17-27).


“Eu sou o caminho, a verdade c a vida” (João 14.1-14).
“Eu sou a videira verdadeira" (João 15.1-17).

Como posso ter certeza de que estou ouvindo


a voz de Deus?

É muito importante que a resposta a essa pergunta esteja clara


119
na sua mente. Lembre-se: Satanás empurra e condena, Deus atrai e
encoraja. E possível notar a diferença. Que fique claro na sua men¬
te o grande ensinamento do Novo Testamento sobre a semelhança
entre Deus e Cristo... Deus é como Jesus. Então, conquiste intimi¬
dade com Jesus, primeiro pelos registros dos Evangelhos e depois
por suas experiências pessoais. Apegue-se às palavras de Jesus, de
que ele é o bom pastor c de que suas ovelhas “conhecem a sua voz”
(João 10.4). Deus sempre irá direcioná-lo para aquilo que dá vida,
para as coisas que são verdadeiras, nobres, corretas, puras, amáveis
e de boa fama (Filipenses 4.8).

No livro Does God Speak Today? [Deus fala hoje?],3 David


Pytches compilou histórias de pessoas que receberam “palavras”
de Deus, bem como 14 casos em que as afirmações de ouvir a Deus
eram claramente equivocadas. Esse estudo ajudará a esclarecer
quando Deus está falando. Talvez você queira rever, no capítulo 6
deste livro, a lição sobre como discernir a voz de Deus. Depois, se
ainda restar alguma pergunta, compartilhe sua preocupação com
um amigo que esteja familiarizado com o agir do Espírito. Confie
em mim: com um pouco de prática, ficará evidente quando você
estiver ouvindo a voz de Deus.

3
PYTCHES, David. Does God Speak Today? Minneapolis: Bethany
House, 1989.
SANTUáRIO DA ALMA

Meditar é rcalmente necessário?


Não... e sim. Você não precisa falar com seus pais para ser filho
deles. Mas por que você não falaria? Sc você falar com eles, também
não desejaria ouvir o que eles podem querer dizer? Uma conversa de
mão dupla saudável produz um relacionamento saudável. O mesmo
acontece com Deus. Fomos criados para ter um diálogo íntimo com

120
Deus. Lembre-se apenas do sábio conselho de Thomas Merton:
Qualquer um que ache que pode simplesmente começar a me¬
ditar sem orar pedindo o desejo e a graça para tal vai logo desistir.
Mas o desejo de meditar e a graça para começar a meditar devem
ser tidos como promessas implícitas de graças futuras. Na me¬
ditação, bem como em qualquer outra coisa na vida cristã, tudo
depende da nossa harmonia com a graça do Espírito Santo.4

Qual a melhor hora para a meditação?


A resposta a essa pergunta varia de pessoa para pessoa e geral¬
mente é diferente em diferentes momentos da vida. Por exemplo, em
meus anos de ensino médio, o período da manhã era muito precio¬
so; na faculdade, uma hora livre antes do almoço satisfazia melhor
minhas necessidades; na pós-graduação, períodos menos frequentes,
porém mais longos, eram de maior ajuda; e, na meia-idade, o período
da manhã voltou a me parecer melhor. Você encontrará seu próprio
ritmo. Se possível, separe a hora em que seu nível de energia está no
pico, a melhor hora do seu dia, e dedique-a a este trabalho sagrado.

Qual o melhor lugar para a meditação?


Quero fazer três observações. Primeira, todo lugar é sagrado no
Senhor, e precisamos saber que, seja onde for, estamos em solo santo.

4
MERTON, Thomas. Spiritual Direction and Meditation. Collcgeville:
Liturgical, 1960; p. 98. [Espiritualidade, contemplação e paz. Belo
Horizonte: Itatiaia, 1962.]
Uma miscelânea de perguntas

Somos um santuário portátil e, pelo poder de Deus, santificamos


todos os lugares. Minha segunda observação é, contudo, aparente-
mente contrária à primeira. A maioria considera alguns lugares mais
propícios à oração meditativa do que outros. Além disso, parece ha¬
ver certos lugares especiais, onde o céu parece tocar a terra, onde a
sensação da Shekinah de Deus é especialmente próxima. Fazemos
bem em procurar um lugar bonito e tranquilo, confortável e livre de
distração física e emocional. Com um pouco de criatividade, quase 121

todos conseguem arranjar um lugar desses sem muito esforço.


Terceira, descobri que certas atividades são especialmente pro¬
pícias à oração meditativa. Nadar e correr são bem apropriados a
esse trabalho interior. Em geral, uma caminhada rápida fica melhor
quando se murmura a Oração de Jesus no ritmo das passadas... “Se¬
nhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem misericórdia de mim, pe¬
cador”. Alguns consideram a jardinagem um momento feliz para
conhecer o “Senhor, que fez os céus e a terra” (Salmos 124.8). Por
alguns anos apreciei os períodos de meditação no ônibus a caminho
do trabalho. Embora seja preciso um pouco de prática para descon¬
siderar o rebuliço usual, logo se torna um ótimo lugar de solitude.

Existe uma duração de tempo ideal que eu deva dedicar?

Em geral, isso depende da sua experiência anterior e da sua dis¬


posição interna. Alguns vivem em ritmo tão frenético que 5 ou 10
minutos de quietude é o limite. Mas, com um pouco de prática, 30
ou 40 minutos deveriam ser confortáveis. Deixe que suas necessi¬
dades e habilidades determinem seu ritmo. É melhor selecionar tre¬
chos curtos e digeri-los por completo do que tentar fartar-se e acabar
com uma indigestão espiritual.

Qual a melhor posição?


De novo, a resposta é a que for melhor para você... com uma
única restrição. A maioria das pessoas não entende a ajuda que o
SANTUáRIO DA ALMA

corpo pode dar ao trabalho espiritual. Por exemplo, se sentimos


que estamos muito distraídos e sem contato com as coisas espirituais,
ficar de joelhos por escolha consciente pode ajudar o espírito a
prestar atenção. Romano Guardini aponta que o simples ato cristão
de dobrar os joelhos traz em si uma “disciplina da postura, não do
conforto”.5 Sugiro sentar cm uma cadeira confortável, mas reta, com
as costas alinhadas e os dois pés no chão. Richard Rolle disse que,
122
“sentado, fico mais descansado; e meu coração, mais elevado”.6 As
mãos estendidas ou sobre os joelhos, com as palmas para cima, po¬
dem conduzir a mente a um estado de receptividade.

A oração meditativa exclui uma vida ativa?

Ah, não. Longe disso. William Penn observou: “A piedade ver¬


dadeira não tira as pessoas do mundo, mas capacita-as a viver melhor
nele e incita seus esforços para melhorá-lo”.7 A tradição de uma vida
de oração levando pessoas à mais vigorosa vida ativa é longa e bem do¬
cumentada. Pense em São Patrício, enviado por Deus à Irlanda como
resposta para sua pobreza espiritual. Pense em São Francisco, lançado
em um ministério mundial de compaixão por todas as pessoas, to¬
dos os animais, toda a criação. Pense em Elizabeth Fry, dirigida por
compaixão divina ao inferno da prisão de Newgate, o que deu origem
a seu grande trabalho de reforma da prisão. Pense em William Wilber-
force, que lutou a vida inteira pela abolição do comércio de escravos.
Pense em William e Catherine Booth, que serviram incansavelmente

5
GUARDINI, Romano. Apud O’CONNOR, Elizabeth. Search for Silence.
Waco: Word, 1972. p. 127.
6
ROLLE, Richard. Apud MERTON. Spiritual Direction, p. 75.
7 PENN, Wiliam. No Cross, No Crown. Ed. Ronald Selleck. Richmond:
Friends United Meeting, 1981. p. xii.
Uma miscelânea de perguntas

entre os moradores de rua dc Londres, o que os levou a fundar o Exér¬


cito de Salvação. Pense cm Padre Damião que viveu, sofreu c morreu
com os leprosos de Molokai. Pense em Madre Teresa, que ministrou
entre os mais pobres dos pobres na índia c em todo o mundo. Gordon
Cosby observou: “Virá um tempo em que as duas ênfases — con¬

templação e ação se cruzarão c se tomarão uma, pois o verdadeiro
contemplador é um homem dc ação”.8
123

Qual a relação entre minha experiência pessoal em oração


meditativa e a experiência coletiva da adoração?
Existe mesmo alguma relação?

Existe. Se apenas alguns indivíduos desenvolverem um diálogo


íntimo e contínuo com Deus, isso influenciará toda a atmosfera da
comunidade reunida. O show de entretenimento que é tão caracte-
rístico dos cultos contemporâneos começará a parecer falso e arti¬
ficial, e as pessoas instintivamente procurarão algo mais profundo,
mais autêntico. Não é preciso dizer nada, nem fazer nenhuma ale¬
gação. É a própria essência da sua vida que irá surtir efeito e atrair
outros como um imã para Cristo. E mais, você é livre para simples¬
mente estar com as pessoas e todos os seus modos de agir, tanto os
amáveis quanto os frustrantes.

Que livros sobre oração meditativa você recomendaria?


Thomas Merton observou bem: “Não se pode aprender medita¬
ção a partir de um livro. Você só precisa meditar”.11 Agora, fico feliz que
você esteja lendo este livro, c espero que ele seja útil para você. Mas
o propósito de qualquer livro sobre meditação é levar-nos à prática

8
COSBY, N. Gordon. Apud O’CONNOR, Elizabeth. Search for Silence,
p. 12.
9
MERTON. Spiritual Direction, p. ii.
SANTUáRIO DA ALMA

da meditação, assim como um livro sobre as regras de futebol tem a


intenção de levar-nos ao campo c ao jogo. No final deste livro há um
apêndice com algumas sugestões de leitura. É importante, porém, que
não fiquemos apenas na leitura, mas que “entremos no jogo”.

Devo falar aos outros a respeito das minhas


experiências meditativas?
124
Não muito. O carvalho pode lançar a raiz principal a 18 metros à
procura de água, e seu sistema radicular em camadas atravessará dife¬
rentes estratos do solo. Algumas dessas raízes se estenderão mais que
o dobro da projeção da copa. Contudo, teremos nossos piqueniques
à sombra desse carvalho gigante, e nossos filhos se pendurarão em
seus galhos sem ao menos pensar no sistema radicular que possibilita
a existência dessa grande árvore. Acontece o mesmo conosco. O siste¬
ma de raízes da oração existe para manter a essência da vida da pessoa.
Talvez você se lembre de que Paulo teve a experiência de ser le¬
vado ao terceiro céu. Você sabia também que isso aconteceu catorze
anos antes de ele mencionar qualquer coisa sobre o assunto? Ou que
ele só comentou sobre isso porque foi pressionado a discutir “vi¬
sões e revelações”? Ou que ele se recusou a falar sobre o que tinha
aprendido,pois “ouviu coisas indizíveis, coisas que ao homem não é
permitido falar” (2Coríntios 12.1-4)? Como você pode ver, algumas
experiências se destinam exclusivamente a nós mesmos. De novo,
pode ser adequado compartilhar um pouco da nossa experiência,
mas, mesmo assim, isso deve ser feito de forma discreta e com hu¬
mildade no coração.

Perguntas aos montes

Tenho certeza de que você ainda tem muitas perguntas. Eu tam¬


bém. E bom saber que não fomos largados nem dependemos apenas
de nós mesmos. Jesus é um Mestre presente. Ele nos guiará no que
precisarmos saber, quando precisarmos saber.
Entrando na experiência
Um encontro na praia de Jalama

125
Esta, então, é a paisagem extravagante do mundo,
dada, dada com entusiasmo, dada em boa medida,
espremida, agitada e transbordante.
— ANNIE DILLARD1

Há muito passou o tempo em que eu encarava a viagem


como uma aventura. Mesmo assim, esta é uma viagem que venho
aguardando. O motivo explícito é fazer o discurso de formatura no
Westmont College em Santa Bárbara, Califórnia. O presidente do
Westmont, dr. Gayle Beebe, é meu ex-aluno e sempre acho que
qualquer oportunidade de estar com ele vale o tempo e a viagem.
Tenho, contudo, outra motivação.
Sempre que possível, em viagens de negócio, agendo um retiro
de 24 horas para meu próprio crescimento e renovação espiritual.
Em outra viagem a Santa Bárbara, fiz uma trilha solitária por perto,
nas Channel Islands. Desta vez planejo um dia inteiro de caminhada
e oração ao longo de um trecho isolado da linha costeira chamado
praia de Jalama.

fcr>oa

DILLARD, Annie. Pilgrim at Tinker Creek. New York: HarpcrCollins,


1974. p. 148.
SANTUáRIO DA ALMA

Assim que chego a Santa Bárbara, mergulho nas atividades da for¬


matura com gosto. Meu padrão é estar sempre o mais presente possível,
atento às pessoas e atividades do momento. Quando viajo, não sou do
tipo multitarefa. Nada de ligações no celular. Nada de entrevistas sobre
outros assuntos. Nada de verificar e-mails. Nada de trabalho no notebook
entre os eventos. Toda a minha energia está canalizada no momento

presente e nas pessoas preciosas que fazem parte desse momento.


126
Qualquer formatura é repleta de pessoas e eventos. Uma recep¬
ção para os graduandos — todos radiantes, ansiosos e cheios de pro¬
messas. Cumprimentos e conversas cotidianas com os funcionários,
secretárias e equipe do restaurante — cada um deles essencial para
o funcionamento de uma faculdade. Apresentações a dignitários de
uma espécie e de outra — pessoas únicas com histórias ainda mais
únicas para contar.
Vou para o culto do bacharelado. Sem uma função oficial, estou
livre para sentar entre os pais e convidados que compareceram a este
evento promissor. Observo-os de perto, e é comovente sentir seu

orgulho de inflar o peito. Muitos, sem dúvida, esperam e torcem


por este dia há muito tempo. Três alunos compartilham reflexões
breves — e benfeitas, devo acrescentar. O discurso principal é de
Mark Nelson, professor de filosofia de Westmont. É óbvio que ele
é popular entre os alunos, e sua fala é um gol de placa. Na verdade,
todo o corpo docente me deixa impressionadíssimo.
Meu discurso de formatura no dia seguinte é sobre um assunto
pelo qual sou apaixonado: “A palavra humilhada nos nossos dias”.
Meu título foi extraído do famoso escritor francês Jacques Ellul,2 e

2 ELLUL, Jacques. The Humiliation of the Word, trans. Joyce Main


Hanks. Grand Rapids: Eerdmans, 1985. [A palavra humilhada. São
Paulo: Paulinas, 1984.]
Entrando na experiência

espero dar ao conceito relevância contemporânea. Meu último pon¬


to tem uma aplicação específica para a vida de oração contemplativa
contínua... e para meu tão esperado retiro no dia seguinte:

Em quarto c último lugar, recomendo a vocês, turma de 2010,


que permitam que suas palavras sejam fundamentadas no si¬
lêncio. Lembrem-se de T. S. Eliot, em Quarta-feira de cinzas,
quando perguntou: 127
Onde encontrar a palavra,
onde a palavra
Ressoará?
Não aqui, onde o silêncio foi-lhe escasso.3
Vejam, a distração é um dos problemas mais sérios que enfren¬
tamos hoje. Todos os estímulos visuais, todas as conversas da
blogosfera, toda a confusão do duplo sentido nos mantêm perpe-
tuamente distraídos.

Lembrem-se, o silêncio é uma disciplina espiritual da qual pre¬


cisamos para nos dcsconcctar de toda a conversa fútil da cultura
moderna. Hoje, como resultado de e-mails e mensagens de texto
(maravilhosas invenções tecnológicas em si mesmas), estamos
falando cada vez mais sobre cada vez menos. Para muitos, isso
se tornou um verdadeiro vício. O ruído das palavras barulhentas
lançadas tão casualmente, tão superficialmente, tão descuidada¬
mente, acaba com o silêncio que nos abriria para a voz do Espí¬
rito que geme dentro de nós. Então, em nossos dias, precisamos
aprender a ficar quietos. A esperar. A segurar a língua. A observar.
A ponderar. A refletir.
O silêncio cultiva o solo do nosso coração para que as palavras
de vida possam germinar c criar raiz. Assim, quando chegar a

3
ELIOT, T. S. Collected Poems, 1909-1962. Várias edições. [Poesia.
Bonsucesso: Nova Fronteira, 1981.]
SANTUáRIO DA ALMA

hora de falar, nossas palavras fluirão como águas de uma fonte


silenciosa.4

As festividades do dia são completadas com uma gigantesca re¬


cepção no gramado da faculdade para as felicitações, as fotografias,
os cumprimentos e as apresentações de parentes de toda parte.

128

Domingo de manhã, 9 de maio, é meu dia de retiro — Dia


das Mães. Levanto cedo, compro uma maçã e um pouco de queijo
para passar o dia e me dirijo à praia de Jalama. Os morros ao longo
dos 24 quilómetros da estrada estreita e sinuosa de Jalama explo¬
dem com o amarelo vivo das plantações de mostarda. Há milhões
e milhões dessas flores e todas elas morrerão quando vier o calor
do verão. Espantoso.
Quando chego ao alto penhasco com vista para a praia, vejo tre-
moceiros e girassóis ondulando ao vento. Minha mente vaga pelas
notáveis palavras de Agnes Sanford: “A maneira mais simples e mais
antiga, então, pela qual Deus se manifesta é [...] na terra e por meio
dela. E ele ainda nos fala por meio da terra e do mar, das aves do céu
e das pequenas criaturas que vivem sobre a terra, se conseguirmos
nos aquietar e ouvir”.5
Assim, aqui estou eu para ouvir. Enquanto me dirijo à praia de
Jalama, o guarda-florestal diz sem entusiasmo: “Maio é o nosso mês
de vento”. Logo percebo que suas palavras atiradas com tanto

4
FOSTER, Richard J. “The Humiliation of the Word in Our Day”. West¬
mont 30, n. 3, 2010: 13.
5
SANFORD, Agnes. The Healing Gifts of the Spirit. New York: Lippin-
cott,1966. p. 25. [Os dons de cura do Espírito Santo. São Paulo:
Paulus, 1977.]
Entrando na experiência

descaso eram um aviso. No momento em que ponho os pés na praia,


sou recebido por um vento forte que açoita as ondas e a areia. “Pelo
menos isso desencorajará vagabundos de praia em potencial”, penso.
Em vez de enfrentar o vento direto batendo na minha face, va¬
gueio pelo riacho de Jalama c reflito sobre sua importância como
fonte acessível de água fresca para os índios chumashs que viveram
ao longo da costa por muitos séculos. É fácil ver por que havia uma
129
grande vila dos chumashs aqui, onde o riacho encontra o mar. Ela foi
significativa o bastante para seu nome ter sobrevivido até hoje —
Shilimaqshtush mas não consigo encontrar uma tradução ade-
quada para o termo.
Penso nessas coisas enquanto olho para as taboas gigantes que
proliferam ao longo da margem do riacho, curvando-se com o
vento. Vejo outras plantas também: sabugueiros, urtigas e juncos.
E me pergunto sobre esse povo, que somou pelo menos 8 mil pes¬
soas em certa época, organizadas em uma sociedade complexa que
prosperou por séculos. Especialmente incomuns eram seus barcos
tomei, que lhes permitiam viajar e povoar várias das Channel Islands
nas proximidades.
Em 2001 um pequeno grupo contemporâneo de chumashs re¬
criou aquela jornada perigosa, e agora, uma vez por semana, alguns
remam em barcos tomei desde o continente até a ilha de Santa Cruz
para celebrar uma cultura quase extinta. A dizimação da tribo é uma
história antiga — pelo contato com doenças europeias contra as
quais os chumashs não tinham nenhuma resistência imunológica. No
fim, toda a vila foi reunida e transferida para La Purisima Mission,
perto dali. Não havia mais Shilimaqshtush. Em 1900 o número da
população chumash tinha sido reduzido a meros 200, embora nos
dias atuais as estimativas apontem para cerca de 3 mil pessoas.
Peso tudo isso cm meu coração. A própria terra parece ergucr-sc
em protesto contra toda essa barbárie. Talvez aquela parte da minha
SANTUáRIO DA ALMA

herança ojíbua esteja reagindo com tristeza a tudo o que aconteceu


neste lugar. Sem dúvida, as missões da Califórnia fizeram muitas
coisas boas, mas mesmo assim... será que os chumashs não teriam
recebido melhor serviço se pudessem ter continuado a morar nesta
bela região costeira? Não sei, apenas gostaria de saber.

130
90OS
A teologia cristã nos ensina que há dois textos principais para
nosso estudo e meditação: a Bíblia e o “livro da natureza”. Vim hoje
à praia de Jalama com a intenção de estudar o livro da natureza para
ver o que o Senhor pode ensinar-me. Evelyn Underhill nos lembra
de que “evitar a natureza, recusar sua amizade e tentar saltar o rio
da vida na esperança de encontrar Deus do outro lado é o erro co¬
mum de um misticismo perverso [...] Portanto, comece com aquela
primeira forma de contemplação a que os antigos místicos às vezes
chamavam de ‘descoberta de Deus em suas criaturas’ ”.6
É hora de enfrentar a corrente do vento costeiro. Suponho que,
se John Muir conseguiu amarrar-se ao topo de uma árvore numa
nevasca no Yosemite, eu deveria ser capaz de enfrentar um pouco de
vento. Espero por uma longa caminhada de oração, de cinco, talvez
seis horas. Assim, ponho os pés na praia propriamente dita, onde
por muitos séculos crianças chumashs riram e brincaram, mulheres
chumashs cozinharam e teceram cestos, e homens chumashs caçaram e
pescaram. O que posso aprender aqui?
O vento bate em meu rosto e me empurra para trás. A areia que
se espalha arranha minhas bochechas e pernas. Logo viro as costas
para o vento e decido que devo andar com o vento e não contra ele.
É claro que alguma hora terei de voltar... mas talvez até lá as raja-

6
UNDERHILL. Practical Mysticism, p. 90,91.
Entrando na aqieriênda

das doloridas se tenham aquietado. Prendo com força meu chapéu


bem em volta das orelhas, apertando a cordinha em baixo do queixo.
Uma coisa é certa, sou a única pessoa néscia o bastante para ficar
aqui fora. Hoje a solitude é minha.
Lembro-me das palavras de Jesus de que o Espírito Santo é mais

parecido com o vento não sabemos de onde vem nem para onde
vai. Então caminho tentando imaginar esse vento como se fosse o
Espírito Santo. Mas logo abandono a metáfora —nem mesmo o
sopro de fogo de Pcntecoste poderia ser tão violento! O vento é só o
vento, e hoje devo enfrentá-lo.

Caminhar com o vento me permite enxergar as coisas muito


bem. A areia que se espalha bate um pouco nas minhas pernas, mas
isso não é um grande incómodo. Posso andar rápido com o vento
me empurrando. As ondas do oceano estão agitadas hoje; elas tam¬
bém estão sendo sopradas de um lado para o outro. Uma beleza
selvagem, maravilhosa.
Em menos de um quilómetro, cruzo com três estrclas-do-mar
vivas e encalhadas na praia por causa da turbulência do vento. Jogo-as
de volta às ondas agitadas, pensando na história de LorenEiseley sobre
o menininho que jogava estrelas-do-mar de volta na água. O menino
é questionado por alguém que observa a inutilidade de sua ação. Uma
vez que há quilómetros e mais quilómetros de praia e centenas de
estrelas-do-mar, ele não consegue fazer nenhuma diferença. Enquan¬
to joga mais uma estrela no mar, a criança simplesmente responde:
“Estou fazendo a diferença para esta estrela-do-mar”. Uma história
bem sentimental, sim. Mas hoje me ajuda a pensar no valor de fa¬
zer diferença para uma única vida. Penso cm como devo estar atento
“àquele indivíduo solitário”, como diz Kierkegaard.
Mais 800 metros pela praia e vejo uma foca morta atirada na praia
pela água. Morte recente, imagino, pois nenhum necrófago atacou a
SANTUáRIO DA ALMA

carcaça. Essa é a violência feia e cruel da natureza. Mas talvez nada


cruel nem feia. É apenas o processo de vida e morte que faz parte do
mundo no qual vivemos. Mesmo assim estou triste pela morte dessa
foca. Ela me faz pensar nas inúmeras focas que morrem no oceano
todo dia sem que ninguém se importe. Exceto Deus talvez.
Depois de uma hora de caminhada, estou exausto pela força do
vento. Seu soprar, soprar, soprar está se tornando mais que um in¬
cómodo, mais que uma perturbação. É uma dor aguda bloqueando
todo o resto. Procuro um meio de escapar do vento. As falésias aqui
não oferecem nenhuma caverna ou abrigo à altura da minha vista.
Corro rápido para trás de uma curva na parede da falésia, esperando
que ela me abrigue de algum jeito. Não tenho sorte. O vento parece
ainda mais feroz que antes. Concluo que este não é o meu dia de
lições agradáveis do livro da natureza.
Então logo subo em uma pequena elevação rochosa que salta
da areia. Normalmente eu não olharia duas vezes para ela, mas hoje
noto que do outro lado formou-sc na rocha uma cavidade grande o
suficiente para eu entrar rastejando. É o que faço. Estou meio deita¬
do, meio sentado, dentro desta formação rochosa, que é um abrigo
perfeito contra o vento. A areia avança centímetros acima da minha
cabeça. Decido permanecer onde estou por mais algum tempo.
Examino a rocha que me cobre e me protege. Não há nenhuma
semelhança com o granito que estimo tanto nas Montanhas Rocho¬
sas. Mas ainda é um quartzo de Monterrey de boa qualidade. Li an¬
tes que os chumashs usavam lascas desta rocha para fazer belas facas.
Esta cavidade é um lugar perfeito para eu pensar... orar. O céu é de
um azul intenso. As nuvens passam rapidamente no alto, persegui¬
das pelo vento. Olhando com atenção para o céu, posso ver a Lua,
apenas uma linha prateada nesta época do mês. Em plena luz do dia,
ela fica um tanto apagada. Na verdade, eu nunca teria reparado na
Lua se não fosse minha posição meio inclinada e imóvel.
Entrando na experiência

Neste pequeno abrigo na rocha, posso orar: “Todo o louvor a


ti, Senhor Deus, Criador de todas as coisas. O estrondo das ondas,
o assobio do vento, mesmo esta rocha que me protege, tudo louva
a ti. Então nesta manhã também elevo meu coração em louvor e
ação de graças”.
Penso em Jesus, que é o Senhor do vento e das ondas. Mais
cedo, tentei mandar o vento parar e logo concluí que minhas habi¬
133
lidades de oração definitivamente não são do tipo “acalmar o vento
e as ondas”. Sinto-me um pouco como Elias em sua vigília solitária
em meio ao terremoto, ao vento e ao fogo.
Estou feliz agora como o meu pequeno abrigo; em silêncio
observo as ondas quebrando sobre as rochas e as gaivotas lutando
contra o vento. Como minha maçã e meu queijo. É bom estar aqui.
Minha alma está quieta. Ouvindo.

£003
A rocha, contudo, é pouquíssimo confortável. Depois de mais
ou menos uma hora cm meu pequeno e aconchegante abrigo, sinto
dores nas costas e nádegas. Preciso mover-me. Então levanto e en¬
caro o vento, que não diminuiu nem um décimo. Preciso tomar o
caminho de volta enfrentando toda a força do vento carregado de
areia. Infelizmente, não tenho escolha.
Na volta, viro o rosto para os lados, a fim de proteger o nariz e
os olhos de algum modo. Nesta posição, observo as falésias acima
de mim, ainda mais de perto que antes. Nada de incomum, apenas
quartzos de Monterrey que se desintegram lentamente sob a força
das ondas implacáveis.
Mas então, bem na borda da falésia, vejo uma cruz alta de ma¬
deira. Olho para ela por um bom tempo enquanto ando bem deva¬
gar contra o vento. Não há marcas. Nenhum sinal de nenhum tipo.
SANTUARIO DA ALMA

A cruz está bem desgastada c é simples. Só um pasto se espalha pelos


montes além do objeto. Por que está ali? Lembrança de algum aci¬
dente trágico? Será que alguma criança caiu do penhasco contra as
pedras lá embaixo? Talvez.
Pergunto-me, porém, se a razão para a existência desta cruz des¬
gastada não seria totalmentc diferente. Talvez alguém só quisesse
134
colocar neste penhasco pedregoso uma lembrança do maior evento
em toda a história. O Filho de Deus, em amor inexorável, pendura¬
do em um tronco no monte do Gólgota. Não sei. Só imagino.

Tomo o caminho de volta para a administração do parque, cansa¬


do e coberto de areia. Perto há uma pequena loja de souvenirs da praia
de Jalama e uma lanchonete. Eles têm “o mundialmente famosoJala-
nia burger” e peço toda aquela mistura desordenada com todos os com¬

plementos. Nada de vegetais e pratos vegetarianos para mim hoje!


Nas paredes da lanchonete há fotos e histórias do local. O
vento, percebo, é uma presença selvagem há um bom tempo. Em
1923, numa noite de tempestade, sete embarcações quebraram-se
nestas costas rochosas, e 25 vidas se perderam. Concluo que meu
pequeno conflito com o vento foi apenas brincadeira de criança
perto do que muitos experimentaram nestas praias. O povo chu-
mash com certeza enfrentou muitos dias de vento. O que faziam?
E o que diriam para mim?
Como meu Jalama burger e penso no meu dia. O vento me
venceu? Talvez. Certamente não foi o dia que imaginei que teria.
Aprendi alguma lição espiritual arrasadora do livro da natureza?
Não, mas estou feliz com minha experiência. Condições meteo¬
rológicas de todos os tipos, físicas e espirituais... tudo faz parte da
nossa vida com Deus.
Palavras Finais

Desde que aprendi a entrar na floresta da meditação,


recebi doces gotas como se fossem o orvalho da
floresta. Descobri que a porta para a meditação está
aberta em todos os lugares e em todo o tempo, à
meia-noite ou ao meio-dia, no amanhecer ou no
crepúsculo. Em todos os lugares, na rua, no bonde,
no trem, na sala de espera ou numa cela de presídio,
tenho um lugar de descanso onde posso meditar e
alegrar-me com o Deus Todo-poderoso que habita
meu coração. [...) Os que retiram água da fonte
da meditação sabem que Deus habita próximo ao
coração. Aos que desejam descobrir a quietude
antiga em meio ao corre-corre da civilização atual,
não existe outro caminho a não ser redescobrir esse
antigo reino da meditação. Desde que perdi a visão,
tenho-me deleitado como se tivesse descoberto uma
nova fonte ao chegar nesse lugar sagrado.
— TOYOHIKO KAGAWA1

KAGAWA, Toyohiko. Meditations. Trans. Jiro Takenaka. New York:


Harper & Brothers, 1950. p. 1.
SANTUAIIIO DA ALMA

A jornada rumo à oração mcditativa é longa. Podemos até es¬


tar hesitantes, sem saber se querermos fazer essa jornada.2 Mas,
com o tempo, algo maravilhoso começa a acontecer dentro de nós.
Devagar, mas sem falta, cada um de nós começa a se transformar
na imagem de Cristo. Os desejos do nosso coração começam a ser
formados numa nova direção. Sentimentos, esperanças, desejos,
—— tudo começa a se mover para o alto, em direção a Deus. O bem
floresce. O mal perde sua força. Nossa vida é totalmente permeada

pelo amor. Nós nos alimentamos de fé em fé da fé que temos
para a fé que ainda virá. Essa fé nos permite ver com clareza todas
as coisas à luz do soberano controle divino para o bem. Sentimos
crescer dentro de nós uma semente de esperança, uma esperança
capaz de nos carregar através das circunstâncias mais difíceis. E
uma nova força é gerada lá no fundo, força para superar o mal e
fazer o que é certo.
Essa obra transformadora não ocorre de uma vez e, talvez, nem
de maneira completa. Mas ela ocorre. Os velhos jogos de manipula¬
ção e controle começam a perder seu poder de atração. O engano vai
desaparecendo como padrão na nossa vida diária. Brota em nós uma
nova compaixão pelos feridos, quebrantados e necessitados. De fato,
é um tipo de interesse sensato pelo bem-estar de todas as pessoas, de
toda a criação. Estamos tornando-nos amigos de Jesus (João 15.14).

2 Há alguma sabedoria na hesitação. A oração meditativa não funciona por


si só. Está intimamente ligada a toda uma série de disciplinas clássicas da
vida espiritual. Precisamos estar dispostos a entrar na “graça dispendiosa”
de uma vida de completa dedicação como discípulos de Jesus. Para saber
mais sobre as disciplinas espirituais e como elas funcionam numa vida
espiritualplena, veja: Dallas WILLARD, O espírito das disciplinas (Rio de
Janeiro: Habacuc, 2003); c Richard FOSTER, Celebração da Discipli¬
na: o caminho do crescimento espiritual (2. ed. São Paulo: Vida, 2007).
Mavras Finais

Talvez nos peguemos olhando com grata surpresa para as mu¬


danças ocorridas em nós. Nunca pensamos, nem em nossos sonhos
mais delirantes, que gostaríamos de ser santos. Mas agora é exata¬
mente isso o que desejamos, ser santos num sentido forte, alegre e
vigoroso. A comunicação interativa com Deus torna-se um modo
natural de viver, assim como nossa habilidade de ouvir. Estamos
prontos para ouvir a voz do verdadeiro Pastor. Nem sempre, nem
137
perfeitamente. Mas o desejo e a capacidade crescem a cada dia. Bem,
não “todos” os dias. Mas os dias em que não conseguimos viver em
intensa comunhão parecem vazios e desperdiçados. Os dias de rica
comunhão são mais plenos, mais satisfatórios.
Começamos essa prática da oração meditativa a partir de um
anseio interior, mas só conseguiremos permanecer nela quando isso
se tomar um hábito sagrado. E a mais surpreendente de todas as mu¬
danças é que começamos a viver todos os dias sob um novo poder e
uma nova direção. Somos possuídos por Deus e reagimos de acordo.
Estamos aprendendo, nas palavras de George Fox, a “caminhar ale¬
gremente sobre o mundo”.3

Bem-vindos ao lar

No verão de 1990, eu estava trabalhando intensamente no que


hoje é a obra Oração: o refúgio da alma. É claro que ainda não era um
livro, só um monte de notas rabiscadas em pedaços de papel, guar¬
danapos e qualquer outra coisa que eu conseguisse achar. O pessoal
da biblioteca da universidade onde eu lecionava na época separou
uma sala especial para minha pesquisa. Até me deram a chave para
que eu pudesse entrar a qualquer hora, de dia ou de noite.

5
Fox, George. The Journal of George Fox. John L. Nickalls (ed.).
Cambridge: Cambridge University, 1952. p. 263.
SANTUáRIO DA ALMA

Ao longo daqueles meses de verão, imagino que li uns 300 li¬


vros sobre oração. Clássicos. Contemporâneos. Livros, livros, livros.
Minha cabeça estava explodindo com todos os debates sobre oração
e todas as definições de oração. Aprendi cada i e cada til de oratio,
meditado e contemplado. Fiquei tão perdido no Castelo interior, de Santa
Teresa de Ávila, que já não sabia em qual sala eu estava!
138 Nunca me esquecerei de uma noite específica em julho de
1990. Eu estava completamente só na biblioteca. Todos tinham
saído horas antes. Era tarde. Eu havia lido demais, estudado de¬
mais. Estava sofrendo uma sobrecarga. Como alguém consegui¬
ria enfrentar, em um único livro, todas as dificuldades e todos os
meandros da oração? Não era possível. Joguei as mãos para o alto,
pronto para abandonar o projeto. Então, algo aconteceu comigo.
Algo que ainda hoje acho difícil explicar.
A única coisa que posso dizer é que vi alguma coisa. O que eu
vi era o coração de Deus. E o coração de Deus era uma ferida aberta
de amor. Então, ouvi a voz do verdadeiro Pastor, não externa, mas
intemamente, dizendo: “Eu não quero que você abandone esse pro¬
jeto. Em vez disso, diga a meu povo, a meus filhos, que meu coração
está quebrado. A distância e as preocupações deles me machucam.
Diga a eles. Diga a meus filhos que voltem para casa”.
E, assim, estou dizendo isso a você. Da melhor maneira possí¬
vel, estou dizendo que Deus está recebendo você e a mim em casa,
na casa a que pertencemos, na casa para a qual fomos criados. Temos
vivido num país distante. Num país de escaladas, ataques e pressões.
Num país de barulho, pressa e multidões. E Deus nos acolhe em
casa — uma casa de paz, serenidade e alegria.
Não precisamos ter medo. Os braços de Deus estão estendi¬
dos para nos acolher. O coração de Deus é grande o bastante para
nos receber. Somos bem-vindos a sala de estar do amor divino,
Mavras Finais

onde podemos calçar chinelos velhos e compartilhar com liberdade.


Bem-vindos à cozinha da amizade divina, onde conversas c massas
se misturam cm boa diversão. Bem-vindos à sala de jantar da força
divina, onde podemos banquetear-nos para o deleite do nosso cora¬
ção. Bem-vindos ao escritório da sabedoria de Deus, onde podemos
crescer e espreguiçar-nos c fazer todas as perguntas que quisermos.
Bem-vindos à oficina da criatividade divina, onde nos tornamos co-
laboradores de Deus. Bem-vindos ao quarto do descanso divino,
-
139

onde encontramos nova paz.


Jesus é a porta desse lar que é o coração de Deus, e a oração é
a chave que “pela graça, por meio da fé” (Efésios 2.8) destranca a
porta. Somos bem-vindos ao lar. Bem-vindos ao santuário da alma.
Livros úteis para sua jornada

Eu o aconselho a não procurar “livros de meditação” no Google.


141
A imensa maioria da literatura contemporânea encontrada por aí
é apenas uma corrida insensata de cegos guiando cegos. Ignorar a
maioria desses escritos é uma virtude. Se você concentrar suas ener¬
gias nos textos cristãos clássicos sobre o assunto, terá uma chance
muito maior de progredir na oração meditativa. A seguir apresento
12 das fontes mais conhecidas e confiáveis. É claro que a maioria
desses autores escreveu outros livros além dos mencionados. Listei
os autores cronologicamente e suas obras podem ser encontradas
em várias edições.

JUUANA DE NORWICH (Julian of Norwich] (1342-1416). Showings (tam¬


bém conhecido como Revelations of Divine Love). Tradução do
texto crítico com introdução de Edmund Colledge e James Walsh,
prefácio de Jean Leclerq. New York: Paulist Press, 1978.
TERESA DE ÁVILA (1515-1582). The Interior Castle. Trans. Kieran Kava-
naugh e Otilio Rodriguez. New York: Paulist, 1979. (Castelo interior
ou moradas. São Paulo: Paulus, 2010.]

IRMãO LOURENçO da Ressurreição [Laurent de la Résurrection] (1614-


1691). The Practice of the Presence of God. Old Tappan: Revell,
1985. [Praticando a presença de Deus. Rio de Janeiro: Dan-
prewan, 2004.]
MADAME GUYON [Joana Maria Bouvicr de la Motte Guyon] (1648-1717).
Experimentando as profundezas de Jesus Cristo. São Paulo:
Vida, 2011.
SANTUARIO DA ALMA

João Pedro de CAUSSADE (Jean-Pierre de Caussade] (1675-1751). Self-


-Abandonment to Divine Providence. Charlotte: Saint Benedict
Press Classics, 2006,
João Nicolau GROU (Jean-Nicholas Grou] (1730-1803). How to Pray.
Cambridge: Lutterworth, 2008.
Ole HALLESBY (1879-1961). Prayer. Trans. Clarence J. Carlsen. Minneapo¬
lis: Augsburg, 1994. [Oração: o segredo de abrir o coração. Curitiba:
142
Encontro Publicações, 2008.]
Frank LAUBACH (1884-1970). Letters by a Modem Mystic. Colorado
Springs: Purposeful Design, 2007.
Sadhu Sundar SINGH (1889-1929?). At the Master’s Feet. Seattle:
CreateSpace, 2009.
Catherine de Hueck DOHERTY (1896-1985). Poustinia: Christian Spiri¬
tuality of the East for Western Man. Notre Dame: Ave Maria, 1983.
[Deserto vivo poustinia. São Paulo: Paulinas, 1989.]
A W. TOZER (1897-1963). The Pursuit ofGod. Camp Hill, PA: Christian
Publications, 1982. [À procura de Deus. Belo Horizonte: Bctânia,
1985.]
Thomas MERTON (1915-1968). Spiritual Direction and Meditation.
Collegeville: Liturgical, 1960. [Espiritualidade, contemplação e
paz. Belo Horizonte: Itatiaia, 1962.]
Sua alma pode tornar-se um santuário
“A jornada rumo à oração mcditativa c longa. Mas, com o tempo, algo
maravilhoso começa a acontecer dentro de nós. Devagar, mas sem falta, cada
um de nós começa a se transformar na imagem de Cristo. O bem floresce.
O mal perde sua força. Os velhos jogos de manipulação c controle começam
a perder seu poder de atração. O engano vai desaparecendo como padrão na
mossa vida diária. Estamos tomando-nos amigos de Jesus.” — RiCHARD FOSTER

Mesclando citações c histórias de sida dos pais da fé cristã, aliadas a


encontros poderosos com Deus em sua própria vida, Foster descreve, cm
Santuário da alma, a riqueza de aquietarmos a mente c o coração a fim de
«avirmos e obedecermos a Deus com mais atenção.
A jornada rumo ã oração mcditativa não é fácil, mas essencial. Como
mostra o autor, ela é possível, mesmo cm meio ao mundo barulhento e às
vezes caótico cm que vivemos. Sua alma pode tornar-se um santuário no
qual você entra cm comunhão com o verdadeiro Deus do Universo, que o
conhece e ama profundamente. Estas páginas mostram o caminho.
Foster considera a distração a maior ameaça desta geração à
maturidade da vida cm Cristo. Em resposta, ele faz mais uma vez o que sabe
íãzcr tão bem: vai direto ao cerne da questão c propõe que nos tornemos
participantes genuínos da prática cristã de uma vida de oração mcditativa.”
— EUGENE H. PETERSON, autor da tradução bíblica A Mensagem

RK HARD J. FOSTER C autor renomado de vários bestsellers, teólogo, professor


da Evangelical Friends Churches. É também fundador do RENOVARE.
Entre suas obras, podemos citar: o clássico Celebração da disciplina-, A liberdade
,h simplicidade-, Oração: o refúgio da alma; Rios de água viva; Sedentos por Deus;
Clássicos devocionais c Celebrando as 12 disciplinas espirituais, todos publicados
pela Editora Vida.
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